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O vídeo e texto “palimpsesto” relatos, ações e vídeo que buscam a condição da mulher brasileira diante do casamento e

O vídeo e texto “palimpsesto”: relatos, ações e vídeo que buscam a condição da mulher brasileira diante do casamento e do trabalho

Mariana Gonçalves Paraizo Borges, paraizoborges@gmail.com www.lattes.cnpq.br/0908260268425790

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RESUMO O vídeo Palimpsesto é uma montagem audiovisual curta metragem em vídeo digital que trata da história de uma mulher e, de forma geral, da condição das mulheres e do trabalho diante do acordo matrimonial nas décadas anteriores e contemporâneas à implementação do Estatuto da Mulher Casada. Por meio de vídeos de arquivo, um relato gravado em áudio e um vídeo registrando uma ação feita com uma assinatura e tinta branca, a investigação artística recompõe a história de Jubélia Clemente, dando destaque ao casamento, seu histórico financeiro e relações familiares de trabalho. O processo artístico entrelaça três gerações de mulheres: avó, mãe e filha. O vídeo acompanha um texto reescrito a cada vez que circula (do ambiente pessoal ao público) e tem como inspiração os diversos manuscritos de Teses sobre o conceito de história, de Walter Benjamin, publicados pela editora Alameda, em edição de 2020, organizada por Márcio Seligmann Silva.

PALAVRAS-CHAVE Escrita; Vídeo; Relato; Feminismo; Direitos trabalhistas.

RESUMEN El video Palimpsesto es un cortometraje audiovisual en video digital que trata sobre la historia de una mujer y, en general, de la condición de mujer y trabajo frente al pacto matrimonial en las décadas previas y contemporáneas a la implementación del Estatuto de la Mujer Casada. A través de videos de archivo, un relato grabado en audio y un video que registra una acción realizada con una firma y pintura blanca, la investigación artística reconstruye la historia de Jubélia Clemente, destacando su matrimonio, su historial económico y las relaciones laborales familiares. El proceso artístico entrelaza tres generaciones de mujeres: abuela, madre e hija. El video acompaña un texto reescrito cada vez que circula (del entorno personal al público). Tiene 42

como inspiración los diversos manuscritos de Teses sobre el concepto de historia, de Walter Benjamin, publicados por la editora Alameda, en edición organizada por Márcio Seligmann Silva.

PALABRAS-CLAVE Escritura; Video; Relato; Feminismo; Derechos laborales.

Cada imagem do passado que não é reconhecida pelo presente como uma de suas próprias referências ameaça desaparecer irremediavelmente — Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”

Com as mãos mergulhadas na tinta branca, tento delinear o papel. Esfacelada pela umidade, cremosa e espessa, a folha ainda é a superfície que busco para escrever. Mergulhada num recipiente de tinta grossa e branca, a folha está em algum lugar, eu sei. A assinatura de minha vó, Jubélia Clemente Gonçalves, me vem aos dedos. Para o gesto da reescritura desta assinatura, tento enxergar menos com os olhos, mais com o pulso. Escrever sua assinatura, sentir a textura do papel se rasgando. Prosseguir, reescrever, de novo e de novo. Reescrever seu nome, enquanto a tinta escorre de volta na mesma direção, em ondas. Não sei se esvazio sua assinatura ou qualquer superfície. Contudo, o relato de sua história na infância ou de quando era uma jovem adulta e mulher casada preenche minha memória. Inconsciente do meu efeito no vídeo, tenho gestos capturados pelo olho da câmera. As mãos na tinta branca não são apenas a performance no ateliê, mas também imagem capturada que será eventualmente reproduzida em outros cantos. No momento em que surge a figura digital, sua visualização é inacessível a mim, pois imediata. São imagens em outro tempo em relação ao meu próprio olhar sobre a ação, sobre a tinta espessa, sobre meus dedos. Imagino meu corpo diante do requadro, altero minha presença corporal, mas constato que, ainda assim, não é sou capaz de atingir o controle da imagem por esta via. Os olhos que tenho nunca estarão na perspectiva do outro, e nem ao menos seriam correspondentes aos da máquina. Algumas referências estão dadas, desde já, como parte da minha direção: quero a imagem desfocada em alguns momentos, quero um branco quase estourado que evoque a ideia de superfície de luz com a qual a fotografia trabalha em sua forma. Com um novo material visual, o digital, 43

trabalharei o que outros poderão ver na forma “vídeo”. Edito, insiro, recorto, escrevo, opero como uma editora. Sinto-me, talvez, como uma colagista, pois é da seleção, composição e recorte de que falo quando se trata da edição. É um processo completamente inserido no universo da pós-produção, e sigo revivendo esta reedição de tudo, uma vez que já retomei não só o vídeo mas ao texto homônimo incontáveis vezes. Esta é uma versão um pouco antiga, consideravelmente rasurada para caber neste contexto e diferente o suficiente para que seja outra em relação a mais novas reescrituras. Mais opaca que algumas em relação ao formato de artigo, fossilizado para lá de uma pasta do meu laptop. A experiência vivenciada performaticamente, que pode ser narrada como “uma ação em que mergulho minhas mãos numa bacia de tinta branca junto de um papel no qual se lê a assinatura de minha avó e, por tempo indeterminado, tento reescrevê-la com um toco de grafite”, é eixo, direção para a articulação de elementos do pré-vídeo e da gravação no pós. O olho maquínico diz um tanto sobre luz, e através da massa branca e densa que engole minhas mãos sei que falo de outras figuras. Sinto as mãos craqueladas de tinta, ao passo que pela minha visão míope transfere meu testemunho para o agora. Também estou sem óculos, frente a uma tela brilhante. Não é só do que é racionalizável do processo artístico que o trabalho se faz. É, entretanto, de uma inspiração histórica o que faz fluir a reflexão teórica sobre este projeto num todo. E me debruço sobre o entrelaçar da ação gravada e enunciada neste parágrafo com o universo narrativo do texto que realizando, realizando e recomeçando descrevo e faço nestes parágrafos. Penso na minha avó, e no que me fez pinçar a sua história para falar de trabalho e casamento. Era direcionado um desprezo especial às mulheres então, além de controle maior sobre suas possibilidades de trânsito e seu isolamento no projeto de cidade. Mas ainda hoje é relevante considerar que somos todas integrantes de um cenário cultural onde a misoginia exclui a possibilidade de uma mesma condição de liberdade associada aos homens (especialmente aos brancos, “bem nascidos”, heterossexuais). O lugar da “esposa do lar” foi construído por meio de discursos desonestos, de hipervalorização da fragilidade e maternalidade nas mulheres. A subjugação da mulher enquanto indivíduo ativo politicamente é um dos pilares da tradicional família brasileira, que age feito um contorno no discurso de governantes fascistas e misóginos. Não só falamos de um lar que herda as configurações de uma suposta família tradicional brasileira, mas daquela do engenho feudal, com a entrada de serviço em apartamentos comuns, ou os cubículos chamados de 44

“quartinho” e “banheiro” de empregada. São perpetuações da estrutura escravocrata cravada no projeto de nação desde antes de 1500. Em muitas regiões brasileiras, se tem como indício popular de melhor qualidade de vida o emprego de uma diarista, babá ou cozinheira dentro de casa. Mesmo em famílias de baixa renda, encontramos um desejo de conforto não pela união a uma comunidade, mas pela presença desta pessoa externa à casa, paga para arrumar sua bagunça. É claro que este desejo não surge por conta própria, mas por meio de um estrutura social que reforça os laços de servidão, de uma sociedade hierarquizada, e, neste caso, entre mulheres brancas e de cor. A lavanderia coletiva no Conjunto Habitacional Prefeito Mendes de Morais, o Pedregulho, é uma situação que demonstra como o trabalho doméstico é estruturado de forma verticalizada e introjetado como uma tarefa realizada de forma solitária. O projeto interessa não só pela inclusão de máquinas de lavar roupa superiores aos padrões da época, mas pelo caráter coletivo da área, que, de acordo com a engenheira Carmen Portinho, propiciaria um espaço de trocas de forma a tornar o tempo ocupado pelos afazeres domésticos menos penoso. Poucos anos após a construção, a lavanderia coletiva se tornou abandonada, à medida que as famílias preferiram instalar máquinas de lavar no interior dos pequenos apartamentos. Com o tempo, a manutenção da lavanderia coletiva foi deixada de lado pelas autoridades governamentais, e assim o projeto de Portinho se tornou apenas uma história contada por pesquisadores. Neste texto, que é por si próprio um projeto autonômo ao vídeo, comento não apenas sobre a experiência das gravações e das imagens organizadas em edição, mas situações sociais que não foram explicitamente apresentadas por mim durante o XXIII Encontro de pesquisadores do PPGAV. Contudo, em todo palimpsesto há um rastro do que foi apagado. Estes resquícios podem e já foram amplamente decifrados a partir de uso de reagentes químicos, nos quais, a partir do roçar da superfície com substâncias, são reveladas camadas anteriores. Há uma perturbação ligada a origem, ao anterior a ser recuperado, a retornar de forma que o que este seja atualizado enquanto alegoria. Circulando, a figura com suas camadas diversas produz efeitos metafóricos no trabalho, operando em tensão, traçando relações entre as perspectivas de diferentes tempos históricos. O passado ecoa, passado no qual o rio foi desviado, e esta terra invadida. Cabe a nós imaginar as próximas camadas históricas porvir, e escrevê-las o mais profundamente possível. O branco da tela que se pixeliza no início do vídeo, entre os tons mais azulados ou acinzentados, me causa impressão 45

de se materificar por meio da textura quadriculada nas bordas. É um resquício de grid que indica como a formação por lâmpadas da imagem emitida pelas telas, e seu limite de resolução. A imagem distinguível figurativamente tem contornos definidos aos poucos, com o zoom out, entrecortada por breves cenas em que o branco da tinta dentro da bacia é captado, e é acompanhada pelo barulho intenso de água em movimento. A velocidade e potência da água a ser represada são tamanhas que há uma verdadeira noção de corpo líquido, um volume que está mais para sólido e denso do que a “atravessável” água serena de um ribeirinho. Esta densidade no líquido reverbera na cena da assinatura, da mão que atravessa a tinta quase pastosa para escrever a assinatura. Dos cortes mais secos de uma cena para outra, de um enfoque para outro, passamos para superposições fluidas, onde imagens que, de princípio, se intercalavam, se misturam em transparências sobrepostas, por fim, e se justapõem com um requadro menor centralizado. Há um aceno breve, no início de filme, a este recurso, quando ocorre outra justaposição “fantasmagórica”: a das mulheres na cozinha em labor, enquanto a filmagem jornalística de fundo mostra uma multidão de homens reunida em torno do presidente, “o seu líder natural”. Onde estão as mulheres? Só consigo imaginar a cozinha do SAPS (e tantas outras) povoada por trabalhadoras mulheres invisibilizadas na ocasião. No que é amparada essa “natural” afeição da sociedade por um líder masculino e branco?

Figuras 1-2

Still do vídeo “Palimpsesto”, de autoria própria.

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