RAMÓN FERNÁNDEZ-LARREA
TODOS OS CÉUS DO CÉU POESIA VI Prémio Internacional de Poesia Gastón Baquero
HEBEL
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Ramón Fernández-Larrea TODOS OS CÉUS DO CÉU POESIA HEBEL
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RAMÓN FERNÁNDEZ-LARREA
TODOS OS CÉUS DO CÉU POESIA VI Prémio Internacional de Poesia Gastón Baquero Tradução de Maria do Sameiro Barroso
HEBEL ediciones
Bajo Cuerda | Poesía 5
Decisão do VI Prémio Internacional de Poesia “Gastón Baquero” 2014: Um júri, composto por Jaime Siles (Espanha), Alfredo Pérez de Alencart (Perú), Pedro Shimose (Bolívia) e Pío Serrano (Cuba), entre os 184 livros recebidos da América Latina e Espanha, decidiu, por unanimidade, atribuir o Prémio à obra apresentada com o título Todos los cielos del cielo (Todos os céus do céu), cujo autor se revelou ser o escritor cubano Ramón Fernández Larrea. Ao atribuir o Prémio, o Júri valorizou o uso conseguido de uma linguagem simultaneamente inovadora e herdeira da rica tradição hispânica; o tratamento original da sua temática variada que vai desde a exploração íntima das angústias e do desamparo do homem contemporâneo até um olhar onde a ironia e o humor se harmomizam com o calor da ternura. Salamanca, 15 de Outubro de 2014.
TODOS OS CÉUS DO CÉU | POESIA © Ramón Fernández-Larrea, 2015. Tradução de Maria do Sameiro Barroso. © HEBEL Ediciones Coleção Bajo Cuerda | Poesía Santiago de Chile, 2015. Concepção y Colllage: Luis Cruz-Villalobos. www.benditapoesia.webs.com Qué es HEBEL. Es un sello editorial sin fines de lucro. Término hebreo que denota lo efímero, lo vano, lo pasajero, soplo leve que parte veloz. Así, este sello quiere ser un gesto de frágil permanencia de las palabras, en ediciones siempre preliminares, que se lanzan por el espacio y tiempo para hacer bien o simplemente para inquietar la vida, que siempre está en permanente devenir, en especial la de este "humus que mira el cielo".
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Para Madalena, sempre na minha respiração.
A Eliseo Alberto Diego, Lichi, Nidia Fajardo, Santiaguito Feliú... os meus vivos que já cá não estão
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Trazei, trazei Coisas concretas Como um cavalo ardendo. Charles Bukowski
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Blues da vida diária
estou tão cansado de falar devia administrar o meu oxigénio porque mo vão roubar amanhã estou cansado de sonhar é um desgaste em cada noite pôr os mesmos animais a despenhar-se e a rugir há sempre amanhecer em meu sonho e tenho que limpar o sangue antes que cheguem e me acusem estou cansado de escrever não resolvo nada com letras vejam o que se passa com a palavra amor todos lhe fazem buracos e com outras palavras belas violam-nas prendem-nas 9
batem-lhes duramente num olho partem os dentes Ă palavra amor vi-a ontem e parecia que escapava a uma serpente gorda o mesmo se passou com a palavra irmĂŁo cheirava como se a estivessem a afogar fiz-lhe jantares olhei-a de soslaio e a palavra fritava-se navegava nas tripas da noite fundia-se num olho com o inimigo e a palavra palpitava era uma menina com pestanas que os avĂłs lhe queimavam e a palavra destripada andava com sexo no ar de bar em bar de porta em porta estendendo a mĂŁo suja onde cabiam dez dedos ou um estou cansado de cuspir de ter rosto o mesmo rosto
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seria bom que a noite durasse muito mais que uma noite o melhor seria perder-me caminhando sobre ela amaldiçoando a distância pedindo ajuda às estrelas já não para foder para chamar a atenção só para me fazer de morto.
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A vida secreta dos golfinhos
assim devem ser os cemitérios marinhos com uma paz profunda e o coração de água olhos de água olhares líquidos e aflitos que atravessam a luz da água em todas as direcções estou morto assim há muitos anos a minha candura na água a minha anca fundida com as minhas mãos trémulas entre pedras e lodo entre as algas que acariciam os peixes que não chegam nunca a lugar nenhum apenas os golfinhos me salvam jogam com as minhas palavras líquidas no fundo de tanta escuridão trazem-me o brilho do sol longínquo até ao abismo de água só visitam a minha penumbra os golfinhos brilhantes que nunca estão quietos nem sequer na morte isso me ensinam a continuar a caminhar com os olhos fechados 12
líquidos sem memória só me lembro dos gofinhos focinho no fundo e logo focinho ao sol para aquele que não tem sequer nome e depois um salto uma pirueta sem recordações sem dia para regressar sem um dia marcado nas suas frontes uma penumbra uma centelha um impulso na víscera o tremor num lugar longínquo dos seus corpos um desejo um mandato um arco-íris no fundo de tudo o que é profundo assim devem ser os cemitérios marinhos com uma paz profunda e nada então nada apenas um peixe de silêncio que se atravessa.
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O jogo humano
é a vida meu amigo quem me afoga e mutila é a vida com todas as suas árvores negras os seus cheiros a morango derretido as suas gaivotas caindo em voo picado sobre a prata dos peixes a lagarta que se arrasta pela vida acima gritando um grande silêncio é só tristemente a vida meu amigo.
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O Outono a teus pĂŠs
nĂŁo sou o mesmo desde que morreu romy schneider vivi os Ăşltimos anos como se saltasse de cadafalso em cadafalso e para o topo vivia num regime que me queria feliz a toda a hora e que exigia que partilhasse com todos a minha tristeza o meu amor desenfreado os fortalecidos 15
músculos do meu coração a minha excelente ocultação da mágoa a minha profunda necessidade de romy schneider por sorte tu apareceste e a vida tornou-se um pouco mais suave mais ligeira, mais simples uma vida na ponta dos dedos para esquecer os lábios de romy schneider e os seus olhos oblíquos que jamais serão meus por sorte oferecias-me uma vida contigo que eras tu toda tu 16
mais tumultuosa mais serena uma vida na ponta do coração como o amanhecer de um fantasma.
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Se existissem anjos
aquele gato baghera com as suas patas de vidro que cruzava a noite em silêncio trazia-me a sombra de rudyard kipling ao menino mowgli que os macacos baloo criaram tão divertidos como um urso aquela janela da minha casa com uma luz tremenda à hora dos anjos onde william blake assomava quando lia machado em voz alta aqueles olhos que tiveste nua e transparente ameaçando-me com todos os esquecimentos com torrões de ódio ao pequeno-almoço lembravam-me a fúria do mar sobre cada corsário de salgari foste todos os anjos e a luz da janela tremenda e o meu gato baghera trepando
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aos barrotes do céu. levando kipling no olhar vazio e o jardim triste onde acreditei enterrar a minha boca que já não falava as minhas mãos que já não tremiam o meu rosto que os caranguejos comiam pouco a pouco os pequenos caranguejos dessa ilha longínqua que foi um dia o meu coração.
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Entardecer na espádua de um urso
não há tempo para o amor não há tempo para a fúria já não há tempo no tempo tudo se limita a dizer olá a ficar dentro de ti e passar continuar a correr entre o incêndio do bosque já não há tempo para a verdade não há tempo para as pequenas coisas que eram respirar tocarmo-nos ver o céu quase não há tempo para a morte mas isso pouca gente sabe.
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Cavalinho de pau
gira aproxima-se gira e fecha os olhos gira louco como gira a própria vida logo se afasta logo se apeia de si mesmo tal como os bêbedos e as parturientes e os que matam e se matam por dentro os soldados e as putas os carrascos e as suas sombras o cavalinho de madeira girando que uma criança engoliu que já não relincha que sonha no estertor de um louco debaixo da água.
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Rengo o macaco
a poesia em seu ninho fica onde estás quietinha não vás cair a poesia em seu cultivo bactéria que se divide ela mesma em dois em três em mais de cinco em nenhum pedaço em todos a poesia em seu colchão querendo dizer algo mas falta-lhe o oxigénio emagrecida nas últimas 22
não passa de amanhã diz o médico a poesia em seu sémen fervendo espessa avança para o teu grito a poesia colmeia mal queimada edifício que cai páramo na neblina onde me afogo sempre que se fecha esta porta por onde fogem os meus maldizendo.
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Domingo de Dezembro meio-dia
passaram três carrascos sob a lua negra vamos compadre beber outro copo um está preso nesta altura até os caçadores nos fazem emboscadas em cada lado deste desfiladeiro é fácil não ter língua nem lábios é fácil esburacar a casca de um vizinho e depois incendiar-lhe os filhos e o abdómen da sua mulher diante dos outros é fácil manchar os dentes com uma palavra com uma mentira deixar que alguém os destrua com o punho 24
é fácil aguentar as pálpebras gretadas por uma recordação que se repete e se repete como na tela de um cinema em ruínas onde o projectador louco com uma fita interminável estreia em cada noite a mesma fita para sofrer a punhalada inocente do amor a invasão de todos os rancores a exposição ao ressentimento não morras perto do mar ou da noite não morras nunca sob a chuva do Inverno não morras nunca antes de morrer se o coração há-de cegar um dia coração que não vê olho que já não sente.
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A saudade que resta
ele está só até que de uma estrela se desprende um cabelo um aroma um corpo de mulher um esquecimento na água um sofrimento ele está só sempre até que sonha que chegaram os náufragos à luz da lua ele está só sempre até que sonha.
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A cor do pássaro que morre
que atravessa a noite que vai morrer só na escuridão mas antes canta deixa-te uma canção que jamais vais esquecer porque ele sabe que vai morrer se não o escutares e também se não o ouvires mas a tua memória será a única cor que terá para continuar 27
a voar sempre em todas as tuas vidas.
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Pré-história
deus fez o mundo em sete dias ao oitavo a minha mãe pariu-me sussurrou-me avança filho cuidado com a evolução comecei a andar sobre a terra sobre o gelo vi alguns macacos converterem-se em homenzinhos outros continuaram a ser macacos darwin olhava sorridente e além na ponta sigmund freud 29
mais sorridente ainda atravessei as paredes do tempo e cheguei ao teu paĂs sempre com estes olhos bem abertos e sentei-me Ă espera porque existias para mim somente para que eu fosse um homem completo sentei-me para Ă espera que nascesses.
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A esperança do náufrago
no início do mundo tu não existias e eu tenho estado todo este tempo à tua espera.
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O grito
levantou o seu dedo o seu dedo grande sobre a sujeira e a insolência o seu dedo inchado aquelo dedo que nunca se metera à força na alma de nada nem sequer no seu próprio coração levantou o dedo com um olho na ponta e apontou gritando com a sua unha podre as causas da dor e do fogo e de toda a argila do esquecimento pôs um dedo o seu grande dedo na têmpora a esquerda ou a direita segundo se olha
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porque ele tinha à frente a mesma angústia que as espáduas uma raiva profunda contra o sol contra a beira-mar contra os formosos jardins contra os pelotões de fusilamento e de outros contra o mel e os seus venenos contra o silêncio e as medalhas contra o pólen e as cartas de amor contra as ordens de demissão contra o riso contra o vento contra as mães que põem à janela um púcaro com flores contra a sede contra o amanhecer contra o grito desumano da cotovia contra si mesmo e contra aquele dedo tão sujo tão imenso o seu dedo que não sabia outra coisa senão apontar e apontar por cima da unha imunda por cima da sua cartilagem e da sua fome por cima do horizonte e das abelhas por cima do homem dos homens que têm dedos semelhantes e que os fundem na alma de outros 33
e do mesmo que ficou sem dentes sem palavras sem uma almofada de areia na praia levantou o dedo o seu grande dedo profundo serenamente contra a pele do cr창nio e a tampa dos sonhos voou.
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Os olhos em alvo
cada vez que você se afasta nos momentos em que não sinto a sua respiração nem o seu riso nem sequer os seus pesadelos desato a chorar começo a sofrer como fazem os loucos como fazem os lobos caídos na fenda da noite cada vez que o seu fantasma desaparece nos momentos em que não existe a sua sombra sobre os meus ossos desato a enraivecer desato a rasgar coisas como se o mundo me tivesse tirado de novo cartas viciadas como se a scotland yard o fbi e a polícia montada do canadá me perseguissem numa auto-estrada como se a minha garganta tivesse engolido ácido e um dos homens que vivem dentro de mim tivesse decidido nesse dia não mais abrir os olhos. 35
Coisas que os outros podem fazer e eu não
viver por exemplo todos de uma forma ou outra vivem guardam os seus sonhos a roupa do Inverno vai-se aproximando da janela a pessoa que se espera há muito tempo ou sempre por exemplo alegram-se quando a chuva cai dizem que bençãos abrem as suas bocas como se fossem 36
os lábios da terra por exemplo fecham os olhos e surgem quando eram crianças e não cheiravam como eu agora catástrofes lágrimas queimadas e empurrões desnudam-se por exemplo deixam-se desnudar e não sangram por essa fresta obstinada e obscura que se chama memória suam brindam florescem dormem conversam voam sem ruído de fantasmas sem essa bruma espessa que levo a todo o lado como se ter nascido tivesse sido um pacto não sei com que consórcios com o laboratório dos diabos
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penteiam-se por exemplo e continuam tranquilos apesar da brisa das suas recordações logo se mentem se telefonam comem até morrer crescem gritam ou falam em voz baixa e até parecem vivos nada os tira da festa nada lhes diz que não chorem nada os mata esquecendo-os.
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All that remains (Tudo o que resta)
nada é mais rude do que a morte deixa sempre uma palavra a meio um olhar interrompido um ódio cravado bem fundo um verbo rasgado na sargeta uma mão no ar um cabelo que não vai esvoaçar em parte alguma um assombro caído na água uma saliva contra as rochas uma penumbra que nos apunhala a morte como alívio a morte como uma mulher de olhos verdes a morte como já não posso mais a morte que me beija e alarga os meus caminhos a morte afasta-te a morte sobre todos os meus céus a morte que vais estranhar a morte como vingança turva a morte como cão que corrói os olhos que tive até hoje com todas as suas secreções.
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Mundo redondo
toda a gente sabe viver toda a gente sabe matar toda a gente sabe como fazer as coisas como acelerar ou tornar ou tornar o dia mais lento como beijar de cima a baixo a pele de uma mulher a pele de um urso a pele do precipício ou da tarde tudo está em saber escolher entre a multidão e tu entre o governo e eu entre a polícia e um gelado de chocolate entre os exércitos e a tua boca entre um verdugo e a luz dos teus seios entre a corda ou o peixe que pede ajuda toda agente sabe casar-se e prosperar 40
toda a gente sabe amansar um búfalo todas a gente sabe sair da água sem feridas tudo está em não se equivocar entre a poesia e eu entre a morte e tu entre os teus dentes e o porvir não tens porque viver no meu mundo nem eu que habitar o teu são dois mundos diferentes e isso é bom desfilam muito perto gostam um do outro trocam as suas luzes tornam-se respiráveis vão até ao mesmo lugar o meu mundo e o teu tudo está em saber que céu se quer e que o teu mundo perdure junto ao meu mundo e haja noites tranquilas em ambos e que nunca se extingam nem os invada o medo porque se um dia o teu mundo acabasse viveria o resto do tempo olhando o céu como um idiota
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e sei que moverias cĂŠu e terra se um dia o meu mundo nĂŁo aparecesse no horizonte.
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La joie de vivre
cada vez que acordo deus toca uma campainha os olhinhos de deus brilham vendo como me levanto da cama e vou arrastando a minha alma vim para sofrer era o seu objectivo disse mas o sofrimento provocou-me tanto riso que decidi tomar a vida por minha conta sem dúvida algo anda mal algo anda muito mal o céu escurece quando tusso quando maldigo os pés de deus sobre este mundo os pés de deus sobre o meu pescoço os imensos pés de deus metidos no útero deste mundo que cada dia se afasta mais de mim algo anda mal algo anda muito mal algo anda mal demais na cimeira vaporosa da alegria apenas recordo os meus mortos nenhuma cor nenhuma nuvem 43
apenas os meus mortos esperando que regressemos ao ponto de partida a qualquer ponto que voltemos a ser algo.
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Epitáfio A Santiago Feliú, noutras dimensões
na idade da abelha tinha três torres de melancolia nuvens aquele domingo derramando assobios trinados filhos pulsos como um buraquinho na terra cantou gritou soltou vida e vida a vida com todas as suas úveas dobradas e cada vez que abria os olhos era vida o que escorria pelos seus interiores pelas suas crinas verdes pelas suas luas distintas por buenos aires ou havana por entre o vinho e as guitarras suaves era vida na ponta fendida da morte e vida que não rodava silenciosa eram brilhos de vida os seus dentes no fim de um abraço e na sua palavra encravada
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mas depois havia como que um duplicação de cães um cheiro a casa em plena rua o andar tropeçando ao seu lado hoje a assassina chegou antes de todos fechou-lhe as suas gavetas as suas músicas os seus céus a palavra partida os seus furacões na sobrancelha mas na mesma morte contudo ele cantava e gritava e pedaços de vida brilhavam apesar de tudo não há buraco no planeta onde o possa ocultar.
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Assombro
escolhe um sonho escolhe uma obsessão escolhe não morrer enquanto caem as folhas daquele rosal do fundo desamparadas e húmidas diz-lhes que viverás apesar dos ventos escolhe um amor antigo um contrabando de pequenos esquecimentos que surgem escolhe uma missão na manhã uma missão ao crepúsculo uma batalha na noite serena escolhe tu um caminho uma sombra que ascenda com a sua estrela e suba pelos ramos do esquecimento como se não fosses morrer como se o céu e o teu interior tivessem ambos um deus merda de riso. 47
Buraco chamado nevermore Para Leopoldo María Panero
vejamos quantos fantasmas sempre transportei no sangue artéria acima artéria abaixo à noite de manhã em cada momento espumoso em que a bruma se interpôs às cores agora vejamos o que lhes tiram de todos os corpos se o bisturi consegue fazer brotar as suas raízes já frio nessa planície que se parece com a palavra nunca com a palavra sempre com todas as palavras vejamos como se extraem os sonhos do seu esófago e as bolinhas que faz a coca cola rodando momento a momento na escuridão do seu planeta libertado por fim do seu país cheio de grades ferrolhos horários e pastilhas redondas
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que espantavam os cĂŁes assustados que o iam ferir minuto a minuto vejamos quantos delĂrios se escapam tristes nessa fenda onde se matou para sempre a sombra.
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Celebração da alegria
sempre quis usar esta palavra soa bem é musical redonda celebração sai redonda dos lábios é só isso uma palavra que estremece não há motivos para glorificar a alegria velhos asnos azuis devoram-me a alegria do homem é um estiramento animal passe pela cabeça ou não é a glória do lobo satisfeito que atravessa a escuridão com o seu focinho 50
a alegria do homem tem sempre outro perdedor para lá na ponta um insecto que chora a sua orfandade um que rolou pelo abismo mas sempre quis utilizar a palavra celebração vem elegantemente embalada viaja com incenso com o seu antigo perfume de lobo que não esmaga a lua.
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La donna à mobile
tens os lábios de grace kelly e a inteligência de um secretário municipal do partido ao amanhecer lembras-me a bambi que procura desesperadamente a sua mãe a cabeça que contém o corpo nunca é tão rápida como a luz o estalido da memória pode deslocar para outro ponto da alma outras desolações. o teu amor está muito bem o horror que está em mim no centro da cabeça que viajou por outra latitude destas vidas por todos os céus do céu é uma perda uma espécie de lágrima viva que começa a crescer por debaixo das unhas.
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Esopo era um tolo
vive num país onde misturam o amor com o sangue outros misturam-no sempre com o sangue amanhece num país onde outros decidiram que cor há-de ter a luz que bordas o mar que dimensões a ilusão que rosto o sexo e quanto o cheiro para o lençol vive num país onde o ontem se transforma o transformam em contos incríveis que confundem as crianças onde não haverá mais princesas e dragões ou onde o dragão é por sua vez outro país caminha num país onde o horizonte te esmaga te cai em cima em cada tarde o horizonte se ri dos teus dentes e uiva para que te sintas mais rodeado por sombras estranhas dorme num país que nada sabe amanhã do que terá para ti 53
nem sequer que tipo de manhã há-de ter que animal atravessará as tuas portas movendo as presas vive num país onde misturam o sonho com o sangue outros amassam-no com sangue e medo e contos de caminho e fotografias dos que não chegaram porque foram atraiçoados abre a porta e o ar não entra a não ser um vento o vento da história que já não tem lábios nem olhos vive num país onde a porta tem sangue.
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Galgo apura donzel e fica ferido
os que têm sede que bebam deste verso que o apurem até às suas últimas consequências até às mais venenosas consequências se tiverem fome que o cozinhem e o comam mastiguem bem os seus bocadinhos as mulheres nuas que se cubram com ele embora seja pequeno triste e que não alcance para a sede a fome a nudez mundial este verso flameja segrega levanta-se por si mesmo da cama 55
pôe-se nas pontas dos pés para ver o horizonte e outros acontecimentos este verso cozinha esculpe insulta olha a vizinha por um buraco espera-a em todas as varandas para não lhe dizer nada para tentar respirá-la este verso arrasta-se rola pelo caminho abaixo pára numa esquina a ensinar os seus muslitos este verso funde-se tira a máscara de oxigénio a máscara submarina todas as máscaras nele se montam góngora e vallejo gelman roque toño cisneros angelito escobar caindo no vazio eliacer lazo ardendo no seu cigarro borges tocando nas paredes miguel tosiendo na voz de serrat raúl hernandez novás cheio de sangue
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este verso não serve não dá a hora não ressuscita quem quer não ilumina para que uma criança veja no seu buraco este verso afoga-se consome-se tontamente pulsinanimemente falando da serragem que fica do amor este verso poderia alcançar algo ser útil a alguém que o ponha debaixo da pata de uma mesa e consegui assim o equilíbrio do mundo a luz do mundo a alegria do mundo o silêncio do mundo pode arder por um minuto enquanto desapareço sem nome já sem rosto sem este verso para navegar pelo rápido rio da morte. 57
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INDICE Blues da vida diária A vida secreta dos golfinhos O jogo humano O Outono a teus pés Se existissem anjos Entardecer na espádua de um urso Cavalinho de pau Rengo o macaco Domingo de Dezembro meio-dia A saudade que resta A cor do pássaro que morre Pré-história A esperança do náufrago O grito Os olhos em alvo Coisas que os outros podem fazer e eu não Al that remains (Tudo o que fica) Mundo redondo A alegria de viver Epitáfio Assombro Buraco chamado nevermore Apologia da alegria La donna è mobile Esopo era um tolo Galgo apura donzel e fica ferido
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9 12 14 15 18 20 21 22 24 25 26 28 31 32 35 36 39 40 43 45 47 48 50 52 53 55
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Ramón Fernández-Larrea (Bayamo, 1958). Ha publicado, entre otros, los poemarios: El pasado del cielo, Poemas para ponerse en la cabeza, El libro de los salmos feroces, Terneros que nunca mueran de rodillas, Cantar del tigre ciego y Yo no bailo con Juana. Su último libro es Todos los cielos del cielo (Verbum, 2015), por el que obtuvo el VI Premio Internacional de Poesía Gastón Baquero, fallado en Salamanca durante el XVII Encuentro de Poetas Iberoamericanos. También tiene publicadas las antologías personales Nunca canté en Broadway y Si yo me llamase Raimundo. Ha residido en Tenerife, Islas Canarias, Barcelona y Miami 64 Beach (USA).