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As representações do negro

As representações do negro na literatura afro-brasileira: um estudo sobre Úrsula, de Maria Firmina dos Reis

Bianca Cristina Vieira da Costa, bcvdc.let18@uea.edu.br www.lattes.cnpq.br/25107596827251191 Maristela Barbosa Silveira e Silva, mbssilva@uea.edu.br www.lattes.cnpq.br/67238005976036312

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RESUMO O presente estudo, em andamento, propõe-se a investigar, através de uma análise sociológica e discursiva, sobre a representação dos personagens negros no primeiro romance escrito em solo brasileiro: Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, com isso, essa pesquisa parte da inquietação quanto à representação do negro na literatura brasileira e quanto às questões de subalternidade e racismo inclusas em debates sobre raça e literatura. Além disso, por ser uma obra de autoria negra, espera-se identificar diferentes nuances nas relações entre personagens (negras e brancas), dadas as particularidades da época e as narrativas advindas da literatura canônica. Como metodologia, elegemos a abordagem qualitativa e, para nortear nosso estudo, consideramos os pressupostos de autores como Dalcastagné (2005, 2010) para a compreensão da construção da personagem; Cuti (2010) e Duarte (2014) para a discussão sobre literatura afro-brasileira, Evaristo (2005) e Hooks (1992, 1994, 2019) para a argumentação sobre representação; Spivak (2010) para o entendimento de subalternidade para a compreensão da personagem negra; Lorde (2007), Almeida (2019) e Carneiro (2011) para questões de racismo. Dessa forma, esperamos, além da atualização sobre os conhecimentos da autora, a consolidação dos estudos sobre a cultura e a literatura negra.

1 Graduanda finalista do curso de Letras da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) 2 Professora do curso de Letras da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Esta pesquisa está institucionalizada pela UEA, mas a bolsista é voluntária. 163

ABSTRACT The present study proposes to investigate, through a sociological and discursive analysis, about the representation of black characters in the first novel written in Brazilian soil: Úrsula, by Maria Firmina dos Reis, with that, this research starts from the concern about black people representation in Brazilian literature and on subalternity and racism issues included in debates about race and literature. Furthermore, as it is a black authorship work, it is expected to identify differentes nuances on the relationship of the characters (black and white), given the particularities at the time and the narratives from canonical literature. As a methodology, we choose a qualitative approach and, to guide our study, we consider the assumptions of authors such as Dalcastagné (2005, 2010) to the character construction understanding; Cuti (2010) and Duarte (2014) for the discussion on Afro-Brazilian literature; Evaristo (2005) and Hooks (1992, 1994, 2019) for the argumentation about representation; Spivak (2010) for the subalternity understanding for the comprehension of the black character; Lorde (2007), Almeida (2019) and Carneiro (2011) for racism issues. Therefore, we expect, besides updating about the author’s knowledge, the consolidation of studies about black culture and literature.

KEYWORDS Úrsula; Maria Firmina dos Reis; Afro-Brazilian literature; Representation.

Introdução

No diálogo desenvolvido pelos estudiosos da literatura negra, manifestam-se múltiplos discursos que podem incluir temas como subalternidade, racismo, preconceito, hegemonia, ancestralidade, entre outros. A compreensão desses temas pode atingir novas esferas de estudo, que certamente motivarão entendimentos mais complexos do que o anterior ou o atual. Considerando então que tais estudos estão em constante construção, sendo relativamente novos em nosso contexto, acreditamos na necessidade de ampliar nossa compreensão sobre a literatura negra. No cenário acadêmico da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), por exemplo, ainda não oferecemos um curso ou disciplina que estude específica e profundamente a contribuição da 164

cultura negra brasileira na literatura. Diante disso, pretendemos, através desta investigação, ampliar as pesquisas na área de literatura brasileira negra e explorar questões de representação do negro. Para evitar imprecisões sobre os temas tratados, aceitamos, para fins desta proposta, os termos literatura negra, literatura afro-brasileira e literatura negro-brasileira como intercambiáveis. Por um lado, Cuti (2010, p. 40) entende que “a palavra ‘negro’ nos remete a reinvindicação diante da existência do racismo, ao passo que a expressão ‘afro-brasileiro’ lança-nos, em sua semântica, ao continente africano”. No entanto, Duarte (2014, p. 24-25), entre outros elementos que corroboram com o discurso identitário, considera a expressão “literatura afro-brasileira” mais pertinente ao tema que expressa “um ponto de vista ou lugar de enunciação política e culturalmente identificados à afro-descendência”. Assim, esta pesquisa se inicia a partir de uma inquietação quanto à representação do negro na literatura brasileira e quanto às questões de subalternidade e racismo, inclusas nos debates sociológicos e antropológicos sobre raça, que surgem da literatura. Portanto, investigaremos as personagens negras apresentadas em Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, considerado o primeiro romance feminino de autoria negra da língua portuguesa. Por ser uma obra de autoria negra, espera-se identificar diferentes nuances nas relações entre personagens (negras e brancas), nas representações do negro, dadas as particularidades da época, e nas comparações com a literatura canônica. Refletindo sobre estes temas inseridos no contexto da literatura negra, ainda nos interessa analisar alguns elementos que distinguem a literatura afro-brasileira, segundo Eduardo de Assis Buarque (2014) e elementos da análise temática do personagem nos estudos de Dalcastagné (2005, 2010).

O que procuramos quando lançamos um holofote ao romance úrsula, de maria firmina dos reis?

As reflexões sobre literatura negra existentes em nosso tempo (séc XX e XXI) têm motivado discussões significativas sobre a representação do negro na literatura canônica ou marginal. Em poucas palavras, representação pode ser conceituada como o ato de representar e de se fazer presente. No entanto, esta presença pode ser moldada com os olhos de quem a produz e, a partir deste ponto, a representação do Outro pode ser vaga, ausente, simples ou até bestial. 165

[...] O problema que se aponta não é o de uma imitação imperfeita do mundo, mas a invisibilização de grupos sociais inteiros e o silenciamento de inúmeras perspectivas sociais, como a dos negros. A proposta, então, é entender o que o romance brasileiro recente – aquele que passa pelo filtro das grandes editoras, atinge um público mais amplo e influencia novas gerações de escritores – está escolhendo como foco de seu interesse, o que está deixando de fora e, enfim, como está trabalhando as questões raciais (DALCASTAGNÉ, 2008, p. 89)

Em consonância com os postulados de Dalcastagné (2008), a qual integra o grupo de teóricos responsáveis pela revisão de literatura desta pesquisa, nós elegemos a obra de Maria Firmina dos Reis (Úrsula) como objeto de análise, considerando a possibilidade de investigação acerca de como a representação da personagem negra emerge e influencia a tessitura da presente narrativa de autoria negra, por meio do viés sociológico e discursivo. E, para atingir esse objetivo, nós, além de pesquisarmos pela bibliografia básica para compreender sobre os conceitos e discussões acerca da representação do negro na literatura brasileira, incluindo, por exemplo, o Mito da Democracia Racial3 . Também procuramos analisar a construção (e representação) dos personagens dentro da narrativa considerando quem a escreveu, no contexto em que a obra foi escrita e atentando-se, ainda, nas nuances das relações entre estas personagens, refletindo sobre os aspectos de sujeitos subalternos e racismo, em suas mais diversas possibilidades. É notório que a questão de autoria negra para seu tempo também está inclusa na análise, visto que a voz de Maria Firmina dos Reis vem atravessando os escritos de muitas escritoras afro-brasileiras na atualidade. E, levando em consideração ainda, que os romancistas da época não construíram os personagens da mesma forma que a presente autora (vide personagens negras e brancas entre suas inúmeras relações), e isso configura uma das inquietações que impulsionaram este projeto.

3 “O status de raça, manipulado pelos brancos, impede que o negro tome consciência do logro que no Brasil chamam de democracia racial e de cor”. (Nascimento 1968: 22) 166

[...] Uma literatura empenhada, sim, mas num projeto suplementar (no sentido derridiano) ao da literatura brasileira canônica: o de edificar, no âmbito da cultura letrada produzida pelos afro-descendentes, uma escritura que seja não apenas a sua expressão enquanto sujeitos de cultura e de arte, mas que aponte o etnocentrismo que os exclui do mundo das letras e da própria civilização. Daí seu caráter muitas vezes marginal, porque fundado na diferença que questiona e abala a trajetória progressiva e linear da historiografia literária canônica (grifos nossos) (DUARTE, 2008, p. 22).

Em um projeto de iniciação científica como este, engajado no desenvolvimento dos estudos da literatura de autoria negra, vislumbramos uma repercussão significativa. Entre os resultados esperados, destacamos o fortalecimento das possibilidades do ensino de literatura afro-brasileira, a consolidação dos estudos sobre as representações do negro na literatura brasileira, bem como a atualização do entendimento da obra de Maria Firmina dos Reis, a partir das discussões emergentes desta pesquisa. Além disso, nós tencionamos a geração de novas oportunidades de pesquisa nesta área de estudo, visto que, a teórica Spivak lança a seguinte afirmativa: “voz eles sempre tiveram, só não são ouvidos” (2010), voltando-nos ao questionamento de por que essas vozes não foram devidamente ouvidas até a presente contemporaneidade? Considerando que esta pesquisa está em andamento, é possível que os resultados possam ser além dos esperados, porém, até o presente momento, as repercussões deste estudo estão ecoando em outros pontos do país, a exemplo disso é esta comunicação. Portanto, seguimos.

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