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Quarto de desejo
by L. Hansen
Thaís Lopes Basilio, thaislbasilioarte@gmail.com www.lattes.cnpq.br/8592067774554599
RESUMO Encontrado em casas brasileiras de classe média, o “quarto de empregada” é tratado aqui como disparador criativo. Ao traçar um paralelo entre o ambiente doméstico como espaço para pensamento e produção artística, o presente trabalho reflete sobre a permissão social oferecida aos sujeitos racializados para que desenvolvam ou não sua a profissionalização no campo das artes. O cômodo em questão foi explorado esteticamente na vídeo-performance, a partir da possibilidade de um deslocamento conceitual na história da moradia brasileira. Questiona-se aqui qual o espaço reservado para que pessoas pertencentes às classes subalternas possam produzir arte. Tal consideração nos leva também a pensar sobre o direito à subjetividade de pessoas racializadas para além da rotina de trabalho. Trazendo como referência a obra literária “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus, esta obra pretende unir questões de gênero e de raça em uma mesma poética.
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PALAVRAS-CHAVE Desejo; Subjetividade; Raça; Gênero; Corpo.
ABSTRACT Found in middle-class Brazilian homes, the “maid’s room” is treated here as a creative trigger. By drawing a parallel between the domestic environment as a space for thought and artistic production, the present work reflects on the social permission offered to racialized subjects to develop or not their professionalization in the field of the arts. The room in question was aesthetically explored in the video performance, based on the possibility of a conceptual shift in the history of Brazilian housing. The question here is what is the space reserved for people belonging to the subaltern classes to produce art. Such consideration also leads us to think about the right to subjectivity of people of color beyond the work routine. Bringing as a reference the literary work “Quarto de despejo”, by Carolina Maria de Jesus, this work intends to unite gender and race issues in the same poetics.
O ponto principal da vídeo-performance “Quarto de desejo” é problematizar poeticamente o conhecido “quarto de empregada”. Nomeado – hoje em dia – como dependência de empregada, esse cômodo foi projetado para que trabalhadoras domésticas pudessem pernoitar nas residências de seus patrões. No Brasil, a história do emprego doméstico está fortemente associada à tradição escravocrata. Alugar ou vender escravos para serviços domésticos era prática comum, e o próprio termo “alugado”, passou a significar o empregado doméstico. Mesmo após a abolição da escravatura, em 1888, os trabalhadores que realizavam serviços domésticos, ainda eram comparados à “escravos”. A discriminação relativa ao trabalho doméstico nasce, pois, de sua representação ligada à condição escrava e, consequentemente, à sua desvalorização social. Durante o período escravista, a compreensão da posição social relacionada à identidade racial indicava certa equivalência entre a cor e o exercício de certas atividades. Ser escravo significava ser negro, ao passo em que as atividades realizadas pelos negros, na maioria das vezes, eram atividades desprovidas de prestígio social. No Brasil contemporâneo, a discussão acerca da permissão social de quem pode ou não ser artista no Brasil, possibilita uma continuidade ao debate anterior. Sobretudo ao se pensar o espaço que artistas negros ocupam na história da arte “oficial”. Posto que a população negra do nosso país foi e ainda é cruelmente vinculada ao trabalho braçal, uma considerável parte de sujeitos racializados reivindicam oportunidades de ascensão profissional. Estes simulacros que circundam pincipalmente as identidades negras brasileiras interferem diretamente o acesso e o sentimento de pertencimento de pessoas racializadas ao campo das artes. Após um longo processo de reivindicações, movimentos organizados e negociações políticas ocorridas nos últimos 20 anos, mudanças estruturais se concretizaram, provocando mudanças nas mentalidades. A questão da raça ainda reverbera no que toca a democratização da arte, e portanto, contribui para a atual consciência sobre a importância do protagonismo negro na construção de suas próprias narrativas poéticas. Sobrepondo o conceito de “raça”, à outra camada relativa a “gênero”, surgem outros desdobramentos. Situadas na base da pirâmide social, as mulheres negras vem reivindicando cada vez mais seu direito à exercer carreiras artísticas, campo de atuação que por muito tempo pressupôs uma determinada “erudição”. De acordo com a curadora Joice Berth:
“A repetição de padrões de exclusão e desvalorização de mulheres tem origem na transposição da subalternidade do trabalho dos escravizados para o trabalho doméstico. No Brasil, a maioria de mulheres negras no exercício dos ofícios domésticos concentra duas distorções sociais, a racial e a de gênero. Negritude e mulheridade são comumente associadas a desvalorização, subordinação e falta de valor intelectual.” (BERTH, 2020, p. 48)
Na presente proposta de vídeo-performance, foi explorada a presença do corpo de uma mulher negra em um quarto de desejo, transformando sua imagem, inicialmente identificada com a de uma empregada doméstica, em uma imagem que se identifica com a de uma artista visual. O tema dessa proposta é autoral. Em 2021, decidi alugar um nova casa que atendesse melhor às minhas demandas familiares e profissionais. Esse novo lar, além de dois quartos, cozinha, sala e banheiro, possui um terceiro quarto, localizado isoladamente após da área de serviço: o quarto de empregada. Este quarto foi readaptado para o fazer artístico, subvertendo seu sentido inicial. O objetivo principal da vídeo-performance é pensar esse quarto como espaço de criação artística, alterando sua restrita correlação com o serviço doméstico. Ao trazer a discussão sobre a inserção de pessoas negras, ou mais especificamente, de mulheres negras no campo das Artes Visuais, a intervenção artística aborda a conversão do quarto de empregada para o espaço de um ateliê artístico. Utilizando como referência para este trabalho a obra literária “Quarto de despejo”, da escritora Carolina Maria de Jesus, inverteu-se o status quo – um resquício do período escravagista – trazendo uma provocação político-cultural: a inserção de agendas raciais e de gênero no cenário brasileiro de artes visuais.


Figuras 1-3
Cena da vídeo-performance: “Quarto de desejo”.
BERTH, Joice. In: Casa Carioca [recurso eletrônico] / curadoria de Marcelo Campos e Joice Berth. -- Rio de Janeiro: Instituto Odeon, 2020. FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (orgs.). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1980. KOFES, Suely. Mulheres, mulheres- identidade, diferença e desigualdades na relação entre patroas e empregadas domésticas. Campinas, SP: UNICAMP, 2001. SILVA, Christiane Leolina Lara; ARAUJO, José Newton Garcia de; MOREIRA, Maria Ignez Costa e BARROS, Vanessa Andrad. O trabalho de empregada doméstica e seus impactos na subjetividade. Psicol. rev. (Belo Horizonte) [online]. 2017, vol.23, n.1, pp. 454-470.