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Colagem como ferramenta política para um olhar atento
by L. Hansen
Sarah Mantuan, sarah_mantuan@hotmail.com www.lattes.cnpq.br/0942852200740319
RESUMO Neste estudo, cumpre-se utilizar a colagem não só como um mecanismo de expressão, mas também como um conceito. Colagem, nessa perspectiva, é uma ótica sensível para olhar atentamente ao que se apresenta nas brechas, frestas e fragmentos cotidianos, denominados como cenografias urbanas e particulares. Trata-se de estudo experimental sobre o espaço que utiliza a colagem como ferramenta subjetiva e material, de reflexão e substancialização do mesmo.
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PALAVRAS-CHAVE Cenografia; Colagem; Alteridade; Fragmento; Cotidiano.
ABSTRACT In this study, there is purpose in utilizing collage: not only as an expression mechanism, but as a concept. Collage in this perspective, it is a sensible optic, to look attentively at what is presente thought the gaps, cracks, and fragments of everyday, denominated as urban and private scenography. It is an experimental study about space, which utilizes collage as a tool, subjective and material tool, of reflection and substantiation.
KEY WORDS Scenography; Collage; Alterity; Fragment; Daily.
Intervenção artística
A colagem pode ser uma ferramenta e técnica de expressão artística, mas ela pode também ser um pensamento, uma ideia, um conceito, uma ótica, uma lente para ver através. Além de uma prática manual, ela é a prática do pensar colágico, uma forma de organização mental. Essa forma de organização mental pode ser aplicada manualmente através da colagem em papel, mas ela pode furar essa superfície e também dar vazão a uma forma de pensar e entender o interior e o exterior à nós. 59
Recortar, fragmentar, retirar algo existente, separar, reciclar para descontextualizar e re-contextualizá-la; fazer essa movimentação é estar ciente e atenta à sua ação política. É ser honesta e fiel à significância de suas imagens ou pensamentos, é respeitar as camadas do tempo que atravessam o objeto, uma imagem, um acontecimento sem que o tradutor se sobreponha em relação à tradução. É entender o movimento e o percurso temporal daquele sujeito e inserir, absorver e incorporar sem pegar para si, sem colonizar (PIMENTEL, 2014, p. 146). A colagem como um conceito ao qual me refiro não é apenas reaproveitar imageticamente ou subjetivamente algo, e a mim, isso me parece revolucionário, pois ela não está dentro da ideia da genialidade. A colagem ao reutilizar objetos e imagens e realocá-las em novos contextos, sucumbe a obrigatoriedade em que todos precisam ter ideias exclusivas para serem autênticas ou ideias que nunca foram pensadas para serem válidas (PIMENTEL, 2014, p. 143). Até porque buscar algo impensável para ser genial é uma falácia! Para além do reaproveitamento do objeto, físico ou abstrato, é entendê-lo como um sujeito com uma própria narrativa (Pimentel, 2014, p. 158); é entender sua potência íntegra e valorizar o ordinário; as experiências cotidianas e corriqueiras identificando-as como particulares e única. O ato colágico é um ato de esperança, é a possibilidade de modificação e renovação da fé, reelaborar a vida e garantir o futuro. É estar em contato com a alteridade, a peculiaridade e a transformação. O conceito Colagem se aplica a fragmentar a vida e compreendê-la em seus vários pedaços minúsculos e particulares, uni-los ou não, sem uma obrigatoriedade e regras preestabelecidas, sem uma necessidade de síntese. Montar ou não em uma superfície, por isso que ela pode ser material e palpável, mas também ser apenas uma ideia e um modo de enxergar. Além de estar numa superfície, ela pode ser habitada por alguém e ser usada como uma lente para enxergar as coisas de uma outra perspectiva, mais atenta e apurada, não retilínea, cronológica e linear. Desse modo, a colagem pode estar impressa na folha A4, como também pode estar em um audiovisual, em uma instalação, na forma de ver a vida, ou na maneira de organizar os próprios pensamentos. O audiovisual “Espaço Cênico em casa – Fragmentos” é uma das materializações que fiz através da óptica collage. A sua forma de filmagem é ordinária e a performance é espontânea, não foi ensaiada, as interrupções dadas a partir de imagens que coloco entre o vídeo abruptamente, enquanto continuo falando o texto, faz parte de uma edição que não pretende inibir ou maquiar de forma ilusória a 60
sequência de ações da performance, mas cumpre demonstrar esse ofício “colágico” intuitivo e espontâneo, de recorte e cola, ora abrupta e descompassada, ora ritmada, assim como é o percurso mental dos sentimentos. O conteúdo trata do princípio básico da minha relação como mulher com o espaço, público e privado e com os indivíduos. As colagens áudio-visuais são recortes e colas de imagens animadas ou inanimadas que aludem a uma parte da minha relação como mulher na pós- modernidade patriarcal, o meu “eu” como artista e os processos criados do mundo e de mim em mim estão impressas, ou melhor, expressas nesses retalhos de espaço, memória, registros. A partir de uma ótica cenográfica, fragmentei um espaço cênico da minha casa e ampliei o universo desse micro-espaço através de um poema que escrevi e interpretei. Assim, esse curta-metragem colágico surgiu da necessidade de explorar outras ferramentas artísticas e unir e colar deferentes práticas, também surge da necessidade de estar em contato com o outro de uma forma possível durante o confinamento pandêmico inicial; um anseio de comunicação e identidade que emergiram e de alguma forma uma via de esperança; os entendimentos das nossas próprias frestas, daquilo que está entre coisas, nas miudezas, nos minúsculos. O auto-registro audiovisual vem de uma necessidade de vazão; no processo de edição do vídeo percebo que não há um fim e nem um início cronológico, eu altero, duplico, recorto, colo no impulso do que me corrói e alimenta, na minha vontade de falar e se relacionar com quem quiser se aproximar desses pedaços, fragmentos de sentimentos. Esse vídeo como outros fez e faz parte da minha estratégia pessoal como artista para sobreviver sã durante a pandemia. Elegi o meu quarto como local para o acontecimento, ou melhor, um pedaço do meu quarto, onde denomino como cenografia particular. Ele faz parte de um arsenal de espaços comunicadores que propõem um lugar dinamizador, onde há fluxo, movimento, trocas, idas e vindas. Esses espaços são fragmentados e separados – a partir do olhar que vê – e possuem um conjunto de movimentos que se desdobram, criam também as frestas e constróem seus signos, possuem reflexos exteriores em seus interiores, são cíclicos. Assim sendo, a colagem pode ser um ato de pensar e agir, simples. Ela também se mostra presente em uma divagação dentro de uma história contada por alguém e que através de uma palavra falada por esse alguém, recortamos e identificamos essa palavra com a nossa significância própria, ao nosso contexto, essa 61
palavra acessa o campo da memória e nos transportamos para um outro espaço dentro do nosso imaginário; a colagem pode estar aí, no fragmento de uma viagem de trem em que as vozes dos ambulantes se sobrepõem em um conjunto colágico sonoro, criando um fenômeno espacial naquele momento. A colagem em sentido amplo pode ser aquilo nos faz permanecer e estar sendo, pode ser o movimento dos fragmentos da nossa bagagem, enfatizados nas nossas memórias e que criam um compilado de outras memórias fragmentadas, os quais materializados espacialmente, podem se tornar cenografias urbanas e particulares. A colagem pode ser o olhar atento que recorta, tira e põe algo e está fora de uma moldura com uma semântica única, ela por si colocada materialmente ultrapassa as barreiras de tempo e espaço, portanto ultrapassa e rompe com a ideia de ter apenas um fim, ela é um conceito, ferramenta do pensamento político, um processo com inúmeras possibilidades subjetivas de materialização. É consolidada pelo encontro da contrariedade, da fronteira, dos paradoxos semânticos abstratos ou visuais, é essa contração que move e denuncia. Ela é marginal, crua e sólida. intuitiva e espontânea, a colagem é um processo literário mental marginal. O fazer colágico é um dinamizador de pensamento, é o outro lado, a beirada e o meio, é um caminho, é possibilidades e trânsitos. Inquieta e transgressora. Assim ela se solidifica, pelas esferas que se contrapõem, pelas tensões sociais imagéticas, simbólicas – pela criação de novas relações imagéticas – e materiais – pela peleja e pela esperança, pela sede de estar e permanecer. Juntar, unir duas ou mais matérias com temporalidades, origens e até de naturezas díspares criando uma nova significância é poder reinventar a vida. Permitir-se reencantar nas metrópoles dos desencantos e transformar, alterar o existente, é um ato de subversão da ordem atual. A colagem é desestabilizar alguns pilares, alterar a lógica, modificar o arranjo e separar as composições preestabelecidas.
Que diabos fazer? A nossa tarefa não é apenas resistir. Já não é mais suficiente. É reexistir mesmo; reinventar afeições dentro ou fora das arenas e encontrar novas frestas para arrepiar a vida de originalidades, encantarias e gritos – amados, suados, deseducados, gentis, épicos, miúdos, cheirando a mijo e flores delirantes – de gol na rua. (SIMAS, 2019, p. 84)
Sobretudo, escutar os movimentos ocultos, inventar cosmologias e traçar novos caminhos, mesclados, tortuosos e carregados de intencionalidades. Por isso, a colagem se localiza nos olhos atentos de quem vê; no ato de ritualizar o dia a dia, o sublime, a sutileza, os entre-espaços, as fissuras e os mistérios. Cabe a nós encantarmos os desencantos, públicos e privados, poder reinventar a cidade, a si próprio e reconstruí-los nas suas inúmeras possibilidades colágicas.
ABREU, Leandro Pimentel. O inventário como tática: a fotografia e a poética das coleções. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2014. SIMAS, Luiz Antônio. O Corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.