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Arte, ciência e tecnologia modelos alternativos e

Arte, ciência e tecnologia: modelos alternativos e especulativos para habitar a terra

Cláudio de Melo Filho, c165075@dac.unicamp.br www.lattes.cnpq.br/7504326798777000

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RESUMO O reconhecimento de um Novo Regime Climático e as transformações advindas do tempo do Antropoceno tem instigado uma série de pesquisas na arte, antropologia, ciências, economia, filosofia etc. Em sua maioria, elas apontam para um debate sobre a ecologia, regimes climáticos e o desenvolvimento econômico nos processos contínuos de transformação da Terra. Neste ensaio, proponho o diálogo entre natureza, arte e ecologia. Para isso, serão posicionados os termos ecologia e natureza em meio às suas instabilidades conceituais para, em um segundo momento, serem exploradas as práticas de artistas e pesquisadores na produção criativa e científica de modelos alternativos especulativos frente às constantes instabilidades ecológicas de nosso tempo.

PALAVRAS-CHAVE Arte; Ecologia; Natureza; Ciência especulativa; Tecnologia.

ABSTRACT The recognition of a New Climate Regime and the transformations arising from the Anthropocene time have instigated a series of research in art, anthropology, science, economics, philosophy, etc. Most of them point to a debate on ecology, climate regimes and economic development in the ongoing processes of Earth transformation. In this essay, I propose the dialogue between nature, art and ecology. For this, the terms ecology and nature will be positioned in the midst of their conceptual instabilities to, in a second moment, explore the practices of artists and researchers in the creative and scientific production of speculative alternative models in the face of the constant ecological instabilities of our time.

KEY WORDS Art; Ecology; Nature; Speculative science; Technology.

No campo da arte, pensar as conexões entre homem e natureza se mantém um desafio nas práticas atuais. Mas, de fato, a discussão não é nova: na década de 1980 as poéticas que trabalhavam com arte e natureza ganharam destaque à medida que incorporaram em seu discurso as mudanças políticas, sociais e ambientais. Joseph Beuys, Agnes Denes, Hans Haacke e Jackie Brookner – marcadores das experiências em LandArt e Performance – são alguns dos muitos artistas que se engajaram nos vários modos de ação entre arte e natureza, muitas vezes expressando a incapacidade de muitas políticas governamentais em medir as consequências das mudanças climáticas para a biosfera. Todavia, o modo como a sociedade compreende a relação entre o homem e a natureza se transformou nas últimas décadas, ao passo que o desenvolvimento tecnológico e as transformações dos regimes climáticos evoluíram exponencialmente. A primeira década do século XXI consolidou e expandiu o uso cotidiano da tecnologia, bem como, o conceito de Antropoceno ganhou proeminência no debate acerca das relações entre as ciências da vida, a sociedade, economia, arte e a natureza. Esses movimentos paradigmas e práticas culturais foram estabelecidos ao longo da modernidade e na produção artística mais recente, a aliança entre artistas, biólogos e cientistas permitem especular criativamente, de maneira geral, novas formas de compreender a organização de sistemas vivos e dos processos biológicos, sintéticos e simbólicos. Tais aliança podem especular criativamente modelos alternativos para que nos ajudem no enfrentamento das constantes instabilidades ecológicas de nosso tempo. A partir desta breve introdução, procuro aqui, através do exercício da escrita, traçar uma perspectiva na evolução e instabilidade conceitual a qual envolve ecologia e natureza, para depois abordar algumas poéticas artísticas que tem a natureza e a ciência como fonte de produção e discussão.

Sobre a(s) instabilidade(s) da natureza e ecologia

Da mesma forma que o Antropoceno,o uso da ecologia pode atingir diversas significações – algumas vezes paradoxais. Como conceito-chave, a ecologia pode ser posicionada em vários campos e o ter um amplo significado em análises e práticas que questionam os entrelaçamentos dos organismos e seus ambientes conforme posicionamentos históricos. Segundo Donald Worster, desde a origem da ecologia moderna no século XIX, o conceito tem implicado dois significados 179

co-presentes, ou seja, visões diferentes sobre a natureza: uma “arcadiana”, conectada com o romantismo imperialista (WORSTER, 1994, p. 3-55) e outra que tem como imperativo a administração pela razão instrumental (WORSTER In: NIKOLIC, 2018). Assim, para compreender as instabilidades conceituais sobre ecologia, devemos também propor uma abordagem mais profunda sobre as instabilidades do conceito de natureza. Para Bruno Latour, a dificuldade de compreender os sentidos de natureza reside nas relações com o mundo, que trariam consigo dois tipos de domínio: cultural e natural, “distintos entre si mas impossíveis de serem separados por completo” (LATOUR, 2020, p. 34). Como aponta o autor, não se trata de domínios distintos, mas de dois lados de um mesmo conceito. E com os eventos recentes do Novo Regime Climático, seria mais correto relacionarmos a noção de natureza em mutação, pois “seria preciso denominar uma profunda mutação em nossa relação com o mundo” (LATOUR, 2020, p. 24). A proximidade conceitual entre ecologia e natureza dispõe uma tensão entre “metáforas de nutrição e dominação” (MERCHANT, 1980, p. 3). Esta tensão tem raiz na natureza tradicionalmente retratada como algo “além’” ou fora do domínio humano (LATOUR,2015), e ao mesmo tempo, traz consigo um abrigo fictício em meio a um paradoxo: representado em sentenças como “é da natureza humana”, ou mesmo, “faz parte de sua natureza”. Nessa perspectiva, a ecologia não seria a irrupção da natureza no espaço público, mas o fim da natureza como um conceito estável ou estático (LATOUR, 2020). Ecologia, assim, é a responsável direta por trazer à tona um tipo específico de violência no cerne da modernidade com base na “lógica do dualismo” científico, da exploração dos recursos da Terra ou mesmo dos processos de colonização (PLUMWOOD, 1993; LATOUR, 2015; COSTA, 2020). Ecologia é também a responsável por revelar os padrões de cuidado, as potências de agir (LATOUR, 2020) e atenção (HARAWAY, 2016; TSING, 2019) que não se enquadram no projeto de mundanização moderno. Segundo Nikolic:

Ecologia, contra-intuitivamente, então, ao invés do estudo da natureza, de fato, transgride a hierarquia dualista moderna e promulga, metodológica e ético-politicamente, complicações que Haraway (2003) chama “culturas naturais”, “ecologias culturais naturais” (NIKOLIC, 2008, pg 8 Trad. Nossa)

um território específico cujo pensamento e prática ecológica detém em meio a retomada dos estudos de-coloniais, pós-feminista, queer, sul-globais, entre outros: a ecologia posicionada como um agente ético-político minoritário (NIKOLIC, 2008). Com o consumo intensivo dos recursos naturais que alcançamos no século XXI e o reconhecimento das ações humanas como condutoras do esgotamento socioambiental, é imprescindível investigar novos modos de interferência nos ambientes da Terra por meio do entendimento ético-político envolto nas colaborações com seres vivos e não vivos, humanos e não-humanos. Tais investigações são capazes de transformar as relações com o(s) mundo(s) em potências (DIAS,2020). No campo artístico uma série de proposições se debruçaram sobre a arte e ecologia a partir da década de 1980. No entanto, o amplo discurso ativista-ambiental distanciava a dinâmica da percepção do sentido ético-político que contém a ecologia. Para mim, a ecologia pode ser um atrator indispensável nas forças de agir para a permanência humana na Terra. Volto minha atenção a alianças entre artistas, pesquisadores, biólogos e cientistas da computação com o objetivo de ampliar as fronteiras do objeto artístico e explorar a relação com a ecologia no período recente.

Modelos alternativos para habitar a Terra

A união de artistas com pesquisadores, biólogos e cientistas da computação pode ampliar as fronteiras do objeto artístico.Com o interesse comum direcionado à biotecnologia, manipulação genética de organismos vivos, criação de tecidos orgânicos ou sintéticos, artistas da década de 1980/1990 (como Eduardo Kac, Christa Sommerer e Laurent Mignonneau, Marta de Menezes, Joe Davis, George Gessert e Marion Laval-Jeantet ) aproximaram as ciências da vida com a era da informação, abrindo um território ainda não antes mapeado pelas poéticas artísticas. Recentemente, a tônica da manipulação de organismos vivos pela arte pode ser direcionada para a ação entre arte, tecnologia, ciência e natureza nas pesquisas e obras de Paul Vanouse, Oron Catts, Cesar Baio, Lucy HG Solomon e Saša Spačal. Esses, entre outros artistas, conduzem provocações com alto potencial questionador e formulador de conhecimentos desviantes. Nesse movimento, é importante a formulação de “pensamento não-correlacional” realizada por Whitehead, que, por intermédio de uma revisão feita por Steven Shaviro (2016), é definida como uma proposta ou sentença de formulação de 181

conhecimento que não é intencionalmente construída a partir da dialética do Antropoceno. Em última exploração, trago a investigação prática entre paisagens e mundos microrgânicos: bactérias, fungos, líquens e musgos junto às tecnologias recentes. A união destes campos pode ativar uma percepção desestabilizadora do próprio sentido humano de pertencimento com a Terra. Com especial atenção a esses organismos, a proposta Lichens_(2021) foi guiada por mim como parte das atividades do ESPOROSlab, um eixo de atuação dedicado às questões da ecologia, natureza e sustentabilidade no ACTlab – Laboratório de Arte, Ciência e Tecnologias Desviantes da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Em minhas investigações, parte do pensamento agente-político sobre ecologia cede espaço à atenção de organismos que detêm relações simbióticas ou mutualísticas em seus ambientes. De forma provocativa, alguns organismos fornecem disparadores para outros modos de habitar, viver e se manter na Terra. Os líquens chamaram minha atenção, nesse sentido, por serem organismos formados pelo mutualismo simbiótico entre uma alga (ou cianobactéria) e fungo. Porém, em todos os casos, a aparência do fungo no líquen é bastante diferente de sua morfologia como um indivíduo em cultura separada. Cada espécie de líquen tem uma espécie diferente de fungo e é com base nessa espécie que os líquens são classificados. Atualmente, estão descritas de 15 mil a 20 mil espécies de líquens e, de acordo com diferentes sistemas de classificação, elas podem ser encontradas nos mais diversos ambientes: geleiras, rochas, árvores, folhas, desertos etc. A investigação preliminar dos líquens levou a questões sobre como eles podem nos ensinar a habitar a Terra de um modo por associação mutualística, simbiótico de dependência, entre sistemas para nossa sobrevivência? Quais são as histórias por trás destes organismos que fazem mundo? E como eles, junto a artistas e cientistas podem propor novas especulações sobre os sistemas complexos além da objetividade e hegemonia do pensamento humano? A partir dessas questões foi proposto o cultivo em placas de petri com solução Ágar padrão de líquens sob imagens de ambientes degradados (florestas da mata atlântica e cerrado) e textos que promovem a discussão dos microrganismos no ambiente. A busca do cultivo foi promover especulações de como os líquens se integraram com as fotografias/textos e a partir disso, promover outras formas de simbiose [figura 01]. Estes exemplos podem delinear relações e possibilitar o surgimento de histórias de multiplicidades, e até podem ser úteis como trabalho em colaboração multiespécies. 182

Os conteúdos explorados aqui parecem operar a partir de modelos de compreensão e de colaboração entendidas como desconectadas ou mesmo adversárias de sua lógica convencional. As artes que emergem destas provocações atuam com a força de contestação na maneira de reconfigurar nossa compreensão dos organismos e das tecnologias na paisagem de mundo. Para encerrar esta escrita me apoio nos dizeres de Susana Dias, professora doutora do Labjor-IEL (UNICAMP), que nos oferece uma importante percepção deste campo ao revelar nossa ocupação como agentes criativos de novos modelos especulativos de mundo. A partir da diferenciação entre humanos e Terranos abordada por Latour (2020), Dias entende nossa ocupação na Terra sendo um local de refúgio. Segundo a autora, devemos compreender que os Terranos vivem em um planeta danificado, com poucos refúgios, sabem da iminência de uma catástrofe climática e trabalham por uma efetiva política da terra/ Terra, por isso, vivem no Antropoceno: “O que pode ter sido bom para os Humanos, perdeu todo o sentido para os Terranos” (Latour, 2014, p. 7). Ocupar a terra como um local de refúgio traz consigo mais uma camada para o debate acerca da ecologia e natureza: quais de nós seremos os exilados dos refúgios da Terra? Por fim, cabe frisar que existem inúmeras diferenciações sobre a Terra em culturas como as ameríndias (DE CASTRO, 2015), aborígenes, orientais e indianas, que assumem outras concepções de natureza, ecologia e Terra, bem como outras relações com organismos e seres-não-humanos. E por isso, a atenção proposta neste exercício repele os conceitos e delimitações universais, o convite é para o local e para o difícil de ver, a agir criativamente no chão em que pisamos, por mais que a areia seja movediça.

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