13 minute read

O lado mais obscuro das modernidades carnavalescas

Leonardo Augusto de Jesus, leojesus@eba.ufrj.br www.lattes.cnpq.br/7497028192517336

RESUMO Utilizando como método de investigação a matriz colonial de poder, reviso as modernidades carnavalescas, tema que já abordei sem considerar a lógica da colonialidade. Almejo a desobediência epistêmica capaz de transgredir as teorias já estabelecidas sobre o tema e desfocar o olhar colonial da academia para que esta não atue mais na colonização do conhecimento. Repenso os ecos da modernidade nos desfiles e reconfiguro o debate entre o tradicional e o moderno no mundo do samba para revelar a matriz colonial de poder como instrumento de controle dos corpos, dos saberes e do ethos coletivo das comunidades que originaram as Escolas de Samba.

Advertisement

PALAVRAS-CHAVE Modernidade; Escola de Samba; Decolonialidade.

ABSTRACT Using the colonial matrix of power as a method of investigation, I review the carnivalesque modernities, a topic that I have already addressed without considering the logic of coloniality. I aim for epistemic disobedience capable of transgressing the theories already established on the subject and blurring the colonial gaze of the academy so that it no longer acts in the colonization of knowledge. I rethink the echoes of modernity in the parades and reconfigure the debate between the traditional and the modern in the world of samba to reveal the colonial matrix of power as an instrument for controlling bodies, knowledge and the collective ethos of the communities that gave rise to the Samba Schools.

KEYWORDS Modernity; Samba school; Decoloniality.

Introdução

da modernidade no mundo do samba1, na identidade visual das agremiações e suas consequências relativamente à relação entre conceito e imagem nos desfiles. Após analisar a questão no artigo Modernidades carnavalescas – A redefinição da identidade visual das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (XVII Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura), aprofundei-me nos estudos decoloniais e percebi a necessidade de revê-la a partir da matriz colonial de poder. Afinal, modernidade∕colonialidade∕decolonialidade configuram uma tríade de relações de poder impossíveis de serem estudadas separadamente (MIGNOLO, 2017:13). O texto do referido artigo não pôde ser revisto após a sua submissão. Porém, na apresentação oral, ressalvei quanto à urgência de repensar criticamente as modernidades carnavalescas sob a ótica da colonialidade, a partir das experiências dos sujeitos que mais enfrentam as consequências nefastas da colonialidade no mundo do samba. Neste estudo, portanto, encaro as modernidades carnavalescas a partir do pensamento que negam e emprego a matriz colonial de poder como método de investigação para apresentar conclusões em perspectiva decolonial.

A modernidade nos desfiles

As Escolas de Samba se formaram entre os anos 1930 e 1950 a partir de continuidades sem qualquer ruptura paradigmática no carnaval do Rio de Janeiro. Os primeiros sambistas ocuparam-se com questões sociais e políticas latentes no ethos das suas comunidades. Situação que persistiu até 1960, marco da modernidade artística nas apresentações2 , quando Fernando Pamplona, cenógrafo e professor da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), desenvolveu o enredo Quilombo dos Palmares no Salgueiro, considerado revolucionário pela ruptura temática e estética que promoveu.

1 Expressão que denomina “um conjunto de manifestações sociais e culturais, emergentes nos contextos em que o samba predomina como forma de expressão musical, rítmica e coreográfica”, cujas instituições mais conhecidas são as escolas de samba (LEOPOLDI, 2010:61). 2 Vide JESUS, L. A. Modernidades carnavalescas – A redefinição da identidade visual das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Anais do XVII ENECULT, UFBA, p. 17, setembro/2021. 282

Pamplona rompeu com a tradição de desenvolver enredos segundo a historiografia oficial. Atribuiu ao negro o protagonismo no enredo; liderou uma revolução temática que conduziu à primazia do visual (CAVALCANTI, 1994) e fez com que fantasias e alegorias adquirissem maior relevância em detrimento dos aspectos rítimicos e coreográficos do samba. E, se por um lado, desenvolveram-se consideravelmente o caráter artístico e os aspectos visuais dos desfiles, por outro, substituíram-se gradativamente os artistas populares comunitários por membros da Academia e profissionais teatrais. Ademais, instituiu-se a construção da narrativa carnavalesca sob o regime representativo das artes, que relaciona o visível e o dizível pela lógica aristotélica da verossimilhança e da causalidade. Antes, não se dramatizava uma história ordenada em ações causais e sequenciais. Pamplona inaugurou a produção de imagens que representavam mimeticamente a fundamentação textual do enredo. Em outras palavras, fundou a adequação ao enredo – argumentação constante nas justificativas dos julgadores de fantasias e alegorias. Por fim, os desfiles absorveram encenações e coreografias e se aproximaram da mise-en-scène ocidental. Apenas constatar que a modernidade se instaura nos desfiles a partir de 1960 não responde todas as questões que permeiam o debate entre o tradicional e o moderno no mundo do samba. Cumpre analisar o evento sob a matriz colonial de poder para entender as problematizações dele decorrentes.

A colonialidade nas escolas de samba

A modernidade é uma narrativa europeia que idealiza a civilização ocidental e oculta a colonialidade, seu lado mais escuro, devendo ser assumida por suas glórias e por seus crimes (MIGNOLO, 2017:4). A matriz colonial de poder constitui uma estrutura de administração e controle instituída a partir da modernidade, utilizada para regular as relações entre europeus e os povos colonizados, sustentada em um fundamento racial e patriarcal do conhecimento (MIGNOLO, 2017:5). Pensar decolonialmente as modernidades carnavalescas importa um esforço de análise para reconhecê-las em seus aspectos positivos e negativos. Se a modernidade / colonialidade legitima a dispensabilidade de determinadas vidas humanas, consequentemente, irá autorizar o combate e o controle de suas produções culturais e artísticas. Assim, os embates entre tradição e modernidade no mundo do samba decorrem de conflitos oriundos do processo 283

colonial no Rio de Janeiro. Não há como promover o debate sem reconhecer a atuação da matriz colonial de poder como instrumento de controle de um patriarcado branco sobre as populações descendentes de escravizados. Tais embates foram mais evidentes no período de formação das Escolas de Samba. Após 1960, o debate entre tradição e modernidade supostamente se desloca da questão racial para as visualidades carnavalescas. Dentre os nós histórico-estruturais da matriz colonial, são relevantes para esta análise a imposição de hierarquias racial, religiosa, estética e epistemológica, que privilegiam pessoas europeias e cristãs, cujo conhecimento e produção artística são considerados superiores. O eurocentrismo compreende aqui uma questão epistemológica, pois estabelece regras para julgar e avaliar as expressões escritas e visuais no mundo colonizado (MIGNOLO, 2017:12). Com efeito, a partir da revolução liderada por Pamplona, as Escolas de Samba tomaram o academicismo como medida da produção visual e apagaram uma alteridade artística e epistêmica comunitária. Assim, o advento da modernidade nos desfiles apresenta um paradoxo. Antes de 1960, as agremiações esforçavam-se por manter a tradição e a autenticidade cultural de seus aspectos visuais. O projeto colonial era levado a cabo pelo Estado, que legitimava as apresentações para obter controle sobre os corpos dos descendentes de escravizados e suas comunidades, vistos como perigosos pela elite patriarcal branca. A matriz colonial determinava enredos sobre os “heróis” da historiografia oficial. Pamplona subverte esta regra ao homenagear um líder negro invisibilizado e introduzir visualidades relacionadas ao enredo, com referências gráficas de inspiração africana. Esteticamente, porém, impôs o academicismo artístico no mundo do samba. O processo de estetização instaurado apresenta problemas epistemológicos. Gradativamente, os desfiles tomaram a arte acadêmica como medida para o belo e o sublime, escolha que se refletiu na absorção de artistas oriundos da ENBA e reverberou no julgamento, que passou a valorizar o fazer artístico eurocêntrico, excluindo os artistas comunitários. Questão epistemológica, pois o fazer está associado ao saber: ao privilegiar as práticas acadêmicas, as Escolas de Samba desprezaram o saber não eurocêntrico de suas comunidades e relegaram a segundo plano o conhecimento artístico e cultural de pessoas cujas vidas são consideradas dispensáveis pela colonialidade. O olhar acadêmico de Pamplona revela o olhar colonial quando se compreende o papel das universidades na 284

acumulação de significados. A ENBA era moderna e colonial, como todas as universidades: “modernas porque eram os pilares da própria autodefinição da modernidade; e coloniais porque se tornaram uma instituição crucial para a colonialidade do conhecimento e do ser” (MIGNOLO, 2018:312). As inovações de Pamplona e seus discípulos sempre foram louvadas por suas glórias. Mas também precisam ser tomadas pelos aspectos negativos, como requer a perspectiva decolonial; a lógica da colonialidade não pode seguir oculta sob a retórica da modernidade. Há que se reconhecer a mordaça epistêmica que silenciou os saberes não eurocêntricos no mundo do samba. Diversos estudiosos já afirmaram que as Escolas de Samba abosrveram a estética da classe média carioca a partir dos anos 1960. Mas não apontaram o fato de que aqueles novos frequentadores dos ensaios e desfiles eram pessoas brancas. As questões epistemológicas decorrentes das modernidades carnavalescas não podem ser dissociadas da questão racial, pois “existe uma correlação estrita no mundo moderno colonial entre raça e epistemologia que se estende desde a cor dos seres humanos até sua suposta localização “original” no planeta” (MIGNOLO, 2018:321). A modernização dos desfiles consolidou a lógica da colonialidade ao delegar o controle da sua produção a artistas acadêmicos, em sua maioria homens brancos; mesmo os carnavalescos não brancos passaram a desenvolver espetáculos conforme o gosto de um patriarcado eurodescendente que se interessava por assistir aos desfiles. Situação que lamentavelmente persiste até a atualidade. No corpus de artistas que desenvolverão os desfiles do Grupo Especial em 2022, há apenas duas mulheres (brancas) e três homens não brancos.

Rumo à decolonialidade nas escolas de samba

Recentemente, os chamados enredos afro foram retomados a partir da perspectiva inaugurada em 2007 com o enredo Áfricas: do berço real à corte brasiliana, da Beija-flor de Nilópolis. O desfile apresentava as realezas pré-coloniais africanas para enaltecer a sua descendência presente nas comunidades do Rio de Janeiro. Compunha a comissão de carnaval da agremiação Alexandre Louzada, que em 2006, desenvolveu o enredo que considero o marco inaugural do pensamento decolonial nos desfiles. Soy 285

loco por ti, América: A Vila canta a latinidade desconstruía a idealização do europeu e valorizava o papel dos povos originários e africanos na construção identitária do continente. Verdadeiro giro decolonial em seus aspectos epistemológicos. O caminho decolonial foi trilhado por novos artistas do carnaval. Em História para ninar gente grande (Mangueira, 2019), Leandro Vieira convocou a reler a historiografia do Brasil e atribuiu protagonismo a negros, índios e mestiços em diversos fatos históricos do país. Tornou-se célebre a imagem da bandeira pátria em verde-e-rosa, com a inscrição Índios, negros e pobres, que foi transposta do Sambódromo para o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, feito que merece ser bastante comemorado. No entanto, alerto para os riscos da estetização e recolonização de tal objeto quando deslocado para a coleção de um museu. A sua simples exibição no MAM apaga o paradigma decolonial para integrar-lhe ao projeto colonial contra o qual se rebela e do qual ousou desvincular-se. Como enfatiza Mignolo, os museus são coloniais; o paradigma decolonial não dispõe de instituições (2018:320). Em que pesem os méritos de tais desfiles, não alcançaram a decolonialidade plena. Lograram realizar a desobediência epistêmica em seus aspectos textuais: não mais a historiografia oficial de heróis brancos nas sinopses; não mais pretos escravizados, mas Reis e Rainhas de uma África plural e diversa. Mas faltou-lhes a desobediência estética, a recusa do academicismo e do eurocentrismo como medida das imagens. Os carnavalescos oriundos da Academia inevitavelmente tem suas sensibilidades artísticas moldadas pela estética moderna/colonial europeia. O próprio Vieira é artista oriundo da EBA-UFRJ, sendo evidente a estética academicista em suas criações. Os poucos carnavalescos sem formação artística acadêmica acabam por inserir-se nos padrões estéticos modernos/coloniais, por força dos agentes homogeneizadores que atuam nas apresentações das Escolas de Samba. A plenitude de um projeto decolonial somente é alcançada quando se aprende a desaprender os princípios que justificam a acumulação de conhecimento eurocêntrico das universidades (MIGNOLO, 2018:310). Assim, impõe-se a produção de imagens em desobediência às categorias epistemológicas e artísticas eurocêntricas. Mas o caminho da descolonização nos desfiles já está aberto. Oxalá seja um processo contínuo, ainda que longo. Caberá aos carnavalescos aprenderem a desaprender o saber artístico, alcançar a total desobediência epistêmica e estética e romper formalmente com a Arte – aquela que exigiu a sua escritura com a maiúsculo para 286

Conclusão

O debate sobre a defesa dos aspectos tradicionais das Escolas de Samba do Rio de Janeiro não pode ser analisado apenas em seus aspectos estéticos, pois sofre a força da matriz colonial de poder e apresenta questões raciais e espistemológicas. Se o mundo do samba soube conciliar tradição e modernidade, também é verdade que as inovações que modernizaram o espetáculo atuaram na colonização e controle dos corpos e do conhecimento, mesmo que legitimadas pelos próprios sambistas. A incorporação de novos elementos pelas Escolas de Samba persiste até a atualidade. Os desfiles consistem em evento dinâmico no tempo e no espaço; as constantes redefinições visuais configuram estratégia para sua atualização e manutenção na cultura popular carioca e brasileira. Neste sentido, a revolução salgueirense inquestionavelmente teve repercussões extremamente positivas. Não pretendi aqui desmerecer o Quilombo de Pamplona, seus méritos e a relevância de sua equipe e discípulos para a história das Escolas de Samba. Mas há um lado escuro na modernidade; cabe rever o passado para alertar sobre os aspectos negativos decorrentes da colonialidade, que se instaurou definitivamente no mundo do samba a partir dos anos 1960. Assim como o conhecimento ocidental foi fundamental para a modernização do mundo não ocidental, a adoção de uma estética moldada conforme a arte europeia foi fundamental para a colonização das Escolas de Samba. Por um lado, Pamplona tomou a história a contrapelo para desenvolver enredos com temáticas africanas; por outro o fez segundo o regime representativo, inseriu uma espetacularidade teatral nos desfiles e atendeu ao gosto da elite (branca) carioca. Ademais, a adoção de uma estética academicizada para as visualidades carnavalescas o colocou diante de um paradoxo que pode ser entendido como uma crítica eurocêntrica ao eurocentrismo: à ruptura com a historiografia branca associou imagens formalmente eurocêntricas. O pleito por um pensamento decolonial nas Escolas de Samba não pretende anular a modernidade nem qualquer outra epistemologia e estilos artísticos presentes nos desfiles. 287

A decolonialidade não reivindica tornar-se um pensamento universal, mas ser reconhecida na pluriversalidade; coexistir igualitariamente com todas as demais opções, inclusive com a modernidade. Retorno a Mignolo para recusar, não as modernidades carnavalescas, mas a obrigação de ser moderno no carnaval para ser legitimado artisticamente pelo público e pela crítica especializada: “não há nenhuma necessidade de ser moderno. Ou melhor, é urgente desprender-se do devaneio segundo o qual se está fora da história se não se é moderno” (2017:35). Reconhecido o lado mais obscuro das modernidades carnavalescas, há que se avançar na superação da colonialidade do saber, do ser e do fazer artístico no mundo do samba. Não reivindico rejeitar a modernidade nas Escolas de Samba, mas repensar e observar criticamente os seus desdobramentos na manifestação. Desafio a ser encarado pelos pesquisadores e pelos artistas de carnaval. Estes já caminham em direção a uma revisão decolonial de suas obras. A passos lentos, mas caminham... No entanto, a maioria dos estudos sobre as Escolas de Samba ainda não são realizados segundo uma perspectiva decolonial. Impõe-se, portanto, a nós, pesquisadores do carnaval carioca, agir e pensar decolonialmente, em nome de todas as experiências de vida, memórias e categorias epistemológicas e de pensamento silenciadas pelas modernidades carnavalescas.

CAVALCANTI, M. L. V. C. Carnaval Carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994. GUIMARÃES, H. M. Carnavalesco, o profissional que “faz escola” no carnaval carioca. Rio de Janeiro, UFRJ, EBA, 1992. JESUS, L. A. Modernidades carnavalescas – A redefinição da identidade visual das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Anais do XVII ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, UFBA, p. 17, setembro/2021. LEOPOLDI, J. S. Escola de samba, ritual e sociedade. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2010. MIGNOLO, W. D. Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. RBCS, Vol. 32, nº 94, junho/2017. _______. Museus no horizonte colonial da modernidade. Garimpando o museu (1992) de Fred Wilson. Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília, Museologia e Interdisciplinaridade, vol. 7, nº 13, jan./jun. 2018. _______. Desafios decoloniais hoje. Epistemologias do Sul, Foz do Iguaçu/PR,1(1), pp. 12-32, 2017. RANCIÈRE, J. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

This article is from: