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O traje dos alegóricos labores da terra de Nicolas II de L’armessin

Henrique Guimarães dos Santos, sguimaraeshenrique@gmail.com www.lattes.cnpq.br/5056253877756103

RESUMO Evidencia os mecanismos e os artifícios utilizados por Nicolas II de L’Armessin (1632-1694) para materializar alegoricamente as estampas referentes aos ofícios do labor da terra. Publicado em 1974, em Paris, o álbum Les Costumes Grotesques reúne 97 gravuras do gravador francês seiscentista Nicolas II de Larmessin. Com base na divisão de conhecimentos de Francis Bacon, foram selecionadas as três gravuras referentes ao cultivo da terra, presentes na publicação. Para análise, utiliza-se a metodologia iconográfica de Erwin Panofsky que descreve e classifica determinada imagem. Hansen é utilizado para a compreensão da construção alegórica e materialização da ideia. Identificamos como elementos alegorizantes a paisagem e o traje. Sendo o traje o elemento principal, elaborado pelo gravador por meio do uso da semelhança de elementos associados aos ofícios em questão, para dar sua forma.

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PALAVRAS-CHAVE Alegoria; Traje grotesco; Nicolas de L’Armessin.

ABSTRACT It highlights the mechanisms and artifices used by Nicolas II de L’Armessin (1632-1694) to materialize allegorically the prints referring to the crafts of the labor of the land. Published in Paris in 1974, the album Les Costumes Grotesques brings together 97 engravings by the 17th century French engraver Nicolas II de Larmessin. Based on Francis Bacon’s division of knowledge, the three engravings referring to land cultivation, present in the publication, were selected. For analysis, Erwin Panofsky’s iconographic methodology is used, which describes and classifies a certain image. Hansen is used to understand the allegorical construction and materialization of the idea. We identified landscape and costume as allegorizing elements. The costume being the main element, elaborated by the engraver through the use of the similarity of elements associated with the crafts in question, to give its shape.

Les costumes grotesques pode ser compreendido como um conjunto mais de 100 gravuras atribuidas ao gravador francês Nicolas II de L’Armessin (1632-1694). Em 1974, foi publicado, pela editora francesa Henri Veyrier, um álbum que abarca 97 estampas deste grande grupo, nomeado “Les costumes grotesques et les metiers: XVIIe siècle”. As gravuras originais fazem parte principalmente do acervo da Biblioteca Nacional da França (BNF) e do Museu de Arte Decorativa de Paris (MAD). Há grande escassez de estudos do grupo alegórico dos costumes grotescos de L’Armessin, produzidos em talho doce no final do século XVII. A publicação lançada pela editora Henri Veyrier contendo as reproduções das gravuras deste grupo, presentes na BNF, proporciona a estas estampas mais uma chance de elevá-las ao reconhecimento. Malraux (1965) aponta que a ampliação e reprodução das artes menores, as torna rivais das artes maiores, quando diz que:

A vida particular que a ampliação confere à obra adquire toda a sua força no diálogo permitido, exigido pela comparação entre as fotografias [...] a reprodução liberta o estilo da servidão que o tornava menor. E liberta ainda mais as obras menos marginais, cuja amplidão do estilo as iguala às obras ilustres. (MALRAUX, 1965, p. 113)

Assim como Diderot e d’Alembert fazem no século XVIII com a “Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios”, Nicolas II de Larmessin menos de um século antes, valoriza as artes mecânicas e o artesão quando coloca em paridade as artes liberais e as mecânicas, considerando a existência do preconceito que julga o trabalho intelectual como mais digno que o manual (SOUZA, 2015; FRANLIN, 2015).

Les costumes grotescos e os L’armessin

Na família L’Armessin são presentes cinco membros de nome “Nicolas”. Devido aos poucos estudos sobre esta genealogia nos deparamos com algumas divergências, sendo possível encontrar o mesmo Nicolas de L’Armessin (1632-1694) sendo intitulado como Nicolas I e como Nicolas II. Neste estudo, levamos em consideração a 218

genealogia proposta por Bénézit (1939), que o denomina como Nicolas II de L’Armessin, e a base de dados da BNF, que retificou sua data de nascimento. As estampas têm caráter alegórico. São a construção visual da idéia do fazer de inúmeros ofícios que estavam em exercício em sua época de produção. Este grande conjunto possui representações não só com figuras masculinas, mas também com figuras femininas, embora em menor número. Das estampas presentes na encadernação em questão, 76 são masculinas e 21 são femininas. Diversos ofícios representados sofreram significativas modificações com os avanços tecnológicos, outras perderam o status e importância que tinham em época devido as diferentes modificações de interesses nas sociedades, principalmente a francesa em questão. Exemplos são a gravura Habit de la Chaudronniere, dedicada ao ofício da artesã e vendedora de recipientes metálicos e outros utensílios domésticos; Habit de Vinaigrié, alegoria ao ofício dos que fazem e vendem vinagre; Habit d’Imprimeur em Lettres, gravura referente a arte da tipografia.

Iconografia

A análise metodológica iconográfica, proposta por Panofsky (2005; 2017), tem como objetivo investigar as “[...] mensagens das obras de arte em contraposição à sua forma” (PANOSFSKY, 2017, p. 47). O autor aponta que anterior a interpretação iconográfica está a interpretação pré-iconográfica. Tratará do que constitui o mundo da visão, identificação das linhas, das cores e dos volumes, em outras palavras, da forma e do estilo. Para tal análise, faz-se uso da experiência prática e a familiaridade do indivíduo analista com os objetos que serão analisados (PANOFSKY, 2005; 2017). A interpretação iconográfica descreve e classifica determinada imagem, identifica os assuntos específicos e/ou conceitos existentes, o sentido imagético. Compreende as condições históricas, temas e conceitos expressos no objeto por meio de conhecimentos adquiridos através de fontes literárias ou tradição oral, familiaridade com o conteúdo, podendo ser necessário também a busca pelas referências utilizadas pelo artista (PANOFSKY, 2005; 2017).

[...] a iconografia é de auxílio incalculável para o estabelecimento de datas, origens e, às vezes, autenticidade; e fornece as bases necessárias para quaisquer interpretações 219

Figura 1

Habit de la Chaudronniere, Habit de Vinaigrié, Habit d’Imprimeur en Lettres. Fonte: L’Armessin (1974).

ulteriores. Entretanto ela não tenta elaborar a interpretação sozinha. Coleta e classifica a evidência, mas não se considera obrigada ou capacitada a investigar a gênese e significação dessa evidência [...] (PANOFSKY, 2017, p. 53)

A fim de sistematizar a metodologia elaborada por Panofsky para as interpretações pré-iconográfica e iconográfica, elaborou-se o quadro acima.1

Interpretação Pré-Iconográfica

Iconográfica

O que interpreta

Forma e estilo

Tipo, sentido imagético

Fonte para a interpretação

Experiência prática e familiaridade com o conteúdo Fontes literárias e/ou tradição oral

Memória, razão e imaginação

Francis Bacon (1561-1626) em seu livro “Advancement of Learning” de 1605 indica que os conhecimentos humanos podem ser compreendidos por meio de três grupos, com origem na experiência social (SOUZA, 2015). Já em 1751 Denis Diderot (1713-1784) e Jean le Rond d’Alembert (1717-1783) fazem uso da divisão de Bacon para orientar elaboração da “Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des artes et des métiers” e nesta obra criam um quadro de conhecimentos humanos. Segundo Diderot e D’Alembert (2015), os conhecimentos podem ser compreendidos através de três percepções:

Os seres físicos atuam sobre os sentidos. As impressões desses seres excitam percepções deles no entendimento. O entendimento ocupa-se de suas percepções de três maneiras, segundo suas três faculdades principais, a memória, a razão e a imaginação. Ou o entendimento realiza uma enumeração pura e simples de suas percepções através da memória; ou as examina, as compara, as assimila pela razão; ou se compraz em imitá-las e a contrafazê-las pela imaginação.[...] História, que se refere à memória, Filosofia, que emana da razão, e Poesia, que nasci da imaginação. (Diderot; d’Alembert, 2015, p. 267, grifo do autor)

As gravuras de produção alegórica e “poética” se enquadram no grupo da Imaginação. Porém, os diversos ofícios presentes nas estampas podem ser divididos nos três grupos. Apenas três gravuras do conjunto de trajes grotescos de Nicolas II de L’Armessin se enquadram no grupo dos conhecimentos da razão com foco nas ciências da natureza, em que são empregados ofícios do cultivo e labor da terra, são elas: Traje do Agricultor – Habit de Labourer (Figura 2), Traje do Enólogo – Habit de Vigneron (Figura 3) e Traje do Jardineiro – Habit de Jardinier (Figura 4).

Grotescos e alegóricos

O termo grotesco, associado adjetivamente as gravuras, pode ser compreendido com diversos significados ao longo da história. Todavia,

Na palavra grottesco, como designação de uma determinada arte ornamental, estimulada pela Antiguidade, havia para a Renascença não apenas o lúdico e alegre, leve e fantasioso, mas, concomitantemente, algo angustiante e sinistro [...]. KAYSER (2013, p. 20)

É a partir do século XVII que o termo grotesque passa a ser empregado pelos franceses com um sentido superficial, após sua definição no dicionário da Academia Francesa para designar algo ridículo, bizarro e/ ou extravagante. O conceito foi reduzido a algo burlesco e cômico que se manteve até o século XX (KAYSER, 2013). Já no século XVIII se buscou melhor definir o conceito, quando passou a ser empregado para definir dois gêneros de caricaturas:

1. “as verdadeiras, onde o pintor simplesmente reproduz a natureza disforme tal como a encontra”; 2. “as exageradas, onde, com algum propósito especial, aumenta a deformação de seu objeto, mas procede de um modo tão análogo ao da natureza que o original continua sendo reconhecível.” (KAYSER, 2013, p. 30, grifo do autor)

A alegoria, compreendida como uma metáfora, faz uso da semelhança entre elementos para a materialização da ideia e formação do discurso imagético. Ademais, transmite uma ideia abstrata por meio de uma imagem. Segundo Hansen (2006, p. 15, grifo do autor) 222

“[...] a alegoria diz b para significar a [...]”, onde “b” refere-se ao artífice utilizado para designação concretizante e “a” refere-se à significação abstrata. Nas gravuras do conjunto de L’Armessin,

o personagem representado está, portanto, totalmente identificado com a sua profissão, que coincide perfeitamente com o seu estado social, numa imagem que produz um inegável efeito cómico, mas também uma estranha e fantástica poesia, elevando o traje à categoria de alegoria social. (CUGY, 2013, p. 5, tradução nossa)

Para a invenção alegórica dos extravagantes Agricultor (Figura 2), Enólogo (Figura 3) e Jardineiro (Figura 4), bem como as outras alegorias do conjunto, L’Armessin, por meio da semelhança, faz uso da sobreposição e superposição de elementos, que unidos dão forma a silhueta seiscentista.

As alegorias de L’armessin

Nas três representações selecionadas apresentam-se um personagem antropomórfico centralizado de figura masculina. A alegoria do agricultor (Figura 2) e do enólogo (Figura 3) estão em pose semelhante, ambos com a mão direita levantada erguendo uma foice, embora de tamanhos diferentes. A mão esquerda da figura, nestas duas últimas, está mais abaixada, a cabeça voltada para o lado esquerdo e, o corpo levemente virado para o lado direito. Já a gravura do Jardineiro (Figura 4) está com a mão esquerda levantada que segura diversas ferramentas apoiando-as no ombro. O corpo levemente virado para a esquerda com o pé direito mais a frente, tem uma pose mais elaborada. Na gravura Habit de Laboureur (Figura 2), o traje é composto com características da indumentária da época. Porém, pode-se perceber certa simplicidade na roupa, visto que o personagem apresenta apenas um modesto lenço no pescoço e não possui enfeites e adereços. Todas as peças que compõe seu traje são lisas, sem estampas, o que pode caracterizar também uma simplicidade do ofício de lavrador. Nesta gravura, a indumentária da alegoria não é formada pela sobreposição das ferramentas, das matérias-primas, das produções, mas a roupa que o personagem porta é de fato uma roupa feita de tecido e os utensílios e ferramentas utilizadas pela profissão estão por cima da roupa, como se tivesse “vestido” as ferramentas, com exceção do chapéu, que é 223

substituído por um utensílio em formado triângulo aludindo a um chapéu tricórnio. A figura alegórica para o ofício de lavrar a terra empunha também ferramentas, como já comentado. A paisagem de fundo desta gravura não se apresenta somente como ornamentação, mas também é alusivo a alegoria, contribuindo alegoricamente. Um campo de trigo, assim como, o agrupado também de trigo que se está no canto inferior direito da gravura. A alegoria do ofício do cultivo da parreira (Figura 3), está em mesma pose que a gravura do Habit de Labourer (Figura 2), porém, diferente desta última, a indumentária da alegoria do Habit de Vigneron é composta, quase toda, pela sobreposição e superposição de elementos diversos vinculados ao ofício. A parte superior de seu traje é formado por um cesto, a parte inferior por um calção de tecido, a roupa de fato. Nos braços, na cintura, no pescoço, na perna tomando lugar das meias e na cabeça representando o cabelo, por quase todo o corpo, está enrolada a vinha, planta trepadeira, principal elemento no ofício em questão. O sapato, um tamanco, não é constituído pela união de objetos “estranhos”, é o objeto de que se trata. Apesar do uso de elementos vestíveis e elementos vinculados ao ofício para a composição do traje, a silhueta, a forma, é a mesma do traje dos seiscentos. A sua direita está uma treliça feita de madeira com a parreira, a esquerda um certo com as uvas já colhidas. A paisagem de fundo é um campo de cultivo da videira, assim como na figura 2, também contribui para a alegorização. Na representação de L’Armessin para a Jardinagem (Figura 4), a figura humana está em uma pose mais sofisticada que as gravuras do Habit de Laboureur (Figura 2) e do Habit de Vigneron (Figura 3). Empunha diversas ferramentas e utensílios – tesoura, foice, enxada, ancinho, serrote, faca, balde, pá, caixa e regador –, tendo as portadas pela mão esquerda apoiadas no ombro. Na sua cabeça estão folhagens, frutos e flor da romãzeira. Cobrindo seu corpo estão presentes inúmeros elementos: frutas, flores, galhos, folhas de diferentes plantas e utensílios. Ainda que o sapato seja a única peça que não é feita pela união de diversos elementos e sim apresentado como de acordo com o usual, como na gravura do Vigneron, a silhueta final é característica da indumentária da segunda metade do século XVII. Atrás está presente uma paisagem de fundo retratando um grande jardim e, diferentemente das outras gravuras em questão, é composta também por pessoas. O jardim apresentado é um jardim para os prazeres, um jardim de contemplação em que a presença de pessoas é elemento fundamental para fruição da produção do ofício. 224

Para a construção alegórica e materialização da ideia, identificamos a paisagem e o traje como elementos alegorizantes, porém é possível inferir que o traje é o elemento principal, elaborado pelo gravador por meio do uso da semelhança de elementos associados aos determinados conceitos para dar sua forma. Isolando e comparando essas três gravuras do álbum podemos perceber que os trajes das alegorias são compostos por Nicolas II de L’Armessin de diferentes maneiras e o modo como é executado pode ter relação com a compreensão de cada ofício. As gravuras Habit de Laboureur e Habit Vigneron tem uma postura mais simples em comparação a do Habit de Jardinier, esta última em uma pose mais sofisticada. Nas três figuras, o sapato não é composto pela união de elementos, porém, no caso do Habit de Laboureur, o laço é formado por facas. Apesar disso, este último pode ser considerado o traje mais simples, por ser representado por roupas usuais e, por cima dessas, os instrumentos e ferramentas. Já na gravura do Habit de Jardinier, a indumentária é inteiramente composta pela sobreposição e superposição de elementos vinculados ao ofício, colocando, dessa maneira, o Habit de Vigneron num intermédio, visto que seu traje é composto por peças de fato de indumentária e outras criadas pela composição de diversos elementos. Podemos compreender que o ofício do Jardineiro tem maior relevância em relação as outras duas ocupações. O ofício e o responsável da jardinagem, tinham uma relação mais próxima com a “alta sociedade”, constatado pela presença de diversos indivíduos bem vestidos ao fundo da gravura, como sendo elemento importante para a profissão. O ofício do enólogo possui um destaque maior que o ofício do Agricultor devido a maior elaboração de seu traje.

Figura 2

Habit de Laboureur. Fonte: L’Armessin (1974).

Figura 3

Habit de Vigneron. Fonte: L’Armessin (1974).

Figura 4

Habit de Jardinier. Fonte: L’Armessin (1974).

BÉNÉZIT, Emmanuel. Dictionnaire des peintres, sculpteurs, dessinateurs et graveurs: tome troisième L-Z. Paris: Gründ, 1939. BOUCHER, François. História do vestuário no ocidente: das origens aos nossos dias. São Paulo: Cosac Naify, 2012. CUGY, Pascale. L’homme-livre et le médecin. Nouvelles de l’estampe, Paris, v. 244, p. 4-18, 2013. Disponível em: https:// journals.openedition.org/estampe/842. Acesso em: 3 mar. 2021. DIDEDOT; D’ALEMBERT. Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers: recueilli des meilleurs auteurs et particulièrement des dictionnaires anglois de Chambers, d’Harris, de Dyche, etc, par une société de gens de lettres. Paris: Briasson/David/Le Breton/Durand, 1751. HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Hedra/Unicamp, 2006. KAYSER, Wolfgang. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. São Paulo: Perspectiva. 2013. L’ARMESSIN, Nicolas II. Les costumes grotesques et les metiers: XVIIe siècle. Paris: Henri Veyrier, 1974. LAVER, James. A roupa e a moda: uma história concisa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. MALRAUX, André. O museu imaginário. Lisboa: 70, 1965. PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2017. PANOFSKY, Erwin. Sobre o problema da descrição e a interpretação do conteúdo de obras das artes plásticas. In: LINCHTENSTEIN, Jacqueline (org.). Descrição e interpretação. 1. ed. São Paulo: 34, 2005. p. 23-33. (A pintura: textos essenciais, 8)

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