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Os rios e a urbanização
É o rio que permeia por seu caminho a fertilidade de vastas áreas de terra e que fornece água para o consumo vegetal e animal – neste último inclui-se o consumo humano. Nesse sentido, é relevante citar as proporções de água doce em escala global – 97% são de água salgada e, apenas 3% de água doce. No entanto, apenas 1% de toda a água do mundo é doce e superficial, sendo ainda uma parcela congelada. Dessa maneira, rios, lagoas, represas e outras concentrações de água são essenciais em seu estado de preservação para que seja possível a subsistência de milhares de espécies.
Não é por acaso que ao longo da história, uma série de civilizações tenham se desenvolvido ao longo ou próximas aos cursos hídricos. Na mesma medida, a necessidade de evitar grandes inundações e propiciar a evolução dos meios urbanos ocasionou leis e medidas que suscitassem tais fins.
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No imaginário coletivo, figuram predominantemente associados aos mananciais, porém apresentam propriedades outras, como demarcadores de território, produtores de alimentos, corredores de circulação de pessoas e de produtos comerciais e industriais, corredores de fauna e flora, geradores de energia, espaços livres públicos de convívio e lazer, marcos referenciais de caráter turístico e elementos determinantes de feições geomorfológicas. (GORSKI, 2010 , p.31)
O Egito, com o rio Nilo e a antiga Mesopotâmia (meso + potamea = entre rios; atual região do Iraque), através dos rios Tigre e Eufrates constituem as chamadas “civilizações hidráulicas”. O desenvolvimento socioeconômico de ambas foi intrinsecamente ligado ao domínio de técnicas para proveito dos rios; lembrando que as duas regiões possuem climas com longos períodos de estiagem. Historicamente, foi também nessas civilizações em que se deu início à utilização de jardins de ornamentação e contemplação (ao exemplo do escalonamento dos zigurates babilônicos).
Fig. 3 - Mapa do Egito e suas principais cidades ao longo do Nilo.(Disponível em: <http://historiavivananet.blogspot.com.br/>. Acesso em: 15 ago 2012)
Fig. 4 - Mapa da Antiga Mesopotâmia - rios Tigre e Eufrates em azul ao centro da imagem. (Disponível em: <http://www.mesopotamia.co.uk/ geography/explore/exp_set.html>. Acesso em: 15 ago. 2012)
2.3. Evolução urbana às margens dos rios no Brasil
Muitas cidades brasileiras cresceram ao longo de seus rios, algumas de maneira semelhante, já que no início do desenvolvimento no país, os rios mostravam-se diferenciais – controlavam o território, forneciam alimento, poderiam ser utilizados para o transporte de pessoas e bens, já era uma fonte de energia e era também um local para o lazer. (COSTA, 2006).
Ao longo dos anos, com o crescimento desenfreado de diversos núcleos urbanos brasileiros, surtiu necessidade de ampliar cada vez mais o sistema viário e sanar questões de drenagem urbana, alterando o rumo do tratamento das áreas ribeirinhas. Dessa forma, muitos dos rios urbanos encontram-se hoje no esquecimento, canalizados sob as ruas e muitas vezes não sendo nem possível saber de sua existência. Quando muito, cruzamos com os rios retificados na superfície, em grande parte das vezes, associados ao sistema viário e não em sua qualidade de rio.
A partir do desenvolvimento dessas culturas, adotaram-se também mecanismos de armazenamento de águas pluviais para usos públicos e domésticos. Saunas, cisternas, banheiras públicas e uma rede de água com sistemas primários para filtração e limpeza fizeram parte do aprimoramento urbano e tratamento da água na era clássica. A primeira desconexão notável entre o ser humano e a água se deu na Idade Média, quando a busca por outros elementos essenciais, como o fogo, tornou-se essencial.
Com o aumento populacional e a necessidade de sanear as cidades, a solução encontrada em muitos locais foi escoar o esgoto por córregos, rios e riachos: as margens tornaram-se locais insalubres, indesejados por parte da população. No entanto, estes locais passaram a ser ocupados por habitações irregulares, agravando a situação das bordas – tornou-se, além de ambiental, um problema social.
Fig. 5 e 6 - Imagens do Rio Capibaribe, em Recife. A primeira, uma pintura de Mauro Mota, de 1952 (Disponível em: http://basilio.fundaj.gov. br/). Já a segunda, um trecho das margens do mesmo rio em 2009 (Disponível em: <http://blogdoisead.blogspot.com.br/>. Acesso em: 15 ago. 2012).
Assim como Recife, diversas cidades brasileiras enfrentam situações como essas. Para o entendimento de como essas questões aconteceram e acontecem em meio às cidades brasileiras, será apresentado mais adiante o estudo do município de São Paulo, que embora seja em alguns aspectos singular, é também um importante exemplo da evolução com que rios e áreas ribeirinhas foram tratados ao longo do desenvolvimento urbano de cidades brasileiras.
2.4. Os rios urbanos no século XXI
O rio é uma referência de lugar e de espaço, integra a identidade de um povo. Quando ele está perdido, como no nosso caso, é uma ausência importante [...] Há quem cruze o Tietê quatro vezes ao dia sem se dar conta. (SEABRA apud GORSKI, 2010)
Além dessas questões, o que se percebe hoje é a importância do rio como um corredor biológico – de fauna e flora; também nota-se que o rio é um espaço público que pode abranger atividades coletivas de uma determinada cidade. (COSTA, 2006)
Entretanto, ainda que as questões acima sejam pertinentes, o que se observa é uma ocupação predatória do rio e de suas margens. Comumente as habitações nessas áreas são irregulares e mostram-se em condições precárias. Há também a questão de que, por conta do desenvolvimento urbano, muitos desses rios tornaram-se verdadeiros esgotos a céu aberto.
Outra questão é que tantas canalizações e retificações somente alteraram a matriz do problema, em especial quando se trata da drenagem. Sem os meandros naturais, as águas dos rios passam a correr em maior velocidade, o que agrava as jusantes – em geral, as áreas mais atingidas por enchentes. (BRITTO; SILVA apud COSTA, 2006, p. 17)
Talvez, o que agrave ainda mais a situação hoje dos rios urbanos brasileiros (e de muitos outros lugares no mundo), é uma questão que vai além do urbano ou do ambiental: o problema é também social. A ocupação irregular em áreas de mananciais é um notável fator de discussão, visto que atinge diretamente um importante recurso – a água. Tal como apontado por numerosos estudos urbanísticos, a carência de políticas públicas de habitação social e a expansão urbana de caráter extensivo, sem qualquer tipo de controle, acarretaram no deslocamento das populações de mais baixa renda a essas áreas que, sem infraestrutura, acabaram por ser degradadas a partir da década de 1970. (ITIKAWA, 2008). Hoje, seguindo um longo percurso desde a década de 1970, as regulamentações ambientais e urbanas sobre as áreas envoltórias dos mananciais colocam em pauta desafios de regularização da ocupação urbana e de incentivos aos usos turísticos e de lazer ecologicamente viáveis e sustentáveis.
Fig. 7 e 8 - Imagens que exemplificam uma retificação com perda dos meandros do rio. (Disponível em: <http://www.pm.al.gov.br/intra/downloads/bc_meio_ambiente/meio_03.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2012) mostra a revitalização de industriais (de carvão e aço) ao longo do rio Emscher, região de Ruhrgebiet. Um dos principais intuitos do projeto, além de reestabelecer as bordas dos rios, foi a busca pelo resgate da identidade local, estabelecendo atividades culturais - imagem do Gasometer (primeira acima) - e espaços de lazer. (Disponível em: <http:// www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.042/636>. Acesso em: 15 ago. 2012)
O que também se estuda hoje é como retomar a presença do rio na paisagem urbana, visto que a cumplicidade entre rio e cidade é indispensável para a qualidade dos próprios indivíduos. Ainda que grande parcela dos recursos de reversão da atual situação dos leitos de água seja artificial, é necessário verificar as opções de melhorias. Segundo Costa:
Já sabemos da importância da água desenhando a paisagem, em suas diversas escalas. Neste contexto, a compreensão do papel dos cursos d’água é de fundamental importância. Os rios, córregos e riachos são os caminhos das águas doces que buscam um nível mais baixo de repouso. E desta forma vão desenhando seu percurso em linha ao sabor da topografia, conectando montanhas e planícies, florestas e mares, conectando enfim diferentes fisionomias paisagísticas. (2006, p. 11)
Exemplificando as questões apontadas até esse momento, será apresentado no capítulo seguinte o estudo da evolução urbana de São Paulo e como sua atual dinâmica se encontra próxima aos cursos de água.
Evolu O Urbana De S O Paulo E Os Rios
“...No extremo de uma paisagem infinita, acidentada com a elevação das colinas e o leito das aveludadas planícies, viam-se transparecer por entre as verduras, as torres das igrejas e as paredes alvas das habitações da cidade de São Paulo, reclinada aos pés do rio Tamanduateí e do ribeirão
Anhangabaú, envolta ainda nesse manto de ligeiros vapores com que a natureza desperta de seu sono nas primeiras horas da manhã” (ZALUAR apud KAHTOUNI, 2004)
É dessa maneira que Augusto Emilio Zaluar3 descreve a imagem da paisagem que observou ao chegar em São Paulo, em seu livro Peregrinação pela província da São Paulo (1860-1861). São Paulo desenvolveu-se primordialmente entre os rios Anhangabaú (Hinhangabahú) e Tamanduateí (Tamanduatehy ou Tamanduatiy), em uma colina que foi marcada pelo triângulo histórico; constituído pelas ruas Direita (Rua Direita de Santo Antonio), 15 de Novembro (Rua do Rosário) e São Bento (Rua Direita de São Bento). Abaixo segue a imagem de satélite do triângulo atualmente (Fig. 14).
Pátio do Colégio
Dessa maneira, o intuito de estudar São Paulo em relação aos rios é de apontar as contribuições (positivas ou não), que estes mantiveram ao longo dos anos para a evolução urbana dessa que hoje é uma das megalópoles globais.
Mosteiro de São Bento
ValeAnhangabaú
Catedral da Sé
Mosteiro de São Francisco
3 Augusto Emilio Zaluar (1826-1882) foi um escritor e jornalista português que chegou ao Brasil no ano de 1850, onde viveu até o fim de sua vida.
Fig. 15 - Da esquerda para a direita: Campanário da Igreja do Colégio, torre da Igreja do Rosário, Igreja Matriz, torre da Igreja do Carmo e Igreja de São Francisco. Desenhos de Francisco Borges Filho. (TOLEDO, 1983, p. 27)
3.1. Evolução urbana da capital paulistana
São Paulo desenvolveu-se à colina entre os rios já citados por diversas razões. Conforme explicado anteriormente, diversas civilizações tiveram seu início vinculado à fertilidade e importância das águas como fornecedora e mantenedora de um meio ambiente saudável e fértil. Não foi diferente com São Paulo, ao início de sua formação, na década de 1550, ainda na era colonial. Ainda que nesse momento, a vizinha Santo André da Borda do Campo (também às margens do Tamanduateí) fosse detentora de maior importância dentro da Capitania de São Vicente, aos poucos, por determinação de administradores e religiosos, São Paulo4 passou a ser o centro da capitania. Além das águas, o topo onde teve início a formação urbana era também estratégico do ponto de vista de segurança, com um desnível de aproximadamente trinta metros em relação aos cursos de água mais próximos.
A essa época, todas as construções paulistanas eram feitas em barro, tanto suas paredes em taipa de pilão, quanto suas telhas. TOLEDO (1983) coloca a importância que o Padre Afonso Brás adquire nesse momento, chamando-o de “primeiro arquiteto paulista”. Afonso Brás fez amplo uso das técnicas de taipa, as quais desconhecia em seu país de origem (Portugal), onde fazia o uso essencial de pedra. Chamavam atenção também as torres das igrejas que eram erguidas – São Bento, Convento da Luz e Convento do Carmo:
No século XVIII, as construções novas em templos, senão sua total reconstrução, chegam a dezoito, das quais dezesseis no ‘triângulo’. Não é de se admirar que os primeiros viajantes do século XIX como Pallière chamassem a atenção para a quantidade de torres que pontilhavam o perfil da cidade visto de longe. (TOLEDO, 1983, p. 16)
4 Inicialmente, São Paulo era chamada de Piratininga (pira = peixe + tininga = seco), em remissão aos peixes que ficavam fora das águas do Tamanduateí às inundações.
Fig. 16 - Perfil topográfico da cidade de São Paulo que indica sua primeira conformação entre o Anhangabaú (ao centro) e o Tamanduateí (à direita). Desenhos de João Soukup. (Disponível em: <http://flanelapaulistana.com/2009/12/desenhando/>. Acesso em: 15 ago. 2012)
Em se tratando dos rios, em meados do século XVIII já existem registros de que embarcações e canoas realizavam o transporte de mercadorias do Tietê até terras do Mato Grosso (Matto Grosso) e para regiões do Sul, como a Colônia de Sacramento. Além disso, algumas moradias possuíam seus muros de quintal nos limites de várzea, o que facilitava o acesso das lavadeiras e daqueles que possuíam pequenas embarcações.
A água de qualidade para consumo também foi fator importante para o desenvolvimento da cidade – a ver pelos chafarizes que foram instalados em São Paulo a partir de 1744, ano em que foi construído o chafariz de São Francisco. Os chafarizes eram responsáveis por, além de fornecer água potável à população, ser um ponto de convívio social. Os chafarizes eram referências para caminhos, instituições religiosas e em alguns momentos até para eventos da sociedade.
17 - Vista para a colina história, detalhe para os animais de criação e a senhora à frente lavando suas roubas à Várzea do Carmo - foto de Militão Augusto de Azevedo. (TOLEDO, 1983, p. 37)
47)
Bernardo José Maria de Lorena, administrador de São Paulo ao final do século XVIII, veio ao país acompanhado por uma equipe do Real Corpo de Engenheiros de Portugal, a fim de realizar um levantamento de limites das terras brasileiras. Entretanto, não tendo se concluído tal missão, esse grupo de funcionários foi responsável por outras ações, encomendadas e pensadas pelo próprio Lorena. A primeira delas foi uma das principais estradas para tropeiros, a qual ligava São Paulo a São Bernardo e Cubatão (“caminho do mar”). Posteriormente, o grupo realizou o primeiro levantamento do município, com a inserção de coordenadas e cotas de nível que auxiliaram a compreender melhor a localização da colina em meio às várzeas alagáveis, foi o Plano Topográfico da Cidade.
O momento de realização desse Plano coincide com o início de um incômodo com as áreas alagáveis da cidade, que passaram a ser não somente barreiras naturais físicas, mas também barreiras para a expansão da cidade. A princípio, Lorena passa a promover a construção de pontes para facilitar a transposição entre as margens dos leitos maiores. Já no século XIX, São Paulo possuía três principais pontes5, todas estruturadas em pedra. Uma delas era sobre o rio Tamanduateí; a ponte do Ferrão ou do Carmo (também acesso à estrada para o Rio de Janeiro), as outras duas cruzavam o leito do Anhangabaú; a ponte de Lorena e a de Santa Ifigênia, esta última, segundo textos da época, com aproximadamente cem metros de extensão era a que mais chamava a atenção.
5 Embora existam registros de pontes em São Paulo desde o século XVI, estas eram estruturadas em madeira roliça, o que por muito tempo impossibilitou o trânsito de cargas. A primeira ponte em pedra realizada na cidade data de 1786 sobre o ribeirão Acu, afluente do Anhangabaú. (KAHTOUNI, 2004)
Às margens do Tamanduateí estabeleceu-se, informalmente, o Mercado Municipal (também chamado de “mercado caipira”), em local de fácil acesso à população de paulistana e aos tropeiros, que muitas vezes se alojavam ao redor do centro comercial em suas paradas pela cidade. Finalmente, em 1860, após a primeira retificação desse rio, ocorrida em 1848, foi construído o primeiro edifício destinado ao Mercado, embora este ainda fosse bastante suscetível às inun-
dações. (TOLEDO, 1983).
À mesma época realizou-se um dos feitos mais relevantes para a história de São Paulo. A estrada de ferro interligando a capital ao litoral e ao interior modificou a dinâmica de maneira singular. Produtos importados passaram a chegar à cidade diretamente do porto, alterando a maneira de se vestir e se alimentar da população. A cidade, uma vez de taipa, passa a representar as construções europeias, em especial as francesas. Simultaneamente, a capital passou a utilizar os recentes bondes em seu transporte público.
A partir desse momento, a expansão de São Paulo seria inevitável –ao redor do centro iniciou-se um processo de loteamento de terras. Em vista desse fato, em 1876 foi redigido o “Código de Posturas da Câmara Municipal de São Paulo”, o qual determinava dimensões de leitos viários e estipulava como deveriam ser desenhados os lotes. Os principais limites, muitas vezes, eram determinados pelos rios, cursos d’água ou outros acidentes naturais e, foi assim que se constituíram alguns bairros como o Ipiranga (entre o ribeirão do Ipiranga e o rio Tamanduateí) e a Vila Prudente (próximo ao rio da Mooca); ainda que estes não fossem localizados exatamente na área central, foram bairros intrinsecamente ligados às águas e à linha férrea. Eram previstas multas aos cidadãos que de alguma maneira causassem danos à vegetação da cidade e, referindo-se aos mananciais, além de uma multa, o infrator poderia ser levado à prisão por até dez dias.
As principais estradas que ligavam São Paulo a outras cidades também seguiram as margens dos rios. Haviam três principais caminhos, um margeando o rio Tamanduateí e o Anhangabaú; outro seguindo beira o Anhangabaú, seu afluente Saracura e atingia as proximidades da atual Avenida Brigadeiro Santo Antonio; e o último que fazia o trajeto desde a várzea do Pinheiros na região oeste e chegada ao Anhangabaú (atual Rua da Consolação). Além desses caminhos, outras transformações urbanas ocorreram na capital. A Ilha dos Amores foi uma delas e é remetida à presidência de João Teodoro Xavier (presidente de São Paulo entre 1872 e 1875). A Ilha era um dos passeios da época e chamava a atenção pelo ambiente melancólico da paisagem natural, na várzea do Carmo; seus visitantes podiam apreciar o entorno e inclusive banhar-se nas águas. (TOLEDO,1983).
Fig. 22, 23 e 24 - Cartão postal da Ilha dos Amores e sua tabela de preços por uso. (Disponível em: <http://www.saopauloantiga.com.br/>.
Acesso em: 15 ago. 2012)
Ao final do século XIX, foi inaugurado o Viaduto do Chá, realizando a principal conexão entre o centro antigo e a nova São Paulo, cruzando o Anhangabaú. A cidade de taipa passou aos poucos à cidade de tijolo, contanto com jovens arquitetos europeus como Octaviano Pereira Mendes (1856-1917) e Francisco Ramos de Azevedo (1851-1928). Após a virada do século, em 1910, iniciaram-se outras mudanças; a começar pelo projeto “Grandes Avenidas”, que propulsionou uma série de ações voltadas ao transporte na cidade. Estabeleceu-se o Parque do Anhangabaú, o novo Viaduto do Chá e a Praça do Patriarca – ainda que, de maneira geral, os espaços públicos se mantivessem ligados a instituições religiosas. Algumas destas obras fizeram parte do chamado “Plano Bouvard”, do francês Joseph-Antoine Bouvard (1840-1920), como é o caso do Parque Dom Pedro II, localizado na Várzea do Carmo, às margens do Tamanduateí. O projeto, que nunca foi concluído em totalidade, trouxe a criação de um lago (aproveitando-se do alargamento do rio nesse local), com áreas para recreação de todas as faixas etárias e com uma vista que proporcionava a admiração da colina histórica e outros pontos relevantes, como Santa Ifigênia e o Pico do Jaraguá; tudo no intuito de tornar essa área que possuía problemas de ordem sanitária em um espaço de convívio social.
Entretanto, a infraestrutura urbana (tratamento de esgoto, fornecimento de energia, transporte, correios, etc) não seguiu o mesmo desenvolvimento apresentado na busca por espaços públicos competentes, o que levou a expansão da cidade para outros níveis:
Dessa forma, um a um, os belos edifícios da metrópole do café foram demolidos para ceder lugar a edifícios onde houvesse maior aproveitamento do solo. Em São Paulo, construía-se ‘em cima’ em vez de se construir ‘ao lado’. Era a terceira cidade que surgia em um século. (TOLEDO, 1983, p. 105)
Com o crescimento da cidade e expansão urbana, os paulistanos passaram a enfrentar um problema que se agravava com o passar dos anos: o abastecimento de água. Inicialmente, aproveitando-se da gravidade, chafarizes e valas eram utilizados, embora sofressem com constantes secas e, no caso dos chafarizes, seu funcionamento passou a acontecer em horários restritos. São Paulo apresentava problemas de fornecimento de águas próprias à população desde a segunda metade do século XIX, principalmente pelos níveis de poluição do Tamanduateí, que já eram elevados. Ainda assim, em 1848 ocorreu a primeira retificação de seu leito, a fim de controlar as enchentes que avançavam o território urbano – o que, todavia impediu parte da navegação no rio.
Concomitantemente, surgiram na cidade ideais de higienização e controle sanitário. Áreas de várzea passaram a ser consideradas insalubres e indesejáveis. Dessa maneira, foram instaladas indústrias (principalmente cerâmicas) ao longo de áreas alagáveis, as quais se aproveitavam dos recursos encontrados em seus locais de implantação.
A falta de transportes, a angustiante deficiência dos serviços de telefones e correios desestimulou a criação de centros alternativos para a expansão do centro comercial.
Registros de 1852 indicam que nesse momento o Anhangabaú passou a ser utilizado para dispersar dejetos de matadouros e, apesar de esforços em reverter a situação em que se encontravam as águas nesse momento, diversas tentativas falharam e os dejetos só se fizeram aumentar. (KAHTOUNI, 2004). Solucionando parte da questão, foi consolidada a Companhia Cantareira, em 1877. A partir de então, algumas edificações receberam abastecimento individual e São Paulo contava com uma das maiores redes de água do Brasil. A seguir, em 1888, iniciaram-se as atividades da Companhia Paulista de Eletricidade que aos poucos passou a distribuir energia para a população. Alguns anos depois, em 1893, iniciou-se o primeiro processo de saneamento do Anhangabaú, seguido por parte de sua canalização subterrânea e pelos primeiros estudos de retificação do Tietê. Quanto aos chafarizes, a maior parte havia sido desativada e, em 1894 teria início a construção do reservatório da Avenida Paulista.
A seguir, as principais mudanças na paisagem das águas em São Paulo seriam a criação da represa de Guarapiranga a partir das águas do Tietê (1906), as retificações do Tietê (de 1937 à década de 1960) e do Pinheiros (finalizada na década de 1940) e a construção de um túnel sobre a canalização do rio Anhangabaú. A partir do momento em que foram sendo retificados os rios, as atividades extrativistas de areia foram perdendo sua importância e a proximidade com a linha férrea automaticamente trouxe a atividade industrial às várzeas, em especial no Tamanduateí e empresas ligadas à transmissão de energia no Pinheiros. A partir da década de 1960 os eixos dos rios foram adotados como irradiadores do transporte e passagem de fluxos – o terminal do Tietê foi implantado em 1968, e posteriormente viriam as vias marginais – o que resultaria em parte da paisagem hoje encontrada à beira dos rios paulistanos.
(Disponível em: <http://www.saopauloantiga.com.br/>. Acesso em: 15 ago. 2012)
Fig. 28 - Mapa de 1842 que já indica as principais estradas da cidade (em traçado mais escuro) e a expansão urbana para regiões como o Ipranga e a Mooca. (Imagem do acervo da Prefeitura Municipal de São Paulo)
3.2. São Paulo e os rios no século XXI
O acelerado ritmo do crescimento da metrópole, não foi acompanhado, no entanto pela gestão de saneamento, drenagem e tratamento de água – a impermeabilização crescente de vias e lotes ocasionou em uma velocidade de vazão das águas pluviais cada vez maior. A intensidade com que passaram a ocorrer enchentes e inundações no município iniciou uma preocupação constante nas ações urbanas; ainda que as medidas de solução adotadas possuíssem caráter funcional – sem levar em consideração fatores ambientais ou leitos originais de rios e córregos.
O abastecimento da cidade com águas de boa qualidade era difícil e urgente, o despejo de efluentes domésticos ou industriais diretamente nos rios e córregos era comum, de forma que as áreas úmidas se tornavam focos de doenças e, deste modo, a população apoiava as obras de drenagem das várzeas, retificação e canalização dos rios e córregos, transformando-os em canais. (BROCANELI, 2007, p. 177).
A ausência de um tratamento de esgoto eficiente e o aumento dos resíduos sólidos urbanos tornaram as áreas de várzea, espaços de desvalorização, procurados por aqueles sem alternativas para moradia. Surgiram os primeiros aglomerados urbanos irregulares ao longo de córregos e ribeirões, os quais, sem tratamento de água ou esgoto somente agravaram mais a situação em que se encontravam as águas da cidade. Além de ambiental, a questão passou a se tornar problemática também do ponto de vista social. (KAHTOUNI, 2004).
<http://cidadedesaopaulo.wordpress.com>. Acesso em: 15 ago. 2012)
Fig. 33 e 34 - Comparativo entre uma fotografia do rio Cabuçu de Baixo no início do século XX e hoje, uma galeria subterrânea. (Disponível em: <http://www.saopauloantiga.com.br/>. Acesso em: 15 ago. 2012)
Outra questão decorrente do tratamento dado às várzeas e às áreas verdes da cidade, envolve os microclimas urbanos. Climas são determinados por diversos fatores, como morfologia do terreno, orientação, exposição e altitude que colaboram para a alteração de radiação solar, sentido dos ventos, temperaturas e umidade. Microclimas são, portanto, áreas que, influenciadas de maneira mais específica, dentro de um clima – podem ser ruas, bairros ou cidades. (HERTZ, 1998).
O que tem acontecido, todavia, decorrente do crescimento urbano descontrolado, é um desequilíbrio climático ao redor das construções.
Em vista da grande concentração de edifícios nas cidades contemporâneas, pode-se dizer que a situação é agravada.
Nesse contexto, as ilhas de calor são alguns dos fenômenos mais notados na capital paulista. A discussão a cerca das ilhas de calor urbanas é ampla. A abundância de materiais e suas intensas concentrações são as principais causas desse calor pontual nas cidades. Em São Paulo, outro motivo responsável pelo aumento da temperatura em áreas pontuais se dá pela carência de respiros no município – áreas verdes, de maneira especial. O aumento do calor traz consequências além do aumento ou redução da temperatura – provoca inclusive um acréscimo nas precipitações e altera também o regime de ventos de determinado local. Os mapas abaixo mostram a atual cobertura vegetal e a média de temperatura registradas pelo Atlas Ambiental de São Paulo. (Secretaria do Verde e do Meio Ambiente). Mesmo nas áreas próximas a leitos de rios ou córregos, a massa edificada e a ausência de cobertura vegetal ocasiona em uma temperatura média que beira os 32ºC em áreas como a várzea do Tamanduateí, entre Mooca e Ipiranga.
Fig. 35 - Mapa parcial de São Pauloindicando em vermelho os pontos de alagamentos mais frequentes no município e em verde as áreas de várzea. (Disponível em: <http://atlasambiental.prefeitura.sp.gov.br>.
Acesso em: 20 set.2012)
(à sendo que quanto mais vermelha a mancha, menos árvores existem. Já o comparativo acima mosta no mapa à direita as temperaturas no município. Dessa forma, é possível ver com clareza que quanto menos árvores, maior a temperatura do microclima. (Disponível em: <http://atlasambiental.prefeitura.sp.gov.br>. Acesso em: 20 set.2012)
Há alguns anos, todavia, gestões municipais e estaduais iniciaram estudos e programas no intuito de, em especial, reduzir e amenizar as inundações no município. Adotando referências internacionais, São Paulo vem participando de eventos para a discussão de questões ambientais e urbanas, a exemplo do Global Design Cities Organization Committee Meeting, em Seul (Coréia do Sul), no ano de 2011. Com o projeto implementado ao longo das margens do rio Cheonggyecheon, o centro econômico sul coreano entrou nas discussões globais de como reestruturar um rio urbano. O rio encontrava-se, até meados dos anos 2000, praticamente seco e suas águas passavam despercebidas pela cidade, tamponadas por uma autoestrada. Após a organização de um comitê, elaborou-se o projeto. Hoje, após o término do projeto, o rio passa por Seul praticamente 100% despoluído e as melhorias em seu entorno proporcionaram a redução de até 3,6ºC, atraindo população da cidade para o convívio às margens de seu leito.
Existem ainda movimentos da sociedade paulistana, a exemplo do São Paulo 2022, composto pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Escola da Cidade, pelo Instituto Arapyaú6, pelo Instituto Ethos7, pelo Instituto Socioambiental8 e pela Rede Nossa São Paulo9, que busca soluções para as questões emblemáticas da capital paulista a fim de tornar a cidade um lugar melhor ao ano de 2022.
6 Organização não governamental (ONG) atuante na educação e no desenvolvimento sustentável.
7 ONG que promove a sociabilidade empresarial.
8 ONG que atua em soluções socio ambientais para problemas os meios coletivos.
9 ONG que atua na mobilização da sociedade em prol de ações público-privadas.
Um dos itens por várias vezes citado no plano do São Paulo 2022 é a educação – inclusive ambiental. Dessa forma, o próximo capítulo irá realizar a exposição de como a educação pode auxiliar na solução dos problemas hoje enfrentados pelas cidades.
Fig. 37 e 38 - Comparativo antes e depois dos projetos em Seul. (Disponível em: <http://www.ufrgs.br/arroiodiluvio/a-bacia-hidrografica/ imagens-de-seul>. Acesso em: 20 set.2012)