Aquele Fogo era um Fogão

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Henrique de Jesus Teixeira de Sousa Caldas da Rainha, 19-11-2020 Aquele Fogo era um Fogão O telefone tocou no quartel dos bombeiros e Jack, o bombeiro de plantão nessa tarde, atendeu: - Bombeiros, daqui fala Jack! - Lume! Lume na Ribeira Bote! Na casa de Bia de Nhâ Maninha! - Já vou dar o alarme! - Despacha-te! Jack praguejou porque o botão da sirene ficava no primeiro andar e não ao lado do telefone que acabara de desligar. Subiu a correr ao primeiro andar e accionou longamente a sirene. Era o primeiro fogo que acontecia depois que os Bombeiros tinham sofrido uma mudança profunda e passaram a dispor daquele terreno amplo da Câmara Municipal atrás do Eden Park onde podiam proceder aos treinos de combate a fogos em edifícios até 3 andares. A actual Câmara, entre outros empreendimentos de modernização da cidade, achou por bem dotá-la de um corpo de bombeiros que pudesse exercer as suas funções com um mínimo de condições para a dimensão da cidade do Mindelo. Para além das novas instalações, foi criado um quadro permanente, a começar pelo comandante. O homem escolhido para comandar os bombeiros foi um antigo militar português que se apaixonou pela terra e que, terminada a sua comissão de serviço, por lá ficou e criou raízes, pelo que dava garantias suficientes de continuidade para assumir aquele cargo. Embora devesse agora ser chamado de comandante dos bombeiros, ficou na prática com a sua patente do exército e era conhecido como o Capitão Tristão. Ainda me lembro de ter assistido à primeira apresentação pública deste renovado corpo de bombeiros, nas suas novas instalações, com simulação de fogo e uma demonstração realista dos bombeiros, a maior parte deles voluntários, rapazes novos que envergavam com orgulho as suas fardas e que não raras vezes passavam fardados na Praça Nova, fazendo furor junto das meninas que lá iam passear ao fim da tarde. Jack era um desses rapazes! Também me lembro daquele camião velho que foi adaptado na oficina de mecânica da câmara, perto da Pracinha de Doutora, oficina que estava também equipada para proceder às reparações dos veículos da câmara que já eram mais de meia dúzia, entre carros, juvitas e mesmo camiões. Aquele velho camião, que já estava bom para ir para o lixo, foi todo reparado, reforçado, equipado com um depósito de alguns 5 metros cúbicos, bomba de água, suportes para escadas, etc., e no final foi todo pintado de vermelho, sem esquecer os cromados, sirene e todos os detalhes que o identificavam como camião dos bombeiros. E não faltaram ainda as plataformas laterais e traseiras para levar quatro ou cinco bombeiros pendurados. O Capitão Tristão ouviu a sirene tocar quando já se encontrava fora de serviço e tinha ido, como habitualmente ia, à loja da Nhâ Djodja para dar dois dedos de conversa e tomar um aperitivo. Apesar de ser ‘mondrongo’, já era um mindelense nos hábitos e nos amigos e merecia a estima de quantos o conheciam. Só não falava crioulo porque não se esforçava ou não achava importante, mas percebia todos e todos o percebiam. Sob o olhar de admiração dos presentes, ele anunciou: - Meus amigos, agora tenho que ir ver o que se passa lá no quartel! E disparou em direcção ao quartel que ficava lá perto. Quando lá chegou, estavam a chegar também os outros soldados da paz que tinham ouvido tocar a sirene. Quando se juntaram ao todo uns 6 bombeiros, incluindo o comandante e o motorista, subiram todos para o camião que estava sempre pronto para a acção, com as mangueiras enroladas, tanque de água cheio e combustível q.b.. Após uma breve verificação do camião e da tripulação, o Capitão Tristão mandou arrancar.


O velho camião transformado em autotanque, começou a andar e saiu com as suas luzes e a sua sirene estridente, assinalando a marcha. O Capitão Tristão vinha na plataforma exterior do lado do condutor e outros três bombeiros vinham nas outras plataformas, e mais um ao lado do condutor. A saída do carro dos bombeiros foi um acontecimento na cidade. A meninada logo acorreu para assistir ao espectáculo que ainda só estava a começar. Mas o velho camião não desenvolvia na subida, apesar da insistência do comandante: “Acelera, vai mais depressa, mais depressa!”. De tão lento que o camião andava, a renca (fileira) de meninos nas ruas quase conseguia acompanhá-lo a correr, havendo cada vez mais gente a juntar-se àquela perseguição. Mas nisto, depois de passar a subida para entrar na Rua Machado, o camião embala na descida e passa em grande velocidade pela rua abaixo em direcção ao Palácio, para alegria do comandante que continuava a exigir velocidade ao condutor: “Mete 3.ª, agora mete 4.ª, acelera lá esta coisa!” Ao aproximar-se da curva do palácio, o comandante manda abrandar: “Olha a curva, olha a curva! Trava!”. O condutor responde: “Os travões não estão a responder muito bem Sr. Tristão!” Mas apesar de tudo lá se fez a curva e o camião seguiu rua acima, agora mais lento porque a gravidade fazia as vezes de travão! E a multidão que vinha a correr atrás conseguiu alcançar o camião, engrossada por uma horda de ‘voluntários’ que se juntavam à guarda de honra do camião de bombeiros: “Lume na Ribeira Bote! Lume na Ribeira Bote!” Quando o camião virou na esquina da casa do Sr. Alhinho, o povo que o acompanhava já fazia lembrar uma daquelas correrias dos meninos da escola quando faziam os exames da 3.ª e da 4.ª classes: “Viva aquele Bolo! Viva! Viva aquele vinho! Viva! Viva D.ª Tanha! Viva! Viva aquela mãe! Viva! Viva aquele pai! Viva!” Mas depois da curva, o camião começou a embalar novamente e o povo foi ficando para trás. Desta vez o condutor começou a travar logo, não fosse embalar demais até chegar à Rua de Côco. Mesmo assim vinha já relativamente depressa quando passou naquele buraco da rua que provocou um solavanco tal que cuspiu o Capitão Tristão para a rua, numa queda aparatosa! O camião só parou mais abaixo mas logo um bombeiro veio socorrer o comandante que entretanto se levantara mas cheio de dores num braço. O bombeiro perguntou-lhe: “ Capitão, não é melhor ir ao hospital? É aqui pertinho!”. “Nem pensar! Logo no meu primeiro fogo, vou deixar-vos ir sozinhos?”. E lá foram os dois o mais depressa que puderam a retomar os seus lugares naquele camião azarado que, pelo que já se viu, deixava ainda muito a desejar como equipamento de combate a fogos. Quando o camião retomou a marcha, havia povo e mais povo na Rua de Côco, os que vinham de cima e outros que vinham das redondezas, alarmados pelo estardalhaço da sirene e os apupos da multidão, até da Praça Estrela chegava mais gente que vinha ver o que estava a acontecer. O povo era tanto que o camião dificilmente conseguia avançar no meio da multidão, apesar dos apelos do Capitão Tristão. “Saiam da frente! Há fogo na Ribeira Bote! Saiam do caminho!”. Depois, dizia ao motorista: “ Liga a sirene! Toca a buzina!”. E o camião, a muito custo, lá ia rolando em direcção à Ribeira Bote para apagar o fogo na casa da Bia. Finalmente, depois desta luta desigual entre o camião e a multidão, chegaram ao local indicado por quem ligou para os bombeiros. Nesse tempo os telefones no Mindelo só tinham 3 algarismos, quase toda a gente sabia o número de quase toda a gente. Imediatamente os bombeiros saltaram do camião, desenrolaram a mangueira, adaptaram-na à boca da bomba e correram para a casa da Bia, o comandante à frente, ainda não refeito da queda, com o braço esquerdo ao peito mas gesticulando e tentando furar no meio das pessoas que acudiram ao local: - Onde é o fogo? Onde é o fogo? - Ad est, Sr. Tristão! Nós tudo juntar, nós trazer uns balde d’água... lume já apagar ‘dias há’ – dizlhe um dos populares que socorreu a Bia, tentando fazer-se compreender em português! Mas o comandante não desarmou. Virando-se para os seus homens, ordena:


- Rapazes, vão lá ver se está tudo apagado e façam o rescaldo do incêndio! Bia veio à porta toda chorosa: - Ó nhâ fogon! Nhâ fogon Primes explodi!


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