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Estratégias para conjugar performance e sonho

Bruna Mazzotti, bruna_mq@live.com www.lattes.cnpq.br/1733193693488731

RESUMO A intenção deste estudo, derivado de minha dissertação de mestrado em andamento, é tratar de duas fases da investigação, divididas em primeiro e em segundo ano – do qual está para ser iniciado. A primeira etapa da pesquisa resultou em trabalhos de performance guiados por sugestivas de sonhos – o que chamo de fase linear. No entanto, desejo contrapor o tradicional aproveitamento dos sonhos como ignição poética para trabalhos de arte em performance, ao aspirar/fabular performances dentro de sonhos, tendo a suposição de que as frentes para essa realização estão na mentira, ficção e devaneio – o que chamo de fase-espiralar, a segunda etapa porvir.

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PALAVRAS-CHAVE sonhar; relatar; programar; performar; arquivar.

ABSTRACT The intention of this study, derived from my Master’s dissertation in progress, is to deal with two phases of the investigation, divided into the first and second year – which is about to be started. The first stage of the research resulted in performance works guided by suggestive dreams – what I call the linear phase. However, I wish to oppose the traditional use of dreams as a poetic ignition for works of art in performance, by aspiring/fabulating performances within dreams, with the assumption that the fronts for this realization are found in lies, fiction and daydream – which I call it spiral-phase, the second stage to come.

KEY WORDS dream; report; program; perform; to file.

Introdução

Linear

de uma ou duas imagens enquanto sugestivas, das sugestivas à programação de uma performance e, por fim, a pronta ou esperada execução dos trabalhos programados. Cresceu, porém, um incômodo da minha parte quando percebi que a performance está em função do sonho, dependendo dele para acontecer. Para além desse caminho sequencial, linear, esta pesquisa me fez vislumbrar uma nova possibilidade que, a princípio, denominei de circular, mas desconfio que seja espiralar: assim como meu fazer vai do sonho à arte, também pode percorrer da arte ao sonho – em recursividade – o que me fez, depois de um sonho revelador, chegar à dúvida: “Posso fazer performance dentro de um sonho?”. Uma pergunta que pode ser uma afirmativa: Posso fazer performance dentro de um sonho. Ao aspirar como hipótese a possibilidade de performar dentro de sonhos, reconheço os riscos dessa afirmação, da qual pode vir a ser considerada ingênua ou inconsistente, mas ouso me expor nessa tentativa porque, ao contrário, suspeito ser muito poderosa. De qualquer forma, eis o meu desejo: que o a performance não dependa do sonho do sonho para ocorrer, mas que ela exista dentro do sonho. Assim, suspeito que a pergunta de pesquisa é passível de ser respondida pelas seguintes frentes: a mentira, a ficção e o devaneio. Nesse sentido, este estudo trata de algumas estratégias utilizadas na fase linear da pesquisa, iniciada em 2021, e, em seguida, apresenta esboços para a fase consecutiva, denominada circular-espiralar, da qual será posta em prática em 2022.

O sono ocupa, em média, 1/3 da vida: das 24 horas que temos, geralmente são reservadas 8 horas para o dormir – e é por essa condição que, ao menos duas horas por noite, estamos a sonhar (CHEVALIER; GUEERBRANT, 2020) – eis uma criação autônoma da atividade psíquica, manifestada durante o dormir (JUNG, 2021). Seu elaborar decorre de combinações de natureza fantástica: estranhas ao nosso modo de pensar correlações das coisas quando estamos acordados, ou seja, diferente de quando inferimos a partir de uma continuidade discernível e lógica das experiências (ibid.). Se, de um lado, há quem não institui importância aos sonhos, há também aqueles que, além de lembrá-los bem, ainda se transformam ao contá-lo: a fisionomia muda, a pessoa sorri de seus próprios dramas e terrores, diverte-se e quer que ouvintes também se 171

divirtam (BACHELARD, 1996). Mas mesmo quem possui de uma afabilidade para com os sonhos, mesmo quem dispõe de muita experiência e leitura sobre o fenômeno onírico, “vê-se sempre obrigado a confessar sua ignorância diante de cada novo sonho e, renunciando a qualquer ideia preconcebida, a preparar-se para qualquer coisa totalmente inesperada” (JUNG, 2021, p. 112). Há então uma parcela do sonho que não se difere muito de um decorrer cotidiano: quantas vezes já planejamos uma coisa e aconteceu outra, em imprevisibilidade? Esse fator do inesperado também pode ser flexionado aos domínios da arte. Digo isso porque a programação de uma performance, suas linhas de força, seu planejamento de gestos, ao ser colocada em ação, faz absorção das coisas, das pessoas, do lugar, e ocorre, naturalmente, e erupção do imprevisto – influindo novas camadas para a ação, com positivas novidades. O contar de um sonho geralmente começa com uma indicação de lugar, seguida pela referência aos personagens que compõem a ação, e, então, indicações de tempo: essa é primeira fase da narrativa onírica, a chamada exposição (JUNG, 2021). Trago um exemplo: “Sonhei com você, Murilo: estávamos na praia de Icaraí, Niterói, num cenário meio apocalíptico – a praia estava muito mais poluída” (MAZZOTI, 2021). A segunda fase, por sua vez, diz respeito ao desenvolvimento da ação, ou seja, a situação se torna complicada, complexa, é gerada uma tensão porque não se sabe ao certo o que irá decorrer dela (JUNG, 2021). Seguindo a continuação do relato vigente:

Você dizia que queria me levar lá pra conhecer, mas ao chegar eu falava que já conhecia. Eu dizia que poderíamos ir ao Museu [de Arte Contemporânea de Niterói], mas por algum motivo a gente se separava. Esse algum motivo tem a ver com o fato de que eu vi animais selvagens no caminho: Leão, ursos, não lembro mais quais, e fui tentando me afastar deles. Mas, incrivelmente, os animais eram muito dóceis. E não apresentavam perigo algum. Mesmo assim eu ia me afastando por um caminho de trilha feito na areia da praia. Aí eu percebia que você não estava mais comigo e me decidia que assim que eu encontrasse um lugar seguro ia te ligar pra te achar de novo (MAZZOTTI, 2021)

Dando seguimento, têm-se a terceira fase: culminação ou peripécia – ocorre algo decisivo e/ou a situação muda por completo (JUNG, 2021): 172

[Em um piscar de olhos] eu chegava num clube de piscina que eu ia muito quando criança. Em São Gonçalo [- Município do Estado do Rio de Janeiro]. Eu me trancava numa cabine de banheiro. Tentava falar com você, mas por algum motivo não dava certo. Curioso era que eu conseguia ver as pessoas fora da cabine, como se a porta fechada fosse transparente só pra mim, e elas não conseguiam me ver. Exceto quando um professor da [Universidade Federal do Amazonas -] UFAM (...) passou por lá e me viu. Me senti muito constrangida. Aí quando eu me senti constrangida percebi que tinham vários homens dentro do banheiro

(MAZZOTTI, 2021)

Por fim, a quarta e última fase, que nem sempre acontece, é denominada lise, solução ou resultado (JUNG, 2021):

Um acesso de raiva me permitiu segurar todos eles pelos braços e jogar para fora da cabine como se fossem bonecos infláveis ou algo do tipo. Porque eles eram ou maiores que eu ou da minha estatura, só tinham alguns menores, mesmo assim eram leves. Eu olhei pro lado e vi que tinha outro banheiro dentro da cabine, esse muito melhor e mais limpo, como se fosse um banheiro doméstico de uma casa projetada. Era o único lugar do sonho que tinha claridade (MAZZOTTI, 2021)

Dessa forma, vejo que a estrutura inicial dada por um relato onírico possui devidas semelhanças com as diretrizes que geralmente sigo para elaborar uma performance: local x, duração y, dia tal, com essas e aquelas pessoas, seguida da descrição do passo a passo a ser realizado. Ou, simplesmente, o programa de performance1 é a descrição do passo a passo a ser realizado do qual faz par com um desenho. Segue, portanto, o programa suscitado pelo relato de sonho em questão:

1 O programa se trata de um elencar de ações das quais serão vistas apenas na execução de uma performance (FABIÃO, 2013). Ele põe o corpo dentro de uma moldura, mas, nesse roteiro, o corpo tem espaço para movimentar-se à vontade, não estando completamente preso a ele (TAYLOR, 2013). Assim o programa age como uma ponte entre o lá e o aqui, o passado e o futuro: não acontece pela última ou primeira vez, mas é continuadamente reativado no presente da performance (ibid.). 173

Comecei a me perguntar: se sonhos estão em função da performance, performances podem estar em função do sonho? Mas ainda não é essa a pergunta. Talvez: posso realizar um programa de performance dentro de um sonho? Melhor seria colocar essa pergunta como afirmação: Posso realizar um programa de performance dentro de um sonho. Mas como realizar uma performance em um sonho? Que programa de performance o sonho requer? Há como ele requerer algum programa de performance? Que sonho o programa de performance requer? Há como a performance requerer algo do sonho? O que o sonho pode trazer para a performance? O que a performance pode trazer ao sonho? Como estar em estado de performance dentro de um sonho? Seria a partir de um sonho lúcido2 , ao dormir? Ou cabe experimentar a imaginação ativa e os devaneios? Ou ainda: uma performance realizada em sonho deve ser experienciada pela ficção? Tal fluxo entre performance e sonho me parece fundamental, visto me interessa, visualmente e conceitualmente, uma coisa em relação com a outra ao invés de uma coisa em função da outra. Assim, o desejo de não encerramento do dissertar em trabalhos de performance guiados por sonhos, é seguido por uma procura de fazer possível um modo de existência de trabalhos de performance dentro de sonhos – em ocupação do mesmo espaço e tempo, em compensação às proposições visuais elaboradas na primeira metade desta pesquisa, que ocorrem do sonho para a vigília, em espaços e tempos separados – mesmo que recíprocos. Cheguei, então, à pergunta-afirmação “Fazer uma performance dentro de um sonho? Fazer uma performance dentro de um sonho”. Muito assustada e ao mesmo tempo deslumbrada por esse lugar alcançado, ocorreu-me um acontecimento curioso e fundamental – transcrevo aqui um relato proferido:

Como eu.... Hoje eu sonhei que fazia uma performance.... E

2 Um sonho é chamado lúcido quando há uma parcela de controle dos acontecimentos. Uma vez, estive em um convés de um majestoso navio velho, todo feito de madeira. Percebi que estava sonhando e decidi tomar a direção do navio para mim e decidir para onde iria. Também consegui fazer com que o navio atracasse na areia da praia sem nenhuma necessidade de porto ou leis da física que me permitissem encalhar. Desci do navio flutuando por vontade própria. E logo acordei, também, por vontade própria. 174

diferente do que eu suspeitava eu não preciso do sonho lúcido pra mesma... Infelizmente eu só tenho alguns... fragmentos.... Bem poucos, mas acredito que já é um bom começo. Vamo lá: eu sonhei que eu precisava, nessa performance, me disfarçar de alguém... E era um quarteirão contínuo e eu precisava andar ao lado de uma mulher. Na verdade, o disfarce estava na mulher. E essa performance ao mesmo tempo... Era como... Uma pegadinha, um pre... U-uma pegadinha. Pregar peça. Em uma pessoa. E... Durante o caminhar... Nesse quarteirão, mais em frente, via-se de costas.... Outras duplas... Sempre uma mulher e uma mulher disfarçada de outra mulher. Que tinha uma peruca com... Trancinhas.............Vermelhas............. Quase dreads mas não chegava a ser.... E quando elas corriam, corriam bem... forte... elas...eu sabia que era o momento de tirar o salto e também sair correndo... Senão a performance poderia... Falhar e não [palavra inaudível]... [algo que soa como] Peça insuficiente (?)... Hã...... Eu tive muita dificuldade de tirar o salto......Mas corri como deu......... E engraçado que a pessoa que-em que a gente precisava pregar a peça....Ficou um pouco à frente da gente...... E...... quando eu virei... E... Vi essa pessoa um pouco à frente da gente numa fila de um banheiro feminino. Ela olhou pra mim com um olhar de, ao mesmo tempo, risada e reprovação e nojo, tipo, e falou ‘’Meh’’. Aí... eu olhei pra ela e disse: ‘’Se agora você... Se você já me odiava, agora você me odeia ainda mais – e ela começou a rir, muito.... Hã....E ela vestia preto.... Então pra fazer performance dentro de um sonho não necessariamente eu preciso programar.... A performance. Ou eu preciso estar... Ééé... Em um sonho lúcido... Eu só preciso pensar sobre a pesquisa apreentemente3 . (PERFORMANCE, 2021, n. p.)

Já havia sonhado, outrora, com uma exposição em galeria, museus de arte, mas sonhar que estava fazendo performance foi uma primeira vez. Penso: o que há no disfarce? O que é disfarçar? O que é andar disfarçada ao lado de outra pessoa? Disfarçar-se é inventar uma outra mim mesma? E ainda: o que é tirar o salto para correr? Sair de uma plataforma que me eleva e pisar descalça no cimento pode vir a ser o que? O que pode ser uma falha em performance? Há, efetivamente, falha em

performance? ‘’Falhar e não [palavra inaudível]’’: a palavra inaudível é uma falha de escuta ou de proferimento? A palavra inaudível é uma falha em si? Ou seria um ruído incompreensível a ser valorizado? A dificuldade em tirar o salto é parecida com o que? Com a própria dificuldade de entender as palavras que saíram de mim mesma? O que é pregar uma peça? Seria sinônimo de enganar? Quais as diferença e similitudes entre: mentira, ficção, invenção, devaneio e fabulação? Enfim: devo interpretar essa sugestão do sonho como um chamado a fingir que posso performar em sonhos? Só que o fingir será tão bem fingido que o outro se daria a acreditar? É nesse lugar que deveria me dispor nos próximos meses? Ou seja, como sugere o sonho: pregar uma peça em quem lê?

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1996. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANDT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2020. FABIÃO, Eleonora. Programa performativo: o corpo-em-experiência. Ilinx – Revista do LUME, n. 4, 2013. Disponível em: https://www.cocen.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/article/view/276. Acesso em: 11 fev. 2022. JUNG, C. G. Sonhos. Petrópolis: Vozes, 2021. MAZZOTTI, Bruna. [Relato de sonho: do MAC ao banheiro]. WhatsApp: [Conversa com Murilo Bittar]. 9 de setembro de 2021. 9:24. 1 mensagem de WhatsApp, 2021. PERFORMANCE dentro de um sonho. [Gravação]: Bruna Mazzotti. Anápolis: OneDrive, 2021. 1 Mp4 (4:34 min). Disponível em: https://1drv.ms/u/s!AvqggIPehhs09Tf5gVePtJMuX1wy?e=KXbLpa. Acesso em: 14 fev. 2022. TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: Performance e memória cultural das Américas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

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