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História natural?: A colonização do corpo brasileiro
by L. Hansen
Julia Furtado Zanon, j.furtadozanon@gmail.com www.lattes.cnpq.br/349417336702903
RESUMO Ao traçar um paralelo entre a produção da artista contemporânea brasileira Rosana Paulino e do pintor e desenhista francês Jean-Baptiste Debret o estudo propõe-se a observar como o problema histórico da representação dos negros na arte e na história brasileira elucida as relações sociais, econômicas e políticas contemporâneas vividas por essa população. Levantando questões sobre o lugar que foi imposto aos negros e à imagem dos seus respectivos corpos, tal qual são conhecidos historicamente as feridas são abertas para reflexão questionando o mito da democracia racial brasileira que vergonhosamente esconde as atrocidades de sua história através de uma postura passiva e intolerante.
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PALAVRAS-CHAVE Arte decolonial; História; Corpo; Identidade.
ABSTRACT By drawing a parallel between the production of the Brazilian contemporary artist Rosana Paulino and the French painter and draftsman Jean-Baptiste Debret, the study proposes to observe how the historical problem of the representation of black people in art and in Brazilian history elucidates social, economic relations and contemporary policies experienced by this population. Raising questions about the place that was imposed on black people and the image of their bodies, as they are historically known, the wounds are opened for reflection questioning the myth of Brazilian racial democracy that shamefully hides the atrocities of its history through a passive and intolerant posture.
KEY WORDS Decolonial art; History; Body; Identity.
Introdução
narrada. Os registros históricos documentais oficiais perpetuam uma história “dos vencedores”, ou seja, das classes dominantes que detinham poderes políticos, econômicos e sociais e a partir deles difundiram “a verdade” e seus supostos valores. Dessa forma, estabeleceu-se uma tradição que anula o ponto de vista dos oprimidos e os dissocia de sua verdadeira identidade. Após a Revolução Francesa e o aperfeiçoamento da técnica como fonte de progresso, o futuro passou a predominar no imaginário social como o lugar do conhecimento e evolução, fazendo com que nos desconectássemos do passado como parte intrínseca e vinculada à nossa história presente. Consequentemente, nos tornamos conformados com todo o horror vivenciado pelos dominados, interpretando-o como fruto de momentos ultrapassáveis e superáveis pela concepção linear do progresso, que lidera um caminho para a perfeição. Entretanto, para Benjamin (2005) só se poderia falar sobre progresso quando toda a humanidade estiver de posse de seu direito à felicidade e realização. Para tanto, seria necessária a redenção de todo o sofrimento já experienciado pelas sociedades, reconhecendo o passado – não narrado – e revelando a “história dos vencidos” para que se oportunize a possibilidade de se refazer a história cruzando ambas as narrativas. No Brasil, tanto a história quanto a identidade brasileira, foram construídas a partir do movimento colonizador português de exploração. A natureza, os nativos, o espaço e as relações foram violentamente condenados ao domínio e à tradição clássica europeia, que extirpou toda e qualquer subjetividade da vida e representação do que de fato foi encontrado nas terras brasileiras. Na tentativa de converter o “esquecimento” em lembrança, esse ensaio pretende comparar criticamente a produção de Debret, integrante da missão artística francesa no Brasil, com a produção da artista contemporânea Rosana Paulino, que se dedica a resgatar a memória ancestral dos povos negros no Brasil denunciando as estruturas racistas presentes na construção da história e identidade brasileira.
História Natural?
“A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi 265
justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história.” (KRENAK, 2019, p. 11)
Influenciado pela queda de Napoleão e pelo desejo da coroa portuguesa de construir de uma escola artística que pudesse trabalhar na elaboração das representações das terras brasileiras, Jean-Baptiste Debret (1768-1848) chega ao Brasil em 1816. Francês, pintor e desenhista, também exerceu a função de educador ao longo de sua vida, colaborando inclusive na criação da Academia Imperial de Belas Artes – a primeira do Brasil. Embora não fizesse parte da academia francesa, o artista possuía formação acadêmica neoclássica e humanista e no Brasil dedicou muitos anos à produção das imagens do povo brasileiro e de sua vida cotidiana. Seu trabalho foi registrar, catalogar, pesquisar e analisar os elementos da fauna, flora e habitantes do “Novo Mundo” (figura 1), para assim alimentar a curiosidade dos europeus sobre o exotismo das novas terras colonizadas. A partir de uma perspectiva científica, a elaboração dessas imagens contribuiu para os estudos genéticos e biológicos que sustentaram a teoria eugenista da supremacia branca caracterizando o povo brasileiro não-branco (indígenas e afrodescendentes) como seres intermediários – entre o homem e o animal – logo, inferiores biologicamente, fundamentando assim o discurso de dominação (figuras 2 e 3). Muitas imagens também foram feitas para retratar os costumes, a vida cotidiana, as hierarquias (o lugar social desses indivíduos e suas relações) e as vestimentas (figura 4), resultando no livro “Viagem pitoresca e histórica ao Brasil” de sua própria autoria. Percebe-se nas imagens uma riqueza enorme de detalhes mas também uma aproximação da anatomia humana às figuras clássicas, o que corrobora a influência do imaginário europeu imposto na construção da figura brasileira que era exportada para fora, e, associada à metáfora da selvageria pautou um discurso impregnado de preconceitos. Os corpos representados são sempre servis e estão em lugar de submissão e trabalho (figura 5). O empreendimento colonial argumentado pelo desenvolvimento científico do progresso e moral religioso (catequização) retira esses corpos de seu lugar de origem, os destitui de suas subjetividades e os transforma em objetos científicos, onde o sentido da escravidão e exploração ganha sua validação. 266
Nesse ponto, é mais uma vez importante citar Benjamin que, em suas teses (2005), afirma que é a partir desse passado que podemos identificar as semelhanças no agora e assim “explodir o continuum da história”, ou seja, inserir na mesma aquilo que não foi contado.
“Se na história da arte as imagens foram usadas para marcar uma posição de sujeição para o corpo negro, que seria mais músculo do que intelecto, então intervir nessas fotografias e alterar seus significados para mim tem um sentido de cura.” (PAULINO in ROSA, 2018)
E essa é a principal premissa da produção da contemporânea Rosana Paulino (1967-). De origem afrodescendente da periferia de São Paulo, a artista visual, pesquisadora e professora busca a partir da autorrepresentação e do uso de diversas referências pessoais elucidar o problema histórico da representação dos negros na arte e na história brasileira. O propósito de seus trabalhos está justamente no levantamento de questões sobre o lugar que foi imposto aos negros mas principalmente às mulheres negras, que hoje constituem a base da pirâmide social brasileira, segundo o IBGE (ROSA, 2018). Paulino se apropria então da imagem que simboliza os negros, tal qual os conhecemos, para reformulá-las e assim estabelecer novos sentidos. Duzentos anos depois da chegada de Debret ao Brasil, Rosana Paulino apresenta seu trabalho ¿História Natural?, que dialoga diretamente com a coletânea elaborada por Debret. Paulino se apropria do mesmo meio comunicativo – o livro – para dar voz aos silêncios de um mesmo momento. Na articulação entre papeis, tecidos, linoleogravura e costura nasce um arranjo delicado e minucioso mas que evoca uma violência bruta e angustiante sobre os corpos negros. Ele se estrutura quase como uma enciclopédia taxonômica, apresentando também fauna, flora e as “gentes” brasileiras. A presença dos negros no Brasil, se deu inicialmente pelo tráfico através do Atlântico, onde em condição de mercadoria, eles eram enviados da África em circunstâncias muito precárias para trabalhar sob um regime escravista. Vemos de início um crânio sob os seguintes inscritos: “O progresso das nações. A salvação das almas. O amor pela ciência.” (figura 6) Esses dizeres foram os argumentos utilizados pelos brancos para legitimar a teoria eugenista de inferioridade da raça negra. Os estudos a partir das representações criadas pelos artistas europeus de sua aparência, seus ossos, seu corpo “comprovavam” suas 267
desvantagens biológicas, genéticas e consequentemente intelectuais, reafirmando sua posição de subjugado. Fragmentos de texturas que representam os azulejos portugueses são distribuídos ao longo do livro nos lembrando a todo momento os responsáveis por essa barbárie. Percebe-se o interesse de Paulino pelas ciências refletido no próprio título do trabalho. História Natural questiona a exploração da natureza brasileira como um todo. Desde a fauna e a flora (figura 7) até os nativos, que foram objetos de domesticação mas sobreviveram e sobrevivem apesar do projeto genocida que os tenta excluir e dizimar. Os corpos negros (figura 8) apresentados por Paulino possuem sempre alguma intervenção. Ora sem rosto, ora sem olhar, ora somente uma silhueta – sem traços que nos permita identificar. O trabalho com essas rasuras mostra de forma muito certeira toda a invalidação sofrida por essa população. O silenciamento da fala, do olhar, do pensamento. O verdadeiro anonimato de todas as pessoas que perderam seus nomes, suas individualidades, suas vontades, sua origem: não passam de corpos objetificados, desumanizados. Dessa forma, Paulino invoca a humanidade de cada um desses corpos com a seguinte questão: quem habitava aquele corpo? Trazendo essa questão para os dias atuais, pode-se perceber como a colonização do corpo negro ainda se mantém. A presença nas periferias, nos complexos carcerários, a violência, a sexualização, o preconceito social são exemplos da hostilidade as quais esses mesmos corpos ainda precisam resistir. Por que aceitamos e continuamos reproduzindo esse mesmo discurso histórico? Paulino expõe essas feridas e deixa-as abertas para reflexão, questionando o mito da democracia racial brasileira que vergonhosamente esconde as atrocidades de sua história através de uma postura passiva e intolerante. Uma das principais técnicas utilizadas por ela nesse trabalho e em grande parte de sua produção foi a costura. Atividade muito relacionada ao trabalho feminino ela une diversos fragmentos – mapas cartográficos, o navio negreiro, os azulejos – aos corpos e suas representações alteradas no fio de uma nova história, remetendo à um machucado ainda não cicatrizado. Os tecidos são organizados de forma que em um momento escondem uma imagem e pela a nossa ação revelamos o que de fato ela deseja mostrar: o outro lado dessa história. Funciona quase como um chamado à uma tomada de posição: cabe a todos nós reconhecermos e desfiarmos esses fatos através de um novo olhar.
No momento em que recuperamos essa herança, coincidimos o presente com os momentos não narrados da história e a “história dos vencidos” se apresenta para ser contada. Para entender de fato as relações contemporâneas sociais, econômicas e políticas vividas pela população negra devemos resgatar esse passado para que assim possamos, como afirma Walter Mignolo, nos desconectar da matriz colonial de poder “onde não há espaço para a ideia abstrata de (história) universal.” (DIALLO, 2018)
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. Trad. J. M. Gagnebin e M. L. Müller. In: LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005. DEBRET, Jean-Baptiste. Têtes de Différentes Castes Sauvages Pl.28. 1835. Gravura, litografia em cores em papel, 51,4 x 33,4 cm. Disponível em: <https://artsandculture.google.com/asset/t%C3%AAtes-de-diff%C3%A9rentes-castes-sauvages-pl-28-jean-baptiste-debret/iwEnu6tzvj3ffQ> Acesso em: 05 abr. 2021. DEBRET, Jean-Baptiste. Différentes Nations Négres/Négres Cangueiros. 1835. Litografia, 47,1 x 32,3 cm. Disponível em: <https:// www.brasilianaiconografica.art.br/ obras/19602/negres-cangueiros> Acesso em 05 abr. 2021. DEBRET, Jean-Baptiste; FRÈRES, Thierry. Esclaves nègres, de diffèrentes nations. 1835. Litografia, 20,6 x 31,5 cm. Disponível em: <https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/17104/esclaves-negres-de-differentes-nations> Acesso em 05 abr. 2021. DEBRET, Jean-Baptiste; FRÈRES, Thierry. Une mulatresse allant passer les fetês de noel, a la campagne. 1839. Litografia, 27,6 x 24,6 cm. Disponível em: <https:// www.brasilianaiconografica.art.br/ obras/17454/une-mulatresse-allant-passer-les-fetes-de-noel-a-la-campagne> Acesso em 05 abr. 2021. DEBRET, Jean-Baptiste; MOTTE, Charles E. P. Vegétation des forêts vierges. 1834. Litografia, 31 x 49 cm. Disponível em: <https://artsandculture.google.com/asset/veg%C3%A9tation-des-for%C3%AAts-vierges/uQF6XpTVVNcm3w> Acesso em: 05 abr. 2021. DIALLO, Aïcha. Conversa com Walter Mignolo: “A estética/estesia decolonial tornou-se um conector transversal entre os continentes”. Contemporary and America Latina. Mar., 2018. Disponível em: <https:// amlatina.contemporaryand.com/pt/ editorial/argentine-semiotician-walter-mignolo/> Acesso em: 07 abr. 2021. FONSECA, Raphael. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, de Jean-Baptiste Debret, Jacques Leenhardt (prefácio). Artelogie [Online], 10 | 2017. Disponível em: <http://journals.openedition.org/artelogie/877> Acesso em: 05 abr. 2021. KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. PAULINO, Rosana. ¿História Natural?. Técnica mista sobre imagens transferidas sobre papel e tecido, linoleogravura, ponta seca e costura. Caixa: 31,5 x 42,5 x 33,5 cm. Livro: 29,5 x 39,5 cm. 2016. Disponível em: <http://www.rosanapaulino. com.br/blog/historia-natural/> Acesso em: 04 abr. 2021. ROSA, Victor. Conversa com Rosana Paulino: “O corpo é uma questão política.”. Contemporary and America Latina. Fev., 2018. Disponível em: <https://amlatina.contemporaryand.com/pt/editorial/researcher-and-artist-rosana-paulino/> Acesso em: 07 abr. 2021.