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Fabulações fermentativas
by L. Hansen
Sofia Gentil Mussolin, sofiagmussolin@gmail.com www.lattes.cnpq.br/56688352799088241
RESUMO A proposta da intervenção artística “Fabulações Fermentativas” busca evidenciar o processo de encarnar da matéria visível através da relação multiespécie, e aqui especialmente entre um corpo humano e uma colônia de microorganismos também conhecida como Kombuchá. A obra destrincha as escalas de vidas e evidencia que somos seres em meio a um processo simbiótico, fermentativo, em que a transformação dos corpos é essencial para uma comunicação entre-seres e possibilitada pelo fazer artístico. A fabulação segue na tentativa de desestruturar as dicotomias criadas pelo sistema humanista junto às reflexões do diretor Zé Celso na montagem do Teatro Oficina da peça “As três Irmãs” do dramaturgo russo Anton Tchekhov, assim como a adaptação da Cia Lusco Fusco chamada “Tchekhov é um Cogumelo”.
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PALAVRAS-CHAVE Artes Visuais; Microorganismos; Multiespécie; Fermentação; Fabulação.
ABSTRACT The proposal of the artistic intervention “Fabulations Fermentatives” seeks to highlight the process of incarnating visible matter through the multispecies relationship, and here especially between a human body and a colony of microorganisms also known as Kombuchá. The work unravels the scales of lives and shows that we are beings in the midst of a symbiotic and fermentative process, in which the transformation of bodies is essential for a communication between beings and made possible by artistic making. The fabulation continues in an attempt to destructure the dichotomies created by the humanist system along with the reflections of director Zé Celso in the Teatro Oficina staging of the play “Three Sisters” by Russian playwright Anton Tchekhov, as well as the adaptation by Cia Lusco Fusco called “Tchekhov is a Mushroom”.
1 Doutoranda em Estudos Contemporâneos das Artes no Programa de Pós-graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense (UFF) bolsista CAPES. 68
Origem e fabulação
A lenda mais popular vem da China e remonta a 221-206 a.C.,em que se acredita que o imperador Qin She Huang prolongou sua vida bebendo o “Chá da Imortalidade” criado para ele por um alquimista. Há alguma especulação se este era realmente o chá de kombuchá ou de cogumelo reishi2. O folclore russo diz que um monge com poderes de cura foi chamado para ajudar um imperador moribundo. O monge prometeu salvar o imperador com uma formiga que ele derramou no chá do imperador e o instruiu a esperar até que a água-viva se formasse para bebê-lo. De acordo com uma lenda Tibetana, um monge adormeceu e um inseto portador de bactérias pousou em seu bule de chá fresco. O bule foi esquecido e uma cultura pôde se formar. Quando o monge descobriu as incríveis propriedades deste chá, ele o compartilhou com amigos. Nos três mitos aqui narrados, todos tinham presença de outras espécies além da humana, seja um cogumelo, uma formiga ou um inseto voador, nada se cria sem relações de corpos. Há muito se crê na criação a partir do uno, célula, átomo. Mas é um uno, minimamente, tripartido. O Deus cristão é um em três. As Parcas3, da mitologia grega, são três que cortam uma linha da vida. O
2 Também acredita-se que o nome Kombucha vem de uma crença ocidental de que a colônia ou biofilme era na verdade uma alga marinha chamada kombu, e pelo fato de na Índia os chás provindos da Camellia sinensis serem chamados de chá ou chai. Descobriram depois que a colônia não era a tal alga, mas o nome já havia se popularizado. Das diversas crenças que rodeiam a colônia de microorganismos conhecida como Kombuchá, a ciência sabe que ela é uma Zoogleia, uma simbiose complexa entre espécies de bactérias e leveduras. 3 Na mitologia criada pelos gregos, Nix, deusa da Noite, uma das divindades primordiais, gera entre outras criaturas as tecelãs do destino: Cloto, Láquesis e Átropos, desempenhando o terrível compromisso de elaborar, tecer e interromper o fio da vida de todos os seres. Estas irmãs detinham um poder incontestável, ditando o destino tanto dos deuses quanto dos mortais, não sendo questionadas nem 69
homem nasce, cresce e morre. Dividimos o tempo em passado, presente e futuro; manhã, tarde, noite; começo, meio, fim. O corpo é interno, pele, externo. A kombucha é água, biofilme, ar. Eu lido com três escalas: micro, escala humana e macrocósmica na tentativa de adensá-las.
Tchekhov é um cogumelo
“Tchekhov é um Cogumelo” é uma peça dirigida por André Guerreiro Lopes da Cia Lusco Fusco4 que mistura meditação em primeiro plano, montagem cênica da peça de Tchekhov “As três irmãs” e a lembrança de uma entrevista com Zé Celso – quando André ainda era um estudante de teatro – projetada em uma tela à frente do palco. A entrevista de Zé Celso5 conta, por sua vez, a montagem que o Teatro Oficina fez da mesma peça nos anos 70 e como os atores entenderam o texto através do consumo de cogumelos alucinógenos, e o texto corporificado possibilitou a materialização dos atos da peça como divisões de uma mandala. Assim como o diretor, também tento corporificar os processos da colônia de microorganismos e faço um diário para meu convívio com a kombuchá. Escrevo nossa relação e passo a observadora de segunda ordem6, capaz assim de perceber camadas, atravessar a carne, encarná-la. Nos ensaios do texto pelo Teatro Oficina, Zé Celso explica que o
mesmo por Zeus, pois qualquer interferência de sua parte influenciaria na ordem natural do Universo. 4 Com direção artística de André Guerreiro Lopes e Djin Sganzerla, o Estudio Lusco-Fusco reúne um núcleo de colaboradores regulares como a atriz e diretora Helena Ignez, o músico Gregory Slivar, o iluminador Marcelo Lazzaratto e o diretor de cena Rafael Bicudo. Peça assistida no CCBB Rio de Janeiro em 2018. 5 A entrevista se tornou parte do livro do diretor Zé Celso “PRIMEIRO ATO, Cadernos, Depoimentos, Entrevistas (1958 -1974). 6 Termo criado a partir da necessidade de uma teoria da observação que não seja atrelada ao conceito de inteligência do ser-humano, mas que descreva relações de sistemas sociais, corpos, mentes no geral. Já lida com a desconfiança da linguagem no representacionismo e o sistema de códigos se revela. A materialidade da linguagem capacita essa observação do próprio código, e o observador que faz o corte, faz uma distinção, produz fronteira e percebe-se naquele processo.

Figuras 1
Imagens da peça de teatro “Tchekhov é um Cogumelo” sobrepostas às imagens da colônia de microorganismos (imagens da autora).
Figura 2
Biofilmes da colônia de microorganismos kombuchá em divisão (Fotografia da autora).
primeiro ato se mostrava na intenção da força do coletivo, da intenção de crescer e da união de diferentes elementos. Assim como as fases que o cultivo da colônia de microorganismos apresenta em seu processo inicial, em que a junção dos elementos e a atividade conjunta são essenciais para a criação de corpo febril. 10 de abril, Rio de Janeiro. Anotei: não retirei nada, só balancei para poder criar uma película separada da outra e adicionei mate sem açúcar. Não peguei nenhuma amostra porque está bem frágil, principalmente as bordas. No segundo ato, as vibrações começam a se dispersar em pulsos localizados. Para o ensaio da peça, as personagens se encontram entre duplas e trios. A kombuchá, curiosamente, também. Começa a se dissipar entre chá probiótico, biofilme e ar. 29 de abril. Rio de Janeiro, 12h, nublado: o chá que coloquei estava mais quente que o natural. As outras colônias estavam com um certo pó em cima, e nessa coloquei um chá mais diluído. O biofilme tomando forma. E forma, como Erin Manning7 reflete, é o que acontece quando a atividade se aproxima do limite. A materialidade da linguagem que se dobra sobre ela mesma, produz bainha, ela mesma o corte e ela mesma seu próximo cultivo, ela mesma sua contradição. Falar da forma da experiência é encontrar uma maneira de tocar o mediano dos eventos em formação. A partição dos elementos e a procura de suas estabilidades delonga para o terceiro tempo, em que sozinhos e desencontrados, ninguém se acha, a comunicação falha e talvez o desespero reine. 10 de maio, Rio de Janeiro, 11h, sol: formou-se uma paisagem com fungos e elevações devido à flor de hibisco que eu tinha jogado antes. Formou um coração no meio, e esse biofilme está totalmente solto. Retirei para secar e adicionei o chá. A kombuchá se materializa mais definitivamente, cria um corpo de celulose, o biofilme, embebido no chá e preenchido de ar. No quarto ato, Zé Celso conta: “ninguém vibraria nada, cada um com suas energias interiores, cuspes, intestinos, líquidos íntimos, até morrer. E no fim do fim, se encontram para outra vida, outro ciclo”. 11 de maio, Rio de Janeiro: o biofilme secou. Na visão humana ele morreu, não tem mais uso. Mas de outro ponto de vista, restou celulose. Um dia depois de retirado de seu cultivo, ele perdeu a maior parte do que seu corpo é feito, de água. Assim como nós, a kombuchá também
7 Erin Manning é uma teórica cultural canadense e filósofa política, sua pesquisa abrange os campos da arte, teoria política e filosofia. Essa reflexão está atrelada ao texto “O que as coisas fazem quando se moldam: O caminho do anarquivo.” 72
tem a maioria do seu corpo composto por água. Assim como Gaia, que também tem a maioria do seu corpo composto por água. Em um resta pele, do outro resta terra.
Perfurar e fermentar
Quando após o tempo espatifado, a passagem dos pássaros, a morte e o duelo do último ato, uma bala atirada é responsável pelo furo, pelo rasgo e pelo corte. Esse é o que o diretor chama de “ponto de perfuração” da peça, que nos leva ao quinto tempo, um tempo da mandala que está para chegar, possível de ser escutado, sentido. O mesmo processo de transmutação do corpo visível que o processo de vida da kombuchá nos conta. Seu biofilme retirado junto às suas vísceras, sozinha, mortal, é também signo de re-encarnação para um outro ciclo que pode ser iniciado. A matéria, una, que majoritariamente se desdobra em três fases, precisa do adensamento-mutação, que só acontece pelo perfurado, transversado, cortado e exposto em suas camadas. Um mundo que precisa de regeneração e não renascimento8 conversa pelo agora profundo, que entende a água, o biofilme e o ar como um, mas também como compostos que, em simbiose, se retroalimentam. Zé Celso ainda diz que durante uma de suas viagens de mescalina, muito lhe foi mostrado. Ele escutou, eu diria, como escutamos em sonhos: “Passe a limpo! Passe a limpo nossa revolução, a revolução brasileira vai ser a última! Ela não vai simplesmente transformar as estruturas sociais e econômicas do país, ela vai mexer nos microorganismos, na vida molecular das pessoas!” Essa colônia, que na França é chamada de “mere” – mãe em português – é capaz de iniciar tantos cultivos e reproduzir tanta vida, como uma grande célula em mitose, e me faz pensar sobre a sua primeira forma encontrada na natureza…porque perdemos sua origem. Mas talvez sua primeira forma seja a da perfuração, uma origem misturada e borrada, de uma mandala anterior que a humanidade de agora não consiga ter acesso, de quando todas as humanidades se reconheciam. O núcleo pré-mitose. Penso na intenção de passar a limpo. Acho que o artista, ou a arte, tem o poder de acesso aos pontos cardeais da tríade, da incerteza e da diferença para viajar entre eles e perfurá-los, revolucioná-los.
Estar em uma agência multiespécie é uma grande revolução. E grandes revoluções são despertadas pelo sensível. Os sonhos, as viagens, os cultivos, são todos atos de passagem para a carne viva. E a carne viva, por si só, é transmutação.
HARAWAY, Donna. Antropologia do ciborgue : as vertigens do pós-humano / organização e tradução Tomaz Tadeu – 2. ed. – Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2009. – (Mimo). LIU, Betty. Kombucha: fermented tea 红茶菌. Betty Liu, agosto 2015. Disponível em: https://bettysliu.com/2015/08/13/kombucha-fermented-tea-红茶菌/.Acesso em: 10 jun 2021 MANNING, Erin. “O que as coisas fazem quando se moldam: O caminho do anarquivo”, in Artes: novos modos de habitar/ viver / Organização de Walmeri Ribeiro e Héctor Brones. – São Paulo: Intermeios, 2019. MARTINEZ CORREA, José Celso. Primeiro ato: cadernos, depoimentos, entrevistas (1958-1974) / José Celso Martinez Corrêa; seleção, organização e notas de Ana Helena Camargo de Staal. São Paulo: Ed. 34, 1998, 336p. RASCH, William; WOLFE, Cary. (Eds.) Observing complexity: systems theory and postmodernity. Minneapolis, University of Minnesota, 2000. Capítulos 6 e 7: “Theory of a Different Order: A Conversation with Katherine Hayles and Niklas Luhmann”; “Making the Cut: The Interplay of Narrative and System, or What Systems Theory Can’t See”. TSING, Anna. Margens Indomáveis: cogumelos como espécies companheiras. Tradução: Pedro Castelo Branco Silveira. ILHA v. 17, n. 1, p. 177-201, jan./jul. 2015.