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A era da incerteza
by L. Hansen
Rafael Salim, rafaelsalim@gmail.com www.lattes.cnpq.br/5891203381446156
RESUMO Estas imagens foram feitas ao longo do último ano. O que delas agora resgatam da experiência deste período? A história que segue aconteceu no ano de 2020. E é fruto de lembranças reais e imaginadas. Se do lado de fora as feridas de uma sociedade doente apresentaram poucas certezas, as percepções dentro de casa sofreram impactos radicais. Os dias se repetiram, se misturaram. Constantes se tornaram variáveis. “A era incerteza” é um projeto motivado pela tentativa de criar um imaginário que dê conta do período de incertezas e realidades fragmentadas. As imagens, ao final, são tentativas poéticas de habitar outras vistas a partir da mesma paisagem cotidiana.
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PALAVRAS-CHAVE Incerteza; Fragmentação; Sobreposição.
ABSTRACT These images were taken over the last year. What do you now rescue from the experience of this period? The story that follows took place in the year 2020. And it is the result of real and imagined memories. If on the outside the wounds of a sick society presented few certainties, the perceptions inside house suffered radical impacts. The days were repeated, mixed up. Constants became variables. “The uncertainty era” is a project motivated by the attempt to create an imaginary that takes into account the period of uncertainty and fragmented realities. The images, in the end, are poetic attempts to inhabit other views from the same everyday landscape.
KEY WORDS Uncertainty; Fragmentation; Overlay.
O principio da incerteza, estabelece que a observação de um objeto seria sempre indefinida devido a influência da própria observação no comportamento das partículas. E quanto as imagens neste 53
projeto, elas dão conta da realidade? O que delas agora resgatam do período em que foram feitas? A história que segue aconteceu no ano de 2020. E é fruto de lembranças reais e imaginadas. “A era da incerteza” é um vídeo ensaio curta-metragem que tem como proposta tratar da experiência de isolamento social durante a pandemia de coronavírus. O filme surge no contexto da disciplina “Cinema e Ensaios Poéticos do Pensamento” do PPGAV UFRJ, oferecida pela professora Julia Machado, com o desafio autodeterminado de aprofundar em vídeo as propostas desenvolvidas em uma série fotográfica homônima. Se do lado de fora as feridas expostas de uma sociedade doente apresentavam – e ainda apresentam – poucas certezas de futuro, as percepções subjetivas no espaço interno sofreram, naquele período, impactos radicais. Com pouca ou nenhuma mudança na rotina os dias se misturaram, se sobrepuseram. Na terça-feira, 17 de março de 2020, dei falta do horizonte. O estreito pedaço do céu que consigo observar de dentro de minha casa trouxe algum conforto. O filosofo francês Hubert Damisch diz que a /nuvem/, enquanto signo, abre outra dimensão além daquela inicialmente prescrita dentro do sistema a que pertence. Logo, a /nuvem/ funcionaria como uma dobradiça “em relação ao céu e à terra, entre aqui e lá, entre um mundo que obedece às próprias leis e um espaço divino que não pode ser conhecido por nenhuma ciência” (DAMISH, p. 147). As nuvens então ocupam uma posição entre a realidade e a abstração do céu. São a visão de coisas que não são possíveis representar. Têm o poder de tornar presente aquilo que escapa o cognitivo. Motivado em criar uma imagem que pudesse dar conta do período de incertezas e realidades fragmentadas foi possível ampliar as experiências vivenciadas no dia-a-dia em isolamento social. Sob o olhar da imaginação, por entre as dobradiças do cotidiano, busquei habitar outras paisagem a partir da mesma vista. Então com o passar dos dias, passei registrar situações de interesses especiais.
A realização do vídeo ensaio começa a partir da elaboração de parâmetros para seu desenvolvimento. Entre eles destaco minha independência no processo de criação. Outro era a delimitação do assunto e abordagem conceitual: o projeto acontece sob uma mesma arena e sua investigação-produção precisava se dar neste espaço pelo período 54
mínimo de um mês. No que diz respeito a decisões técnicas foi previamente delimitado que as imagens e os sons seriam produzidos separadamente e em momentos distintos. Outra destas premissas estabelecia que a edição teria o papel de criar sentido narrativo para o filme, seja ele linear ou não, a partir da livre experimentação e justaposição dos materiais captados. Desta maneira percebi minha prática em sintonia com certa tradição do cinema realizado como forma de pensar. Algumas leituras sobre gêneros cinematográficos contribuíram para a feitura do projeto e ampliaram meu conhecimento sobre os limites da linguagem cinematográfica e os diversos tipos de cinema “não-narrativos”. Neste sentido, o artista e teórico André Parente diz que “o cinema experimental é o cinema em que a vontade artística está no comando” (PARENTE, p. 107). Foi nessa perspectiva que busquei trabalhar em “A era da incerteza”. A produção das fotografias e vídeos que compõem o trabalho foram realizadas como tentativas de me relacionar com a paisagem cotidiana através de uma relação experimental com a câmera fotográfica. No texto, “The magic is in handling”, a artista e teórica Barbara Bolt reforça a importância da prática artística como uma forma de pensamento. Bolt analisa historicamente a utilização de recursos tecnológicos na produção de pintura para pensar sobre a subjetividade dos materiais com os quais lidamos enquanto realizadores. Para a ela, seria possível criar novos horizontes interpretativos através da colaboração entre artista e material. “The shock of the new is thus a particular understanding that is realised through our dealings with the tools and materials of production and in our handling of ideas, rather than a self-conscious attempt at transgression. This is material thinking.” (BOLT, p. 31). Delimitado o universo de imagens, foi a vez de captar os elementos que comporiam a peça sonora do trabalho. Em um primeiro momento, registrei diversas ambiências ao longo de alguns dias. Em seguida, organizei esse material de forma que estabelecesse “situações climáticas” como em um ciclo/jornada do dia: o amanhecer barulhento, a tarde imersiva e o anoitecer chuvoso. Depois criei “sons de efeito” a partir de elementos da paisagem sonora: a água fervendo, o exaustor do banheiro, o interfone, o ventilador de teto, o liquidificador, a máquina de lavar roupas, o ar condicionado, a obra no vizinho. O único material sonoro que foge à arena, neste caso a casa onde habito, é o som de uma floresta. Acredito que esta inserção tem como papel romper a própria “realidade” criada pelo vídeo. Esta fuga à ordem do cotidiano vai de encontro com o inesperado e busca por rompimentos dos territórios anteriormente estabelecidos na narrativa. 55
No texto “Art beyond representation”, também de Barbara Bolt, a autora traça um histórico da representação como elemento constitutivo do pensamento moderno, ou seja, a formulação da representação como algo intrínseco ao ser humano. A autora questiona afinal se seria possível escaparmos da representação na criação artística. “But what is it that takes us out of ourselves, so to speak, so that we work of art leave the domain of representation to become experience?” (BOLT, p. 49). Como seria possível então tornar a realização e recepção da imagem uma experiência em si a ser vivida? Neste sentido, o filosofo Alain Badiou afirma que “o cinema é a possibilidade de uma reprodução da realidade e, ao mesmo tempo, o lado inteiramente artificial dessa reprodução da realidade” (BADIOU, p. 36). Para o autor, o cinema seria um paradoxo que gira entrono do “ser” e do “parecer”. Em dialogo, o crítico e ensaísta Eduardo Gruner afirma que Pier Paolo Pasolini usa o cinema para pensar o mundo do real para além da realidade. “O real nunca se revelará a si mesmo se o artista não estiver disposto a se responsabilizar conscientemente pela violência que exerce sobre a realidade e, portanto, pelo conflito que a violência da imagem desperta” (GRUNER, p. 249). Consciente dos mecanismo da realidade cinematográfica o cineasta busca romper com a construção da suposta realidade do cinema convencional. Ou seja, o cinema não só interpreta a realidade, mas constrói e manipula conscientemente os códigos para permitir que o real desponte em suas fissuras. Diante destes limites e fronteiras de meu território poético-conceitual é possível perceber a relação da incerteza com o período da pandemia do qual o projeto se propõe a tratar e pela consonância com as fragilidades e impossibilidades da realização cinematográfica em captar o “real”. No texto “Funções do acaso”, de Noel Bursh, afirma que:
“Parece haver uma espécie de princípio heinseberguiano de indeterminação entre os cineastas e a realidade filmada: é impossível posicionar a câmera sem modifica-la; é impossível até mesmo pensar nela sem altera-la, porque a realidade é, por natureza, alheia aos artifícios próprios e seus instrumentos. Eles filmam a vida. Assim, como os físicos moderno diante de certas partículas elementares, os cineastas devem considerar […] esse inevitável hiato entre eles próprios e seus instrumentos de um lado, e a própria vida de outro, de forma a conseguir manobrar a vida em seus filmes, moldando-a em uma obra que será, assim, a nosso ver, ainda mais rica” (BURSH, p. 148) 56
Entre as principais referências do projeto ressalto o cineasta e ensaísta Harun Farocki. Um dos eixos da pesquisa de seus trabalhos debate sobre o processo de produção de imagens e a análise de seus significados sociais. Grande parte das obras do alemão se referem a uma época na qual a reprodução mecânica e sua propagação em massa alteraram as noções de representação e subjetividade; hoje, no entanto, a replicação digital e distribuição via internet geraram novas reformulações, mudanças ainda não fáceis de assimilar. “Atualmente, muitas imagens não se prestam nem a documentar nem a desrealizar o mundo; pelo contrário, as imagens virais modelam as próprias realidades, não raro de forma independente de nossa agência e contra nossos interesses” (FOSTER, p. 137). Como então a produção artística poderia dar conta das tensões e atenções no espaço entre virtualidade e realidade? “A era da incerteza” me parece construir sua noção de representação da realidade através de fissuras que retiram a certeza do olhar automatizado hoje. Assim, dentro das minhas possibilidades, busquei tornar tanto sua feitura quanto sua apresentação um exercício de experiências a serem vivenciadas e livres dos domínios da representação.
ALTER, Nora M; CORRIGAN, Timothy (Org.). Essays on the essay film. Nova York, Columbia University Press: 2017. BADIOU, Alain. O cinema como experimentação filosófica. In: YOEL, Gerardo (Org.) Pensar o Cinema. São Paulo, Cosac Naify: 2015. BOLT, Barbara. Art beyond representation. Nova York & Londres, I.B. Tauris: 2004. BOLT, Barbara. The magic is in handling. Nova York & Londres, I.B. Tauris: 2014. BURCH, Noel. Práxis do Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1992. DAMISH, Hubert. A theory of /cloud/. California, Stanford University Press: 2002. FOSTER, Hal. O que vem depois da farsa? São Paulo, Ubu Editora: 2021. FOSTER, Hal. Recodificação. São Paulo, Casa Editorial Paulista, 1996. GRUNER, Eduardo. Pier Paolo Pasolini: a tragédia do real. In: YOEL, Gerardo (Org.) Pensar o Cinema. São Paulo, Cosac Naify: 2015. PARENTE, Andre. Narrativa e modernidade: os cinemas não-narrativos do pós-guerra. São Paulo, Papirus: 2000.