10 minute read

Espiral de Andrômeda

Danielle C. Spadotto, danidanispadotto@gmail.com e danispadotto@ufrj.br www.lattes.cnpq.br/5295146845824638

RESUMO Espiral de Andrômeda é uma vídeo-performance realizada em 2021 e tem duração de 15min e 16seg. O presente texto tem como objetivo performar uma dobra (obrar novamente) nas instruções que dispararam sua realização, fazendo-as circular também na escritura deste texto. Procurei ser fiel à performatividade esquizo que venho, ao longo do doutorado, buscando experimentar, compreender e inventar, de modo que lanço mão da fragmentação e da associação-livre como formas de tecer um conhecimento. Dito isso, inicio este ensaio com a instrução da performance, seguida pelo desenvolvimento textual em torno de verbetes que apresentam cada unidade sígnica presente na instrução e, por conseguinte na vídeo-performance. Cada uma dessas unidades é um fragmento. Cada fragmento tem o poder de engatilhar um novo fragmento. O sentido se dá em cada leitor na medida em que ele circula pela vídeo-performance e pelo texto.

Advertisement

PALAVRAS-CHAVE Performatividade Esquizo; Arte Conceitual; Vídeo-Performance, Loucura como Performance.

ABSTRACT Espiral de Andrômeda is a video-performance held in 2021 and has 15minutes and 16seconds duration. The present text aims to perform a fold in the instructions that triggered the video-performance, making them working on the text as well. I tried to be loyal to my schizo performativity which I’ve been experimenting, researching and inventing during my doctoral research, so fragmentation and free association were used here as a way to weaving a kind of knowledge. In this way, this essay begins with the performance instructions followed by a textual development around the entries which represent each unit of sign found in the instructions as well as in the video-performance. Each of these units is a fragment. Each fragment can trigger a new one. The reader will construct your own meaning circulating between the video-performance and the text.

Da equação eu parte do Kosmos ao axioma Kosmos parte do eu. (ANDRADE, 2011, p. 67)

Instrução #01

1. Posicionar a câmera de frente para o mar de modo a registrar o horizonte; 2. Caminhar de olhos fechados buscando desenhar um círculo com o percurso; 3. Parar quando sentir que conseguiu desenhar um círculo perfeito.

A imagem

A imagem é de uma praia deserta. A câmera posiciona-se perpendicular ao mar, entro em cena pelo lado esquerdo do enquadramento e permaneço parada por um tempo. Acima de mim paira um asterisco. À medida que caminho o asterisco desenha meu movimento na tela como quem olha de sobrevoo. Assim, dobram-se no vídeo dois pontos de vista: o da câmera que parece assistir um espetáculo em palco italiano e o de um geolocalizador que cartografa os movimentos da cena olhando de cima. Ao sobrepor os pontos de vista, o espectador é colocado numa espécie de “rede de observação permanente” (CRARY, 2013, p. 102) que tem como objetivo “capturar” o corpo em ação.

A performer

Quando o corpo esquizo se dobra no corpo da performer efetua-se a ancoragem do esquizo no próprio corpo tornado outro em cena, numa espécie de operação mágica em que a pessoa esquizo, até então fragmentada, reencarna em sua própria imagem.

Isso porque o teatro duplica a vida, a vida duplica o verdadeiro teatro (…) por duplo entendo o grande agente mágico através do qual o teatro e as suas formas não são senão 20

Figura 2

que a figuração, esperando que ele advenha a ser transfigurado. É sobre a cena que se constitui a união do pensamento, do gesto, do ato. E o Duplo do teatro é o real inutilizado pelos homens de hoje. (KIFFER, 2017, p. 69)

A paisagem natural apresenta o esquizo em sua desterritorialização por um lado e por outro, nos mostra que em seus delírios ele pretende constituir uma língua deslocada do social normativo que dê conta de sua existência. Talvez por isso eu faça diversas performances fora da vida sociocultural urbana. A voz-off recita uma poesia1 autoral como se fora um mantra. A edição sonora segue o movimento da performer, ou seja, cada vez que a performer passa pelo mesmo lugar no espaço da cena retoma-se a poesia a partir da primeira palavra dita naquele ponto. A voz se dobra sobre o espaço para conectar-se ao corpo através de sua imagem em cena, o que denota saber-se observada.

(...) Dizemos de uma categoria desses doentes que eles sofrem de delírio de ser vigiados. Queixam-se de ser incessantemente observados por forças desconhecidas – que, sem dúvida, não são, no fim das contas, nada além de pessoas; (...) Essa vigilância, embora ainda não seja a perseguição, aproxima-se muito desta. (...). O que aconteceria se esses delirantes tivessem razão?… (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 28)

O horizonte

Tanto o mar quanto o céu mantiveram ao longo da história, estreita relação com a loucura. Em astronomia o horizonte verdadeiro é a linha aparente em que o mar encontra-se com o céu. Navegando em alto mar a sensação é que esse horizonte verdadeiro é inalcançável, eu poderia dizer que do ponto de vista esquizo ele é tão inalcançável quanto à “verdade” que contém. Mas em astronomia há também o horizonte astronômico que é a linha de observação perpendicular ao corpo do observador, é tudo

1 A poesia pode ser encontrada em https://danispadotto.net/Esoiral-de-Andromeda. A poesia é usada por conta de sua capacidade de fundar um mundo, de criar um fora na linguagem. 22

O mar

O céu

o que conseguimos observar no céu, em profundidade, porque agora não olhamos para o chão da Terra, mas para frente. Se tivermos boa visão, ou um telescópio, conseguiremos enxergar a galáxia de Andrômeda. Na Idade Média o horizonte verdadeiro escondia monstros terríveis enquanto o horizonte astronômico colocava o Sol como centro do nosso sistema planetário. Curiosamente é nessa época que a sociedade europeia começa a expulsar os loucos das cidades rumo a um horizonte desconhecido no mar, nos Navios dos Loucos2, e também a retratá-los como os lunáticos que passam o tempo observando o céu.

O mar para os loucos, primeiro foi o lugar geográfico para onde éramos enviados rumo a um destino incerto, e depois a água do mar em suas profundezas remeteu-nos aos domínios do inconsciente. O mar ocupa lugar geográfico e simbólico na história da loucura. Foucault disse que:

(...) confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter certeza de que ele irá para longe, é torna-lo prisioneiro de sua própria partida. Mas a isso a água acrescenta a massa obscura de seus próprios valores: ela leva embora, mas faz mais que isso, ela purifica. (FOUCAULT, 1978, p. 16)

Diferente da irônica Nave dos Loucos de Bosch que segundo Foucault prenunciou o movimento que constituiu a psiquiatria do século XVII, temos as embarcações de Arthur Bispo do Rosário que subvertem sua condição de prisioneiro excomungado, tornando-o marinheiro de sua própria loucura.

O céu aparece com a figura do lunático amplamente retratado por artistas interessados na moral e nos costumes de época. Algumas dessas

2 Ver pintura de Hieronymus Bosch, Navio dos Loucos (La Nef des Fous) de 1490-1500 e História da Loucura na Idade Clássica de Michel Foucault. 23

representações associavam o céu a figura do louco como aquele que sofre a transcendência da razão pelo espírito, é o caso da gravura 8 da série A Rake´s Progress3 de Willian Hogarth, em que vemos, dentre toda a sorte de sujeitos que à época (1735) eram enviados para o confinamento, o louco da luneta. Outras representações associavam o louco à figura do visionário, como vemos no conto Darandina de Guimarães Rosa (1962). Em seu conto, Guimarães alça o lunático aos céus colocando-o na copa de uma Palmeira-Imperial, ao mesmo tempo em que o doido é gênio, herói, palhaço, psiquiartista simultaneamente. Darandina nos sugere a ambígua fronteira entre razão e loucura, a mesma que ecoa em Bispo do Rosário e no presente trabalho. Nós esquizos, diferente do artista que mergulha numa “espécie” de caos para sair dele e criar; criamos para sistematizar o caos em nós. Pergunto se isso poderia ser um tipo de razão?

O caminhar

Na experiência cotidiana, caminhar é um meio através do qual se chega a algum lugar. No entanto, desde a Grécia de Aristóteles com a prática peripatética existe estreita relação entre o pensamento (ou o delírio) e a caminhada. É como se o ritmo dos passos pudesse embalar os processos abstratos da mente, ou como se a velocidade do delírio fosse o ritornelo que impõe o ritmo das passadas. Tim Ingold diz que caminhar e desenhar são gestos humanos que deixam um traço na nossa imaginação e no chão por onde passamos. Ele diz também que “To walk is to journey in the mind as much as on the land: it is a deeply meditative practice.” (INGOLD, 2011, p. 202) Em Espiral de Andrômeda a performer caminha de olhos fechados na intenção de reafirmar sua desorientação. Diferente da experiência de sobrevoo que a tudo abarca, é no labirinto do corpo a corpo com paisagem que a performer faz sua circumambulação. Paola Berenstein Jacques fala de um tipo de conhecimento corporificado próprio do caminhante, ela diz que:

De Certeau nos mostra que há um conhecimento espacial próprio desses praticantes, ou uma forma de apreensão, que ele relaciona a um saber subjetivo, lúdico, amoroso. O autor nos

fala de uma cegueira – relacionada à ideia de desorientação do ‘embaixo’ oposta à orientação dos mapas de cima – que seria exatamente o que garante outra forma de conhecimento do espaço e da cidade. O estado de corpo do errante pode ser cego, já que imagens e representações visuais não são mais prioritárias para a sua experiência errática. (JACQUES, 2012, p. 271)

A isso acrescento o fato de que a pessoa esquizo já convive com o excesso de imagens de seus delírios, portanto, caminhar de olhos fechados é um modo de criar uma linha narrativa tecendo todas elas.

O círculo

O círculo é uma forma carregada de simbolismos. Em Espiral de Andrômeda o círculo aparece na instrução como uma abstração matemática sugerindo a precisão geométrica da razão, mas à medida que a performer caminha, se instaura um estado circumambulatório4 [meditativo e c(a)ósmico] em que o pensamento esquizo percebe-se mergulhado no fundo caótico do inconsciente e impõe um ritmo para informar a consciência. A ação ritual evolui no tempo e a amplitude do diâmetro inicial que faz com que o corpo saia do(s) enquadramento(s) vai paulatinamente diminuindo até colidir num ponto e confundir saber do delírio, saber da razão e corpo. A galáxia de Andrômeda forma com a Via Láctea um sistema em que uma exerce força gravitacional sobre a outra circumambulando a ponto de virem colidir daqui 4.5 bilhões de anos formando uma única galáxia. Embora Andrômeda seja semelhante à Vi Láctea em massa e forma, quem a observa da Terra a olho nu a enxerga como uma estrela difusa. Me pergunto se loucura e normalidade, loucura e razão, delírio e realidade poderiam formar um sistema assim como as galáxias de Andrômeda e Via Láctea?

4 Circumambulação é o movimento de rotação do Sol ou de estrelas. Descrevem os círculos mágicos e cerimônias de proteção em que o indivíduo é exposto à todos os ângulos das deidades. 25

Figura 4

ANDRADE, Oswald. Obras Completas: a utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 2011. CRARY, Jonathan. Suspensões da percepção. Atenção, espetáculo e cultura moderna. São Paulo: Cosac Naify. 2013. DIDI-HUBERMAN, Georges. Invenção da histeria. Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978. INGOLD, Tim. Being Alive: Essays on Movements, Knowledge and Description. London: Routledge, 2011. JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos Errantes. Salvador: EDUFBA, 2012. KIFFER, Ana. A perda de si: Cartas de Antonin Artaud. Rio de Janeiro: Rocco, 2017, p. 69. LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

This article is from: