Henrique de Jesus Teixeira de Sousa Caldas da Rainha, 30-11-2020
O trolha e o político Ao entrar em casa, Júlio ficou surpreso com o silêncio que lá reinava. Não que a casa estivesse vazia mas algo de muito grave tinha acontecido porque não fora aquela a recepção que esperava após aqueles longos anos de emigração na Alemanha. Queria fazer uma surpresa aos pais e irmã que ficaram na terrinha. A irmã foi a primeira a aparecer, toda vestida de preto, da cabeça aos pés: - Ó mano! Ó mano, o pai morreu anteontem e já foi a enterrar ontem de manhã! O primeiro pensamento que lhe ocorreu foi que devia ter regressado mais cedo, a tempo de ver o pai ainda em vida. Tirou o chapéu, sentou-se numa cadeira e levou as mãos à cabeça num esforço para pôr as ideias em ordem e tentar perceber se seria apenas um pesadelo ou algo já previsível, dada a sua longa ausência na estranja. A irmã trouxe-lhe um copo de água que ele bebeu maquinalmente sem pronunciar uma única palavra. Enquanto estava nesse estado de ausência espiritual, entra pela sala a figurinha pequena e magra da mãe, também de luto cerrado, as faces engelhadas do tempo e do frio da serra: - Filho, filho! Louvado seja Deus, até que enfim estás de volta! Abraçou a mãe longamente, chorando ambos pela partida precoce do chefe de família, Mateus Simões, e pela emoção do reencontro, após todos esses anos de separação forçada. Nunca lhe passara pela cabeça que aquela decisão de emigrar teria este desfecho; na sua imaginação juvenil podia ter sido semelhante àquelas aventuras que sempre ouviu contar na aldeia sobre pessoas que emigraram e regressaram prósperos e construíram as suas casas e montaram os seus negócios. Ou como aqueles mancebos que iam para a guerra no ultramar e voltavam dois anos depois com alguns trocos para começar com algum desafogo a vida na sua terra. Mas alguns não voltavam ou voltavam num caixão. E foi por isso que ele preferiu ir de salto para a França, e daí para a Alemanha. Felizmente nessa época a Alemanha estava a precisar de mão-de-obra estrangeira e conseguiu facilmente legalizar a sua situação e começar a trabalhar na construção civil. Foram dez anos de ausência, ausência imposta pelo facto de não poder regressar enquanto a emigração clandestina fosse criminalizada em Portugal e, sobretudo, para não ser recrutado para a maldita guerra. Regressava agora, em 1975, depois da revolução. Foram anos de trabalho, mas também de períodos de escassez. Era bem remunerado quando trabalhava, era dócil, não era exigente em demasia e era dispensável quando os trabalhos terminavam. Aquilo que ganhava quando tinha trabalho era para enviar para a família. Mas era preciso muito cuidado com os envios de dinheiro e correspondência porque podia ser localizado pela polícia internacional e de defesa do estado. Para fazer chegar à sua família algum do dinheiro que ganhava, teve que se sujeitar aos esquemas agiotas montados por alguns conterrâneos que ficavam com uma boa parte dele. Estava ele imerso nestes pensamentos, quando alguém bate à porta. A irmã foi ver quem era: - Olha, está cá o Presidente da Câmara que nos vem dar os pêsames! - Vamos lá então recebê-lo! Feitas as apresentações, sentaram-se a conversar, dando primazia ao autarca que começou: - Caros amigos, venho em nome da edilidade, apresentar os nossos sentidos pêsames pela morte do nosso querido conterrâneo Mateus Simões, antigo calceteiro da Câmara, a quem todos devemos longos anos de devoção ao trabalho e à sua terra, homem íntegro, trabalhador, amigo do seu amigo, marido exemplar, pai dedicado, bla-bla, bla-bla, bla-bla... - Obrigado, obrigados pela sua atenção… - responde Júlio, depois dele acabar aquela sua elegia.