Naquela Mesa

Page 1

Henrique de Jesus Teixeira de Sousa Caldas da Rainha, 26-11-2020

Naquela mesa Nesse dia o ambiente estava pesado quando a família se juntou à mesa para jantar. Faltava ele, o chefe de família que sempre fazia questão que todos estivessem pontualmente presentes às refeições principais, uma vez que o trabalho e outros compromissos lhe impunham uma rotina rígida na sua vida diária. Porém, não raras vezes tinha que alterar essa rotina para atender a alguma urgência médica, autorizando nesse caso que comêssemos na sua ausência. De manhã ele tinha ido a S. Pedro ver um doente e notámos que regressou preocupado. Fechou-se no quarto e de lá não saiu durante todo esse dia e o seguinte. Não sabendo nós, eu e os meus irmãos, o que se passava, questionámos a nossa mãe mas ela, com tristeza nos olhos, não se descoseu. Suspeitámos que algo de muito grave se passava, mas não fazíamos a menor ideia do que fosse. Só sabíamos que havia muito cuidado com a roupa e a loiça que ele usava. Ambas lavadas à parte e com água quente. Naquela mesa as refeições decorriam sempre com muita conversa, ele tinha sempre alguma história ou caso para contar e era um bom contador de histórias, sabia prender a atenção e quando a história era engraçada, ríamo-nos a bom rir e ele também. Por vezes repetia uma ou outra história que não se lembrava de já ter contado e nós piscávamos os olhos uns aos outros, mas ouvíamos atentamente e, se fosse algo cómico, nós ríamos, não só da história mas do facto de ele se ter esquecido que já contara. Isso pelo enorme respeito que tínhamos por ele. Raramente se falava de política, havia um acordo tácito de que era assunto que tinha que ficar em segredo. Todos sabíamos que ele era contra a ‘situação’ mas tinha uma missão humanitarista a cumprir, missão que ficaria comprometida se se soubesse das suas ideias políticas. Mas como autarca que foi durante 5 anos em S. Vicente, na Presidência da Câmara, fez política da forma possível em ditadura. Num círculo restrito de amigos que ele visitava, Jorge Barbosa, Baltazar Lopes da Silva, António Aurélio Gonçalves, João Cleofas Martins (Djunga), etc. devia haver alguma conspiração mas ficava entre as quatro paredes. O Djunga, de quem era muito amigo e admirador, nem por isso o poupava, criticando-o enquanto Presidente da Câmara. Em “Aquele Degrau de Escada” foi bastante contundente, mas também irónico na medida em que, no fundo, estaria de acordo com o progresso que a Câmara estava a promover, melhorando as infraestruturas da cidade do Mindelo. Normalmente, depois do jantar ele isolava-se na sala para fumar o seu cigarrinho, dizia ele que eram só 5 por dia, e a ouvir discos de música clássica, sem ser incomodado. A mãe dele, nossa avó Laura, dizia que ele não gostava de música: só gostava de “chuva na lata” e “mosca no solidor”. Solidor é um recipiente feito a partir da cabaça. De facto ele raramente ouvia música ligeira, excepto mornas ou músicas intemporais. Cantarolava amiúde “La vie em Rose” de Edith Piaf, cujo disco também possuía. Misturado com as músicas, tinha vários discos de João Villaret que ele apreciava imenso e também discos das rábulas de Raul Solnado que eram críticas veladas ao sistema, à guerra e à sociedade. Lia best-sellers internacionais como os de Anatole France, Hemingway ou Irving Wallace mas lia muito mais os autores vivos de língua portuguesa, entre eles Miguel Torga, Vergílio Ferreira, Fernando Namora; não gostava do estilo de Saramago que achava que não acrescentava nada ao conteúdo e tornava a leitura penosa. Apreciava sobremaneira o Jorge Amado, achava deliciosas as suas narrativas e fazia paralelos com acontecimentos vividos na sua terra natal, o Fogo. Creio que Amado terá sido o grande responsável por ele ter enveredado mais tarde para a escrita, quando a sua vida profissional o permitiu. Mas o gosto pela escrita já se manifestara nos seus artigos, em contos e trabalhos publicados em revistas e jornais. E está claro que lia o que os seus pares da revista


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.