Henrique de Jesus Teixeira de Sousa Caldas da Rainha, 21-12-2020
Cachupa de mamãe! Quando eu saí de S. Vicente, a bordo daquele vapor holandês, não podia imaginar que ia estar tanto tempo fora da minha terra e da minha mãe. Eu só tinha 18 anos na altura, era filho único e a minha mãe nem soube que eu fugi. Mais tarde vim a saber que ela andou meses a chorar, pensando que eu tinha morrido. O barco em que eu fugi estava de passagem pelo Porto Grande e eu era o moço do ‘gasolina’ que ia buscar e levar tripulantes aos barcos, num dos quais eu queria partir nessa noite. No ‘gasolina’, além dos tripulantes do vapor, éramos eu e o piloto, um senhor já mais velho com quem eu tinha muita confiança e ele já sabia que eu ia fugir nessa noite. Quando chegámos ao barco, a tripulação subiu pelas escadas de portaló e eu fui atrás, no fim da fila. Quando chegámos lá acima, fiquei ainda à espera que eles se dispersassem e ia-lhes fazendo adeus, fingindo que começava a descer as escadas. Tranquilamente, lá desapareceram pelas entranhas do barco, uns para cima, outros para baixo e para o lado, enquanto eu espreitava no patim superior das escadas. Quando já todos se tinham esgueirado, avancei pelo convés às escuras até chegar próximo de um bote salva-vidas. Era um bom refúgio, pensei eu! Entretanto, o piloto do ‘gasolina’, sabendo que eu não ia regressar, arrancou em direcção ao Cais da Alfândega. Estava agora entregue à minha sorte, e a caminho de terra longe! Lá consegui levantar a coberta do salva-vidas e entrei para dentro do bote. Eu tinha levado comigo algumas tabletes de chocolate e uma garrafinha de água para aguentar alguns dias sem ser descoberto. Mais ou menos uma hora depois, ouvi alguma azáfama no convés, levantar das escadas, correria em direcção à proa, trepidação de motores em esforço e, pelos balanços que já sentia, parecia que o barco começava a navegar. Passei dois dias metido no bote salva-vidas sem que ninguém desse por mim. Não foi fácil, de dia era muito calor e à noite tinha frio. Só comia chocolate e a água acabou logo no primeiro dia. Felizmente não senti vontade de fazer necessidades e urinava lá mesmo porque o bote tinha um fundo falso para onde a urina se sumia. O chocolate, que era inglês, devia ser muito bom porque ia todo para o sangue, não era preciso obrar. No terceiro dia resolvi sair do meu esconderijo porque já não era provável que o barco regressasse só para me devolver à origem, aliás foi o que me disseram alguns clandestinos veteranos antes de eu fugir: “Aguenta o mais que puderes, escondido!”. Quando senti que estavam a lavar o convés, saí do salva-vidas perante o espanto dos tripulantes que me disseram em holandês: “Wat doe je daar?”. Eu respondi no meu melhor inglês: “I want to scaplir pa Holanda!”. Pegaram em mim e levaram-me ao comandante. E, como já era de esperar, o comandante mandou-me prender numa cabine onde passei mais dois dias. Mesmo assim, já não tinha que sofrer com calor e frio e levavam-me sopas e pão para comer. E comecei a obrar normalmente outra vez, na retrete daquela cabine. Ao terceiro dia levaram-me ao imediato e ele perguntou-me, em inglês, se eu não queria trabalhar no barco. O meu inglês de ponta-de-praia deu para perceber, e eu disse logo que sim e puseram-me na cozinha. A minha vida passou a ser, a partir daí, lavar pratos e descascar batatas. De manhã até ao entardecer não fazia outra coisa. Duas semanas depois da partida do barco, chegámos a Roterdão. Eu pensava que ia poder sair e procurar trabalho em terra. Mas enganei-me. O comandante do barco disse-me que, se eu saísse, iam prender-me e deportar-me. E também me disse que, se eu quisesse, podia ficar no barco e
continuar como ajudante de cozinha e até podia me pagar qualquer coisa por isso. Não tinha outra escolha! Ser deportado é que não! Ainda podiam prender-me por deserção e mandar-me para o Tarrafal. Nem pensar. Preferi ficar a descascar batatas e lavar pratos. E o tempo foi passando, passando… Numa das escalas que o barco fez, pedi a um colega para me pôr uma carta no correio para a minha mãe. Ela deve ter recebido a carta 3 meses depois de eu ter partido, isto é, fugido. Mas imaginei a alegria dela ao receber a carta e isso também me ajudou a suportar o degredo. Fui aprendendo alguma coisa de holandês para poder conversar com os meus colegas. Excepto o comandante e o imediato, ninguém mais falava inglês naquele barco - eu também não! Quando me davam ordens, com a ajuda de sinais, lá ia percebendo algumas das suas estranhas palavras. Até que um dia consegui desabafar com um deles, contando-lhe a minha triste sina. E ele, recorrendo a sinais e palavras que eu já ia compreendendo, disse-me que eu podia pedir asilo político na Holanda! O sacana do comandante andava a aproveitar-se da minha desgraça! Parecendo que não eu já andava a ser escravizado há cerca de dois anos! Descasca batata, lava prato, lava prato, descasca batata! E lembrava-me sempre daquele filme “Aviso aos Navegantes” que vi mais que uma vez na ‘geral’ do cinema do Tuta. Da próxima vez que o barco aportou a Roterdão e a tripulação desembarcou, eu peguei na minha trouxa e, mais uma vez, fiquei no fim da fila. O comandante viu-me na fila e veio falar comigo: “Então vais desembarcar e ser preso?”. E eu disse-lhe, no meu melhor holandês: “Holy shit!”. Deu meia volta e sumiu! Mas na verdade, fui preso! Deram-me, porém, um advogado e ele, ao fim de algumas semanas, conseguiu que eu fosse liberto, e deram-me até uma carta de trabalho, ‘Werkvergunning’. Corri toda a cidade à procura de trabalho, mas em lado algum me queriam. Acabei por voltar para um bar ao pé do cais e, como por milagre, encontrei lá um patrício. Contei-lhe a minha história toda e ele disse-me que a única saída para mim era tornar a embarcar. E como já tinha o Werkvergunning, poderia ganhar um salário condigno e, se eu tivesse juízo, poderia arranjar um pé-de-meia para voltar para a terra quando fosse possível. E levou-me para a casa dele, onde estive alguns dias. A solidariedade é sempre maior entre os mais necessitados. Fui inscrever-me como marítimo no “Arbeidsuitwisseling” por sugestão do meu patrício e, poucos dias depois, chamaram-me para uma vaga de ajudante de cozinheiro a bordo de um petroleiro. Foram mais dois anos ou mais de lavar pratos e descascar batatas, mas já me davam outras tarefas e aos poucos fui revelando algumas habilidades que sabia da arte da cozinha! Mas, sobretudo, tinha um ordenado decente e podia economizar alguma coisa, a pensar no regresso. Continuava a escrever à minha mãe e ela ia dando notícias também. Quantas e quantas vezes ela fazia cachupa em casa dos senhores onde trabalhava como cozinheira, e trazia para casa uma panelinha para o nosso jantar!!! Aquela cachupa era divinal! Às vezes até tinha uns pedacinhos de carne! Mas toucinho nunca faltava e, se sobrava, ao café da manhã, ela guisava-a com um ovo estrelado e era a melhor comida do mundo para mim! Durante todo este tempo fora de casa, dava comigo a ansiar pelo dia em que eu iria, alguma vez, poder comer de novo aquela cachupa da minha mãe! Se eu não regressava a casa não era por falta de vontade, era só pelo medo de ser preso e mandado para o Tarrafal: “Eu seis anos no Tarrafal, sem poder ver a minha mãe?” Não, a minha mãe vai esperar por mim e eu vou voltar quando puder. O tempo foi passando, passando… Eu escrevendo à minha mãe, ela escrevendo para mim. Eu descascando batata, a minha mãe descascando também. Mas cachupa… só ela a podia comer!
E o tempo passou! Passou e trouxe a Liberdade! Ao fim de seis anos, acontecera o esperado milagre do fim do regime colonial, da guerra e do espectro do Tarrafal. Foi quando resolvi ir para Lisboa para dali regressar depois a S. Vicente, a minha terra amada para ao pé da minha mãe! Quando o meu barco aportou de novo a Roterdão, pedi que me pagassem aquilo a que tinha direito e despedi-me do trabalho! Comprei uma passagem de avião para Lisboa e desembarquei na Portela. Apanhei um táxi e pedi ao motorista que me deixasse em São Bento, onde eu sabia que encontraria patrícios meus. Dito e feito, não foi preciso andar muito para encontrar crioulos e crioulas com quem confraternizei até de madrugada. Era tudo por minha conta, ao fim e ao cabo eu é que era o ‘holandês’ com dinheiro porque eles, coitados, estavam a viver de expediente e sem trabalho. A noite acabou numa casa, pensão ou restaurante (ou tudo junto) situada num 1.º andar de um prédio antigo de São Bento, com gerência e frequência de cabo-verdianos mas também alguns ‘mondrongos’ amigos lá de São Bento. Como já tínhamos bebido muito e eram quase seis da manhã, pedimos o pequeno-almoço, isto é, café e... o que houvesse! Foi quando me perguntaram se queria uma cachupa refogada e eu respondi imediatamente que sim, claro que queria cachupa! Há quantos anos eu não tinha comido cachupa!? Não tardou muito para nos trazerem a cachupa. Quando vi o prato de cachupa com aquele ovo estrelado em cima, lembrei-me com saudade da cachupa do café da manhã da minha mãe e comecei a comer. Estava muito saborosa, com aquele gosto típico só de Cabo Verde, quase igual à cachupa da minha mãe! E tinha toucinho! Tinha toucinho! Toucinho!!! As lágrimas começaram a rolar-me pela face e, ajudado pelo álcool que tinha bebido nessa noite, dei comigo a chorar em catarse, feito uma criança, perante o olhar estupefacto dos meus patrícios que não percebiam o que era passar tanto tempo sem comer uma cachupa! Eu chorava de felicidade, a maior felicidade que alguma vez senti na vida, mas não maior que a dor que senti quando soube, dias depois, que a minha mãe afinal já tinha cambado para outro mundo, e que não mais a voltaria a ver!