Anais do I Congresso Internacional do PPG-Letras

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SUMÁRIO O Congresso

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Entre o sensível e o rústico: considerações sobre Infância - Cristiana Tiradentes BOAVENTURA

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Quando um livro de poemas conta uma vida: Memorialismo em tempos de globalização - Daura Del Vigna GALVÃO

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Poesia e Filosofia em Cecília Meireles e Heidegger: possibilidade de diálogo - Delvanir LOPES

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Literatura e Jornalismo: confluência de gêneros nos textos de imprensa de Eça de Queirós - Édima de Souza MATTOS

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Mistério Marker: uma análise do filme La Jetée - Elaine Zeranze BrunO

195

As fronteiras entre Literatura e Cinema e o “risco” das adaptações cinematográficas – Amor obsessivo (2004) como hipertexto de Amor sem fim (2011) - Fernanda de Souza SBRISSA

203

Produção cinematográfica entre os muros da escola: o alargamento das fronteiras e suas causas - Flavio Adriano Nantes NUNES

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Os fingimentos de Paulo Henriques Britto e Fernando Pessoa Gabriel Dória RACHWAL

227

A crise de identidade em Madrox de Peter David - Guilherme Mariano Martins da SILVA

239

Ora(L)iteratura: o tema da narrativa oral no conto Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi, de João Guimarães Rosa - Heder Junior dos SANTOS

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O SEL

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A representação da mulher no romance de autoria feminina paranaense - Adriana Lopes de ARAUJO

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O tempo e o espaço em Bouvard e Pécuchet e a antecipação de conceitos modernos na literatura - Ana Claudia Pinheiro Dias NOGUEIRA

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Fronteiras da Literatura Brasileira contemporânea: o papel do intelectual no Diário Caroliniano - Ana Karoliny Teixeira da COSTA; Rogério Silva PEREIRA

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O lirismo de Marques Rebelo - Ariovaldo VIDAL

61

A tênue fronteira entre fato e ficção no romance Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires - Audrey Castañón MATTOS

75

Marques Rebelo e as cenas das cidades brasileiras - Claudia Vanessa BERGAMINI; Regina Célia dos Santos ALVES

91

Violência biográfica: a tensão entre o público e o privado nas narrativas da vida - Cléber DUNGUE

103

Literatura enquanto gesto: Memória e Ficção em dois romances de Miguel Sanches Neto - Igor Ximenes GRACIANO

273

Literatura Brasileira contemporânea: o discurso crítico subversivo do intelectual marginal - Cléber José de OLIVEIRA

115

O Bel Canto italiano e a Guerra Federalista - Ionara SATIN

287

A presença de Dom Casmurro em capitu: as reverberações de vozes pelos procedimentos discursivos de citação - Cristiane Passafaro GUZZI

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O Diário Extravagante de Lima Barreto - Isabela da Hora TRINDADE

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Ciúme e relações triangulares nos romances Senilità, de Italo Svevo, e Dom Casmurro de Machado de Assis - Ivair Carlos CASTELAN

311


Tradição e modernidade na poesia de Péricles Eugênio da Silva Ramos - João Francisco Pereira Nunes JUNQUEIRA

325

Apontamentos em navegação de cabotagem: memórais fragamentadas de Jorge Amado - Maria Cleunice F. da SILVA; Sheila Dias MACIEL

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Arriscando fronteiras: El Exilio Voluntario e os bolivianos em São Paulo - José Maurício da Conceição ROCHA

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Fontes literárias: memória cultural para a reconstrução da identidade de uma Literatura pluricultural - Markley Florentino CARVALHO; Alexandra Santos PINHEIRO

501

A ética do cuidado de si na Obra Reunida, de Campos de Carvalho: a busca por uma estética da existência - Josiane Gonzaga OLIVEIRA

351

A dramatização da linguagem em Lygia Bojunga - Marta Yumi ANDO

509

Drummond e Abreu, engajamento e/ou indiferença: a memória como uma sentença a avaliar/validar o passado - Juliana Silva DIAS

363

Identidade e Experiência em Pelo Fundo da Agulha de Antônio Torres - Maurício SILVA

525

O folhetim na formação do romance brasileiro - Juliana da Silva PASSOS

375

A dicção poética e o verso romântico na crítica literária e na poesia de Álvares de Azevedo - Natália Gonçalves de Souza SANTOS

537

A Literatura entre fronteiras: aproximações entre Pedro Nava e Euclides da Cunha - Júlio de Souza VALLE Neto

391

Limites entre ficção e história no roman a cléf “O inferno é aqui mesmo”, de Luiz Vilela - Pauliane AMARAL

547

Questionando as fronteiras da identidade: O outro pé da sereia e a questão da africanidade - Luís Francisco Martorano MARTINI

405

Apontamentos sobre o microconto - Rauer Ribeiro RODRIGUES

565

A emancipação do homem comum em Balaio de Bugre, de Hélio Serejo - Mara Regina PACHECO; Leoné Astride BARZOTTO

417

A influência do outro: nos escritos do eu de Werther - Roberson Rosa dos SANTOS

571 585

Riscos das fronteiras em Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, de Heloisa Maranhão - Marcela de Araujo PINTO

431

A invenção da perversão na obra de Glauco Mattoso - Ronnie Francisco CARDOSO

601

Roberto Piva: apropriações, criação poética e crítica - Marcelo A. M. VERONESE

441

O Fantástico em discussão - Roxana Guadalupe Herrera ALVAREZ

611

A estética diaspórica na construção da(s) identidade(s) nas sociedades pós-coloniais: um estudo sobre Clarice Lispector e Mia Couto - Márcia Pereira da VEIGA BUCHEB

455

Multicultural, multiculturalismo e políticas multiculturais para minorias étnicas, em especial dos ciganos - Silvia R. C. F. SIMÕES

623

A voz (até então) silenciada: a experiência de ser mulher no bildungsroman feminino contemporâneo - Maria Alessandra GALBIATI

471

O risco da escrita como projeto literário machadiano - Daniela Soares PORTELA Oscar Wilde: teoria e prática - Stephania Ribeiro do AMARAL

637

O lápis e o vinho do carpinteiro - Tatiana Bernacci SANCHEZ

651


Riscos e fronteiras no lager – Primo Levi e a zona cinzenta - Tatiana GANDELMAN

667

A terceira margem da dos pioneiros de Tangará da Serra-MT Tieko Yamaguchi MIYAZAKI; Walnice Matos VILALVA

677

A permanência do regionalismo no romance de Carmo Bernardes - Vanilde Gonçalves dos Santos LEITE

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o risco da escrita (novo duplo sentido): (1) o risco como traço da letra, do nome, do verbo - o risco singular das palavras que compõe o corpo material da literatura (da escrita literária); (2) escrever como arriscar-se - arriscar-se, entre outras coisas, a comunicar-se, a romper fronteiras entre os indivíduos, entre os países, entre as culturas; o risco como perigo: o perigo de avizinhar-se, de aproximar literaturas e culturas separadas por fronteiras definidas, o perigo de romper com limites preestabelecidos (de hierarquias sociopolíticas, de gêneros de escrita, de áreas do conhecimento), o perigo de lidar com o contemporâneo, com o novo, com o ainda não definido.

O CONGRESSO INTERNACIONAL DO PPGLETRAS O I CONGRESSO INTERNACIONAL DO PPGLETRAS é uma iniciativa do Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (IBILCE), câmpus da Universidade Estadual Paulista (UNESP), de São José do Rio Preto (SP). O encontro reúne pesquisadores de literatura - mestres, doutores, pós-graduandos e graduandos. A temática do evento congrega dois paradigmas: · fronteiras: como marcas geográficas e políticas, que supostamente definem diferenças culturais (outras fronteiras); como diálogo entre os diferentes lados (da fronteira), entre as diferentes línguas - literaturas - culturas, em nome de valores e princípios semelhantes; como diferença entre os gêneros literários: questão polêmica, controversa e instigante da contemporaneidade, da literatura contemporânea; como a difícil delimitação de períodos literários; como a distinção (também difícil de se estabelecer) entre a contemporaneidade e a modernidade, e o diálogo entre áreas fronteiriças do conhecimento: literatura, história, filosofia. · riscos: inicialmente (de novo), os riscos imaginários das fronteiras geográficas e políticas, a risca no mapa, o traçado criado historicamente para separar povos e culturas, mas que ao mesmo tempo os colocam lado a lado, permitindo a aproximação;

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Este congresso propõe, por fim, uma discussão entre a universidade e seu papel nas fronteiras, sua internacionalização e sua função de mediadora e questionadora das zonas culturais de modo a fomentar o diálogo e problematizar as dimensões temporais e espaciais, ciente de que todo olhar para a literatura, a arte e a cultura corre um risco.


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the lines and risks of the writing: (1) as in the lines of letters, names, and verbs – the singular line of words that compose the material body of literature (of literary writing); (2) writing as taking risks on, among other things, communicating oneself, breaking boundaries among individuals, countries, and cultures; a line as a risk: the risk of being near, of approximating literatures and cultures separated by definite boundaries, the risk of breaking preestablished limits (of sociopolitical hierarchies, of writing genres, and of areas of knowledge), the risk of dealing with what is contemporary, new, and yet to be defined.

THE INTERNATIONAL CONFERENCE OF THE GRADUATE STUDIES PROGRAM IN LITERATURE The 1st INTERNATIONAL CONFERENCE OF THE GRADUATE STUDIES PROGRAM IN LITERATURE is an initiative of the Graduate Studies Program in Literature from the Institute of Biosciences, Languages, and Exact Sciences (IBILCE), at São Paulo State University (UNESP), Campus of São José do Rio Preto (SP). The conference will gather literature scholars of all levels: PhD‟s, graduate and undergraduate students. The theme of the conference will envelop two paradigms: · borders: as geographical and political marks, which supposedly define cultural differences (other borders); as a dialogue between the different sides (of the border), among the different languages – literatures – cultures, in the name of similar values and principles; as a difference among literary genres: polemic, controversial and instigating issue of contemporaneity and contemporary literature; as the difficult delimitation of literary periods; as the (also difficult to establish) distinction between contemporaneity and modernity, and the dialogue among border areas of knowledge: literature, history, philosophy. · border lines and risks: initially (again), the imaginary lines of political and geographical borders, the lines on the map, the outline historically created to separate peoples and cultures, but that at the same time put them side by side and allow for an approximation;

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Finally, this conference proposes a discussion regarding universities and their role on boundaries, their internationalization and their function as mediators and questioners of cultural zones, in order to encourage dialoguing and problematize spatial and temporal dimensions, knowing that every look at literature, art and culture involves running risks.


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O SEL O XII SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS (XII SEL) é parte das atividades do Programa de Pós-Graduação em Letras do IBILCE. Tem como objetivo promover o debate dos projetos desenvolvidos em nível de Mestrado e Doutorado, a fim de que haja, por meio da crítica, a melhoria no trabalho de pesquisa como um todo. É um espaço importante para o pós-graduando, uma vez que já se prepara para o embate crítico de sua pesquisa. As bancas de avaliação dos projetos, além de professores do Programa, são compostas por docentes convidados especialmente para esse fim, permitindo uma discussão mais ampla das questões implicadas nos trabalhos.

THE LITERARY STUDIES COLLOQUIUM The 12th LITERARY STUDIES COLLOQUIUM (12th SEL) forms part of the activities held by the Graduate Studies Program in Literature of IBILCE. It aims to promote discussions about the projects being developed at the Masters and Ph.D. levels, in order to improve research through scholarly criticism. It is an important space for graduate students, as they prepare themselves for a critical debate of their research. Project-evaluating committees, in addition to graduate faculty, are composed of professors invited especially for this event, allowing for a broader discussion of the issues related to the papers.

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A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NO ROMANCE DE AUTORIA FEMININA PARANAENSE Adriana Lopes de ARAUJO (UEM/Maringá-PR) Historicamente, a mulher foi sempre mantida como uma figura emudecida e marginalizada em diversos aspectos. O fato de ter sido tomada por sua suposta fragilidade e incapacidade de viver fora do domínio patriarcal implicou, não raro, o sacrifício de sua própria identidade. Contudo, tendo em vista as conquistas empreendidas pelo movimento feminista, temse presenciado, seja na seara social, seja literária, a procura feminina por autenticidade e independência; trata-se do sujeito feminino ativo. Diante disso é que se pretende, em um primeiro momento, proporcionar a interpretação dos resultados do projeto de pesquisa “A personagem na literatura de autoria feminina paranaense contemporânea”, coordenado pela Profª Drª Lúcia Osana Zolin e com o apoio da Fundação Araucária. Especificamente, os que se referem à personagem feminina que compõe o gênero romance publicado por editora comercial e órgãos públicos paranaenses e de outros Estados. Em um segundo instante, por sua vez, destaca-se a análise acerca das personagens femininas que integram a prosa de ficção contemporânea (publicada a partir dos anos 1970) de duas escritoras paranaenses, sendo elas Bárbara Lia e Bebéti do Amaral Gurgel, a fim de evidenciar como tais personagens são construídas e representadas ao longo da narrativa, se reduplicam, questionam ou ironizam as relações tradicionais de gênero. O estudo se insere, portanto, no âmbito dos estudos de gênero e toma como referencial teórico a Teoria Crítica Feminista. PALAVRAS-CHAVE: Representação; Personagem feminina; Autoria feminina.

Nas décadas de 1960/70, no contexto do pensamento feminista, houve o desenvolvimento da teoria dos gêneros que atua como modelo de interpretação das relações sociais e de sua história. Elaine Showalter (1994) classifica o processo de escrita da mulher em três fases; feminina, ligada à reprodução dos preceitos

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patriarcais; feminista, que questiona os papéis atribuídos à mulher, portanto, trata-se de uma fase marcada pelo questionamento e polemização e, por último a fase fêmea, que se concentra na autodescoberta da mulher, na busca de sua identidade. Nesse estado de coisas, é possível observar a classificação de Showalter não somente na literatura brasileira, mas também na paranaense. Nos textos anteriores a 1970 é frequente a representação da mulher voltada para o seio patriarcal, nas funções de esposa e mãe. Como é o caso do romance Êle, de Didi Fonseca, publicado pela editora José Olympio em 1956 evidencia, entre outras, a trajetória de duas personagens femininas: Maria da Graça e Maria Rosa. Tais personagens estabelecem no desenvolver da narrativa, em comparação, representações do feminino aparentemente paradoxais. Maria da Graça exibe o perfil de uma ideologia calcada nos moldes patriarcais. Demonstra o temor de transgredir os limites da moralidade do seu tempo. É sonhadora e volta-se para a busca de um amor à primeira vista. A personagem, além disso, expressa atitudes que lhe conferem um determinado caráter moral. Maria Rosa, em consonância, por não seguir os preceitos patriarcais é (dês) construída de forma negativa: é representada como uma mulher ambiciosa e realiza, durante a obra, ações consideradas inaceitáveis para sua família e a sociedade da qual pertence. A primeira obra que põe em evidencia um retrato da literatura paranaense é O Paraná mental, de Mariana Coelho, editado em Curitiba em 1908, tendo sua reedição pela Imprensa Oficial do Estado em 2002. Eis o que a autora afirma sobre seu livro: Sendo verdade indiscutível que o desenvolvimento crescente das belas artes marca o grau de progresso na civilização de um povo, este belo Paraná é já mais que suficientemente distinto para merecer uma carinhosa apreciação analítica dos povos mais adiantados Em literatura, principalmente, tem progredido de uma maneira notável desde muito recente data, sendo já bastante frequente a publicação de obras literárias,


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tanto em verso como em prosa, realmente dignas, dentro da diversidade da sua cor ou forma artísticas, de uma lisonjeira propaganda fora do país. (COELHO, 2002, p. 31).

Porém, em sua análise, Mariana Coelho destaca apenas uma mulher dentre 103 literatos no Paraná, é ela Júlia da Costa, poeta e considerada a primeira paranaense a publicar uma obra. Se os primeiros textos escritos por mulheres no Brasil apontam para figuras femininas silenciadas pela sociedade patriarcal, sendo, não raro, conduzidas à submissão e à marginalidade, a literatura de autoria feminina contemporânea, passou, então, a representar a mulher sob uma ótica diferente daquela que permeava a literatura tradicional, propondo um questionamento da condição de subjugada da mulher e promovendo discussões a respeito da dominação masculina. No que tange ao cenário paranaense, tal discussão não se figura de modo distinto, mas sim potencializado, uma vez que somente poucas escritoras conseguiram se inserir no campo literário até meados do século XX. É a partir desse período, portanto, que se verifica a publicação de inúmeras obras de autoria feminina, porém com pouco reconhecimento na esfera nacional. Nesse viés é que nossa proposta tem por intuito promover a visibilidade da literatura de autoria feminina paranaense, bem como contribuir para as pesquisas acerca da representação literária do gênero. Para tanto, pretende-se empreender um estudo acerca da personagem feminina que compõe a prosa contemporânea (a partir dos anos 1970) de autoria feminina no Paraná, especificamente, do gênero romance, publicado por editora comercial e/ou por meio de órgãos públicos paranaenses e de outros Estados. Até o momento da pesquisa foram catalogados 22 romances contemporâneos (pós 70) publicados por meio de editoras e órgãos públicos. No que tange às personagens, evidencia-se um número total de 128, sendo que 68 são masculinas e 60 femininas.

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Mesmo com um número elevado de personagens masculinas, as obras de autoria feminina paranaense analisadas evidenciaram que são as personagens femininas, em sua maioria, protagonistas (15 personagens) e narradoras (4 personagens), em oposição às personagens masculinas, que são somente 4 protagonistas e 64 coadjuvantes. Outro dado importante é o de que a maioria das personagens femininas é branca, sendo que quase todas as personagens femininas de classe média exercem papéis sociais ativos, são elas professoras, advogadas, escritoras, empresárias, jornalistas, médicas, farmacêutica. Somente 3 personagens são donas de casa. Tal resultado, no entanto, age em contrapartida com os obtidos na pesquisa A personagem do romance contemporâneo brasileiro, coordenada pela professora Regina Dalcastagné. Evidenciando que as personagens femininas exercem, em sua maioria, papéis sociais tradicionais (mãe, esposa, dona de casa). Quando se pensa em literatura paranaense, os primeiros nomes que surgem são os de Paulo Leminski, Dalton Trevisan e Domingos Pellegrini. No entanto, já se faz ouvir vozes femininas como as de Bebéti do Amaral Gurgel e Bárbara Lia. Verbete no Dicionário crítico de escritoras brasileiras: 1711-2001, por Nelly Novaes Coelho (2002), Elisabeth Mader Do Amaral Gurgel ou Bebéti do Amaral Gurgel, como é conhecida, nasceu em Curitiba/Paraná, no ano de 1954. Além de escritora, é também jornalista, tradutora e professora de inglês e português para estrangeiros. Atualmente reside no Brasil, mas já morou durante um longo período na Europa ( Alemanha, Holanda e Inglaterra), onde trabalhou para revistas literárias estrangeiras e jornais brasileiros. Entre suas publicações estão matérias, contos, poemas e romances presentes tanto no Brasil como no exterior. Seus livros são voltados tanto para leitores adultos, como também para o público infantojuvenil, abordando, entre outros temas, a problemática feminina, bem como a sexualidade contemporânea. Em A quem interessar possa (1993) e Pecados safados (1995) apresenta personagens protagonistas homossexuais. Nesse segundo romance, por


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exemplo, a protagonista Isabel, aluna de um colégio de freiras descobre-se homossexual e aos poucos busca compreender seus comportamentos. Na década de 90, mais precisamente no ano de 1991, Bebéti inaugurou na cidade de Curitiba a primeira livraria feminista do Brasil, dando-lhe um nome bastante simbólico: Lilith. Entre diversas interpretações está a da cabala em que Lilith é referida como a primeira mulher de Adão, sendo, ademais, acusada na passagem (Patai 81: 455f) de ser a serpente que levou Eva a comer o fruto proibido. O Antigo Testamento, por sua vez, a descreve como um demônio feminino da mitologia Babilônica que vivia em lugares desertos. Lilith é um nome bastante conhecido no movimento feminista e este busca resgatar, justamente, a personagem repudiada pela igreja que se recusou a deitar embaixo de Adão por não querer nada que fosse embaixo, mas sim ao lado, buscando uma igualdade do gênero. Por recusar a situação de inferior, do domínio do homem sobre ela é que decide abandonar o Éden. Diante disso é que na modernidade seu nome está ligado ao da primeira mulher a rebelar-se contra o sistema patriarcal. O intuito de Bebéti em abrir uma livraria feminista no país, deve-se ao fato de que a escritora viveu durante muitos anos na Europa, lugar em que era muito comum a existência de livrarias feministas, sendo que, até então, não havia nenhuma no Brasil. A livraria esteve com suas portas abertas durante dez anos. No primeiro ano, a escritora explica que foi bastante aceita pelas mulheres, em contrapartida, não foi bem quista pelo público masculino. Bárbara Lia, por sua vez, possui obras publicadas em forma de prosa e de verso. É autora dos seguintes livros de poesia: O sorriso de Leonardo (Kafka, Edições Baratas, 2004), Noir (Edição do Autor, 2006), O sal das rosas (Lumme Editor, 2006) e A última chuva (Mulheres Emergentes Edições Alternativas, 2007). Ademais, foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura 2004, com o romance Cereja & Blues, publicou poemas nos jornais Rascunho, Garatuja e

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Mulheres Emergentes; nas revistas Et Cetera, Coyote e Ontem Choveu no Futuro. No campo da prosa, por sua vez, encontra-se Solidão calcinada (SEEC, 2007) e Constelação de ossos (Vidráguas, 2010). O romance Solidão calcinada (2007) estrutura-se em sete partes. Ambientada no Rio de Janeiro, a narrativa revela a trajetória da personagem protagonista Bárbara Piccoli, uma jornalista que ao redigir uma resenha a respeito do poeta Pablo Arrabal, descobre que este viria a ser seu pai biológico. Além disso, a obra evidencia quatro gerações de mulheres da família de Bárbara: sua bisavó Pietra, sua avó Esperança, sua mãe Serena e a protagonista. Nessa ciranda feminina, iniciemos pela ancestral Pietra, bisavó de Bárbara. Pertencente a uma família tradicional, ela exibe o perfil de uma ideologia calcada nos moldes patriarcais. Sonhadora, volta-se para a busca de um amor perfeito: “... à procura daquilo que uma garota sonha: um cavalheiro belo e de olhar gentil” (LIA, 2007, p. 59), ou ainda, “posso ver um vulto que veste um costume impecável dobrar a esquina com uma sobriedade de príncipe” (LIA, 2007, p. 60). Pietra é vista, todavia, como a ancestral mais ilustre, era “aquela que sorria em um porta-retratos de louça branca enfeitado com borboletas lilases” (LIA, 2007, p. 56). Porém restou lhe somente uma viuvez aos trinta anos e uma vida solitária e de desgosto. Casada com um homem de idade mais avançada do que ela e sendo sua segunda esposa, presencia em uma primeira instância de seu relacionamento amoroso uma determinada estabilidade. No entanto, as perdas materiais de seu marido, negócios mal sucedidos e a bebida ocasionam a desestruturação matrimonial. Descortina-se, assim, a desconstrução de todas as expectativas da personagem. Em Pietra podemos observar o perfil de mulher voltada para o matrimônio. Simone de Beauvoir postula que “ambos os sexos são necessários um ao outro, mas essa necessidade nunca engendrou nenhuma reciprocidade” (BEAUVOIR, 1980, p. 160). É dessa


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forma que a mulher tem no casamento, a justificativa social de sua existência. Uma vez inserida dentro dos padrões preconizados pela sociedade é que ela volta-se à imanência, ou seja, assume o papel da perpetuação da espécie e manutenção do lar. Diante disso é que o casamento faz da mulher dona de um lar, tendo como destino a educação dos filhos e os cuidados domésticos. A ancestral da geração de mulheres Piccoli busca, portanto, a completa realização no casamento, reproduzindo a estrutura social vigente. O infortúnio na relação conjugal a torna uma pessoa amarga e fechada para novos relacionamentos, daí a comparação de seu nome com a palavra pedra. Esperança, por sua vez, nasce em uma família inicialmente estruturada que, ao entrar em declínio econômico, é amparada com sua filha por sua mãe, Pietra. Nesse momento, Esperança pertence a uma nova geração e as diferenças são refletidas nas opções que faz para sua vida. Ela, assim, demonstra ser senhora de seu destino, escreve sua própria história, revelando-se como uma mulher despreocupada com o julgamento da sociedade em relação à suas atitudes e pensamentos: “nunca falava sobre sua condição estranha” (LIA, 2007, p. 72). Esperança rompe com os paradigmas sociais, o que denota o declínio do patriarcado na trajetória dessa família. A avó de Bárbara, além disso, teve um relacionamento na condição de amante e, ainda, assumiu a responsabilidade de ser mãe e criar sua filha sem a presença paterna. A filha Serena, terceira geração da família, tem uma morte prematura aos vinte anos. Jovem militante, entrega-se a uma relação amorosa com o poeta Pablo Arrabal e com ele vive intensamente os perigos do período do regime militar no Brasil: “éramos, já, fugitivos de um regime perigoso. Éramos pessoas procuradas” (LIA, 2007, p. 37). É a mulher, portanto, que sofre maior repressão na obra, atuando como representação do ser feminino que anseia ser sujeito ativo no meio opressor, que reivindica voz e vez. Em Serena, os traços do patriarcalismo se perdem, pois ao ser

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criada somente pela mãe não possui vínculo com a figura paterna. Do relacionamento com o poeta nasceu Bárbara, que foi entregue aos cuidados da avó por ocasião de sua prisão. O fim de Serena é trágico: “cortando os pulsos em agonia” (LIA, 2007, p. 16). Ao longo da narrativa, podemos perceber que foram guardados durante anos “os antigos colares, algumas roupas, os livros, o perfume que em cada ano perdia um pouco de sua fragrância” (LIA, 2007, p. 15), o que denota uma forma de conservar a história dessas mulheres. A trajetória de Bárbara Piccoli descortina um perfil de mulher que refuta os moldes do patriarcalismo que se manteve presente nas gerações anteriores. Determinação, curiosidade representam algumas de suas características e atributos que lhe constituem. Diferente de suas antecessoras, o conflito da protagonista demonstra ser interno. Devido, principalmente, ao fato de não ter conhecido a mãe, de o pai ser desconhecido e de ter perdido a avó. No âmbito profissional, Bárbara é bem sucedida, atuando como uma jornalista dedicada, conquista seu espaço profissional, o que lhe confere autonomia em relação às outras mulheres da família. É, portanto, a única que possui uma trajetória que desencadeia em um final feliz. Diante disso, verifica-se que a geração de mulheres de Solidão calcinada é representada por suas semelhanças e diferenças. Ademais, em todas as personagens é possível observar características comuns, como a presença da solidão ocasionada pelos conflitos amorosos e a desestruturação familiar através de perdas. Outra referência encontra-se no posicionamento em relação ao patriarcado em que cada uma age de modo distinto diante dos papéis tradicionais de gênero. No que concerne a essa questão, a autora fundamenta suas abordagens a partir de eixos teóricos que, entre outros, afirmam que a perspectiva de gênero permite entender as relações sociais entre homens e mulheres, o que pressupõe mudanças e permanências. Vale destacar, portanto, que a posição atribuída à mulher no meio


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social desde sua infância até a vida adulta é fundamental para a percepção de como opera a ideologia do gênero. Nesse momento, ressaltam-se as relações de Bárbara com duas outras personagens masculinas: Gabriel, seu namorado e Pablo, seu suposto pai. A relação entre a protagonista e Gabriel são marcadas pelo ciúme. Em vista disso é que os papéis de gênero mostram-se invertidos: é Gabriel que sente insegurança no relacionamento. O fato de Bárbara possuir uma profissão e se dedicar a ela passa a ser vista como algo negativo para o namorado: “Sei. O poeta que está roubando minha namorada. Matéria demorada em Bárbara? O que tem o poeta?” (LIA, 2007, p. 13). Tal atitude, assim, ocasiona uma situação desconfortável entre os dois. No entanto, a protagonista possui voz e não aceita a posição de subjugada perante as relações de gênero. Ela, assim, expressa sua vontade sem a preocupação com a convenção social que determina quais tarefas devem ser executadas exclusivamente por homens ou por mulheres. A relação entre Bárbara e Pablo age, em um primeiro instante, através da curiosidade jornalística que a remete à vida e obra do poeta, jovem de família rica, guerrilheiro, que publicou uma única coletânea de poesias intitulada Crepúsculo. Um segundo momento ocorre, todavia, após descobrir que o poeta seria seu pai biológico. Mesmo antes de ter a confirmação, Bárbara sentia que havia algo além do simples encantamento pela poesia de Pablo Arrabal: “comecei a sonhar com ele, e não conseguia me desligar de tudo o que li como sempre faço quando escrevo uma matéria” (LIA, 2007, p. 53). A relação mais intensa com Pablo evidencia-se na dúvida, que descortina uma busca incansável que caminha para a resolução do quebra-cabeça. Ela questiona-se “qual a razão de esconder algo tão lindo? De que ela era filha de um poeta magnífico que desaparecera em um tempo em que muitos desapareciam”( LIA, 2007, p. 22). Vale ressaltar que a ideologia patriarcal encontra-se em

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constante declínio na obra. Em cada geração o patriarcalismo apresenta-se com menos intensidade, perdendo suas forças diante das conquistas femininas, como a de exercer uma profissão. O romance Solidão calcinada evidencia uma geração de mulheres em que os preceitos sociais, altamente punitivos, o medo do desconhecido e a insegurança conseguiram mantê-las submissas em um primeiro instante, mas o próprio reconhecimento de sua condição revelou-se como o primeiro passo rumo ao encontro de sua identidade, ou seja, de sua transgressão. Personagens femininas que tanto reproduzem o sistema patriarcal, revelandose como inferior, submissa, como também manifestam o desejo de romper com a pressão do paradigma falocêntrico. Na narrativa podemos perceber mulheres que passam de intimidadas para desafiadoras, que anseiam tornarem-se sujeito ativo na história e não permanecer à margem, emudecidas no meio social, como é o caso da protagonista, Bárbara e de sua mãe Serena. Em Constelação de ossos (2010), a protagonista Lynx representa um feminino sofrido que é tecido por sensibilidade, delicadeza, violência e mágoas. É possível traçar dois instantes de sua trajetória, uma repleta de brilho e claridade, em que se situa sua infância, antes da morte de sua mãe, assim como após o período que passa a morar com Nyx, amiga e poeta, e outro marcado pela escuridão, inseguranças e invisibilidade, período em que busca seu próprio destino. Durante sua infância, Lynx gostava de brincar no jardim com sua vizinha Layla. Deslumbrava-se ao ver a força das saúvas: “Eu sonhava ter a força das saúvas. Elas podiam transportar o mundo em suas costas” (LIA, 2010, p. 11). É, ainda, durante a infância que sua mãe gostava de cortar seu cabelo como de personagem de conto de fadas, pois lembrava a Branca de Neve, embora seu destino não fosse tal como nas histórias. Ela pertencia a uma família pobre e morava com sua mãe, enquanto seu pai vivia com outra família na mesma cidade, Curitiba. Após a morte de sua mãe, no entanto, Lynx sente sua constelação


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carregada de “estrelas mortas espalhadas pelo ambiente” (LIA, 2010, p. 20). Assim ela afirma: “Procurava nos olhares alguma luz e a opacidade me apavorava” (LIA, 2010, p. 20). A protagonista passa a morar, desse modo, na casa de seu pai com a madrasta e o filho dela. Após, é violentada pelo rapaz e passa a ser considerada mentirosa para a família, na tentativa de contar o que aconteceu. Diante da agonia e da tristeza resolve fugir e passa a ser moradora de rua até o momento em que um amigo de infância a reconhece. Dali em diante inicia sua trajetória enquanto garota de programa e cantora de bar. A vida adulta da protagonista, portanto, é o retrato de seu epíteto, Lynx: constelação apagada, invisível. A figura feminina que emerge na narrativa desnuda traços de sensualidade. Conforme Susana Pravaz (1981, p. 58), esse perfil de mulher é “a luz que atrai, que mostra veredas insólitas, que incita ao movimento ao despertar paixões”. A concepção feminina descrita, portanto, é a da mulher amante ou sensual. Ela apresenta características bem definidas e trata-se, todavia, de uma mulher cujo território é o da relação com os homens. O que se visualiza na mulher sensual é o apelo ao corpo. A situação estética é algo a ser contemplado. Mesmo sendo uma palavra tão desgastada em todos os sentidos, a palavra objeto revela uma face desse estilo de mulher. “A mulher é um existente a quem se pede que se faça objeto; enquanto sujeito, ela tem uma sensualidade agressiva que não se satisfaz com o corpo masculino” (BEAUVOIR, 1980, p. 147). É ela, essa mulher de caprichos barrocos, frágil, feminina, e que desconsidera a palavra não. A sensual sobrevive de valores promovidos pela cultura. Nesse caso, a beleza física. Por isso, ao contrário da mulher doméstica que apresenta como mandato familiar o “ter” (família), como visto no romance Solidão calcinada (2007), a figura feminina sensual tem o “aparecer” como valor central. O “fazer-se notar agradando aos outros é condição imprescindível para assegurar um lugar privilegiado em sua existência” (PRAVAZ, 1981, p. 78). Nessa esteira, são exemplos de mulher sensual as prostitutas,

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as amantes, adúlteras que têm no prazer sua afirmação. Em relação a isso, Simone de Beauvoir explica por um pensamento existencialista da relação entre os sexos: “Em um plano elevado, a vida do homem está na glória, a da mulher no amor. A mulher só se iguala ao homem fazendo de sua vida perpétua oferenda, como a do homem é uma perpétua ação” (BEAUVOIR, 1980, p. 437). Desse modo, como a personagem sensual não possui um lugar próprio, participante, porque este lhe é negado, refugia-se, então, em sua habilidade para seduzir e agradar. A mulher desse estilo, muitas vezes, consegue a liberdade econômica. O trabalho, a priori, “lhe dará acesso a outros homens, a tentações, ao esquecer-se dos deveres familiares e das normas conjugais” (PRAVAZ, 1981, p. 112). A personagem feminina é descrita como “mulher objeto sexual “ou como “Mulher objeto do olhar masculino”. Enquanto garota de programa possui vários amantes, entre eles Heleno, um homem casado que buscava somente prazer e sexo: “Mas ele se livrava de mim após saciar a sede” (LIA, 2010, p. 10). Nas teias da dominação masculina, o ser feminino apresenta-se frágil. “São pálidas figuras ao lado das dos grandes homens” (BEAUVOIR, 1980, p. 30). A protagonista sentia-se como uma boneca de pano entorpecida de álcool nas mãos do amante. Com ele sentia perder sua voz em meio à desesperança, não se enxergava como sujeito. Porém, a todo o momento sonhava em encontrar um amor que a vivificasse. Seu outro amante é Amâncio, pai de sua melhor amiga de infância. É, todavia, ao reconhecer este último que busca desistir de sua condição. Vai morar, então, com Nyx, poeta que mora sozinha em uma casa localizada na Serra do Mar. É durante o período em que convive com ela que a protagonista se redescobre e sentese segura novamente, tal qual na sua infância ao lado da mãe. Lá conhece Igor, símbolo do verdadeiro amor. Contudo, sente-se envergonhada por seu passado e o esconde do sobrinho de Nyx. Diante disso é possível arrolar uma caracterização da trajetória da personagem protagonista. Em um primeiro momento,


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representado pelo conforto dos braços da mãe em sua infância, é que Lynx possui esperança, que se sente segura. Um segundo período, por sua vez, enquanto garota de programa, sente o arrependimento durante todas as noites, possui sonhos embaçados e ausência de voz. É lixo, resto, considerava-se como a carne da qual o homem se alimentava. Tinha, todavia, suas noites vazias, cheias de desesperança, medo e delírio. Interior borrado. Logo, era somente como cantora de bar que sente que possui voz em meio a ausência. Tinha noites felizes, mesmo que nunca tenha amado ou fosse amada como nas canções que cantava. Por último, instante em que passa a morar na casa de Nyx, não se sente mais como quem se equilibra do nada, vê que é útil e isso lhe traz segurança novamente. Assim, embora marcada por uma trajetória sofrida, de violação ao corpo e com sonhos submersos na desesperança, Lynx busca resgatar sua voz. Nesse sentido, ao voltar-se para a personagem protagonista, constata-se que, mesmo com características de alteridade a mulher, aqui, apresenta-se em processo de conscientização. Conclui-se, portanto, que se os primeiros textos escritos por mulheres no Brasil apontam para figuras femininas silenciadas pela sociedade patriarcal, sendo, não raro, conduzidas à submissão e à marginalidade, a literatura de autoria feminina contemporânea e especificamente a paranaense, objeto de nosso estudo, passou, então, a representar a mulher sob uma ótica diferente daquela que permeava a literatura tradicional, propondo um questionamento da condição de subjugada da mulher e promovendo discussões a respeito da dominação masculina.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. COELHO, Mariana. O Paraná Mental. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2002. LIA, Bárbara. Solidão Calcinada. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura, 2007. LIA, Bárbara. Constelação de ossos. Porto Alegre: Vidráguas, 2010.

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PRAVAZ, Susana. Três estilos de mulher: A doméstica, a sensual, a combativa. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1981.


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Bouvard e Pécuchet: um precursor moderno A nova posição tomada e conquistada pelo modernismo em relação à mudança da concepção do tempo/espaço e da negatividade dentro da literatura e nas artes plásticas ocorreu durante um determinado tempo. Assim a obra Bouvard e Pécuchet mostra estes elementos e pode ser considerada uma antecipação literária da estética da colagem e, principalmente, a negatividade, por meio de idéias de vários autores para compor a narrativa e a composição de um “Tolicitário”(Dicionário de idéias feitas) ao finalizar o livro “que ambiguamente confunde o leitor, autor e personagens, fictícios colecionadores de verbetes” (CAMPOS,1978, p.18).

O TEMPO E O ESPAÇO EM BOUVARD E PéCUCHET E A ANTECIPAÇÃO DE CONCEITOS MODERNOS NA LITERATURA Ana Claudia Pinheiro Dias Nogueira Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)[1] “Todas as nossas ações acontecem no espaço. A vida evolui no tempo.” Espaço e Tempo, Eddi de Wolf[2]

Resumo: Este trabalho tem como objetivo mostrar através da obra Bouvard e Pécuchet, de Gustave Flaubert, a antecipação de conceitos modernos na literatura e nas artes em si, como a quebra de espaço/tempo em especial. A partir disso, faremos um percurso para que possamos compreender tal processo e como isso se compõe. Palavras-chave: Literatura. Tempo e Espaço. Antecipação. Conceitos contemporâneos. Teoria literária. Abstract: This work aims to show through the work of Bouvard and Pecuchet, by Gustave Flaubert, the anticipation of modern concepts in literature and in the arts themselves, as the breaking of space/time in particular. From this, we will follow a way to comprehend such process and how it is composed in the referred work. Keywords: Literature. Time and Space; Anticipation; Contemporary Concepts; Literary theory. 1

anaclaudia.pinheirodias@gmail.com

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WOLF, Eddi de. Espaço e Tempo. P. 35.

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O Dicionário de idéias prontas que compõe a obra Bouvard e Pécuchet, remete “ao grau zero da escrita”, “sem continuidade literária, ao mecanismo da colagem e ao gesto anárquico de Duchamp, renunciando a toda a pintura retiniana e se apropriando dos “ready-made” (CAMPOS,1978, p.20-21). Pode-se dizer que Flaubert se apropriou da estrutura de um dicionário comum, dando novos significados e funções a ele, a partir de colagens de idéias de vários autores. Logo, o modernismo trouxe consigo diversas mudançasuma delas foi à concepção do tempo e do espaço- tornando as expressões artísticas menos miméticas e lineares. Partindo da visão de Worringer (apud Frank) de que há dois tipos de arte, a naturalista e a não- naturalista, representando a expressão do nada e a negatividade, esta suposta espacialização do tempo acabará colocando o escritor e o artista plástico numa situação que os levem a entender que tudo passará em um momento e não mais uma seqüência lógica, mudando a tradição realista.


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Gustave Flaubert mostra e antecipa em Bouvard e Pécuchet esta expressão do nada, por meio de colagens de idéias. O espaço narrativo daí decorrente, afasta-se da visão naturalista, deixando as formas em primeiro plano e negando o próprio objeto.

segundo o autor, libertou-se da ordem espacial, temporal, objetiva e anímica e fez diminuir as diferenças entre proximidade e a distância, entre o belo e o feio, entre a dor e a alegria, entre o céu e a terra. As categorias negativas constituem outra marca desta literatura, que não passa mais a existir para ser ressonância da sociedade ou um quadro ideal do mundo, já que o quadro social da época não condizia mais com algo tão comportado e linear. Para justificar, além de evidenciar as características, como

Desta forma, mencionarei também novos conceitos que a estética moderna trouxe para a literatura, baseado na obra de Hugo Friedrich, Estrutura da lírica moderna, para melhor esclarecer as mudanças, levando em conta as categorias do tempo e do espaço. Diversos estudiosos atribuem à segunda metade do século XIX o surgimento do estilo lírico que domina até hoje, porque a lírica ocidental dos gregos até o século XIX conservou uma homogeneidade: a do gênero poético popular, cuja temática dava ênfase aos sentimentos do sujeito diante do amor, à natureza, à vida e à morte. Mas há um momento em que, movidos por diversas transformações sociais e filosóficas, os poetas subvertem os valores, perturbam a linguagem, refazem os conceitos estéticos, destruindo qualquer ligação com a tradição, gerando a lírica moderna do século XX que “fala de maneira enigmática e obscura” (FRIEDRICH,1978,p.15). Para Friedrich, a literatura deste século é composta por uma lírica dinâmica, que por ser obscura, fascina na mesma medida que desconcerta o leitor tradicional. Ao processo de junção da incompreensibilidade com a fascinação denominase dissonância; uma tensão que leva a uma atitude inquietante, sendo este um dos objetivos da arte moderna em geral. Para Friedrich, traços entendidos como tensões formais, podem ser encontradas também nos conteúdos, já que a literatura não quer ser mais construída como reflexo da realidade ambiente e, quando se volta para ela, a realidade se completa com o significado diverso daquele da literatura e da poesia de outros tempos. Essa realidade,

desorientação, dissolução do que é coerente, ordem sacrificada, incoerência, fragmentação, reversibilidade, estilo de alinhavo, poesia despoetizada, lampejo destrutivo, imagens cortantes, repentinidade brutal, deslocamento, modo de ver 31

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astigmático, estranhamento (...)” cita Dámaso Alonso: “ Não existe, no momento, outro recurso do que resignar nossa arte com conceitos negativos.”(FRIEDRICH,1978,p.22).

Considerado um anti-romântico, Gustave Flaubert em sua obra Madame Bovary, que forjou o romance realista e foi o primeiro a rompê-lo, segundo Augusto de Campos, quebra com as perspectivas naturalistas e realistas, criando “uma admirável estética fragmentária” e “a inauguração de uma nova forma que não teve precedentes” (CAMPOS,1978,p.16;14), juntamente com a obra Bouvard e Pécuchet. Tudo passa a acontecer ao mesmo tempo, não se tem um único espaço delimitado: é a quebra das limitações; a ação não acontece no tempo, mas na eternidade. Sendo uma obra inacabada, a colagem de idéias feitas em Bouvard e Pécuchet, considerada a obra de Flaubert que mais aponta para


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o futuro do nosso tempo, segundo Augusto de Campos), remete a uma noção de espaço renovado, como uma nova representação.

final do romance, por exemplo. Eles têm a idade que a narrativa lhes dá, ou seja, nenhuma!

No livro A arte no horizonte do improvável, Haroldo de Campos diz que as normas a serem seguidas na linguagem – e Flaubert desviou-se da norma linear de tempo e espaço, colagem de idéias, etc. – rompe com as expectativas do leitor. “O poeta usa o código da língua, em cada obra ou conjunto de obras, como uma espécie de subcódigo individual (...) que no nível da função poética, vai construir um idioleto.” (CAMPOS,1977, p.147).

O tempo em Bouvard e Pécuchet se repete e impede o leitor de avaliar a duração exata das fases iterativas. O tempo é tratado de forma a tornar possível o projeto inovador de Flaubert.

Gustave Flaubert desviou a norma, rompeu com as expectativas do leitor com a obra Bouvard e Pécuchet, que conta a história de dois copistas, sendo que um – Bouvard- recebe uma herança que decide compartilhar com o amigo: Pécuchet. Ambos largam seus empregos, mudam-se para uma chácara e testam todas as imbecilidades possíveis, lêem de tudo, aventuram-se em varias áreas - como agronomia, a jardinagem, a fabricação de conservas, a anatomia, a arqueologia, a história, a mnemônica, a literatura, a hidroterapia, o espiritismo, a ginástica, a pedagogia, a veterinária, a filosofia, e a religião - e simplesmente fracassam. Ao cabo de vinte ou trinta anos isso acontece, e acabam desencantados (a ação não ocorre no tempo, mas na eternidade). Este é um dos pontos de questionamento da obra: sua temporalidade. Logo impõe-se a pergunta: “como fazer a cronologia diegética coincidir com o transcurso do tempo real? Ou ainda: a cronologia de Bouvard e Pécuchet é realista e fantasiosa”? (DORD- CROUSLÉ, 2007,p.27). É melhor perguntar-se qual a temporalidade própria da obra e como ela influencia a poética, a obra, a história. Pois o tempo da ficção não é o da realidade, e de certa forma é inútil e desnecessário tentar saber a idade real dos dois personagens no

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A ciência e a arte moderna, segundo Eddi de Wolf, ainda têm dificuldade para entender o que realmente é o espaço e o tempo. “São quantidades físicas reais ou simplesmente categorias úteis?” (WOLF,2007,p.35). O tempo tem começo e fim? O que significa o espaço vazio? Por que o tempo parece obedecer uma linha lógica do passado ao futuro e nunca em direção contrária? “Poderia o espaço ter mais dimensões do que as três “habituais” com as quais nós todos temos familiaridade (em cima- em baixo; direitaesquerda; frente-atrás)? A arte moderna ecoa tais quesitos quando Lucio Fontana, no Manifesto Del Movimento Spaziale, declara que “as nossas novas formas de arte” se referem a “os espaços ainda incógnitos do cosmos, os quais queremos encarar como dados de intuição e de mistérios, dados típicos da arte como divinação.” (WOLF,2007,p.35) Eddi de Wolf diz também que o espaço, o tempo e o vazio “apresentam uma complexidade estratificada que, mais do que nunca, intriga e inspira ciência, filosofia e a arte”. (WOLF,2007,p.35) O tempo da obra literária é inseparável do imaginário, atrelado a condições irreais dos seres, dos objetos e das situações de certa forma. O tempo não é assentado senão através dos acontecimentos e suas relações, no plano imaginário, levado em conta quando aparecem expressões determinantes como “mais tarde, “antes”, neste momento”, etc.


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Na narrativa é apresentado algo que vai preencher uma fase do tempo e não a fase temporal correspondente em si mesma; esta apresentação é condicionada pela linguagem. O tempo não se reveste da linearidade do tempo real, surgem lacunas a serem ocupadas, que são ocupadas pelas soluções de continuidades. Esse tempo relaciona entre si momentos que o tempo real separa, como inversão da ordem, condensação e dilatação dos fatos. Por ser um tempo correlato do discurso, ele se atualiza através da leitura.[3]

Brandão comenta também sobre o afastamento considerável da perspectiva representacional, entender a feição espacial da literatura, que se traduz na alegação de que há uma espacialidade própria da linguagem verbal. Afirma que a palavra é também espaço.

Luis Alberto Brandão, citando conceitos do ensaio The idea of spatial form (A idéia da forma espacial) de Joseph Frank diz que os escritores modernos “pretendem, de maneira ideal, que o leitor apreenda suas obras espacialmente, num lapso de tempo, mais do que como uma seqüência”. (FRANK APUD BRANDÃO,2007,p.210) Logo, o fundamento do texto literário moderno é o espaço é a fragmentação, assumindo um caráter de mosaico e uma série de elementos descontínuos. Pensa se a literatura moderna como exercício de recusa à prevalência do fluxo temporal da linguagem verbal. Espaço é sinônimo de simultaneidade, e é por meio desta que se atinge a totalidade da obra. Em tais abordagens, verifica-se que o desdobramento lugar/espaço se projeta no próprio entendimento do que é a obra: por um lado, são partes autônomas, concretamente delimitadas, mas que podem estabelecer articulações entre si (segundo, pois, uma concepção relacional de espaço); por outro, é a interação entre todas as partes, aquilo que lhes concede unidade, a qual só pode se dar em um espaço total, absoluto e abstrato, que é o espaço da obra. (BRANDÃO,2007,p.210) 3 As considerações citadas e parafraseadas neste parágrafo são referentes a síntese da obra O tempo na narrativa de Benedito Nunes, feito pela mestranda Gedy Brum durante o semestre na aula de teorias da narrativa, ministrada pela Profº Dra. Maria Adélia Menegazzo, no mestrado de Linguagens na UFMS.

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O autor cita Gérard Genette, e seu artigo “La littérature et l’espace”, que diz que “a linguagem [verbal] parece naturalmente mais apta a exprimir as relações espaciais do que qualquer outra espécie de relação (e, portanto, de realidade)” (GENETTE apud BRANDÃO, 2007,p.211-212). Tal ponto de vista se embasou em duas linhas de argumentação. Na primeira, é considerado que tudo que é da ordem das relações é espacial. Comenta-se a divergência com a categoria temporal: a ordem das relações, que define a estrutura da linguagem, é espacial à medida que é abordada segundo um ponto de vista sincrônico, simultâneo, e não diacrônico, histórico. Citarei um exemplo para que essa questão da temporalidade e a questão espacial possam ser mais claramente percebidas usando uma ação ocorrida na obra Bouvard e Pécuchet: quando Pécuchet se torna mitólogo, entrega-se à batalha de erudição com o padre Jeufroy, e se insurge contra a resposta do sacerdote que não tem mais argumentos: “É um mistério!”. O abade não sairá tão bem assim: “E Pécuchet não o largava mais. Surpreendia-o em seu jardim, esperava-o no confessionário, perseguia- o na sacristia.” O uso generalizado do imperfeito indica de certa forma que o processo se repete. “Nesse sentido, a espacialidade da obra se revela, em especial, no fato de que esta não é homogênea nem fixa, ou seja, ao fato de que os sentidos, só constituíveis na ação fluida e variável da leitura, podem ser gerados de diferentes modos e estão em constante deslocamento. A operação de espaçamento


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(ou de intervalização, distanciamento, diferimento, para se fazer menção ao léxico de Jacques Derrida) costuma não se dissociar da de temporização.” (BRANDÃO,2007,p.213)

Assim, o tempo no romance é um tempo que forma meandros, como a resistência “em forma de serpentina que se imerge em um líquido para esquentá-lo.” (DORD- CROUSLÉ,2007,p.34).

Mas quanto tempo dura essa importunação toda? Não se sabe especificamente. O mundo ficcional em que evoluem os dois personagens não é similar com a realidade; é um tempo que não é mais linear, mas de essência repetitiva, um “tempo de repetição cômica” (DORD- CROUSLÉ,2007,p.28). Tudo isso acontece ao ponto em que o que o leitor é incapaz de apreciar o tempo de duração da ação do livro e as suas freqüências exatas. “Simetricamente, alguns elementos constitutivos da temporalidade não aparecem na narrativa sob sua forma habitual: são exprimidos metaforicamente e esboçam uma espécie de cenografia espaço-temporal” (DORDCROUSLÉ,2007,p.33). Assim, após fracassar na tentativa de cultivar melões, Pécuchet voltou-se para as flores. O texto não dá então menos a impressão de recorrer a sucessão abstrata de dois procedimentos agrícolas do que a de descrever o deslocamento efetivo do personagem diante do leitor: vemos Pécuchet ignorar as cucurbitáceas rebeldes e se dedicar a outros vegetais, ansiando diante da perspectiva de improváveis sucessos florais. A cada episódio, o tempo/espaço linear é eliminado, desdobrado, folheado. Um exemplo dessa elasticidade temporal, ocorre no capítulo III quando a fazenda dos dois personagens entra de vez em decadência: “Grandes confusões acabaram acontecendo. A moça que cuidava das galinhas engravidou. Contrataram casais. As crianças proliferaram, vieram os primos, as primas, os tios, as cunhadas. Uma horda vivia à custa deles.” O tempo infla a ponto de evocar a geração, justamente não espontânea, de toda uma descendência que se apresenta acompanhada de uma multidão de colaterais: a ampliação farsesca é máxima.

Depois de tais esclarecimentos sobre a temporalidade e espacialidade da obra, retomo o enredo. Os dois amigos acreditam nos ensinamentos dos livros e tratados e seguem a risca, e o mais interessante, é que Flaubert se apossa de idéias já existentes, de teorias que eram aplicadas na época (como de Voltaire, Galileu, Chandon), e “cola” em sua obra, como protesto e anúncio da imbecilidade humana diante dos estudos e dos fatos. Ele acaba sendo um autor- não- autor por fazer tal desconstrução de idéias. Como Leyla Perrone-Moisés diz, “a originalidade nunca é mais do que uma questão de arranjo novo” (PERRONE-MOISÉS,1990 ,p.99). 37

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Assim, pode se dizer que o autor anula o espaço/tempo na medida em que “cola” espaços e tempos já construídos por outros autores e objetos, podendo se fazer relação com o que é feito em obras de Picasso (que decompõe e recompõe a realidade através de colagens e formas assimétricas) e Duchamp (que reaproveita coisas já existentes e dá uma nova idéia), por exemplo. Nesta obra ”personagens se convertem em despersonagens, heróis em anti-heróis, ao passo que o estilo se desistila e se neutraliza, no segundo tomo o autor se retira de vez. O escritor desescreve” (CAMPOS,1978,p.20). Ao longo da história, nos deparamos com mais outras idéias e contradições de outros autores de diversas áreas; o que comprova o desprezo de Flaubert perante tais idéias, colocadas no livro, de modo satírico e crítico. Há varias colagens, várias idéias de autores, com um único tema: a imbecilidade humana. Os temas e


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idéias têm uma posição e aplicação em um determinado espaço, mas quando citados no livro, perdem suas funções (apesar de permanecerem a mesma coisa), assumem outra, como os readymade dadaísta, com intenções anárquicas, negando sua função original. Flaubert se apossa de idéias alheias para compor sua obra e se retira de vez dela, por colar idéias alheias, perdendo sua autoridade. Flaubert disse uma vez que “seria necessário que, em todo o livro, não houvesse uma só palavra de minha autoria e que depois de lê-lo as pessoas não ousassem mais falar com medo de dizer instintivamente uma das frases que lá se encontram”. [4] Tal projeto incomodou e atormentou os pensamentos e ideias de Flaubert por toda a sua vida. “É preciso estar louco e triplamente frenético para empreender um livro como esse!”, diz isso em uma carta para Mme. Roger dês Genettes. Além disso, diz também a ela que “nesse tempo de avacalhamento universal”, que reflete numa coisa que expressa sua revolta “Vomitarei sobre os meus contemporâneos o desgosto que eles me inspiram, ainda que tenha que romper o meu peito. Bouvard e Pécuchet me obcecam a tal ponto que eu me transformei neles! Sua estupidez é a minha e eu morro dela”. Ao final, os amigos escrevem um “Dicionário de idéias prontas” com definições nada aceitáveis para palavras já existentes que não possui função nenhuma e encomendam ao carpinteiro uma escrivaninha dupla e se põem a copiar como antes de se tornarem ricos. Desiludidos, passam a copiar ao acaso, tudo o que encontram, como recortes de jornal, cartazes, cartas, manuscritos e impressos e assim, compõem o dicionário já citado. Augusto de Campos torna mais claro como esse Dicionário de Este trecho é referente a uma carta que Flaubert escreveu para Louise Colet falando sobre sua nova obra, em dezembro de 1852. 4

idéias feitas ou “Tolicitário” é composto, ao afirmar “Se Bouvard e Pécuchet já desconcerta pela neutralidade da linguagem, sem qualquer brilho aparente, pelo anti-heroísmo dos personagens, e pela reiteração dos movimentos, sucessos e fracassos, o Dicionário atenta definitivamente a ação e os personagens e nos põe em contanto direto com o tema da imbecilidade (que ambiguamente confunde o leitor, autor e personagens, fictícios colecionadores de verbetes)” (CAMPOS,1978,p.18).

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Apresentaremos agora alguns exemplos dos verbetes do “Tolicitário”: BUDISMO- “Falsa religião da Índia”. ALCOOLISMO – “Causa de todos os males modernos”. BANQUEIROS – “Todos ricos, árabes e agiotas”. CALOR – “Sempre insuportável! Não beber quando faz calor.” CORTESÃ – “Mal necessário. Salvaguarda de nossas filhas e nossas irmãs. São sempre moças do povo, levadas à devassidão por burgueses ricos”. DOMINÓ – “Joga-se dominó melhor quando se está embriagado”. HOMERO – “Jamais existiu.” Isso tudo serve como uma forma de protesto pela frustração com idéias concebidas e consideradas pela sociedade hipócrita. É a colagem de idéias prontas juntamente com a negação da definição real de cada verbete; um ready-made literário como já foi dito anteriormente. É uma forma irreverente do autor se ausentar de vez de sua obra, desconstruindo o conceito de autoria e originalidade (o que acaba ironicamente sendo também). Podemos concluir que a obra inacabada de Gustave Flaubert, Bouvard e Pécuchet, inaugurou e antecipou um estilo que não teve precedentes, a colagem de idéias, a negatividade e a quebra de tempo-espaço. É o escrever desescrevendo, é assumir a autoria e a perdendo ao mesmo tempo, por se apossar e transformar idéias alheias sem alterá-las. Flaubert não consegue concluir sua obra:


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morre de hemorragia cerebral a 8 de maio de 1880, deixando as duas últimas cenas do capítulo X em estado de roteiro. Finalizando, com uma fala de Flaubert: “Aqueles que lêem um livro para saber se a baronesa desposará o visconde serão logrados”. É essa quebra de expectativas que estávamos esperando no romance contemporâneo – e conseguimos.

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Luis Alberto. Espaços literário e suas expansões. Revista Aletria, janeiro- Junho, v.15, 2007, p. 207-220. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/poslit

BRUM, Gedy. Síntese da obra O tempo na narrativa de Benedito Nunes. Seminário sobre tempo e a narrativa na disciplina teorias da narrativa.

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CAMPOS, Augusto de. O Flaubert que faz falta. In: A margem da margem. São Paulo: Companhia das Letras, 1978.

CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977.

FLAUBERT, Gustave. Bouvard e Pécuchet: Acompanhada do Dicionário de idéias feitas. São Paulo: Melhoramentos, 1981.

DORD-CRUSLÉ. Stéphanie. Prefácio. In: FLAUBERT, Gustave. Bouvard e Pécuchet: Acompanhada do Dicionário de idéias feitas. trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Estação liberdade, 2007.


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FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Trad. Marise M. Curione. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

HELENA, Lúcia. Movimentos de vanguardas européias. Ed. Scipione. São Paulo, 1993.

MENEGAZZO, Maria Adélia. A poética do recorte: estudo de literatura brasileira contemporânea. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2004.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores na escrivaninha: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

WOLF, Eddi de. Espaço e Tempo. In: Artempo. Trad. , 2007. P. 35-49.

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Introdução FRONTEIRAS DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: O PAPEL DO INTELECTUAL NO DIÁRIO CAROLINIANO Ana Karoliny Teixeira da COSTA (Programa de mestrado em Letras/UFGD – Dourados-MS) Rogério Silva PEREIRA (FACALE/UFGD)

RESUMO A fronteira literária entre o modernismo e a literatura brasileira contemporânea deve ser entendida não como uma forma rígida, mas como um espaço que é palco de intensas negociações, onde é possível entrever mudanças e permanências. É levando-se em consideração tal hipótese que o estudo dessa fronteira se faz necessário, uma vez que recursos especificamente literários não são levados em conta em sua demarcação, sendo geralmente aludida a marcos meramente histórico ou cronológico. Uma das possibilidades de se fazer essa reflexão é por meio do estudo do posicionamento do intelectual (escritor, poeta), pois, como propõe Said (2005), o intelectual é aquele que pertence ao seu tempo, por conseguinte, é possível entrever que ele deixa transparecer em sua escrita os conflitos, os pensamentos da sociedade a qual pertence. Sendo assim, destaco a obra produzida por Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo: diário de uma favelada (1960), entendendo que essa narrativa é exemplo das mudanças e permanências que ocorrem na esfera de comunicação do momento em que foi produzida. E ainda, que Carolina ocupa o papel de intelectual do seu tempo, a saber, contemporâneo. São discussões feitas à luz de Said (2005), Bakhtin (2000), Pereira (2008), entre outros. PALAVRAS-CHAVE: Intelectual contemporâneo; diário caroliniano; intelectual modernista; fronteira literária; “voz” marginalizada.

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A reflexão aqui pretendida sobre o estudo da fronteira entre o modernismo e uma nova manifestação literária, denominada contemporânea, está vinculada à proposta de pesquisa integrada ao projeto “Fronteiras da Literatura Brasileira Contemporânea”, coordenado pelo professor Rogério Silva Pereira (FACALE/UFGD). São discussões iniciadas em dezembro de 2006, que tomam por objetivo a contribuição para a demarcação da fronteira da literatura brasileira contemporânea. Isto se faz necessário uma vez que recursos especificamente literários não são levados em consideração quando se trata desta demarcação, aludindo-se geralmente a marcos meramente cronológico ou histórico, como: 1968, ano das manifestações estudantis, ou ano do AI-5; 1964, ano do Golpe Militar, ou ainda a, sugestiva vaga, alusão a uma ou outra década, “Os anos 60”, “Os anos 70”, dentre outros. Nosso trabalho parte da premissa de que o intelectual é responsável por deixar transparecer um posicionamento mutante, por assim dizer, à medida que se observa alterações no momento histórico vigente. Tal hipótese é fundamentada nas discussões levantadas por Bakhtin (2000), nas quais são ressaltadas que a cada comunidade (ou esfera de comunicação humana) corresponderá um conjunto de gêneros de comunicação cuja estabilidade/ mudança depende da estabilidade/mudança das relações sociais da referida comunidade. Em outras palavras, abordar o gênero literário é entrever nele aspectos de mudanças e permanências nas relações sociais dentro das referidas esferas de comunicação onde estes gêneros são produzidos. E isso é possível através da sensibilidade de quem percebe essas mudanças no meio social: os intelectuais (poetas e escritores). Aceito isso, observamos que a literatura brasileira contemporânea firma-se na crise da Tradição Republicana. Entendendo-a, quando em vigoramento, como o processo societal


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de democratização que obedecia ao padrão “administrativo”, tal como imposto pela revolução burguesa “pelo alto”, à brasileira (Cf. VIANNA, 2006, p. 15). Uma vez em crise, isto significou para o meio literário a crise da ideologia de inclusão social, via literatura; onde o intelectual, por meio de certo paternalista, passava a falar por/sobre personagens protótipos de modelos socialmente marginalizados. A partir da contemporaneidade, esses grupos até então representados no meio literário passam a ganhar voz na esfera literária brasileira e a falar por si mesmos. Carolina Maria de Jesus é um exemplo. Trata-se da autora, narradora e personagem do livro Quarto de Despejo: diário de uma favelada, publicado em 1960. Mais que o simples registro diário das condições subumanas pelas quais passava na década de 1950, enquanto mulher negra, que deixou a cidade de Sacramento (MG), para tentar a sorte de conquistar uma vida melhor em São Paulo, e que, contudo, tornouse moradora da extinta favela de Canindé (localizada próxima às margens do rio Tietê), mãe solteira de três filhos (todos de pais diferentes, cujas identidades são preservadas pela escritora) e catadora de materiais recicláveis, de onde retirava livros, folhas velhas para escrever – dentre outros trabalhos – o seu diário, roupas e até mesmo, comida; Carolina deixa transparecer a consciência crítica de quem sabe o lugar que lhe foi destinado pela metrópole: o quarto de despejo, metáfora da favela. Trata-se de um lugar criado por uma sociedade extremamente desigual que destrói uma a uma as possibilidades de concretização da inclusão preconizada pela ideologia modernista. Carolina não faz da sua condição de favelada um empecilho para deixar de ser crítica à realidade vivenciada. A vida na favela faz com que assuma com mais intensidade seu papel de intelectual. Diz Said ao definir o intelectual: Antonio Gramsci, o marxista, militante, jornalista e brilhante

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filósofo político italiano, que foi preso por Mussolini entre 1926 e 1937, escreveu nos seus Cadernos do cárcere que “todos os homens são intelectuais, embora se possa dizer: mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectual” (SAID, 2005, p. 19).

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Essa “função de intelectual”, sobre a qual falam Gramsci e Said, diz respeito àqueles homens e mulheres empenhados em transformar a vida social em palavras; pessoas que têm a capacidade e a vontade de mudar mentalidades (Cf. SAID, 2005, p. 20). Grande observadora de tudo o que a rodeava, Carolina transformava as coisas que via e sentia em palavras. Carolina transformar raiva, fome, dor, tristeza, indignação, amor e desespero, em poesia. Uma poesia que não era produto de um poeta de salão, como outrora dissera em seu texto ao se referir aos poetas consagrados, mas de uma poetisa do lixo (Cf. JESUS, 2004, p. 47); de quem fala de uma realidade vivenciada. A função de sua poesia não é o puramente estético – Carolina que fazer de sua poesia uma arma de emancipação. A autora sabe do poder da palavra, e utiliza-a como forma de denúncia contra tudo o que acontece para a sua família e para os demais moradores daquela comunidade. E faz isso através de um processo de aproximação e afastamento, colocando-se no papel de poetisa para defender “o seu povo” (Cf. JESUS, 2004, p.35). Como veremos mais adiante, essas hipóteses serão de marcada importância para delinear a figura do intelectual contemporâneo, no retrato de Carolina Maria de Jesus. Do limite ao limiar: uma conceituação para fronteira Por muito tempo o conceito de fronteira esteve atrelado a uma noção de limite, como ainda é possível observar em dicionários, a exemplo do Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa,


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versão 2001, no qual se encontra as seguintes definições: “(1) parte extrema de uma área, região etc., a parte limítrofe de um espaço em relação a outro; [...] (4) Derivação: por extensão de sentido. o fim, o termo, o limite esp. do espaço”. Barberena (2009) observa que a fronteira, enquanto limite, refere-se a uma condição na qual se procura eliminar as diferenças, em favor de uma unidade coesa para a nação fronteiriça. Contudo, a se pensar em uma releitura da crítica pós-colonial desse termo, deve-se compreender a fronteira como um espaço liminar. Isto é, há um reconhecimento das vozes não hegemônicas, mais do que isso, o reconhecimento das trocas culturais entre esses grupos minoritários. Zulma Palermo (2004) destaca que a releitura do termo “fronteira” ganhou impulso a partir da década de 1980, quando tal discussão passou a ocupar espaço no terreno dos estudos comparados. Assim, o conceito de fronteira foi ampliado, por meio de um processo de trânsito entre os saberes, estendendose a aplicação a outros campos e não somente ao uso geográfico. Consequentemente, o conceito de fronteira, além de ampliado, em determinadas aplicabilidades, também teve o seu sentido invertido, em relação àquele antes utilizado: La idea de frontera como separación, límite y barrera da paso a otra cuyo sema nuclear cobra valor de “pasaje”, “relación entre elementos diferentes”, “puente”, colocando en simetría a las culturas periféricas que, de este modo, entran en distintas formas de contacto, ya no sólo en su forma dependiente (PALERMO, 2004, p. 240)[1]. 1 Tradução livre: “A ideia de fronteira como separação, limite e barreira dá espaço a outra cujo sema nuclear cobra valor de ‘passagem’, ‘relação entre elementos diferentes’, ‘ponte’, colocando em simetria as culturas periféricas que, deste modo, entram em diferentes

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Visto dessa forma, enquanto “passagem”, “ponte”, a fronteira deixa de ser sinônimo de um espaço de separação, ao contrário, ela se transforma em um lugar de articulação entre as diferenças culturais, em contraposição a um discurso que tenta se firmar à base da neutralização das culturas menores, não pertencentes ao grupo hegemônico. Nessa perspectiva, a se pensar em fronteira literária, torna-se impossível fazer uma separação dos períodos literários por meio de uma condição puramente histórica ou cronológica, afinal, não há como afirmar um limite fixo entre esses períodos. Em outras palavras, de modo hipotético, imaginemos que em determinado ano se pense de uma forma e, em outro, definitivamente não se pode mais. Seria exigir muito de uma realidade histórica dinâmica. É a partir dessa perspectiva que julgamos a necessidade de estudos que firmem a fronteira literária entre o Modernismo e uma nova manifestação literária denominada literatura brasileira contemporânea, com base em princípios literários. Sendo o estudo do comportamento dos intelectuais pertencentes a tais períodos de suma importância para a compreensão dessas trocas literárias que vinham ocorrendo nesse espaço fronteiriço.

Intelectual: no modernismo e na contemporaneidade O conceito de intelectual sofre transformações na medida em que surgem nuances no momento histórico vivenciado pela esfera social e literária. Isto quer dizer que há alterações no peso da pena empunhada sobre o papel, assim como ocorrem mudanças em suas vestes refinadas, no tom apaixonado com que defende ou critica ideologias, e na busca incessante por traços perfeitos em sua escrita. Ao mesmo tempo, a se pensar na contemporaneidade, formas de contato, já não somente em sua forma dependente”.


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também será possível questionar alterações no lócus de onde ecoa a voz deste intelectual. Nessa perspectiva, o intelectual não é mais a figura representativa do homem isolado no seu gabinete de trabalho. Isolado, acima de tudo, da realidade da maioria da população de seu país, a pobreza, a qual, ironicamente, é assunto central das tramas que se propõe a escrever. Os impasses deste intelectual estão bem representados na figura do narrador Rodrigo S.M., em A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, conforme discussões propostas por Pereira (2008). Nesse romance, vemos um narrador, Rodrigo, que parece ser um fantoche, contrariando a própria definição de narrador, que seria aquele com (relativo) controle sobre o que narra. No romance, leitor e mesmo o próprio narrador são conduzidos a um final cujo desenrolar escapa as suas expectativas [...] E é aqui que entra o Rodrigo fantoche. Ele de fato parece não saber do final da própria história que escreve (PEREIRA, 2008, p. 194). 51

Em A hora da Estrela, Rodrigo é o fantoche que não sabe do final da própria história porque não se trata apenas da sequência de acontecimentos que levam à morte da protagonista no final da obra, como também a alegoria da falência daquele ideal de intelectual modernista, que não foi capaz de incluir o marginal. Agora, a se pensar na contemporaneidade, essas vozes não são a representatividade de um processo de inclusão que ocorre de cima para baixo, antes, elas ecoam dos corredores dos quartos de despejo. Uma destas vozes é de Carolina Maria de Jesus. A literatura modernista sofreu intensas influências de uma esfera de comunicação (a Tradição Republicana) da qual foi espécie de braço estético. Esta literatura toma para a si a responsabilidade de negociar a entrada do marginal no terreno literário, tendo em vista uma utopia tomada à Tradição Republicana: a entrada futura deste marginal na vida social brasileira. Utopia que, mais tarde

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se transforma em ideologia evidente, quando as promessas de inclusão são recorrentemente descumpridas ao longo do século XX. Um dos aspectos que põe em crise a Tradição Republicana é justamente isso. No que se refere à literatura do Modernismo, ressalta-se o descompasso de um esquema literário em que o marginal/excluído é tomado exclusivamente como objeto da literatura. Ele não era leitor de literatura, não era também produtor de literatura – entrava, portanto, ali apenas como personagem. Era pouco: faltava-lhe voz. Na vida concreta do século XX, “vozes” oriundas destes meios marginais começam a surgir a partir da década dos anos 1980, dentre outros com a concretização de uma sociedade urbanoindustrial, e, sobretudo, com o surgimento de novos atores sociais. Vianna (2006) entende esse deslocamento como responsável pelo importante processo de democratização, no qual se viabiliza chances de sonhos com novas oportunidades de vida política e social para as classes marginalizadas. É neste contexto que se instaura a crise da ideologia proposta pela Tradição Republicana. Aos poucos, torna-se inviável ao intelectual do tipo modernista falar pelo excluído. Concretizado já no final do século XX, esse processo será esboçado já em meados do mesmo século. De fato, esse processo de democratização ganhará bases sólidas a partir da conquista da democracia política, institucionalizada pela Carta de 1988. Por caminhos semelhantes, é a partir da autoconscientização dos marginalizados enquanto sujeitos sociais e culturais e sua luta cotidiana para que se reconheçam os seus direitos, que, no campo literário, essas vozes até pouco tempo silenciadas e /ou inexistentes, passam a se manifestar artisticamente através da literatura primeiramente, em seguida em outros gêneros. No caso de Carolina, a forma escolhida foi o livro, que apesar de optar por um gênero do “eu”, extrapola-o em função de


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necessidades maiores: dentre outras, cumprir a sua função de intelectual da favela.

é subvertido. Parece que este gênero da intimidade, voltado para o eu que escreve, em Carolina transforma-se em gênero público, vertido em parente do romance – este também um gênero público. Em segundo lugar, porque também é possível observar elementos tradutórios na narrativa caroliniana, como no uso de metáforas, por exemplo, o trecho abaixo em que a oposição entre o presidente Juscelino Kubitschek /sabiá e o os moradores da favela/gatos, é uma alusão à uma possível revolução social:

Carolina “fala” para/por um público: uma necessidade social, uma necessidade intelectual Said (2005) faz ponderação importante quando o caso é refletir sobre a figura do intelectual, sobretudo no caso da Carolina intelectual entrevista em Quarto de Despejo:

... O que o senhor Juscelino tem de aproveitavel [sic] é a voz. Parece um sabiá e a sua voz é agradavel [sic] aos ouvidos. E agora, o sabiá está residindo na gaiola de ouro que é o Catete. Cuidado sabiá, para não perder a gaiola, porque os gatos quando estão com fome contempla [sic] as aves nas gaiolas. E os favelados são os gatos. Tem [sic] fome (JESUS, 2004, p. 30).

[...] A questão central para mim, penso, é o fato de o intelectual ser um indivíduo dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para (e também por) um público (SAID, 2005, p. 25).

A mensagem que Carolina tenta transmitir ao seu leitor referese à desigualdade social, tornando a sua fome e a dos demais personagens da favela uma verdadeira personagem, a “Fome”, com suas tonalidades amarela, roxa e preta – dependendo do grau da fome e da revolta da escritora. São denúncias feitas ao seu público-leitor que, fique claro, não são os moradores da favela do Canindé, onde mora Carolina. De fato, são pessoas que sabem ler e têm condições de comprar livros. Esta hipótese é uma das leituras que nos possibilita observar como Carolina extrapola os limites desse gênero para torná-lo público, utilizando-se nele aspectos da forma romanesca. Isto é possível porque, primeiramente, na obra se prevê um leitor. Como no seguinte fragmento: “... Vocês já sabem que eu vou carregar agua [sic] todos os dias.” (p. 110)[2] (grifo meu). Aqui, o gênero diário 2 Todas as citações que forem decorrentes da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada terá sua escrita na íntegra, obedecendo à maneira em que foi escrita e publicada.

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O próprio nome do livro também é metafórico. Segundo a autora, o Quarto de Despejo é, a se pensar nas disposições do cômodo de uma casa, uma área destinada a abrigar tudo o que não tem mais valor, onde são jogados os lixos (Cf. JESUS, 2004, p. 28). Além disso, outra característica do diário caroliniano que revela o seu caráter de narrativa romanesca é o modo como a autora tem a preocupação de organizar a sua realidade, a exemplo de uma colcha de retalhos, que é costurada retalho a retalho, de modo a formar uma rede de fios interligados e coesos. Georg Lakács (2000), um dos principais teóricos do romance, compreende que essa necessidade de conectar fragmentos de um mundo que está dividido entre a definição de um eu e do mundo, dando a estes uma configuração minimamente comunicável ao leitor, também é uma necessidade do romancista. Carolina subverte a sua realidade por meio de processos linguísticos e estéticos como forma de organizar e hierarquizar fenômenos de uma realidade veementemente caótica, que é a realidade do mundo, mas dentro do livro, a realidade da favela de Canindé. E faz isso prevendo um


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leitor, que seja capaz de ler e compreender o que se passa naquela comunidade, a partir de seu olhar. A se levar em consideração as discussões propostas por Robert (2000), sobre o gênero romance, o diário caroliniano é, no rumo que essa discussão toma, o diário de “uma arrivista”. O termo arrivista ganha corpo na discussão proposta por Robert para delinear o modo rápido com que o gênero romance saiu da condição de marginalizado para se tornar um dos principais gêneros, além do modo como tomou o lugar dos outros gêneros, antes tidos como superiores, e absorveu suas características tornando estes gêneros dependentes. Na esteira disso, alude-se ao diário caroliniano o termo arrivista, porque ela expressa em diferentes partes do texto o desejo de vender livros, e, portanto, ganhar dinheiro para sair da favela: “[...] estou escrevendo um livro, para vendê-lo” (JESUS, 2004, p. 25); ou ainda, quando demonstra a intenção de fugir daquele ambiente, imaginariamente: [...] Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades. (...) É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela (JESUS, 2004, p. 52).

Sendo assim, e guardada as proporções, trata-se da narrativa de uma “arrivista”, uma vez que, por esses e outros motivos, são eles responsáveis por revelar o desejo da escritora de ir para a cidade, de querer melhorar de vida. Sendo o diário o meio utilizado pela autora para alcançar seus objetivos. E assim, a autora de diário subverte e perverte os fundamentos desse gênero, que é ser íntimo, tornando-o público, tal qual o romance. Por uma perspectiva diversa, se faz necessário observar que além da Carolina falar para um público, ela também fala por um

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público. Mas, diferentemente do que ocorria no Modernismo, ela pertence à realidade que apresenta a seu leitor. E faz isso por meio de um processo de aproximação e afastamento. Carolina precisa desse distanciamento moral e espacial para falar do morador da favela de Canindé; precisa do distanciamento de alguém que visa sair da favela e que, ao mesmo tempo, denuncia aquela realidade de privação por que passam seus vizinhos; precisa de distanciamento destes vizinhos, os quais são descritos como moralmente inferiores pela escritora, em contraste com a descrição que faz de si mesma. Contudo, por outro lado, Carolina também desperta o sentimento de pertença pala favela, quando, por exemplo, se coloca no papel de representante dos favelados: “... Aqui na favela quase todos lutam com dificuldades para viver. Mas quem manifesta o que sofre é só eu. E faço isto em prol dos outros” (JESUS, 2004, p. 32); quando se coloca no papel de poetisa da favela: “... Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido” (JESUS, 2004, p. 35); ou, ainda, quando, de modo ambíguo, defende os “vagabundos” da favela: “[...] Mil vezes os nossos vagabundos do que os ciganos” (JESUS, 2004, p. 123). Nesse sentido, pode-se dizer que esse movimento de afastamento e aproximação se complementa no sentido de revelar a identidade do morador da favela de Canindé, o qual a autora, por diferentes perspectivas, apresenta ao mundo externo à favela. E é ao incumbir-se desse papel de se colocar ao lado do seu grupo minoritário e subalterno, que a autora de diário incorpora um aspecto decisivo do conceito de intelectual que vemos em Said: o intelectual é aquele que se coloca do lado de certo grupo minoritário para defender seus direitos, frente ao poder de grandes organizações e parcelas majoritárias da sociedade – como um Robin Hood. Recorrer ao mítico herói faz sentido. Mas é preciso se esquivar do seu sentido romântico, como aquele que vem meramente para pacificar. É preciso ver o intelectual com


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um Robin Hood que “[...] empenha todo o seu ser no senso crítico, na recusa em aceitar fórmulas fáceis ou clichês prontos” (p. 3536). Em última instância, como aquele que se põe sempre alerta à propagação e consolidação de meias verdades, expondo suas ideias, ativamente, em público.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, M. Epos e Romance. In: BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do Romance. Trad. GALVÃO, M. E. G. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 397-428.

Considerações finais

BARBERENA, R. Os estudos literários e os trânsitos pós-coloniais: algumas considerações sobre nação, periferia, fronteira, hibridismo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. Disponível em: < http://www.pucrs.br/edipucrs/online/IXsemanadeletras/ conf/Texto_Ricardo_Barberena.pdf > Acesso em: 16 mar. 2012

Diante do que se procurou discutir nesse artigo, Carolina se coloca no papel de intelectual a partir do momento que a entendemos como uma agente social, alguém que faz a diferença, que levanta discussões aquém do discurso monolítico e dominante, que defende uma causa: apresenta a favela; os problemas sociais de pessoas que foram esquecidas no quarto de despejo. A necessidade de se discutir Carolina pelo viés literário surge a partir do momento em que se entende que Quarto de Despejo vai além de um texto sobre a verdade; Carolina é resultado de uma esfera que é fértil em intensas negociações de direitos sociais e, na esteira disso, literários. Compreendemos, por conseguinte, que o estudo aprofundado dessa obra é importante para se ter ciência, pelo menos em parte, dessas negociações. Entendendo-as como necessárias para a demarcação da fronteira literária brasileira contemporânea e do intelectual referente a este período.

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HOUAISS, A. Dicionário eletrônico houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, v. 1.0, dez. de 2001. CD ROOM. JESUS, C. M. de. Quarto de desejo: diário de uma favela. Série Sinal Aberto. São Paulo: Ática, 2004. LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. LUKÁCS, G. A forma interna do romance/condicionamento histórico filosófico do romance. In: A teoria do romance. Trad. MACEDO, J. M. M. de. São Paulo: Editora 34, 2000.p. 69-96. PALERMO, Z. De fronteras, travesías y otras liminalidades. In: COUTINHO, E. F.; BEHAR, L. B. de. (et. alli.). Elogio da Lucidez: A Comparação Literária em Âmbito Universal. Porto Alegre: Evangraf, 2004. p. 237-243.


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curiosa comparação entre a literatura e o atletismo, reclamando do descrédito que sofria o conto junto ao público, para o qual “um corredor de cem metros é um sujeito sem fôlego” (SAMPAIO, 1979). Se nas duas obras anteriores o autor velocista demonstrava desejo de ir além dos cem metros, neste último livro os contos demonstram a vontade cada vez maior de Rebelo em trabalhar com narrativas curtas quanto à unidade, muitas delas curtíssimas. É, por isso, dos livros o que mais justifica o comentário de Almeida Fischer (ap. ALMEIDA, 1973), que fala no autor como criador do moderno conto nacional, tomando por base seu conto sem ação, simples flagrante de vida.

O LIRISMO DE MARQUES REBELO Ariovaldo VIDAL (USP/São Paulo) Marques Rebelo (1907-73) é autor de uma obra relativamente curta na área do conto, mas que ganhou grande respeito junto à crítica de seu tempo. São apenas três volumes breves e alguns contos avulsos, em que na maior parte deles predomina o conto curto, a cena da vida carioca, o instantâneo lírico, especialmente do subúrbio que lhe era um espaço familiar e tão querido. Dentre as coletâneas – Oscarina (1931), Três caminhos (1933) e Stela me abriu a porta (1942) – a terceira parece levar ao extremo duas características fundamentais dessas pequenas peças: a brevidade e o lirismo. Em muitos contos do volume, os protagonistas são jovens diante da descoberta da paixão, cujo aprendizado, em retrato sempre breve, é feito de inocência e sofrimento. Em outros contos, a narrativa cai de forma visível para a crônica da vida carioca, ganhando um ar de crônica de costumes da vida urbana e suburbana de sua cidade, personagem principal de seus contos. PALAVRAS-CHAVE: Marques Rebelo, Stela me abriu a porta, contos líricos, cenas de costumes.

Depois de publicar Oscarina (1931) e Três caminhos (1933), Marques Rebelo lança sua terceira e última coletânea de contos – Stela me abriu a porta (1942) – em edição da Livraria do Globo, de Porto Alegre. Nessa última incursão pelo gênero, os contos são breves (com uma única exceção) e em bom número: vinte e um.[1] O livro é um desdobramento de sua contística anterior, uma mesma composição de conjunto, em que aparecem seus traços decisivos, indo mais uma vez do conto de feição lírica ao registro da crônica cotidiana. Numa entrevista de 1936, Rebelo faz uma Na verdade, a primeira edição do livro trazia treze contos, sendo posteriormente acrescidos os demais na edição de seus Contos reunidos (1977).

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A porta, a ponte Também como nas coletâneas anteriores, o conto que abre o volume e lhe empresta o título é, sem dúvida, uma das peças centrais do conjunto. Diferente, entretanto, de “Oscarina” e “Vejo a lua no céu”, “Stela me abriu a porta” é uma short-story ao modo breve que será tão recorrente no conto brasileiro posterior a Alcântara Machado, uma dessas histórias perdidas na grande cidade. Mas por não ser coisa de programa, pois o escritor já estava encerrando sua trajetória na narrativa breve, o conto retoma a tradição dos mestres do gênero – entre eles, seguramente Machado e Tchekhov. Se reduzido a seu entrecho, o conto resume-se a um jovem casal que marca, numa pensão de subúrbio, um encontro amoroso em determinada noite; a caminho, porém, de consumar a relação, param numa ponte vendo o pequeno rio passar, tocados pelas lembranças paternas de Stela, a jovem costureira. Também aqui, a personagem feminina é o centro do conto, dando nome a ele, ainda que não lhe pertença a voz narrativa. É o mesmo procedimento que se dava com Oscarina, Dulce (do conto “Namorada”), Leniza de A estrela sobe e agora com Stela, todas referidas no título da obra e, portanto, centrais na narrativa. Estruturado em três segmentos, no primeiro deles o narrador vai até o “ateliê modestíssimo de Madame Graça” buscar uma


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encomenda da mãe (um vestido que mandara reformar) e lá, enquanto a patroa não chega, põe-se a conversar com a empregada que lhe abrira a porta, indicando o primeiro sentido para a expressão do título (a situação de acaso), antecipando também o desdobramento posterior (a aceitação amorosa do outro). Tratase, na verdade, de um primeiro amor que ganhará a dimensão de experiência reveladora (o derradeiro sentido). O conto deixa clara a condição social dos dois adolescentes como herança do passado colonial do país: o narrador, estudante, “nunca teve patrão”; a costureirinha, “espigada, dum moreno fechado, muito fina de corpo”, largando os estudos antes dos quatorze anos para trabalhar e ajudar a mãe viúva, depois da morte inesperada do “padrinho”; ou seja, na história de Stela, a mesma situação de precariedade dos pobres, cuja vida se decide pelo acaso e adversidades. Depois da andança por vários empregos, nos quais era tratada com toda sorte de exploração, Stela encontra Madame Graça, que “nunca manda, pede”, ainda que “trabalha-se demais, não foga”. A mãe não quis que ela fosse lavadeira: antes, que se dedicasse à costura; num conto tão despojado e simples, isso dá à jovem uma dimensão arquetípica, pois ainda que de modo rebaixado, liga-a às fiandeiras, às moiras, já que participará – tanto quanto sua condição social permite – da tecedura do destino de seu jovem companheiro. O conto se inicia com uma notação temporal importante, quando o narrador reconhece, pela primeira vez, a relação decisiva entre o amor e o tempo: “Havia alguns meses que nós nos conhecíamos e jamais o tempo passou tão rápido para mim”. E, logo em seguida, outra notação decisiva, dessa vez trazendo a morte literalmente na figura do irmão, em tudo diferente do narrador: “Meu irmão Alfredo, que morreu aos vinte anos, estupidamente, duma pneumonia dupla, era um rapazinho importante: não gostava de fazer recados, de carregar embrulhos, de comprar coisas para casa na cidade”. E aqui, mais uma vez o leitor reconhece nessa relação simétrica e irônica a convivência tensa entre irmãos na obra de

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Rebelo. O segundo segmento, central no conto, é narrado na forma de sumário, e conta não só os recorrentes passeios e encontros do casal já namorando – a segunda sugestão do título –, como também a história de Stela com seu pai. A cada dia o caminho é feito mais lentamente, numa suspensão de tempo e espaço, pois também as ruas são percorridas sem sentido direto, num movimento em contraponto com as cenas e os sumários narrativos. Aparece então, de modo claro, a identidade da garota, sonhadora e nostálgica, com seu pai aventureiro, que deixa para a filha como herança somente a nostalgia da aventura – é inegável a simbologia irônica do nome de Stela, ligado à estrela-guia dos navegantes –; de tal forma que o jovem namorado já pressente a perda futura de sua amada, que ele aceita resignado, em frases que reproduzem, no ritmo e na sintaxe, o ir-e-vir do chamado do mar: 63

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Eu olhava seu corpo, não respondi. Mas sentia que ela fugiria mesmo, um dia, para nunca mais. Não sei por que, nada fazia para prendê-la. Aceitava a idéia da fuga como um acontecimento que não podia deixar de ser. As mãos dela eram quentes, apertavam. Os seus olhos eram bem o chamado do mar, o chamado das ondas do mar, o chamado das ondas de um mar desconhecido, verde, fundamente verde, misterioso.

Assim, ao lado do “padrinho”, engenheiro e homem de bomsenso, está o pai em sua figura de mistério e aventura. Ao final do segmento, o narrador se pergunta, numa lembrança vaga e misteriosa, por que não impediu que ela fosse embora, sem saber a resposta que, seguramente, tem a ver com sua condição, assim como já pressupõe que, mais do que se perder no mar, a condição de Stela lhe reserva outro destino: “Está tão distante tudo isso, hoje, e o mesmo mistério perdura. Por onde andará Stela? Em que mares de homens se perdeu?”. A pergunta final remete a outro motivo recorrente na obra do autor, pois mais tarde outra estrela se perderá entre os homens da cidade.


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No último segmento, a narrativa volta ao procedimento da cena dramática, justamente na noite (véspera de Natal) em que os dois adolescentes resolvem consumar a relação amorosa. A situação social criada pelo conto – o filho de classe média explorando sexualmente a empregadinha mulata ou negra (direta ou indireta) da mãe – se desmascara quando o narrador recebe de modo ostensivo o choque entre o sublime e o baixo na figura do português que o atende: depois de defender a dignidade de Stela (“É uma moça direita. Séria”), o jovem recebe na cara, do português do “hotelzinho”, a expressão sórdida da realidade à sua volta (“Destas vêm cá às dúzias”). A relação entre o sublime e o prosaico, o lirismo e a grosseria, desdobra a relação que há entre a delicadeza de Stela e a grosseria da herança escravista das patroas: Stela se contenta, ainda que explorada, em ser tratada de modo minimamente sociável. Já de noite, o jovem e sua namorada aparecem, indo para o local contratado. Também agora há um belo trabalho poético do narrador, que dá o ambiente num misto de ansiedade e nostalgia pela perda que se aproxima: “A lua é paz, é pálida, e nós tão pálidos. As horas correm, o barulho do rio correndo tinha uma tristeza de morte”. E os signos de morte preenchem a cena final, a começar pelos sinos dobrando e pelas duas velhinhas de preto e xale. Há uma simetria clara na construção entre o namorado e o pai de Stela: antes de morrer, o pai vivia seis meses com Stela, uma plenitude de vida; antes de “morrer”, os dois vão viver a plenitude amorosa. O conto se encerra com os dois sobre a ponte – negando a situação armada inicialmente –, num momento de plenitude epifânica (o silêncio da lírica), vendo e ouvindo o rio passar, os sinos dobrando, as estrelas nas alturas, “esquecidos, perdidos, como restos de um naufrágio”, sabendo, pelo que a imagem final tem de negatividade e morte, que a vida de inocência ficou para trás. A ponte fecha o conto, assim como a porta havia aberto: ambas são signos de passagem e revelação. E o conto termina com o jovem casal sobre a ponte, vendo o rio (o tempo) passar,

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que deságua no mar que levou embora o pai de Stela, para onde quer ir a jovem melancólica, de certo modo, reencontrar-se com o pai, com a origem. O pai chamava à canoa que tinha na infância e depois à filha de Stela: também no nome da filha outra condição de ambigüidade, pois Stela está ligada ao instrumento de transporte, de passagem. O desaparecimento do pai dá à jovem consciência do tempo e da morte, e sua aceitação estóica, que Stela ensina ao jovem companheiro ao ensinar-lhe no mesmo passo o amor e a perda, paixão e partida. Com Stela, se esclarece a ambigüidade mencionada no início, ou seja, ser a personagem do título, sem conduzir ou ter acesso à voz narrativa, o que se deve, em parte, à condição social periférica da personagem – e, por extensão, da mulher nesse contexto. Mas outro fato decisivo é que a presença no título indicia a importância que a personagem tem no destino do narrador ou protagonista. Stela possui uma esfericidade como personagem, que não estava em Oscarina; há nela um tom nostálgico e elevado que não havia na primeira. Ainda assim, ambas ocupam a mesma condição social e são igualmente decisivas na história; ambas – e outras personagens femininas do autor – abrem a porta a seus parceiros. O final do conto traz à lembrança o belo poema de Ricardo Reis que o próprio Rebelo escolheu para figurar na antologia escolar portuguesa que preparou (1970), e se inicia com o verso “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio”. O poema de Reis, com seu estoicismo, é imagem que resume o conto e seu final, pois, como diz um de seus versos, “Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio”. Assim ficam os dois jovens “esquecidos”, sem culpa e sem desejo. Na orelha da primeira edição, há uma nota informando que Drummond teria sugerido a Rebelo que o conto se chamasse não “Stela me abriu a porta”, mas simplesmente “A porta”. Pela imagem final, não ficaria ruim também se ele se chamasse “A ponte”.


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Cenas líricas, às vezes cômicas Mais uma vez, aqui se repete o procedimento (ou a impressão do leitor) do inacabado que acompanha a trajetória do autor desde o início; entretanto, mais do que em qualquer outra coletânea, aqui esse inacabado ganha uma feição moderna, dado na poética de Tchekhov, e sua proposta de começar forte e terminar pianíssimo (como as águas do riacho), que caracteriza suas peças e contos (cf. ANGELIDES, 1995). O efeito, por isso mesmo, é o de acabamento, como se o pendor do escritor encontrasse o momento certo de acabar, sem que a ação dramática desse a volta completa no destino da personagem. Para um contraponto claro na obra do autor, bastará comparar a construção deste conto com a unidade fechada da curva dramática de “Caso de mentira” (conto do primeiro livro), diversidade que fala certamente em favor do escritor. Assim, aquela concentração de fôlego do velocista – que Rebelo mencionava na entrevista –, mais do que se traduzir em concentração dramática, prefere a cena que se resolve em sugestão diáfana, margeando o silêncio; mais que concentração, por isso, quer ser intenso e lírico. Ainda que Stela mostre os procedimentos todos que já estavam em Oscarina e Três caminhos, parece acentuar-se aqui a presença tanto do lirismo, quanto da figura feminina (muitas vezes na condição de adolescente), dois aspectos que encaminham sua obra para O espelho partido. Seu conto é sempre de ação, nunca de análise interior, mas uma ação que às vezes se dilui e a ausência de dramaticidade externa pode ser compensada pela reverberação interna do fato, ou terminando simplesmente em sugestão poética. É procedimento antenado com o conto moderno, como disse, que tende a desenvolver, desdobrar o efeito: ou se distendendo na forma de lirismo e atmosfera lírica, ou desdobrando o efeito na forma de um lirismo dramático, justamente pela interiorização daquela ação. O mesmo procedimento do conto comentado ocorre no livro com “Serrana” – menos intenso que o primeiro, é verdade, mas ainda assim belo conto. Nele também a mesma situação amorosa

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armada, ainda que por se passar na “serra”, não haja a sugestão do erotismo que há na outra; ao contrário, o conto é o encontro do jovem da cidade, do Rio, que se recupera com os ares do campo (já o signo da morte) e a roceira adolescente, no frescor e viço da idade. Com as chuvas que prendem o narrador convalescente em casa, o tempo passa e dissolve em ausência o caso que poderia ter se consumado, pois a moça seguira o pai para outro sítio aonde fora ganhar a vida. Desse modo, “Serrana” faz par com “Stela”, pois nele também a descoberta se dá com a perda precoce de uma paixão que não se efetiva. São contos que falam de situações limites de descoberta e morte, todos ensinando lições de partir – para falar com Manuel Bandeira, presença forte no livro – sem que a vida se tenha consumado.[2] O mesmo ocorre também com “A morta”, “Composição de carnaval” e outros, em que a descoberta da paixão entre os jovens acaba-se de forma trágica pela morte inesperada, ou ausência, mas sempre recolhida em tranqüilidade por esse narrador nostálgico. Em outros, o idílio ocupa todo o breve conto, que se faz o registro da plenitude de jovens personagens começando a amar, com a narrativa preenchendo-se toda por essa cena lírica, com maior ou menor consistência. A observação do narrador de “Almas no jardim” serve para o livro todo: “não há bancos incômodos para os casais de namorados”. Consistente e também dos melhores contos do livro é a narrativa de “Dois pares pequenos”, em que a gazeta das crianças na floresta dá ensejo ao namoro da irmã mais velha com o desocupado garoto que freqüenta o lugar. Esse conto ilustra com perfeição um comentário de Agripino Grieco (1947) sobre as pequenas personagens, “as crianças sofredoras”, o “Poil de Carotte que há em toda família”, que serve tanto aos livros anteriores – sobretudo aos contos de Três caminhos –, quanto a este: no conto, aparecem O lirismo de Bandeira aparece explicitamente na obra, com o conto “Depoimento simplório”, em que o livro A cinza das horas surge como revelação para o garoto.


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as figuras de Pinga-Fogo e Madalena, que mais tarde ocuparão lugar importante no diário de Eduardo.[3] Nos contos mencionados até aqui e em outros mais, Marques Rebelo quase nunca perde duas de suas melhores qualidades, já mencionadas pela crítica: a primeira, um estilo elegante, sóbrio, sem adorno nem derramamentos, decorrente de sua formação de tradição clássica, e que faz a narrativa transpirar uma emoção franca, mas nunca carregada, uma elegância feita de coloquialismo e humor; e a segunda, a finura dos sentimentos. Há mesmo uma delicadeza que se estende ao tratamento do narrador na obra aos objetos de estimação – e aos objetos em geral – como sinal, muitas vezes, de permanência do passado meio aristocrático e feliz da casa paterna e da infância. No conto “Um morto”, por exemplo, o narrador se recorda da única vez que conversou com um sujeito que, como acabara de saber, havia falecido precocemente. Numa noite, altas horas, sem xícaras para o café que encerraria uma longa e prazerosa conversa, uma tia resolve profanar a cristaleira da casa e usar aquelas que vinham intactas “da extinta nobreza monárquica”, herança de outra tia e resquício do passado meio nobre da família, que reaparece em outros momentos da obra de Rebelo. Há um fio apenas separando a emoção do conto e o registro anedótico da crônica, na cumplicidade dos dois amigos; o banal da historieta só é superado por essa delicadeza que une o narrador à lembrança esquiva do outro. São cenas líricas que tratam da descoberta do amor com a presença insidiosa da morte, mas é, ao mesmo tempo, uma declaração de amor à cidade em que nasceu. E certamente muito de biográfico estará nesses contos, ou porque efetivamente o fato ocorreu, ou porque neles o escritor se projeta e confessa. Notese o caso do último conto do livro, bom conto extemporâneo Pinga-Fogo é o nome com que Poil de Carotte, personagem de Jules Renard (1864-1910) e uma das obsessões de Marques Rebelo, foi batizado nas traduções ao português.

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(1967) – “A árvore” – em que fala da passagem do Rio das casas de subúrbio para o dos condomínios. O Seu Ananias que se sente mal com a violência contra a árvore que ele e um amigo condômino plantaram é o mesmo Rebelo que precisou ser acamado quando o prefeito da cidade mandou derrubar uma amendoeira centenária (cf. PROENçA, 1974). Assim, nesses contos de louvor (melhor dizer, de amor) à sua cidade natal, mas feito discretamente, aparecem as cenas líricas e algumas também cômicas, sempre com o olhar afetuoso do escritor. A memória afetiva é responsável pela força poética de alguns contos, e também pelo desnível – ou fraqueza mesmo – de outros, pois para ele esses últimos também são memória de tempos felizes. Nos contos de “Cenas da vida carioca”, um conjunto acrescido ao livro e cujo título remete às crônicas de Cenas da vida brasileira (1951), o leitor está diante de um Rebelo mais cronista que contista, com traço depurado ao descrever o don-juan de ponto de ônibus, o malandro que se vira com mil expedientes, o dia-a-dia da família de subúrbio, em seus repetidos gestos, preocupações, manias e providências, tudo marcado pelo relógio do padeiro, dos vizinhos etc., em alguns casos utilizando mesmo os verbos no presente, para confirmar aquele ar de crônica. O interessante é pensar na posição do narrador diante desse pequeno mundo narrado: num momento – e dado o ar cômico que paira na sala – o leitor sente que seu cronista está vendo essa cidade interiorana com os mesmos olhos modernistas que viam a vida besta da cidadezinha qualquer; mas há uma nostalgia que subjaz a tudo, por esse narrador que vê a gente humilde em suas casas simples com cadeiras nas calçadas, escrito em cima na fachada que é um lar, como na canção de Garoto, Chico e Vinicius. É discreto, mas aparece esse olhar, no tom respeitoso e de admiração pela harmonia que anula ou transforma em acidentes até mesmo as injustiças. Veja-se, a propósito, o final do conto de 1934:


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Às dez horas, depois de um copo de leite com biscoito de fubá, cuja receita é do tempo da vovó, recolhe-se ao berço a família feliz, para, no outro dia, com a graça de Deus, recomeçar a vida, com a mesma boa vontade de viver.

É nesse sentido que parece às vezes sua obra resvalar para uma tensão mínima, em que importa mais contar a alegria inconsciente e espontânea da vida de subúrbio, num tom de crônica, do que propriamente forçar a nota crítica. E isso se compreende se pensarmos nesse narrador que, como disse Alfredo Bosi em sua História concisa (1991), é um nostálgico de tempos mais simples. No conto “Caprichosos da Tijuca”, aparece um dos pontos centrais da literatura de 30 – seu desejo de aproximar o escritor ao homem do povo – desejo que ali aparece literalmente com a ida do escritor até a quadra da escola de samba, em parte para ser homenageado (afinal, como diz o presidente carnavalesco, ele é “figura da inteligência”), em parte para contribuir com a escola – e o escritor envolto com seus personagens “aperta o mês mas deixa cem mil réis no Livro de Ouro” da escola. Tudo se resolve na chave de uma cordialidade recíproca que passa por cima das diferenças raciais e de classe, cordialidade de emocionar o coração das pedras. O conto ganha também ele a condição de uma cena carioca, novamente aqui mais afeito ao registro entre poético e jocoso do cotidiano do que propriamente àquela densidade das peças mais fortes do escritor. Entre essas cenas na forma de crônicas da vida carioca, há a de 1952, pequena narrativa de um conquistador de ponto de ônibus, que vai à caça de uma jovem bela e viçosa. E o trajeto de ônibus acompanhando a garota ao hospital em que está sua tia é feito de um estilo elegante e cortês, de um lirismo maduro nascido do sujeito que descobre a beleza interior da garota. Mas num final um tanto decepcionante, o conto termina com este “limitando-se a dizer” que ela era “um anjo”. A graça não tem força e o leitor fica insatisfeito com a interrupção da narrativa, sem que as implicações para as personagens desse encontro fossem desdobradas – coisa

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que não ocorre no conto central e em outros do livro. Num caso como esse, claramente o desfecho não está à altura da narrativa; e o mesmo ocorre no caso de “Labirinto”, cuja saída é também fraca. No conto “Quatro momentos de um idílio”, por exemplo, é visível a falta de dramaticidade da narrativa, do rapaz que fica tentando se aproximar da garota que saiu da cidade e se tornou uma roceira arisca; o idílio explicaria essa ausência, mas não a falta de intensidade poética (se a leitura não estiver equivocada), ou seja, o ponto é saber se o conto é tão idílico assim. E um conto como “Episódio coreográfico” realmente parece bastante fraco. Talvez todas se justifiquem – como foi dito – por serem cenas idílicas de quadros felizes que ficaram intactos na memória ou, ao menos, que esta tenta a todo custo salvar do riacho do esquecimento, que já estava tematizado no primeiro conto. De qualquer forma, o livro parece superior a Oscarina e mostra claramente – até por ser a última obra curta de ficção adulta – seu autor caminhando em direção às notações líricas ou dramáticas, prosaicas ou poéticas, misturando o samba de morro com seus poetas de eleição, a emoção dos sentimentos da adolescência com a gravidade do homem adulto e angustiado, que volta incessantemente a cenas e personagens do passado para suportar o presente e poder compor seu testamento de vida – O espelho partido – que, ironicamente, ficará inacabado.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Paulo Mendes de. Apresentação a Oscarina. São Paulo: Clube do Livro, 1973. ANGELIDES, Sophia. A.P. Tchekhov: cartas para uma poética. São Paulo: Edusp, 1995. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1991. GRIECO, Agripino. Evolução da prosa no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1947. PROENçA, Ivan Cavalcanti (org.). Seleta de Marques Rebelo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974. REBELO, Marques (org.). Antologia escolar portuguesa. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1970. REBELO, Marques (org.). Contos reunidos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977. SAMPAIO, Newton. Uma visão literária dos anos 30. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1979. TRIGO, Luciano. Marques Rebelo: mosaico de um escritor. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.

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Introdução A TÊNUE FRONTEIRA ENTRE FATO E FICÇÃO NO ROMANCE BALADA DA PRAIA DOS CÃES, DE JOSé CARDOSO PIRES

“[...] uma combinação entre aparatos de contratos de leitura característicos do mundo do novo jornalismo e aparatos próprios dos meandros da ficção”. Assim se refere Ana Paula Arnaut (2002, p. 215) ao romance Balada da Praia dos Cães.

Audrey Castañón MATTOS (Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, Araraquara/SP) Resumo O romance Balada da Praia dos Cães, do escritor português José Cardoso Pires (1925-1998), é, em princípio, a história de um caso verídico, conhecido como “o crime da Praia do Guincho”: o assassinato de um excapitão do Exército português em 1960; contudo, abrigada nas páginas de um romance – forma em geral consagrada à ficção – encarna uma natureza ambígua, porquanto a relação entre fato e ficção pressupõe a existência do real e do inventado. Qual a natureza dessa relação? Convivem harmoniosamente? Apropriam-se um do outro, dissolvendo o limiar que os deveria separar? O sugestivo subtítulo de Dissertação sobre um crime denuncia a apropriação de dados factuais para sua tessitura e sugere sua filiação ao chamado Novo Jornalismo, modalidade jornalístico-literária que se caracteriza por uma narrativa mais subjetiva e criativa do que aquela praticada pelo jornalismo convencional, e que procura mostrar sobre os fatos uma verdade outra, no intuito de transpor o hiato entre o que é apresentado pela mídia como fato e a forma como se tecem os acontecimentos no dia-a-dia. Balada da Praia dos Cães propõe, da mesma forma, o questionamento do processo de seleção e organização de informações que baseia a construção dos discursos aceitos como verdades pela sociedade. Entretanto, não visa à crença do leitor naquilo que narra. Pelo contrário, o ato de criar é explicitado por meio da metaficção, que desvenda para o leitor os bastidores da criação artística. A inserção dos acontecimentos num contexto em que fato e ficção contaminam-se mutuamente convida o leitor a encarar com desconfiança qualquer tentativa de análise totalizante da realidade. Por meio de estratégias narrativas como a multiplicidade de vozes (e, por extensão, de perspectivas), repetições, descontinuidade e fragmentação do enredo, instaura-se um processo de suspeita diante da forma como se constrói o próprio real. Palavras-chave: Fato e ficção; novo jornalismo; romance contemporâneo português.

Nossa discussão sobre a problemática da tensão entre fato e ficção neste romance de Cardoso Pires assenta-se em nossa defesa de que não há nele nenhuma pretensão de contar a verdadeira história do crime da Praia do Guincho, embora sim, sua urdidura se assente na manipulação de dados factuais, o que justificaria sua filiação ao gênero denominado novo jornalismo.

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Uma Balada jornalística?

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Tom Wolfe, expoente do novo jornalismo, comenta, em seu The New Journalism (1996, p. 37), que não faz ideia de quem ou quando se tenha cunhado o termo “novo jornalismo”. Kevin Kerrane[1], por seu turno, afirma que “[...] de fato, foi originalmente cunhado por Matthew Arnold em 1887 para descrever o estilo da Pall Mall Gazette de Stead [W. T. Stead]: atrevido, vívido, pessoal, reformista – e ocasionalmente, do ponto de vista conservador de Arnold, inconsequente [...]” (apud FERREIRA, 2003, p. 289). Para Kerrane, as origens desse jornalismo podem ser rastreadas até o que ele chama de repórteres sociais da era vitoriana, destacando-se os trabalhos de Morris Markey (18991950) da revista The New Yorker e de Ben Hecht (1894-1964), “um dos introdutores, a partir de 1921, de um enfoque literário YAGODA, B., KERRANE, K. (eds.) The art of the fact – a historical anthology of literary journalism. New York: Scribner, 1997.

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na cobertura jornalística da vida urbana”; Cahan (1860-1951) que propôs um novo tipo de jornalismo diário e que seria, segundo o editor Lincoln Steffens, “pessoal, literário e imediato” e os vitorianos Dickens, Henry Mayhew e W. T. Stead. Dickens iniciou sua carreira de repórter cobrindo os debates no Parlamento inglês, tendo também desenvolvido um “certo fervor jornalístico” nas suas novelas, na medida em que estas penetram nas “fissuras ocultas da sociedade”, iluminando-as. Quanto a Mayhew, destacase na cobertura como repórter da vida dos desfavorecidos de Londres, apresentando inovações como depoimentos de vida, obtidos por meio de perguntas que eram eliminadas na redação e que aproximavam o texto final da tradição oral. Stead era editor da Pall Mall Gazette e revolucionou o estilo do jornalismo britânico incorporando às entrevistas detalhes da atmosfera e maneirismos dos entrevistados e pelo seu engajamento em lutas sociais (produziu matérias participantes, como, por exemplo, quando comprou uma menina de 13 anos da própria mãe para denunciar a prostituição infantil; a reportagem lhe custou três meses na cadeia). (KERRANE apud FERREIRA, 2003, p. 288-289). Nos Estados Unidos, a grande reportagem Hiroshima, de John Hersey, publicada em agosto de 1946 no The New Yorker, marca o aparecimento das inovações que criariam as estruturas contemporâneas dessa nova modalidade jornalística. Entrando pela via da criação literária na mente de seis sobreviventes reais da bomba atômica, Hershey engendrou uma obra “factualmente autêntica e absolutamente digna de confiança” reconstruindo cenas por meio da exploração de pensamentos e emoções das personagens “de maneira novelística”. (FERREIRA, 2004, p. 283). A publicação, em 1965, de A sangue frio[2], de Truman Capote é considerada um marco no campo das narrativas jornalístico-literárias praticadas nos anos 1960 e então reunidas sob a expressão novo jornalismo. Atualmente o termo novo jornalismo vem sendo substituído por 2

Relata a história do assassinato de uma família inteira, os Clutter, no Kansas, EUA.

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jornalismo literário, mais amplo, em que se incluem uma série de narrativas permeadas pelo tratamento jornalístico da informação aliado ao fazer literário, como o romance-reportagem e o livroreportagem. Muito se discute sobre o papel social desse jornalismo, que, de modo geral, gira em torno de acontecimentos geralmente desprezados como matéria-prima por escritores tradicionais e excluídos – ou abordados de maneira oficialista ou superficial – pela imprensa, incluindo-se aí guerras, movimentos políticos ou contraculturais, cujo tratamento literário não deve perder de vista, entretanto, o compromisso central do jornalismo com a verdade ou, melhor dizendo, com o factual, que deve ser verificável.

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A inclusão de A sangue frio no rol das obras consideradas jornalístico-literárias é polêmica, justamente porque muitos críticos entendem como não factuais, isto é, não verificáveis, diversos pontos do romance, como os diálogos presentes na obra, que são considerados recriações ficcionais. Kerrane e Yagoda, por outro lado, consideram que Capote, durante as entrevistas com os assassinos da família Clutter – Dick e Perry – ouviu o que eles “poderiam ter dito e transcreveu isso mais fielmente do que qualquer outro jornalista o fez antes ou desde então” (apud FERREIRA, 2003, p. 282, grifo nosso). A questão gira em torno da exatidão – que seria sustentadora da verdade perseguida – e, sendo assim, muitos críticos levam em consideração o trabalho em que o escritor se debruçou para realizar sua obra. No caso de A sangue frio, há uma recriação de acontecimentos que Capote não presenciou e que não teria sido possível sem um árduo trabalho de reportagem (Capote levou seis anos para finalizar o livro, período em que colheu informações sobre a família Clutter, amigos e conhecidos, além de conduzir diversas entrevistas com Dick e Perry, a quem acompanhou desde a captura até a execução da sentença de morte). Por conseguinte, a inserção de diálogos na obra supõe uma credibilidade implícita


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e prévia em Capote, que os teria recriado a partir de informações fornecidas por suas fontes, embora seja algo que não se possa garantir. Para Kerrane e Yagoda, trata-se de uma verdade “quase jornalística, inerente ao que seria a integridade-honestidade do autor.” (apud FERREIRA, 2003, p. 284). Foi o próprio Truman Capote quem elaborou uma definição para A sangue frio ao utilizar pela primeira vez a expressão nonfiction novel. Combinavam-se, assim, duas realidades aparentemente opostas e mutuamente exclusivas, o mundo real, englobado pela prosa de não-ficção e o ficcional, de que o romance seria um dos principais sustentáculos. O novo estilo, que se requer portador de uma verdade outra porque amplia a visão que se pode ter da história ao abordá-la de forma humanizada, abre caminho, entretanto, para uma série de questionamentos em torno do que exatamente pode ser considerado verdade, levando-se em conta que as escolhas do escritor por determinada estrutura narrativa implicam, necessariamente, em uma visão subjetiva que permeia a obra. A busca da não-ficcionalidade é apontada como principal característica desse novo jornalismo. Tom Wolfe indica, além dessa, o procedimento da reportagem – intenção, planejamento, realização – como diferencial de outros trabalhos de não-ficção que poderiam ser confundidos com aqueles entendidos como pertencentes ao novo jornalismo; exclui-se, desse modo, a literatura ficcional simplesmente baseada na realidade. Tom Wolfe, ao mencionar o instrumental da literatura, refere-se à descrição de gestos, hábitos, estilos de mobília, roupas, decoração e viagens entre outros detalhes simbólicos do status das pessoas. Para ele a única regra na apropriação desse instrumental é o não existirem regras; a liberdade do escritor deve ser assegurada e o resultado, surpreendentemente, não é algo meramente parecido com um romance, porque, embora se utilize de dispositivos originados com o romance, mistura outros elementos da prosa;

para além da técnica, goza, ainda, de outra vantagem: a de que o leitor sabe que tudo o que lá está escrito aconteceu realmente. (WOLFE, 1996, p. 47, paráfrase nossa). Aqui se contrapõe nossa leitura de Balada da Praia dos Cães, romance que, se de um lado apropria-se das técnicas do novo jornalismo, especialmente a liberdade no tratamento da informação que supera o paradigma das regras, de outro, não empreende esforços no sentido de fugir à ficcionalidade, nem pretende de seu leitor uma certeza prévia da veracidade de tudo o que lá se encontra. Pelo contrário, utiliza-se de um discurso em que a ambiguidade se instala permanentemente.

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Se não se pode negar que Cardoso Pires empreendeu uma pesquisa investigativa sobre o crime da Praia do Guincho, também não se pode fugir à evidência de que seu procedimento opõe-se àquele praticado pelos novos jornalistas – manusear dados a que se possam atribuir uma fonte e tratá-los de tal modo que ampliem a visão do leitor sobre determinado acontecimento, funcionando como garantia de se tratarem da verdade. Se voltarmos à questão dos diálogos em A sangue frio, ainda que não se possa garantir, como querem alguns críticos, que certa personagem disse isso ou aquilo, sabe-se que Capote conversou com diversas testemunhas, amigos e parentes dos Clutter e com os acusados de sua morte. Além disso, Capote tem o cuidado de somente referir-se aos Clutter em termos objetivos, reproduzindo informações possíveis de lhe terem sido transmitidas por outros; não há fluxo de consciência, nem invasão do pensamento desses personagens (que já estavam mortos quando se dispôs a escrever o livro), de modo que uma implícita confiabilidade transpira da obra. Tom Wolfe tem cuidado semelhante. Embora a inserção de personagens refletoras[3] seja alvo de críticas em sua obra, – como um jornalista pode saber o que se passa na mente de alguém? 3 O conceito é de Henry James, segundo o qual um discreto narrador se alojaria na mente de uma das personagens (refletora), a partir de cujo olhar se daria a narração.


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– pensamentos, argumentos, sensações e desejos são sempre atribuídos a uma fonte, no caso, às pessoas reais representada em sua obra:

Cardoso Pires parece caminhar no sentido contrário, pois recorre, a título de fontes, a documentos oficiais e notícias de jornais, material que prima pela objetividade e que é o resultado de um insensível enxugamento de qualquer carga humanizadora. Reverter esse processo neutralizante é justamente a tarefa do romance, que parte em busca dos retalhos que foram eliminados no processo de construção do discurso oficial. Esse refazer da colcha é muitas vezes referenciado dentro do próprio texto, por meio do uso de palavras do universo da costura: “Além dos apontamentos que alinhavou leva algumas fotografias apreendidas na casa de Mena”; “Elias logo ao segundo interrogatório tinha nas mãos todas as linhas com que se coseu o morto [...]”; “Elias esteve a tirar os alinhaves do processo, últimos acabamentos.” (PIRES, 1983, p. 35, 64, 206, respectivamente).

[…] Yet how could a journalist, writing nonfiction, accurately penetrate the thoughts of another person? The answer proved to be marvelously simple: interview him about his thoughts and emotions, along with everything else. This was what I had gone in The Electric Kool-Aid Acid Test[4], what John Sack did in M[5] and what Gay Talese did in Honor Thy Father[6]. (WOLFE, 1996, p. 47, grifo nosso).

Cardoso Pires, por sua vez, refere-se, em apêndice e apenas en passant, às entrevistas realizadas a título de pesquisa para o seu livro e, ainda assim, contraria a maior parte dos escritores que fazem uso de notas deste tipo, pois se refere às pessoas pelos nomes fictícios, de forma que não se estabelece o esperado resgate do real, garantidor da veracidade dos fatos narrados. No processo de desvendar facetas outras de determinados acontecimentos, escritores como Gay Talese, referência no novo jornalismo, procuram entrosar-se às pessoas do meio sobre que pretendem escrever, a fim de colher dados ao mesmo tempo reveladores de verdades e capazes de impregnar a narrativa de certa dose humanizadora: “O escritor, seja um homem da mídia ou um ensaísta social, precisa antes de tudo entrosar-se, mergulhar no meio que quer conhecer, para escrever sobre ele.” (TALESE[7] apud FERREIRA, 2003, p. 119). Traduzido para o português como O teste do ácido do refresco elétrico, romance literário-jornalístico de Tom Wolfe, acompanha as experiências com o uso de LSD do escritor Ken Kesey, autor de Um estranho no ninho.

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Relata a história de uma companhia de soldados americanos na Guerra do Vietnã.

Publicado no Brasil pela editora Expressão e Cultura, Rio de Janeiro, 1972, com o título de Os honrados mafiosos.

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7 In: TALESE, G. Os honrados mafiosos. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1972. Título original: Honor thy father.

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A proposta do novo jornalismo vem da constatação de certa insuficiência da reportagem e da literatura realista para dar conta dos fatos da vida a serem compreendidos pela observação[8]. (apud FERREIRA, 2003, p. 296). A resistência contra as formas engessadoras do jornalismo tradicional, presumivelmente mais informativas, levou a reportagem moderna a interpretar acontecimentos por um ponto de vista narrativo subjetivo, criando uma mistura entre ensaio, prosa poética e notícia factual. Ainda que inúmeras questões sejam levantadas sobre a exatidão da informação em tal contexto, o fato é que a produção novojornalística apoia-se na certeza (ou na ilusão) de que, sendo a sua matéria-prima verificável, veicula uma verdade. Em que pese a consideração da teia de discursos que constituem essa verdade – tais como interesses pessoais, seletividade da memória, posições sociais e aspectos emocionais, intelectuais e políticos dos sujeitos envolvidos na construção desses discursos – e se admita a existência de verdades em lugar de a verdade, ainda assim, as obras jornalístico-literárias se querem críveis. SIMS, N. Literary Journalism in the Twentieth Century. New York/Oxford: Oxford University Press, 1990.

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Analisando Os honrados mafiosos, de Gay Talese, Carlos Rogé Ferreira afirma que a obra quer mostrar, “com sua criação amparada na realidade, a verdade sobre o crime nos Estados Unidos” ao “pretender produzir um outro discurso jornalístico e literário sobre esse universo [a Máfia] que estaria sendo apresentado à sociedade de maneira distorcida”. (2003, p. 111, grifo nosso).

da sociedade de compreensão do real. A diferença entre as duas obras está no fato de a primeira gozar de credibilidade junto ao leitor, enquanto o romance de Cardoso Pires envolve tudo o que narra em uma aura de suspeição. Esse efeito pode ser bem observado nas passagens extraídas do romance transcritas a seguir. A primeira delas reproduz parte dos depoimentos de Mena, e foi supostamente extraída dos autos do processo, funcionando, dentro do texto, como referência factual.

De certo modo, o trabalho empreendido pelo novo jornalismo é o mesmo que apontamos em Balada – a reconstrução da história recuperando-lhe as cores originais. Deixa-se de lado a obrigatoriedade do chamado texto das lógicas, que restringe o emissor ao óbvio e ao superficial em nome da clareza e da objetividade e parte-se em busca de outras vozes, outros pontos de vista que recuperem a origem da história, seus elementos desencadeadores, incluindo-se aí estados emocionais, relações pessoais e outros conflitos. Para escrever Os honrados mafiosos, Gay Talese acompanhou de perto a “família” Bonano, em busca dessas cores ausentes do conteúdo veiculado pela mídia. Ele precisou de algo além das fontes oficiais – governo, polícia federal, livros e jornais – para escrever sua história. Para inserir nela os personagens que lhe interessavam, envolveu-se, acompanhou suas vidas, da mesma forma que fez Capote para escrever A sangue frio. Cardoso Pires, ao contrário, serve-se das fontes oficiais, secas e precisas, para o mesmo objetivo de reconstituir a história com cores mais vivas. Extraiu desse material estéril, por um processo imaginativo, personalidades, falas, sentimentos, sensações; recriou a atmosfera do cárcere, das casas de Mena, do arquiteto Fontenova e de Elias. Recriou a atmosfera do Portugal dos anos 1960, desolado e isolado pela ditadura. Nos dois casos realiza-se o duplo objetivo de reavivar a história por meio da recuperação de detalhes e modificar a capacidade

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Nos Autos de declarações de Mena ficou registrado: “Que a respondente não tardou a aperceber-se dessa animosidade (em relação ao cabo) recordando-se de certa noite em que o major, ao discutir com o arquitecto Fontenova, descarregou a sua contrariedade no Barroca, o que o levou a recolher-se ao quarto; que não pode reproduzir com exatidão as razões e os termos da referida discussão mas que no decorrer da mesma o major fez por várias vezes alusão ao capitão Henrique Galvão; que o arquitecto manifestou o seu descontentamento pela actuação do ‘Comodoro’ (dr. Gama e Sá) referindo-se na altura a uma lista de possíveis aderentes ao Movimento que tinha confiado ao major; que, a dada altura da discussão o major tomou certas atitudes mais íntimas para com ela, atitudes que se lhe afiguraram propositadas no sentido de pôr menos à vontade o cabo e de experimentar a reacção do arquitecto.” (PIRES, 1983, p. 60).

Abaixo, a releitura do depoimento de Mena pelo ponto de vista de Elias, em que se pode observar o processo, realizado em todo o romance, de transformação do dado em fábula: “Para onde é que você está a olhar?” “Eu, meu major?” (Voz do cabo). “Você, você. Então eu falo e você põe-se a olhar para onde?” Pausa. Mena e o arquitecto fitaram-se por um instante.


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porque, se não o fizesse, “o leitor nunca saberia se acredita naquilo que lê” [9]. Em Balada da Praia dos Cães os nomes reais são substituídos por fictícios e, a certa altura do livro, o procedimento criativo de um desses nomes é realizado diante dos olhos do leitor.

“Barroca”, tornou então o major. “Aquele telefone é fogo, fixe bem. Olhe para ele as vezes que quiser mas livre-se de lhe tocar. Entendido?” […] De costas para ela o major decorava-lhe as coxas com os dedos por cima do robe. [...] Os flancos. As nádegas de Mena.

Trata-se da cena em que é feita a reconstituição do assassinato de Dantas C na Casa da Vereda, onde estiveram refugiados o major e seus companheiros. No local, além dos acusados, estão diversos agentes da Polícia Judiciária. “Perto deles o fotógrafo mensurador brinca com um cachorrinho refilão e impressiona porque é um tipo albino, sem idade. Tem o cabelo branco e frágil como uma nuvem de algodão e olhos desprotegidos e sem cor.” (PIRES, 1983, p. 226, grifo nosso). Transcorre a cena da reconstituição e em seguida é exibido o

[...] Riso. A mão a explorar, a penetrar as entrecoxas de Mena. E nesse então Elias esquece-se do cabo, o cabo dissolveu-se no fumo. [...] Alguém disse: “Vou-me deitar.” (Mena?) “Claro”, insiste o major, “o homem tem todo o direito de olhar”. (Mena continua sob a mão de Dantas C; percorrida, divagada). [...] “O mal está no ar sorna do gajo, na maneira como o gajo anda a rondar o telefone.” Passos no tecto, botas pesadas, afinal o cabo tinha ido para o quarto. Passeava a espera do sono, deslocava-se em batida certa, de sentinela, e por fim deixou de se ouvir. Lia? (PIRES, 1983, p. 57-58).

A transposição dos dados da fonte (os Autos do processo, cujo correspondente no mundo real é totalmente questionável) para a história é realizada de modo explicitamente ficcional. A reconstrução da cena é atribuída a Elias, personagem igualmente fictício, que imagina falas e trejeitos; além disso, o próprio texto exibe marcas de incerteza, como a dúvida sobre quem teria dito que iria se deitar ou o que o cabo estaria fazendo no andar de cima. Essa ficcionalidade intencional é rejeitada nas obras do novo jornalismo. Gay Talese, ao ser perguntado se o atribuir um pensamento a alguém não seria um procedimento próximo da ficção, respondeu que sim, que tudo quanto escreve está próximo da ficção, mas “é tudo verificável”. Na mesma entrevista, afirmou que sempre usa os nomes reais das pessoas sobre quem escreve,

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aos oito dias do mês de agosto de mil novecentos e sessenta, neste domicílio da Casa da Vereda, aonde se deslocou o Exmo. Inspector Dr. Manuel F. Otero, e se encontravam presentes o agente de 1ª classe Silvino Roque e bem assim o fotógrafo mensurador Albino, desta Polícia, procedeu-se à reconstituição do homicídio de que foi vítima o major Luís Dantas Castro. (PIRES, 1983, p. 230, grifo nosso).

O documento (supostamente) factual que poderia dar credibilidade à cena desmascara-se a si próprio ao nomear o fotógrafo por meio de uma característica física, ao modo dos apelidos. Nada é de verdade no romance, mas tudo poderia ser verdade.

9 Em entrevista a Luiz Carlos Lisboa para o jornal O Estado de São Paulo, 17/01/1998, caderno 2, p. D1 apud FERREIRA, 2003, p. 118.


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Conclusões

para o leitor o processo de transformação do mosaico em tela monocromática levado a cabo pelos organismos sociais, como o Estado ou a Imprensa, e que edifica os discursos instituídos e aceitos tacitamente.

A narrativa de Balada da Praia dos Cães coloca o leitor diante das muitas vozes que teriam algo a dizer sobre o caso que nela se reconstitui e das muitas fontes que, fragmentariamente, contribuem para o conjunto da história, além dos diversos discursos subjacentes: o da imprensa, da polícia, da opinião pública.

O romance faz referência a certo “baú dos sobrantes”, lugar para onde Elias “vai carreando à formiga certos avulsos do processo que servem ao bom polícia para tomar o peso aos figurantes” (PIRES, 1983, p. 73), tais como fotografias, recordações pessoais, declarações de amigos ou parentes dos suspeitos. Esse baú figura como metáfora do apagamento das cores da história pela supressão de detalhes: “nada que venha a ser citado no processo, nem a papelada, nem os retratos e nem esta página (fotocopiada) duma revista [...]” (PIRES, 1983, p. 100).

As múltiplas vozes podem ser percebidas logo às primeiras páginas. A voz do narrador é perfeitamente ambientada ao clima detetivesco: assume, em diversos momentos, um tom técnicopolicial, uma linguagem como que forense, de onde submerge, marcada por um discurso irônico e pela emissão de juízos, uma segunda voz que constantemente desabona ou questiona a primeira. Esse jogo de ecos, bem como a profusão de fontes exteriores ao texto, como relatórios policiais, transcrições de interrogatórios, delações, notícias de jornais, autos do processo, o caderno de anotações da vítima, excertos de revistas e cartas, contribuem para a polifonia do texto. Em todos esses documentos a interferência do narrador atua como um contraponto irônico que instaura a suspeita em seu interior, além de promover sua apropriação pelo relato fictício. Quando referenciadas em notas de rodapé essas fontes extradiegéticas marcam ainda a presença do autor[10] no texto (por meio da notação N. do A.). Tal pluralidade discursiva tem, portanto, um papel que ultrapassa o meramente estético. Por meio da cessão do discurso e da sobreposição, da alternância e da mistura de vozes, Balada da Praia dos Cães permite a exposição dos fragmentos que compõem o mosaico de que é feita, afinal, qualquer história, e desvenda Chamamos a atenção para a suspeita que essa autorreferência levanta; a de que o “autor” também se localiza na esfera fictícia.

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O trabalho do romance é o de recontar a história valorizando seus detalhes, sem, entretanto, pretender que seja tomada como verdade. Pelo contrário, mostramos como há um trabalho intencional em envolver o próprio recontar numa aura de suspeição. A intenção, pois, é de que o leitor desconfie das “verdades”, pois, para criá-las muitos mecanismos sociais são acionados. Nesse sentido, há muitas características em comum entre as obras referenciadas como pertencentes à modalidade do novo jornalismo e Balada da Praia dos Cães, pois, em ambos, há uma postura crítica que leva o leitor à reflexão, ao entendimento de como ele próprio constrói suas verdades. O romance de Cardoso Pires compartilha ainda, com a modalidade jornalístico-literária, outros aspectos, tais como a desconstrução da ideia de uma verdade única, totalizante; a exposição do maior número de lados que compõem o prisma dos acontecimentos; o questionamento do discurso da imprensa e da sua propalada imparcialidade; as técnicas de criação, que envolvem o trabalho de reportagem (pesquisa) e o tratamento da


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informação objetiva por meio da narrativa subjetiva. No novo jornalismo, entretanto, o compromisso com o factual permeia a essência de suas obras. O apropriar-se de uma liberdade não inerente ao campo jornalístico – inserido como é num contexto de disputa de interesses massivos – por meio da literatura, desencadeia um processo de abdicação da “verdade” jornalística que dá lugar a uma “verdade quase jornalística” (FERREIRA, 2004, p. 284), mas, ainda assim, uma verdade. Balada da praia dos cães opera no sentido oposto; desnudando o procedimento criativo aos olhos do leitor, o romance não apenas rejeita o compromisso com o factual como ainda promove a sua ficcionalização; a suspeita instalada no interior de seu próprio discurso dissolve as fronteiras entre o real e o fictício e se estende para as formas com que se erige o próprio real.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARNAUT, A. P. “(In)definições genológicas”. In: ______. Postmodernismo no romance português contemporâneo: fios de Ariadne – máscaras de Proteu. Coimbra: Almedina, 2002, p. 141-218. CAPOTE, T. A sangue frio. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

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FERREIRA, C. R. Literatura e jornalismo, práticas políticas: discursos e contradiscursos, o novo jornalismo, o romancereportagem e os livros-reportagem. São Paulo: Edusp, 2004. PIRES, J. C. Balada da praia dos cães. Lisboa: Edições O Jornal, 1983. WOLFE, T. The new journalism. London: Picador, 1996. p. 1168.


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como matéria ao cronista que a descreve, revelando-a, transpondo em palavras a realidade visível e invisível das cidades. Rebelo configura-se como cronista que fez da cidade a essência de seus textos, representando por meio deles as tensões nos campos sociais, estéticos e literários. O autor marcou suas crônicas com um tom pouco usual, estabelecendo a relação entre o homem e o espaço narrado. Na forma de suas crônicas, observa-se a identidade do gênero: “ser um comentário quase impressionista” (NEVES, 1995, p. 20) marcado pela escolha do tema que, como em todas as crônicas, “é supostamente arbitrário e a liberdade preside a construção. Sua forma é caleidoscópica, fragmentária e eminentemente subjetiva” (NEVES, 1995, p. 20). Tal qual um mosaico das cidades, as crônicas de Rebelo esboçam lugares, descrevem paisagens, a oferecer ao leitor as cenas das cidades e das vidas brasileiras.

MARQUES REBELO E AS CENAS DAS CIDADES BRASILEIRAS Claudia Vanessa Bergamini (PPG-UEL/CNPQ) Regina Célia dos Santos Alves (UEL) O nome de Marques Rebelo se destaca entre os nomes de autores do Rio de Janeiro e do Brasil durante os anos de 1930 e, ainda que ele não seja citado com o cuidado que merece nas obras que se referem ao cânone literário brasileiro de sua época, o contato com sua obra permite observar a qualidade de seu trabalho. A cidade do Rio de Janeiro, seus valores e parte de sua história estão registrados nos contos, romances e crônicas e, com o objetivo de analisar o estilo de Marques Rebelo, que se configura com uma ironia leve e um olhar cético e crítico para as cidades e seus habitantes, elaborou-se o presente trabalho, no qual se analisam as crônicas de Cenas da vida brasileira, destacando as qualidades da escrita desse autor que, por ter caído num meio esquecimento, merece ter sua obra visitada e ser concebida com as marcas da singularidade que merece. Palavras-chave: crônicas, Marques Rebelo, cidades.

INTRODUÇÃO Este trabalho tem por objetivo analisar crônicas do livro Cenas da vida brasileira do autor carioca Marques Rebelo. Tendo sua primeira publicação em 1951, o livro traz crônicas que cristalizam o tempo e os lugares de que falam; nelas, o olhar do autor captou as cidades como lugares em que circulam diferentes tipos sociais, cada qual com seus valores, sua cultura, seus costumes. Nessas construções, que são formadas por pessoas, cada um apreende os lugares a partir de sua percepção. E é a percepção de Marques Rebelo sobre as cidades que se busca analisar neste estudo. A relação entre a crônica e a cidade é tênue, pois esta se mostra

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ANÁLISE DO CORPUS Apresentam-se a seguir a análise de crônicas do livro Cenas da vida Brasileira (2010) de Marques Rebelo. Devido à riqueza de detalhes e de temáticas que as crônicas oferecem, optou-se por tratar somente das crônicas que abordam a questão da igreja. A Era Vargas (1930-1945) contou com o apoio da Igreja Católica, que ofereceu suporte à política em curso e Vargas, por sua vez, corroborou os propósitos da Igreja, os quais se voltavam para a restauração cristã da sociedade brasileira (MONTENEGRO, 1972). Da união entre Estado e Igreja resultou a expansão das instituições católicas em território brasileiro, sobretudo no interior do Brasil. A expansão católica e o ideal de restauração cristã da sociedade eram necessários para combater a expansão protestante, pois naquele período as igrejas protestantes que, desde a abertura dos portos, em 1810, começaram a se instalar no Brasil, também


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“passaram a desenvolver programas evangelísticos visando ao próprio crescimento” (MENDONÇA, 2005, p. 56). Marques Rebelo registrou essa expansão, fazendo com que a construção dos templos, as ações dos padres para que se efetivassem os projetos arquitetônicos, bem como o empenho da população para levantar novos templos se tornassem temas recorrentes em muitas crônicas. Ao escrever sobre a cidade mineira Itajubá, o autor dedicou 22 crônicas a ela; divididas em blocos narrativos, essas crônicas compõem a suíte nº 1 (primeira parte do livro). A crônica XVI, assim enumerada em Cenas da vida brasileira (2010), inicia-se com uma referência à expansão protestante, mostrando a preocupação do padre da paróquia local com o fato. O protestantismo tem conseguido muitos adeptos. Padre José, holandês, responsável pelo arrendamento da paróquia, não podia ver com bons olhos a onda de infiéis ameaçando as ovelhas de seu rebanho. Era preciso por um dique a esses comparsas de Satanás. Enchendo-se de energia, resolveu portanto fazer uma obra, uma obra que fosse exatamente um dique, onde quebrasse, vencida, a onda nefasta (REBELO, 2010, p. 75).

O texto tem um tom de anedota contada nas praças e rodas de conversa. Porém, a preocupação do pároco com a chegada de outra ideologia religiosa é enfatizada, cabendo a ele tomar uma atitude, para impedir que seus fieis o abandonassem, pois havia o “arrendamento da paróquia” a ser pago. Nesse texto, também se observa o ideal da Igreja Católica: só ela deve existir. Daí o medo do avanço de outras religiões com outras formas de entender o cristianismo. As vozes que compõem o fragmento da crônica podem ser enumeradas: a voz da Igreja, representada por Padre José, a do Estado sancionada pela voz da Igreja e a do cronista que está presente na descrição que o narrador faz da situação vivida pela

cidade. À Igreja e ao Estado cabia restaurar a fé cristã, levantando um novo templo de modo a contribuir para que a população não percebesse as necessidades reais e se envolvesse com a nova empreita. Já ao narrador coube escolher com cuidado as palavras, com o intuito de mostrar a visão dicotômica da realidade que a Igreja construía acerca do protestantismo, por isso era preciso por um fim na “onda de infiéis” e quebrar a “onda nefasta”. Interessante o modo como o narrador refere-se aos protestantes: “onda de infiéis” e “onda nefasta”. Essas palavras, na verdade, trazem consigo a visão que Padre José tem dos protestantes. Visão esta exagerada, colocando-os como “demônios” a serem combatidos.

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Poderia ter feito uma maternidade, um asilo de órfãos, um asilo de mendigos, um sanatório de tuberculosos, uma oficina para pequenos artífices, um colégio gratuito, um recolhimento para meninas transviadas, uma colônia de leprosos, uma colônia de mendigos, obras que Itajubá bem precisa. Mas padre José preferiu fazer uma coisa original e muito mais útil – levantar uma igreja (REBELO, 2010, p. 75).

A distância entre a enunciação e o enunciado marca a ironia empregada para descrever a atitude do padre em construir uma igreja. Do mesmo modo que no primeiro fragmento, o narrador faz um jogo de palavras e marca a voz do autor, isto é, a ironia revela o posicionamento de Rebelo sobre a situação, bem como o poder coercitivo da igreja na tomada de decisões: “Mas padre José preferiu fazer uma coisa original e muito mais útil – levantar uma igreja”. Palavras como “útil” e “original” assinalam para a dicotomia: o que deveria ser feito e o que realmente foi feito e, acima de tudo, a decisão é do padre, cujo pedido foi atendido pelos fieis. Em outro trecho da crônica, o leitor é informado que Itajubá já conta com muitas igrejas, “especialmente a matriz, enorme, medonha, ainda por arrematar” (REBELO, 2010, p. 75), mas as obras essenciais podem esperar, ainda que sejam necessárias


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ao bem-estar da população. No jogo que faz com as palavras: “medonha” e “enorme”, o narrador acena para a indignação de Rebelo. Sutilmente a crônica diz o que não diz, ou seja, argumenta de modo irônico acerca da ausência de outras obras e da dileção do padre em construir outra igreja. A escolha do tempo verbal – futuro do pretérito – para iniciar o parágrafo em “Poderia ter feito uma maternidade” demonstra uma atitude de polidez diante da situação, indicando a atenuação da mensagem. Porém, esse tempo verbal é empregado para indicar a lamentação do narrador sobre uma ação que ocorreria, mas certa condição a impediu, no caso, a opção do padre em construir outro templo. Assim, lê-se o emprego do tempo verbal, juntamente com o emprego das palavras “original” e “útil”, como marca irônica para tratar do assunto. Em um mês de entusiasmadas rifas, festivais, livro de ouro, doações e quermesses, levantou-se cinquenta mil cruzeiros. O templo vai ficar em quatrocentos mil cruzeiros. Mas com os cinquenta mil as paredes já estão de pé, afugentando o mal. E dizer-se que há cinco anos a cidade não tem um leigo da força do padre José, que ponha para frente a profana ideia da maternidade orçada em apenas cento e cinquenta mil cruzeiros! (REBELO, 2010, p. 76).

A ironia mantém-se no parágrafo que fecha a crônica, no qual se observa que a preocupação da igreja vai além da ordem religiosa, pois inclui uma preocupação econômico-financeira. A maternidade que custaria bem menos não atrai a atenção do pároco, mas um novo templo o mobiliza, fazendo com que suas atitudes empreendedoras atinjam toda a população. Outro ponto a ser comentado é o entusiasmo do povo, que participa efetivamente das atrações que visavam à arrecadação de dinheiro. A antropóloga Léa Freitas Perez, da Universidade Federal de Minas Gerais, ao discutir a religiosidade brasileira, aponta que uma das características é a “religiosidade festiva e carnal, vivida teatralmente, pública e coletivamente” (PEREZ, 2000, p. 40). Padre

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José não poupou esforços para promover essa religiosidade festiva e carnal, pois a fim de obter o valor necessário à obra, movimentou a cidade com festas, rifas e quermesse. Os fieis participaram entusiasmados e se mantiveram alheios àquilo que realmente é necessário. Daí a insistência do narrador em chamar a atenção para as carências da cidade. Ainda com base nas considerações de Perez (2000), observa-se que são as festas religiosas atividades urbanas muito antigas. Mobilizavam toda a população e eram promovidas com fins lucrativos, como na crônica, cujo fim era a arrecadação de verbas para o novo templo e, com entusiasmo, todos contribuíram. Longe de Minas, o mesmo tom irônico se mantém. O narrador, ao falar de Cáceres, no Mato Grosso, depara-se com uma realidade semelhante. Na suíte nº 2, Cáceres conta com três crônicas. Na crônica II, mais uma vez o autor se referiu à igreja: “A igreja tem proporções para Nova York, não para Cáceres. Quando a obra ia indo, pegou fogo nos andaimes e ruiu grande parte dela. Os padres não esmoreceram, mas jamais será concluída. Nem é golpe” (REBELO, 2010, p. 192). Como na crônica de Itajubá, na qual a matriz é descrita como “enorme, medonha, ainda por arrematar”, a igreja de Cáceres também tem proporções gigantescas. Localizada no centro da cidade, a igreja é até hoje referência. À época, da praça da matriz, partiam e saiam passageiros e mercadorias. Dessa forma, o visitante, ao chegar, já se deparava com a grandiosidade da matriz, no caso de Rebelo, a grandiosidade foi criticada, já que divergia do restante da cidade. A suntuosidade do templo religioso sinaliza o poder do catolicismo e, por conseguinte, o poder do Estado, que mantém o Catolicismo como religião oficial[1]. Assim, coube ao narrador 1 Com a Reforma Constitucional Brasileira, em 1988, foi instituída a divisão entre religiões e Estado, consolidando o conceito de Estado Laico. Conceito este que consta na Constituição desde 1891, mas cuja prática não se efetivava. Na Era Vargas, momento em que a


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mencionar o contraste entre o tamanho do templo e o da cidade, a revelar como esse templo que foi construído no coração da cidade, no centro, constitui-se como uma metáfora do poder da Igreja e do Estado sobre a população, destoando da cidade ainda tão pouco povoada. Na crônica, o empenho dos padres para seguir com a obra é destacado, e a palavra “jamais” revela a descrença com o fim da obra, pois se trata de uma pequena cidade e de uma grande empreita. O narrador não exagerou ao empregar o “jamais”, pois a igreja já contava com 70 anos de obras, as quais se iniciaram em 1878, e o fim delas, tão desacreditado, chegou somente em 1965. Essa lentidão no andamento das obras nunca fez as igrejas esmorecerem, muitos templos levaram séculos para serem concluídos. Muitos quilômetros separam Mato Grosso da Bahia, mas a imponência das igrejas não se restringe a Minas ou Mato Grosso. Na Bahia, também Rebelo registrou a presença das grandes igrejas. Salvador, a capital, conta na suíte nº 2 com quatro crônicas, sendo a III dedicada à descrição dos prédios que davam à cidade ares de progresso. Aqui, interessa destacar a referência à igreja, conforme fragmento: “[...] fui visitar a minha igreja de São Francisco, que é um sonho. Estava deserta de crentes, mas povoada de beleza. Implorei ao santo que punisse a estultice de certos homens poderosos. Mas não sei se ele tem força na congregação” (REBELO, 2010, p. 206). A igreja de São Francisco é herança barroca, data de 1703 e desde 1938 é patrimônio tombado. Nessa crônica não há menção sobre reforma, mas o que chama a atenção é a referência à estupidez dos homens poderosos e o modo como o narrador duvida da capacidade do santo para agir contra o poder, isso se confirma na passagem: “Implorei ao santo que punisse a estultice de certos homens poderosos. Mas não sei se ele tem força na congregação”. Cabe crônica foi escrita, devido ao avanço do comunismo, a Igreja aliou-se ao Estado, já que era contrária ao Partido Comunista, rival de Getúlio.

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mencionar que a crítica às classes dominantes e à concentração do poder tem sido tema da literatura. A ausência de indústrias consolidadas e de um forte comércio fez de Salvador e de outras cidades baianas um território favorável para as diferenças entre classes e para os brutais efeitos da má distribuição de renda. Com concisão e sutileza, o narrador rebeliano abordou um tema caro ao romancista Jorge Amado que, em Capitães da Areia, ironiza a ganância e o egoísmo das classes dominantes. O narrador não mencionou nomes, nem criou personagens tipificadas como fez Jorge Amado, mas marcou em sua crônica a crítica aos homens poderosos que se sentem superiores até mesmo às divindades religiosas, no caso, o santo. Ao falar de Salvador, de forma breve, o narrador construiu uma reflexão sobre a organização políticosocial da cidade e tratou de um drama social a partir de um enquadramento localista. Em outra crônica da suíte nº 2, bastaram duas linhas para que o narrador descrevesse a pequena Burnier, vilarejo localizado em Minas Gerais, na divisa com o estado do Rio de Janeiro. “Quarenta casas, se tanto. E a igreja de um milhão e quatrocentos mil cruzeiros!” (REBELO, 2010, p. 157). No texto, há uma tirada humorística cujo estilo se aproxima dos poemas-piada de Oswald de Andrade, pois do mesmo modo que os poemas oswaldianos, essa crônica curta denota a ideia de inacabada, de um rascunho a ser ainda ampliado. Mas está completa. E a crítica ao custo da igreja diante do número de habitantes ficou registrada, marcando o olhar crítico do narrador. Marca essa crônica o impacto que o tamanho da igreja causou no narrador. Impacto este registrado no jogo “quarenta casas” e “um milhão e quatrocentos mil cruzeiros”. Os números são discrepantes e “milhão” enfatiza o poderio da igreja ao mesmo tempo em que contrasta com o pequeno número de casas. Dado o pequeno grupo de moradores, muitas rifas e quermesses como as realizadas em Itajubá por Padre José, conforme analisamos


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há pouco na crônica sobre Itajubá, seriam suficientes para finalizar essa imponente obra. Na suíte nº 2, a crônica sobre Miguel Pereira demonstra a postura do narrador acerca da religião. Embora não mencione reformas ou a construção de novos templos, o texto traz a concepção de liberdade das personagens que compõem o pequeno diálogo.

ações dos fieis, já que ao assumir uma religião, a pessoa assume também um compromisso com regras, dogmas e preceitos a serem respeitados, os quais privam o indivíduo de rumar conforme sua vontade. Na resposta dada ao locutor, “Não sou cavalo!” está clara a concepção negativa do interlocutor acerca da religião que, como um freio, controla os passos dos fieis. Nessa crônica, é feita uma crítica justo a esse controle e, na conversa, fica claro que o compromisso religioso não é bem-vindo, já que ao assumi-lo, temse perdida a liberdade.

Conversinha de hotel: - A religião é um freio. - Não sou cavalo (REBELO, 2010, p. 156).

Crônica ou haicai? Não se pode deixar de mencionar a forma dessa crônica, pois como um haicai, o diálogo foi estruturado em três linhas. O texto não está em versos, muito menos tem métrica, marca comum ao haicai que, em geral, é composto por versos com 5/7/5 sílabas poéticas e sem rimas; mas a divisão em três linhas lembra a forma oriental tão praticada pelos poetas brasileiros. Essa estrutura aparece em outras crônicas de Rebelo, as quais serão mencionadas mais adiante. Porém, o sentido irônico no trato do tema abordado em cada crônica se mantém. O emprego da expressão ‘conversinha de hotel’ para iniciar a crônica sugere que o narrador não quer gastar tempo para falar do assunto, no caso a religião. Além do sufixo “inha” que, neste caso, conota ironia; reforça o descaso do narrador a expressão “de hotel”, lugar de passagem e de conversas rápidas e superficiais. No entanto, mesmo sinalizando gozar de um tempo breve para conversar, nota-se um aprofundamento no trato do tema. O narrador nesta crônica pode ser um ouvinte que, ao flanar pela cidade, registra no texto o que mais chama a atenção. Assim, a declaração: “A religião é um freio” pode ser interpretada de duas formas. Primeiro pode-se pensar que a religião, ao impor limite à pessoa e regras para o viver e conviver, é positiva, traz benefícios aos seguidores. Por outro lado, a mesma frase pode ser interpretada como sendo a religião uma forma de controle das

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Entende-se que os textos aqui analisados destacam o estilo irônico do autor, revelando como ele se posicionou criticamente diante da temática tratada, no caso, a crítica incide no modo como a Igreja, ao avançar no interior do Brasil, marcou sua presença pela imposição de ações que a beneficiaram, sem se importar com as reais carências da população. Em cada crônica uma cidade foi descrita, de modo a permitir que o leitor observe aspectos referentes ao tempo e espaço narrados. Rebelo mostra como sua visão sobre as cidades é ampla, abrangente e não “parcial, fragmentária, misturada com considerações de outra natureza” (LYNCH, 2005, p. 03). Nesse sentido, os aspectos tratados vêm permeados pela visão do narrador, por isso, afirmase que Rebelo coloca-se a flanar pelas cidades, observando o agir de seus moradores e transformando-o em textos. Conclui-se este estudo com as palavras de Afonso Arinos de Melo Franco (1945, p. 58) acerca do autor: “olha como ninguém, compreende como ninguém, e quando nos conta o que viu revelanos a poesia, a tristeza e, por que não dizer, o patético daquelas vidas humanas, que mal perceberíamos sem ele”.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FRANCO, Afonso Arinos de. Portulano. Mosaico: Livraria Martins Editora, 1945. LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Tradução de Maria Cristina Tavares Afonso. Col. Arte e Comunicação. São Paulo: Edições 70, 2005. MENDONÇA, Antonio Gouvêa. O protestantismo no Brasil e suas encruzilhadas. In: Revista USP, São Paulo, n.67, p. 48-67, setembro/novembro 2005, p. 48-67. Disponível em http:// www.usp.br/revistausp/67/05-mendonca.pdf Acesso em 23 dez. 2011. MONTENEGRO, João Alfredo. Evolução do catolicismo no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1972. NEVES, Margarida de Souza. História da crônica. Crônica da História. In: RESENDE, Beatriz [et.al] (org.). Cronistas do Rio. Rio de Janeiro: José Olympio: CCBB, 1995, p. 17-31. PEREZ, Léa Freitas. Breves notas e reflexões sobre a religiosidade brasileira. In: Brasil 500 anos. Edição Especial. Belo Horizonte: Imprensa Oficial dos Poderes do Estado, 2000, p. 40-58. REBELO, Marques, 1907-1973. Cenas da vida brasileira Marques Rebelo. – 2.ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

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de hacerlo es fijarlo en la escritura. (Bartleby y Compañía, Enrique Vila-Matas).

VIOLÊNCIA BIOGRÁFICA: A TENSÃO ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO NAS NARRATIVAS DA VIDA Cléber Dungue[1] Diante do desafio de escrever uma vida, o biógrafo, tal qual um detetive profissional, vasculha e observa a intimidade do outro, tendo em vista o desejo de encontrar uma “verdade biográfica” da qual o corpo seria o depositário. O produto da investigação do autor, quando publicado, expõe segredos póstumos do biografado ao grande público. Esse processo testemunha uma certa violência simbólica, a qual é alimentada pelo fetichismo de observar, tanto do escritor-investigador como do próprio leitor. Nessa especificidade de voyeurismo, funda-se um pacto de cumplicidade entre biógrafo e leitor, juntos eles participam de um excitante programa de espiar a intimidade alheia, diluindo assim a linha fronteiriça que separa o privado do público. Com isso, é criado um espaço de tensão, o qual se abre para a discussão que propomos, ou seja, sem esquecer a prerrogativa de privacidade inerente ao biografado, o que deve ainda ser considerado relevante no texto biográfico: o direito do público de saber, a fidedignidade aos fatos narrados, a criatividade narrativa do biógrafo? Nessa mesma perspectiva, seria plausível inventar ou suprimir material para criar determinados efeitos estéticos? Na busca de dar um sopro de inovação e criatividade ao gênero, autores como Roland Barthes, François Dosse e Leila Perrone Moysés apontam algumas possíveis estratégias narrativas, as quais pretendemos analisar. Palavras-chave: Biografia. Violência simbólica. Público. Privado.

A violência simbólica no relato biográfico Todos deseamos rescatar a través de la memoria cada fragmento de vida que súbitamente vuelve a nosotros, por más indigno, por más doloroso que sea. Y la única manera 1 É professor de Literatura Comparada e Latino-americana na Universidade Anhanguera e professor convidado de Lírica Latino-americana no curso de especialização em literatura da PUC/SP.

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“I would prefer not to”, diria algum Bartleby diante da possibilidade, projetada para o futuro, de que sua vida fosse matéria de uma biografia. É certo o desconforto causado pela ideia de virar tema de uma narrativa. Ter a vida revirada é supor, de antemão, que fatos podem ser distorcidos, manipulados ou interpretados segundo o gosto ou interesse de quem a escreveu e de quem a lerá. Tal possibilidade assusta a qualquer um que valorize a sua privacidade, principalmente aqueles que, quando vivos, mesmo sendo figuras públicas, procuraram ter uma vida discreta, resguardando a sua intimidade e a das pessoas que lhe eram próximas. Muitas são as personalidades que repudiam o gênero biográfico, pois o consideram invasivo e marcado pela distorção subjetiva — tanto do ponto de vista de quem escreve o texto, quanto de quem concede as informações. Ainda assim, tais relatos são sustentados pelo lastro da realidade, da verdade e da verossimilhança, dos quais o biógrafo seria o guardião. Um exemplo notório do incômodo provocado por tal gênero pode ser observado no relato denominado “Instruções relativas à minha vida biográfica”, deixado por Bergson. O filósofo é categórico quanto a sua rejeição a esse tipo de narrativa, que considera invasiva e desnecessária. Por isso, no texto que se segue, deixa registrado, em forma de instrução, não só a sua postura hostil quanto ao gênero, mas também procura esclarecer possíveis dados controversos sobre sua vida, já como tentativa de desmotivar algum pesquisador curioso, cuja pretensão seja vasculhar sua bíos sob o pretexto de assim dirimir contradições que o filósofo não tenha elucidado: Será inútil mencionar minha família, pois isso não diz respeito a ninguém. Informar que nasci em Paris, na rua Lamartine. Explicar, se for o caso, que não precisei me naturalizar, conforme se divulgou: nascido em Paris, só precisaria optar,


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na maioridade, pela nacionalidade francesa em virtude do artigo 9 do Código Civil [...] Insistir no fato de que sempre pedi para não se ocuparem de minha vida, apenas de meu trabalho. Sustentei, invariavelmente, que a vida de um filósofo não lança luz alguma sobre sua doutrina e não interessa ao público. Tenho horror a semelhante publicidade, no que me diz respeito, e lamentaria eternamente ter publicado obras se essa publicação devesse atrair tais olhares. (BERGSON apud DOSSE, 2009, p. 361- 62).

O sujeito biografado (ou biografável, aquele cuja vida tem potencial para se tornar o tema de uma narrativa) é assujeitado no relato elaborado pelo outro (o biógrafo). Esse seria o principal motivo da sensação de violência simbólica experimentada por quem recusa o protagonismo no traçado fraudulento de uma vida fabulada pelo outro. Ali onde o biógrafo conta (ou faz) uma história, o sujeito da suposta realidade apresentada não mais existe: nesse sentido, o texto biográfico é apoteose e morte do sujeito, que não mais pode falar. Mesmo quando é baseada em entrevistas, diários, cartas ou outros documentos do biografado, é o biógrafo quem escolhe a forma de enunciação: desse modo, seleciona, recorta, liga os fragmentos da bíos daquele que aos poucos, no texto, vai deixando de ser sujeito para transformar-se em personagem. O ser que ali se pode ver tem sempre algum grau de ficcionalidade, aspecto que dificilmente um biógrafo clássico reconhece em seu desejo de aproximar-se do ausente. Ao querer decifrar a vida, abarcá-la por completo, o biógrafo procura aproximar-se do corpo perdido do biografado, para recuperá-lo, revivê-lo e redefinir sua forma por meio da escrita. Nesse contexto, segundo a autora de O homem encadernado: O biógrafo, impotente para se aproximar do corpo distante, torna-se um leitor movido pelo interesse histórico. Mas, ao sair em busca da verdade histórica, encontra a natureza implacável ou indiferente, sem nenhum vestígio da presença do homem que procura. Depara-se, quando muito, com os locais de peregrinação, delimitados como reserva de signos da vida

a serem preservados, transformados em pontos de turismo cultural. Assim, o que resta ao biógrafo, na maioria das vezes, é mergulhar na esfera da textualidade. De volta ao ambiente da textualidade, o biógrafo torna-se um leitor sem escolhas, diferente do crítico literário refinado. Ele tem por obrigação ler tudo que lhe cai nas mãos, embora esse tudo possa gerar um excesso de real. Diante do excesso de real, que lhe chega através das mais diferentes manifestações discursivas, é prática comum do biógrafo sair em busca dos “vestígios textualizados do passado” para, por sua vez, dar a conhecer corretamente aquela parcela da vida do biografado que, até o momento de sua intervenção, teria sido equivocadamente interpretada. (WERNECK, 1996, p. 192).

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Essa vontade de abarcar a totalidade entre o nascimento e a morte impede muitos biógrafos de ver que a história da vida é algo sempre inacabado, incompleto e inapreensível. Maria Helena Werneck (1996, p. 191) mostra o que acontece, em algumas biografias, quando o biógrafo procura apenas “satisfazer o desejo de estar, cada vez mais, próximo do corpo do biografado, de seus movimentos, sentimentos, intenções do seu caráter”. Segundo a autora de O homem encadernado (1996, p. 191), “há uma luta para ver quem chega, de fato, a tocar o corpo, porque nesse corpo se depositaria a verdade”. Nessa perspectiva, é sintomático o impasse entre o que deve ser público e o que deve permanecer privado, o que é relevante e o que é mera fofoca. O “Artigo 20” do nosso Código Civil (2002) prevê que “a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, (...) se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”. Para proteger a privacidade do cidadão, a legislação brasileira confere o direito a qualquer pessoa de proibir a publicidade daquilo que possa denigrir a imagem das pessoas envolvidas na divulgação de algum fato. No entanto, tal preceito vai de encontro ao princípio constitucional de garantir a liberdade de expressão plena e o total


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direito de acesso a informações. Os detratores do “Artigo 20” do referido Código argumentam que, da forma como está colocada, a proibição acaba se tornando uma “censura prévia”. Alegam ainda que, se a divulgação afetar a honra da pessoa, ou causar danos, se distorcer a verdade, ao atingido já é garantido o direito de recorrer à justiça, para que se aplique a devida punição contra quem abusou do direito à liberdade de expressão. No momento, tramita no Congresso Nacional um Projeto de Lei para dissolver tal impasse e regulamentar a questão. O ponto polêmico, que encontra resistência entre os próprios congressistas, diz respeito ao direito de publicação de imagens e de toda e qualquer informação biográfica sobre pessoas que tenham uma trajetória pública. Se a biografia é muitas vezes percebida como violência simbólica (principalmente quando ela não é autorizada), o que explica a “onda” biográfica que nas últimas décadas inundou as livrarias e as listas dos mais vendidos? O que sustenta o interesse das pessoas pela vida alheia, mal disfarçando o voyeurismo ao vasculhar ou observar a intimidade do outro? Sobre essa postura fetichista, Werneck faz a seguinte observação: Se a biografia é o meio através do qual os segredos póstumos de um morto famoso lhe são arrancados e expostos para todo mundo, é possível comparar o biógrafo em ação com um arrombador profissional, que invade uma casa, saqueando certas gavetas onde acredita que estejam contidos as jóias e o dinheiro, e, triunfantemente, leva embora o resultado da pilhagem. (WERNECK, 1996, p. 182).

Para a referida autora, em função da biografia ter se adaptado ao gosto popular, estabeleceu-se uma cumplicidade entre os biógrafos e seu público. Juntos, autor e leitor, parecem participar de um excitante e proibido programa de espiar através do buraco da fechadura. Isso fez com que um possível sopro inovador sobre o gênero biográfico se tornasse cada vez mais raro. Esse tipo de

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biografia acaba conferindo ao gênero uma aparência de brandura, pois os fatos são distorcidos, manipulados, interpretados de forma a angariar simpatias, tendo em vista um ou outro lado dos envolvidos. Contudo, esse pacto pode ser rompido quando o leitor encontra no texto o esteio para a dúvida, como bem o fez Márcio Souza em O brasileiro voador, por meio da paródia e de fragmentos, sínteses, condensações, deslocamentos, escapando, dessa forma, do caráter conclusivo, meramente engrandecedor ou detrator da figura do outro. Não há fidelidade ao factual na narrativa do autor amazonense, a história real é cercada de ficção, não apenas para reduzir uma à outra — trocar o biográfico pelo ficcional —, mas para ressaltar que toda realidade é cercada por uma criação imaginária, fantasiosa e parcial. Tal como adverte em nota introdutória, nunca pretendeu que seu livro fosse a biografia definitiva, oficial e inconteste de Santos-Dumont. Esse ponto de vista é retomado em um capítulo denominado “O cinematógrafo Lumière”, no qual podemos ler o seguinte: “Cavalheiro da belle époque [Santos-Dumont], a narrativa vertiginosa talvez o resgate. Na irreverente especulação da ficção”. (SOUZA, 2009, p. 18). Assim, tendo em vista a impossibilidade de abarcar por completo a bíos do biografado, resta ao biógrafo o trabalho o de reinventar a vida por meio da escrita. Em tempos modernos, qual é, portanto, o valor agregado à biografia: é mais ficção ou verdade histórica, é invasão da privacidade ou afirmação do direito total a informação, é mais literário ou mais jornalístico? Tais questões, dificilmente serão respondidas, dado que a modernidade é a época da própria dúvida como valor. Assim, se é questionável a curiosidade sobre a vida alheia e a consequente invasão da intimidade a ela associada, também não deixa de ser relevante a visão plural da história e dos seus personagens públicos que a biografia permite ao leitor conhecer.


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O que é biografável na vida de alguém? Roland Barthes manifestou seu descontentamento em relação à narrativa biográfica, mas sua aversão não era tão incisiva quanto à de Bergson. A delicadeza do semiólogo, que transparece também no seu texto, tornava-o incapaz de dizer “não”, pois receava desagradar às pessoas, como observa Leyla Perrone-Moisés no livro Texto, crítica e escritura (1978). Talvez mais generoso, menos hostil, com laivos de humor e ironia, Barthes vai apresentar um modo de se fazer biografia, que não pode ser desvinculado de sua própria concepção de escritura. Como é característico das obras do semiólogo francês, principalmente em suas últimas produções, a própria teoria surge como e na performance textual. Segundo Perrone-Moisés, é “uma teoria que, parecendo pretender conceituar a escritura, era ela mesma um discurso escritural” (PERRONE-MOISÉS, 1983, p. 53). No recorte preciso da ensaísta, a escritura não pode ser confundida com o estilo, que é um conceito baseado na ideia de que o pensamento precede a linguagem: seria “uma forma elegante, estética, de revestir um conteúdo” (Id., Ibidem, p. 53). Indo em uma direção mais complexa, a “escritura” seria um discurso que encontra sua qualificação na própria formulação — não presa, portanto, a algo prévio e exterior. A partir da obra de Roland Barthes, Perrone-Moisés apresenta da seguinte forma sua compreensão do termo “escritura”: É uma linguagem enviesada que, pretextando falar do mundo, remete para si mesma como referente e como forma particular de refratar o mundo. A escritura questiona o mundo, nunca oferece respostas; libera a significação, mas não fixa sentidos. Nela, o sujeito que fala não é preexistente e pré-pensante, não está centrado num lugar seguro de enunciação, mas produz-se, no próprio texto, em instâncias sempre provisórias. A escritura é um modo de dizer as coisas, uma enunciação, uma “voz”. Esse modo de dizer provém do mais íntimo e único de cada escritor: de seu corpo, de seu inconsciente, de sua história pessoal; é “o termo de uma metamorfose cega e

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obstinada, partida de uma infralinguagem que se elabora no limite da carne e do mundo”. (Id., Ibidem, p. 54).

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O projeto biográfico convencional (ou clássico, como fala François Dosse) é monstruoso, em termos barthesianos, devido a seu aspecto totalizante. Como observa o semiólogo francês, em Roland Barthes por Roland Barthes (2003, p. 197), “a totalidade ao mesmo tempo faz rir e causa medo”, por isso, questiona se ela não seria sempre grotesca “e recuperável então, somente numa estética do carnaval”. Essa foi a saída encontrada por Márcio Souza em O brasileiro voador. De uma maneira ainda mais radical, pois está diretamente atrelada a sua concepção de escritura, o semiólogo francês nos apresenta em Sade, Fourier, Loyola (2005), o vínculo entre a prática e a teoria. Esse livro traz a sua segunda contribuição de fôlego para uma escrita em que o biográfico não é apenas uma forma de arremedo da vida de quem se assujeita à narrativa — Michelet par lui-même (1954) foi sua primeira incursão pelo gênero, na qual procurou encontrar, a partir de uma leitura afetiva e semiológica dos textos de Michelet, as marcas biografemáticas do referido autor. Segundo Barthes (2005, pp. XVI, XVII), para que apareça o traçado dos biografemas, “é necessário que, por uma dialética arrevesada, haja no Texto, destruidor de todo sujeito, um sujeito para amar”. O semiólogo acrescenta que, em tal perspectiva, o sujeito deve estar disperso, “um pouco como as cinzas que se atiram ao vento após a morte (ao tema da urna e da estela, objetos fortes, fechados, instituidores de destino, oporse-iam os estilhaços de lembranças, a erosão que só deixa da vida passada alguns vincos)”. Nas suas instigantes investidas contra o gênero biográfico, Barthes questiona o formato dos textos factuais e contínuos que insistem em dar unidade e significado a ações humanas fragmentadas e dispersas. Em Roland Barthes por Roland Barthes (2003), numa construção escritural (que também pode ser visto como a sua autobiografia), o semiólogo francês mostra como


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pode ser ao mesmo tempo o teórico, o biógrafo e o biografado. A primeira parte do livro reúne alguns “autobiografemas”, aos quais ele chamou de anamneses. Nesse espaço, apresenta reminiscências despretensiosas, lembranças da sua infância, percebidas como fragmentos já mortos de um passado que nem a palavra seria capaz de recuperar. Nas fotos, vemos os jardins de sua casa (segundo o autor, espaços romanescos e utópicos que o remetiam ao universo de Júlio Verne e Fourier), onde se enterravam ninhadas de gatos excedentes; há ainda a casa, a empregada que o fascina, o defeito da louça de uma tigela, a tia que ficou sozinha a vida inteira, o “focinho” branco do bonde da sua infância, o sabor insosso de um café com leite. Sem o embuste romanesco tradicional de contar uma história coerente e linear, esses “biografemas barthesianos” tratam de pequenas unidades biográficas, índices de um corpo perdido e que pode ser recuperado por meio da percepção poética. E no caso de Santos-Dumont, por qual caminho biografemático o encontraríamos em sua singularidade humana? De igual modo, ficamos a perguntar o que seria realmente marcante na vida de alguém que mereça ser mostrado e tenha relevância para a vida do(s) outro(s). Barthes, imbricando-se na proposta apresentada, nos responde da seguinte forma: Se eu fosse escritor, já morto, como gostaria que minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo amigo e desenvolto, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: “biografemas”, cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir tocar, à maneira dos átomos epicurianos, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão; uma vida esburacada, em suma, como Proust soube escrever a sua na sua obra, ou então um filme à moda antiga, de que está ausente toda palavra e cuja vaga de imagens (esse flumen orationis em que talvez consista “o lado porco” da escritura) é entrecortada, à moda de soluços salutares, pelo negro apenas escrito do intertítulo, pela irrupção desenvolta de outro significante: o regalo branco de Sade, os vasos de flores de Fourier, os olhos espanhóis de Inácio. (Id., Ibidem, p. XVII).

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Com isso, não estamos negando o valor ou a função das biografias informativas. Como bem lembra Perrone-Moisés, (1983, p. 10) “o próprio sabor dos biografemas depende de uma prévia informação”. Contudo, o texto biográfico, como uma narrativa da vida de alguém que realmente existiu, deixa escapar, na maioria das vezes, singularidades e idiossincrasias do sujeito, cuja escrita biográfica poderia ou deveria lhe dar forma e voz. Se pudéssemos redimensionar, portanto, o heroísmo de Santos-Dumont, não seria da sua vida privada que deveríamos nos ocupar, mas do produto da sua imaginação. O heroísmo do aviador, em função dessa redefinição, está associado com a abertura do seu imaginário para um projeto grandioso de invenção. Ainda assim, fica a suspeita, não seria essa tão somente uma outra maneira de engrandecer e defender o herói. Provavelmente, não, se antes atentarmos para o caminho aberto pelo livro O brasileiro voador. O autor amazonense explora plenamente as contradições da sociedade e da personalidade em questão, a tal ponto que pode fazer do próprio sarcasmo uma condição da verdade em processo e, portanto, dissoluta, fragmentada, plural e ambígua. Nesse percurso, Márcio Souza aponta o logro sem extrair daí, como compensação, alguma verdade mal disfarçada.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. BARTHES, Roland. Michelet par lui-même. Paris: Éditions du Seuil, 1954. BRASIL. Lei n. Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com. br/legislacao/1027027/codigo-civil-lei-10406-02>. Acesso em: 10/10/2011. DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Roland Barthes: o saber com sabor. São Paulo: Brasiliense, 1983. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática,1978. SOUZA, Márcio. O brasileiro voador: um romance maisleve-que-o-ar. Rio de Janeiro: Record, 2009. WERNECK, Maria Helena. O homem encadernado: Machado de Assis. Rio De Janeiro: EdUERj, 1996.

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LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORANEA: O DISCURSO CRÍTICO SUBVERSIVO DO INTELECTUAL MARGINAL Cléber José de Oliveira O presente artigo analisa como se constrói a representação e a auto-representação do marginal na crônica produzida no Brasil contemporaneamente. Parte da hipótese geral de que algumas crônicas manifestam um esforço no sentido de dar voz ao marginal. Afirma que isso é manifestado por meio do discurso crítico subversivo. Realiza isso à luz de Stuart Hall (1998; 2005); Silviano Santiago (1989; 2004; 2006); e Walter Mignolo (2003). Selecionamos os seguintes textos para analise: “Rio de Sangue” (2004), de Ferréz; “Estamos todos no inferno” (2006), de Arnaldo Jabor; “Provocações” (1999), de Luis Fernando Veríssimo, crônicas e cronistas reconhecidamente contemporâneos. Palavras-chave: Crônica contemporânea brasileira, Discurso crítico, Representação do marginal.

As questões essenciais do mundo contemporâneo são à vida, os modos de vida, às relações e conflitos surgidas daí. Ao olhar observador do cronista isso é matéria prima. Nesse sentido, o momento sócio-político pelo qual passa nosso país, é retratado de forma explicita em grande parte das crônicas produzidas atualmente. E, algumas das inquietações que brotam dessas relações é o desencadeador central das reflexões que serão expostas nesse trabalho. Dito isto, compreendemos que as crônicas citadas tomam pra si, de uma forma explicita e contundente, um discurso crítico subversivo no qual é possível identificar a manifestação da “voz do oprimido subalterno”, se opondo a um sistema social que privilegia a verticalização do poder (CARVALHO, 2001; MIGNOLO,

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2003). Com isso, é possível visualizar como se manifesta às relações entre as elites detentora e produtora de um discurso quase sempre excludente e as camadas sociais subalternas. Tudo isso em relação ao discurso do poder (MICELI, 2001; Cf. CANDIDO, 2000). Aparentemente a crônica, em uso tradicional, não propiciaria uma abordagem como a que será desenvolvida a seguir, já que a crônica como gênero textual se caracteriza pelo texto leve, pelo ar de coisa sem necessidade que costuma assumir (CANDIDO, 1981). No entanto, aqui, a crônica brasileira produzida na contemporaneidade será utilizada como suporte para pensarmos: como são construídas as relações de representação e autorepresentação do marginal, por um discurso que busca subverte as relações de poder tradicionais que estão vigentes desde nossa colonização. Veremos que o cronista (entendido aqui como intelectual engajado) em determinado momento representa as camadas que são de alguma maneira oprimidas. E ainda, até que ponto o cronista contemporâneo, toma pra si o “dever” de falar por aqueles que, em tese, não possuem um discurso de defesa. Essa abordagem se mostra possível porque a crônica sofreu mudanças. Mudou porque as relações sociais mudaram e, essas mudanças provocaram alterações nos gêneros discursivos (BAKHTIN, 2002). Na esteira dessa mudança, alguns cronistas estão adotando, cada vez mais, além da observação do cotidiano um discurso contendo o que podemos chamar de um certo engajamento social. Mas isto não é novo na crônica poderá dizer você leitor. Pois, encontramos ainda no século XIX, mesmo que sutilmente, em cronistas como Alencar, Machado e, no século XX, em Braga, Drummond, Sabino e em tantos outros, isso que denomino como sendo uma prosa com engajamento social. Não raro, aqui e ali, por meio da crônica, esses mestres lançaram seus olhares sobre a sociedade e, de uma forma ou de outra explicitaram o mal estar existentes nas relações sociais de seu tempo. Porém, entendo que o olhar do cronista modernista lançado sobre o


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cotidiano social, se manifesta de forma mais sutil do que o do cronista contemporâneo. Dito isto, tento uma primeira hipótese de trabalho: a) a de que a crônica contemporânea brasileira reflete inquietações resultantes das relações sociais, que insistem em se manifestar de forma vertical. E, observa estas inquietações, como sendo um efeito colateral da desigualdade social cultivada em nosso país desde a colonização. Posteriormente, tento uma segunda hipótese: b) a de que os cronistas contemporâneos aqui citados tomam pra si, por meio do discurso crítico, a função de dar voz ao marginalizado, às camadas sociais oprimidas; ou como veremos em Ferréz ser a própria voz do oprimido. Tudo isso, no espaço híbrido da crônica, entre a notícia e a literatura, o real e o ficcional, para fazer críticas agudas aos valores tradicionais e aos regimes autoritários vigentes. Comecemos então, a busca por indícios que legitimem as hipóteses levantadas, a partir de trechos da crônica “Estamos todos no inferno” de Arnaldo Jabor: Você é do PCC? Mais que isso, eu sou um sinal de novos tempos. Eu era pobre e invisível... vocês nunca me olharam durante décadas... E antigamente era mole resolver o problema da miséria... O diagnostico era óbvio: migração rural, desnível de renda, poucas favelas, ralas periferias... A solução é que nunca vinha... Que fizeram? Nada. O governo federal alguma vez alocou uma verba para nós? Nós só aparecíamos nos desabamentos no morro ou nas musicas românticas sobre a “beleza dos morros ao amanhecer”, essas coisas... (JABOR, 2006, p.43; grifo nosso)

O trecho é iniciado com uma pergunta, algo que sugere uma entrevista ou um interrogatório no qual o marginal manifesta a autoridade de auto-representação. ainda que no espaço ficcional.

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Esta condição pode ser pensada pelo viés da outremização (SANTIAGO, 2002), no qual o personagem passa por uma transformação na qual sai da condição de objeto (subalterno), de representado para ser sujeito da enunciação, para se autorepresentar. Aqui a narrativa é, sobretudo, uma crítica ao descaso e aos discursos de poder estabelecidos verticalmente. É a resposta de um indivíduo que, num primeiro momento, deixa claro ter sido vitima de opressão e esquecido por aqueles que deveriam, no mínimo, promover investimentos no campo social, cultural e econômico, vide primeiro grifo. Porém, isso é colocado no passado “Eu era pobre e invisível...vocês nunca me olharam durante décadas”, o discurso crítico se manifesta de forma a denunciar o descaso das autoridades competentes e da sociedade como um todo com essa grande parcela da população brasileira que habitam em locais como morros, favelas, viadutos. Lugares estes onde se vive, não raro, em condições subumanas. Observemos a mudança de postura do indivíduo, em relação ao discurso de poder, no trecho a seguir da mesma crônica: Agora, estamos ricos com a multinacional do pó. E vocês estão morrendo de medo... Nós somos o início tardio de vossa consciência social... Viu? Sou culto... Leio Dante na prisão. Eu sou inteligente. Eu leio, li 3 mil livros e leio Dante[...] Vocês intelectuais não falavam em “luta de classes”, em “seja marginal seja herói?” Pois é: chegamos, somos nós! Há há...Vocês nunca esperavam esses guerreiros do pó, né? Não há mais proletários, ou infelizes ou explorados (JABOR, 2006, p.43-45, grifo nosso)

Num segundo momento, é manifestada por esse mesmo indivíduo a sua condição atual. O discurso agora é de quem se sente como sendo o caçador e não mais a caça. O que acua e não mais de acuado. O oprimido que se liberta “Não há mais proletários, ou infelizes ou explorados” (JABOR, 2006). O indivíduo que era invisível se torna uma ameaça aos poderes estabelecidos, pois


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agora sua voz subversiva ecoa pelos quatro cantos do país e do mundo. Se configura como um efeito colateral do sistema, um herói subversivo, uma espécie de Hobin Hood contemporâneo. Nesse sentido, é possível enxergar ações e comportamentos desse discurso que remonta aspectos da concepção de civilidade dissimulada discutida por Bhabha, cujo oprimido num primeiro momento age como quer seu opressor, mas que num momento oportuno promove uma reviravolta nessa relação que -no limite- se da em função do discurso do poder (BHABHA, 2003). É inevitável, não perceber no discurso referência às discussões promovidas por Jameson (1996), sobre capitalismo tardio e pós-modernidade. E também, uma referência “A divina Comédia” de Dante, sobre consciência social. Ainda no trecho, o discurso do indivíduo, agora na condição de ex-oprimido, fala sobre o intelectual, figura que prega utopias milagrosas tais como “luta de classes” e ainda “seja marginal seja herói” uma visível referência as correntes socialistas do séc. XX, defendidas por muitos intelectuais modernistas como sendo uma solução para os problemas sociais brasileiros ainda que no limite ideológico. Na sociedade contemporânea estas utopias, advindas de séculos passados principalmente do XIX e XX, se revelaram ineficazes e, produziram uma enorme onda de frustração nacional que criou sujeitos sociais incrédulos em soluções mágicas para o caos social. Isso fica claro no discurso critico utilizado pelo exoprimido e, pode ser ilustrado por este trecho de outra crônica de Jabor intitulada Dias melhores nunca virão “Que estranho presente é este que vivemos, correndo sempre por nada? As utopias do século XX diziam que teríamos mais ócio, mais paz” (JABOR, 2006, p.163), aqui é manifestado toda a frustração e a insatisfação com a não concretização das utopias e com os paradoxos sociais ainda vigentes em nosso país. Ainda na crônica “Estamos todos no inferno” outra pergunta ainda mais direta é feita:

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-Você não tem medo de morrer? -Vocês é que têm medo de morrer, eu não[...] Já somos uma outra espécie, já somos outros bichos, diferentes de vocês. A morte para vocês é um drama cristão numa cama, no ataque do coração... A morte para nós é o “presunto” diário, desovado numa vala... [...]Estamos diante de uma espécie de Pós-Miséria. Isso. A pós-miséria gera uma nova cultura assassina, ajudada pela tecnologia, satélites, celulares, internet, armas modernas. É a merda com chips, com megabytes. Como escreveu o divino Dante: Percam todas as esperanças estamos todos no inferno (JABOR, 2006,p. 45-47, grifo nosso)

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A resposta também é direta “eu não” e, as diferenças entre as realidades do questionador e a do questionado é evidenciada e ressaltada mostrando quão grande é o abismo entre eles, pelo menos no que diz respeito à suas origens. É a manifestação de uma espécie de não-medo daquilo que para muitos ainda se constitui como sendo uma angustia, uma agonia ou como o próprio discurso diz “a morte para vocês é um drama cristão numa cama, no ataque do coração (JABOR, 2006), vide grifo. No trecho, pode ser observado que o discurso critico é utilizado para provocar uma intimidação e um amedrontamento, todo o terror já sentido por ele (oprimido), agora recairá sobre o opressor. O discurso é consciente, marcado pela subversão, rebeldia, transgressão e insubordinação ao sistema do opressor. É marcado também, por uma auto-afirmação manifestada numa expressão própria, uma linguagem própria que reflete uma nova forma de se pensar e agir, um ‘novo’ olhar sobre o social, o do oprimido. Nesta manifestação pode ser entrevisto alguns aspectos discutidos por Mignolo (2003), sobre pensamento liminar, ou seja, a construção de um novo lócus de discurso. A revolta contra a violência social de séculos sofrida em parte por seus antepassados e em parte por ele; agora essa violência faz o caminho inverso e se transforma


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numa fúria vulcânica (FANON, 2002), baseada na eliminação do outro, do opressor. O discurso vai além, ele se reconhece como anomalia social um “Alien”, uma espécie de efeito colateral de um sistema opressor. Cresceu em meio a um espaço que não é o centro, um terceiro espaço, uma terceira coisa num terceiro espaço. Nascido da lama educando-se no analfabetismo (o câncer social brasileiro), se diplomando nas prisões, capaz de produzir uma linguagem própria, uma cultura própria, “a pós-miséria”. Esse esforço, pelo discurso, tenta cancelar uma forma de relação social e tradicional típica da vida brasileira desde a colônia, isto é, uma relação verticalizada em que o povo sempre figurou e figura como sendo subalterno de outras classes sociais. Além disso, pode ser entrevisto também aspectos da concepção de entre-lugar discutida por Silviano Santiago (2000), quando o indivíduo se manifesta de um lugar que não é nem o centro e nem a margem mas sim de uma lacuna entre um e outro, habitado por “mutações sociais”, marcado por uma “falta de identidade”, indivíduos subalternos e oprimidos que se rebelam e subvertem a ordem social. Pode também, ser entrevisto no discurso, questões relacionadas à produção de determinados ‘valores sociais’ pelas elites detentoras dos meios de produção e comunicação, principalmente valores que pregam o acumulo de bens materiais como sendo necessário para a constituição de um eu-social. Nesse sentido, às discussões promovidas por Canclini (2005) sobre bens simbólicos e bens materiais vem nos dar suporte para pensarmos a questão do indivíduo “marginal” como sendo alguém que sofre um processo de influência. Este, seria o dos bens materiais sobre os bens simbólicos, já que este primeiro produz uma situação de dependência do indivíduo, ou seja, é preciso acumular bens materiais para obter reconhecimento e respeito social. O discurso desse indivíduo reflete questões pertinentes à vida pós-moderna sendo, talvez, a questão de identidade a principal

delas. Sobre isso, Stuart Hall (2005), aponta que o homem pósmoderno não tem uma identidade fixa ou permanente, assumindo diferentes identidades em momentos diferentes. Isto ocorre porque um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas, fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que antes propiciavam sólidas localizações aos indivíduos. Esta questão (a da identidade), se revela para nós como sendo algo de extrema relevância para entendermos a vida e as relações sociais na pósmodernidade, podendo ser retomada num próximo momento. Vejamos agora, como se manifesta o discurso na crônica “Rio de Sangue” de Férrez (se reconhece como escritor de literatura marginal):

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Fique a vontade para entrar no mundo adulto da violência gratuita, do grande plano de manipulação que joga contra o revoltado e tão cansado povo brasileiro, da covardia sem limites, do esfacelamento de famílias, do rio de sangue temperado com baixa estima, e das vielas cheias de corpos cansados demais para entender a difícil engrenagem de uma sociedade fantoche [...] não culpai meu pai esse povo que não sabe votar[...] a verdade é que o Estado está organizado para não deixar que a elite perca poder econômico e político, estão todos preparados para boicotar qualquer tentativa de crescimento da classe tida por eles como mais baixa, que na real somos nós. (FERRÉZ, 2004,p.57)

O discurso é de uma “realidade” marcante. Na qual o narrador convida o leitor a conhecer o seu mundo e os Seus. Não é alguém alienado, isso fica evidente quando reconhece que a grande maioria dos Seus não entendem o funcionamento da maquina social em que estão inseridos “vielas cheias de corpos cansados demais para entender a difícil engrenagem de uma sociedade fantoche”. Chega rogar a Deus por eles “não culpai meu pai esse povo que


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não sabe votar”. Numa tentativa de tirar o povo, a que pertence, da alienação em que estão mergulhados. O narrador, se mostra com a capacidade de construir o próprio pensamento, por meio de um discurso forte e realista, evidenciando assim a autoridade de se auto-representar. Esta busca pelo poder de se auto-representar, para não mais ser representado pelo colonizador, é algo que permeia ou permeou todos os países latino americanos como informou Bella Josef em “O lugar da América” (2005). No fluxo da análise, vejamos agora um outro trecho da mesma crônica:

da fragmentação das identidades. O “sentimento de pertencer” é tomado como uma manifestação de comunidade. Ainda na esteira do pensamento Hall, este sentimento pode ser entendido como sendo parte integrante da identidade deste individuo, que se constitui de aspectos do “pertencimento” a culturas étnicas, raciais, religiosas e lingüísticas. O “sentimento de pertencer”, decorrente do sentimento de identidade, satisfaz uma necessidade psicológica vital, criando uma sensação de conforto para os indivíduos (HALL, 1998, 2003).

Eu quero ter o belo prazer subversivo de escrever minha literatura marginal, eu quero ser preso, mas por porte ilegal de inteligência, antigamente quilombos hoje periferia, o zumbi zumbizando a elite mesquinha, Záfrica Brasil um só por todos nós, somos monjolos, somos branquindiafros, somos Clãnordestino, a peste negra, somos Racionais, somos Negro Drama, e minha posse é mente zulu. (FERRÉZ, 2004,p.57) 123

Neste trecho, o narrador promove comparações nas quais sugere que no sistema social brasileiro tudo continua igual (isso em relação ao lugar histórico do subalterno) apesar de serem chamados por nomes diferentes “antigamente quilombo hoje periferia”. Na mesma medida, igual também permanece o pensamento subversivo, em relação ao discurso de poder das elites, e a força de resistência desse indivíduo, porém agora com a mesma arma do opressor a inteligência e a palavra escrita –a literatura – “eu quero ter o belo prazer subversivo de escrever minha literatura marginal, eu quero ser preso, mas por porte ilegal de inteligência”, com isso fortalece a inversão das relações de poder, a margem figura no centro e não mais centro margem. Além disso, é manifestado o sentimento de pertença (HALL,1998), a uma comunidade, um espaço, uma cultura, uma nação, mesmo com o fenômeno, na pós-modernidade, constante

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Além disso, esse indivíduo, se manifesta pertencente a uma comunidade mestiça, miscigenada, diaspórica, híbrida (ABDALA JUNIOR, 2004), como se pode ver “somos monjolos, somos branquindiafros, somos Clãnordestino, a peste negra, somos Racionais, somos Negro Drama, e minha posse é mente zulu”. Talvez, por isso ele fala do seu lugar, do seu lócus – a margem, a periferia –, e convida seu leitor para conhecer sua ‘realidade’ sua vida de cada dia. Seu discurso é vivenciado na carne todos os dias (vide grifo), como nos mostra o trecho final da crônica em analise [...] Os tidos revolucionários que conheci, se deram bem resolveram seus problemas, alguns até foram eleitos, falam nos palanques com mais energia, e citam exemplos de sofrimento que eu mesmo passo todos os dias [...] Não temos medo nem raiva do poder, mas temos nojo “dessa” forma de poder, a forma que o jeitinho brasileiro consagrou e hoje faz milhões de pessoas choraram lágrimas de sangue[...]não é pelas mortes de pobres nos morros que a elite ta reclamando, que as apresentadoras loiras tão chorando, não é pelo preto, nem pelo pobre, é por seus próprios rabos, a coisa desceu pro asfalto, o sangue chegou perto, quantos avisos, quantos pedidos de socorro, mas a criança cresceu, sem nada, nada. (FERRÉZ, 2004, 57-8. grifo nosso)

Nesse sentido, pode-se dizer que este indivíduo, apesar de oprimido subalterno, adquiriu a capacidade de auto-representação


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por meio do discurso e da comunidade a que pertence. Tudo isso, se constrói na tentativa de combater, as relações sociais verticalizadas impostas pelas elites dominantes detentoras dos meios de produção e informação. De subverter o discurso do poder. De se colocar como auto-suficiente e capaz de fazer escolhas, isso se evidencia quando afirma “Não temos medo nem raiva do poder, mas temos nojo “dessa” forma de poder” (FERRÉZ, 2004). A descentralização do discurso evidencia a inversão margem centro, base das discussões de Piglia ( 2004), sobre o movimento de deslocamento do discurso. Ao nosso ver, este pode ser entendido como um efeito do processo de outremização evidenciado por Santiago (Cf. 1989).

indivíduo que tanto sofre com o descaso do Estado. Podemos entender isso da seguinte maneira, o cronista que é intelectual letrado busca denunciar a condição subumana de um individuo não alfabetizado consequentemente não letrado, ou seja o seu oposto. Isto configura uma espécie de representação desse oprimido e da realidade em que está inserido. Com isso, pretende expor além das feridas sociais, a hipocrisia humana e o abismo social que infelizmente cresce a cada dia em nosso país.

Agora, tomemos contato com um trecho crônica “Provocações” de Veríssimo: A primeira provocação ele agüentou calado. Na verdade, gritou esperneou. Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não como ele, numa toca, aparado só pelo chão. A segunda provocação foi à alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou porque não era disso [...] Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo. Para valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação. Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano... Então protestou. Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele: -Violência, não! (VERISSIMO,1999, p. 51)

Aqui, o cronista representa o marginal. Faz isso, por meio da observação da vida de um indivíduo marginalizado socialmente, que sofre a “décima milésima provocação” e reage. Pode-se dizer que há um esforço, por parte do cronista, para dar voz a esse

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Aqui o marginal pode ser tomado como uma espécie de metonímia (a parte pelo todo) pois representa toda uma classe social que sofre as mesmas injustiças sociais. Pode ser observado nessa crônica que o indivíduo não manifesta a “capacidade” de auto-representação, seu discurso é construído pelo cronista, como já dissemos por meio de um olhar lançado, que manifesta uma empatia pelo mesmo e busca ajudá-lo a reafirmar sua identidade social. Ou como diz Arrigucci Jr, o cronista através de seu texto faz da solidariedade social um valor básico, pois se reconhece no outro (Cf. ARRIGUCCI, 2001). Nesse sentido, o que os iguala é o fato de serem humanos. Nesta igualdade, entretanto, as diferenças são as principais marcas identitárias, ou melhor, é justamente por meio da diferença que a identidade é constituída (Cf. HALL, 1998) e, portanto, o outro é essencial no processo de auto-reconhecimento. Considerações Finais Como vimos no decorrer deste trabalho, à crônica se configura como um reflexo social de seu tempo. Constrói-se num espaço híbrido entre a realidade e a ficção. Assim, é possível pensá-la enquanto tipo de narrativa que pode cumprir um papel social, um instrumento de formação de consciência crítica sobres as diferentes camadas da realidade. Particularmente, as analisadas aqui foram produzidas por cronistas que fazem do seu olhar uma espécie de espelho social onde se manifestam desejos, ainda


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que implícitos, de concretização de uma sociedade mais justa e humana.

inter-textos, enriquecendo a configuração de singularidades. Dessa maneira, na sociedade pós-moderna é um equivoco pensar num núcleo fechado de produção literária. Não há mais verticalidades absolutas. É na horizontalidade em que se manifesta, de forma valorosa, as diferenças. Portanto, o marginal hoje reclama algo que há muito foi a ele negado – o direito de se auto-representar– seja na vida de cada dia seja na literatura.

Vimos ainda, que nas crônicas “Estamos todos no Inferno”, “Rio de Sangue” e “Provocações” o discurso critico subverte as relações de poder tradicionais, verticais. Ou seja, subverte ordens que sempre partiu do centro para a margem, do colonizador para o colonizado, da elite para o povo, do opressor para o oprimido. É nesse contexto que o indivíduo marginal toma pra si a capacidade de se auto-representar e com isso promove aquilo que Piglia (2004) cunhou como sendo o “deslocamento do discurso”, ou seja, o discurso se desloca do centro, deixa de ser produzido apenas pelas elites dominantes para ser produzido também pelas “margens”, que buscam uma afirmação ou reafirmação de sua identidade, que há muito é distorcida pelos discursos dominantes e preconceituosas das elites. Além disso, entrevemos também o olhar do oprimido sobre sua subalternidade. Isso se dá por meio da tomada de consciência, do indivíduo marginalizado, em relação a sua condição e seu esforço de buscar o direito de se auto-representar perante o outro. Isso implica em uma maior participação de classes historicamente subalternas, nas decisões sociais de nosso país. Ao reconhecermos a participação da sociedade como essencial à vida democrática e também fundamental para o controle social da ação do governo, percebemos a importância de concebermos espaços para grupos interessados no processo de formulação e implementação de políticas sociais, aqui representados pelos grupos sociais excluídos(exemplo Ferréz e a literatura marginal). Desse modo, um dos objetivos deste trabalho é também evidenciar que a sociedade contemporânea deve apreender a vivenciar múltiplos contextos e linguagens e a conviver com múltiplas subjetividades humanas, sem pretender reduzir a multiplicidade ao hegemônico, e construir no diálogo novos territórios a partir dos entre-lugares, dos inter-contextos e dos

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A PRESENÇA DE DOM CASMURRO EM CAPITU: AS REVERBERAÇÕES DE VOZES PELOS PROCEDIMENTOS DISCURSIVOS DE CITAÇÃO Cristiane Passafaro GUZZI[1] RESUMO: A possibilidade de um estudo pormenorizado sobre o processo criativo de uma minissérie televisiva, baseada na transposição de uma obra literária, nos instigou a querer compreender melhor as relações existentes entre Literatura e Cinema, Literatura e Televisão, Literatura e Adaptação, especialmente após o trabalho realizado pelo diretor Luiz Fernando Carvalho, ao adaptar o romance Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, para a minissérie Capitu (2008). As tradicionais categorias da narrativa do romance verbal – narrador, personagens, tempo, espaço – são bastante alteradas pela mudança na esfera de veiculação do novo texto, num outro suporte. Considera-se, assim, que o processo de adaptação não se esgota na transposição do texto literário para outro veículo. Ele gera uma cadeia de interpretações, identificações, intertextualidades, constituindo uma realização estética que envolve tradução e interpretação de significados e valores histórico-culturais. O que podemos observar - na “aproximação” feita da obra machadiana - é que Carvalho, ao longo do processo de realização da minissérie, tentou, por meio dos efeitos de sentido construídos, tanto no plano de conteúdo quanto no plano da expressão, deixar transparecer as experiências de Machado enquanto escritor, poeta, ensaísta, crítico, dramaturgo, preenchendo e atualizando, assim, o texto de Dom Casmurro de novas visibilidade, retomadas, diálogos e interpretações. PALAVRAS-CHAVE: transposição; Machado de Assis; procedimentos discursivos de citação; Luiz Fernando Carvalho

As experiências de Machado de Assis enquanto poeta, crítico, contista, dramaturgo e romancista parecem reverberar em seus textos, ao longo de toda sua obra, fornecendo, para seus leitores, 1 UNESP – FCLAr – Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Mestrado – Bolsista CAPES)

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subsídios teóricos, inclusive, de análise para seus próprios trabalhos. E é seguindo esse movimento, inçado pelas próprias marcas deixadas no texto pelo escritor, que o diretor Luiz Fernando Carvalho parece ter encontrado suporte para a realização da minissérie Capitu, levada ao ar pela Rede Globo de Televisão, em 2008, conciliado com seu modo reflexivo de demonstrar as coordenadas de um fazer sincrético. O que podemos observar, na “aproximação” da obra machadiana é que Carvalho, ao longo do processo de realização da minissérie, tentou, por meio dos efeitos de sentido construídos, tanto no plano de conteúdo quanto no plano da expressão, deixar transparecer as experiências de Machado enquanto escritor, poeta, ensaísta, crítico, dramaturgo, preenchendo e atualizando, assim, o texto de Dom Casmurro (1899) de novas visibilidades, interpretações, retomadas, diálogos, intertextualidades e interpretações. Todo processo estético, seja ele de uma realização verbal ou de uma realização sincrética, deve pressupor um olhar de fora do seu realizador. Um eu posicionado externamente em relação ao outro o que possibilita o objeto ser enformado de modo estético. A compreensão que Carvalho faz em seu percurso criacional, seja da crítica tradicional, seja das leituras feitas diretamente sobre a obra por autores escolhidos, seja pela tradição autoconsciente com a qual Machado dialoga, transparece nos ressoos figurativos que ele tão bem trabalha por intermédio dos procedimentos de citação, seja de forma direta, seja de forma indireta. Esse ressoo de traços de significação, e que nos remetem aos diálogos com tais textos e com tais tradições, configuram-se desde a escolha do cenário, o posicionamento da iluminação, os efeitos de enquadramento da câmera, a caracterização e o vestuário das personagens, até a trilha sonora escolhida para embalar certos momentos da trama. Há uma tomada de posição do diretor em sua recriação artística ao recuperar, mesclar e, ao mesmo tempo, atualizar os valores mobilizados tanto do tempo histórico do romance de Machado, século XIX, como do tempo de sua transposição, século XXI. A


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confluência de valores, saberes, vozes e técnicas na minissérie produzem um efeito outro de leitura e interpretação para uma obra tão conhecida, mas que ainda permite o reconhecimento de diversas outras vozes presentes em sua enunciação e por procedimentos diversos. Carvalho, ao realizar uma enunciação sobre outra enunciação, parece jogar, inclusive, com as possibilidades existentes de citação do romance dentro, agora, de um outro suporte; permitindo, assim, que o conceito de dialogismo presente no processo mostre-se, inclusive, de modo escancarado. Verifica-se que o dizer da minissérie Capitu (2008) orienta-se não só pelo o que é dito no romance, ao preservar seu conteúdo, como também pelo o que disseram os críticos sobre a obra. A resposta dada para o dizer do romance transposto configura-se como a compreensão ativa que Carvalho faz desse processo, ora diluindo, ora espraiando e ora atualizando as possíveis leituras tanto da obra, quanto das personagens, por um ponto de vista que carrega não só seu repertório, mas a pesquisa do próprio repertório do escritor Machado de Assis. Temos, nesse sentido, um dizer internarmente dialogizado no encontro desses dois enunciados (a leitura do romance e a leitura que Carvalho faz do romance) e que resultou numa realização artística repleta de vozes e discursos que são citados ora de modo mais explícito, - aspeados, portanto-, ora de modo mais implícito, sem aspas. A compreensão, então, do processo de transposição do romance verbal para a minissérie televisiva mostra-se por intermédio da exploração e ampla utilização de variados procedimentos de citação que denunciam para as leituras feitas do romance, da crítica e de supostos novos acréscimos pelo ponto de vista lançado pelo realizador Carvalho. Enquanto leitura singular, Capitu (2008) trabalha o conteúdo do romance tentando preservar os diálogos, as personagens, as ações, deslocando, quase sempre e somente, na expressão[2], os 2 Quando se afirma, aqui, uma maior exploração evidente na expressão, não se está afirmando uma dissociação de seu conteúdo, pelo contrário. É somente por intermédio dele que conseguimos trabalhar com essas verificações com um texto que envolve diversas outras linguagens, destacando-se a visual.

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diferentes sentidos atribuídos pela trama. Estão preservados não só as palavras e os diálogos, como também as diversas camadas do texto, ou seja, as divisões em pequenos capítulos, através de cartelas/vinhetas que anunciam a cena que está por vir – “O penteado”, “O agregado”, etc. As citações, segmentadas em tipos como a paráfrase, paródia, alusão, estilização, citação “ipsis litteris” e etc, podem parecer manifestadas de várias maneiras num texto literário. Ao consideramos que uma obra parafrásica se denomina pela afirmação da ideia de uma outra obra, verificamos que Luiz Fernando Carvalho também se aproxima, por meio deste recurso, da ideia da bricolagem, que os semiólogos e os formalistas russos trabalharam como sendo uma “técnica de reescritura”, para substituição de um sistema que se banalizou e entrou em obsolência e que se encaixa também, por sua vez, na idéia de apropriação[3] - termo que é ainda recente na crítica literária, mas que chegou à nossa literatura por meio das artes plásticas, ou mais propriamente, do Dadaísmo. A apropriação parafrásica, nesse sentido, consiste em apoderar-se de textos do outro e agir como se fosse do próprio autor, dilatando o sentido original, mas conservando sua essência. Ao contrário da apropriação parodística, que inverte o significado ideológico e estético do texto, a apropriação parafrásica prolonga o texto anterior no texto atual. Essa apropriação prolongada pode ser verificada pela presença da reprodução de quase todos os capítulos do romance transpostos na minissérie, apresentandoos, inclusive, sem qualquer alteração no corpo do texto. Com essa preservação do texto original de Machado, o diretor manteve uma espécie de respeito, homenagem, fidelidade e reconhecimento 3 Affonso Romano de Sant’Anna (1985) define e exemplifica esta técnica de entrada recente na teoria da literatura: “A técnica da apropriação, modernamente, chegou à literatura através das artes plásticas. Principalmente pelas experiências dadaístas de 1916. [...]. Ela já existia nos ready-made de Marcel Duchamp, que consistia em apropriarse de objetos produzidos pela indústria e expô-los em museus ou galerias, como se fossem objetos artísticos. Foi assim que ele tomou um urinol de louça, em 1917, e o expôs como obra de arte. [...]”. (p.43).


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com o trabalho do escritor. Ao reproduzir e respeitar o conteúdo manifestado de Dom Casmurro, Carvalho acabou por reproduzir, na minissérie, uma unidade discursiva semanticamente equivalente a essa outra produzida anteriormente pelo romance. Percebemos, ainda, que um modo de parafrasear certas passagens foi realizado pela exacerbação de algumas características que, no texto de partida, já se faziam notáveis, pelo tom grandiloquente e operístico explorado por Machado e amplamente retomado pelo diretor Carvalho. Além de ser um efeito retórico e estilístico, a paráfrase apresenta ainda um caráter ideológico de continuidade de um pensamento, fé ou procedimento estético. No projeto estético que Luiz Fernando Carvalho vem consolidando com seu Projeto Quadrante, podemos identificar a recorrência de uma certa continuidade e a exploração de valores a serem transmitidos, que são próprios de sua dramaturgia televisiva, como seu olhar para objetos que podem trazer à tona outros sentidos para a configuração do romance. Tal projeto tem por objetivo transpor para a televisão obras literárias que engendram uma reflexão sobre a cultura brasileira. Para alcançar esse último objetivo, o diretor selecionou quatro autores, oriundos de diferentes regiões[4], tentando, em seu processo de transposição para televisão, levar não somente as marcas autorais dos referidos autores, que também valorizam a cultura brasileira, mas também imprimir outros traços resultantes de pesquisas e, consequentemente, consolidação de um projeto estético. O procedimento citativo da estilização, por sua vez, segundo as considerações de Mikhail Bakhtin (2000), trabalha o texto sob o ponto de vista do outro, ainda que seu próprio ponto de vista seja perceptível, pela maneira objetiva pela qual é retratada. Assim como na paráfrase, na estilização ocorre uma captação do sentido do texto original, ou seja, com ambos os recursos ocorre uma 4 A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna (Paraíba), Capitu, de Machado de Assis (Rio de Janeiro), em breve irá ao ar Dançar Tango em Porto Alegre, uma obra do autor gaúcho Sérgio Faraco (Rio Grande do Sul), e por fim, Dois Irmãos, de Milton Hatoum (Amazonas), que encerra o quadrante literário.

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captação dos níveis fundamental, narrativo e discursivo dos textosbase. Além do reaproveitamento de todos os níveis, a estilização, como o próprio nome induz, estiliza o texto, acrescentando-lhe cores, figuras, tons, personagens, diálogos e etc, sem perder a estrutura básica que compõe o conteúdo inicial do texto anterior a que se refere. Ela se mostra como uma imitação de um texto ou estilo, sem a intenção de negar, ridicularizar ou desqualificar o que está sendo imitado. Na estilização, ao contrário do que ocorre na paródia, as vozes são convergentes na direção do sentido, pois as duas apresentam a mesma posição significante, conforme lembra o estudioso José Luiz Fiorin (2006, p. 43). Pode-se verificar, até mesmo na exuberância do acabamento visual da minissérie Capitu, a presença de um discurso inchado na exploração de suas cores, na construção de traços figurativos que remetem às leituras feitas por Carvalho e no exagero do tom dado pelas falas das personagens que são trabalhadas de modo caricatural. Luiz Fernando carrega na tinta em sua transposição, enquanto que Machado fazia justamente ao contrário, pois dotado de sutileza, leveza, ainda que com ironia cruel, fina. Tais acréscimos acabam, portanto, por diferir um tanto a realização televisiva do discurso presente no texto de Machado de Assis. Na aproximação feita pelo diretor, as imagens dominam a cena em detrimento do universo dramático do romance; e é justamente esse movimento que se espera da televisão e do cinema quando trabalham com uma transposição de obra literária. O texto machadiano, na realização de Carvalho, aparentemente se mostra em uma síntese que destaca trechos literais dos capítulos curtos do livro, citados pelos títulos que subdividem, também, cada episódio da minissérie. A constante utilização de cores quentes, favorecidas pelo uso de uma tecnologia digital em alta definição, configura uma nova estética para um romance publicado no século XIX. Seus cenários, seus figurinos e seus objetos de cena, especialmente


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confeccionados artesanalmente, compõem uma mescla entre o erudito e o popular que dialoga, inclusive, com o próprio retrato que Machado fazia de tais esferas em seus romances. Os amplos movimentos da câmera em torno das personagens evidenciam a intensa busca por uma expressão corporal que se aproxime (e muito) da teatralidade tão presente nas obras do escritor. A escolha dos enquadramentos parece obedecer muito mais aos movimentos musicais e coreográficos dos atores do que propriamente aos apelos dramáticos presentes na narrativa. E quando obedecem, exagera-se no tom, escancarado pelo modo de falar e de se posicionar das personagens. Luiz Fernando Carvalho, portanto, se apropria tanto da paráfrase, quanto da estilização como principais meios de citação para a transposição do dizer do outro, no caso, do dizer do romance de Machado e de seu próprio repertório. Tais procedimentos transparecem na aproximação televisiva por ambos manterem, entre si, uma relação de conformidade com o texto-base e se relacionarem por meio da atuação de complementaridade um do outro; diferencia-se a paráfrase pela atitude mais dependente do texto-base, enquanto que a estilização possibilita, para o realizador, alçar certa independência ao desenvolver e alterar os elementos do texto primeiro e suas possíveis combinações de sentido. Encontramos, além disso, na aproximação televisiva, alguns deslocamentos de reprodução que podem até ocasionar certa deformação semântica (sem comprometer totalmente o conteúdo), ocorrendo - não como na paródia que nega totalmente o sentido - apenas uma mudança de enfoque ou ponto de vista instaurado pela narrativa primeira. Tal procedimento pode ser verificado no deslocamento que ocorre no próprio título escolhido para a minissérie, Capitu, que, numa primeira leitura, parece dar ênfase à enigmática e oblíqua personagem, mas que, analogamente ao romance, é lida, interpretada, vista e exibida pelos olhos de uma câmera quase que embutida nos pensamentos e devaneios

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do narrador protagonista Casmurro. Não há, portanto, uma deformação, mas apenas um deslocamento na criação de efeito de sentido ao demonstrar, com tal desvio no nome, não importar de quem parte o contar dessa narrativa, pois o que temos, em termos de conteúdo de relato, são somente as impressões já consolidadas pela fala de Bentinho. O espaço escolhido para ser o cenário de toda trama também se desvia do sentido posto no livro por não mobilizar as diversas ruas citadas no romance, mas opta por fixar-se em um único espaço, construído com os valores de nossa sociedade atual. É dentro do Automóvel Club do Brasil, situado e fundado nos anos 70, no Rio de Janeiro, que Carvalho transpôs e construiu, como um espaço da memória do narrador Dom Casmurro, todos os capítulos da trama. Esse antigo casarão que se encontra em ruínas espelhou, inclusive, a relação que Machado manteve, a vida toda, com o teatro e com a ópera, permitindo, na encenação dos atores e na musicalidade, o diretor explorar e evidenciar tais repertórios do escritor. As vozes sociais que figuram numa sociedade altamente tecnológica do século XXI reverberam no discurso da minissérie não só pelo constante uso de objetos tecnológicos mesclados aos objetos artesanais componentes do cenário, mas na ênfase dada em alguns temas tratados de forma sutil já no romance do século XIX, mas que atualmente se encontra em voga em diversas discussões da crítica moderna. Indícios que antes eram apenas sugeridos e trabalhados, sutilmente, pelo texto do romance machadiano, ganham ênfase pelo tom dado na minissérie. Uma possível relação incestuosa entre a mãe Dona Glória e seu filho Bentinho ganha contornos mais visíveis; uma certa relação homoafetiva ou, até mesmo, homossexual, entre Escobar e Bento parece irromper nos gestos e olhares das personagens; uma infantilização da personagem Bento Santiago avoluma-se em comparação à sensualidade determinada de Capitu, só para citar alguns dos acréscimos de interpretação que dialogam com as recentes leituras sobre a obra Dom Casmurro.


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Contudo, ainda que tais desvios evidenciados pelo tom estilizado - e escolhido para o trato de tais passagens - engendrem outras possibilidades de leitura, verificamos que a temática e a composição que caracterizam o romance Dom Casmurro foram preservados na transposição televisiva. Tanto a temática que trata de uma história contada por um narrador, já na velhice, que rememora os fatos de sua vida e do seu relacionamento com a personagem Capitu, é totalmente preservada, quanto a composição estrutural da obra, conforme já salientamos. Essa manutenção da temática e da composição que enquadram a obra dentro do gênero romance, pela minissérie, facilita o reconhecimento dos índices identificadores do próprio gênero primeiro de que partiu o enunciado televisivo. Mais do que isso, porém, é preciso reconhecer e analisar, também, a relação e os efeitos de sentido que esses procedimentos discursivos de citações, ao serem explorados por determinados textos, estabelecem entre o enunciador, com seus valores lançados no texto, e o enunciatário, com sua recepção e interpretação que são alçados, por sua vez, por outros valores. Assim, para se estabelecer uma relação parafrásica e/ou estilizada com outro texto, é preciso considerar a maneira como o receptor dessa mensagem vai receber esse código e, então, captar e reconhecer os valores presentes e mobilizados por aquele enunciado atravessado por tantos valores outros. Se o leitor não tem informação do texto original ou de outras relações com as quais o texto mantém possíveis diálogos, não vai conseguir identificar essas figuras e seus respectivos efeitos. “É preciso um repertório ou memória cultural e literária para decodificar os textos superpostos” (SANT’ANNA, 1985, p.26), pois os traços, as figuras e os objetos do mundo natural passam a ser transformados, substituindo seus significantes originais por outros. É importante ressaltar que o não reconhecimento dos diálogos com os quais um texto dialoga não invalida a recepção da obra por um leitor que não se adentre, profundamente, no reconhecimento

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das relações citadas e no modo como elas trabalharam o repertório tanto do leitor Machado, quanto do leitor Carvalho. Contudo, desconstruir e estudar o processo de leitura e criação realizado por uma transposição de uma obra literária para um meio sincrético favorece o entendimento das relações existentes entre literatura e televisão, literatura e cinema, fornecendo, inclusive, métodos de análises que ainda estão em constante verificação por congregar duas linguagens tão diferentes, mas com tantos pontos de convergência. Adentrar, portanto, no universo machadiano pelo ponto de vista que o diretor Carvalho imprimiu em sua realização estabelece uma relação de compreensão dialógica e responsiva, enquanto leitores/ telespectadores, de um texto tão içado de relações, alusões, leituras e repertórios como Dom Casmurro, mas visto, agora, sob a lente da câmera de Capitu que ora parafraseia, ora estiliza, ora mantém e ora atualiza a inesgotável universalidade de uma obra que se firmou como um marco de nossa literatura brasileira.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979. 3 V. ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Apresentação de Paulo Franchetti & notas de Leila Guenther. Cotia: SP; Ateliê Editorial, 2008. BAKHTIN, M.. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Trad. francês: Maria Ermantina Galvão; Revisão: Marina Appenzeller. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 279-287. CAPITU. A partir do Romance Dom Casmurro de Machado de Assis. Escrito por Euclydes Marinho. Colaboração Daniel Piza, Edna Palatnik, Luís Alberto de Abreu. Texto Final e Direção Geral. Luiz Fernando Carvalho. Distrito Industrial- Manaus: Sistema Globo de Gravações Audiovisuais LTDA, 2009. 2 DVD’S, widescreen, color.Produzido por Globo Marcas DVD e Som Livre. CAPITU. Minissérie de Luiz Fernando Carvalho; escrita por Euclydes Marinho; colaboração Daniel Piza, Luís Alberto de Abreu e Edna Palatnik; fotografias de Renato Rocha Miranda e Guilherme Maia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008. FIORIN, J.L. Introdução ao Pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006. SANT’ANNA, A. R. Paródia, Paráfrase & Cia. São Paulo: Ática, 1985.

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ENTRE O SENSÍVEL E O RÚSTICO: CONSIDERAÇÕES SOBRE INFÂNCIA Cristiana Tiradentes Boaventura[1] Resumo: A comunicação “Entre o sensível e o rústico: considerações sobre Infância” apresenta algumas reflexões acerca do livro “Infância”, de Graciliano Ramos, obra que compõe o corpus de minha pesquisa de doutorado, junto com o diário de Helena Morley, “Minha vida de menina”. A análise e interpretação da obra de Graciliano, publicada no ano de 1945, e com a qual lido nesta etapa da pesquisa, tem nos levado a pensar em como o autor lida com a antinomia entre a sensibilidade e a brutalidade, que a nosso ver são categorias que perpassam todo o modo como o narrador observa o passado e narra as experiências dele menino. As figuras do avô vaqueiro e do avô artesão como apresentadas na obra dão alguma dimensão desse olhar dialético do narrador. Decorre disso o questionamento sobre como e se “as marcas geográficas e políticas” interferem na criação de um espaço para a formação da sensibilidade no contexto daquele sertão do final do século XIX, e como pensar essas marcas sem incorrer em generalizações ou estereótipos. Ao encarar a narrativa como lugar de tensões entre o moderno e o arcaico é necessário indagar sobre a difícil conceituação desses termos e pensar nas múltiplas acepções da palavra civilização para refletir sobre o perigo que se incorre ao aplicar tais categorias. Palavras-chave: Graciliano Ramos – Infância – rusticidade – sensibilidade

Sob o título de “Entre o sensível e o rústico: considerações sobre Infância” pretendo apresentar algumas reflexões que tenho feito acerca do livro Infância de Graciliano Ramos. Meu projeto investigativo contempla, além dessa obra, o estudo do diário de Helena Morley, Minha Vida de Menina. Os dois livros são relatos de infância da última década do século XIX e, em análise comparativa, a pesquisa propõe-se a pensar as experiências de infância 1

Doutoranda em Literatura Brasileira (FFLCH / USP) - Bolsista FAPESP

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entrelaçadas às relações sociais brasileiras e seus contextos. No atual momento da pesquisa tenho me dedicado à análise e interpretação do livro de Graciliano, e gostaria de partilhar algumas hipóteses a que tenho chegado. Lançado em 1945, Infância é composto por fragmentos da vida do narrador, organizados em uma estrutura de contos. Nele, o leitor é apresentado paulatinamente ao mundo que cerca a criança, por meio da narrativa de eventos selecionados, desde narrações de lembranças já bastante turvadas, como “Nuvens”, o primeiro episódio do livro, passando por diversos tipos e eventos familiares que o marcaram em algum momento de sua infância, até chegarmos ao último fragmento, denominado “Laura”, em que narra suas primeiras experiências sexuais. O período percorrido se fixa então entre os dois, três anos de idade até os onze anos, quando termina a narrativa, o que a fixaria em torno dos anos de 1895 a 1906. Sendo o livro uma narrativa de fatos passados, memórias narradas por um sujeito adulto, coexistem nela comentários interpretativos do narrador, inúmeras vezes de compleição solidária, que ao debruçar sobre sua história e suas recordações termina por construir um espaço entre a experiência acumulada e a memória. Nesse sentido, a relação entre experiência e memória adquire lastros fortes em Infância, já que há ao mesmo tempo um esforço narrativo de circunscrever a história do menino e uma interferência memorialística do narrador que revela suas percepções adquiridas com o afastamento temporal. O que proponho aqui é apontar alguns fragmentos que expõem a condição sensível do narrador quando este revisita sua história. Pela minha perspectiva de análise do livro, o olhar do narrador tende a traduzir a experiência de infância a partir da dicotomia brutalidade-sensibilidade. Ele vincula a agressividade de muitos sujeitos ao modo de vida a que esses estavam expostos e tenta compreender essa brutalidade, muitas vezes a partir de fatores econômicos e fatores culturais. A outra ponta, a da sensibilidade, se


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divide em um olhar para reconhecer sujeitos frágeis, que estavam expostos às diversas situações excessivas e que, resignados, pareciam se envergar diante da força física e moral do outro, e um olhar que também reconhece a própria experiência como moldada por vezes a partir de muitas situações cruéis e rudes, por outras solidárias e ternas. Esses olhares parecem ter contribuído para têlo tornado um sujeito sensível que agora nos narra essa história, seja porque percebeu a dor do frágil, seja porque conviveu com exemplos que o expôs também a “sentimentos benévolos”, em suas próprias palavras. É evidente que essa antinomia não está formulada explicitamente, mas está dada na organização e análise das personagens que constituem sua história, nas percepções e conclusões a que o menino teria chegado a partir da vivência dos fatos e no dado de que Graciliano, na década de 1940, lança um livro que expõe sua extrema sensibilidade para ler sua história e a dos outros sujeitos que figuram na obra. Como se estivesse, enfim, atestando por um lado que em um meio bruto há também um lugar para o sensível, do qual ele mesmo seria um exemplo, de que o sertão não é um lugar que precisa ser resgatado ou visto como objeto de uma ação messiânica. E por outro percebendo o difícil isolamento em que viveram e que viviam determinadas comunidades esquecidas pelo poder público e modo como isso afetava a dinâmica dessas sociedades. A figura do pai do narrador, o Sr. Ramos, merece destaque na interpretação, já que o narrador dispensa muita dedicação ao modo como o pai agia, mandava, vivia. A impressão geral que nos passa o narrador é a de um sujeito que concentra em si características que ora se resvala na maldade, na violência e na brutalidade, ora se deixa ver um sujeito capaz de perceber o outro, preocupado com a formação do filho: é o mesmo pai que protagoniza o episódio do cinturão, das “pancadas”, que incentiva, à sua maneira, os estudos e a instrução do filho. Digamos “à sua maneira”, posto que mesmo o fato de educar o filho, de tentar alçá-lo ao mundo dos “sujeitos sabidos” é feito a custa de muita grosseria, agressão e parece que

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com certo intuito de estabelecer algum prestígio para a família, como exposto pelo narrador em algumas passagens. À primeira leitura, o que sobressai é a figura de um pai rude, autoritário, dono de seu pequeno mundo concreto, qual seja a família, o comércio e a casa. De fato, em inúmeras passagens comprovamos esse olhar do narrador sobre ele. No entanto, há também um olhar de justificativa sobre as atitudes do pai, envoltas pela crítica de um contexto que teria contribuído para isso. Acercando-nos da face violenta do pai, o episódio “Um cinturão”, que já mereceu muita atenção da crítica, é significativo na caracterização da figura paterna e na demarcação dos lugares ocupados por cada sujeito do livro. Exprime também o modo como se naturalizava a agressão física, que aos olhos da criança se conformava àquele contexto: “Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural”. A formação de uma ética da justiça e da sensibilidade se dá a partir do olhar sensível do menino para a situação de crueldade vivida nas relações em geral e mais enfaticamente com o pai. No final do relato nos deparamos com a afirmação de que aquele teria sido o primeiro contato com a justiça. Tal afirmação nos coloca a pensar sobre o lugar em que o narrador situa o menino e o conceito de justiça que se vai formando. Todo o relato nos deixa antever as marcas deixadas na memória, como se o tempo se condensasse unindo passado e presente, provável que a partir de uma força advinda da experiência negativa, assimilada por meio de uma violência sem motivo que se apega ao narrador, mas que nos parece vir a se transformar em uma ética positiva, um olhar de compaixão para sua história e para situações semelhantes, como é o caso da história de João ou da prima Adelaide. Em mais de uma ocasião o narrador expõe a vida da família subjugada ao sistema patriarcal em que viviam, relacionando a figura do pai à lei, ao algoz, ao governo totalitário, marcando insistentemente sua figura rude e agreste, que descontava suas dificuldades interna e externa nos filhos, na mulher e nos agregados. Acontece, porém, que em algumas passagens ele alia


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essa dinâmica à situação do pai como parte daquele modo de funcionamento das relações sociais e econômicas, sugerindo que a vida precária em que a família vivia contribuía para tornálo um homem bruto e agressivo. Um exemplo é a convergência das atitudes do pai com sua situação financeira. Em um capítulo sobre a seca avassaladora, o narrador expõe a condição da família aproximando-os da condição de retirantes, ainda quando o pai possuía uma fazenda no interior de Pernambuco. O narrador relata o modo como ele menino viu o pai enfraquecido e fraco. O relato é o seguinte: Sentado junto às armas de fogo e aos instrumentos agrícolas, em desânimo profundo, as mãos inertes, pálido, o homem agreste murmurava uma confissão lamentosa à companheira. As nascentes secavam, o gado se finava no carrapato e na morrinha. (...) A vila, uma loja e dinheiro entraram-me nos ouvidos. O desalento e a tristeza abalaram-me. Explicavam a sisudez, o desgosto habitual, as rugas, as explosões de pragas e de injúrias. Mas a explicação me apareceu anos depois. Na rua examinei o ente sólido, áspero com os trabalhadores, garboso nas cavalhadas. (...) Hoje acho naturais as violências que o cegavam. Se ele estivesse embaixo, livre de ambições, ou em cima, na prosperidade, eu e o moleque José teríamos vivido em sossego. Mas no meio, receando cair, avançando a custo, perseguido pelo verão, arruinado pela epizootia, indeciso, obediente ao chefe político, à justiça e ao fisco, precisava desabafar, soltar a zanga concentrada. (RAMOS, 2009, p. 31)

Nesse fragmento escolhido, o narrador já adulto repensa sua história tentando entender o porquê das atitudes do pai e de certo modo vendo-o amoldar-se à dinâmica social de então. O que se apresenta é uma tentativa de associar o modo de agir do pai, suas atitudes junto à família, com à difícil lida com a terra, com a seca, e às imposições a que estava sujeito. Há no livro como um todo mais de uma passagem que remete ao modo de vida rústico e a difícil sobrevivência no polígono da seca. Sobre o pai, há um cuidado em mostrar suas aspirações, a tentativa de ascender

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econômica e socialmente na sociedade. Explicita a situação do comerciante firme no intuito de se estabelecer financeiramente e também aspirando a cargos políticos (que de fato adquire já quando estão no município de Viçosa), desfilando-o como a um título nobiliárquico. A aprendizagem dolorosa nos mostra como as experiências bárbaras incidiram de forma marcante na constituição do pequeno sujeito que vamos conhecendo no livro. Permite-nos observar que no processo de formação da criança elas acabam por contribuir para o desenvolvimento de um indivíduo mais sensível. Entendendo aqui sensibilidade como faculdade de sentir piedade, empatia, compreensão e compaixão pelo outro, valor que está no núcleo das histórias da narrativa. Contribuíram também para formar um outro valor: o senso de justiça no menino. Retomando o argumento, o que estamos perseguindo é a reflexão de como se apresenta no livro Infância, no contexto daquele sertão do final do século XIX, a relação entre as marcas geográficas e políticas, representadas no livro pela noção de sertão, e a formação de um sujeito sensível num contexto rústico – o que nos remete à hipótese de que a obra é estruturada a partir do binômio brutalidade-sensibilidade. O que pretendemos mostrar, portanto, é que o narrador aponta para uma condição dos sujeitos, nas histórias narradas, vinculada ao modo grosseiro e rude do espaço físico e, ao mesmo tempo, aponta para a brutalidade e a rusticidade como, paradoxalmente, experiências formadoras da sensibilidade como valor. Toda essa discussão acaba por se envolver num questionamento sobre como a ideia de civilização margeava as discussões em torno do processo de modernização do Brasil. Em época em que o campo era visto como atrasado, estagnado, longe da cidade e dos avanços tecnológicos logo se vê que o ponto de vista preponderante era o da cidade sobre o campo, sendo a primeira, parâmetro de civilidade, e o segundo, da incivilidade. Se tomarmos o conceito de civilização, proposto por Norbert Elias, segundo o qual essa noção


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se molda a partir do ponto de vista que cada sociedade tem de si mesma, o outro então se torna o primitivo. Parece-me que os textos de Graciliano acabam por contribuir para o entendimento sobre as formas como se pensava a relação entre cidade e interior.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. RAMOS, Graciliano. Infância. 44ª ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009.

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e estudada. Há uma necessidade humana de não deixar o esquecimento sobrepor-se à memória, conforme destaca Andreas Huyssen: “Não há dúvida de que o mundo está sendo musealizado e que todos nós representamos os nossos papéis neste processo. É como se o objetivo fosse conseguir a recordação total” (2000, p. 15), e “os “passados presentes” estão em evidência, por isso, o boom pelos estudos da memória não pode ser explicado apenas por questões econômicas referentes ao contexto da globalização, há uma série de fatores de ordem sociopolítica e cultural que influenciam nesse processo.

QUANDO UM LIVRO DE POEMAS CONTA UMA VIDA: MEMORIALISMO EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO Daura Del Vigna Galvão[1] Este artigo tem como objetivo refletir sobre novas possibilidades de estudo a que o crítico cultural poderá recorrer em tempo de globalização, a partir das reflexões de Andreas Huyssen. Destacamos a valorização desse crítico aos estudos da cidade e da memória. Para tanto, tomamos por base o trabalho da escritora sulmatogrossense Flora Thomé, como poeta que busca eternizar a galeria de personagens de sua cidade, espécie de espelho mágico do universo. Assim procuramos destacar tanto a visão da cidade como a da memória de uma autora que vive numa cidade do interior, mas que tem uma visão cosmopolita, numa nova acepção. Analisamos um poema da autora em que fica clara a oposição: passado/ presente, antigo/moderno. PALAVRAS-CHAVE: Flora Thomé, memória, globalização cultural, cosmopolitismo.

INTRODUÇÃO Diante do atual panorama de globalização cultural, em que as informações disseminam-se às mais longínquas partes do Globo, sem nem sempre serem processadas, transformandose em conhecimento, em um contexto no qual a velocidade dos acontecimentos e surgimento de novos produtos de consumo parece ser o imperativo geral, como deve posicionar-se o crítico cultural? Em oposição à rapidez com que o esquecimento histórico se alarga, a questão da memória está sendo bastante discutida 1 Aluna da Pós-Graduação - Mestrado em Letras- Área de Concentração: Literatura e Práticas Culturais, da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). E-mail: dauravigna1@hotmail.com

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IMPORTÂNCIA DAS CIDADES E DAS QUESTÕES DA MEMÓRIA Diante do novo panorama, o crítico da cultura deve vislumbrar novas perspectivas de trabalho. Huyssen destaca que uma delas é a focalização do papel das cidades nos estudos sobre cultura e subjetividades. Sobre a importância das cidades, ele argumenta: “(...) as cidades são os principais lugares de interação entre forças globais e culturais locais hoje, um foco em como as principais cidades contemporâneas negociam o impacto da circulação global de pessoas, commodities e tecnologias, de idéias, imagens e produtos culturais” (HUYSSEN, 2002, p.17). Outra opção apresentada por Huyssen é o enfoque nas questões da memória e nos direitos humanos, em que poderia ser explorada uma rede de discursos, dentre os quais destacamos o literário e o artístico, que poderiam criar desenhos culturais complexos, nos quais o local e o global permaneceriam distintos. Ao enfatizar passados diferentes de culturas diversas, o estudioso destaca que o estudo da memória das cidades possibilitaria entrever formas múltiplas pelas quais culturas específicas negociariam os impactos da globalização, podendo ocorrer a elaboração de uma leitura crítica dos efeitos da difusão da mídia, das tecnologias da informação e do consumismo. Quando o crítico cultural “(...) voltar seu foco concreto para localidades específicas, suas histórias, línguas e heranças, ele terá que problematizar a atual definição de


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globalização, e ainda criar uma forma de cosmopolitismo crítica e autocrítica” (HUYSSEN, 2009, p.19). Uma das mais essenciais transformações ocorridas no campo cultural nas últimas décadas do século XX é o descentramento, que ocorreu em vários sentidos, tais como o descentramento do sujeito e de suas identidades - chamado por alguns de desagregação ou deslocamento (HALL, 2006, p.34), como também o descentramento territorial. Tais deslocamentos supõem a dissolução de fronteiras de interpenetração entre “mundos” e discursos, entre mundo tecnológico e mundo natural, entre “primeiro” e “terceiro” mundo; global e local; universal e regional; metrópoles e aldeias. Estas mudanças conceituais estão ligadas à proposta de Huyssen sobre a criação de uma nova forma de cosmopolitismo. O sujeito cosmopolita, dentre outras acepções, é aquele que se julga cidadão do mundo inteiro, para ele, a pátria é o mundo. Ele sofre influência do estrangeiro, sem, contudo se despersonalizar. Quanto ao lugar, a cidade considerada cosmopolita apresenta aspectos comuns a vários países, contrapondo-se ao provincianismo, ao bairrismo e ao nacionalismo. Diante desses significados, temos um sujeito que se opõe a uma massa e uma des-territorialização que se opõe à fixidez, que é afiliado a um ideal universal. No conceito tradicional, a metrópole é o parâmetro básico para a composição da diversidade que define o cosmopolitismo. Consequentemente, as cidades maiores, por oferecerem maior diversidade de estilos de vida, por terem maior número de habitantes, “com uma confluência de novidades e melhorias inéditas, seriam o território por excelência do cosmopolitismo” (PRYSTHON, s/d). FLORA THOMé: ESCRITORA INTERIORANA MEMORIALISTA E COSMOPOLITA Flora Thomé é uma escritora do interior de Mato Grosso do Sul, natural de Três Lagoas, tem 81 anos e vive atenta ao mundo das informações e das artes, não só de sua cidade, como de várias partes do mundo. Ela viajou por diversos países, como Espanha,

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França, Itália, Portugal, Inglaterra, Estados Unidos, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Suécia, Noruega. Sobre Paris, Thomé escreveu a crônica Paris é uma festa movel(1997) numa clara intertextualidade com a obra Paris é uma festa do escritor inglês norte-americano Ernest Hemingway, em que a autora apresenta sensações de suas andanças pelas ruas da capital francesa, bem como marcas de sua flanerie na cidade de Baudelaire, o flâneur[2] por excelência. Thomé tem uma visão cosmopolita, o que pode ser percebido no prefácio de sua obra Retratos (1993), como em outros textos por ela produzidos, como na crônica Quem somos nós? (2009) na qual aborda questões referentes à identidade do povo que compõe esta cidade fruto de uma mistura, verdadeira amálgama cultural composta por pessoas das mais diferentes regiões brasileiras e variadas etnias:

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Ao redor das três lagoas, mineiros, goianos, paulistas, nordestinos, árabes, portugueses, japoneses, espanhóis e outros se juntaram e formaram a população do município de Três Lagoas. (...) Cada um desses “imigrantes” trouxe de suas regiões seus usos e costumes, formas diferentes de expressar e de viver e que o tempo encarregou de alterar em decorrência da interação social (THOMÉ, 2009).

A crônica é permeada pelo “dever de memória” proposto por Paul Ricoueur, em que este destaca a busca do entendimento da memória ligado à ideia de obrigação, o dever de memória, que vai de encontro ao esquecimento (2007, p. 99-104): “(...) O que nos identifica como três-lagoenses? Qual a nossa marca registrada? À procura de respostas a estas indagações fui em busca de nossa memória cultural (THOMÉ, 2009)”. Em sua busca, Thomé demonstra preocupações com a memória coletiva de sua gente. E reconhece que se no passado, já não era fácil fazer um “tombamento” desta grandeza, maiores seriam as dificuldades 2 Flâneur: termo do idioma francês usado para designar uma figura que dedica seu tempo a vagar pelas ruas, no intento de observar o que acontece ao seu redor, de captar “algo mais”, em geral perene no cenário urbano.


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em tempo de globalização, tempo de maior fragmentação e descentramento do sujeito:

como tentativa de salvar do esquecimento imagens do “ser assim” de sua aldeia que podem ser resgatadas através da rememoração:

Se nos primórdios de nossa formação, além da imprensa, sempre presente no registro de nossa história, o rádio era nosso único contato com o que acontecia “lá fora” e, mesmo assim, não tivemos características próprias que realmente nos identificassem (...), imaginem hoje com TV, celular, computador, satélites, etc, etc. Quando há um vocabulário universal que possibilita a comunicação com os outros povos e civilizações. Neste mundo globalizado, este levantamento de informações constitui, pois, apenas registros de comportamentos e idéias, enfoques e observações que supomos ser os principais sobre usos costumes e vivências da cidade fundada pelo Ilustre Antonio Trajano (THOMÉ, 2009, s/p).

É fácil evidenciar que o imenso universo também reside na aldeia, e ele, quase por inteiro, encontra-se na alma, no coração e no âmago dos seres que habitam ou vivem em qualquer local, grande ou pequeno, próximo ou remoto (...) A aldeia é síntese do universo; (...) Sob a força dessas idéias, uma porção de tipos surge-nos como manifestações de um antropologismo cultural existente aqui/ali; no ontem/hoje (...). (THOMÉ, 1993, s/p)

RETRATOS: ESPELHO MÁGICO DO UNIVERSO É no livro de poemas, Retratos (1993) que Flora Thomé apresenta uma vasta galeria de personagens transitando pelas avenidas, vielas, praças e becos, casas, grupos, famílias, de pessoas que circulavam pela cidade de Três Lagoas, microcosmo representante de um macrocosmo que é a sociedade humana em todos os lugares e épocas, portanto, “espelho do universo” (THOMÉ, 1993, s/p). No prefácio da obra, a autora declara que para apresentar os moradores de sua cidade, buscou “capturar imagens/mitos que representam as diversas categorias humanas e sociais” de sua aldeia. Ao usar a expressão “capturar imagens”, podemos perceber a tentativa da poeta de tentar eternizar, cristalizar o efêmero, o evanescente, a imagem, que não se pode aprisionar, apreender. Para tal, Thomé reconhece que, na ordem dos valores cognitivos, para elaborar sua escritura, “a memória é conhecimento por excelência”, e que “o registro desses vultos e sua maneira de ser, agir e reagir conferem-lhes uma espécie de conceito ‘espelho mágico do universo’”. Thomé recorre ao fenômeno mnemônico

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Tal postura demonstra não ter a autora uma mentalidade reducionista, ao pensar que somente a cultura local pode ser boa e que as formas culturais globais devem ser condenadas como formas de manipulação do imperialismo cultural. Para a escritora e intelectual, está claro que cada cultura tem suas hierarquias e estratificações sociais que variam de acordo com a peculiaridade de suas próprias histórias; que está em consonância com o pensamento de Maurice Halbwachs: “De todas as interferências coletivas que correspondem à vida dos grupos, a lembrança é como a fronteira e o limite: ela está na interseção de muitas correntes do pensamento coletivo” (2006, p.13). A memória de Flora não registrou apenas fatos sociais de sua aldeia. Ela faz biografias em forma de versos, sobre a vida de pessoas célebres de sua aldeia, mas também sobre a vida de imagens a-históricas, que vivem à margem do sistema, da sociedade. Pessoas simples que, em função de seu silêncio, não tinham vozes para serem ouvidas. De certa forma, ela faz as vezes de um porta-voz daqueles que faziam parte das crônicas subumanas de Três Lagoas: “Conviver com os vultos/imagens a-históricos, soltos por aí, é resgatar a posse imaginária de um passado. São imagens/mitos que revelam o passado, expressam o presente e projetam ao futuro toda uma codificação da realidade e do conhecimento humano” (THOMÉ, 1993). A preocupação da autora com o resgate da posse imaginária de um passado, a partir


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de imagens/mitos que expressam o presente e projetam ao futuro remete a Santo Agostinho, que sobre o tempo afirma: “É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras” (SANTO AGOSTINHO, 1987, p.222). Flora Thomé chama a obra Retratos de “nosso patrimônio humano” (THOMÉ, 2011, p.111), pois o sentido desta obra extrapola as fronteiras de sua cidade, podendo interessar a todo aquele que dela não faz parte. No prefácio, ela afirma: Nesse trabalho tentamos capturar imagens/mitos que representaram e representam as diversas categorias humanas e sociais de nossa aldeia. Sem elas, a própria cidade não existiria. O conhecimento e o registro desses vultos e sua maneira de ser, agir e reagir conferem-lhes uma espécie de conceito “espelho mágico do universo”, pois, na ordem dos valores cognitivos, “a memória é conhecimento por excelência” (THOMÉ, 1993).

Para registrar suas imagens, como um flâneur ao caminhar ou vagar pelas ruas, Flora observa o que acontece ao seu redor buscando captar um “algo mais”, que os transeuntes menos observadores não percebem. Nessa condição de flaneuse, ao locomover-se sem pressa, ela registrou nos arquivos da memória cenas, fatos, personagens que a outros olhos passariam normalmente despercebidos. Na obra Retratos, Flora Thomé não restringe seu olhar a um grupo social. Ela contempla a cidade com olhos de quem a vê através da movimentação da cidade, ao captar o trânsito dos vários tipos de pessoas advindas dos mais variados extratos sociais, seja do círculo dos intelectuais, dos políticos, das “donas de casa”, dos artistas. E ainda encontra beleza particular na existência errante dos subterrâneos sociais da cidade, onde mulheres de má reputação, loucos, e mendigos lutam pela sobrevivência. Assim,

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o leitor é levado a percorrer “um mundo dentro de uma aldeia” (THOMÉ, 1993), como a autora mesma se referiu a Três Lagoas, em que ficará face a face com belezas e com a gravidade da existência. Ao escrever sobre Paris nas primeiras décadas do século XIX, Baudelaire foi fundador de uma poesia voltada para a cidade e dela originada. Em seus textos, ele revela as faces de uma cidade caótica e opressora, apresentando seu caráter paradoxal, que aponta tanto para a atração como para a repulsa. Flora Thomé também dirige sua poesia para a cidade, no caso, Três Lagoas, na qual buscou experiências que pudessem ser agregadas ao seu fazer poético. Como Baudelaire, Ela também demonstra aspectos paradoxais de sua cidade, ao apresentar personagens tanto dos espaços centrais como os da periferia, “crônicas humanas e subumanas”. Thomé registra o movimento das ruas, as cenas estáticas, os agrupamentos humanos, o barulho, o tráfego, a atmosfera típica do ambiente citadino. Retratos foi publicado em 1993, mas a maioria de seus poemas já estava guardada há muito tempo, frutos da observação de muitos anos. Muitos personagens faziam parte das memórias da infância da autora. Aos 81 anos, ao ser questionada sobre a personagem Maria da Valéria, mulher que vagava pelas ruas de Três Lagoas a “espantar a enorme invisível mosca”, Flora diz: “a Maria da Valéria é aquela que está no poema...”. São décadas de distanciamento da personagem que conheceu há tantos anos atrás. Mas o que importam as informações adicionais, extratextuais? Segundo Lejeune: “Chega-se mais perto do segredo de um poema quando o poeta explica sua gênese, escreve a autobiografia de sua inspiração ou a de seu trabalho? ”(2009, p.97). Importa a Maria da Valéria ali registrada, cantada em forma de poema, guardada nos arquivos da memória ao jeito e estilo de Flora Thomé. Outras pessoas que conheceram a mulher registrada, pintada em verso a descreveriam da mesma maneira? E os outros poetas e artistas plásticos que conheceram os mesmos personagens cantados pela autora em sua lira poética como os registrariam? Isso dependeria


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do estilo de cada um deles, de seus modos de expressão. Segundo Perrone-Moisés, “Escritores contemporâneos dispõem da mesma língua, vivem a mesma história, mas podem ter escrituras totalmente diferentes porque a escritura depende do modo como o escritor vive essa história e pratica essa língua” (1978, p.36). A AVENIDA DE ONTEM, A AVENIDA DE HOJE E O SENHOR DO TEMPO As representações da cidade nas cenas captadas e descritas pela escritora, a partir de sua flânerie, devem ser lidas como textos que apreendem a cidade, que em si mesma já pode ser entendida como discurso, pois a cidade tem sua própria linguagem, uma vez que o modo de ser e de viver, de falar de seus habitantes revela suas partes e seu todo. Ao escrever que “a aldeia é síntese do universo; e este, por sua vez, vitrine e mercado de todas as metáforas e nudezes”, Flora tem consciência de que a cidade por si só é carregada de uma linguagem própria. Para abordar a linguagem própria da cidade de Três Lagoas, optamos por trabalhar com o poema de abertura da obra Retratos, que fala sobre a avenida principal da cidade, a atual Avenida Trajano. No prefácio da obra, a autora comenta sobre a mesma: Em qualquer lugar há sempre uma avenida ou rua que é seu organismo mais vivo. Espaço físico, histórico, cultural, social ou afetivo onde homens e mulheres se integram e se completam numa contínua intersecção dinâmica. Passarela onde quase todos comungam e partilham das manifestações conscientes ou não, ou nas celebrações das crônicas humanas ou subhumanas. (THOMÉ, 1993, s/n)

Analisemos o poema de número 01 da galeria de Retratos: Ontem, Avenida Central/ Hoje, Antônio Trajano.// 80 anos de passarela!// Do sagrado ao profano,/ do homem ao animal, / das corridas de cavalo / à raivosa trepidação/ dos carros e motos!/ Gente miúda e graúda / num desfile permanente/

no registro do cotidiano! // No início,/ a lendária estação da NOB.../ No centro, / o solitário relógio.../ Mais adiante, / a Matriz / – reduto dos crentes...// E nesse mosaico / de apitos acenos ponteiros /preces cânticos / árvores areia pedras/ e silhuetas/ humanas animais e vegetais// há// 80 anos de passarela!// Ontem, Avenida Central...//Hoje, Antônio Trajano! //

A obra é iniciada com um poema que destaca a Avenida Central de Três Lagoas, assim chamada no passado e, atualmente, denominada Avenida Antonio Trajano, “que no organismo vivo de Três Lagoas é a artéria que mais pulsa” (THOMÉ, 1993, s/p). No prefácio da obra, esse organismo pulsante é descrito pela autora como:

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Espaço físico, histórico, cultural, social ou afetivo onde homens e mulheres se integram e se completam numa contínua intersecção dinâmica. Passarela onde quase todos comungam e partilham das manifestações conscientes ou não, ou nas celebrações das crônicas humanas ou subumanas. Mosaico das pequenas e grandes encenações e dos eventos no registro do cotidiano, ora belo e trágico, fantástico e cruel, sagrado e profano (THOMÉ, 1993).

É a partir dessa passarela que desfilam figuras muito peculiares. No girar do caleidoscópio, movem-se peças multicores, grandes e miúdas, imagens belas e grotescas estampadas na galeria de retratos aberta pela poeta. Como num mosaico, composto pelos mais diversificados tipos, formas e cores de materiais, a Avenida Trajano é marcada pela diversidade de pessoas, que no dizer de Flora, “conscientes ou não, comungam e partilham das manifestações, das celebrações das crônicas humanas ou subumanas” da cidade. O início do poema é marcado por um ritmo calmo, lento, pacato, como o tom presente em Cidadezinha qualquer (1982), de Carlos Drummond de Andrade: “Um burro vai devagar”. Mas com as inovações trazidas pela modernidade Três Lagoas passa de


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cidade pacata à cidade entrecortada por ruidosas ruas: “Do tropel das corridas de cavalo da Avenida Central de ontem /à raivosa trepidação / dos carros e motos!/ da Avenida Trajano de hoje”. Os cavalos dos tempos idos são substituídos pela força dos cavalos que move os carros modernos, pelo barulho das motos, são os ruídos trazidos pela modernidade. Como num flashback, Flora deixa de lado o barulho dos motores, voltando-se para o passado. Relembra a lendária estação da NOB (Estrada de ferro Noroeste do Brasil). Quantas lendas, mistérios, sonhos, frustrações envolveriam a porta de entrada e saída para tantos lugares do Brasil? No passado, a esperança de progresso, campo de trabalho, passaporte para negócios e aventuras, encontros e reencontros de amores. Depois, o que restou? Os aposentados da NOB, que diariamente - como se tivessem que continuar a bater o ponto e cumprir seus deveres - se encontravam no correio, no “umbigo da praça”, em frente à antiga estação. Baudelaire compara o flâneur a um espelho tão grande quanto à multidão ou a um caleidoscópio equipado com consciência que, a cada mexida no tubo, capta a configuração de uma vida multifacetada, como intrigante mosaico, a apresentação de seus elementos. É o que Flora faz nessa poesia. Ela capta o ir e vir de gente miúda e graúda – seja em estatura ou estratificação social. Com os sentidos ligados, capta apitos - dos guardas de trânsito, de fábricas, do trem ao longe; acenos, ponteiros - de relógios, de mostradores de velocidade dos veículos, indicadores de temperatura: “E nesse mosaico / de apitos acenos ponteiros /preces cânticos / árvores areia pedras/ e silhuetas/ humanas animais e vegetais”. É a vida multifacetada, fragmentada sendo medida, graduada e norteada, o que se percebe pelo uso de signos que denotam as convenções e imposições da vida moderna. Pela passarela da Avenida Central, o descompasso do tráfego de paradoxos, pois pelo mesmo chão transitavam romarias, beatas e prostitutas, marcando o compasso da vida, que oscilava entre o “sagrado e o profano”. No final do poema, o uso da interjeição exclamativa: “há”, como

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se um suspiro enfatizasse o Chronos[3] : “ 80 anos de passarela!” E a autora termina o poema com os mesmos versos com que abre sua a obra Retratos: “Ontem, Avenida Central, hoje, Antônio Trajano!”. À porta da galeria de Retratos, eis a chave: o ontem e o hoje se entrecruzando nos arquivos da memória. Na estrofe central da poesia, uma importante imagem se sobressai: no centro da artéria viva e pulsante, “o solitário relógio...”. O verso é uma referência a um grande relógio, que existe desde 1936, está localizado no Centro da cidade, tem uma altura de dez metros e é um exemplo de art déco. Em 1982, a prefeitura realizou seu tombamento. O gigantesco relógio é conhecido como “O senhor do Tempo”, que com seus ponteiros persiste em marcar as horas deste desfilar paradoxal das “crônicas humanas e subumanas”, “do sagrado ao profano” na principal passarela da cidade e da existência das águas do tempo do povo das cidade das Três Lagoas. 163

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Se em tempos de globalização exige-se do mundo novas posturas, adaptações, modernizações para o mercado de trabalho, para o modo de viver, também dos críticos culturais, do críticos literários exigem-se novas posturas. É preciso revisão de posturas, de conceitos, de métodos de análises. Para Leila Perrone-Moisés, “Os escritores da alta modernidade, como criadores e como leitores críticos, no levam a rever o trabalho de desconstrução efetuado nas últimas décadas. Rever não significa voltar atrás, mas avaliar o novo momento e as novas estratégias por ele exigidas” (PERRONE-MOISÉS, p. 214). Tal consideração lembranos o processo de mudança pelo qual a escritora aqui estudada, Flora Thomé, se propôs a passar, ao perceber a nova dinâmica do momento que estava vivendo, quando se deu conta da importância da rapidez num mundo tão agitado. Foi quando de dispôs a ir atrás de novas maneiras de expressar sua arte. A poeta, que já Chronos: tempo em grego.

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trabalhava com a composição de poemas concisos, foi em busca de maior grau de concisão e precisão. Ousou aprender o que podia sobre a composição de haicais, indo inclusive “beber na fonte” do mestre japonês Matsuo Bashô. Thomé retomou poemas já compostos metamorfoseando-os em haicais; criou novos haicais, reconfigurou-se. Tal qual a poeta que assimilou uma nova maneira de composição, também a crítica deve estar aberta a mudanças diante das novas modalidades que o mundo globalizado exige. Terminamos nossas reflexões, destacando o tema da memória, com um texto de Flora Thomé, poema em pílula presente em seu livro de haicais Nas Águas do Tempo (2002):

PRYSTHON, Ângela. Cosmopolitismo, Identidade e Tecnologia: embates culturais no contemporâneo. Acessado em 08.07.2011. Disponível em: http://www.semiosfera. eco.ufrj.br/anteriores/semiosfera02/expressao/txtpens2. htm#autor#autor RICOEUR, Paul, 1993. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. da Unicamp, 2007. SÁ ROSA, Maria da Glória. NOGUEIRA, Albana Xavier. A literatura Sul-mato-grossense na ótica de seus construtores. Campo Grande: Ed. Life, 2011.

Decifrar o tempo do relógio ou dos sonhos. Mistério da vida

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2006. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. O homem e o tempo – Livro XI. In: Coleção Os pensadores. 4ª Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. 165

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SOUZA, Eneida M. Tempo de Pós-crítica. 2007. THOMÉ, Flora. Haicais. Araçatuba: Gráfica, 1999. THOMÉ, Flora. Nas águas do tempo. Araçatuba-SP, Gráfica araçatubense LTDA. 2002.

HUYSSEN, Andréas. Literatura e Cultura no Contexto Global. In:Valores: arte, mercado, política. BH: Ed. UFMG/ BRALIC, 2002.

THOMÉ, Flora. Retratos. Três Lagoas: Fotolitos e Arte Final, 1993.

HUYSSEN, Andréas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

THOMÉ, Flora. Quem somos nós? In: Jornal Do Povo De Três Lagoas. Disponível em <http://www.jptl.com.br/?pag=ver_ colunistas&id=8 > Acesso em 08.04.2009.

PERRONE-Moisés, Leila. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1978.


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POESIA E FILOSOFIA EM CECÍLIA MEIRELES E HEIDEGGER: POSSIBILIDADE DE DIÁLOGO Delvanir LOPES (Unesp/ Assis- FAPESP) RESUMO: O presente artigo trata da possibilidade de comunicação entre duas áreas fronteiriças de conhecimentos: poesia e filosofia. Trata-se de um recorte da tese de doutoramento que estuda a obra Solombra, de Cecilia Meireles, cuja análise é iluminada pelas ideias heideggerianas. O pensador alemão mostra preocupação, em sua chamada “segunda fase”, com o fazer poético, e passa a direcionar seus estudos à essa área. Para ele, só a linguagem poética possibilitaria a verdadeira alethéia, ou o que vai chamar de desvelamento do ser. Pensamento do ser e dizer poético se entrelaçam e quebram suas fronteiras, o que não significaria que perdem as suas identidades. A obra da autora carioca, Solombra, possibilita esse diálogo com a filosofia por inúmeras razões. Comporta uma linguagem hermética ou “abstracionista” no dizer de Leila Gouvêa; é um trabalho de amor à palavra – tal qual a filosofia –; além de sugerir nos seus versos uma preocupação existencial sobre o estar-no-mundo, a angústia, sobre a efemeridade dos instantes. Nesse sentido é que a poesia ceciliana representaria uma possibilidade de clareamento da verdade, portanto, da alethéia a que Heidegger se refere. Portanto, seja nos temas desenvolvidos pela poetisa ou pelo pensador, filosofia e poesia travam um diálogo produtivo, ambos exigindo do leitor reflexão e análise. PALAVRAS-CHAVE: Cecília Meireles, poesia, Heidegger

Introdução Cecília Meireles é umas das poetisas mais populares do Brasil, mas sua obra não tem sido privilegiada o bastante pela crítica, principalmente quando nos referimos aos seus últimos livros. É o que acontece com Solombra (1963). Ainda que a temática encontrada nos versos de Solombra pareça ser um continuísmo dos traços já vistos em toda a sua obra poética desde Viagem,

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quais sejam os questionamentos do poeta acerca do existir, do estar-no-mundo, da efemeridade da existência e do ser-para-amorte entre outros, o tratamento dado a esses temas recebe um novo significado quando são trabalhados nesta sua última obra poética publicada ainda em vida. No nosso entender o eu-lírico de Solombra é em conflito e vivencia situações concretas e angustiantes, e o poeta tornase porta-voz do plano transcendente, traduzindo a sua leitura de mundo em linguagem poética, tornando-se capaz de ouvir o Ser e trazer luz às indagações desse indivíduo. A poesia surge então como expressão singular dentre as expressões humanas, porque permite nomear e evocar a realidade transcendente. Tais considerações são possíveis a partir das considerações advindas da filosofia, e de um pensador em particular, Heidegger, escolhido para realizar a ponte com a poiesis. Nossa intenção não é reduzir poesia à filosofia, mas mostrar a filosofia como possibilitadora de clarificação poética. Para tanto, o ensaio divide-se em três partes principais. Na primeira delas situo o leitor na obra de Cecília e na possibilidade de leitura a partir do ideário de Heidegger. Nas duas outras partes, mostro, a partir de um dos poemas da obra, a análise sem e com as ideias filosóficas, justamente para salientar a pertinência desta chave de leitura escolhida. A obra Solombra Solombra é composta por 28 poemas igualmente formados por três tercetos e terminando com um verso isolado. A estrutura assemelha-se à terza-rima, a mesma presente na Divina Comédia de Dante Alighieri. Cecília Meireles, contudo, não traz a preocupação com a engenhosidade das rimas, e compõe seus poemas em versos livres, modernos. A obra trabalha com o ser em trânsito pela experiência da vida e a criação poética é produto de uma vivência interior do poeta, vivência que sobressai nos versos e traz indagações e sentidos à realidade. É a própria Cecília quem, em entrevista a Walmir Ayala, afirma: “Parece que os poemas são


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apenas o resultado de um diálogo do espírito com o mundo. Do meu espírito ou do Espírito [...] De permeio está, naturalmente a palavra, por ser a forma de expressão literária.” (AYALA, 1958, não paginado) O desejo de transcender o que é imediato faz com que Cecília valorize a intuição para atingir o lado escuro das coisas. Quanto mais os poemas penetram nos domínios do desconhecido e misterioso, mais o campo imagético ceciliano se torna fugidio e abstrato, como forma de sintonizar-se ao êxtase místico e intuitivo da autora. Talvez seja por esses motivos (entre outros) que Solombra é, segundo Leila Gouvêa, o livro mais abstracionista de Cecília Meireles. Em Solombra a busca do absoluto atinge o seu ponto mais alto e autora e escrita parecem completar as suas trajetórias. Em Solombra Cecília Meireles parece dar continuidade à sua sede de completa transformação e aproximação com o Ser. O eu-lírico compreende que a vida é um muro que precisa ser cruzado: “Caminho pelo acaso dos meus muros/ buscando a explicação dos meus segredos. [...]” (MEIRELES, 2001, p. 1267) A proposta ceciliana está em harmonizar o subjetivo com o objetivo, o ideal com o real, e nesse processo construir um universo poético seu, surpreendente e intenso. Do mesmo modo, Solombra vasculha os estados da alma, tendo a palavra como seu meio. E nesse processo de entrar no âmago do ser humano, descobre os vários níveis existenciais que estão presentes nesse homem, procurando desvelá-los. Assim é que temas tão intrínsecos como: angústia e aproximação da morte, consciência da efemeridade do mundo e ânsia pela transcendência, vivência de situações limítrofes e busca de sua decifração, são recorrentes em Solombra. Nos poemas é perceptível a presença de uma segunda pessoa (um tu intratextual) com quem o eu-lírico de Solombra dialoga. Esse “ser” idealizado, com aura de transcendência, é o que busca o eulírico, embora aproximar-se dele não seja tarefa fácil: “Dizei-me vosso nome! Acendei vossa ausência!” (MEIRELES, 2001, p. 1279), repete insistentemente. Em Solombra, e em Cecília, as palavras

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têm a capacidade de realizar a correspondência entre divino e humano, entre Ser e ente, entre transcendência e realidade. E a poesia possui a capacidade de colocar o homem em relação direta com o Ser, relação essa em que o poeta é privilegiado, porque a sua linguagem é que permite esse encontro. Em Solombra e no trabalho que Cecília realiza sobre a palavra, a preocupação se verifica desde a escolha do título que dá nome à obra. A esse respeito é a própria Cecília quem esclarece: O que me fascina é a palavra que descubro, uma palavra antiga abandonada e que já pertenceu a tanta gente que viveu e sofreu! [...] Tenho pena de ver uma palavra que morre. Me dá logo vontade de pô-la viva de novo. Solombra, meu novo livro, é uma palavra que encontrei por acaso e que é o nome antigo de sombra. Era o título que eu buscava e a palavra viveu de novo. (BLOCH, 1989, p. 33)

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Ao primeiro olhar é o título do livro que prende a atenção e leva o leitor e também os críticos a várias conjecturas. Some-se a isso a epígrafe inicial que, semelhante a uma passagem bíblica, em que vozes celestes e terrenas dizem “solombra”, e o instauram como um vocábulo por si só enigmático, hermético: “Levantei os olhos para ver quem falava. Mas apenas ouvi as vozes combaterem. E vi que era no Céu e na Terra. E disseram-me: Solombra!” (MEIRELES, 2001, p. 1262) Na obra ceciliana as palavras são como símbolos a serem decifrados ou enigmas a serem descobertos. Assim como em Baudelaire, a poesia adquire a instância de ser uma atividade intelectual e de ser uma possibilidade de compreensão do enigma da vida. Em Cecília, se cada poema é um enigma (e assim são as palavras), é por ser um misto de inspiração e pensamento. A análise que fazemos dos versos de Solombra volta-se à literatura brasileira. O existencialismo é apenas um ideário no qual buscaremos auxílio para a de decifração dos profundos estados da alma que Cecília Meireles apresenta na obra. Desse modo, os conhecimentos filosóficos vêm em apoio à poesia, como meio não


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para explicá-la ou como sistema que pretenda reduzir-se a uma leitura da “poética existencial” de Cecília, mas como instrumental para ajudar a compreendê-la melhor. Os estudos de Heidegger nos dão subsídios para perceber as situações-limite e angústia, os sentimentos de aproximação da morte, a temporalidade e a alethéia e poiesis presentes, também, nos poemas de Solombra. Essa troca proporcionará um aprendizado de ambos, filósofos e poetas. É por isso que a abordagem que propomos não é o mesmo que tentar encontrar, forçosamente, filosofia na poesia ceciliana, mas sim trazer à tona a latência e a possibilidade de uma leitura existencialista que acreditamos haver em Solombra. Em A origem da obra de arte, Hölderlin e a essência da poesia (1939) e outras obras da chamada “segunda fase” heideggeriana e que apresentam o que já fora delineado em Ser e Tempo (1927), Heidegger também procura harmonizar a arte poética com a Verdade, sendo a poesia o veículo que possibilitaria a revelação ou abertura do Ser. E o homem, no caso o poeta, nunca repousa no ser, mas está sempre além de si mesmo, no devir do ser, na sua transcendência, nunca vivendo o “tempo-do-agora”, mesmo porque o agora é sempre fugidio. Quando Heidegger parte para a reflexão ontológica que tem a linguagem como fundamento, é porque acredita que aí está a “resposta” que permite a plena epifania do ser. Na poesia, a linguagem passa a ser o próprio ser e para encontrá-lo é preciso “habitar” nele. O poeta é “pastor do ser” e como mantém uma relação direta com ele, é guarda da Verdade. O desvelar – alethéia – do ser ocorre dentro do que Heidegger chama de linguagem autêntica: a poesia, que é a casa do ser. A partir dessa averiguação, o ser torna-se então iluminador da existência, um clareador da verdade. Análise de poema Mas de que modo essa conceituação teórica heideggeriana poderia mostrar-se na análise poética dos textos de Solombra? De

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que modo elas poderiam representar um suporte à compreensão literária? Proponho então um estudo-exemplo de um poema de Solombra, em dois momentos: primeiro sem a filosofia e depois com ela, para ampliar a nossa compreensão. Escolhi, para isso, o poema número cinco: Falar contigo. Andar lentamente falando Com as palavras do sono (as da infância, as da morte) Dizer com claridade o que existe em segredo. Ir falando contigo, e não ver mundo ou gente. E nem sequer te ver – mas ver eterno o instante. No mar da vida ser coral de pensamento. Felicidade? Não, Voz solene. Entre nuvens, Seta sempre constante à direção remota: Nascimento? Vontade? Intenção? Cativeiro?

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Humildade de amar só por amar. Sem prêmio Que não seja o de dar cada dia o seu dia Breve, talvez; límpido, às vezes; sempre isento. Ir dando a vida até morrer. (MEIRELES, 2001, p. 1265-1266)

O poema segue a mesma estrutura desenvolvida nos demais de Solombra, ou seja: são 4 estrofes compostas de 3 versos e um verso final isolado. Uma espécie de terza-rima, embora sem a preocupação da concordância sonora dos versos, alguns dos quais encerrando uma ideia completa, como é o caso do verso final. Em outros, o pensamento é distribuído na estrofe toda, com os versos se diluindo na forma de enjambements, que provocam um choque entre o som, a organização sintática e o sentido, caracterizando a tensão que veremos existe no poema acima. Os verbos estão ora no infinitivo (falar/ dizer/ não ver/ te ver/ mas ver/ ser/ amar/ dar/ morrer), ora formam uma locução com outro verbo no gerúndio (andar...falando/ ir falando/ ir dando) e por duas vezes estão no presente (existe – indicativo; seja -


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subjuntivo). Como percebemos, o eu-lírico, ao fazer uso dos verbos no infinitivo impessoal, deixa claro que não trata de nenhum ser específico, embora se inclua no meio deles ao afirmar a existência de um Outro com quem busca travar uma relação, falando. Busca a universalidade, não a especificidade dos seres, colocando-os todos num mesmo processo de existência, que é o de “ir”, embora lentamente, falando com esse “tu”, para que alcance a claridade daquilo que está em segredo. Fica patente que é uma caminhada constante que vai desembocar na morte, é um andar pelo existir, é um “ir”, é um “falar”, mesmo que com as palavras do sono. São ações presentificadas pelo eu-lírico, embora não fique claro se se trata de algo que acontece como uma rotina (andar falando/ ir falando), ou se é um desejo de que isso aconteça. Fica claro também que estão no “presente” do eu-lírico que, vivendo, percebe o passar da vida que vai se acabando com a aproximação da morte. O presente fica patente também no uso dos verbos “existe” e no verbo “seja”, embora o primeiro pareça indicar que se trata de uma certeza (existem segredos a serem clarificados) e o segundo indique uma vagueza, uma dúvida instaurada (o dar cada dia o dia -límpido? isento?- breve até a morte). Os versos desse poema de Solombra confirmam muitas destas suposições feitas com respeito aos verbos usados. Vejamos algumas dessas hipóteses. Logo de início o eu-lírico deixa-nos em dúvida sobre o ato em si: ele anda lentamente falando com o Outro ou é apenas um desejo o de falar com ele? Talvez esse eu-lírico acredite que a “conversa” com o Outro possa clarear muitos dos seus enigmas, possa resolver seus anseios existenciais. As palavras desse diálogo são do sono, que deixa claro aqui se referir àquelas da infância, da morte, do passado (dormem na lembrança, na memória) ou às do futuro (dormem porque ainda são projetos, são devaneios). A inconsciência do sono que dialoga com a consciência e traz à tona, clarificados, muitos dos constantes enigmas do eulírico. Trata-se de um caminhar que, ao acontecer, deixa de lado tudo o

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mais (mundo/ gente), tamanha deve ser a importância que adquire esse diálogo para o eu-lírico. O Outro adquire o valor do sagrado, do que não se vê, mas que tem assegurada a sua existência; Absoluto. Na relação com o divino, são mais importantes as palavras do diálogo do que a própria visão do Outro (e nem sequer te ver), assim como adquire um valor eterno esse instante em que acontece a ação. Instante indica o que ameaça, o que está iminente, próximo e, portanto, é o que sempre está para acontecer, pendente. O eulírico quer um instante completo, eterno (ver eterno o instante), que não signifique mais a constante mudança, mas a certeza, a plenitude. Importante é na vida (considerada como um mar) ser coral de pensamento. Aqui duas simbologias são extremamente importantes para clarificarmos nossas concepções a respeito do poema. Primeira, o fato de que vida é mudança – mar: a água implica tanto a morte como o renascimento. O eu-lírico, no poema, mora na água como coral, que é a segunda simbologia. Assim no verso no mar da vida ser coral de pensamento, temos: no mar, que é a vida, e que está em constante mudança, o eu-lírico tem um desejo, que é o de ser em meio à mudança, um coral – um ponto fixo – de pensamento. Não quer “pensamentos” porque isso novamente indicaria mudanças. Quer a precisão e a objetividade de um pensamento. Isso vale para o instante, uma vez que esse também, como o tempo, muda o “tempo todo”, embora o desejo do eu-lírico é que ele seja eterno. O eu-lírico se questiona inúmeras vezes no verso 3, evidenciando sua dúvida quanto ao encontro e o diálogo com o Tu (Felicidade?/ Nascimento? Vontade? Intenção?/ Cativeiro?). O próprio eu-lírico responde que um encontro que acontece entre nuvens, é sombrio, onde a Voz do tu é solene, extremamente formal. Nuvens são referências a um mundo intermediário entre o formal e o informal, entre o mundo concreto e o mundo abstrato, e nesse caso correspondem ao mundo de “fenômenos e aparências, sempre em metamorfose, que escondem a identidade perene da


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verdade superior.” (CIRLOT, 2005, p. 420) Além disso, têm relação com a fertilidade e fecundidade e, segundo o antigo simbolismo cristão, as nuvens são assimiladas aos profetas, pois as profecias são uma água oculta de fertilização e de origem celeste, portadoras de mensagens. Nesse mundo de aparências, o habitar entre nuvens, embora elas estejam sempre em mudança, sugere a possibilidade da fertilidade e a manifestação do sagrado, pela figura do profeta. Compreendemos que, mesmo não sendo um diálogo fácil, há algo positivo neles. O contato com o Outro aponta, como uma seta sempre constante à direção remota (remoto não só indica o passado, mas o que é afastado, longe). A Voz que fala entre nuvens é como seta que indica a direção ao que ainda está distante, que não é imediato ou próximo. O que seria? As questões levantadas pelo eu-lírico com relação ao fato também carregam a transitoriedade e a ideia de mudança: Nascimento (nascer é mudança de não-nascido a nascido), vontade (envolve escolha, desejo, que mudam constantemente), intenção (planos, ideias mudam) e cativeiro (mudança de liberdade para prisão). Portanto, ao que tudo indica, o processo de constante mudança faz parte do mar da vida existencial do eu-lírico. Na estrofe quatro, a impressão que se tem é a de aceitação da limitação do eu-lírico em meio a tais mudanças, que parece tomar consciência de sua fraqueza, de sua inferioridade em relação ao Ser, ao Outro, daquele que carrega os enigmas e as suas clarificações para ele. Mas não significa resignação: o eu-lírico continua sua tarefa de questionador. Embora tenha aprendido a amar só por amar, cujo prêmio apenas é o de dar a cada dia o seu dia breve, talvez esse dia seja límpido, mas nem sempre. O advérbio talvez não indica certeza, mas possibilidade, mostrando que persiste nele a dúvida. Contudo, conclui ele, o dia é sempre isento. Ou seja, a vida continua, seja com dias límpidos ou não. Aliás, corrobora com esse pensamento o “fecho de ouro” do poema: ir dando a vida até morrer. Não acreditamos que há conotação de melancolia

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nessa “conclusão”, mas aceitação consciente e refletida da própria limitação.

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A claridade da filosofia As ideias de Heidegger são um instrumental a mais para nossa compreensão, dialogando com a poiesis ceciliana. Para o filósofo, a linguagem, a palavra e, sobretudo o fazer poético adquirem uma importância muito grande por serem possibilidades de colocar o ente homem em contato direto com o Ser. Este Ser é aquilo que é, antes de tudo. E o que é, é a própria possibilidade do ser-aí (Dasein). A existência é enquanto possibilidade como quando se nasce e a possibilidade de morrer aparece; ou quando se está com alguma vontade ou alguma intenção e a possibilidade iminente é realizar ou não o desejo; ou quando cativo e a possibilidade é ser libertado. “A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias. Sua vigília é consumar a manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam na linguagem”, nos afirma o pensador. (HEIDEGGER, 1967, p. 24-25) Fica claro que o Outro a quem o eulírico (que chamamos Dasein) se dirige – falar contigo–, é o Ser, que permite essa relação. Algumas vezes o filósofo fala da “voz” da consciência do Dasein autêntico como sendo o Ser – Voz solene. O ente quer alcançar a Verdade do Ser, sua essência, mas para isto depende da sua abertura (do Ser). Na existência, que é uma caminhada (andar), o ser procura o Ser pelo diálogo. Para Heidegger, o homem só está existindo (no mar da vida) quando está na clareira do Ser: (Andar lentamente falando/ com as palavras do sono...). Pela palavra podem se esclarecer os segredos (dizer com claridade o que existe em segredo) de todos os seres. A forma poética é onde se instaura o Ser com a palavra e o poeta, enquanto vate, “está expuesto a los relámpagos de Dios” (HEIDEGGER, 1958, p. 109) e tem primazia no uso delas. Portanto, o ato do Dasein falar, andar falando, deixa


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claro que “a linguagem é a casa do Ser. Nela morando, o homem ecsiste na medida em que pertence à Verdade do Ser, protegendo-a e guardando-a.” (HEIDEGGER, 1967, p. 55) Desse modo esclarecese também a afirmação do eu-lírico: no mar da vida ser coral de pensamento, uma vez que passamos a compreender que é o pensar, o pensamento, que nos levaria à essência do Ser: “O Ser possibilita o pensar. Querer poderoso, o Ser é ‘possível’. Como o elemento, o Ser é a ‘força silenciosa’ do poder que quer, isso é, do possível.” (HEIDEGGER, 1967, p. 30) O ente que questiona sobre seu existir vive na autenticidade. Esse ente é o homem, que não vive como coisa. É um “no mundo”, mas não um “do mundo”, pois compreende que no contato com as coisas é onde o Ser pode se revelar. Portanto, o Ser se clarifica para o homem quando este está no projeto da existência. O ente homem (ser), quando vive na autenticidade, não deve se preocupar com o cuidado com as coisas (ser-no-mundo) e nem com os outros (sercom-os-outros) (ir falando contigo, e não ver mundo ou gente). A experiência diante da abertura do Ser é particular, assim como a experiência da morte ou do sono. No momento de angústia diante da morte, ao sentir-se como um solus ipse, o Dasein torna-se autêntico. Autenticamente vê a morte que acontece a cada dia e momento e mesmo em todos os instantes (dar a cada dia o seu dia breve/ ir dando a vida até morrer), autenticamente aceita a morte não como contingência distante e indefinida, mas como sempre iminente, a cada instante possível e definida: “Así se desemboza la muerte como la posibilidad más peculiar, irreferente e irrebasable.” (HEIDEGGER, 1993, p. 274) O Dasein é preso ao tempo (Cativeiro?) em um mundo que não escolheu estar. Umas vezes o tempo é rápido demais, noutros é eterno; numas vezes é esclarecedor, límpido, noutros nos lança nas trevas. Contudo, o tempo é sempre isento, não interfere diretamente no andar do Dasein. Isso significa que este é quem precisa se apropriar do tempo, entendendo-o sempre como sendo a possibilidade da possibilidade e aceitando, entre elas, a mais real

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e evidente das possibilidades: a morte, sempre presente enquanto se vive (ir dando a vida até morrer). O ser autêntico vive o tempo banal com-os-outros (Das Man), tem humildade de amar só por amar. Sem prêmio/ que não seja de dar cada dia o seu dia ..., embora o viva com certo afastamento, uma vez que, com a experiência antecipadora da morte, sabe do nada dos projetos do mundo e da existência. O Dasein quer o tempo do instante e a eternidade que ele traz consigo. No instante, presente, passado e futuro estão unidos, embora o tempo não possa ser fragmentado, uma vez que ele é e não é o tempo todo. Vejamos como isso acontece no poema: Andar lentamente falando/ com as palavras do sono - agora- (as da infância –não-mais-agora-, as da morte –ainda-não-agora). O eulírico fala com as palavras do sono, que aparentemente dormem, mas que indicam a possibilidade sempre presente do acordar, do manifestar-se, do revelar. O silêncio do sono, portanto, não significa omissão do Ser, mas é um dos modos de diálogo com ele. Nesse sentido podemos entender entre nuvens/ seta sempre constante à direção remota: o Dasein é um entre (entre nascimento e morte), e dirigindo-se à memória, antecipa o seu futuro. “Nessa decisão, revela-se o perfil da temporalidade autêntica: o futuro, que puxa a cadeia dos êxtases (ek-stasis), e uma antecipação; o passado, a retomada do que uma vez foi possível; e o presente, o instante da decisão.” (NUNES, 2002, p. 25) Assim como a Verdade, o Ser desvelado se mantém oculto, se distancia e se aproxima do Dasein, mesmo com a morte. Ele é pensado a partir dos entes, das coisas que-estão-aí (nascimento? Vontade? Intenção? Cativeiro?) e que são os lugares onde deveria estar o caminho para o Ser. Contudo, esse caminho rumo ao Ser, às vezes, é límpido, mas é sempre isento, uma vez que utilizar-se das coisas entendendo-as como possibilidades de transcendência é tarefa do Dasein, iluminado pelo Ser.


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Considerações finais A proposta de uma análise “filosófica” de Solombra é, como vimos, perfeitamente plausível, uma vez que a as ideias heideggerianas enriquecem nossa visão e dão novas possibilidades de leitura. Tal análise não anula a anterior, mas a complementa. Em Solombra há, portanto, filosofemas, que podem ser facilmente percebidos, e que também se encontram no pensador alemão: a antítese entre vida e morte, o eterno e transcendental em oposição ao material e fugaz, a angústia como elemento que movimenta o ser rumo ao absoluto, entre outros. Cecília Meireles trabalha com a reflexão, propondo para isso imagens sutis e frequentemente obscuras, musicalidades, paradoxos, jogos de palavras e ideias abstratas (conceptismo). Além disso, a tensão entre antropocentrismo e teocentrismo (dualismo), tão peculiar ao movimento barroco, revive em Cecília no uso que ela faz de antíteses. Nesse sentido, do real em oposição ao ideal, do transitório em oposição ao eterno ou ainda da existência em relação à transcendência, a imaginação poética de Cecília é um exercício místico que recria imagens, associações e metáforas, onde ser e estar são as condições que levam ao poetar. No jogo de luz e sombras, ou de projeções de luz e de sombra, Cecília Meireles cria mais uma via de ascese, na medida em que oculta e esconde ao mesmo tempo as manifestações do ser. No hic et nunc, na manipulação das coisas do mundo e na percepção da finitude que se manifesta em tudo é que o ser-para-amorte vai se descobrindo. O Dasein é dotado de mundo, e sem se ausentar dele é que poderá aproximar-se da autenticidade. O próprio Dasein é que possibilita a “clarificação” do mundo, ele mesmo é a sua “abertura”, nas palavras de Heidegger. É necessário que assuma a sua vida como própria e ouça o apelo do futuro e das suas possibilidades (entre essas a morte). “Afinal- disse Cecília na sua, talvez, última conferência, em 1963, pronunciada na Associação Brasileira de Imprensa-, um simples poema ou verso podem abrir

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ao leitor ‘uma claridade sobre a vida, o mundo, a sua condição, a morte, Deus’; ‘podem modificar as criaturas e muitas coisas na terra.’” (apud GOUVÊA, 2001, p. 47)

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Referências Bibliográficas AYALA, Walmir. A véspera do livro: Obra Poética de Cecília Meireles. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 30/11/1958, sem paginação. GOUVÊA, Leila V. B. A Capitania poética de Cecília Meireles. Cult- Revista Brasileira de Literatura. SP: Lemos Editorial & Gráficos Ltda, ano 5, 10/2001, p. 42-47. HEIDEGGER, Martin. Arte y Poesía. México-Buenos Aires: FCE, 1958. HEIDEGGER, Martin. Sobre o Humanismo. RJ: Edições Tempo Brasileiro Ltda, 1967. MEIRELES, Cecília. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. NUNES, Benedito. Heidegger & Ser e Tempo. Rio de Janeiro, 2002.

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Os textos de imprensa de Eça, mesmo escritos para jornais, conduzem o leitor a uma incursão no mundo real do final do século XIX, com nuances da linguagem literária. São textos mesclados de informação e opinião que revelam o ideário critico e revolucionário do Eça jornalista. O autor realiza uma escritura com intrigantes estratégias discursivas que promovem a conectividade do gênero jornalístico com o literário. Os relatos revestem-se de uma linguagem plurissignificativa. Estas estratégias não só conduzem-nos a uma analise subjetiva do contexto históricosocial e político que caracterizam uma época, como também, as relações interpessoais dos grupos dominantes da época. Sobre tal fato Miné e Cavalcante afirma:

LITERATURA E JORNALISMO Confluência de gêneros nos textos de imprensa de Eça de Queirós Édima de Souza MATTOS (UNESP/ASSIS) O presente artigo visa demonstrar a confluência entre os gêneros do discurso, literário e jornalístico, nos textos de imprensa de Eça de Queirós, denominados crônica, pelo autor. São textos enviados da Europa, principalmente França e Inglaterra e publicados no jornal Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, 1880 a 1897. A simbiose entre literatura e jornalismo esta referendada por meio do estilo de produção dos referidos textos do literato Eça de Queirós. A relação intrínseca entre Eça literato e o Eça jornalista deu-se por duas vias: utilização do jornal para divulgação de sua produção literária e pela vida profissional. Foi redator, diretor, cronista e correspondente de jornais pra o Brasil. É difícil separar as duas entidades: o literato e o jornalista. Assim, há necessidade de resgatar o Eça jornalista, visto que esta faceta é pouco explorada, nos estudos sobre o grande escritor. Eça, o jornalista, exemplifica-se pelas crônicas que compõem as correspondências ecianas que, mesmo sendo textos para jornal, resvalam entre a literariedade, a factualidade da noticia e a representação do real. O apoio teórico fundamentou-se nos principais estudiosos do gênero do discurso, do jornalismo, da literatura, da estilística, de linguística entre outros. Este artigo contempla, também, uma exemplificação do estilo eciano, nos textos de imprensa, a fim de demonstrar como ocorre, nas crônicas de Eça de Querirós, a confluência entre os gêneros jornalismo e literário na mídia impressa. Palavras chaves: Eça de Queiros, texto de imprensa, Gazeta de Noticia, literatura e jornalismo.

ENTIDADES INDISSOLÚVEIS: EÇA LITERATO E EÇA JORNALISTA É difícil separar o escritor literato do escritor jornalista.

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Assim é que fatos políticos e cotidianos, acontecimentos e questões de política nacional e internacional, retratos de personalidades, anedotas espraiadas, tudo se vê drenado e selecionado com a liberdade que ainda hoje marca o trabalho do cronista e, de certa forma, ainda a do correspondente, e que, no caso de Eça era irrestrita. (MINÉ; CAVALCANTE, 2002, p.16)

Segundo Travancas (1993), no século XIX, houve uma fase na história da imprensa francesa e da brasileira denominada literária. Assim, os jornais não eram essencialmente políticos e polêmicos, mas também, literários e mundanos. Na França, mesmo sendo um país de grande tradição cultural, os jornais literários são anteriores à Revolução Francesa. Mesmo quando se detém sobre o caderno noticiário, é fácil verificar que a notícia extrapola os limites da simples informação. Há uma gama de interesses humanitários, subjetivos que advém dos dados informativos: o quê? onde? quando? como? quem? O caráter factual e o ficcional, presente e passado subsidiam um ao outro e o suspense se atualiza em ambos. O referencial jornalístico que acompanha novas escavações, não é menos carregado de suspense que a narrativa jornalística romanceada,


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como o folhetim, a crônica, a reportagem, etc. O aspecto noticioso dá acesso ao ficcional e ambos se completam. Na segunda metade do século XIX e século XX, com um cenário conturbado, o real passou a denotar um problema complexo. O contexto das realidade é confuso, cheio de inúmeras e contraditórias interpretações. No campo jornalístico há um panorama escorredio. Não se pode ignorar que a realidade factual é anunciada por meio da linguagem, cuja construção reflete as relações sociais e econômicas do contexto. O jornal francês era adepto à presença da literatura na prática jornalística. Desde o início do século XIX, o jornalismo francês perfilou pela doutrinação e opinião, em detrimento da simples informação. Embora Jornalismo e Literatura aparentem gêneros conflitantes, a linguagem os aproximam. Antonio Olinto (2008, p.14-15), no prefácio de seu livro Jornalismo e literatura, afirma: Lembremo-nos, antes de tudo, de que a base do que faz o jornalista a matéria-prima de que utiliza, é a palavra. O que serve de caminho para a poesia transmite também a notícia da morte de uma criança sobre o asfalto. Entre os dois elementos, não há uma diferença técnica, a não ser em espécie e intensidade.

É esta matéria-prima, a palavra, que Eça de Queirós manobra muito bem ao redigir as correspondências enviadas para o jornal Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro. O trabalho exercido com as palavras promove uma perfeita simbiose entre factualidade e ficcionalidade, ou seja, jornalismo e literatura. A esteira do imediatismo jornalístico é tecida pela perenidade da obra literária, que dá vida à notícia, numa junção entre corpo e espírito. Para que a notícia jornalística atinja a solidez é necessária a fixação da realidade por meio da sensibilidade e da emoção calcadas na construção da linguagem literária. A palavra é a arma libertadora que pode despertar, no jornalista, a capacidade de expressar sentimentos humanos, reais. Quan-

do o homem, jornalista ou literário ou homem comum busca expressar este real, ele o faz como arte engajada, de combate, e com as realidades de seu coração, tal como fez Eça de Queirós. É nesse jogo com as palavras que o autor-jornalista trabalha o elemento da comunicação que transforma uma realidade remota em algo sensível, tocante, inteligível. São os elementos subjetivos de coesão e coerência da linguagem factual com a ficcional, que permitem ao leitor, no processo da leitura, vivenciar o fato narrado. Dá-se, então, a inter-relação jornalismo e literatura que, mesmo no plano inconsciente, se instala na mente do leitor.

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O jornalista que descreve procura colocar o leitor em posição visível de compreender o acontecimento, a narrativa, como localizado num determinado espaço. Há, em geral, necessidade de serem reerguidas, pedaço por pedaço, as paisagens que circundam os fatos e têm, às vezes, com eles, íntima relação, É um trabalho de verdadeiro arquiteto literário [...] (OLINTO, 2008 p. 39).

É inegável que o jornalismo se sustenta na descrição e na narrativa. A informação necessita apresentar esses elementos básicos para compreensão da notícia. A tessitura do texto jornalístico, ao responder essas questões, não se exime de promover uma aproximação do homem de jornal, seres humanos, com os dramas e os desesperos cotidianos. Desse modo, o Eça jornalista, um profissional da notícia demonstrou habilidade descritiva e domínio da técnica da narrativa, em seus textos de imprensa. O jornalismo, quando totalmente desprovido de interferências, torna-se uma rotina. Os fatos informam, mas não transformam posicionamentos do leitor, pois não há provocações. Repetição de palavras, informações que só “mudam de endereço” não possuem aplicação no mundo da realidade viva. Esse tipo de jornalismo não deixa marcas. Percebe-se que a linguagem verbal do jornalista Eça de Queirós


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dá a conceituação do “real” e confere “representatividade”; esta linguagem funciona como uma mediadora da relação interlocutora entre sujeito e mundo. E interlocução acontece por meio dos signos linguísticos utilizados pelo autor, os quais nascem com uma representação socioideológica. A escolha desses signos, muitas vezes, dá-se inconscientemente, na hora da informação jornalística. Eça, em seus textos, referenda a citação abaixo:

nos o mínimo de carga poética no trato com os acontecimentos presentificados e socialmente significativos? Eticamente, a resposta é clara: se os acontecimentos pautados nascem de um critério social, cujo significado se torna inquestionável, como não procurar a palavra mais próxima possível da essencialidade do acontecimento? (MEDINA, 1996, p. 214, grifo nosso).

EÇA ENTRE A LITERATURA E O JORNALISMO

Apesar da vocação para o ‘real’, o relato jornalístico sempre tem contornos ficcionais: ao causar a impressão de que o acontecimento está se desenvolvendo no momento da leitura, valoriza-se o instante em que vive, criando a aparência do acontecer em curso, isto é ficção. [...] Relatar acontecimentos significa construir um texto narrativo que Barthes (1973) já qualificou de simbólico e universal. (CASTRO; GALENO, 2005, p. 31).

Castro e Galeno (2005, p.53) afirmam ainda: Penso num jornalismo útil, imediato, informativo, formador e lucido. Penso numa ficção sem freios, interrogativa, inebriante. Vida exterior, identidade publica, diferente de identidade em transmutação, vida interior.

A citação acima, descreve, referenda os textos de imprensa de Eça de Queiros. O autor elabora um jornalismo formador, e inebriante, envolvente. Vida exterior (fatos) e vida interior (emoção) promovem uma inebriante interlocução. O autor cita a forma ideal do jornalismo impresso: a utilidade e informatividade da notícia e a interrogativa inebriante da literatura. Pode-se dizer, ainda, considerar que literatura e jornalismo se aproximam, quando a narrativa jornalística, rápida, exata e visível se encontra com a impossibilidade de constância da linguagem, com as multiplicidades dos significados das palavras. A palavra jornalística é, em geral, empobrecedora perante o real imediato. A palavra literária é, nas obras lógicas, reveladora de vivências profundas. Pode o jornalista perseguir pelo me-

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Eça de Queirós, como correspondente do exterior para o Brasil, explorou os recursos da linguagem literária para elaborar seus textos que não só revelam a sensibilidade do jornalista, como também, desnuda a personalidade sócia ideológica do grande escritor. Os textos ecianos para a imprensa exemplificam as estratégias discursivas do uso intenso da adjetivação, comparação metonímica, personificação, intertextualidade explícita, inferências interjetivas, uso do vocativo linguagem coloquial, sensação psíquicas voluptuosas, expressões exclamativas, interrogativas, reticência. Explora ainda, o gênero da caricatura, haja vista os textos “O Imperador Guilherme II – publicado em 26/04/1892 e Carnot – Morte e funeral de Carnot, publicado em 20/06; 10/11 / 13 agosto de 1894, e publicados na Gazeta de Noticias do Rio de Janeiro e compõem a obra Ecos de Paris, publicada em 1905. Outro aspecto notável na escritura dos textos é o “ponto de vista narrativo” adotado pelo autor. Tal fato ratifica a forte relação entre o enunciador e o enunciatário na narrativa queiroseana. O foco em primeira pessoa revela a intenção do autor em não permitir que o leitor tenha um posicionamento diferente do autor, pois o eu está sempre refletido no nós. Eça abusa do uso em primeira pessoa na desinência verbal, nos pronomes possesivos e oblíquos. Assim, autor e leitor formam uma só entidade, tornam-se cumplices do narrado. Nesse caminho de aproximar-se do leitor, Eça adota, em vários momentos da narrativa, a conversa com o mesmo, chama-o para dentro do texto


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e, com ele, caminham juntos emocional e ideologicamente. Neste artigo, destacamos o recurso da adjetivação que é um dos aspectos significativos do estilo de Eça. É fácil depreender que o factual da notícia torna-se mais real. Gregolin(2003, p.97) declara: “O que os textos de notícias oferecem não é realidade, mas uma construção que permite ao leitor reproduzir formulas simbólicas de representação da sua relação sua realidade concreta”. Nos textos de imprensa do jornalista Eça de Queirós, o signo linguístico atinge poder de humanização e tem-se a palavra-revelação, ou seja, cada adjetivo exposto traz um mundo de significados contextuais. Este processo não só amplia o fato, como também, revela o posicionamento do autor diante do ocorrido. É a adjetivação que plasma na memoria do leitor, os momentos marcantes dos acontecimentos históricos e sociais. Assim, tem-se, a seguir, exemplos de trechos retirados de textos de imprensa, como já citado, constantes na obra: “Ecos de Paris”, organizada por Luiz Magalhães Martins e publicada em 1905. Nos textos “A França e o Simão”, “As Eleições na França”, “A Itália e a França” e “Aliança Franco-Russa”, destacam-se os seguintes trechos: • “Quando os costumes internacionais eram mais doces e complacentes, e os [...]” • “[...] o Sol também amuou e o Horizonte todo apareceu colgado de longas e fuscas nuvens de crepe.” • “É a França enfim que está na deliciosa posse destes afrontos, que saboreiam a preciosa felicidade [...]” • Povos orientais gozavam [...] de uma feliz reputação. • Na câmara não haverá senão espíritos médios e planos [...]. • Torre airosa donde voem asas. • De resto, a Europa não está também estendida sobre rosas festivas.

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• O velho mundo é um verdadeiro hospício, onde o ar viciado pelas teorias se tornou mortífero. • Pachorrenta, alimentada a queijo e leite envoltos em névoas emolientes [...]. Os adjetivos: fuscas, nuvens de Crepes, costumes doces, preciosa felicidade, torre airosa, espírito médios e planos, rosas festivas, verdadeiro hospício e tornou-se mortífero, nestes trechos constroem um clima etéreo. São de exacerbada sensibilidade sensorial, cujo predomínio de imagens releva uma característica psíquica conforme afirma Da Cal (1969, p. 71): “Outra característica psíquica de Eça que transparece constantemente através de seu estilo é uma sensibilidade sensorial que atinge o voluptuoso”. Seguindo este percurso, chamam a atenção trechos do texto “A Espanha e o heroísmo Espanhol – As Questões das Carolinas”. 189

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• Há uma horrenda explosão uma nuvem de pó e de estilhas, gritos, o tropel e tumulto de uma catástrofe. • O teatro dos acontecimentos. A expressão ”teatro dos acontecimentos” é usada pela imprensa como eufemismo ao fato acontecido. Um palco teatral onde aconteceram várias encenações. Eça acrescenta “que é decerto um teatro ambulante”. Há uma alusão irônica, satírica, demonstrada por uma metáfora teatral. No trecho “Há uma horrenda explosão uma nuvem de pó e estilhas todo tropel e tumulto de uma catástrofe”, a transfiguração do acontecido eleva sua importância no contexto. Destaque, também deve ser conferido ao texto “O 14 de Julho Festas Oficiais - O Sião” (13 de agosto de 1893). • Nunca tivemos, com efeito, um 14 de julho mais silencioso, mais apagado, mais vazio, mais descontente.


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Da Cal (1969, p. 153) aponta a adjetivação nos textos de Eça como forte marca no estilo do autor:

desinteressa por Sião; os costumes do povo de Sião; Inglaterra possui mais indústrias e pessoal que a França. Se o objetivo do texto de imprensa foi, apenas, enviar notícias da França, estas ficaram ofuscadas pela narrativa subjetiva, literária de Eça. Constata-se, assim, que o caráter unidirecional da linguagem, a modalização e a transparência do texto jornalístico tornaram-se opacos pelas estratégias discursivas da literatura. Medina ressalta a característica da palavra em jornalismo:

“A adjetivação de Eça expõe com grande evidência [...] algumas das características básicas de sua maneira estética de ver e conceber a realidade, assim como certos traços essenciais do seu temperamento”.

É inegável que essa sequência de adjetivos provoca o encontro entre o físico e o etéreo, o intangível. Há um efeito sensorial fundamentado no fenômeno da prosopopeia bem elaborada. A matéria inerte ganha vida. Há uma adjetivação animista, com caráter sinestésico. O recurso estilístico da adjetivação, no texto, possui a missão de enfatizar o desinteresse do povo pelas festas oficiais. É uma crítica à falta de patriotismo do povo francês. Há subjacente a esse trecho a função jornalística de informar que o dia 14 de julho, na França, não foi comemorado pelos franceses, devido ao descontentamento com a República. Porém, com a estratégia literária da personificação a informação adquiriu valoração. Merece também destaque o texto a França e o Sião. O trecho “pessoalmente o rei é um homem excelente, cultivado, afável, gracejador, bondoso. É mesmo bonito para siamês”. Eça, ironicamente, faz uma descrição do rei de Sião por meio do contraste “É mesmo bonito, para siamês”. O adjetivo adquiriu uma característica de superlativação jocosa. O efeito cômico da caricatura é provocado pela adjetivação que se contrapõe à realidade. Esse efeito de contraste revela a frieza de Eça que tem como objetivo inserir o leitor no mundo queirosiano, ou seja, na raiz da prosa eciana. Na frase: “Outrora, quando os costumes internacionais eram mais doces e complacentes [...].”. Novamente, o adjetivo utilizado com o recurso da personificação: costumes complacentes. O sentido metafórico é reforçado pela expressão “doce”. Como texto jornalístico, Eça deveria relatar, objetivamente, os seguintes fatos: França apodera-se de Sião; Inglaterra se

A palavra jornalística é em geral empobrecedora perante o real imediato. A palavra literária é, nas obras logradas, reveladora de realidade essencial. Pode o jornalista perseguir pelo menos o mínimo de carga poética no trato com os acontecimentos presentificadores e socialmente significativo? Eticamente a resposta é clara: se os acontecimentos pautados nascem de um critério social, cujo significado se torna inquestionável, como não procurar a palavra mais próxima possível da essencialidade do acontecimento. (MEDINA, 1990, p. 28). 191

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A busca da confluência entre Jornalismo e Literatura nos textos de imprensa de Eça de Queirós desperta reflexões a respeito do papel da literatura e do jornalismo e as possibilidades de “criar efeitos”, ao manipular a palavra. Assim, resgatar as astúcias da enunciação do discurso eciano, ao elaborar notícias, é tomar consciência da força das palavras na construção do real. Eça não só escreveu a história, como também constituiu um saber histórico, um modo diferente de ler a história. Usou de indícios, sensibilidade, emoções e valores que, certamente, passariam despercebidos se os fatos fossem relatados numa visão puramente jornalística. Ao promover o encontro entre os aspectos da narrativa jornalística com a linguagem literária, o autor ratificou a palavra como alma do mundo na fusão das duas instâncias narrativas:


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jornalística e literária. Desse modo, instaurou um jogo narrativo capaz de ampliar “o acontecido” e dar-lhe presentividade. Eça explora a estrutura semântica da palavra a fim abrir novas possibilidades de significados, de reinterpretações. Nesta perspectiva, a palavra nasce do presente histórico, mas, amplia-se e adapta-se ao contemporâneo de modo persuasivo e dialético. Eça, pelo seu sensível talento de domínio e eficácia literária, implantou um “fazer jornalismo”, cujo trabalho com a linguagem resgata o que há de mais significante, mais pungente na notícia, pois elabora juízos de valor ao enunciado. O leitor eciano busca a notícia e é inundado por um mundo patético que o instiga a questionamentos intrigantes, a fim de entender e “reelaborar este mundo” a ele apresentado. Este artigo apresenta uma breve exemplificação da presença da adjetivação nos textos de imprensa de Eça como traço característico da subjetividade, do espírito crítico e irônico do autor. É pela adjetivação, como recurso de estratégias de linguagem que o leitor consegue uma interpretação do contexto histórico da época e do encontro do mundo físico com o mundo moral, social, humano. Esse processo de uso abundante dos adjetivos é uma das mais ricas formas de expressividade do discurso queirosiano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 6.ed. São Paulo: Hucitec, 2006. CASTRO, Gustavo de; GALENO, Alex. Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo: Escrituras, 2005. DA CAL, Ernesto Guerra. Língua e estilo de Eça de Queirós. Tradução de Estella Glatt. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969.

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MEDINA, Cremilda. Povo e personagem. Canoas: ULBRA, 1996. (Série Mundo Mídia; 4). MELO, José Marques. Jornalismo opinativo - gêneros opinativo do jornalismo brasileiro. São Paulo: Mantiqueira, 2003. MINÉ, Elza. Eça jornalista. 2. ed. Lisboa: Horizonte, 1986. (Horizonte, 47). MINÉ, Elza; CAVALCANTE, Neuma. Textos de Imprensa IV (da Gazeta de Notícias) Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2002. (Edição Crítica das obras de Eça de Queirós Textos de Imprensa). OLINTO, Antônio. Jornalismo e literatura. Porto Alegre: JÁ Editores, 2008. 193

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SEVCENKO, Nicolau. A literatura como missão. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo. Florianópolis: Insular, 2005. WELLEK, Rene. Teoria da literatura. Lisboa: Europa América, 1971.


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MISTéRIO MARKER: UMA ANÁLISE DO FILME LA JETÉE Elaine Zeranze Bruno (FAPERJ/UFRJ) RESUMO: A primeira tarefa a se cumprir é a de apresentar o objeto de estudo escolhido para este trabalho. Tarefa nada simples, pois Chris Marker faz questão de se esconder. O que se sabe é que pouco sabemos sobre ele. Difícil enquadrá-lo em um lugar comum. Suas obras vão de fotografias, filmes e livros até o que foi sua última obra em 2010. Um museu virtual feito pelo second life, l’ouvroir. Marker supera as fronteiras do cinematográfico, ou literário, seus trabalhos caminham junto com a tecnologia. Meu intento é o de analisar seu filme de mais impacto e por consequência o mais conhecido do público, ainda que um público restrito, até em meio de cinéfilos. Falo da obra La jetée, de 1962. Uma das poucas obras a ser reeditada em vários países. PALAVRAS-CHAVE: Chtis Marker; La Jetée; Teoria Crítica; Cinema.

Com um nome Aristocrata Christian Bouche-Villeneuve, prefere ser chamado apenas de Chris Marker, se lhe pedem uma foto para ilustrar uma entrevista lhe manda a foto de seu gato, Guillaume. Meu trabalho é desvendar quem está por trás do gato Gillaume e do gato que ri, Monsieur Chat, que ilustra as ruas parisienses e agora do mundo e que se tornou símbolo de protesto. O Marker, como marcador. Que por onde passa deixa sua marca bastante expressiva e pessoal. Ou o Marker viajante, que anota o que vê, marcando a história. Decido pelos dois, pois dono de uma vasta obra de múltiplas faces, porque não dono de um pseudônimo duplo, contando com os que descobri até agora. Talvez existam outras máscaras, como um espelho que reflete outro e que faz nos perdemos na infinidade de imagens. Marker extrapola as barreiras do cinematográfico e literário. É

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polêmico quando data uma validade de dez anos para um filme e se contraria quando quase cinco décadas depois decide reeditar La Jetée. O mistério Marker, como o nome do livro organizado por María Luisa Ortega e Antonio Wenrichter, muito a propósito, nasce com o próprio Chris Marker, pois seu nome de batismo é Christian François Bouche-Villeneuve. Em seus filmes irá adotar ainda diversos antropônimos, sem deixar de mencionar o seu gato Guillaume, que se converteu em Chris Marker, ou será o oposto? Digo isso porque das poucas entrevistas que Marker consente, quando lhe pedem uma foto para ilustrar, é Guillaume que figura no instantâneo. Em Immemory Guillaume funciona como um alterego, contando alguns segredos, que para nós, estudantes deste Bricoleur, não chegam a ser uma surpresa, como o seu amor pelas mulheres, que está revelado em seus filmes quando a câmera faz um zoom e se detém um instante na imagem de uma bela mulher. Por trás de todo esse jogo que nos confunde e nos diverte por sua excentricidade existe uma longa trajetória. Contudo aqui, nos ateremos não à análise detalhada, devido ao curto tempo, mas a uma apresentação da obra La Jetée, desta forma o desconhecido Marker se tornará um pouco menos estranho e talvez um dia se torne um grande nome no Brasil. O primeiro e único filme de ficção de Chris Marker se passa em um tempo de pós Terceira Guerra Mundial que resulta na destruição de Paris onde desde então só é possível habitar os subterrâneos. Nestes subterrâneos parisienses as experiências feitas com os prisioneiros nos recordam os campos de concentração nazistas. La jetée representa a forma extrema do estado de exceção como crítica radical do progresso que promove regressão, acompanhado da dominação e devastação da natureza elevadas a seu grau máximo. Nesse extremo da experiência empobrecida, nem mesmo a mais íntima memória do indivíduo está a salvo. A memória do protagonista, durante os sonhos é controlada pelos policiais do acampamento onde serão feitas as experiências que irão projetálo no passado e depois no futuro.


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Na contramão do presente aflitivo, vai atrás da imagem de um rosto de mulher, que guardou ou inventou. A razão da escolha deste homem entre mil homens é por ter na sua memória uma cena forte, os inventores concentravam-se em proporcionar fortes imagens mentais se pudessem sonhar ou conceber outro tempo, poderiam talvez coabitá-lo. O dia da cena forte que o marcou e que tentam fazer com que retorne àquele exato dia é o dia da sua própria morte, que é assistida pela criança e a mulher que o espera. No cabelo da atriz Heléne Chatelain, a mesma espiral de Kim Novak em Vertigo, a espiral do tempo, a vertigem do tempo que se repete, o sofrimento causado pelas experiências dolorosas vividas duas vezes. Assim como Hitchcock em vertigo Marker em La Jetée provará a impossibilidade de vencer a morte. A vertigem de viver duas vezes as mesmas experiências, além do sofrimento e a perturbação causada pela ideia de coabitar com si próprio o mesmo espaço, trouxe a falsa ideia de poder retornar ao passado, negar a sombra da morte. Nosso inocente e destituído da memória traumática de sua morte tenta retornar à imagem da mulher, viver o amor que lhe foi privado, como Orfeu que vai buscar Eurídice no mundo dos mortos e olha para trás e encontra a própria morte. No texto A free replay, sobre Vertigem, filme que diz tê-lo inspirado em La Jetée, Marker comenta sobre a vontade de reconstruir um passado que foi interrompido pela morte implacável. Whether one accepts the dream reading or not, the power of this once ignored film has become a commonplace, proving that the idea of resurrecting a lost love can touch any human heart, whatever he or she may say. ‘You’re my second chance!’ cries Scottie as he drags Judy up the stairs of the tower. No one now wants to interpret these words in their superficial sense, meaning his vertigo has been conquered. It’s about reliving a moment lost in the past, about bringing it back to life only to lose it again. One does not resurrect the dead, one doesn’t look back at Eurydice. Scottie experiences the greatest joy a man

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can imagine, a second life, in exchange for 12 9 the greatest tragedy, a second death. [1]

Quem melhor resumiu, em poucas palavras, esta obra-prima de Chris Marker foi Raymond Bellour, no livro Entre-imagens: (..)esse filme condensa, em 29 minutos: uma história de amor, uma trajetória rumo à infância, um fascínio violento pela imagem única (o único da imagem), uma representação combinada da guerra, do perigo nuclear e dos campos de concentração, uma homenagem ao cinema (Hitchcok, Langlois, Ledoux, etc), à fotografia (Capa), uma visão da memória, uma paixão pelos museus, uma atração pelos animais e, em meio a tudo isso, um sentido agudo do instante (BELLOUR, 1997, p.170)

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La jetée, o foto-romance de Chris Marker, de apenas 29 minutos, é de fato uma pequena obra-prima. O filme é construído pela colagem e filmagem de fotos fixas, que nos trazem à memória os antigos fotogramas, todavia com um tempo maior no espaçamento, e uma única sequência em movimento. A montagem das fotos e da sequência em movimento é acompanhada pela leitura de um texto densamente poético e filosófico narrado por uma voz off. O conjunto que daí resulta é, primeiro, de um estranhamento radical, passando longe e ao largo da multidão vazia de clichês, lugares comuns e estereótipos da Indústria da Cultura. A técnica de montagem usada por Chris Marker em La jetée, original em muitos sentidos, suspende a própria dinâmica do movimento, a base do próprio cinema enquanto imagens que se movem. Vale lembrar que a cadência dos filmes já contava com MARKER, Chris. “A free replay (notes on Vertigo)” http://www.chrismarker.org/a-freereplay-notes-on-vertigo/ “Se a gente aceita a leitura de sonho ou não, o poder deste filme, uma vez ignorado, tornou-se um lugar comum, provando que a idéia de ressuscitar um amor perdido pode tocar qualquer coração humano, qualquer que seja, ele ou ela pode dizer. “Você é minha segunda chance!” Como os gritos de Scottie enquanto ele arrasta Judy pela escadas da torre. Trata-se de reviver um momento perdido no passado, de trazê-lo de volta à vida só para perdê-lo novamente. Scottie experimenta a maior alegria que um homem pode imaginar, uma segunda vida, em troca da maior tragédia, a segunda morte.” (tradução nossa)

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a base técnica dos 24 fps (frames por segundo) desde 1929, e os filmes coloridos foram inaugurados pelos estúdios Fox em 1935. De forma que o efeito gerado no espectador é de espanto. Não só o tema sobre a viagem no tempo, mas o próprio filme, que nos faz recordar, ou ainda viajar, num passado cinematográfico de quando o aparato técnico era restrito. Meu trabalho será o de analisar a relação entre a forma e o sentido do filme que não se complementam, mas estão intrinsecamente ligados. Como desde logo notou o crítico André Bazin, a montagem horizontal[2] de Chris Marker produz primeiro a percepção do texto, do pensamento, ao mesmo tempo poético e político, levando daí à percepção da imagem. Esse princípio de montagem, em tudo e por tudo distante do já dito e do já visto, da repetição do mesmo que caracteriza o cinema comercial, é herdeiro da vanguarda do cinema moderno. Por exemplo, do cinema soviético em seu período mais rico e criativo, depois bloqueado pela ascensão do estalinismo. Mais que isso, Chris Marker teve uma formação cultural, filosófica e literária, muito forte e profunda, o que se pode notar no modo como elabora o cinema como ensaio, como forma forte do pensamento aberto e livre. No caso, pensamento por palavras e imagens. Em La jetée, o sentido da História pode ser entendido como um eterno retorno no tempo que reproduz a História dos vencidos, acompanhado da crítica da tecnologia que representa o antigo dissimulado de novo. Portanto, como formas do falso, sem a força crítica que se vê e se lê em Chris Marker. Nesse ponto, Walter Benjamin se torna essencial, por sua crítica do progresso, do progresso que promove regressão, embora sempre prometa o melhor dos mundos. Assim como Benjamin escova a história a contrapelo, a seu modo também Chris Marker faz o trabalho crítico de montar o avesso do otimismo cego em relação ao progresso e à técnica. Como se sabe, Benjamin apontou com precisão que 2 BAZIN, A. Lettre de Sibérie. In: Le cinéma français de la libération à la Nouvelle Vague. (1945-1958). Paris: Cahiers du cinéma, 1998. P. 257-260

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o moderno aparato técnico estava caminhando para a catástrofe, não para a emancipação humana. É o Aviso de incêndio, que se lê em suas Teses sobre o conceito de história, muito bem analisadas por Michael Lowy[3]. O pensamento por imagens de Benjamin nos apresenta a questão da história petrificada, do presente percebido como um amontoado de restos e ruínas, como se lê na conhecida tese IX Sobre o conceito de história. O Angelus Novus, de Paul Klee é pensado por Benjamin como alegoria do sentido da História como crítica do progresso: com um olhar agudo, único e todo seu, Benjamin percebe no pequeno quadro de Klee o anjo da História aprisionado, tentando olhar para trás, manter vivo o passado, não se desligar da memória, ao mesmo tempo em que é empurrado para frente, por uma tempestade cujo nome é, justamente, progresso. Como o aviso de incêndio do crítico judeu-alemão não foi ouvido, a catástrofe veio na forma da II Guerra, da tecnologia a serviço do massacre, dos campos de concentração e extermínio, da Shoah como forma do mal absoluto. La jetée é, por essa linha crítica, um photo-roman depois da catástrofe que foi a II Guerra Mundial, imaginando uma catástrofe ainda pior, uma III Guerra Mundial, nuclear e devastadora, que poderia destruir por inteiro a humanidade. Mas permanece o estado de exceção, a peste totalitária, refugiada nos subterrâneos de Paris, onde os prisioneiros são interrogados. Não muito tempo depois da morte de Benjamin, lá está Paris, como um labirinto insondável, como se vê em uma das mais belas e marcantes imagens de La jetée. A Paris de Baudelaire, da Comuna, do Surrealismo, da ocupação nazista, é no filme a Paris que lembra, e muito, o clima de terror da Guerra Fria. A ruína que resulta dessa imaginária III Guerra pode ser entendida como consequência real da própria Modernidade, pelo ângulo da tecnologia promovendo a barbárie e a regressão. LÖWY, M. Walter Benjamin: Aviso de incêndio – Uma leitura das teses Sobre o conceito de história. São Paulo: Boitempo, 2005.

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Apresentado no começo da década de 1960, La jetée leva longe esse avesso do mundo moderno. Apenas uns poucos anos antes da Paris de 1968, dos levantes de Maio, das revoltas e revoluções que se deram no período, na Europa e no Terceiro Mundo. Assunto forte, que Chris Marker tratou em outro filme, Le fond de l’air est rouge. Primeiro, as mãos frágeis. Depois, as mãos cortadas, consequência de outro recuo histórico. A liberdade, que pareceu de novo possível, se afastou do horizonte histórico, como um fantasma. O problema crítico central dessa pesquisa é analisar o método de montagem de Chris Marker, que de forma muito original relaciona imagem e texto, como dito anteriormente, causando estranhamento e choque. Com isso tirando o espectador do papel passivo, para torná-lo parte do filme. Porque vai depender da sua atenção ativa o sentido do filme. O espectador inerte apenas irá captar imagens sem nexo, pois o significado não é oferecido pronto. Passeando pelo mundo da memória, ou pela História do presente, Chris Marker, o Monsieur Chat que é o assunto da minha Dissertação, desloca e desmonta o fluxo cego, a posição passiva, pedindo que o expectador entre no jogo, participe, ponha em movimento sua imaginação, sua sensibilidade e sua capacidade, tanto de sentir, quanto de pensar. É pela montagem de fragmentos, que o aproxima tanto do cinema soviético, quanto das vanguardas, como o Surrealismo, sem esquecer de Walter Benjamin, que Monsieur Chat deixa suas marcas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAZIN, A. Lettre de Sibérie. In: Le cinéma français de la libération à la Nouvelle Vague. (1945-1958). Paris: Cahiers du cinéma, 1998.

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BELOUR, R. Entre-Imagens, Campinas: Papirus, 1997. LÖWY, M. Walter Benjamin: Aviso de incêndio – Uma leitura das teses Sobre o conceito de história. São Paulo: Boitempo, 2005. MARKER, Chris. “A free replay (notes on Vertigo)” http://www. chrismarker.org/a-free-replay-notes-on-vertigo/ (última visualização no dia 13 de março de 2012) ORTEGA, M.L, WEINRICHTER, A. (Edición) Itinerários y bifurcaciones in: Mistère Marker. T&B Editores: Madrid, 2006.

Filmografia: 201

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MARKER, C. La Jetée (28’) - Argos Film, 1962.


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AS FRONTEIRAS ENTRE LITERATURA E CINEMA E O “RISCO” dAs AdAptAções CinemAtOgRáFiCAs – AMOR OBSESSIvO (2004) COmO hipeRtextO de AMOR SEM FIM (2011) Fernanda de Souza SBRISSA[1] As fronteiras, sejam geográficas, artísticas ou de quaisquer naturezas, esvaecem no cenário pós-moderno em que nos encontramos. A “linha” que separa cinema e literatura mostrou-se, desde o advento da sétima arte, incrivelmente tênue, e nas adaptações cinematográficas de obras literárias essa fronteira revela-se ainda mais frágil. Ao invés de determonos nesses limites, optamos por debruçarmo-nos sobre a interface entre esses meios. Nessa interconexão midiática, na qual uma obra literária torna-se cinematográfica, pode-se incorrer em um conhecido risco: o da fidelidade. Esse risco pode determinar o sucesso de público e crítica de uma obra, mas desconsidera algo relevante, e um tanto quanto patente: a diferença entre meios. Parece-nos evidente que cinema e literatura têm suportes diferentes e, portanto, só podem ter resultados diferentes; porém, quando tratamos de adaptações cinematográficas, especialmente de obras literárias, deixamos essa obviedade para trás. Nosso objetivo é, tendo em vista o que vem sendo discutido academicamente sobre as adaptações cinematográficas no final do século XX e início do século XXI, mostrar alternativas possíveis para substituir o viés da fidelidade nos estudos dessa área. Palavras-chave: adaptação, Ian McEwan, Amor Obsessivo, Amor sem fim.

Embora saibamos da abrangência do conceito de adaptação intermidiática, que não se resume a mera versão cinematográfica de uma obra literária, mas a um processo multidirecional cujo objetivo é realizar determinadas narrativas em meios que divergem de seu meio primeiro de divulgação, há tempos esse processo vem sendo considerado unidirecional, tendo como fonte 1

(PPG – Ibilce/UNESP – São José do Rio Preto) - Apoio: FAPESP – Processo 2010/02830-2

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apenas obras literárias. E principalmente as clássicas. Tratando especificamente das adaptações cinematográficas de obras literárias, temos que, por motivos que vão desde juízos de valor baseados em construtos sociais como o casamento heterossexual ocidental até o dilema entre a forma e o conteúdo que ronda as produções linguísticas, o conceito de fidelidade disseminou-se como principal determinante da qualidade desse gênero. Mas isso vem mudando, e é sobre essa mudança que trataremos nesse artigo. Para tanto, faremos um brevíssimo panorama das teorias da área, dissertando a respeito do que se tem atualmente sobre o assunto, para subsequentemente analisar parte de uma obra desse gênero a fim de ilustrarmos como seria uma análise totalmente desvinculada desse conceito que pode ser mais um dos critérios descritivos de uma obra, mas não pode mais ser o critério decisivo para sua análise. A primeira obra teórica sobre adaptação foi escrita por George Bluestone em 1957. Seu mote era defender a possibilidade da metamorfose de romances em outros meios, sempre usando os novos recursos narratológicos para transmitir fielmente a narrativa original. Após o precursor, vieram Geoffrey Wagner (1975) e Dudley Andrew (1984), cujos estudos também valorizavam a fidelidade da adaptação cinematográfica à obra literária que lhe dera origem – essa valorização era tida como sinal de respeito pelos estudiosos da época, que viam o processo como uma “tradução” na qual se buscavam equivalências que manteriam o tom da obra fonte. Destacaram-se, ainda, nessa linha, Chatman (1980), preocupado com como os cineastas “transferem” as funções narrativas para o cinema, Cohen (1979), cujo ponto de vista dialogava com Chatman na medida em que se focou na “dinâmica de troca”, entendida como as tendências que o cinema tem de desenvolver recursos literários e vice-versa, e McDougal (1985), que também se interessava pelas “transferências” realizadas durante o processo de adaptação. As abordagens que se seguiram continuaram a comparar os textos literários e fílmicos visando esse conceito, até o momento


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em que o interesse dos críticos da área do cinema por essa relação entre meios aumentou: o foco passou para os elementos fílmicos, o que fez com que a comparação entre meios passasse a enriquecer a avaliação do filme, e não o contrário. Dotados desse ponto de vista estavam Brian McFarlane (1996), Timothy Corrigan (1999) e James Naremore (2000). Para o primeiro, o apreço excessivo pela fidelidade da obra adaptada à obra de origem tem a ver com o problema de definição desse gênero cinematográfico, que até hoje não é descrito consensualmente pelos interessados na área. A fim de resolver esse problema, distinguiu-o em adaptação e adaptação propriamente dita, que seria aquela que traduz para o meio novo os elementos subjetivos do meio primeiro – distinção que consideramos um avanço enorme na institucionalização do gênero, que ainda é deixado à margem pelos próprios cineastas, por vezes considerado impuro por eles. Corrigan (1999) e Naremore (2000) seguem a mesma direção de McFarlane (1996), apontando para o respeito às especificidades de cada meio e para a multidirecionalidade, o dialogismo e a intertextualidade do processo de adaptação. Stam (2000, apud NAREMORE, 2000) é categórico na importância do dialogismo intertextual para os estudos da área, e por meio de seus apontamentos é possível perceber a relevância do conceito de hipertextualidade, uma das relações transtextuais postulada por Genette (2005) com base na intertextualidade de Kristeva que, por sua vez, tem suas raízes no dialogismo de Bakhtin, para se pensar em alternativas para o viés da fidelidade nesse campo. Entendida como toda relação que une um texto B (hipertexto) a um texto A (hipotexto), do qual brota mas não é dependente, a hipertextualidade baseia-se na noção geral que envolve um texto de “segunda-mão”, derivado de outro já existente. Enquanto Stam (2000, apud NAREMORE, 2000) aposta na hipertextualidade de todos os textos, afirmando-os como adaptações, em maior ou menor grau, Diniz (2005) chamanos a relativizar essa noção, ao passo que Geraghty (2008)

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atenta para o fato de que tamanha abrangência impossibilita a análise. Além desse diálogo com as teorias de Genette (2005), há ainda aqueles teóricos que se preocupam com outros aspectos das adaptações cinematográficas: Cartmell (1999) foca-se especificamente da bidirecionalidade do processo, atendo-se à passagem intermidiática que, para a teórica, seria uma espécie de tradução intermidiática; Elliot (2004) preocupa-se com o embate entre forma e conteúdo, asseverando a impossibilidade teórica de afirmá-los dissociáveis; Hutcheon e Bortolutti (2007) abordaram biologicamente o processo, equiparando a adaptação biológica à cultural, e, por conseguinte, à cinematográfica; a crítica brasileira, aqui representada por Johnson (2003), Xavier (2003) e Guimarães (2003), também se preocupa com a impossibilidade da fidelidade como critério decisivo para a análise do gênero, seja pela diferença entre meios (para o primeiro), ou pela distinção entre contar e mostrar (para o segundo), ou ainda pelo caráter múltiplo que têm os textos de quaisquer ordens (para o terceiro); Cobb (2010) vê a justificativa para essa preocupação excessiva com a fidelidade na visão ocidental do casamento monogâmico heterossexual, único caminho para a felicidade, fazendo um paralelo entre o filme e a esposa fiel, e o livro como o marido que demanda fidelidade; e, por último, temos Leitch (2008a), que vê na asseveração da adaptação como gênero cinematográfico maior relevância para os estudos da área do que na verificação da fidelidade à obra fonte, e afirma (2008b) esse imbricamento entre literatura e cinema, que é tanto um quanto outro, como necessitado de institucionalização séria para que a área evolua teoricamente. Após esse breve panorama, passaremos a abordar essa adaptação segundo seus envolvidos e a crítica. Para The New York Times, Amor sem fim (2011) é um dos mais “ambíguos”, “profundos”, e “aparentemente inadaptáveis”[2] romances de McEwan. No centro do filme está, assim como no cerne do livro, a vida 2 ambiguous, interior, apparently unadaptable. In: http://www.nytimes.com/2004/11/02/ movies/02james.html?pagewanted=1&_r=1 – todos os trechos citados a partir de considerações do jornal The New York Times foram retirados dessa matéria.


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interior de Joe, e além da dificuldade de se transpor para o cinema essa interioridade, o romance apresenta outros enormes desafios para os dispostos a adaptá-lo: o tormento de Joe acerca da moralidade, o desespero escondido de sua esposa, as reflexões acerca da natureza do amor, sua insatisfação com o trabalho, entre outros temas íntimos e delicados, sobre os quais o narradorprotagonista do livro “conversa” com seu leitor. O conflito de Joe em Amor Obsessivo (2004) envolve, com base nas notas de produção do filme,[3] dúvidas inquietantes que vão muito além de quem teria sido o primeiro a soltar a corda no resgate do balão, chegando à natureza de sentimentos humanos como o amor, a fé e o perdão. O filme trata, basicamente, de como o destino pode mudar relacionamentos tidos como certos e o que é possível “aprender” com o caos. Kevin Loader, produtor, e Roger Michell, diretor, assim que se decidiram a realizar essa adaptação, reuniram-se com o escritor da obra a fim de propô-la. Segundo Loader, McEwan entusiasmou-se com a disposição dos dois em manterem-se fiéis às ideias presentes no romance, estruturando um thriller que explora variadas formas de amor sob pressão interna ou externa. Joe Penhall foi convidado para escrever o roteiro após a negativa de McEwan para a tarefa. Para o autor, comentando a adaptação de Amor sem fim (2011) para The New York Times, o autor do livro sempre vai ter um problema ao escrever o roteiro de sua adaptação: não há o distanciamento necessário entre ele e sua obra a ser adaptada para que escreva seu roteiro a contento, o que torna preferível deixar que outros realizem essa tarefa. O desafio maior dessa adaptação foi, segundo Penhall (apud JAMES, 2004), decidir como dramatizar o conflito interno de Joe. Segundo Loader, é mais fácil discutir conceitualmente o amor em um romance, enquanto em um filme essa e outras discussões tem de ser sutilmente insinuadas por meio da ação, do diálogo e do 3 Que serviram como base para boa parte de nossos apontamentos nessa parte do texto – quando a fonte for outra, será indicada.

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estilo de filmagem. Em virtude disso, produtor, diretor e roteirista optaram por refletir o conteúdo do livro ao invés de simplesmente transcrevê-lo, pois, segundo Michell, uma adaptação seria a visão particular de uma pessoa, ou de um grupo de pessoas, acerca daquela obra, que não existe por si só, mas ganha vida quando lida. Michell e Penhall sabiam da responsabilidade que carregavam ao adaptar uma obra conhecida e apontada pela crítica[4] como dotada de um dos melhores inícios de todos os tempos. Sobre esse início, escolhido para ilustrar nosso ponto de vista contrário à fidelidade nesse artigo, Penhall preocupou-se em capturar sua adrenalina e excitação, para transmitir a ideia de que aquele momento mudaria definitivamente Joe, que perderia o controle sobre a própria vida em virtude do envolvimento com um homem do qual não poderia mais desvencilhar-se. O roteirista afirmou ter optado, conforme entrevista para The New York Times, por, apoiado nos indícios de como a relação de Joe e Clarissa começou a deteriorar-se no livro e de como o comportamento dele foi tornando-se cada vez mais instável, focar nas relações do protagonista tanto com Claire quanto com Jed, fugindo, assim, da filosofia dos questionamentos interiores divididos por Joe com o leitor e tornando-os mais visíveis para o espectador. As mudanças na adaptação cinematográfica de Amor sem fim (2011), enumeradas por James (2004) em resenha para The New York Times, prestam-se, acreditamos, a tornar o conflito interno e intenso de Joe mais visível para o espectador: Clarissa tornou-se Claire, um nome mais democrático para o roteirista (apud JAMES, 2004), passou de esposa a namorada e de professora universitária renomada a escultora de sucesso, profissão mais visual, também segundo Penhall (apud JAMES, 2004); Joe tornou-se professor universitário ao invés de escritor das ciências, o que tornou mais fácil suas exposições acerca da natureza do amor, direcionada diretamente para o leitor no livro mas que no filme é transmitida aos espectadores por meio dos alunos; Tony e Anna Bruce, o casal 4

Wells (2010), ELLAM (2009) são alguns exemplos dessa crítica.


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de amigos para quem Joe e Clarissa contam a história do acidente com o balão no dia do ocorrido, são substituídos por Robin e Rachel, que ganham maior participação na obra – para Penhall, nas notas de produção do filme, a inserção desse casal é uma forma de amenizar a disputa entre Joe e Claire, que, imersos demais na experiência de serem vítimas de uma perseguição, tornam-se frios e sozinhos. Além disso, Parry é apresentado a partir de uma estratégia diferente no filme – de acordo com Michell, optou-se por revelar a loucura de Jed da forma mais lenta possível, fazendo com que Joe tentasse entendê-lo, a partir de certa identificação em virtude do trauma por eles vivido, além de não sugerir a violência do perseguidor até o ato final, o que, para o diretor, seria mais emocionante – não se sabe se quem persegue Joe é um homem perigoso ou apenas um homem emocionalmente abalado, e essa ambiguidade corrobora os temas principais, para Loader, do filme: acreditar, pois ninguém acredita em Joe, e interpretar, pois a Joe é imposto que se interprete a situação capciosa e desestabilizadora na qual se encontra. McEwan atuando como produtor associado não se manteve fora do processo de adaptação, expressando sua opinião sobre o rumo que a transposição de seu romance estava tomando. Loader e Michell notaram certa perplexidade do autor com relação às mudanças realizadas, mas ver o resultado final ele demonstrou-se feliz com a realização cinematográfica de sua obra. Segundo James (2004), McEwan interveio em vários momentos, principalmente quando notou a ausência da religiosidade de Parry, totalmente descartada por Penhall em sua primeira versão do roteiro por temer transformar o filme em um clichê. Embora tenha intercedido em alguns pontos, o autor mostrouse consciente de que o filme não é dele. Nas notas de produção do filme, consta que McEwan afirmou não se importar muito em deixar seu livro alçar voo, pois seu trabalho com ele estaria terminado, e o filme não seria capaz de mudá-lo, tendo sua própria

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vida – nota-se, nesse comentário, embora não explicitamente, uma visão hipertextual da obra, considerando o texto resultante como independente do texto fonte. No entanto, em entrevista para The New York Times, [5] afirmou, sobre a participação do autor do texto original na adaptação cinematográfica, que “há apenas duas razões para se adaptar o próprio romance. Uma é impedir outrem de fazê-lo, e a outra é ser pago.”. Sobre a escolha dos atores, Michell e Loader sempre tiveram Daniel Craig em mente para o papel de Joe. O ator comentou, nos extras do DVD de Amor Obsessivo (2004), que, a princípio, o que o motivou a participar desse projeto foi trabalhar com o diretor Roger Michell novamente (trabalhara com ele anteriormente em Recomeçar (2003)), mas que, ao ler o roteiro, entusiasmou-se ainda mais, pois se tratava de uma ótima adaptação, que, assim como o livro, começava com o clímax, o que aumenta o desafio do trabalho, uma vez que um início tão atraente eleva as expectativas dos espectadores com relação ao desenrolar da narrativa fílmica. Rhys Ifans, protagonista de Jed, trabalhou com Michell em Um Lugar Chamado Notting Hill (1999). Segundo o diretor, Ifans desempenhou o papel de Jed com muita delicadeza e sensibilidade, recriando-o de forma doce e ambígua, desafiando quaisquer considerações acerca de quem ele é o que ele busca; além disso, o ator tinha, para Michell, um apelo bíblico muito grande, o que facilitou as cenas em que a religiosidade guiava os sentimentos de Jed. Para Rhys Ifans, nos extras do DVD do filme, seu personagem não seria um predador, o que torna a situação ainda mais difícil para Joe, como também comentou Craig, pois Jed é uma figura extremamente doce e aparentemente inofensiva, o que diminui as chances de acreditarem em Joe quanto à perseguição – segundo “There are only two reasons to adapt your own novel. One is to stop anyone else doing it, and the other is to get paid.”

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Ifans, o perigo de seu personagem está justamente em sua aparente ausência de perigo. Claire foi encenada por Samantha Morton, cujo trabalho Michell considerou maravilhoso: dura e falante, ao mesmo tempo em que é extremamente amorosa. Essa é provavelmente a personagem que mais mudou do livro para o filme, e Loader justifica essa mudança creditando-a a visualidade necessária ao cinema, pois as discussões entre o racional Joe e a romântica Clarissa precisavam ser vistas, então se pensou em algo ao mesmo tempo artístico e físico, tocável e intuitivo, e a escultura encaixou-se bem nesses quesitos. Após conhecermos as impressões dos principais envolvidos no projeto, deteremo-nos no início propriamente dito. É fácil precisar como começou. Fazia sol, mas estávamos debaixo de um carvalho que nos protegia parcialmente das fortes lufadas de vento. Ajoelhado na grama, eu segurava um saca-rolhas enquanto Clarissa me passava a garrafa – um Daumas Gassac de 1987. Esse foi o momento, naquele exato instante foi espetado o alfinete no mapa do tempo: estendi o braço e, quando o gargalo frio e o invólucro metalizado tocaram a palma da minha mão, ouvimos um homem gritar. Voltamonos para o outro lado do campo e vimos o perigo. Ato contínuo, comecei a correr em sua direção. A transformação foi total: não me lembro de deixar cair o saca-rolhas, de me por de pé, de tomar alguma decisão e nem mesmo de ouvir as palavras de cautela lançadas por Clarissa em meu encalço. Que idiotice, correr para essa história e seus labirintos deixando para trás nossa felicidade no relvado primaveril sob um carvalho frondoso! Ouviu-se outro grito de homem e logo depois o de uma criança, enfraquecido pelo vento que rugia nas altas árvores ao longo das cercas vivas. Acelerei. E de repente reparei que, de pontos diferentes do campo, quatro outros homens convergiam para o local, todos correndo como eu. (IAN McEWAN, 2011, p. 7 – grifos nossos)

Esse começo é extremamente significativo pela riqueza de detalhes – a descrição do lugar onde estavam, o que estavam

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fazendo, como estava o clima naquele momento, etc. – e pelas considerações do narrador-personagem que, ao julgar sua prontidão em ajudar quem quer que estivesse precisando como uma idiotice, indicia uma trama confusa, cheia de labirintos, fazendo sutil uso da figura de linguagem conhecida como prolepse (no trecho por nós destacado), em que o narrador adianta fatos e desdobramentos de sua narrativa. [6] No filme, o equivalente ao primeiro parágrafo do livro pode ser resumido da seguinte forma: as copas de várias árvores são mostradas como se estivéssemos em baixo delas, ao som de tímidos pássaros, e é não muito longe dessas árvores, no meio de uma verde planície, que Joe e Claire chegam e estendem sua toalha para um piquenique. Claire nota o nervosismo de Joe ao tentar abrir o chique espumante, mas enquanto implica com ele, vê o vermelho balão muito próximo do chão; sua distração chama a atenção de Joe, que imediatamente vira-se, levanta-se e ambos saem correndo; nesse momento alternam-se focos de Joe e os outros quatro homens que também tentam ajudar. Após alguns segundos mostrando a aflição da tentativa de resgate, terminando com o soltar das cordas, momento em que não se sabe quem soltou primeiro, e a consequente queda de Logan, a cena é cortada para um jantar na casa de um casal de amigos de Joe e Claire no qual ambos estão contando o ocorrido: a câmera transita entre a cena do acidente e o jantar dos quatro, numa espécie de flashback[7] rico em detalhes alternado a uma conversa tensa e extremamente reflexiva sobre o trágico fim do ocorrido. Não há pistas do que virá adiante, ou seja, não há flashforward,[8] como 6 Segundo o Dicionário de Termos Literários (2004, p. 371), a prolepse “caracteriza-se pela breve interrupção do presente da narrativa por meio da antecipação de um evento futuro: é uma “manobra narrativa que consiste em narrar ou evocar antecipadamente um acontecimento ulterior” [...]” 7 Segundo Vocabulário de Cinema (JOURNOT, 2002, p. 71), “[...] designa o voltar atrás da narrativa no tempo diegético, para acontecimentos anteriores, o em narratologia se chama analepse. [...]” 8 Segundo Vocabulário de Cinema (JOURNOT, 2002, p. 71), “[...] consiste em inserir no filme imagens ou uma sequência que relata fatos posteriores aos que são evocados pela narrativa. [...]”


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há no livro: embora Jed siga Joe quando o professor universitário corre para ver o fim de Logan, o suspense é mantido até o primeiro contato pós-acidente, e sustenta-se durante todo o filme, uma vez que Jed passa a “atormentar” Joe, que, por sua vez, não sabe como lidar com essa situação e acaba deixando-a interferir em seu feliz e estável relacionamento com Claire. O livro inicia-se pela afirmação da simplicidade de se começar uma narrativa. Voltando a essa pretensa simplicidade, temos a revelação, no segundo capítulo do livro, assim que o narrador reconhece ser melhor desacelerar após aquele começo intenso, de que essa assunção é falsa, uma vez que o começo não é o marco zero da narrativa, pois “Existem sempre causas antecedentes.” (McEWAN, 2011, p. 27). Para o narrador-protagonista, o “simples começo” nada mais é do que um “artifício”, um mecanismo que, dentre outros, presta-se a ajudar na criação do sentido do que vem a seguir. Revela-se, nessa afirmação, o objetivo do narrador: relatar certo episódio de sua vida fazendo uso de quaisquer artifícios que lhe confiram sentido. Fica clara, após essas breves considerações acerca do início das obras, como a diferença entre meios, fato tão importante na refutação do conceito de fidelidade, interfere no produto final, pois no livro há todo um trabalho com a linguagem e com a metaficcionalidade que não se faz presente no filme, provavelmente por ser mais impactante para o público cinematográfico ir descobrindo, aos poucos, as cenas do episódio entremeadas pelas impressões de um de seus protagonistas, o personagem principal da narrativa – o que não interfere, a nosso ver, negativamente no texto resultante, mas, ao contrário, aproveita de seus recursos, principalmente os visuais, para intensificar o que se está narrando. Assim, temos em Amor Obsessivo (2004), um livro inadaptável para alguns, o que denominamos uma adaptação propriamente dita; essa obra introspectiva que trata de embates morais e da natureza humana foi adaptada ao cinema por meio de inúmeras mudanças que, embora tenham descontentado o autor da obra-

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fonte, resultou em um ótimo filme. A diferença midiática fez com que a metaficcionalidade da obra fosse deixada de lado, além de outras mudanças notáveis, mas que aqui não foram exploradas em virtude do curto espaço. Todas essas alterações, acreditamos, prestou-se ao desenvolvimento de uma adaptação propriamente dita, que transformou o texto original a fim de tornar o texto originado o mais apropriado ao meio em que está sendo divulgado – o que é, confiamos, o objetivo primeiro desse gênero cinematográfico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMOR OBSESSIVO (ENDURING LOVE). Direção: Roger Michell. Produção: Kevin Loader. Paramount, 2004. 1 DVD, 100 min., son., color. 213

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PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA ENTRE OS MUROS DA ESCOLA: O ALARGAMENTO DAS FRONTEIRAS E SUAS CAUSAS Flávio Adriano Nantes Nunes A vida consiste em passar constantemente fronteiras (Michel de Certeau) RESUMO: O presente trabalho tratará de analisar a produção cinematográfica Entre os muros da escola, de Laurent Cantet, 2007, filme francês, a partir das proposições referentes às fronteiras, ao alargamento destas, ao contato entre povos, culturas e civilizações e, consequentemente, aos conflitos que tal contato produz. A narrativa fílmica representa, entre uma série de elementos, os sujeitos protagonistas geradores de conflitos: negros africanos, asiáticos, latinoamericanos. Nossa investigação propõe-se, então, a analisar como se originam os “choques” culturais e sociais; a falta de voz entre os migrantes provenientes de países periféricos; o estigma que eles trazem pelo fato de serem indivíduos terceiro-mundistas e causadores de problemas para a França contemporânea, país representado no filme pela sala de aula, um microcosmo cultural. Buscaremos, ademais, colocar ênfase em duas personagens (alunos), Khoumba (Rachel Régulier) e Soyleyname (Franck Keita), considerados os mais problemáticos, no entanto, segundo nossa visão, são os que mais questionam o professor François Marin (François Begaudeau) que leciona francês. Arguir o mestre de tal disciplina e que o sobrenome em português é equivalente a marinheiro, significa questionar a imposição do idioma, do elemento cultural, da idiossincrática, do colonizador de mares e terras, etc. Assim, podemos dizer que Entre os muros da escola propõe outros muros invisíveis que podem ser vistos a partir de uma visada mais atenta, a começar pelo próprio título do filme no original Entre les murs; (entre os muros): os muros do colonialismo, da imposição cultural e linguagem, da falta de voz dos colonizados, do tratamento aos que resolvem questionar o sistema imposto. PALAVRAS CHAVE: Produção fílmica Entre os muros da escola; Choque entre culturas; Conflitos culturais e sociais; Alargamento das fronteiras.

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O presente trabalho buscará fazer uma reflexão acerca de Entre os muros da escola, no que diz respeito ao alargamento das fronteiras, às culturas em contato, ao processo de desterritorialização e reterritorialização propostas por Canclini, em seu Culturas híbridas, ademais das proposições propostas por Hugo Achugar, sobre memória, esquecimento, e direito à voz para as minorias étnicas. A produção cinematográfica em análise representa a Paris contemporânea num contexto social de uma sala de aula, locus de enunciação ou o lugar de onde os sujeitos de diferentes partes do mundo e culturas exercem a ação discursiva. Nesse lugar as culturas e povos se confluem, gerando conflitos entre as minorias étnicas (aqui são os alunos provenientes de outros países), o professor e os alunos franceses. O espectador intera-se da rotina diária numa escola da periferia de Paris, das práticas dos sujeitos que compõem a sala. Os mais atentos notarão que o filme está para além das questões pedagógicas, indisciplina por parte dos estudantes, apatia para levar a termo os trabalhos propostas pelo professor; o que não significa que essas questões não sejam relevantes, no entanto, para nossa análise deter-nos-emos nas questões já explicitadas acima. O contato com a França por parte de crianças entre 13 e 15 anos que protagonizam a o filme dá-se, entre outras questões, pelo fato de que seus familiares migraram do terceiro para o primeiro mundo em busca de melhores condições econômicas. Há, portanto, de acordo com as palavras de Renato Rosaldo, “uma implosão do terceiro mundo no primeiro” (ROSALDO apud CANCLINI, 2006, p. 314)[1]. A sala de aula, microcosmo cultural, representa na produção fílmica a França contemporânea, cf. dito anteriormente; tal espaço é composto por alunos provenientes da África negra, Ásia, América Parece-nos que os argumentos de Rosaldo já não se sustentam completamente pelo fato de que hoje alguns países europeus estão vivencia uma forte crise econômica, ademais se percebe uma tímida migração de pessoas provenientes do primeiro para o terceiro mundo. No entanto, pelo pouco tempo histórico que se deram os novos fatos e pelas incertezas que se tem em relação ao tema, vamos trabalhar com a proposição do autor.

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Latina, além de alunos franceses e do professor de francês François Marin. Nesse espaço congregam sujeitos de diferentes países, línguas, idiossincrasias, cosmovisão e, por conseguinte, culturas, o que nos permite afirmar a existência de uma terceira margem, em outras palavras, o nascimento de uma cultura híbrida. Os sujeitos migrantes vivem em “um lugar híbrido no qual se cruzam os lugares realmente vividos” (CANCLINI, 2003, p 327). Tais sujeitos experienciam essa mescla de elementos próprio e alheio, indicando a presença tumultuada de todos. Para Canclini, todas as culturas são de fronteiras, isto é, são geradas/modificadas/alteradas a partir do contato com outras. Isso se deve, entre outras coisas, a dinamicidade dos meios de comunicação que propicia o intercambio de elementos que compõem uma sociedade, o alargamento das fronteiras hoje cada vez menos rígidas (mas as fronteiras existem), a migração crescente de povos para as mais diversas posições geográficas do planeta principalmente por melhores condições financeiras. Essa última é a que justifica a presença de diversos estrangeiros vivendo e coparticipando da cultura do outro. A hibridez cultural seria, então, uma maneira de formar uma irmandade ao redor do mundo? Não nos parece. Pensemos no 11 de setembro, na constante guerra entre palestinos e judeus, nas miseráveis condições que muitos migrantes encontram-se ao se desterritorializar de seu país de origem em direção ao estrangeiro. As fronteiras estão, de fato, cada vez mais alargadas, apagadas, caídas, no entanto, o contato com o Outro, ainda, pode ser bastante desastroso. A presença do Outro causa mudanças significativas no contexto diário da escola, isso porque a migração produz câmbios culturais em uma via de mão dupla: para os sujeitos que “recebem” com o migrante e para os que se alocam num novo território. É nesse contato, como já dito, entre pessoas de culturas divergentes que reside a questão dos conflitos. De modo geral, as formas de conflito dispostas no interior da narrativa cinematográfica têm sua base nas constantes dissoluções

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das fronteiras; o que é evidente quando observamos o professor François Marin ensinando aos estudantes estrangeiros a língua francesa e, por conseguinte, suas estruturas social e cultural. Nesse sentido, Marin, que em português significa marinheiro, ou seja, desbravador de mares e terras, num primeiro momento pode ser entendido como educador, o que compartilha seus conhecimentos, o que faz com que os alunos estrangeiros se sintam enquadrados, mas também, num colonizador que impõe sua língua e cultura; o que nos faz pensar em outro “processo civilizador” imposto aos alunos e a seus familiares. A maioria dos eventos transcorre no interior da sala de aula, locus de enunciação permeado por várias culturas pelo intercruzamento de sujeitos provenientes de distintos pólos culturais. É interessante que reflitamos a seguinte questão: que lugar é esse? Que lugar é essa sala de aula? A resposta inclina-se a duas perspectivas que vão ao encontro com nossa proposta de análise. 1. Esse espaço é o território por direito de François Marin, detentor de um discurso imperialista “colonizador” em direção ao “colonizados”: asiáticos, latino-americanos e africanos. 2. É o locus de reivindicação dos alunos estrangeiros por um espaço no interior da metrópole e para que de alguma maneira suas vozes, ainda que como som de balbucio, sejam ouvidas. Em relação às memórias, observemos as preposições de Achugar Essa poesia na pedra, essa poesia monumental é uma forma especial de comemoração: a da memória dos membros da polis oferecida à polis, mediante o monumento, como uma forma de autocelebração e de identificação. Essa parece ter sido a função central do monumento, ou da memória na pedra; ou seja, a monumentalização da memória como uma forma de documentar, construir ou consolidar a identidade do cidadão da polis. Nesse sentido, trata-se da memória de quem tinha o poder e, é óbvio, que aqueles que não pertenciam à polis eram considerados “bárbaros” ou “estrangeiros”, que não falavam o


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idioma da polis e que não mereciam ser objeto da memória oficial (ACHUGAR, 2006, p. 173).

As palavras do crítico uruguaio são categóricas no que dizem respeito aos membros que possuem ou não direito à memória, à voz, à comemoração. Tinham direito à memória dos cidadãos que coabitavam o espaço da cidade (polis), os que habitavam na(s) periferia(s) não tinham direito; eram relegados aos esquecimentos, suas histórias não eram contadas, tampouco conhecidas. No contexto da escola que alberga os alunos migrantes, não nos parece inoportuno indicar que eles representam os bárbaros, pois não pertencem à cidade (Paris) são provenientes de territórios periféricos, não têm direito à memória, à comemoração e tampouco à constituição de sua identidade como cidadão. Ainda em relação à linguagem da polis, queremos refletir acerca das sequências da narrativa fílmica que dizem respeito à expulsão de Soyleyname da escola por indisciplina. Observa-se que a mãe do aluno não fala o idioma (francês) do lugar (polis), logo, não tem direito à memória, à comemoração, à voz, não pode falar e ser ouvida. Em outras palavras, não se constitui como sujeito, inexiste por não poder usar a linguagem. Hugo Achugar afirma também que a primeira forma de poesia na Grécia clássica nasceu com os epitáfios gravados nas estelas funerárias; essa poesia era a manutenção da memória dos sujeitos que habitavam e falavam o idioma da polis. Trata-se da memória dos que detinham o poder: “A centralidade da letra, e do letrado, acompanha a centralidade do poder, protege-o, e perpetua-o” (ACHUGAR, 2006, p. 208). A mãe d Soyleyname dirige-se até a escola para se inteirar da expulsão do filho, no entanto, não consegue exercer nenhum tipo de comunicação com os membros da escola, também não consegue interceder pelo filho, pois cf. já dito, não dominava o francês, assim, a negra oriunda de um território periférico (arredores da polis) é, portanto, bárbara, estrangeira, sem direito à voz, à memória, a se posicionar frente o Outro.

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Neste microcosmo cultural/social existem dois grupos fortemente marcados: os que buscam assimilar a cultura, a língua e os costumes impostos e os que fazem resistência, como as personagens Khoumba e Soyleyname, alunos que desafiam e questionam o trabalho do professor e as formas de exercício de poder. Hugo Achugar, em Planetas sem boca, endossa esses eventos ao afirmar: eu odeio o Outro, o Outro me odeia. Nesse sentido, ficam evidentes as formas de conflitos que o deslocamento das fronteiras pode causar. Tratando mais especificamente acerca dos que desafiam o poder instaurado: Khoumba e Soyleyname, alunos que estão todo o tempo questionando o trabalho de François Marin, são punidos e não encontram uma forma eficiente de defesa. Soyleyname é envolvido num acidente que fere uma companheira de classe e o conselho da escola reuni-se e decide pela expulsão do aluno. Khoumba, ao repassar, de forma pouco séria, para o grupo, a posição do professorado numa espécie de conselho de classe, é tachada pelo professor/ditador/colonizador como vagabunda. Em suma, Soyleyname é expulso, Khoumba não recebe nenhuma retratação e Marin não sofre nenhum tipo de advertência ou questionamento pelo incidente com a aluna. Assim, fica evidente a falta de direito à voz por parte do aqui podemos denominar como minorias étnicas. Em relação ao estudante chinês Wei, a visão que o professorado tem, diverge-se da dos dois já mencionados. Wei é dedicado, esforça-se em aprender o idioma proposto e assimilar a cultura e os valores franceses. Esse aluno corre o risco de ser deportado pelo fato de estar ilegal no país causando comoção entre os professores. Observa-se, então, que os sujeitos que questionam, empreendem embates são os “bárbaros”, incivilizados e o chinês é o “bom selvagem”, o que quer inserir-se no espaço do Outro, quer pertencer, ser reterritorializado no locus-outro. Khoumba, Soyleyname e sua mãe são sujeitos que não formam parte da polis Paris, não têm direito à fala e à memória, os bárbaros


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que invadem os domínios do civilizado e não conseguem adequarse. Observamos hodiernamente, no entanto, a criação de espaços cada vez mais democráticos para a restauração de memórias que ao longo dos tempos foram rechaçadas, apagadas, esquecidas, manipuladas. Entre os muros da escola nos indica, então, um caminho para que determinadas minorias tenham suas memórias resguardadas e suas vozes, senão ouvidas, pelo menos um balbucio começa a ecoar, pois “[...] hoje em dia, os donos da memória já não são os donos da palavra [...] os donos da nação não são – não deveriam sê-lo – os donos da palavra” (ACHUGAR, 2006, 210). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura. Ed. UFMF: Belo Horizonte, 2006. CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. EDUSP: São Paulo, 2006. http://cinema.uol.com.br/ultnot/2009/03/11/ult4332u1035. jhtm acessado em 26/10/2011.

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E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm.

OS FINGIMENTOS DE PAULO HENRIQUES BRITTO E FERNANDO PESSOA Gabriel Dória Rachwal (UFPR)

E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração.

[1]

RESUMO: Paulo Henriques Britto, em seu livro Tarde (2007) releu o fingimento de Fernando Pessoa, que ficou consagrado através dos versos de Autopsicografia. O presente trabalho procura entender como se faz essa releitura e encontra ponto de apoio para tal aproximação na obra de Estrutura da lírica moderna, de Hugo Friedrich. A poesia como possibilidade de criação de realidades interessa aos dois poetas que, cada um à sua maneira trabalha essa idéia, dão forma a ela e embaralham as relações entre ficção e realidade, num movimento que os irmana a Charles Baudelaire, poeta-chave para a interpretação de Hugo Friedcrich.

(PESSOA, 2006, pp. 164-65)

Palavras-chave: fingimento; poesia; ficção; realidade. 227

O fingimento de Fernando pessoa No seu poema que é muito provavelmente o mais conhecido, citado e comentado - “Autopsicografia” -, Fernando Pessoa ortônimo define o poeta como “fingidor” e a partir disso é possível começar a conversa entre o poeta português e Paulo Henriques Britto. A conversa se organiza em torno da questão apresentada na introdução. No poema de Pessoa encontra-se: AUTOPSICOGRAFIA O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.

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Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPR.

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Na primeira estrofe, apresenta-se o postulado de que o poeta é um fingidor e desdobra-se a questão mostrando o domínio completo que o fingimento exerce sobre o poeta, mesmo a dor deveras sentida é fingida. Associando o império do fingimento com o império da fantasia, de que fala Friedrich, percebe-se que se está no campo da lírica moderna tal como reconhecida por esse autor. Dentre as características que Hugo Friedrich estabelece em seu Estrutura da lírica moderna, uma delas é a “despersonalização”. A presença dessa característica na lírica começaria a se fazer sentir justamente com a produção poética de Baudelaire e no fim das contas acaba sendo uma forma de garantir mais espaço para a fantasia dentro da lírica: “a palavra lírica já não nasce da unidade de poesia e pessoa empírica” (FRIEDRICH, p. 37), salienta Friedrich. Citando Baudelaire, o teórico mostra que, na concepção do poeta, a “capacidade de sentir do coração” está em desvantagem em relação a “capacidade de sentir da fantasia” (idem). Seguindo ainda as idéias de Friedrich, esta última seria uma “elaboração guiada pelo intelecto”, seria “uma fantasia clarividente que, de forma melhor que aquele [o sentimentalismo pessoal, daquilo que chama de eu empírico], conclui tarefas mais difíceis”. A passagem da própria alma para a escrita (autopsicografia) exige o trabalho do fingimento que aqui se está associando ao trabalho de criação do poema, mais do que à falsidade ou à mentira, que pode ser outra associação a ser estabelecida com o fingimento. Mesmo


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essas duas últimas associações não invalidam a leitura que aqui se pretende: para se criar tanto algo falso como uma mentira é exigida uma elaboração, e me parece ser aí que cai a tônica no caso do fingimento pessoano. É do trabalho com a linguagem, suporte para o trabalho com a fantasia (com o imaginário), que resulta o poema, e não necessariamente da experiência vivida ou sentida. A experiência da escrita se coloca como condição, como mediadora inescapável da expressão e, com isso, cria uma distância entre dor sentida e dor expressada, exigindo o trabalho do poeta, desse médium, para ser preenchida, de forma que a relação de igualdade entre sentido e expressado fica comprometida com e pelo fingimento, ato criador, elaborador. A respeito do entendimento que se faz do fingimento nesse poema, o crítico Manuel Gusmão, no Dicionário de Fernando Pessoa (cf. MARTINS, 2010, pp. 66-68), coloca o poema “Isto” como corretor da leitura que quer igualar o poeta do fingimento a um mentiroso. Depois de citar a primeira estrofe do referido poema Dizem que finjo ou minto Tudo o que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação. Não uso o coração. (PESSOA, p. 67)

Gusmão vai exatamente ao nervo do que aqui se está a falar: O que aqui é recusado como um erro ou incompreensão do fingimento poético é a equivalência entre fingir e mentir no plano ético ou afectivo. Fingir ou mentir poeticamente é fruto de um sentir imaginativo. Em poesia fingir resulta do uso da imaginação (reprodutora e/ou criadora) e não do coração. (cf. MARTINS, 2010, p. 67)

A poesia continua sob o signo daquela fantasia imperiosa e

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menos ligada ao coração, calejado ou não, daquele que escreve. O médium, afinal, não exatamente tem as dores ou sentimentos da alma que psicografa, e mesmo no caso da psicografia da própria alma a imaginação e o labor, como visto, operam um afastamento em relação a uma suposta experiência por que tenha passado o autor de determinado poema e que possa ter motivado a criação do poema. A respeito desse labor de fingimento também é possível citar a leitura de Carlos Felipe Moisés quando este diz que “‘o poeta é um fingidor’ não deve ser entendido como ‘o poeta é um fingido’, mas como “o poeta é um criador de ficções”’ (cf. MOISÉS, 2005, p. 33). Ora, insistentemente se está no âmbito da fantasia criativa, do imaginário que é forjado em uma forma, é materializado. É para o imaginário, para a fantasia e para o sonho que se está abrindo espaço quando se vê o poeta como fingidor. Indo adiante na “Autopsicografia”, a segunda estrofe traz investigação a respeito da situação do leitor quando diante do poema. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm.

Assim como o poeta precisa construir mesmo uma dor que deveras tenha sentido, o que rompe com a relação de igualdade entre dor sentida e expressada, o leitor, ao ler o que vai escrito, não sente nem a dor do poeta nem as suas próprias, mas sim uma dor outra. A leitura do poema funcionaria como uma experiência nova para o leitor. A ficção gerada pelo poeta (o fingimento por ele operado) teria o efeito de alargar o repertório de emoções do leitor (e o poeta é seu primeiro leitor, pode-se observar, como faz Simões ao ler esse poema, cf. SIMÕES, p. 571), estando assim qualquer anseio de transmissão de conteúdos, seja por parte do poeta ou parte do leitor, fadado ao fracasso. O que está disponível aos leitores é a possibilidade de experimentar um mundo outro


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resultante da sua interação com o poema, o que remete aos “conteúdos irreais”[2] de que fala Friedrich e que, através do poema, forçam a entrada na realidade, forçam o alargamento da noção de realidade dos leitores. Aquilo que eles “sentem bem” é uma dor que eles não têm, dor fictícia (falsa, fabricada ou fingida), portanto. Assim como o poeta fingiu dor, podendo até ter partido de uma dor que sentia, os leitores só podem estar também em situação de fingimento quando sentem uma dor que não têm. Leitores e poeta estão rodeados de ficção por todos os lados numa situação que os isola de qualquer verdade quanto ao que se sente e que seja independente do trabalho de fingimento.

a razão e cujo resultado, é possível pensar, são reflexões como as que vão nas duas primeiras estrofes. Seguindo o raciocínio de que não é com o coração que o poeta sente (como está no poema “Isto”), já que a lírica moderna opera a separação de sujeito empírico (coração) e poesia, sendo esta uma construção guiada pela fantasia criativa, como vê Friedrich: o poema do ortônimo, ao terminar com essa estrofe em tom de revelação, de explicação última (“E assim”), mostra que o que se sabe do coração é ilusão, engano, resultado do entretenimento regido pelo coração e que envolve a razão. Nesse sentido, a razão não vem para desvendar, mas para criar, fingir o que há lá na suposta realidade chamada “o coração”. Benedito Nunes, refletindo sobre a produção poética do ortônimo no ensaio “Os outros de Fernando Pessoa” escreve:

E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama o coração.

No segundo verso da terceira estrofe do poema, simbolicamente apartada do resto da estrofe por vírgulas, aparece a razão a ser entretida pelo coração. Enquanto as duas primeiras estrofes explicam a situação de poeta e leitores isolados das dores que sentem, um quando escreve e o outro quando lê, praticamente fazendo uma investigação filosófica a respeito do fingimento na escrita, a última estrofe erige o coração como detentor da batuta que entretém a razão. É ele o comboio de corda que gira e entretém a razão, o que, seguindo um dos sentidos possíveis do verbo “entreter”, significa que o coração ilude ou engana a razão. Tal significado volta a marcar a situação do indivíduo de estar cercado de ficção. Quanto a dores realmente sentidas ou dores que se tenha, o poema cala deixando entregues poeta e leitores ao entretenimento, à distração, à ilusão lúdica que o coração é para “Em qualquer forma que se apresente, o fator decisivo é sempre a produção de conteúdos irreais. Pode ser uma disposição poética, mas também pode ser provocada por meio de estupefacientes e drogas ou surgir de condições psicopáticas. Todos estes impulsos se prestam à ‘operação mágica’ com a qual o sonho põe a irrealidade que criou acima do real.” (FRIEDRICH, p. 54)

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Em Fernando Pessoa, o pensamento que à sensibilidade se sobrepõe, freando no poeta a capacidade para entregar-se ao fluxo das sensações e para concentrar-se inteiramente naquilo que sentia, é, em primeiro lugar, o primado da consciência reflexiva. [...] Para ele, que confessou sentir tão alheiamente como se um outro é que sentisse em seu lugar, os estados afetivos tornavam-se impressões distantes, sempre reduplicadas pelo pensamento, num exercício de sobreposição, cansativo e complicado, em que a vida interior, rapidamente desgastada, só na imaginação poderia encontrar um terreno firme. (NUNES, p. 216)

Em consonância com os aspectos do poema que foram destacados até aqui, o pensamento e o imaginário se sobrepõem à sensibilidade em nome de uma “terra firme”. Apostando no imaginário e numa consciência reflexiva, que é quem domina as três estrofes do poema, o poeta se vê alheado da sua sensibilidade. No caso do poema é possível dizer que escrever ou ler distanciam poeta e leitor das dores que eles têm levando-os para o território do imaginário, sendo este mais firme porque possibilita o distanciamento em relação ao terreno mutável do “fluxo das


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sensações”. Desenvolvendo mais a sobreposição de pensamento e imaginário à sensibilidade, escreve ainda Benedito Nunes:

crítico alemão fala da relação de cognição do leitor com essa poesia, dirá justamente que a lírica moderna ativaria no leitor “o processo das tentativas de interpretação sempre poetizantes, inconclusas” (cf. FRIDERICH, p. 19). Poetas fingidores são todos aqueles que olham para si ou para o mundo que os cerca e se percebem criadores de realidades. Se a versão científica ou a burguesa do universo se querem realidades necessárias, incontornáveis, a lírica faz questão de mostrar a mentira (o fingimento) que existe aí e que ela impõe que se note ao não negar isso a ela própria (cf. FRIEDRCH).

Os sentimentos, que fogem e modificam-se, que não têm forma definida, só existindo enquanto duram, nem completamente reais e nem de todo irreais, dependem, em última análise, da imaginação, que os cria e recria, segundo as necessidades da consciência. A imaginação, para Fernando Pessoa, é ainda uma forma de pensamento, precisamente aquela que lhe permitia fingir poeticamente aquilo que de fato não sentia. [citação da primeira estrofe de “Isto”] A imaginação, que tomava o lugar do coração, símbolo da impossível espontaneidade da consciência bloqueada pelo pensamento, submeteu-se, contudo, em Fernando Pessoa, às exigências racionais e dialéticas de seu espírito [...]. A sensibilidade foi controlada pela imaginação; a imaginação iria de encontro ao pensamento racional. Entre essas duas instâncias Fernando Pessoa conseguiu compor um equilíbrio instável, que toda a sua poesia reflete. (idem, p. 217)

Seguindo o raciocínio de Benedito Nunes nesse ensaio, o ortônomio se encontraria a tal ponto cercado do que finge, das ficções que cria, que o mundo que a imaginação lhe devolve, sob a forma de paisagem interior, e que a razão não explica, o mundo cujos aspectos objetivos a subjetividade termina por absorver, depende do Eu, último sustentáculo de sua realidade prestes a desfazer-se (ibidem, p. 218).

A sua lírica opera então uma “desrealização”. Mais uma vez se está diante da instabilidade da noção de realidade graças à explosão dela operada por uma lírica que quer espaço garantido para o imaginário e assim escancara a presença da poesia, criação, fingimento, em toda parte, é o Eu fingidor que é o sustentáculo de sua própria realidade. O leitor não pode escapar disso, também ele está sujeito, quando em contato com essas criações a “sentir bem” dores que não tem. Está sujeito, pois, ao território do imaginário, daquela “fantasia imperiosa” de que falava Friedrich. Quando o

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O fingimento de paulo henriques Britto O livro Tarde, de Paulo Henriques Britto, se abre com um poema que traz uma referência direta a “Autopsicografia”, tratase de “Op. cit., pp. 164-65”. A conversa que aqui se entabula, então, já foi iniciada pelo próprio Paulo Henriques Britto que no livro Trovar Claro também já fazia referência direta a Pessoa no poema “Pessoana”. Assim como “Autopsicografia, “Op. Cit., 16465” também pode ser considerado uma abertura das portas da oficina por parte do poeta. Valendo-se da forma do soneto, que Britto explora intensa e extensamente em sua obra, o poema traz um discurso que, como o poema “Autopsicografia”, é uma reflexão a respeito do fazer poético e passa justamente pela questão do fingimento. OP. CIT., PP. 164-65 “No poema moderno, é sempre nítida uma tensão entre a necessidade de exprimir-se uma subjetividade numa personalíssima voz lírica e, de outro, a consciência crítica de um sujeito que se inventa e evade, ao mesmo tempo ressaltando o que há de falso em si próprio - uma postura cínica,


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talvez, porém honesta, pois de boafé o autor desconstrói seu artifício, desmistifica-se para o ‘leitorirmão...” Hm. Pode ser. Mas o Pessoa, em doze heptassílabos, já disse o mesmo - não, disse mais - muito melhor. (BRITTO, 2007, p. 9)

O discurso que inicia o poema e vai até o começo do primeiro verso do segundo terceto vem entre aspas. Começa aí o primeiro fingimento, esse discurso construído é atribuído a outrem. O título do poema é justamente uma referência a uma outra obra e inclui mesmo as páginas em que se encontra a suposta passagem, no entanto o que vem entre aspas é de autoria desse poeta e as páginas que estão referenciadas da obra já anteriormente citada coincidem com as páginas em que se encontra o poema “Autopsicografia” na edição das Obras poéticas de Fernando Pessoa pela editora Nova Aguilar (cf. PESSOA, 2006, pp. 164-65). O reconhecimento de tal citação fica reforçada quando, depois de fechar as aspas, uma outra voz vem comentar o que disse a primeira. Nesse comentário há referência aos “doze heptassílabos” de Pessoa que, segundo essa voz crítica, diriam mais e melhor do que vem dito pela voz que a antecede e que, em dueto com ela, compõe o poema “Op. Cit., pp. 164-65”. As duas vozes do poema, ainda que não concordem, trabalham igualmente em favor da forma do soneto, ao menos nesse sentido estão unidas. Não é porque a palavra passa de uma para outra que o poema perde o decassílabo heróico, o esquema de rimas ou a ligação sempre em enjambements entre um verso e outro. Os sinais da construção, do fingimento, que estão presentes nesse poema se fazem ainda notar pelo seu caráter prosaico. Mesmo completando as exigências técnicas de um soneto, o poema não perde, no caso da primeira voz, seu ar de texto de compêndio de literatura e, no caso da segunda, uma espontaneidade que se permite corrigir-se

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no meio da frase (“não, disse mais”). O registro de discurso teóricoacadêmico, num primeiro momento, e o tom de conversa, num segundo, sempre a encontrar sua seqüência prosódica no verso seguinte, podem fazer com que um leitor desprevenido passe pelas rimas e pelo ritmo bem marcados, dignos de um soneto clássico, e não perceba. Ainda que desdenhe o que diz a primeira voz, a segunda não renega totalmente o que a primeira está dizendo. Ponto a ser salientado na “teoria” a respeito da poesia moderna que é expressada no poema é a questão de que o sujeito que se revela no poema é “um sujeito que se inventa e evade” e que expõe “o que há de / falso em si próprio”. Explicando tal relação de invenção de si mesmo a teorização ainda ressalta a cumplicidade que há entre esse poeta inventor de si e o leitor, já que esse “cínico”, esse fingidor, “desconstrói seu artifício, / desmistifica-se para o ‘leitorirmão”’. Assim como o poema de Pessoa, o poema de Britto coloca poeta e leitor em situações irmanadas de fingimento, de cinismo, de invenção, de construção, de poesia enfim, e abre o jogo quanto a isso. Como se não bastasse o artifício de construir esse soneto em dueto que só faz revelar os recursos do poeta e borrar fronteiras entre discursos regidos por leis rítmicas e de rima e discursos livres disso, confundindo-os, portanto, Britto ainda cria um verso desviante em relação aos demais. Trata-se do último verso do segundo quarteto. Ali o decassílabo heróico não funciona e é a única vez em que isso ocorre no poema. Em se tratando do virtuose da forma que é Paulo Henriques Britto, tal desvio só pode mesmo estar aí presente para performar a “postura cínica” do poeta a revelar seu artifício, que fica sublinhado justamente nesse verso. Ao mesmo tempo em que falseia a própria invenção, o próprio poema, Britto mostra ao leitor um tipo de artifício de que lança mão em muitos momentos da sua obra. O que pode parecer uma prosa espontânea se revela um soneto respeitador de métrica e esquema de rimas; o que parece um erro ganha sentido dentro da peça e o que pode dar a entender que


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é um despretensioso reforço do mais conhecido poema daquele que é um dos maiores poetas em língua portuguesa acaba se revelando um poema que aponta para uma poética que é própria de Britto, mas que compartilha com Pessoa e a lírica moderna o esfacelamento da fronteira entre o fictício e o real. O fingimento enquanto criação está cercando poeta e leitores mais uma vez, agora através da poética de Britto. Realidade-criação O crítico português Gaspar Simões, já referido anteriormente diz que Poe, Baudelaire e Pessoa “se irmanam [...] na forma como defendem a integridade das suas ilusões contra a agressão insuportável da vida” (SIMÕES, p. 407). Relacionando essa visão com a oposição que Friedrich percebe entre lírica moderna e uma sociedade burguesa e utilitária, percebe-se que a “ilusão” de que fala Simões deve ser lida não em oposição a toda e qualquer “vida”, mas sim em oposição a uma vida que restringe a atuação da fantasia criativa, fantasia essa que pode continuamente abrir possibilidades para a realidade, para a vida. Ao ressaltar o caráter fingido do seu ofício, Britto e Pessoa estão apontando para a dose de fingimento (construção artificiosa, poesia) que qualquer realidade necessita e, assim, fazendo aquele mundo avesso à poesia ter que perceber a presença dela. Se num sentido os poetas estão mostrando a condição do homem de viver numa realidade que ele mesmo cria, fingidor que é, e do qual não haveria saída, como numa cela, estão também entregando a ele a possibilidade de criar realidade estando sob o império de sua fantasia criativa.

REFRÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRITTO, Paulo Henriques. Trovar Claro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. BRITTO, Paulo Henriques. Tarde. São Paulo. Companhia das Letras, 2007. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Tradução: Marise M. Curioni. São Paulo: Duas cidades, 1978. MARTINS, Cabral (org.). Dicionário de Fernando Pessoa e do modernismo português. São Paulo: Leya, 2010. 237

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PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. 3ª edição, 2006. SIMÕES, João Gaspar. Vida e obra de Fernando Pessoa. Livraria Bertrand: Lisboa, 2ª edição, 1970.


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A CRISE DE IDENTIDADE EM MADROX DE PETER DAVID Guilherme Mariano Martins da SILVA (UNESP/SJRP) Este trabalho propõe uma discussão sistemática sobre a crise de identidade da modernidade tardia, principalmente sobre os deslocamentos explicitados por Hall (2009) e Bauman (2005), assim como estipular um paralelo entre esses deslocamentos e as mudanças estruturais que ocorreram na composição das principais personagens nos chamados Mainstream Comics em diferentes períodos históricos, sobretudo a repercussão dessa crise identitária na composição da personagem Madrox, na minissérie homônima escrita pelo quadrinista Peter David publicada entre 2004 e 2005. Partindo do trabalho teórico de Guedes (2008) e Patati e Braga (2006), acerca da história das narrativas gráficas, o trabalho se inicia pela análise diacrônica dessa forma narrativa, de modo a oferecer uma visão ampla das principais mudanças formais em sintonia com seus respectivos contextos históricos. Na etapa seguinte, será feita uma análise sincrônica da narrativa Madrox, com o intuito de apresentar os procedimentos narracionais que provocam transformações na personagem homônima e que demonstram dentro da diegese a relação da narrativa com a crise de identidade existente na atualidade. Neste ponto torna-se essencial a utilização das teorias de Mcloud (2005) e de Eisner (1999), para uma compreensão adequada das estruturas que compõe uma narrativa gráfica, assim como as teorias da coletânea de artigos A personagem de ficção (2005), bases para a interpretação da construção da personagem. Palavras-chave: Madrox, Peter David, Narrativas Gráficas, Identidade, Modernidade Tardia, Hibridismo.

Em toda análise crítica de um mainstream comic book, principalmente um comic book de super-herói, surgem algumas questões que podem ser problemáticas para o crítico literário: a existência de um background geral da editora à qual a obra se vincula, ou seja, de um universo narrativo geral da editora em

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questão, uma hiper-narrativa que precede a narrativa específica a ser analisada, da qual, na maioria das vezes, é impossível se desassociar ou subliminar, o universo da editora Marvel, por exemplo, difere completamente do universo DC e ambos, por sua vez, diferem do universo Image; no background do universo da Marvel comics, para o qual este estudo se volta ao estudar a personagem Madrox[1], não se pode desassociar a personagem estudada com o fato de neste universo existirem os HomoSuperiores (definição da espécie mutante), como os X-Men, assim como, todas as narrativas dessa equipe e de outras pelas quais a personagem estudada passou. Esse universo preexistente é renarrado e reinventado constantemente e o mesmo provavelmente ocorre com o background da personagem ou obra a ser analisada. Essa re-narração é o que se conceitualizou como Retcon[2] ou Rhetcon (CASTLEBERRY, 2010). O Retcon é a mudança em algum aspecto do background de uma personagem ou de todo um universo narrativo. Eles podem ocorrer internamente ou externamente à diegese, podem ser aditivos ou exclusivos. Na DC comics, por exemplo, os grandes Retcons gerais do universo da editora, passaram a ocorrer internamente tornando-se sagas recorrentes e a adquirir um codinome comum, o de Crises, dessa forma, as mudanças, cortes e adições ocorrem dentro da narrativa, tornando-se parte dela. Outro exemplo da mesma editora de Retcon externo, são as re-narrações da origem do Super-Homem (SILVA, 2010), tendo sido previamente narrada de uma forma por Jerry Siegel e Joe Schuster (1936), a personagem teve seu passado reescrito por John Byrne (2006) e depois deste, por Mark Waid (2004). Nesta análise propriamente, o problema surge em definir quando e como ocorrem as primeiras mudanças na concepção 1

http://marvel.com/characters/bio/1011056/multiple_man acessos em 09 mai 2011.

Retcons são re-narrações do universo narrativo, reconstruções, mudanças, reformulações que podem tanto apagar elementos passados da narrativa como acrescentar elementos novos e pode ser feito externamente à narrativa ou internamente. Um bom resumo encontra-se em: http://reconstruction.eserver.org/114/contributors114.shtml#pyle

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da personagem Madrox, criada por Len Wein e Chris Claremont em 1975, cuja primeira aparição se deu em Fantastic four giant size#4[3]. Madrox foi concebido para ser um vilão de curto uso, de apenas uma aventura do Quarteto Fantástico, uma personagem secundária, valorizada pelo seu potencial como obstáculo para os heróis. Ressalta-se a complexidade e relevância da profundidade da personagemcom suas habilidades mutantes, seu poder de combate, visto que Madrox é um mutante que possui a capacidade de produzir cópias de si mesmo (dupes) a partir de impactos cinéticos sobre seu corpo. O primeiro roteirista a explorar a personagem, retirando-a do plano secundário é Jo Duffy, pois ao escrever a minissérie Fallen Angels em 1987, o roteirista lança a semente que vai ser trabalhada por Peter David ao longo de sua run[4] na revista X-Factor[5] ao introduzir a questão da individualidade e do desejo de individualidade das cópias de Madrox, representando este desejo na minissérie com um dupe que assume a identidade da Matriz para se juntar à equipe Fallen Angels. Quando Peter David assume a escrita da revista X-Factor, na segunda geração da super-equipe homônima, o autor começa a reconstruir a personalidade e a aprofundar as explanações acerca dos poderes de Madrox. A atuação de David no que tange a evolução da personagem pode ser considerada como um 3 http://marvel.com/digital_comics/issue/10204/giant_size_fantastic_four_1974_4 e http://www.comicvine.com/giant-size-fantastic-four-madrox-the-multiple-man-wehave-to-fight-the-x-men/37-15059/

Chama-se run uma posse ou domínio temporário de um autor sobre um comic book editorial, pois os mesmos trocam de autor periodicamente. Frank Miller teve uma importante run sobre a revista Demolidor, assim como Mark Waid teve sobra a revista Super-Homem, eles não são os criadores dessas personagens e não são seus roteiristas efetivos, mas durante um tempo assumiram a escrita dessas revistas por um período mais longo do que algumas edições.

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5 Revista criada em 1986 cujas páginas abrigaram as histórias da equipe homônima, primeiramente formada pelos cinco X-men originais (Fera, Homem de Gelo, Ciclope, Anjo e Garota Marvel) após um dissídio nos X-men, foi em sua segunda geração tornada uma equipe do governo federal dos Estados Unidos quando Peter David assume a revista em 1990, destacam-se os membros da equipe sob sua autoria: Destrutor, Polaris, Madrox, Guido e Lupina. Mais informações em: http://comicbookdb.com/title.php?ID=577 e http://marvel.com/characters/bio/1010738/x-factor

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retcon interno, pois ele acrescenta personalidade e desenvolve as explicações acerca dos poderes da personagem dentro da narrativa. Na série de 1990, David desenvolve um padrão de humor por meio da personagem Madrox, mas também aprofunda questões existenciais que resultam na “morte” dessa personagem frente ao vírus Legado. Uma morte entre aspas, porque a morte da personagem (e mortes em comics sempre produzem um aumento de vendas da revista) tida como matriz, desvela-se em edições posteriores como a morte de uma cópia, não do original, que reaparece como se nada houvesse ocorrido. A cópia morta havia assumido a identidade principal quando a matriz sofrera de amnésia (o que qualifica a morte e renascimento como um recurso de retcon interno na narrativa). Este é um exemplo de como Peter David desarmoniza a psiquê conjunta das cópias e faz com que cada uma comece a adquirir um individualismo problemático. Outro fator temático relevante é a traição de uma das cópias que se volta contra a matriz e assume temporariamente o controle da identidade principal, aprisionando a matriz dentro de si. Nestes dois exemplos temáticos David realiza algo que repetirá quando assume a escrita da revista The Incredible Hulk: a fragmentação da identidade da personagem principal em várias fragmentadas. Como podemos ver nos exemplos temáticos citados acima, David começa a desenvolver uma independência das cópias (dupes) em relação ao Original, ou ao Madrox - Matriz. Em Hulk, por exemplo, esse procedimento de criação resulta na divisão da identidade da personagem Bruce Banner em Hulk(verde), em si (Bruce Banner) e em Hulk Cinza (um Hulk inteligente e malandro). Dessa forma, pode-se notar uma recorrência da fragmentação identitária das personagens no processo de escrita desse roteirista, o que permite uma aproximação teórica desta recorrência com a crise de identidade teorizada por Stuart Hall (2011) e Zygmund Bauman (2005). Para ambos os sociólogos, com o advento da modernidade e com as crises e guerras que acentuam-se na modernidade e na


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globalização, há uma dissolução das barreiras e das raízes sociais e geográficas que permitem aos indíviduos criarem suas identidades. Dessa forma, há uma dissolução dessa própria identidade, a qual para Bauman torna-se líquida e para Hall, fragmentada. Esta identidade deslocada, fragmentada, líquida, deve ser considerada como produto de um processo de fragmentação contínua ao longo da história humana. Deve-se destacar deste processo as diásporas, inerentes às guerras que deslocam as famílias fugitivas para outras terras, como também do processo de descolonização, no qual a população colonizada migra para a metrópole procurando novas oportunidades de vida. No entanto, Bauman e Hall apontam que os problemas de identidade relacionados às mudanças regionais, tais quais as diásporas e os degredos não são os exclusivos representantes da dissolução da identidade do sujeito da modernidade tardia. Para os autores, essa crise de identidade está relacionada à vida cotidiana, sendo os degredos e diásporas os modelos mais visíveis, visto seus agravantes de violência explícita. Assim, acrise de identidade não é um problema enfrentado apenas pelos nômades e exilados políticos, visto que ela está presente constantemente na rotina do cidadão de hoje, como bem destaca BAUMAN: (...) Mas a descoberta de que a identidade é um monte de problemas, e não uma campanha de tema único, é um aspecto que compartilho com um número muito maior de pessoas, praticamente com todos os homens e mulheres da nossa era “líquido-moderna” (...) (2005, p. 16).

Na nossa atualidade, o problema da crise de identidade, da sensação de pertencer e se identificar deixa de ser uma questão da amplitude de identidade nacional e se torna um problema mais interno ao sujeito, numa relação dialética entre o mesmo e as condições sociais com as quais este sujeito está em tensão. Esta liquefação da identidade, portanto, afeta todos os homens da denominada modernidade tardia e tal fato procede visto que as

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condições para que a crise se instaurasse são anteriores à mesma, no entanto, há na modernidade e na modernidade tardia uma intensificação dos fatores sociais que projetam essa dissolução da identidade. Tendo em vista estas questões, é perceptível porque a crise de identidade estaria presente também na composição das personagens fictícias e no próprio fazer literário, dada a própria natureza da relação dialética que se estabelece entre cultura e sociedade. Portanto, a obra de Peter David nos revela a nossa crise e estabelece uma composição que transporta e ficcionaliza essa liquidez identitária para a narrativa gráfica. É neste contexto e sobre esta visão que analiso a obra deste autor americano. Na minissérie Madrox (2000), lançada em cinco edições pelo selo Marvel Knights o autor reassume a personagem homônima com a qual já havia trabalhado durante anos. Nesta nova abordagem, entretanto, o autor insere novas mudanças na concepção da personagem e aproveita essas transformações da caracterização de uma identidade deslocada, líquida, múltipla, para transpor essa multiplicidade para o modo de narrar. Sabe-se que a narrativa gráfica é sempre uma narrativa dupla, captando imediatamente e simultaneamente o que os vários autores que se dedicaram ao estudo do foco narrativo durante os anos classificaram entre Narrar e Mostrar LEITE (1985), pois enquanto na literatura estritamente textual isso é feito em uma leitura sequencial (um após o outro), na narrativa gráfica o Narrar e o Mostrar ocorrem praticamente em simultaneidade, como também acontece no cinema. Essa simultaneidade é empregada por Peter David para criar um narrador deslocado, que se mostra descentralizado logo na primeira edição da minissérie: em Madrox #1 (pg. 1) o narradorpersonagem textual, presente na legenda[6] (RAMOS, 2009, p.49), é 6 O quadrado utilizado para a narração textual nos comics, o mesmo termo é aplicado por MARAT (2006), . De uma maneira mais ampla é chamado de Letreiramento e Narração por EISNER (1999). Lourenço Mutarelli em Workshop realizado em 2011 denominou como estrômato.


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identificado como a personagem Madrox e, pelas imagens da cena, entende-se que o narrador-personagem, cuja narração remete aos narradores de voz off em primeira pessoa dos filmes noir, é o mesmo personagem mostrado na cena. Isso é reforçado pela cor da legenda que remete ao uniforme do personagem. Transcrevo a narração presente na legenda: There’s this song... “Another hundred people.” About people pouring into New York City by the hundreds, into an everincreasing, faceless mass. It’s from a show called “The Company”. I’m Jamie Madrox , The Multiple Man . And believe me, if there’s one thing I know about... It’s company. (DAVID, v1, 2004, p.2)[7]

Um destaque importante deve ser dado à fala inicial que abre a narrativa, apresentada acima, pois ela contêm, em si mesma, cruamente, a questão da identidade, da pluralidade e da individualidade perdida e descentralizada frente à massa da civilização. Madrox encontra-se num local de transição: um aeroporto, um entre-lugar. Ele se depara nesta transição com a massa que transita pela cidade e, rememorando uma música, ele transporta essa relação plural da sociedade e assume-a em si mesmo, ou seja, ele torna-se a massa. Madrox possui uma multidão dentro de si mesmo, pois como revelado pela alcunha, o Homem-Múltiplo, nunca está sozinho. Nesse quesito, abre-se uma ponderação sobre a psique do homem e a multiplicidade de identidades líquidas às quais ele cria e sobre as quais é imposto pela sociedade atual, levando-nos a ser, todos, homens múltiplos. Desta forma, Madrox apresenta-se como uma Alegoria (HANSEN, 2006), da crise de identidade. No sentido amplo proposto pelo professor da USP João Adolfo Hansen, pois ele incorpora esta crise fisicamente, representando-a em sua “Tem essa canção… “Outra centena de pessoas”. Sobre pessoas chegando em Nova York às centenas, chegando em uma crescente e crescente massa sem rosto. É de um show chamado “A Companhia”. Eu sou Jamie Madrox. O Homem-Múltiplo. E acredite, se tem uma coisa sobre a qual eu sei... É companhia.” (tradução minha, no original o letreiramento está em caixa alta.)

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ausência (troca do tropo), e em sua literalidade (o tropo em si), ou seja, Madrox alegoriza a crise de identidade ao representala, mas em segunda instância, Madrox torna-se, concretamente a crise de identidade. Como sucede na minissérie Madrox, as diferentes cópias nas quais ele se multiplica deixam de possuir uma personalidade única como ocorria desde a criação da personagem (Madrox e suas cópias possuíam a mesma identidade e ideais) reforçando essa crise de identidade, pois todas as cópias passam a assumir diferentes identidades de acordo com o estado psicológico da Matrix no instante em que estas são criadas, tornamse então discordantes, descentralizadas e entram em conflito com a personagem Matriz. As imagens que acompanham esta narração introdutória nos mostram a personagem Madrox saindo de um aeroporto e sangrando devido a um ferimento à bala. O que, por sua vez, gera a descentralização mencionada, ao descobrirmos que, em outra cena. (pg. 7) outra personagem Madrox é encontrada no chão de seu escritório, sofrendo de ressaca. Nesta situação, a personagemnarrador está descrevendo a personagem mostrada na cena, Ranhe Sinclair (Lupina), e enfatiza as “idas e vindas” do sotaque americano falso da heroína escocesa quando a mesma está sob estresse. É interessante como este dado aparece para apresentar a “ida” da personagem Madrox que surge jogada no chão da sala (na página 7): “I totally get that. I come and go, too. (...) At the moment... I’m preety much gone.” (DAVID, 2004, v1, p.7.)[8]. O Madrox narrador-personagem, a matriz, é por nós reconhecido como responsável pela narração a partir da aparição do dupe baleado no bar (p.14-15). Dessa forma temos uma reunião espaço-temporal da introdução com a narração em legenda pelo narrador-personagem, ou seja, entre o Narrar e o Mostrar, pondose o narrador presente fisicamente na cena mostrada. Ao fim da primeira edição, o autor situa os leitores na temporalidade da 8 “Eu compreendo muito bem isso. Eu também vou e volto. No momento, estou bem prá lá.” (tradução minha)


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introdução. No entanto, a morte da cópia, enquanto revelação do narrador principal, encerra a crise de identidade instaurada na estrutura da narrativa e torna-se o ponto motriz das próximas edições, pois é a mencionada morte que produz as outras histórias. Na segunda edição a legenda ainda não surge com a sua função de retomada da narrativa posterior. Isso passa a ocorrer a partir da terceira edição da minissérie. Na segunda edição, após salvar a personagem Stringer (um informante de Madrox), há uma relevante descentralização da identidade sexual de Madrox quando uma das cópias flerta com o homem resgatado. Há um questionamento de uma terceira cópia sobre a possível negação de Madrox de sua homossexualidade, o que gera o tom cômico da cena. No entanto, a definição de que todos estão fragmentados em todas as direções, tanto sexualmente, quanto socialmente, fica clara na transposição do diálogo: “Stringer: I didn’t know you were, uh.../ Madrox: I’m not. But , y’know, everybody has a little bit of that…/Stringer: I don’t.” (DAVID, vol. 2, 2004, p.6)[9]. Pois aqui Madrox assume a multiplicidade sexual enquanto Stringer renega a possibilidade, reforçando a sua identidade como homem heterossexual. Madrox não é homossexual, mas demonstra em sua existência a descentralização das identidades sexuais na modernidade tardia. A questão da identidade sexual é reforçada no segundo volume pela narrativa paralela, a qual se instaura pela investigação de um caso extra-conjugal (entre um casal heterossexual de mutantes) pela cópia de Madrox deixada para seguir com o trabalho da agência de investigação em conjunto com o grupo X-Factor, enquanto a matriz persegue o assassino de sua cópia, que é a narrativa principal da série, escobre-se apenas no quarto volume que o marido trai a esposa com outro homem (e o faz via uma “cópia-aurática” de si que transcende seu corpo paralítico, uma imagem intangível que alegoriza sua alma, no caso, seu ser verdadeiro, e que assume sua 9 “Stringer: Eu não sabia que você era, uh.../ Madrox: Não sou. Mas, cê sabe, todo mundo tem um pouquinho de…/ Stringer: Eu não.” (tradução minha)

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real sexualidade). É no final do quarto volume, demonstrando certa simetria entre a história principal e paralela, que o assassino da cópia é revelado para o leitor por meio da cena, enquanto o narrador-personagem, por sua vez, envolve-se cada vez mais em um gênero noir, depara-se com um assassino que também se multiplica, com uma femme fatale e com um mafioso, marido da mesma. Ao encontrar com os dois últimos, Madrox produz uma cópia (ao atingir o fundo de uma piscina) que tenta assassinar a matriz, uma identidade que renega o original, aliando-se com os possíveis assassinos. Como demonstrado acima, a fábula da narrativa principal se relaciona com a narrativa dos film noir, contendo todos os elementos básicos (assassinato, mulheres perigosas e lindas, ambiente escuro, mafiosos, etc.), contendo, inclusive, inúmeras referências diretas ao gênero, digna de nota, no entanto, é a referência indireta presente na capa do primeiro volume, na qual as sombras assomam em destaque. Uma referência importante ocorre com o filme Gumshoe (1971), uma paródia do gênero noir. Tanto Eddie, personagem principal do filme citado, quanto Jamie Madrox desejam profundamente vivenciar os acontecimentos dos filmes noir em suas experiências cotidianas e por esse motivo, ambos tornam-se detetives particulares, o chamado private eye. Neste aspecto, Madrox apresenta um hibridismo de gênero. Ele mescla o gênero de super-herói com o gênero da narrativa policial, no caso, com o noir. O hibridismo é reforçado ao manter a fórmulas da narrativa de super-herói (o herói vence o vilão usando superpoderes e astúcia) e da narrativa policial (revelar o assassino e punir o mesmo ao final da narrativa, desvelando o mistério instaurado no começo). O que falta em Madrox, no entanto, é um aproveitamento dessa multiplicidade identitária diegética na forma narrativa. Ela é utilizada no começo, como a “confusão” do narrador no primeiro número da série, assim como um flashforward e flashback no terceiro volume, quando a narrativa começa apresentando uma


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cena futura de Madrox em um galpão pegando fogo e retorna para a narrativa linear, interrompida na segunda edição. Mas ao longo dos outros quatro fascículos demonstra-se apenas no eixo da diegese, ou seja, na representação da personagem Madrox, na alegorização da crise de identidade. A confusão narracional proporcionaria uma maior possibilidade de sentidos e variações estéticas na narrativa. No entanto, a minissérie não deixa de ser uma narrativa gráfica de qualidade que reformula a personagem principal e que estabelece uma boa mistura entre o gênero policial e de super-herói, apresentando enquanto isso, uma crítica alegórica da crise de identidade na modernidade tardia.

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ORA(L)ITERATURA: O TEMA DA NARRATIVA ORAL NO CONTO “OS TRÊS HOMENS E O BOI DOS TRÊS HOMENS QUE INVENTARAM UM BOI”, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA Heder Junior dos Santos RESUMO: Essa investigação tem por objetivo analisar a vigésima quinta estória de Tutaméia (1967), de João Guimarães Rosa, intitulada “Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi”. Elegemos como foco, a relação estabelecida entre literatura oral e seu aproveitamento pelo literato mineiro, por meio da incorporação por parte do autor de métodos de composição e procedimentos formais oriundos da oralidade sertaneja, e por extensão, do terreno social alocado pela diegése. Questões como invenção, verossimilhança, autoria, anonimato, origens e modo de difusão dessas estórias perpassam a narrativa. Nesse sentido, podemos considerar que o narrador rosiano não apenas reinterpreta práticas respeitáveis da literatura tradicional que estão se dissolvendo na modernidade, mas também se levanta como divulgador dessa manifestação cultural, demonstrando denso entendimento acerca do processo pelo qual ela se estabelece, sobrevive e significa para os homens do sertão. PALAVRAS-CHAVE: Narrativas populares; oralidade; conto; João Guimarães Rosa; tradição; modernidade.

INTRODUÇÃO Ao nos defrontarmos com os contos de Tutaméia (Terceiras estórias), ficamos em face de um terreno rural permeado por uma lógica sócio-cultural bastante fecunda para as práticas de tradição oral, um contexto que tem na memória e, principalmente, nas relações de grupo, seu meio de existência e sobrevivência. Nesse sentido, as lendas, contos, causos, adágios, adivinhações, travalínguas, provérbios, chistes, anedotas, dentre outras manifestações

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orais, povoam o imaginário do universo rural arquitetado pela prosa rosiana. Todavia, o que Guimarães Rosa faz é atribuir um olhar artístico às situações de oralidade, atentando não apenas à reprodução fiel das mesmas, mas trazendo à baila o próprio contexto de enunciação das situações de oralidade, a presença de quem fala e o efeito de quem ouve, ou seja, faz emergir os elementos e o meio empregados para sintetizar um conhecimento ancestral. Daí resulta a possibilidade de apreciarmos os contos de Tutaméia – curtíssimos, mas contos – levando em consideração a confluência do folclórico (popular) no erudito, do oral no escrito, quer dizer, observando como Guimarães Rosa torna artisticamente presente em sua obra um contexto de oralidade. Uma vez feitas essas considerações, podemos afirmar que esta investigação busca assinalar alguns elementos da cultura oral presentes na vigésima quinta estória de Tutaméia, intitulada “Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi”. A escolha do conto a ser analisado aqui satisfaz ao critério de eleger aquele que expressa, por meio da ficção, o que Lenira Covizzi definiu como uma “teoria fantasiada da prática” (1978, p. 102), isto é, um conto que retoma a própria temática das narrativas de tradição oral, seus portavozes, o processo de criação e recriação das mesmas como forma de intelecção dos sujeitos rurais sobre o meio que os cerca. Consequentemente, optamos por aquele que recria o “processo mental do sertanejo simultaneamente nos planos do estilo e da fábula” (BOLLE, 1973, p. 120), que nos comunica, de maneira mais acentuada e oralizante, a forma de pensar do homem do sertão, não originária de um cartesianismo, mas empírica, fruto do discernimento, das relações de grupo, da observação, de um amplo filosofar sobre as experiências do cotidiano, ainda que outras, igualmente ajustadas para os fins aqui propostos, não tenham sido incluídas no corpus. Portanto, dentro das quarenta estórias que compõem a referida obra, elegemos aquela que trata “do valor


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da fantasia, ou da imaginação, apta a engendrar a realidade”[1] (GALVÃO, 2006, p. 173). Nesse sentido, não poderíamos deixar de referir dois estudiosos brasileiros: Oswaldo Elias Xidieh (1993) e Luis da Camara Cascudo (1952; 1984; 2003). Em relação aos textos que analisam a obra do nosso autor-objeto, nos ativemos àqueles que tratam dos aspectos da oralidade, cultura brasileira e sociedade, dentre os quais os de Roberto Schwarz (1991), Fernando Correia Dias (1991), Walnice Nogueira Galvão (1986, 2006), Wille Bolle (1973) e novamente Antonio Cândido (1991); além da assimilação de conceitos importantes de Mikhail Bakhtin (1987, 1990) e Walter Benjamin (1986), referentes à criação artística. Não poderíamos deixar de mencionar ainda as declarações de Rosa presentes na entrevista concedida a Günter Lorenz, nas conversas com seus tradutores e nos próprios prefácios de Tutaméia, além do conto aqui analisado, que compõe o principal argumento para as ideias defendidas nessa investigação. O CONTO ROSIANO E O PROCESSO DE (TRANS) FORMAÇÃO DE UMA NARRATIVA ORAL Três vaqueiros, Jelázio, Jerevo e Nhoé inventam um boi [...] Eles querem que os outros vaqueiros acreditem nesse boi, procuram contar vantagem: só eles o teriam desafiado. Mas ninguém acredita. Morre a mulher de Jerevo; na volta do enterro, eles rememoram o boi; morre Jelázio, falando no boi; Jerevo se muda para longe... Depois de muitos anos, numa fazenda afastada, Nhoé entra numa roda de vaqueiros e ouve falar de um boi.[2] 1 Em “Rapsodo do sertão: da lexicogênese à mitopoese”, Walnice Nogueira Galvão oferece uma visão conjunta dos contos de Tutaméia. Para a estudiosa, haveria sete categorias possíveis: (1) estória de amor, mas nada banais; (2) estórias de ciganos; (3) as que envolvem bois e boiadeiros; (4) estórias de caçadas; (5) estórias que tratam “do valor da fantasia, ou da imaginação, apta a engendrar a realidade”; (6) “casos de crimes, verdadeira ou falsamente atribuídos” e (7) “Metamorfose e redenção”. Contudo, nosso trabalho leva em consideração também outras estórias que não aquelas alocadas na quinta categoria, tendo em vista que as mesmas são ilustrativas dos aspectos que pretendemos estudar. 2 BOLLE, Willi. Fórmula e fábula. Teste de uma gramática narrativa, aplicada aos contos de Guimarães Rosa. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 125.

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“Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi” é a vigésima quinta estória de Tutaméia. Nessa ficção, Guimarães Rosa retoma a temática das narrativas de tradição oral, seus portavozes, o processo de criação e recriação das mesmas e também o contexto rural de que são provenientes. Questões como invenção, verossimilhança, autoria e anonimato, origens e modo de difusão dessas estórias perpassam o conto supracitado. Como podemos entrever na epígrafe acima colocada, estamos em face de uma narrativa sobre três vaqueiros (Jerevo, Nhoé e Jelázio) que coletiva e oralmente dão forma, por meio da “invenção despropositada”, ao boi Mongoavo; cada um deles contribuindo com um elemento para a construção dessa personagem. Para isso, os três sertanejos se utilizam de frases soltas, despretensiosas, aparentemente sem sentido, desarticuladas, sintéticas, formadas por períodos simples, contendo um número mínimo de palavras, “Sumido...” (ROSA, 1976, p. 111, grifo do autor), “O maior” (ibid., p. 111, grifo do autor), “...erado de sete anos...” (ibid., p. 111, grifo do autor), “Um pardo!” (ibid., p. 111, grifo do autor), “...porcelano” (ibid., p. 111, grifo do autor). Ao serem observados em conjunto, tais enunciados parecem sinalizar outra narrativa, com certas marcas de ancestralidade, arquetípica, “e que nem cabendo destes pastos” (ibid., p. 111), já constitui o imaginário dos indivíduos desse solo, principalmente dos três vaqueiros. O produto de suas divagações configura uma descrição pouco precisa de um boi, que é composto ao passo que os três homens, como que instituindo suas formas, esforçam-se para resgatar uma “rês semi-existida diferente” (ibid., p. 111), pertencente a uma tradição; como já mencionado, a uma ancestralidade imaginativa que passa a ser reinventada. Pode-se considerar que esse conto já traz no próprio título uma relação com os romances tradicionais (no sentido de poema narrativo, gesta, não o gênero literário em si). Neles, o título


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longo compõe uma espécie de síntese do que será narrado[3]. Seu objetivo não é causar um suspense, mas valorizar o próprio relato da peripécia; o destino das personagens é apontado no título, que funciona como enunciação do que será narrado. Portanto, o leitor de “Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi” tem conhecimento de que se deparará com uma narrativa sobre um boi, mas que a mesma é inventada, que não existiu de fato. Em outras palavras, um acordo é estabelecido entre o narrador e o leitor, que, por sua vez, acata a categoria de fantasia em que o conto se apresentará. No entanto, um desvio acontece: enquanto o narrador dos contos tradicionais recorre à antiguidade e ao testemunho de outros para legitimar o que irá contar, o narrador do conto rosiano é dissimulado, possibilita-nos ter dúvida e não quer comprometer-se com os efeitos de possíveis imprecisões ou invenções do narrado. Desse modo, a estória é iniciada por meio de uma pressuposição: Ponha-se que estivessem, à barra do campo, de tarde, para descanso. E eram Jerevo, Nhoé e Jelázio, vaqueiros dos mais lustrosos. Sentados vis-a-visantes acocorados, dois; o tércio, Nhoé, ocultado por moita de rasga-gibão ou casca branca. Só apreciavam o se-espiritar da aragem vinda de em árvores repassar-se, sábios com essa tranqüilidade. (ROSA, 1976, p. 111)

Como é possível notarmos, não se trata de uma frase assertiva, categórica. Instaura-se, de imediato, a possibilidade da dúvida, do incerto. É como se o narrador postulasse, “Sem que eu tenha certeza de onde a ação se desenvolveu precisamente, vamos considerar que os três vaqueiros estivessem à barra do campo, de tarde, para descanso”. É nessa ambivalência espacial que A partir do texto Literatura popular em verso: antologia (1986), de Manoel Cavalcanti Proença, podemos citar alguns exemplos de títulos, majoritariamente extensos e que sintetizam a estória a ser narrada, como “A chegada de Getúlio Vargas no céu e o seu julgamento”, “A verdadeira história de Lampeão e Maria Bonita”, “Pavoroso desastre de trem no dia 31 de outubro de 1949 – 7 mortos e 9 feridos” e “Naufrágio dos navios brasileiros nas águas sergipanas e a traição de Mandarino”.

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o narrador confere algo de universal ao conto, tomando por base aspectos da particularidade rural, como se essa mesma situação oral emoldurasse o que acontece com muitas pessoas (principalmente, com aquelas pertencentes à plebe rural, de que fala Oliveira Vianna (1955)), que têm nas relações de grupo seu modo de ser, estar e se expressar. Além disso, a narrativa é repleta de reticências, marcas gráficas que nos levam a fazer determinada leitura, a qual não é sustentada explicitamente pela argumentação do narrador, que se isenta de qualquer responsabilidade. Por exemplo, em nenhum momento do conto é mencionado que a estória ouvida por Nhoé na fazenda era fruto de sua invenção com os companheiros, mas isso fica subentendido, assim como certo tratamento irônico dado pelo narrador, que até então vinha descrevendo as desventuras dos três homens e o improviso com que compunham a estória. Tal ato repentino contrasta com as proporções que a estória ganha e com a fama dos três homens, “Ninguém podia com ele – o Boi Mongoavo. Só três propostos vaqueiros o tinham em fim sumetido” (ibid., p. 114). Ainda pensando nas relações tradicionais de grupo e sua presença no conto em análise, podemos dizer que a própria ação dos vaqueiros de se sentarem e inventarem uma estória exige uma relação de coletividade. É ainda a cena inicial (anteriormente transcrita) que nos permite entrever que os momentos de descanso, quando os sertanejos estão relaxados, já tendo cumprido suas rotinas de trabalho, tornam-se bastante propícios e fecundos para o “(re) nascer” de uma narrativa, para o testemunho, para o aflorar da memória. Como nos ensina Luis da Camara Cascudo: Depois da ceia faziam roda para conversar, espairecer, dono da casa, filhos maiores, vaqueiros, amigos, vizinhos. Café e poranduba. Não havia diálogo, mas uma exposição. Histórico do dia, assuntos de gado, desaparecimento de bois, aventuras do campeio, façanhas de um cachorro, queda de um grotão, anedotas rápidas, recordações, gente antiga, valentes, tempos


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de guerra do Paraguai, cangaceiros, cantadores, furtos de moça, desabafos de chefes, vinganças, crueldades, alegrias, planos para o dia seguinte. (1952, p. 11-12, grifo nosso)

Nota-se uma afinidade entre o trio de vaqueiros do conto. Não apenas nas lidas de trabalho com o gado, mas pelo fato de tais sertanejos comporem coletiva e harmonicamente sua estória. Assim é que um tema, fortemente disseminado entre os vaqueiros, como as proezas de um boi violento, longe de ser uma simples exposição de fatos corriqueiros, atrai a atenção de muitos, merece espaço privilegiado nas rodas dos contadores. As pessoas se identificam com o tema, pelo fato de o mesmo estar muito ligado às suas práticas diárias. É a presença do gado que unifica o sertão. Na caatinga árida e pedregosa como nos campos, nos cerrados, nas virentes veredas; por entre as pequenas roças de milho, feijão, arroz ou cana, como por entre as ramas de melancia ou jerimum; junto às culturas de vazante como as plantações de algodão e amendoim; - Lá está o gado, nas planícies como nas terras, no descampado como na mata. As reses pintalgam qualquer tom da paisagem sertaneja, desde a sépia da caatinga no tempo das secas até o verde vivo das roças novas no tempo das águas. (GALVÃO, 1986, p. 26-27).

No entanto, no momento em que os três vaqueiros se transformam em narrativa, tornando-se personagens, quando a experiência recebe certo tratamento artístico, com elaboração de linguagem e emprego de recursos que visam a tornar a estória sedutora e convincente, há um distanciamento da matéria narrada e a realidade de quem ouve. Isso porque a estória, no contexto performático em que se constitui, leva a uma experiência de sacralização desses mesmos temas tão ordinários. À maneira como as personagens recepcionam a estória dos três vaqueiros e reproduzem a mesma, delineiam uma nova interpretação do “caso de sua infância, do mundo das inventações” (ROSA, 1976, p. 111), atualizando o relato.

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Ainda numa leitura inicial, podemos atribuir uma percepção cômica aos fatos apresentados no conto. Eles nos levam a considerar ridículo que o caso dos vaqueiros tenha adquirido verdade com o passar do tempo e tenha imposto respeito e admiração naqueles outros homens, que retomam e exaltam as peripécias dos três vaqueiros, “ao bom pé do fogo” (ROSA, 1976, p. 114). É significativo que ao final da narrativa, sem se darem conta, os sertanejos estavam diante de um daqueles vaqueiros – Nhoé –, que velho e cansado, e se mantendo no anonimato, não corresponde ao ideal heróico que marca a descrição daqueles três homens. Nesse sentido, o efeito rizomático parece ser um dos alvos a ser alcançado nessa ficção. Mas qual a função dessa comicidade? Na fábula, ela encobre o sentido complexo de que trata “Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi”, que seria a problemática da própria formação das narrativas de transmissão oral e do tratamento de verdade que elas adquirem no meio em que se desenvolvem. A situação cômica que resulta do contato de Nhoé com uma versão de sua estória traz à baila a noção de autenticidade das narrativas orais e o quão problemático, se não impossível, é chegar à narrativa-mãe. Além disso, corrobora o argumento de que a estória “verdadeira e significativa” é aquela que se materializa no momento em que é contada e benquista por seus ouvintes, e que se utiliza dos próprios elementos tradicionais, fortemente conhecidos pelo grupo em que está sendo narrada. Daí compreendermos a atitude tomada por Nhoé de não se envaidecer, indignar-se, desmentir, ou mesmo esclarecer a narrativa do Boi Mongoavo e as circunstâncias que a formaram, mas de entender que no caso da oralidade as estórias estão em contínua transformação. Refalavam de um boi, instantâneo. Listrado riscado, babante, façanhiceiro! – que em várzeas e glória se alçara, mal tantas malasartimanhas – havia tempos fora. Nhoé disse nada. O que nascido de chifres dourados ou transparentes, redondo o berro,


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a cor de cavalo. Ninguém podia com ele – o Boi Mongoavo. Só os três propostos vaqueiros o tinham em fim sumetido... Tossiu firme o velho Nhoé, suspirou se esvaziando, repuxou sujigola e cintura. Se prazia – o mundo era enorme. Inda que para o mister mais rasteiro, ali ficava, com socorro, parava naquele certo lugar em ermo notável. (ibid., p. 114).

É o entrecruzamento do destino dos três vaqueiros da estória inventada posteriormente e o destino dos vaqueiros da estória do narrador de Guimarães Rosa, que nos permite entender como se dá o processo de (trans) formação de uma narrativa oral. É por meio da metalinguagem, da estória dentro da estória, que entrevemos o brotar de uma narrativa. Nesse sentido, podemos observar, mais uma vez, o interesse e conhecimento de Rosa acerca das estórias de tradição oral, que tanto inspiraram sua produção artística. Com a finalidade de definir o que seria “o conto tradicional”, entendendo o mesmo como uma manifestação cultural, de transmissão por meio da oralidade, Luis da Camara Cascudo nos ensina que “É preciso que o conto seja velho na memória do povo, anônimo em sua autoria, divulgado em seu conhecimento e persistente nos repertórios orais” (2003, p. 13). Guardadas as devidas proporções, o conto em análise toca nessas questões de antiguidade, anonimato, divulgação e persistência. Importa destacar a distinção entre a criação literária, que se vale do código escrito, e o processo de (re) criação das narrativas orais. Elas se aproximam na medida em que têm na imanência do “narrar” seu ponto de convergência. Daí podermos encontrar nas estórias de Rosa uma identificação com as situações de oralidade, tendo em vista que o autor parece buscar no modelo oral uma forma de reforçar/defender o espaço do contar, bem como todo o contexto de interação, identificação e experiência que a prática de ouvir e contar estórias implica num ambiente não-letrado. Ao defender a antiguidade do conto tradicional como uma de suas características importantes, Cascudo refere-se à necessidade

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de aceitação que o conto precisa ter para sobreviver, e isso é configurado pelo seu tempo de existência. Como não é possível estabelecer com precisão a gênese do conto, apela-se para a indeterminação do tempo e espaço, a qual, paradoxalmente, confunde-se com antiguidade. O fato de um conto ser antigo, ou seja, tão arraigado na cultura a ponto de ser confundido com ela, legitima a autoridade do seu discurso. A fórmula do “Era uma vez...” é reiterada justamente para marcar esse tempo antigo e indeterminado que reforça o poder do que será dito. No conto “Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi”, a questão da antiguidade é posta através da percepção de Nhoé, o último dos três homens, quando o mesmo se depara com sua estória, na boca do povo da fazenda, já transformada. Ainda que o tema da estória seja composto por elementos bem conhecidos do seu trabalho como vaqueiros, a situação inusitada e não planejada que deu origem ao causo parece bem mais significativa para os três do que o produto dessa criação. Em mais de um momento, sempre que um fato crucial acontecia na vida dos três (a morte da esposa de Jerevo ou a peste do gado, por exemplo), eles relembravam o momento daquela experiência criadora, referiam-na como uma espécie de ritual, de iniciação, quase como algo interdito. Não divulgam a estória da criação a terceiros. Pertence a eles. Não pode ser revelada, pois isso seria o mesmo que dessacralizá-la, banalizar a experiência por que passaram. Então, podiam só indagar o que do Boi, repassado com a memória. Não daquele, bem. Mas, da outrora ocasião, sem destaque de acontecer, senão que aprazível tão quieta, reperfeita, em beira de um campo, quando a informação do Boi tinha sobrevindo, de nada, na mais rasa conversa, de felicidade. Daí, mencionavam mais nunca o referido urdido – como não se remexesse em restos. (ibid., p. 113)

A divulgação acontece por meio da memória dos três homens.


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Não se trata da lembrança da estória em si, mas da lembrança de uma experiência que une os três, como se, através dela, pudessem tomar parte de outra realidade, diferente do plano do aqui e agora. Cada vez que a estória, ou melhor, o momento em que ela se constituiu é relembrado por um dos três vaqueiros, ela se presentifica, se atualiza, ocorre uma nova tentativa de interpretála. Dessa forma, a estória permanece, sobrevive. Por outro lado, a estória das façanhas do boi, a estória superficial, desprovida de profundidade conferida pela significação particular que os vaqueiros dão a ela, esta sim se torna propriedade coletiva, sendo divulgada como mais uma criação de origem incógnita, de rápida assimilação. Novamente, os momentos de descanso e de reunião são a opção para divulgá-la, e seus ouvintes, tanto quanto seus divulgadores, são profundos conhecedores da matéria da narração. Isso é explicitado no conto no momento em que Nhoé se percebe diante de sua estória, de parte dela, já modificada, com outros possíveis sentidos. Chegou a uma estranhada fazenda, era ao anoitecer, vaqueiros repartidos entre folhagens de árvores [...] vozes pretas, vozes verdes, animados de tudo contavam. Dava nova saudade. Ali, às horas, ao bom pé do fogo, escutava... Estava já nas cantiguinhas do cochilo. (ibid., p. 113-14)

No que toca à divulgação da estória do boi inventada pelos três homens, percebemos a co-ocorrência de dois processos. De um lado, a preservação de uma experiência particular que deu origem à estória; de outro, a autonomia que a narrativa assume, adquirindo uma identidade própria, em sintonia com as expectativas dos seus divulgadores, sendo transformada, recontada ao longo do tempo. Independentemente do meio através do qual a estória se difunde, uma e outra alternativas contribuem para sua permanência e divulgação. Dessa forma, a persistência dos repertórios orais, última

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característica apontada por Camara Cascudo, pressupõe que, para um conto fazer parte de um conjunto de narrativas tradicionais, deve existir recorrência de temas e formas. Mesmo havendo certa liberdade de criação, a cada vez que alguém se apropria de uma estória e confere a ela novos detalhes, outras maneiras de expressá-la, há algo que permanece. A repetição de temas e formas, na verdade, atende a uma necessidade de preservação das narrativas e, ao mesmo tempo, de fidelidade a uma tradição. A possibilidade de enraizar no passado a experiência atual de um grupo se perfaz pelas mediações simbólicas. É o gesto, o canto, a dança, o rito, a oração, a fala que evoca, a fala que invoca. No mundo do arcaico tudo isto é fundamentalmente religião, vínculo do outrora-tornado-agora, laço da comunidade com as forças que a criaram em um outro tempo e que sustêm a sua identidade. (BOSI, 2000, p. 15)

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O sucesso da estória requer muito mais do que a competência do contador para prender a atenção dos ouvintes. É preciso que haja identificação com o narrado, reconhecimento da tradição dos temas, aceitação do papel assumido pelo contador, disposição para ouvir e interagir no momento em que ocorre a narração e, principalmente, um pacto comum entre o grupo, no sentido de reconhecerem a particularidade do momento e a importância de preservarem os repertórios orais. Obviamente, todos esses aspectos não são aceitos e seguidos de forma consciente e refletida. Estão subentendidos na relação que se estabelece entre quem conta e quem ouve. O grupo sabe quando a estória deve começar, o que se vai ouvir, como será contado, quais os limites da invenção e o que deve ser repetido tal como a tradição legitimou. A presentificação de um passado um tanto desconhecido e idealizado é necessária para legitimar as práticas do presente, a fim de validar a identidade através de sua identificação com o passado, já que o tempo impõe autoridade, justifica, afama. A distinção entre o discurso dos três homens, em tom de


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conversa, remetendo às partes de uma estória ancestral, e o produto transformado, reelaborado artisticamente, que é a estória constatada na fazenda, nos permite opor aquilo que Antonio Cicero define como mythos e epos. Para ele, “Os mythoi são [...] o conteúdo dos discursos, as coisas sobre as quais se fala; os êpea, por outro lado, são os discursos propriamente ditos, tomados como coisas, objetividades, presenças. (2005, p. 243). Assim, podemos afirmar que a estória dos três homens constitui-se um mythos, pois, ainda que os vaqueiros façam referências a outras narrativas, ela recupera o momento, não sendo, portanto, uma reiteração. Não é possível recuperar o momento em que acontece o discurso. Contudo, essa mesma estória vai sendo retomada por outras pessoas e acaba tornando-se epos, ou seja, um discurso completo, capaz de ser reiterado a qualquer momento. Isso não significa que seja isento de qualquer transformação. As intervenções acontecem, podemos considerar, em um plano mais superficial, que não chega a intervir no status da estória, em sua essência. O que o narrador de Rosa parece fazer nessa narrativa é romper com essa dualidade entre mythos e epos, a formação da narrativa (mythos) e a sua plenitude (epos) não são momentos tão distintos, a ponto de haver reconhecimento do mythos (quando Nhoé está na fazenda) através do epos, o que não é tão comum nessas narrativas orais, ou seja, a presença do epos no mythos. A consideração de tais conceitos ao abordar a estória de Rosa é pertinente no sentido de que leva a problematizar a relação entre o discurso em si e o discurso produzido a partir dele: “A fixidade de um tema ou mythos é sempre relativa à fixidade ou reiterabilidade do discurso, ou seja, do epos de que ele é tema” (CICERO, 2005, p. 277). Em outras palavras, o mythos se torna epos na medida em que é composto a partir de um epos, como acontece com a estória dos três homens. Segundo o estudioso mencionado, “É ao epos, e não ao mythos, que se atribui [...] ‘forma’ [...] ‘formosura’ e [...] ‘regra’ e ‘modo’ (ibid., p. 251). Daí o fato de a estória ouvida da boca dos contadores receber um caráter performático, ser receptiva a novos

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enfoques, permitir a reelaboração. A estória dos três homens, por si só, por mais significativa e marcante em um momento determinado, deixa de existir como registro do encontro deles. A estória do Boi Mongoavo, que é produto da criação dos três vaqueiros, surge, em princípio, como uma “interferência” das lembranças da infância de um dos vaqueiros, o que demonstra a reiteração do tema. Em seguida, conforme ela vai se tornando mais concreta, até, enfim, compor as características do boi e dos três valentes vaqueiros que o contiveram, é possível perceber a opção do autor por um motivo popular bastante recorrente nas narrativas orais, que são os causos de bois, reunidos por Câmara Cascudo (1984), sob a denominação de “Ciclo do gado”. Na versão de cordel de Leandro Gomes de Barros, a fúria do animal é descrita da seguinte forma:

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Leitor vou narrar um fato De um boi da antiguidade Como não se viu mais outro Até a atualidade Aparecendo hoje um desses Seria grande novidade. [...] Muitos cavalos de estima Atrás dele se acabavam Vaqueiros que em outros campos Até medalhas ganharam Muitos venderam os cavalos E nunca mais campearam

Notamos que o boi da “antiguidade” difere do restante do gado por suas façanhas, que ultrapassa de forma significativa as proezas de qualquer outro boi. Seu tamanho e sua força são tão grandes que ele é considerado um ser encantado. Nem mesmo os mais gabaritados vaqueiros foram capazes de vencê-lo. Pelo contrário, acabaram humilhados. A estória é rica em detalhes referindo as tentativas dos vaqueiros em submetê-lo. No entanto, somente um vaqueiro, este também misterioso, que aparece de repente, domina


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o boi pela conversa, estabelecendo um acordo. Esse inusitado tratamento, no qual o vaqueiro misterioso reconhece o valor do animal, faz com que o boi deixe de perturbar os moradores da fazenda. Em um final maravilhoso, como ocorre nas estórias de fadas, vaqueiro e boi são tragados pela terra, permanecendo, de certa forma, unidos, sem que um deles seja dado como vitorioso, permanecendo apenas a fama dos dois, contada e recontada ao longo do tempo.

o ponto de convergência entre a literatura escrita e a oral se dá pelo fato de ambas almejarem transmitir um dado conhecimento, uma apreensão peculiar da realidade, ou melhor, são elaboradas esteticamente como forma de compreender, explicar e organizar o mundo circundante. Guardadas as devidas proporções, Guimarães Rosa busca no modelo oral uma forma de reforçar e/ ou defender o espaço do contar, do fantasiar, bem como de todo o contexto de interação, identificação e experiência que a prática de ouvir, contar e (re) inventar estórias implica num ambiente não-letrado, rústico:

Conto o que contou-me um velho Coisa alguma eu acrescento Já completaram trinta anos Eu estava na flor da idade Uma noite conversando Com um velho da antiguidade Em conversa ele contou-me O que viu na mocidade

A repetição de temas, assim, exerce uma função de conservação dos repertórios orais, bem como do próprio ritual promovido pelo fato de ouvir e contar estórias, o qual, em certa medida, remete aos mitos, em uma espécie de continuidade de um ciclo, no intuito de fazer persistir sua condição original. Segundo LéviStrauss, as transformações pelas quais os mitos passam, até, por fim, disseminarem-se através das narrativas orais, afetam “ora o código, ora a mensagem do mito, mas sem que este deixe de existir como tal; elas respeitam assim uma espécie de princípio de conservação da matéria mítica” (1976, p. 261). CONSIDERAÇÕES FINAIS Como foi possível demonstrarmos nessa análise, a vigésima quinta estória de Tutaméia apropria-se de temas e formas da literatura oral. O que ocorre é um trânsito harmônico entre a escrita e a fala, entre a elaboração erudita no papel e a manifestação orgânica da própria cultura popular. Fica claro que

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[...] apesar de todas as contingências da vida social e das suas injunções que tendem a carrear para um mesmo rumo os diferentes grupos de que se constituem as sociedades, e que, apesar, enfim, da imposição de formulas civilizadas e urbanizadas de vida sócio-cultural aos grupos rústicos, estes resistem, e a sua cultura encontra meios de permanecer. (XIDIEH, 1993, p. 81)

Nesse sentido, podemos afirmar que Rosa não apenas retoma respeitáveis práticas da literatura tradicional que estão se desmanchando, mas também se levanta como divulgador dessa manifestação cultural, demonstra denso entendimento acerca do processo pela qual ela se estabelece, sobrevive e significa entre os homens do sertão. Nas palavras do referido autor, “O folclore existe para ser recriado” (apud DANTAS, 1975, p. 28); ou seja, coloca sua literatura como uma espécie de defensora daquilo que se fala e como se fala entre o povo. Daí ser considerada, a nosso ver, uma forma artística de resistência, por não confeccionar “uma progressiva imposição dos meios eruditos, civilizados e urbanizados aos meios populares e rústicos, de modo a modificarlhes a vida sócio-cultural” (XIDIEH, 1993, p. 81). Pelo contrário, Rosa valoriza esse terreno, sua cultura oral, os porta-vozes e principalmente a maneira como é transmitida, bem como o efeito


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que ela causa em seus espectadores, através do desempenho. Portanto, dá credibilidade e verossimilhança ao que é ensinado através das manifestações orais, sem que o resultado seja uma produção “artificial” ou distanciada, sob o ponto de vista intelectual.

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LITERATURA ENQUANTO GESTO: MEMÓRIA E FICÇÃO EM DOIS ROMANCES DE MIGUEL SANCHES NETO Igor Ximenes Graciano[1]* Resumo: No artigo faz-se um estudo comparado entre os romances Chove sobre minha infância (2000) e Chá das cinco com o vampiro (2010), de Miguel Sanches Neto, no sentido de compreender os diferentes pactos estabelecidos entre autor e leitor na narrativa do Eu. Entre os discursos romanesco e o autobiográfico, estas duas obras perfazem a representação do gesto literário no limite entre a escrita da memória – a recuperação do vivido – e sua ficcionalização. Para tanto, o trabalho busca definir brevemente o conceito-metáfora de gesto literário como a figuração, no espaço do romance, do escritor no momento ou em torno de seu ofício. Mas qual a especificidade desse gesto? A hipótese aqui está justamente em seu caráter de “falso flagrante”. O gesto literário, por se dar no espaço da ficção, é ensaiado, cuidadosamente construído para a cena em que o escritor-personagem se expõe, o que revela – com a clara intenção de revelar – os motivos e as condições da escrita. Nos dois romances de Miguel Sanches a ambigüidade entre fato e invenção se faz pelo uso do nome próprio, no primeiro, além de outros indicadores claramente vinculados à biografia do autor, sem contudo abrir mão de seu caráter ficcional. Esgarçadas as fronteiras, vida e obra compõem o campo de atuação do escritor, onde ele lança seu gesto mais característico. Palavras-chave: Gesto literário. Memória. Autobiografia. Ficção.

Tua memória, pasto de poesia tua poesia, pasto dos vulgares, vão se engastando numa coisa fria a que tu chamas: vida, e seus pesares. Carlos Drummond de Andrade

Crítico literário há quinze anos atuando na impressa, o paranaense Miguel Sanches estreou na literatura em 2000 com o 1

Doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

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romance autobiográfico Chove sobre a minha infância. Ainda que tendo publicado obras em outros gêneros, entre coletâneas de contos e poesia, além de romances menos atrelados a sua biografia, esta sempre teve um papel central na produção romanesca do autor, o que do ponto de vista da recepção é reforçado pelo relativo sucesso da estreia (Chove... foi premiado e o colocou entre os nomes destacados da literatura nacional desde então). Romance de formação do escritor – em que Sanches narra sua infância no interior do Paraná em meio a uma família de agricultores, cujo padrasto é hostil ao seu interesse pelas letras – Chove... encontra em Chá das cinco... uma continuação, embora as obras guardem sua autonomia e atuem a partir de diferentes pactos com o leitor, como se verá adiante. Neste romance, de constituição mais francamente ficcional, o protagonista Beto Nunes narra de modo intercalado a adolescência na pequena Peabiru e sua posterior entrada na vida intelectual de Curitiba, onde passa a fazer parte do restrito círculo de amizades do escritor Geraldo Trentini. É nesse período que Beto se firma como crítico literário e lança seu livro de estreia, não por acaso um romance autobiográfico sobre a infância no interior do Paraná... Entre a autobiografia e a invenção, no limite dessas instâncias, o discurso ficcional afirma e nega o real, admitindo que as paisagens não podem ser plenamente refletidas ou recuperadas, porém sem tampouco abrir mão do que delas é irremediável: aquilo que realmente foi vivido para ser contado. É nesse espaço de sombra entre memória e ficção que perambulam os narradores de Sanches. Contar o eu, contar o outro O estudo comparado desses dois romances tem como pano de fundo um interesse mais amplo sobre um fenômeno recorrente no campo literário brasileiro contemporâneo[2], especialmente nas 2 O termo “campo literário” é empregado aqui de acordo com a acepção de Pierre Bourdieu, que o define como o espaço em que ocorre um conjunto de relações e práticas sociais relacionadas aos diversos agentes ligados à produção, consumo e reprodução da literatura.


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narrativas: a representação do escritor e do que chamarei aqui de gesto literário. Gesto literário é, portanto, uma imagem que se refere à representação da escrita literária na prosa de ficção. A definição dessa imagem central remete, conseqüentemente, a um recorte mais geral de narrativas romanescas que tematizam sua própria feitura, e que têm como protagonista o escritor de ficção no exercício íntimo de seu ofício. O gesto literário representado é, por fim, um falso flagrante, como se o leitor observasse entre as fímbrias da ficção os movimentos furtivos do escritor – os bastidores da escrita – e assim pudesse descobrir algo mais no texto: a confissão sobre o que motivou sua escrita e as condições em que ela se realiza. Mas qual a especificidade desse gesto? A hipótese aqui está justamente em seu caráter de “falso flagrante”. O gesto literário, por se dar no espaço da ficção, é ensaiado, cuidadosamente construído para a cena em que o autor se expõe, o que revela – com a clara intenção de revelar – os motivos e as condições da escrita. Por isso, diante de uma quantidade significativa de auto-representações do escritor na recente narrativa brasileira, em que o fazer literário emerge como tema reincidente, quer-se saber o que isso significa, em termos amplos. Haveria hoje um projeto implícito que se afasta do “mundo” e se volta para as possibilidades de sua representação? Um projeto que não se reconhece como projeto, mas que se mostra na reiterada exploração do escritor como personagem, em obras com temas e perspectivas diferentes, porém sempre voltadas para este (eu) que escreve. Nesse contexto, as duas obras de Miguel Sanches são exemplares, pois trazem como protagonista o escritor e seus dilemas quando da prática de seu ofício. Da infância e formação do leitor no interior do Paraná até a legitimação desse leitor em Curitiba como crítico literário e escritor estreante, os narradores se utilizam em cada romance de diferentes estratégias para contar o eu e o outro. A escrita da memória é o fio condutor desse percurso, uma tentativa

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de recuperação do vivido que se mostra sempre insuficiente, uma vez que o vivido é irrecuperável, sendo sua escrita uma reinvenção mais ou menos atrelada ao passado: “A lembrança permanece, latente, daí eu tentar dar-lhe espessura de linguagem” (SANCHES NETO, 2000, p. 10). Contudo, se a escrita da memória é algo compreendido como problemático pelos narradores em ambos os romances, a diferença se encontra na natureza do pacto estabelecido entre autor e leitor. Ao afirmar que se trata de um contínuum, estou na verdade lançando uma hipótese que não é declarada textualmente nas narrativas. Em se tratando de obras autônomas, Chove... guarda um caráter mais autobiográfico (apesar da denominação romance na capa e folha de rosto do livro), reforçado pelo uso de fotografias e o nome comum entre narrador e autor; ao passo que em Chá das cinco... o autor se utiliza de nomes ficcionais, estabelecendo assim um pacto francamente romanesco com o leitor. Como bem afirma Lejeune, É, portanto, em relação ao nome próprio que devem ser situados os problemas da autobiografia. Nos textos impressos, a enunciação fica inteiramente a cargo de uma pessoa que costuma colocar seu nome na capa do livro e na folha de rosto, acima ou abaixo do título. É nesse nome que se resume toda a existência do que chamamos de autor: única marca no texto de uma realidade extratextual indubitável, remetendo a uma pessoa real, que solicita, dessa forma, que lhe seja, em última instância, atribuída a responsabilidade da enunciação de todo o texto escrito. (LEJEUNE, 2008, p. 23)

Levando-se ao pé da letra a assertiva de Lejeune, não seria possível falar em uma ligação entre as obras, afinal o narrador do segundo romance não se identifica com o autor, não carrega seu nome, tratando-se antes de uma obra de ficção, em que os personagens não têm relação direta com as pessoas do “mundo real”. A escrita da memória, em Chá das cinco..., não seria de fato a recuperação textual das lembranças de um eu concreto, porém


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criação literária mais ou menos identificada com elementos do universo de Sanches e da cena literária curitibana. O personagem Beto Nunes, protagonista e narrador, se identifica com o autor, mas não é ele. Enquanto obra literária, “o resultado é um romance corajoso sobre a solidão total do escritor”, como se lê na contracapa do livro. Qualquer escritor, não o autor. A especificidade da narrativa ficcional, desde a máxima de Aristóteles, está em que ela se volta para aquilo que pode vir a ser, e não para aquilo que foi (ARISTÓTELES, 2003), daí sua vocação universalizante, porque não restrita aos casos particulares. Esse é talvez o maior elogio da ficção ainda hoje: a capacidade de síntese revelada por uma história paradigmática. Ao enfraquecer os indícios biográficos firmados em Chove..., Sanches parece querer descolar Chá das cinco... de sua pessoa, dando uma dimensão mais universal sobre o gesto literário e a “solidão total do escritor”. No entanto, para além dessa busca por ficção, o objetivo parece ser justamente a ambigüidade entre o autobiográfico e a invenção: a escrita da memória do autor e/ou do narrador ficcional. A mudança de estratégia narrativa entre um e outro romance cria uma instabilidade quanto à recepção das obras, pois se não é possível falar em pacto autobiográfico no sentido mais estrito, tampouco se pode conceber o pacto romanesco sem fissuras. Tal instabilidade, muito utilizada na produção romanesca contemporânea, leva o leitor “a ler os romances não apenas como ficções remetendo a uma verdade da ‘natureza humana’, mas também como fantasmas reveladores de um indivíduo” (LEJEUNE, 2008, p. 43, grifos do autor). Esse pacto intermediário, “fantasmal”, conforme a nomenclatura de Lejeune, cria uma tensão que afeta a leitura das obras na medida em que não se sabe em qual gênero literário elas se encaixam, o que se pode esperar delas afinal. Mas quais a motivações para essa instabilidade almejada? Talvez uma das características recorrentes desse jogo de espelhos seja a diluição das fronteiras entre ficção e outras modalidades discursivas mais atreladas ao real, caso da autobiografia, da

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história. Nas narrativas do eu, há diferentes tributos a serem pagos ora quando esse eu remete a um autor de carne e osso ora quando a um indivíduo ficcional. O problema é ainda mais complexo quanto ao outro, ou seja, quanto ao gesto de narrar esse outro que existe e, no caso de Chá das cinco..., trata-se de pessoa pública. Tanto é assim que Trevisan respondeu publicamente à sua representação ficcional em poema satírico onde acusa Sanches, entre outros adjetivos, de “hiena papuda” e “araponga louca”. Na tentativa de dar visibilidade à polêmica, além de responder a críticas, o autor fez um blog onde é possível acompanhar as discussões em torno da recepção do romance (http://chadascincocomovampiro.blogspot. com/). A despeito do que há de cômico no fato de a polêmica remeter ao universo estreito e excessivamente vaidoso encontrado no romance, tal recepção é por isso mesmo reveladora do campo literário contemporâneo, ao menos naquilo que ele tem de autocentrado, onde o gesto literário é o tema e o escritor protagonista voluntário. Entre contar-se e contar o outro, o advento dessa ficção limítrofe redime as semelhanças incômodas sob o véu da invenção, ao mesmo tempo que aguça o interesse do leitor, seduzindo-o pelo que possa haver de transparente nas narrativas, como se o gesto literário se revelasse não enquanto escrita porosa, construto, mas vitrine através da qual pudéssemos ver a intimidade do vampiro: Então o vampiro gosta de ser fotografado, tudo pode ser mesmo pura pose ou um jogo publicitário? Era um novo escritor que eu estava descobrindo? Impossível definir uma pessoa? Todas as biografias seriam arbitrárias? Geraldo queria e não queria ser fotografado? Eu não podia afirmar nada sobre isso, devia apenas contar esses pequenos incidentes, desvelando as contradições que lhe concediam uma estatura instável. (SANCHES NETO, 2010, p. 101)

O vampiro, a princípio esquivo, avesso a qualquer exposição,


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posa para a fotografia. Talvez algo além de sua literatura interesse, ou, dito de outra forma, a literatura seja indissociável dele, como uma extensão de seu corpo... A conclusão a que se chega, contudo, é que tão ingênuo quanto buscar na literatura um espelho do real, é desvincular o texto da vida, lendo tudo somente como literatura. Conforme a lenda, os vampiros não refletem no espelho, mas podem sim ser fotografados. entre memória e ficção A memória, ou a tentativa de fixá-la pela escrita, é uma das características comuns aos dois romances, pois os narradores estão debruçados sobre seu passado quando o transformam em matéria para a literatura. Como afirma Miguel em Chove..., “esta não é uma obra de memórias, apenas de retalhos, alguns falsificados pela recordação e pela fantasia” (SANCHES NETO, 2000, p. 17). Há, portanto, uma confusão de fronteiras entre escrever a memória e ficcionalizá-la. A ambigüidade do pacto estabelecido com o leitor nas obras – entre romanesco e autobiográfico – acaba por indicar o caráter problemático das lembranças do indivíduo enquanto instância confiável, pois lembrar não significa a recuperação plena de eventos passados. Nos romances lidos aqui, aponta-se para as dificuldades e implicações do gesto literário hoje. Entretanto, para além dessa visada circunstancial, instaura-se nas entrelinhas uma discussão sobre o discurso ficcional como elemento que constitui a memória do indivíduo. Quando esse narrador-escritor conta suas lembranças, nunca se sabe ao certo onde terminam os fatos vividos, onde começa a invenção. Ao transitar por essa via de mão dupla, o escritor expõe as possibilidades e os limites da escrita quando aponta o que é próprio à ficção, instância que é influenciada mas que também transfigura o biográfico. Daí decorre a confusão deliberada entre o romanesco e os índices do real, com referências diretas à “pessoa física” do autor, onde o gesto literário se mostra não para dizer dele, mas da prática que o define. Segundo Lejeune,

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“essa zona ‘mista’ é muito freqüentada, muito viva e sem dúvida, como todos os locais de mestiçagem, muito propícia à criação” (LEJEUNE, 2008, p. 108). Assim como cada romance estabelece um pacto diferente com seu leitor, os narradores se armam de procedimentos e motivações diferentes para a escrita da memória. Em Chove..., esse lá e cá entre memória e ficção a princípio parece mais sutil. O nome do narrador (idêntico ao do autor), além do uso de fotografias de seu acervo pessoal, onde é possível ver os principais “personagens” da narrativa, leva a crer que se está diante de uma típica autobiografia, ou relato de memórias. Entretanto, além de na capa e folha de rosto do livro constar a denominação “romance”, na orelha lê-se uma carta da editora (a verdadeira editora da obra) que elogia os originais, definido-os como um “romance de formação de primeiríssima”. Ela ainda pergunta se uma carta transcrita no livro de fato existe ou seria invenção. Diante dessas pistas, acreditar ou não na história do pequeno Miguel que cruza as páginas lutando contra as expectativas de seu meio para afirmar a vocação literária? Seria ele, afinal, um personagem de ficção que simboliza o desafio do letramento no Brasil rural, não tendo nada a ver com quem assina o livro? Independentemente da crença estabelecida, os elementos narrativos usados para a escrita da memória encontram sua justificativa no silêncio analfabeto vivido no meio social do narrador durante a infância: “E se um leitor estiver se perguntando para que ele escreveu tudo isso? Onde o sentido?, já tem aqui a resposta. Para contentar a minha mãe. E também para acabar um pouco com o longo silêncio vivido por minha família” (SANCHES NETO, 2000, p. 240). A escrita pereniza a lembrança, por mais imprecisa que ela pareça. Ficcionalizada (de uma forma ou de outra ela sempre é), a memória constitui uma imagem do passado que resiste pela palavra: “Estou no limite. Isto também justifica o livrinho. Deixo aqui não a minha história, mas uma história. Caso


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venha a morrer jovem como meu pai, não transferirei este legado de silêncio a ninguém” (IDEM, 241). O uso de fotografias como elemento que dialoga com a narrativa de Chove... contribui para essa necessidade de registro. Recurso bastante utilizado em alguns romances recentes, as fotografias criam uma tensão com o texto na medida em que disputam o imaginário do leitor sobre aquilo que se narra. No caso de um romance tão atrelado à biografia do autor como em Chove..., as imagens, entendidas como reais, nos dão aquilo que vínhamos construído pela leitura, o que confere um peso muito mais documental à recepção da obra. Segundo Barthes, “na imagem, o objeto se entrega em bloco e a vista está certa disso – ao contrário do texto e de outras percepções que me dão o objeto de uma maneira vaga, discutível, e assim me incitam a desconfiar do que julgo ver” (BARTHES, 1984, p. 157). Não podemos esquecer, mais uma vez, a denominação romance à obra assinada por Sanches. Assim, se as fotografias são incontestáveis enquanto registros do autor e sua família, o arranjo dessas mesmas fotos com as legendas e o texto em si formam um conjunto ainda ambíguo. Se na fotografia “o objeto se entrega em bloco e a vista está certa disso”, com o texto as imagens das pessoas ganham uma dimensão mais ampla do que a memória individual do autor, tornando-as personagens de um romance… de ficção. Memória e vida literária O grande tema de Chá das cinco… é a vida literária. O espaço específico de Curitiba vem a calhar como alegoria das rodinhas de escritores nos cenários urbanos. Os projetos, vaidades, círculos e tudo o que esteja em torno dos textos – ou seja, dos romances, contos, poesias e o que mais possa ser escrito – apresenta-se como a véspera do gesto literário que por vezes repercute mais que seus resultados. Seguindo a fórmula do romance de formação, como em Chove…, o narrador conta sua adolescência e finalmente a vida adulta em Curitiba, onde se descortina a narrativa sob a sombra

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de Geraldo Trentini. O circuito completo da formação do escritornarrador Beto Nunes se fecha no momento em que este se afasta da influência de Trentini, afirmando sua personalidade literária: A presença de Geraldo Trentini em minha literatura tinha um efeito paralizante. Neste tipo de relação, o perigo é o da morte do interlocutor, transformado em mero discípulo. A história literária está cheia de exemplos de personalidades fortes que sufocaram aqueles que viveram à sombra de uma produção maior. Era isso que estava acontecendo comigo. Ele estava me transmitindo sua doença. Os vínculos da amizade tinham desencadeado uma produção literária aproximativa. (SANCHES NETO, 2010, p. 125)

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Há um debate ético em Chá das cinco… sobre a apropriação da memória do outro na esfera romanesca. O que cabe ou não no espaço da ficção? Se a criação literária, mesmo a de viés fantástico, finca seu pé na semelhança com o mundo – seu reconhecimento – o que do real deve ser omitido quando de sua transfiguração (seja ela mais ou menos afeita a esse real)? A famosa frase de Dalton Trevisan, de que “o escritor é um monstro moral”, serve de mote à narrativa, uma vez que a polêmica em torno do romance está em se ficcionalizar a memória de um eu que revela o outro. Diferentemente de Chove…, onde a motivação do resgate escrito da memória está no silêncio imputado a alguns pelo analfabetismo, em Chá das cinco… a ficcionalização se volta para uma roda de letrados ciosos de sua imagem pública, e que geralmente são os sujeitos da representação literária, não objeto. As metáforas de “monstro moral” e “vampiro”, portanto, são muito coerentes ao papel do escritor expresso no romance: monstro moral por não guardar qualquer empecilho ético para a livre criação artística; e vampiro por sugar as histórias dos outros e as transformar em literatura, estilizando-as a sua maneira: “Geraldo depende totalmente desses fornecedores de histórias. Janice lhe passa os


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casos mais curiosos do consultório, logo transformados em contos curtinhos, tendendo para o anedótico” (IDEM, 56). Vida e literatura são instâncias que se confrontam em toda a narrativa, pois é no limite, ou no esgarçamento desse limite, que está o cerne da “polêmica” sobre o romance: o lado de lá e o de cá da criação literária. Havendo essa tensão entre o romanesco e outras modalidades discursivas mais atreladas ao “real”, como a autobiografia e a crítica, o critério de verdade entra como um problema no decorrer da leitura de Chá das cinco…, na medida em que a famosa “suspensão da descrença” deve ser abolida ou levada às últimas consequências. A construção narrativa, enquanto encenação ficccional da memória do narrador, admite para si – justamente por essa ambiguidade – a liberdade inventiva do escritor, que com seu gesto preenche os silêncios, delineia as imprecisões, preenche os buracos: Você acha que um dente podre é um problema fácil de ser resolvido. Vai ao dentista, toma uma anestesia e logo ele extrai os pedaços da presa deteriorada. Depois a raiz. Você sai do consultório com uma sensação de limpeza, a boca adormecida, mas quando passa a anestesia, sente dor e se acostuma a enfiar a língua no buraco deixado em sua arcada dentária. Esse buraco se chama memória. Alguns tentam fechá-lo com uma prótese. É o que eu buscava com minhas fugas. Uma prótese. (SANCHES NETO, 2010, p. 161)

A prótese é uma boa metáfora para o que advém do gesto literário: uma farsa contaminada pelo real e que o sustenta. Interessante pensar, por essa imagem, os discursos que rememoram algo ou alguém como uma presença que substitui uma ausência. Presentificar o ausente, “amar o perdido”, para citar Drummond, é uma atitude cujos resultados são sempre insatisfatórios, daí a precariedade dessa presença, sua insufiência autodeclarada. Se a escrita da memória é uma prótese necessária, às vezes bastante convincente, não devemos esquecer a advertência de Barthes para

quem “a linguagem é, por natureza, ficcional” (BARTHES, 1984, p. 129). O que se chama aqui de gesto literário – a encenação da escrita no espaço do romance – tem nas duas obras de Miguel Sanches um caso exemplar, em que o narrador-escritor, ao contar sua formação e escrutinar seu mestre e o meio que o circunda, escancara as portas dos fundos da criação literária e mostra as impurezas de seu ofício. Expondo os bastidores da escrita, a ficção se espalha pelas paisagens do real e a memória se ilumina como um motivo que revela o eu, sem necessariamente autenticar-lhe a existência. O texto se abre como um espetáculo:

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As representações são estas múltiplas molduras em que nos encaixamos sem nos determos (...) O teatro do mundo, pois, quase deixa de ser uma metáfora; realiza-se mesmo onde não haja idéia de teatro, pois seu espaço se inicia antes de haver um lugar reservado para as encenações. A diferença, por conseguinte, entre o teatro anônimo cujo palco é o mundo e a sala de espetáculos, está em que no primeiro representamos sem saber e no segundo não sabemos o que representamos. (COSTA LIMA, 1981, p. 221)

O ato de representar não significa reflexo ou espelhamento do mundo, mas a maneira pela qual o indivíduo nele se constitui como sujeito e assim se coloca. No dois romances de Sanches, o real se confunde com o ficcional, pois ambos são entendidos como representações. A ideia do “teatro do mundo” subjaz em toda a narrativa como para dizer que a vida também se constitui de ficção, mas uma ficção que não se apresenta como tal. Os papéis representados no texto são como os que se representam na vida. O texto é uma extensão da vida, não sua imitação.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro Enigma. 10 ed. Rio de Janeiro: Record, 1995. ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. 7 ed. Lisboa: Imprenssa Nacional-Casa da Moeda, 2003. BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. COSTA LIMA, Luiz. “Representação social e mimesis” In: Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Trad. Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. SANCHES NETO, Miguel. Chá das cinco com o vampiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. SANCHES NETO, Miguel. Chove sobre minha infância. Rio de Janeiro: Record, 2000.

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O BEL CANTO ITALIANO E A GUERRA FEDERALISTA Ionara SATIN (Unesp/Assis) Se comparada ao romance, à dramaturgia ou à poesia, a crônica não oferece cenários sublimes, carregados de adjetivos e períodos cadentes, fala do “miúdo” e mostra uma grandeza, a beleza de um singular jamais suspeitado. (CANDIDO, 1992). Machado de Assis é um notável representante desse gênero: em suas crônicas, tece o dia-a-dia da cidade, por meio de uma linguagem intertextual e marcada pela oralidade. Dialoga com outras culturas e literaturas, dentre elas a italiana. A Itália vista sob o ângulo machadiano está atrelada às manifestações artísticas desse país; nas suas obras, o destaque é dado às óperas, nomes de escritores, pensadores e a literatura. É entre guerras e óperas que se constrói o cenário para o diálogo ítalo-brasileiro na crônica do dia 26 de março de 1893, em meio à realidade e ficção, entre horror e arte. A guerra federalista faz o papel real do horror pelo qual passava o país naquele momento, e as óperas italianas figuram “com suas notas de ouro” um momento de paz artística. Pela leitura da crônica é possível notar o tom admirado e esperançoso pelo qual o cronista fluminense se expressa ao tratar do papel sublime da arte. PALAVRAS-CHAVE: Crônica; Cultura italiana; Intertextualidade; Machado de Assis.

Gazeta de Notícias (26 de março de 1893) Entrou o outono. Despontam as esperanças de ouvir Sarah Bernhardt e Falstaff. A arte virá assim, com as suas notas de ouro, cantadas e faladas, trazer à nossa alma aquela paz que alguns homens de boa vontade tentaram restituir à alma riograndense, reunindo-se quinta feira na Rua da Quitanda. Creio que a arte há de ser mais feliz que os homens. Da reunião destes resultou saber-se que não havia solução prática de acordo com os seus intuitos. Talvez os convidados que lá não foram e mandaram os seus votos em favor do que passasse, já

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adivinhassem isso mesmo. Viram de longe o texto da moção final, e a assinaram de véspera. Há desses espíritos que, ou por sagacidade pronta, ou por esforço grande, lêem antes da meia-noite as palavras que a aurora tem de trazer escritas na capa vermelha e branca, saúdam as estrelas, fecham as janelas e vão dormir descansados. Alguns sonham, e creio que sonhos generosos; mas a imaginação e o coração não mudam a torrente das coisas, e os homens acordam frescos e leves, sem haver debatido nem incandescido nada. Comecemos por pacificar-nos. Paz na terra aos homens de boa vontade — é a prece cristã; mas nem sempre o céu a escuta, e, apesar da boa vontade, a paz não alcança os homens e as paixões os dilaceram. Para este efeito, a arte vale mais que o Céu. A própria guerra, cantada por ela, dá-nos a serenidade que não achamos na vida. Venha a arte, a grande arte, entre o fim do outono e o princípio do inverno. Confiemos em Sarah Bernhardt com todos os seus ossos e caprichos, mas com o seu gênio também. Vamos ouvir-lhe a prosa e o verso, a paixão moderna ou antiga. Confiemos no grande Falstaff. Não é poético, decerto, aquele gordo Sir John; afoga-se em amores lúbricos e vinho das Canárias. Mas tanto se tem dito dele, depois que o Verdi o pôs em música, que muito naturalmente é obra-prima. O pior será o libreto, que, por via de regra, não há de prestar; mas leve o diabo libretos. Antes do dilúvio, — ou mais especificadamente, pelo tempo do Trovador, dizia-se que o autor do texto dessa ópera era o único libretista capaz. Não sei; nunca o li. O que me ficou é pouco para provar alguma coisa. Quando a cigana cantava: Ai nostri monti ritorneremo, a gente só ouvia o vozeirão da Casaloni, uma mulher que valia, corpo e alma, por uma companhia inteira. Quando Manrico rompia o famoso: Di quella pira l’orrendo fuoco, rasgaram-se as luvas com palmas ao Tamberlick ou ao Mirate. Ninguém queria saber do Camarano, que era o autor dos versos. Resignemos ao que algum mau alfaiate houver cortado na capa magnífica de Shakespeare. Têm-se aqui publicado notícias da obra nova, e creio haver lido que um trecho vai ser cantado em concerto; mas eu prefiro esperar. Demais, pouco é o tempo para ir seguindo esta outra guerra civil, a propósito do facultativo italiano, que mostra ser patrício de Machiavelli. Fez o seu anúncio, e entregou a causa aos adversários. Estes fazem, sem querer, o negócio dele; e se algum vai ficando


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conhecido, a culpa é das coisas, não da intenção; não se pode falar sem palavras, e as palavras fizeram-se para ser ouvidas. Não digo entendidas, posto que as haja de fina casta, tais como a isquioebetomia, a isquiopubiotomia, a sinfisiotomia, a cofarectomia, a histerectomia, a histerosalpingectomia, e outras que andam pelos jornais, todas de raça grega e talvez do próprio sangue dos Atridas. Tudo isto a propósito de um processo ignoto e célebre. Descobriu-se agora (segundo li) que uma senhora já o conhece e emprega. Seja o que for, é uma questão reduzida aos médicos; não passará aos magistrados. Vamos esquecendo; é o nosso ofício. Bem faz o Dr. Castro Lopes, que trabalha no silêncio, e de quando em quando aparece com uma descoberta, seja por livro, ou por artigo. Anuncia-se agora um volume de questões econômicas, em que ele trata, além de outras coisas, de uma moeda universal. Um só rebanho e um só pastor, é o ideal da Igreja Católica. Uma só moeda deve ser o ideal da igreja do Diabo, porque há uma igreja do Diabo, no sentir de um grande padre. Venha, venha depressa esse volapuque das riquezas. Não lhe conheço o tamanho; pode ser do tamanho universal o mesmo que aconteceu com o volapuque. Acabo de ler que um dos mais influentes propugnadores daquela língua reconhece a inutilidade do esforço. O comércio do mundo inteiro não pega, e prefere os seus dizeres antigos às combinações dos que gramaticaram aquele invento curioso. É que o artificial morre sempre, mais cedo ou mais tarde. (ASSIS, 1996 p. 215)

É entre guerras e óperas que se constrói o cenário para o diálogo ítalo-brasileiro nesta crônica, em meio à realidade e ficção, entre horror e arte. A guerra federalista faz o papel real do horror pelo qual passava o país naquele momento, e as óperas italianas e francesas figuram “com suas notas de ouro” um momento de paz artística. Pela leitura da crônica é possível notar o tom admirado e esperançoso pelo qual o cronista se expressa ao tratar do papel sublime da arte. “A arte virá assim, com as suas notas de ouro, cantadas e faladas, trazer à nossa alma aquela paz que alguns homens de boa vontade tentaram restituir à alma rio-grandense, reunindo-se quinta feira na Rua da Quitanda”.

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Quando Machado de Assis escreveu esta crônica para o jornal a Gazeta de Notícia, no dia 23 de março de 1893 houvera uma reunião, no dia anterior, de vários senadores e deputados, para procurar uma solução para a guerra federalista: Reuniram-se hontem , no salão do Banco Mutuo, os Srs. Senadores Saldanha Marinho, Monteiro Barros, Esteves Junior[...] Fallaram ainda os Srs. Berlarmino Mendonça e Matta machado. Por fim approva se uma indicação do Sr. Jacques Ourique, em que fica consignado que não há meio pratico de intervir nos negócios do rio Rio Grande do Sul. E dissolveu-se a reunião. (Gazeta de Notícias 23.03.1893)

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Como visto, parece que não houve uma resolução, como também pode-se observar pelas palavras do cronista “Da reunião destes resultou saber-se que não havia solução prática de acordo com os seus intuitos”. A revolução federalista ocorreu no sul do Estado logo após a proclamação da República, e teve como causa a instabilidade política gerada pelos federalistas, que pretendiam tirar Rio Grande do Sul do governo Júlio Prates de Castilhos, então presidente do Estado e chefe do partido republicano. Foram disputas sangrentas ocasionando uma guerra civil, que durou de fevereiro de 1893 a agosto de 1895. A divergência teve início com atritos ocorridos entre aqueles que procuravam a autonomia estadual (os republicanos), frente ao poder federal e seus opositores (os federalistas). A luta armada atingiu as regiões compreendidas entre o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Para Robert Levine, na História geral da Civilização Brasileira: Em parte alguma foi a instabilidade política nos anos iniciais da República maior do que no Rio Grande do Sul. Entre a queda do Império e a segunda posse de Castilhos, em janeiro de 1893, o governo estadual mudou de mãos 18 vezes. A mobilização política, as perseguiçoes movidas pelos Republicanos, as contraperseguiçoes desfechadas pelos Federalistas trouxeram


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ao Estado as agruras da guerra civil em 1893-95. Nessa luta, os Federalistas incadiram a Campanha três vezes, partindo do Uruguai e da Argentina, mas nunca puderam conservar o território invadido contra o exercíto federal, a polícia estadual (Brigada Militar) e os corpos provisórios do governo estadual. A guerra durou 31 meses e produziu de dez a doze mil baixas numa população de um milhão de pessoas. ( LEVINE, 1975 p. 110)

Nota-se, portanto, a gravidade do movimento que atingiu âmbito nacional, ameaçando a estabilidade do governo rio-grandense e o regime republicano em todo o país. Na crônica, depois de comentar a reunião, o cronista faz outra comparação entre a guerra e a arte. Eleva a função da arte, para mostrar que estava chegando a temporada das tournées da atriz Sarah Bernhardt na América Latina, e também a representação da ópera de Verdi, Falstaff. O cronista com o verbo no modo imperativo, uma recomendação, ou até mesmo uma ordem, pede para que o leitor acredite no poder da grande arte, que estava chegando “entre o fim do outono e inicio do inverno”. No que concerne à presença italiana, o cronista diz ser a ópera verdiana uma obra-prima, não pela temática, mas essencialmente pelo seu compositor. Na época, Falstaff era a ópera mais recente de Giuseppe Verdi, escrita quando o autor tinha 77 anos. Foi inspirada na adaptação por Arrigo Boito de The Merry Wives of Windsor (As alegres comadres de Windsor), de William Shakespeare. A referência a essa ópera desencadeia outro assunto: o problema dos libretos. Para o cronista, os libretos não tem uma certa importância, e na maioria das vezes não são bons. É então, que dá o exemplo da ópera Il Trovatore, outra obra prima de Giuseppe Verdi, que juntamente com Rigoletto e La Traviata compõe a “trilogia verdiana”. E a partir daí o tom é de rememoração saudosista dos tempos do Trovador. Essa ópera estreou no Teatro Apollo, em Roma, no ano de 1853. Para o cronista o importante nessa obra não era Salvatore Camarano, o libretista autor dos versos, mas sim a representação

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de Casaloni e dos tenores Tamberlick e Mirate. Exemplifica com Il Trovatore, para mostrar que também em Falstaff, o libreto não terá importância, o que vale é a musica de Verdi e ainda conclui: “Resignemo-nos ao que algum mau alfaiate houver cortado na capa magnífica de Shaskespeare”. A recorrência a Guiseppe Verdi é muito frequente na obra machadiana. Nessas seis crônicas escolhidas, em três existe algum vestígio verdiano. De certa forma, pode-se dizer que não só a Verdi se recorre, mas o teatro lírico também é uma constante da obra de Machado de Assis, sobretudo o italiano. Essa constante recorrência na obra do escritor fluminense pode ser um reflexo do que acontecia na época. Nesse sentido, o gênero crônica vai ao encontro dessa presença lírica nos textos do autor de Dom Casmurro: uma vez que se trata de um gênero hibrido, existe uma profunda relação entre ficção e história, e o chão cultural do momento em que são escritas sempre salta aos olhos do leitor. Por esse motivo, é importante conhecer a importância do teatro italiano no século XIX. De acordo com Franco Cenni, a “supremacia italiana no setor teatral” não era só uma constante na obra de Machado de Assis, mas no contexto da época: A incontestável supremacia italiana no setor teatral, durante muitos anos, dependeria de três razões principais: o próprio caráter da música italiana, a afinidade de gôsto entre peninsulares e brasileiros e a exuberância numérica dos artistas de origem italiana. Enquanto o teatro português continuava a ter uma produção reduzida, contando com poucos artistas, o espanhol, com exclusão das “zarzuelas”, não produzia espetáculos de particular interesse para o estrangeiro, e o francês, embora possuindo grandes artistas, não contava com número de executantes e de autores comparável ao dos italianos. (CENNI, 1975 p.349).

Juntamente com esse espírito da época que compreendia as companhia líricas italianas estava a admiração de Machado de Assis e a visão da Itália como a pátria de belas canções, como


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bem ressalta o italiano Giorgio Marotti em seu ensaio intitulado Il Personaggio dell’ Italiano nel romanzo brasiliano dell’ ottocento e novecento: “Un´Italia Alla Machado de Assis, un´Italia cioè di cantanti e di musicisti, di opere e di belle canzoni”(MAROTTI, 1979, p. 16) Vejam-se alguns exemplos: em novembro de 1861, no Diário do Rio de Janeiro, assinado “Gil” há uma afirmação a respeito daquilo que representava o teatro lírico: Dizem que a gente experimenta uma certa mudança moral de sete em sete anos. Consultando a minha idade, vejo que se confirma em mim a crença popular, e que eu entrei ùltimamente no período lírico. É isso o que explica hoje a minha preferência pelas representações dêste gênero, e que me fêz um adepto fervente da música. Como se vê, não me devo em parte lastimar, porque esta mudança coincidiu o movimento lírico que se vai observando na atualidade. (ASSIS, 2008 p.29)

Machado de Assis era um amante da arte do bel canto. E é nesse espaço que figura essa atmosfera italiana: terra de belas canções e grandes artistas. A Itália com suas musas sempre estivera presente em suas obras. Como afirma em crônica para “A Semana” de 9 de setembro 1984: “A verdade é que nós amamos a música sobre todas as cousas e as prima-donas como a nós mesmos”. Dentre as primedonne mais citadas por Machado de Assis estão: Augusta Candiani, Adelaide Ristori, Teresa Parodi e Annetta Casaloni. E é exatamente essa última citada pelo colaborador da Gazeta de Notícia, quando fala da ópera O trovador de Giuseppe Verdi. Annetta Casaloni foi uma cantora lírica italiana muito popular no Rio de Janeiro nos anos 50. Nota-se, então, que o tom do cronista é de rememoração, como bem especifica “pelos tempos do Trovador”. Rememoração e admiração, para o cronista ela tinha uma voz poderosa, um vozeirão que valia por toda uma companhia, é então que cita em italiano uma parte do quarto ato da ópera de Verdi “Ai nostri monti ritorneremo”, quando a cigana

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Azucena, personagem de Casaloni está aguardando o momento de ser executada. Em seguida, na crônica aparece outra parte da ópera, mas agora o terceiro ato “ di quella pira l´orrendo fuoco”, fala do personagem Marico, interpretadas por Tamberlick ou Mirate, tenores italianos da época. É também com entusiasmo que o cronista se dirige a eles, afirmando a quantidade de aplausos capazes de rasgarem as luvas em palmas. Essa recorrência à ópera italiana foi também para mostrar que segundo o cronista, depois de ouvir a música de Verdi e as grandes vozes de Casaloni e dos tenores “ninguém queria saber do Cammarano, que era o autor dos versos”. Vale ressaltar que Salvatore Camarano, libretista e autor dramático italiano, junto com Cesare De Sanctis, Domenico Morelli e Vincenzo Torelli foi um dos mais importantes representantes do grupo de amigos de Verdi. Como libretista, conseguiu seu primeiro sucesso com Gaetano Donizetti, para o qual escreveu o libreto da ópera Lucia de Lammermoor e Assedio di Calais. Para Guiuseppe Verdi, Cammarano escreveu o libreto de Alzira, La Battaglia di Legnono, Luisa Miller e Il Trovatore. A atmosfera italiana nessa crônica não diz respeito somente ao teatro lírico. Depois de tratar das óperas de Verdi e afirmar que está aguardando como será a inauguração de Falstaff, a ópera então mais recente do octogenário compositor italiano, o cronista muda de assunto, mas não de nação. O foco agora é o médico italiano Abel Parente, que fazia escândalo do Rio de Janeiro nesse momento, com um meio para impedir a concepção. No dia 10 de fevereiro de 1983 o jornal Gazeta de Notícias publica a seguinte notícia: O DR ABEL PARENTE Foi iniciado hontem Dr. 1º delegado de policia, a requerimento 1º promotor publico, o inquerito para averiguações e esclarecimentos acerca dos meios empregados pelo Dr. Abel Parente para prevenir para sempre a concepção. Depoz hontem o Dr. Agostinho José de Souza Lima, que disse não


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conhecer o processo empregado pelo Dr. Abel Parente e não ter noticia dos bons resultados por elle apregoados, quer por observação proprias, quer por informações de collegas seus, e por isso nada pode adiantar. Na sua opinião, quando mesmo conheça o Dr. Abel Parente esse meio inoffensivo de promover a esterilidade perpetua da mulher, nos termos em que annuncia e faz alarde, se não incorre em infracçoes da nossa lei penal, infringe certamente preceitos de probidade e dignidade profissional, e por outro lado assume uma responsabilidade que escapa á competencia a attribuição individual de uma medico, interrompendo desassombradamente a marcha da vitalidade de um povo e concorrendo indirectamente para a prostituição clandestina e portanto para a corrupção dos costumes, que, como medico, deve evitar, de acordo com a promessa da investidura profissional[...] (A Gazeta de Notícias, 10.02.1893, p. 3)

Percebe-se na crônica certa ironia diante desse fato. O cronista nomeia esse processo de esterilização como ignoto e célebre. E depois conclui “seja o que for é uma questão reduzida aos médicos; não passará aos magistrados. Vamos esquecendo; é nosso ofício”. Lendo uma crônica anterior do dia 12 de fevereiro de 1893, pode-se inferir que a questão era mais complexa do que parecia. O cronista sonha que faleceu e então tem uma conversa com São Pedro, que lhe pede para explicar um mistério. São Pedro pergunta se o cronista sabe porque um grande número de almas que saíram do céu para o Brasil voltaram sem poderem incorporar, e a resposta do mistério parece estar no tal médico italiano, Abel Parente: — Sim, vejo que amas o mistério. Explicar-me-ás este de um grande número de almas que foram daqui para o Brasil e tornaram sem se poderem incorporar? — Quando, divino apóstolo? — Ainda agora. — Há de ser obra de um médico italiano, um doutor ... esperai... creio que Abel, um doutor Abel, sim Abel... É um facultativo ilustre. Descobriu um processo para esterilizar as mulheres. Correram muitas, dizem; afirma-se que nenhuma

pode já conceber; estão prontas. — As pobres almas voltavam tristes e desconsoladas; não sabiam a que atribuir essa repulsa. Qual é o fim do processo esterilizador? — Político. Diminuir a população brasileira, à proporção que a italiana vai entrando; idéia de Crispi, aceita por Giolitti, confiada a Abel ... (ASSIS,1996 p. 197)

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Francesco Crispi e Giovanni Giolitti eram dois homens fortes da política italiana no momento. Nota-se, portanto, que segundo o cronista havia uma questão política, e não só o problema da esterilidade, eles estavam preocupados com a imigração italiana. A partir dessa crônica, pode-se perceber que a presença italiana também circunda a atmosfera política, não se concentrando somente na arte. Para Franco Cenni, as referências que Machado de Assis faz a Itália e aos italianos, líricas a parte, são comuns nas crônicas que o escritor fluminense publica constantemente na imprensa ,“e todas elas inspiradas por sincera simpatia e por grande espírito de compreensão”. Como se pode ver em crônica também para “A semana” de 18 de outubro de 1896: Conquanto um artigo de folha genovesa diga que a colônia italiana acabará por absorver a nacionalidade brasileira, eu não dou fé a tais prognósticos; mas quando italianos nos absorvessem, seriam outros, não seriam já os mesmos. Há aí na praça um napolitano grave, influente, girando com capitais grossos, velho como os italianos velhos, que orçam todos pela dura velhice de Crispi e de Farani. Pois esse homem vi-o eu muita vez tocar realejo na rua, simples napolitano, recebendo no chapéu o que então se pagava, que era um reles vintém ou dois. Tinha eu sete para oito anos; façam a conta. Vão perguntarlhe agora se quer ser outra coisa mais que brasileiro, se não da gema, ao menos da clara. A propósito de realejo napolitano, li que em uma das levas de Genova para cá veio como agricultor um barítono. Ele, e um mestre de música; perguntando-se-lhes o que vinham fazer ao Brasil, parece que responderam ser este país grande e cá enriquecerem todos: “Por que não enriqueceremos nós?” concluíram. Não há que censurar. A voz pode levar tão longe


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como a manivela. Demais, a terra é de música e a música é de todas as artes aquela que mais nos fala à alma nacional. Um barítono, com boa voz e arte castigada, pode muito bem enriquecer, — ou, pelo menos, viver à larga. Tanto ou mais ainda um tenor e um soprano. Nem só de café vive o homem, mas também da palavra de Verdi e de Carlos Gomes. [...] Fiquemos aqui; ou antes, voltemos à Itália e aos seus cantores. Que venham, eles, barítonos e tenores, e nos trarão, além da música que este povo ama sobre todas as coisas, as próprias melodias do nosso maestro, e assim incluiremos um artigo no acordo que ela está celebrando com o governo brasileiro, porventura mais vivo e não disputado. Também ela amou a Carlos Gomes, não por patriotismo, que não era caso disso, mas por arte pura. (ASSIS, 2008 p.1328)

Tudo isso para dizer que, embora exista uma crítica em relação à atitude do médico Abel Parente e a Francesco Crispi e Giovanni Giolitti, os italianos eram bens vistos aos olhos machadianos. Nessa perspectiva, no que concerne à presença italiana nessa crônica tem-se, como foi visto, o teatro lírico italiano e a questão da concepção envolvendo um médico italiano. Portanto, essas duas aparições dialogam com o contexto da época, é o reflexo do que estava acontecendo nesse ano no Rio de Janeiro do século XIX. Obviamente tudo mesclado com a ficção e opinião machadiana. Mais uma vez é imprescindível a compreensão desse gênero colado ao tempo, que transmite essa relação com os acontecimentos diários. Nessa crônica, então, temos uma Itália atualizada e transformada no contexto da época de Machado de Assis, e ela aparece em meio a guerra e a escândalos. É possível dizer também que a evocação ao bel canto italiano na primeira parte da crônica, tem a função de trazer com “suas notas e ouro” no “vozeirão que valia corpo e alma por uma companhia inteira” o espírito engrandecedor da arte, ou seja, outra vez a visão da pátria de Dante como terra de belas canções e grandes artistas, preferível à visão que o Brasil oferecia naquele momento: a de uma nação desestabilizada por guerras separatistas e governada por políticos que não buscavam a solução do problema.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ASSIS. Machado. A Semana: crônicas (1892- 1893), Machado de Assis. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Hucitec, 1996. ASSIS. Machado. Obra completa, em quatro volumes: volume 4. Organização Aluísio Leite Neto. Ana Lima Cecilio , Heloisa Jahn. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. CANDIDO, Antonio. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Editora UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.

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CENNI, Franco. Italianos no Brasil “ Andiamo in Merica”. São Paulo: Edusp, 1975. MAROTTI, Giorgio. Il Personaggio dell’ Italiano nel romanzo brasiliano dell’ ottocento e novecento. Roma: Buzzati, 1979. LEVINE, Robert. História geral da Civilização Brasileira. 1975 PERIÓDICO CONSULTADO Gazeta de Notícias


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O diáRiO extRAVAgAnte de LimA BARRetO Isabela da Hora Trindade RESUMO: Esse artigo propõe-se a apresentar brevemente o Diário Íntimo do escritor carioca Lima Barreto. Atentaremos para a constituição material dessa obra, organizada pelo crítico Francisco de Assis Barbosa, com o intuito de levantar hipóteses interpretativas no que tange às motivações, necessidades e préstimos das páginas íntimas para esse escritor mantido à margem do círculo intelectual canônico de seu tempo. PALAVRAS-CHAVE: Literatura Brasileira, Gênero Diário, Diário Íntimo, Lima Barreto.

Passados três anos da morte do escritor carioca Lima Barreto (1881-1922), pensou-se em publicar suas páginas íntimas. O primeiro a cogitar essa idéia foi A. J. Pereira da Silva que por escrúpulo, em virtude das notas limabarretianas soarem, a seu ver, em muitos momentos como inconvenientes, logo abandonou essa idéia. As notas íntimas, compostas materialmente por folhas soltas e cadernetas permaneceram, num primeiro momento, em poder da família do autor. Atualmente, encontram-se na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, onde estão reunidos todos os manuscritos de Lima Barreto – cadernos, cadernetas, tiras soltas, folhas pautadas ou sem linha – sob a guarda da Seção de Manuscritos dessa biblioteca, compondo a “Coleção Lima Barreto”. Grande parte do material que forma o chamado Diário Íntimo está disponível apenas em microfilmes precariamente catalogados, uma vez que as notas diarísticas foram organizadas juntamente com outros papéis de natureza diversa. A maioria das notas presentes nesse diário podem ser visualizadas no documento 13 de nome “Notas de um Diário 1904 - 1914 [19__]”, contido no microfilme de localização I - 06. 29; I -06. 033. Trata-

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se de 93 tiras de papel, o que contabiliza 162 páginas, conforme descrição verificada no microfilme. As demais notas que dão corpo ao diário foram escolhidas em meio aos papéis vários de Lima Barreto, provavelmente obedecendo ao critério da temática de fórum íntimo. Foi desse modo que, em 1953, Francisco de Assis Barbosa, com a colaboração de Antônio Houaiss e Cavalcanti Proença, concretizou o projeto de publicação do diário, reeditado por duas vezes alguns anos mais tarde pelo mesmo pesquisador com acréscimos e modificações. Assim, o diário de Lima ganhou corpo através do trabalho cuidadoso de Barbosa em compilar suas anotações registradas em cadernetas e em folhas avulsas, algumas a lápis, conforme indicam as notas explicativas ao fim de cada capítulo[1] do Diário Íntimo. Deveu-se a Barbosa, portanto, a constituição material dessa obra. Cabe aqui salientar que, embora Lima não tivesse mantido um caderno específico, cuja finalidade fosse ser um diário, percebe-se pelo teor intimista e formato datado das anotações desse material encontrado, tratar-se de páginas diarísticas. Daí decorreu, a nosso ver, a opção do organizador em acrescentar o adjetivo íntimo ao título desse diário. Reforçou essa opção, o eu enunciado colocar-se em primeiro plano de modo introspectivo, expondo suas insuficiências e fraquezas. É imprescindível notarmos haver da parte de Lima a intenção de escrever um diário, conforme evidencia de pronto o título à entrada de 1903 “Um Diário Extravagante” (DI, p. 33 – Sem data, 1903)[2], enunciando dessa forma seu projeto. Conforme aludimos, o Diário Íntimo possui três edições, a primeira data de 1953 (pela editora Mérito), a segunda de 1956 e a terceira de 1961 (ambas pela editora Brasiliense), todas organizadas por Francisco de Assis Barbosa. Após efetuar uma análise comparativa das edições, escolhemos trabalhar com a 1

Consideraremos aqui cada ano do diário de Lima Barreto como um capítulo.

Todos os excertos citados do Diário Íntimo de Lima Barreto serão identificados pela sigla DI e pertencem à segunda edição dessa obra (1956). Incluiremos também a data referente ao excerto para situar melhor o leitor.

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segunda, que é idêntica à terceira, pelo fato desta apresentar maior riqueza de notas explicativas, se comparada com a primeira edição. Esta segunda edição apresenta ainda um período mais longo de escritura do Diário – 1900 a 1921, ao passo que a primeira compreende o período de 1903 a 1921, além de não contemplar os anos de 1906, 1910 e 1914, anos estes presentes na edição de 1956. De acordo com a nota prévia da segunda edição, foram acrescentados esboços de possíveis romances, dos quais muitos não chegaram a ser desenvolvidos pelo autor. É válido ressaltar que, ao fim da segunda edição, consta a primeira versão incompleta de Clara dos Anjos (1904), já ao final da primeira, temos os apontamentos de Diário do Hospício, fragmentos de Cemitério dos Vivos (capítulos I - V) e o inventário da biblioteca de Lima Barreto organizada por ele mesmo e batizada de “Coleção Limana”. Visto o período de tempo pelo qual se estenderam as páginas da segunda edição do diário de Lima, o leitor o imaginará relativamente longo, dado se nesse intervalo de vinte e dois anos o autor houvesse tomado nota diariamente. Contudo, logo que passamos a folheá-lo percebemos a falta de regularidade das anotações. Esse aspecto pode ser verificado pela ausência de notas ao longo dos anos de 1901, 1902 e 1909. Vale destacar que em nenhuma das edições foi verificado qualquer tipo de registro nesses anos, ou seja, reduz-se então para dezenove anos o período anotado nesse diário. Em relação ainda à regularidade da escrita, há outro aspecto a sublinhar: ao longo desse tempo de escritura em nenhum dos anos constam anotações diárias. Ao contrário, as notas são bem esparsas, o que quer dizer que há registros de alguns dias de determinados meses. O talhe das anotações é igualmente bem variável, enquanto há notas desenvolvidas ao longo de duas páginas, outras não passam de uma ou duas linhas, traço comum nos diários, já que o ritmo da escrita depende da vontade e da disponibilidade do diarista. Do mesmo modo, há dias em que Lima tomou várias notas a respeito dos mais variados assuntos, em

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outros, escreveu apenas uma nota, provavelmente, sobre aquilo que lhe pareceu mais interessante registrar. O ano de 1905 é o de registros mais abundantes. Somente no mês de janeiro constam vinte notas, além de outras não sequenciais ao longo dos meses de fevereiro, junho, julho e outubro. As entradas das anotações é outro traço relevante, são assinaladas ora por data mais o nome do mês, ora por somente data ou por somente mês e há ainda entradas não datadas, essas, a nosso ver, figuram no diário mais pela escolha de Barbosa do que pelo caráter que define entradas diarísticas – datação. Se por um lado o fato de muitas das entradas serem datadas, marca formalmente o intuito de escrever um diário, traço indispensável para esse gênero, por outro as notas sem data assinalam a intervenção do organizador. É interessante observar que Lima percebeu a falta de sequência na escritura do diário, chegando a comentar: 301

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Há mais de dez dias que não tomo notas. Nada de notável me há impressionado, de forma que me obrigue a registrar. Mesmo nos jornais nada tenho lido que me provoque assinalar, mas como entretanto eu queria ter um registro de pequenas, grandes, mínimas idéias, vou continuá-lo diariamente (DI, p. 99 - 20 de fevereiro de 1905).

Esse excerto demonstra que Lima atentava para esta característica do diário – a periodicidade, aspecto fundamental na confecção desse gênero que ele procurava respeitar. Seguindo Dider (2002, p. 09), Lima poderia ser considerado o tipo de diarista negligente [nonchalant] “que fica em atraso, visto isso, esforça-se para tapar quinze dias, um mês de silêncio e em branco no diário” (tradução nossa)[3], posto não manter suas notas em dia. O uso dos advérbios de tempo – hoje e ontem, pontua o registro de muitas das entradas respectivamente no dia relativo aos fatos narrados e no dia anterior. Outro marcador de regularidade da 3 Texto original: « qui prennent du retard et, après coup, s’efforcent de combler quinze jours, un mois de silence et de blanc dans leur journal » (DIDIER, op. cit., p. 09).


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escrita é, como no trecho supracitado, a indicação da quantidade de dias nos quais Lima nada anotou: “Desde domingo que não tomo notas. Hoje, 17, vou recapitular estes três dias” (DI, p. 86 – 17 de janeiro de 1905). Nota-se aqui se tratar de uma terça-feira, pois na sequência, ele passou a relatar os acontecimentos de domingo, depois de segunda, em seguida, usou o advérbio hoje para marcar os fatos de terça-feira. Passados alguns dias, em 24 de janeiro desse mesmo ano, registrou novamente: “Desde sábado, ou antes, desde sexta-feira (20), que não tomo notas” (DI, p. 89). A linguagem usada no Diário é bem coloquial, permeada por adjetivos e advérbios que intensificam as descrições feitas, revelando os efeitos de cada situação em Lima Barreto. Chama a atenção, o uso contínuo de palavras em francês, tais como – chance, toilette, flirt, gauche, touristes, rendez-vous, dentre outras. Sinais de reticência, pontos de exclamação e travessões, abundam nas páginas desse diário, marcando o caráter subjetivo próprio do diário íntimo. Conforme podemos observar, conquanto Lima se esforçasse para manter seu diário em dia, a periodicidade de sua escritura configura-se de forma bastante diversa. Talvez esse fato sinalize para o tipo de vida levado pelo autor que teve uma existência bastante conturbada, marcada especialmente pela doença do pai e pela falta de recursos financeiros da família. Acreditamos ser possível atribuir aos diversos problemas pessoais do autor essa falta de regularidade das anotações, além de não descartamos a possibilidade de sumiço de páginas íntimas. Vale ressaltar as duas internações no Hospício Nacional de Alienados por causa do alcoolismo – de agosto a outubro de 1914 e, mais tarde, do dia de natal de 1919 a fevereiro do ano seguinte. O primeiro capítulo do Diário Íntimo (1900) trata-se de uma das primeiras tentativas de romance do autor, datada de 02 de julho. Ambientada nos ares da Escola Politécnica delineia um

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personagem negro chamado Tito Brandão, considerado por uns inteligente e honesto e por outros muito orgulhoso. Tal narrativa é retomada no diário quatro anos mais tarde em notas sem data (DI, p. 54-56/ 65), contudo esse projeto não foi à frente. Consideramos, porém, que o diário de Lima iniciou-se de fato em 1903, com entrada intitulada “Um Diário Extravagante”, seguida de apresentação pessoal do autor e de seu audacioso projeto literário. Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto. Tenho vinte e dois anos. Sou filho legítimo de João Henriques de Lima Barreto. Fui aluno da Escola Politécnica. No futuro, escreverei a História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade (DI, p. 33 – 1903).

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Cumpre-se aqui ressaltar novamente o tipo de diário proposto por Lima – extravagante – indicando aquilo que escapa às normas do bom senso, por isso as notas ali contidas podem atestar o caráter excêntrico dessa personalidade. Ao adjetivo extravagante liga-se, por contiguidade, o verbo extravasar, nesse sentido, esse diário pode ser encarado como o espaço onde o eu confessional poderia derramar-se pela página, livre das bordas. Tudo leva a crer que contribuíram para o início do diário, em 1903, as circunstâncias que o antecederam: no ano anterior o pai de Lima enlouquecera forçando-o a abandonar a Escola Politécnica, em virtude da necessidade de obter recursos para o sustento da família. Como filho mais velho, cabe a Afonso assumir a chefia da casa, arcando com a responsabilidade de cuidar do pai demente, de alimentar e vestir mais oito pessoas: seus três irmãos, Prisciliana, os três filhos desta, além do preto velho Manuel de Oliveira, agregado dos Limas Barretos (BARBOSA, 2003, p. 130).

Essa situação de mudança no curso da vida, certamente corroborou para a escrita intimista. É possível perceber que Lima


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tomava suas notas em casa, retirado em seu quarto – espaço de recolhimento e de intimidade: “[...] Ontem, eram onze horas, eu estava no meu quarto, escrevendo [...]” (DI, p. 75 – 03 de janeiro de 1905). Desenrola-se nesse momento o rolo no qual se encontram inscritos os fatos, do dia decorrido, guardados no livro imaginário da memória. Ainda segundo Barbosa (op. cit., p. 134), Lima sentiu o desejo de recorrer ao álcool logo depois do pai apresentar os primeiros distúrbios mentais, provavelmente, forma encontrada para amenizar a gravidade do problema familiar que teria de enfrentar, resultado da “tristonha moléstia” de João Henriques. Sendo Lima literato, não é de se estranhar o destaque dado, logo no início do diário, ao projeto de escrever o que seria sua obra-prima, fato que marca a importância de tal projeto para o autor, cujo diário foi um espaço fecundo de permanente gênese literária. Com efeito, seu diário é repleto de apontamentos para a confecção de obras ficcionais, arcabouço de ideias a serem aproveitadas. Figuram ainda no diário desse autor, que foi profícuo leitor, inúmeras citações de obras de autores brasileiros e estrangeiros, sobretudo, referências a autores e obras francesas. Dentre os projetos literários, destacam-se os esboços (DI, p. 5760 – 1904) para a primeira versão inacabada de Clara dos Anjos; o planejamento (DI, p. 115-121 – 1906) dos capítulos da obra Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá que Lima começara a trabalhar em 1906, mas que viria a ser publicada somente em 1919; notas de 1910 para o livro Triste fim de Policarpo Quaresma, escrito subitamente de janeiro a março do ano seguinte, apareceu em volume em 1916, cuja publicação foi objeto de comentário do autor: O Policarpo Quaresma foi escrito em dois meses e pouco, depois publicado em folhetins no Jornal do Comercio da tarde, em 1911. Quem o publicou foi o José Félix Pacheco. Emendei-o como pude e nunca encontrei quem o quisesse editar em livro. Em fins de 1915, devido a circunstâncias e motivos obscuros,

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cismei em publicá-lo. Tomei dinheiro daqui e dali, inclusive do Santos, que me emprestou trezentos mil-réis, e o Benedito imprimiu-o (DI, p. 181 – março de 1916).

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Em nota precedente a essa citada, Lima queixou-se da má sorte, pois o momento em que seu livro foi publicado (26 de fevereiro de 1916) coincidiu, primeiro com a época do carnaval, depois Portugal declarara guerra à Alemanha (I Guerra Mundial), logo os jornais focaram a atenção nesses fatos e se esqueceram de falar de seu livro. Chegou a anotar os jornais cariocas que nada noticiaram a respeito, a saber: o Correio da Manhã e a Tribuna. Em seguida à apresentação do “Diário Extravagante”, Lima apontou o seu decálogo: “1 – Não ser mais aluno da Escola Politécnica. 2 – Não beber excesso de cousa alguma. 3 – E ...” (DI, p. 33 – 1903). O curioso decálogo de apenas dois mandamentos, já que o terceiro ficou em suspenso pelas reticências, pode assinalar o abatimento desse eu que, de antemão, sabia da dificuldade em cumprir esses e outros possíveis mandamentos. Nesse contexto, o sofrimento natural dessa dificuldade pode ser encarado a partir de duas perspectivas – a da renúncia de projetos e a da frustração de não conseguir alcançar algo desejado, seja em virtude de circunstâncias externas ou internas. A primeira diz respeito à dificuldade em cumprir o mandamento número um, abandono do sonho de se tornar engenheiro; a segunda, à dificuldade de deixar a bebida. Como sabemos, Lima conseguiu cumprir, cremos que não sem tristeza, apenas o primeiro item de seu decálogo. Um olhar, ainda que rápido, nas primeiras notas de 1903, percebe um gosto fortemente acidulado, que exprime o dissabor do eu confessional: Acordei-me da enxerga em que durmo e difícil foi recordar-me que há três dias não comia carne. Li jornais e lá fui para a sala dar as aulas, cujo pagamento tem sido para mim sempre uma hipótese. Tomei café. Escrevi o memorial para o Serrado. Não o achou bom e eu sou da opinião dele.


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Continuo a pensar onde devo comer. Há chance de ser com o Ferraz. Ah! Santo Deus, se depois disso não vier um futuro de glória, de que me serve viver? Se, depois de percorrido esse martirológio, eu puder ser mais alguma cousa do que o [i]diota Rocha Faria – antes morrer. [...] Noite. Ainda não jantei. Às seis horas, com um tostão, comi uma empada. Que delícia! Ah! Se o futuro... (DI, p. 33-34 – 12 de junho de 1903).

Encontram-se nesse excerto alguns dos assuntos recorrentes nas páginas do diário – a falta de dinheiro, o ofício de escritor, a casa, o anseio por glória – abordados sempre a partir de uma perspectiva negativista. Na ocasião dessa nota, Lima ganhava a vida como professor particular, além de escrever para jornais. Nesse mesmo ano, candidatou-se a uma vaga para amanuense da Secretaria de Guerra, classificado em segundo lugar, acabara sendo nomeado em função do falecimento de um dos funcionários desse órgão. Lima expressou ser seu objetivo principal ao escrever um diário o de registrar suas ideias. De fato, ao longo dessa obra, ele expôs suas reflexões mais íntimas, seus desejos e anseios, os quais podem ser resumidos com palavras do próprio autor: (...) que Deus me dê felicidade suficiente para pagar tudo que meu pai deve. E se eu isso fizer e se conseguir cercar-lhe o resto da vida da abundância que ele tem direito, eu só peço três coisas: Um amor Um belo livro E uma viagem pela Europa e pela Ásia (DI, p. 96 - 30 de janeiro de 1905). Ultimo dia do mês em que, com certa regularidade, venho tomando notas diárias da minha vida, que a quero grande, nobre, plena de força e de elevação (DI, p. 96 – 31 de janeiro de 1905).

Destacam-se ainda no Diário Íntimo as anotações relativas

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aos fatos miúdos do cotidiano, ao comportamento de muitos de seus contemporâneos, às impressões de leituras, ao aperto do orçamento doméstico, à relação avessa com a família, às inquietudes em relação ao futuro. Tangenciando todas essas anotações, pulveriza as páginas íntimas o sofrimento em virtude de sua condição racial: “É triste não ser branco” (DI, p. 130 – 24 de janeiro de 1908), exclamava ele. Acompanhamos vários desabafos de Lima lamentando a vida que levava, sentia-se essencialmente desajustado no seio familiar: “Dolorosa vida a minha! Empreguei-me e há três meses que vou exercendo as minhas funções. A minha casa ainda é aquela dolorosa geena pra minh’alma. É um mosaico tétrico de dor e de tolice” (DI, p. 41 – janeiro de 1904). Esse sentimento lastimoso em relação à família perdura por toda a existência desse autor, cristalizando-se de maneira aterradora ao longo dos anos de escritura do Diário: “A minha vida de família tem sido uma atroz desgraça. Entre eu e ela há tanta dessemelhança, tanta cisão, que eu não sei como adaptarme. Será o meu “bovarismo”?” (DI, p. 91 – 26 de janeiro de 1905). Diante de confissões tão consternadas presentes nas páginas de Lima é possível pensarmos que, para ele, escrever um diário seria um meio de exteriorizar suas angústias. Desse modo, a necessidade de desabafo estaria estreitamente ligada ao sentimento de que os acontecimentos rotineiros eram difíceis de suportar, escrever seria antes de tudo uma forma de aliviar toda essa tensão que tanto lhe afligia. O diário serviu-lhe, assim, como espécie de refúgio ao sofrimento íntimo e às pressões cotidianas. Refugiado nele, portanto, pôde extrapolar padrões intelectuais, sociais, literários, nesse espaço cavado pela aporia de um eu marcado pelo excesso.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. BARRETO, Lima. Diário Íntimo. São Paulo: Editora Mérito, 1953. BARRETO, Lima. Diário Íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956. BARRETO, Lima. Diário Íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1961. DIDIER, Béatrice. Le journal intime. Paris: Presses Universitaire de France, 2002. 309

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afetivas que só se concretizam diante de um terceiro elemento, um mediador entre o sujeito desejante e seu objeto de desejo. A partir dessa premissa, pode-se dizer que no romance italiano os vértices do triângulo amoroso serão ocupados pelo protagonista Emilio Brentani, pela sensual Angiolina Zarri e pelo melhor amigo de Emilio, Stefano Balli. Em Dom Casmurro, os vértices serão ocupados por Bento Santiago, Capitu e Escobar, melhor amigo de Bento. É importante enfatizar que nos dois romances o terceiro vértice será ocupado pelos melhores amigos dos protagonistas dos respectivos romances.

CIÚME E RELAÇÕES TRIANGULARES NOS ROMANCES SENILITÀ, DE ITALO SVEVO, E DOM CASMURRO DE MACHADO DE ASSIS. Ivair Carlos Castelan[1] RESUMO: O objetivo principal do presente artigo é analisar a presença do ciúme e sua relação com a formação dos triângulos amorosos nos romances Senilità, do escritor italiano, Italo Svevo, e Dom Casmurro, de Machado de Assis. A partir de uma análise mais profunda da narrativa de cada romance e da teoria de René Girard pretende-se mostrar como o ciúme atua nas relações amorosas vividas pelos protagonistas. Relações que só se concretizarão na presença de um terceiro elemento, isto é, um mediador real ou imaginário que dará origem ao terceiro vértice dos triângulos amorosos presentes nas duas obras. Palavras-chave: Ciúme, Triângulo Amoroso, Italo Svevo, Machado de Assis, Senilità, Dom Casmurro.

Tanto o romance Senilità (1898) do escritor triestino, Italo Svevo, quanto Dom Casmurro (1899), do escritor brasileiro Machado de Assis, apresentam como temática principal o ciúme, essencial para compreendermos os protagonistas desses dois romances, Emilio Brentani e Bento Santiago. Elemento determinante para o desenrolar da narrativa, o ciúme é cristalizado, nas duas obras, através da construção do triângulo amoroso, explorado como parte integrante e primordial para as relações 1

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Outra analogia que pode ser traçada entre as duas obras diz respeito à descrição da personagem feminina. Tanto Angiolina quanto Capitu são mulheres bonitas, sedutoras e mais ardilosas que seus “amantes”. A beleza e sensualidade marcantes dessas duas mulheres contribuem ainda mais para despertar e aumentar o ciúme de Emilio Brentani e de Bento Santiago, que cederão a esse sentimento amargo. O ciúme, aqui, atuará como uma espécie de alicerce na construção da identidade desses protagonistas, uma vez que Emilio Brentani e Bento Santiago não seriam personagens tão bem delineados se desprovidos do ciúme doentio que sentem. Assim, nossa análise busca compreender o ciúme a partir da narrativa dos respectivos romances e, sobretudo, através da teoria de René Girard (2009), em Mentira romântica e verdade romanesca. Para o crítico francês toda relação amorosa é triangular, sendo que sua existência depende do outro, isto é, um terceiro elemento que irá instigar o desejo do sujeito por seu “objeto”. De acordo com a ideologia de René Girard, toda relação amorosa é triangular; sendo o terceiro elemento desse triângulo chamado de mediador. Assim, em Senilità, apreendemos como primeiro mediador na história de Emilio, o amigo Sorniani, que instigará o ciúme latente do senhor Brentani. Já em Dom Casmurro, o primeiro mediador na história de Bento Santiago é José Dias, sendo ele o responsável em


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despertar no jovem Bentinho a percepção de seu amor pela bela Capitu.

– E se Volpini souber deste nosso passeio pela cidade?

Cabe ressaltar que mediador, conforme a ideologia girardiana, é o responsável por incitar determinado sentimento no sujeito desejante, que pode ser de desejo, de ódio, de inveja, de amor ou de ciúme.

– Quem lhe haveria de contar? – disse ela com grande calma. – Eu diria que você é irmão ou primo de Sra. Deluigi. Ele não conhece ninguém em Trieste; por isso é fácil fazê-lo acreditar seja no que for.(SVEVO, 1982, p.56)

Para João Cezar de Castro Rocha, em A primeira pedra de uma Catedral, ensaio introdutório ao texto de René Girard, os escritores que apresentam o mediador em suas obras permitem que a verdade romanesca seja revelada, em contrapartida, aqueles que ocultam a presença do mediador cooperam para a mentira romântica (ROCHA, 2009, p.18).

Comovido, Emilio confessou-se. Sim. Agora o via claramente. A coisa tornava-se muito séria, e descreveu o próprio amor, a ansiedade de vê-la, de falhar-lhe, os ciúmes, as dúvidas, a angústia incessante e o perfeito esquecimento de todas as coisas que não dissessem respeito a ela ou ao próprio sentimento. Depois falou sobre Angiolina como agora a julgava em consequência de seu comportamento na rua, daquelas fotos penduradas à parede de seu quarto e de seu sacrifício ao alfaiate e do pacto que fizeram. (SVEVO, 1982, pp.57-58, grifo nosso)

Partindo de tais premissas, podemos dizer que os dois romances podem ser classificados como obras romanescas, pois a presença do mediador é revelada, ou melhor, a presença dos mediadores no processo de despertar sentimentos nos respectivos protagonistas. Desse modo, em Senilità, os mediadores que permeiam a vida de Emilio são Sorniani, Leardi, Merighi, Volpini, Datti e o amigo Balli, que atuará como integrante do terceiro vértice do principal triângulo amoroso contido na narrativa. Em Dom Casmurro, podemos apreender como mediadores na história de Bento Santiago, especialmente José Dias, Escobar vivo e Escobar morto, “ressuscitado” na figura de Ezequiel, filho “ilegítimo” de Bento e prova concreta, conforme tenta provar o narrador, do adultério da esposa. Além do dândi e de algum peralta da vizinhança. Girard (2009) discorre sobre dois tipos de mediação, a externa e a interna. A mediação externa, segundo ele, ocorre quando não há contato algum entre sujeito e mediador. Vejamos alguns exemplos dessa mediação nos romances em análise. Em Senilità, a mediação externa pode ser apreendida no ciúme que o suposto noivo de Angiolina, o alfaiate Volpini, desperta em Emilio, conforme exemplo:

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Tal excerto pode ser tomado como um claro exemplo do que vem a ser mediação externa, uma vez que não há contato entre Emilio e Volpini. Outro exemplo de mediação externa no romance italiano pode ser visto a propósito do ciúme sentido por Emilio ao perceber que Angiolina está flertando com os transeuntes desconhecidos da rua. Vejamos: – Por que está flertando? – perguntou-lhe com um sorriso contrafeito. – Por que ficou tão satisfeita com isto? – perguntou ele com tristeza. Ela não conseguia compreender. Depois, com astúcia, quis fazê-lo acreditar que ela, de propósito, estava procurando despertar-lhe ciúmes, e, por fim, para acalmá-lo, impudicamente, à luz do sol fez com os lábios rubros um gesto que queria representar um beijo. (SVEVO, 1982, p.55)

Aqui, temos mais um modelo da mediação externa, pois é impossível haver contato entre Emilio e os homens com quem Angiolina flerta. Provavelmente, como se pode notar pela instância da narrativa, o


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senhor Brentani nunca vira, nem conhecera tais homens, contudo seu ciúme é despertado.

antes da passagem do dândi (CALDWELL, 2002, p.26). A asserção de Caldwell (2002) é interessante e coerente. O ciúme poderia ser de Escobar, pois Capitu observa o amigo de Bento da janela de sua casa e movida por certa curiosidade indaga a Bentinho: “Que amigo é esse tamanho?” Como o próprio Bento nos descreve, seu amigo “realmente, era interessante de rosto”, musculoso, bom em matemática, enfim, apresenta características e qualidades capazes de despertar inveja e ciúme em Bento Santiago (MACHADO DE ASSIS, 1975, p.170).

Em Dom Casmurro, a princípio, poderíamos pensar que o primeiro ataque de ciúme de Bento provocado pelo seguinte comentário de José Dias, quando indagado sobre Capitu: “─ Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquilo enquanto não pegar alguma peralta da vizinhança, que case com ela...” ( MACHADO DE ASSIS, 1975, p.157), poderia ser apreendido como ilustração da mediação externa, uma vez que não houve contato entre o sujeito (Bento) e o peralta da vizinhança. Todavia, é indispensável esclarecer que o rapaz da vizinhança não pode ser tomado como o mediador, pois esse papel cabe a José Dias, responsável em provocar ciúmes no narrador casmurro.

Ainda que em tal circunstância o causador de seu ciúme seja, de fato, Escobar, a mediação continua sendo externa, uma vez que Bentinho “não tem consciência de que é Escobar o objeto de seu ciúme” (CALDWELL, 2002, p.27).

Um exemplo de mediação externa no romance encontra-se no segundo ataque de ciúme de Bentinho, quando ele vê o jovem dândi que passava a cavalo voltar-se para trás para fitar Capitu. Vejamos: O cavaleiro não se contentou de ir andando, mas voltou a cabeça para o nosso lado, o lado de Capitu, e olhou para Capitu, e Capitu para ele; o cavalo andava, a cabeça do homem deixava-se ir voltando para trás. Tal foi o segundo dente de ciúme que me mordeu. A rigor, era natural admirar as belas figuras; mas aquele sujeito costumava passar ali, às tardes; morava no antigo Campo da Aclamação, e depois... e depois... Vão lá raciocinar com um coração de brasa, como era o meu! Nem disse nada a Capitu; saí da rua à pressa, enfiei pelo meu corredor, e, quando dei por mim, estava na sala de visitas. (MACHADO DE ASSIS, 1975, p.172)

Ainda que a “distância” que separa Bentinho e o dândi seja pequena, não há contato entre os dois, sendo externa a mediação entre eles. nessa passagem, Bento Santiago confessa sentir ciúmes, contudo esses ciúmes seriam do dândi ou do amigo Escobar? Quem levanta essa questão é a crítica Helen Caldwell (2002) ao defender que o verdadeiro ciúme sentido, ainda que inconscientemente, não é pelo cavaleiro, mas pelo colega Escobar que deixara sua casa um pouco

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Diferentemente da mediação externa, em que existe uma “distância” que separa o sujeito desejante e o mediador, na mediação interna há maior contato entre eles. Em Senilità, esse tipo de mediação concretiza-se na amizade entre Emilio e Balli. O senhor Brentani, antes de apresentar a sedutora Angiolina ao amigo, mantém um relacionamento confidente com o escultor, contando os pormenores de seu relacionamento com a amante. Logo após o primeiro encontro com a senhorita Zarri, Emilio procura o amigo para contar o acontecido. Vejamos: Seu amigo mais íntimo, um certo Balli, escultor, soube do encontro logo no dia seguinte em que (p.19) ocorrera. – Por que também não me divertir um pouco, se o posso fazer sem gastar muito? – perguntara Emilio. Balli esteve a ouvi-lo com um aspecto evidentemente maravilhado. Era amigo de Brentani há mais de dez anos, e pela primeira vez o via empolgar-se por uma mulher. Ficou preocupado ao perceber o perigo que ameaçava Brentani. (...) – na verdade – disse depois de ouvir de Emilio todas as particularidades da aventura – o caso é praticamente isento de perigo. O caráter da aventura já ficou determinado pela sombrinha que tomba oportunamente da mão e por esse encontro que logo se concede. (SVEVO, 1982, pp.18-21)


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Essa passagem é importante por salientar a amizade existente entre Emilio e Balli. A relação harmoniosa entre eles será estremecida após Emilio apresentar Angiolina ao escultor. Neste momento, o senhor Brentani começa a dar mostras do ciúme que sente do amigo. Vejamos:

da argila dócil uma face, uma expressão, a vida. (SVEVO, 1982, pp.72-73, grifo nosso)

Após esse encontro, a relação entre Emilio e Balli é estremecida. “Emilio procurava o amigo de raro em raro” (SVEVO, 1982, p.75). Brentani reconhece seu caráter ciumento, confessando seu grande temor de uma aproximação entre o escultor e Angiolina. Vejamos:

– Que mau gosto! – exclamou Balli sem poder deixar de rir. Percebia-se que a partir desse instante Angiolina o divertia muito. Ele continuou a dizer-lhe coisas desagradáveis, mas parecia fazêlo apenas para incitá-la a defender-se. Ela também se divertia com isto. Havia em seu olhar para o escultor a mesma benevolência que brilhava no de Margherita; uma mulher copiava a outra, e Emilio, depois de tentar em vão introduzir algumas palavras na conversa geral, estava agora propenso a perguntar-se por que motivo organizara essa noitada. (SVEVO, 1982, p.69, grifo nosso)

A noite que deveria ser de alegria e de prazer termina por causar arrependimento em Emilio. note-se, pelos termos grifados, que o senhor Brentani se sente excluído ao perceber que Angiolina se interessa pelo amigo. Assim, o ciúme de Brentani é despertado dando origem ao triângulo amoroso composto pela tríade: Emilio, Angiolina e Balli. O sentimento amargo que Emilio começa a sentir pelo amigo vem confessado por ele mesmo na sequência, quando Balli convida a senhorita Zarri a posar como modelo para uma escultura. Vejamos: Balli agradeceu e disse que certamente se aproveitaria da oferta, mas somente dali a alguns meses, pois, por ora, estava muito ocupado em outros trabalhos. Fitou-a longamente, imaginando a pose em que a teria retratado, e Angiolina ficou rubra de prazer. Ah, se pelo menos Emilio tivesse um parceiro no sofrimento. Mas, não! Margherita não era de modo algum ciumenta, e também contemplava Angiolina com olhar de artista. Disse que Stefano haveria de fazer um belo trabalho, contando com entusiasmo as surpresas que sua arte lhe havia proporcionado, ao vê-lo extrair

– Contudo – confessou Emilio sinceramente comovido com o afeto de Balli –, nunca sofri tanto de ciúme quanto agora. – Parando em frente de Stefano, disse-lhe com voz profunda: – Promete que vai contar-me tudo quanto souber a respeito dela? Não quero que você se aproxime dela, mas se a vir na rua venha logo contar-me. Promete? Promete formalmente? (SVEVO, 1982, p.128)

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Em várias passagens da narrativa, Emilio declara e confessa esse sentimento nefasto que atormenta sua existência; Brentani tem consciência de estar “doente de ciúmes” (SVEVO, 1982, p.129). A hipótese de ver Angiolina com Balli o atormenta, sendo que ele diz preferir ver a amante com qualquer outro homem exceto com o amigo. Em Dom Casmurro, a medição interna pode ser vista na relação próxima e afetuosa existente entre Bento e o amigo Escobar, que será seu confidente e também o terceiro vértice do triângulo amoroso da história. Várias são as passagens em que tomamos conhecimento da concretização e solidificação do triângulo: Bento, Capitu, Escobar. Os traços e contornos desse triângulo começam a ganhar definição, pode-se dizer, no capítulo XCII, O diabo não é tão feio como se pinta, em que Bento reconhece que duas pessoas o ajudam a esquecer do caso do “amigo” Manduca. Essas pessoas são, na verdade, Capitu cujo nome é revelado no mesmo capítulo e Escobar, declarado pelo narrador no capítulo seguinte, intitulado Um defunto por amigo. A partir de então, a presença de Escobar far-se-á constante na vida


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de Bento e Capitu. Toda a narrativa, após o acontecimento com o dândi, será triangular. Escobar ocupará o terceiro vértice desse triângulo mesmo depois de sua morte. A propósito do velório de Escobar, o comportamento de Capitu denuncia a suposta traição aos olhos de Bento. Vejamos um trecho do capítulo CXXIII, Olhos de ressaca, em que Capitu consola a amiga Sancha:

triângulo amoroso. A presença do amigo morto far-se-á constante na vida do casal, na imagem de Ezequiel, retrato fiel de Escobar, conforme descrição de Bento. Vejamos: [Ezequiel] era nem mais nem menos o meu antigo e jovem companheiro do seminário de São José, um pouco mais baixo, menos cheio de corpo, e, salvo as cores, que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo. Trajava à moderna, naturalmente, e as maneiras eram diferentes, mas o aspecto geral reproduzia a nossa pessoa morta. Era o próprio, o exacto, o verdadeiro Escobar. Era o meu comborço; era o filho de seu pai. (MACHADO DE ASSIS, 1975, p.255, grifo nosso)

Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. no meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas... (MACHADO DE ASSIS, 1975, pp.233-234, grifo nosso)

Como podemos notar, nem mesmo a morte do amigo é capaz de colocar fim ao ciúme de Bento e desequilibrar o triângulo amoroso. Sua própria esposa percebe o ciúme doentio que ele nutre pelo morto, como fica explícito na seguinte fala: “Pois até os defunctos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!” (MACHADO DE ASSIS, 1975, p.249). A principal batalha de Bento, de acordo com Gilberto Pinheiro Passos (2003), não se dá com o rival vivo, mas com sua memória, pois começa no enterro do amigo. Daí a importância de se relembrarem as patéticas relações de semelhança com Ezequiel. A morte é o ponto de partida para o crescer das suspeitas e o coroamento do ciúme. (PASSOS, 2003, p.88)

Escobar sempre ocupará, na mente de Bento, o terceiro vértice desse

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Bento Santiago demonstra plena certeza sobre a verdadeira paternidade de Ezequiel. Para ele não restam dúvidas, o “filho” é a prova concreta da traição da esposa com seu melhor amigo Escobar. Contudo, como bem observou Schwarz (1997), “não há como ter certeza da culpa de Capitu, nem da inocência, (...) em compensação, está fora de dúvida que Bento escreve e arranja a sua história com a finalidade de condenar a mulher” (SCHWARZ, 1997, p.16). Confiar ou não confiar na versão de Bento Santiago? Eis a questão!. A nosso ver, tal questionamento não é tão relevante, pois reduziria a narrativa a uma leitura engessada e limitada. Além do mais, acreditar em sua versão seria ignorar seu caráter ciumento, possessivo, sua condição de homem em uma sociedade patriarcal da qual ele é fiel representante, sem falar em sua formação religiosa e sua fértil imaginação. Como podemos perceber, o ciúme apresenta-se como o principal protagonista na história e na relação amorosa dos casais nos dois romances. Tais relações, de acordo com o postulado de René Girard (2009), serão triangulares, cabendo a a Balli e Escobar ocuparem o terceiro vértice desses triângulos, e estimularem o desejo de Bento Santiago e Emilio Brentani.


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Por intermédio da narrativa desses dois protagonistas notamos a formação e a solidificação dos triângulos, por isso, como bem notou João Cezar de Castro Rocha (2009), “poucos exemplos possuem a eloquência de Dom Casmurro”, e aqui tomamos a liberdade de incluir Senilità, ao desenvolver e discutir de forma magistral uma relação amorosa que só consegue existir na presença de um terceiro elemento, um mediador entre o sujeito desejante e seu objeto desejado. Assim, podemos dizer que a narrativa dos romances visa ao desenvolvimento e à perscrutação das relações triangulares, fundamentais para a compreensão dos protagonistas. De fato, Bento Santiago e Emilio Brentani, não existiriam, não seriam personagens tão bem moldados e desafiadores se desprovidos de seus ciúmes exacerbados. Da mesma forma, as relações amorosas vividas por eles não encontrariam razão para se concretizar, e consequentemente não teríamos o regalo de ler dois dos textos mais intrigantes e provocadores das literaturas brasileira e italiana, tecidos com o fino fio das afeições, dos parentescos e das aventuras que cada leitor pode encontrar ou enxergar a seu bel-prazer.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA CALDWELL, Helen. O Otelo Brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro; tradução Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. GIRARD, René. Mentira romântica e verdade romanesca; tradução Lilia Ledon da Silva. São Paulo: É Realizações, 2009. MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Dom Casmurro. rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Brasília: INL, 1975. 321

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PASSOS, Gilberto Pinheiro. Capitu e a mulher fatal: análise da presença francesa em Dom Casmurro. São Paulo: Nankin Editorial, 2003. ROCHA, João Cezar de Castro. A primeira pedra de uma catedral. In: GIRARD, René. Mentira romântica e verdade romanesca; tradução Lilia Ledon da Silva. São Paulo: É Realizações, 2009. SCHWARZ, Roberto. A poesia envenenada de Dom Casmurro. In: Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. SVEVO. Italo. Senilidade; tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.


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JEALOUSY AND TRIANGULAR RELATIONSHIPS IN THE NOVELS SENILITÀ, ITALO SVEVO, AND DOM CASMURRO, MACHADO DE ASSIS ABSTRACT: This article’s main purpose is to analyze the presence of jealousy and its direct relation with the establishment of love triangles in the novels Senilità, by Italian author Italo Svevo and Dom Casmurro, by Brazilian author Machado de Assis. Through a closer and more profound look into the narratives of both novels and also contemplating René Girard’s theory, our aim is to show how jealousy works in the protagonist’ love relationships. Those love relationships will only consolidate in the presence of a third wheel, that is, a real mediator or imaginary element that gives origin to the third side of love triangles presented in the two masterpieces. Key-words: Jealousy, Love triangle, Italo Svevo, Machado de Assis, Senilità, Dom Casmurro.

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TRADIÇÃO E MODERNIDADE NA POESIA DE PéRICLES EUGÊNIO DA SILVA RAMOS Ivair Carlos Castelan Resumo: Péricles Eugênio da Silva Ramos (1919-1992), objeto de pesquisa deste estudo, é um dos poetas mentores da “Geração de 45” em São Paulo. Estréia, em 1946, com a obra Lamentação floral. Este estudo tem como objetivo analisar a construção do verso na obra de Péricles Eugênio da Silva Ramos e, a partir daí, evidenciar o uso pessoal que o poeta faz dos versos livres e brancos, muitas vezes dotados do ritmo binário (alternância binária), e o uso alternado de ritmos nos seus poemas metrificados. Dentre suas cinco obras poéticas, quatro são analisadas com a intenção de desdobrar os seus versos. São elas: Lamentação floral (1946), Sol sem tempo (1953), Futuro (1968) e Noite da memória (1988). As análises têm como base os manuais tradicionais de versificação (Said Ali, Rogério Chociay, entre outros), além de textos que trabalham os aspectos rítmicos da poesia moderna. Percebemos que é a partir da observação das rupturas que podemos enxergar a nova construção erigida pelo poeta. Seu verso, como de outros poetas da “Geração de 45”, tem como característica o uso de técnicas modernas aliadas à tradição poética. Entre elas, o uso da metrificação (na maioria das vezes o verso heptassílabo), e o uso de um ritmo constante em poemas com versos livres. Assim, Ramos aproveita a lição de Mário de Andrade, no que tange ao verso livre e, ao mesmo tempo, foge, em parte, do rígido padrão formal de outros poetas da “Geração de 45”. Palavras-chave: Péricles Eugênio da Silva Ramos; Versificação; “Geração de 45”; Ritmo.

A poesia brasileira, assim como outras literaturas ocidentalizadas, passou por um processo de modernização desde o fim do século XIX às décadas iniciais do século XX, seja através dos simbolistas ou dos poetas da “Semana de 22”. Esta modernização inclui tanto uma mudança de perspectiva na confecção dos poemas, com o uso dos versos livres ou dos versos brancos, quanto o da criação

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de poemas modernos mesclados de certo teor tradicionalista. Em relação à temática, esta irá abordar, quase sempre, o mundo moderno destes artistas, e estará presente em ambos os casos. O presente texto tem como objetivo averiguar de que forma a tradição da poesia está presente na poesia moderna de Péricles Eugênio da Silva Ramos. Este é um típico representante da “Geração de 45” ou terceira geração modernista, se pensarmos na “Semana de 22” como primeira geração, e os poetas da geração de 30 como segunda geração modernista. Sua obra tem como característica o uso de técnicas modernas aliadas à tradição poética. Uma das bases de seus poemas é o emprego de versos livres e brancos dentro de um ritmo sustentadamente binário, o que demonstra todo apreço do poeta à construção de uma obra formalmente bem fundamentada, com a intenção de não apenas enfileirar versos, como é comum se pensar da poesia em versos livres, mas recuperar algo que é trivial dentro da tradição poética. Portanto, como já foi citado acima, o que se pretende neste estudo é discutir o quanto de tradição da poesia, aquela poesia clássica presa aos preceitos instituídos nos manuais de poética, está presente na poesia de Péricles Eugênio. E, deste modo, levantar uma segunda discussão: terá realmente a poesia moderna rompido com seu passado poético, ou pode ser encontrado entre os meandros dos versos livres e brancos algo que nos ligue aquela poesia dita antiga. No caso presente, verificaremos desde o início que sim, há influência, agora nos falta descrever de que modo isto ocorre. Péricles Eugênio vê em suas poesias uma forma de deformar, ou melhor, resgatar a tradição poética, mas reelaborando-as de acordo com o princípio estético demarcado por ele. Péricles Eugênio da Silva Ramos estreou na poesia com a obra Lamentação floral (1946). O poeta ainda possui mais quatro obras de poesia: Sol sem tempo (1953), Lua de ontem (1960), Futuro (1968) e Noite da memória (1988). Além de poeta Péricles Eugênio da Silva Ramos foi tradutor e crítico literário, é um dos principais representantes


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da “Geração de 45”. Em relação à sua obra o poeta parece inserir certo grau de ironia em sua poesia, não uma ironia temática, mas, sim, uma ironia estrutural. O poeta usa técnicas tradicionais a favor daquilo que poderíamos chamar de anti-forma, e, de forma inversa, o poeta também usa técnicas modernas de uma forma tradicional. Veremos a seguir de que forma estas características se desenvolvem na obra do poeta. Segue alguns exemplos retirados dos poemas “Painel do inoperante” e “O mundo, o nôvo mundo” (ambos da obra Lamentação floral), em que o poeta, mesmo usando o verso livre, tenta impor uma regularidade rítmica fundada na alternância acentual binária entre sílabas poéticas fracas e fortes. Assim sendo, aquilo que aparentemente parece ser um fluir livre do discurso nos versos, por fim torna-se um rigoroso jogo métrico, já que as palavras a serem escolhidas para a confecção do poema precisam ser selecionadas com perícia para que o ritmo se sustente. Vejamos os exemplos: Painel do inoperante 1 O/ ca/va/lei/ro em/pu/nha a/ lan/ça e/ vai/ cra/vá/-la 2-4-6-8-10-12 2 na a/dor/me/ci/da/ que o/ ri/bei/ro/ le/va 2-4-6-810 3 co/mo um/ lí/rio à/ flor/ das/ á/guas. 1-3-5-7

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O mundo, o nôvo mundo

Por/que/ ten/ta/sse/ de/ci/frar/ os/ sig/nos/ da/ ma/té/ria, 2-4-6-8-10-12-14 com/ seu/ ru/mor/ de/ con/cha/ sob/ a/ for/ma/ si/len/cio/sa; 2-4-6-8-10-12-14 por/que/ sem/ o/lhos/ de/se/ja/sse/ ver/ a/lém/ do/ que/ se/ vê/, 2-4-6-8-10-12-14-16 (...) (RAMOS, 1972, p.4).

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Nos versos livres acima o ritmo acentual tem função fundamental em enrijecer o poema, mesmo que isto não influencie diretamente no andamento da leitura. O poeta visa transparecer que a técnica poética também deve estar presente nos versos livres. Em outros momentos de sua obra, Péricles Eugênio da Silva Ramos usa o recurso inverso ao anterior e metrifica seu poema. Agora, os versos possuem uma métrica cerrada, mas por outro lado o ritmo já sofre mudanças interessantes. No trecho seguinte o poeta trabalha com os versos heptassílabos para recuperar temas que soam bastante populares. Cabe lembrar, que os versos com sete sílabas poéticas são muito usados nas trovas e quadras populares pela versatilidade rítmico-expressiva verso a verso, estes exploram a sonoridade dos versos principalmente com as rimas. Mas neste poema de Péricles Eugênio da Silva Ramos, assim como nos outros poemas da obra, o poeta faz uso diferente desta métrica. Vamos ao texto:

(...) 6 Da/que/les/ sei/os/ jo/rra/rá/ o/ san/gue: 2-4-6-8-10 7 os/ o/lhos/ do a/ssa/ssi/no/ já/ fa/ís/cam/ de a/le/gri/a, 2-4-6-8-10-12-14 8 en/quan/to/ seu/ cor/cel/ se em/pi/na/ de a/fli/ção/, 2-4-6-8-10-12 (...)

Os olhos de João-ninguém (...) 16 Des/cem/ can/tan/do ao/ lu/ar/ 17 as/ se/te/ vir/gens/ do/ mo/rro; 18 an/dam/ mu/las/-sem/-ca/be/ça 19 ga/lo/pan/do/ pe/la es/tra/da.

1-4-7 2-4-7 1-3-5-7 1-3-5-7

20 Que/brei/ o/ ta/lo/ das/ flô/res, 21 mas/ que/ gôs/to/ ti/ve/ ni/sso? 22 O/ ven/to/ se/guiu/ ge/men/do, 23 nem/ me/nos/ for/te/, nem/ mais/.

2-4-7 1-3-5-7 2-5-7 2-4-7

(RAMOS, 1972, p. 16).

(...) (RAMOS, 1972, p. 8).


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Após a leitura e a escansão deste trecho do poema notamos que o poeta rechaça a expressividade e o ritmo acentual do poema. Por exemplo, a acentuação praticamente varia de verso para verso, na primeira quadra temos apenas dois versos com o mesmo ritmo acentual, já na quadra seguinte os versos com ritmos iguais estão isolados por outros dois versos acentuadamente diferentes. Expressivamente não sentimos muita aquela sonoridade presente na arte popular, principalmente pela falta das rimas. Se há sonoridade aqui, ela já tem um sabor simbolista. Quanto ao ritmo, quando temos a sensação que um ritmo será empregue na leitura, surge um verso que quebra a expectativa. De popular sobra o tema, e mesmo assim, se no primeiro quarteto o luar, as sete virgens do morro e a presença fantasmagórica da mula-sem-cabeça criam uma imagem bem ao estilo folclórico, a quadra seguinte é um tapa de realidade na cara do leitor, pois, se há um castigo por quebrar flores (pois ela pode ser veneno, como é dito em outro momento do poema) ou existe o medo pelo sobrenatural, isto não passará de crendices do povo, e em nada mudará a vida, mesmo o vento símbolo da mudança não trará nada de novo. O poema “Canção tirante a salmo”, do livro Lamentação floral, de Péricles Eugênio da Silva Ramos, embora tenha sua característica própria dentro do conjunto do livro, carrega em seu cerne estruturas que podemos encontrar em toda obra do poeta. “Canção tirante a salmo” é um dos poemas heptassílabos que compõem o livro Lamentação floral (em todo o livro encontramos 8 poemas com esta medida métrica): CANÇÃO TIRANTE A SALMO 1 Noi/te/, noi/te/, do/ce/ noi/te!

1-3-5-7

2 No/ re/ga/ço/ das/ es/pô/sas 3 meus/ ir/mãos/ são/ lu/a e/ tre/vas.

1-3-5-7 1-3-5-7

4 Por/ que/ di/zer/ que é/ ve/da/do 5 o/ que/ se/ cum/pre/ com/ al/ma?

2-4-7 2-4-7

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6 Ou/ con/de/ne/mos/ as/ flô/res, 7 as/ pró/prias/ flô/res ins/ci/en/tes, 8 que/ lan/çam/ pó/len/ aos/ ven/tos.

2-4-7 2-4-7 2-4-7

9 Lei/to e/ nu/vem/, ro/sa e/ so/nho! 10 en/car/ce/ra/do/ na/ som/bra, 11 teu/ ven/tre/ de âm/bar/ su/ge/re.

1-3-5-7 2-4-7 2-4-7

12 Por/que/ teus/ o/lhos/ são/ cla/ros, 13 de/se/ja/da, e/xal/to a/ Deus/!

2-4-7 1-3-5-7

14 Por/que/ teus/ sei/os/ são/ be/los, 15 con/so/la/da, eu/ a/mo a/ Deus/...

2-4-7 1-3-5-7 (RAMOS, 1972, p. 12).

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Após uma primeira leitura, poderíamos recorrer aos manuais de teoria literária para termos maiores esclarecimentos do uso, pelo menos na tradição poética, dos versos de sete sílabas ou heptassílabos (redondilha maior). Na obra Teoria literária (1969) de Hênio Tavares, o autor descreve o verso de sete sílabas como sendo o preferido nas quadras e trovas populares, que possuem nas rimas o ponto forte em sua confecção. Já Rogério Chociay na sua Teoria do verso (1974) aponta o verso heptassílabo como tradicionalmente usado na cadência silábica dentro das estrofes, onde concorrem muitas possibilidades de variação rítmicoexpressiva (modelo frequente nas trovas e quadras apontadas por Hênio Tavares). Por outro lado, Rogério Chociay descreve outra forma de uso dos versos de sete sílabas, agora o que prevalece nas estrofes são as cadências acentuais, e que são as usadas por Péricles Eugênio da Silva Ramos em sua poesia. Pois as rimas na obra de Péricles Eugênio são poucas (e muitas vezes internas) e raramente surgem nos poemas de sete sílabas, ou seja, o poeta não está preocupado em poemas de cunho popular (mesmo surgindo algumas ocorrências em sua obra) ricos na sonoridade expressiva comum, mas, sim, na busca do enriquecimento de seus poemas através da acentuação dos versos. Portanto, temos um poema


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versificado com um mesmo número de sílabas poéticas, mas que foge dos padrões tradicionais. Aquilo que era para parecer comum vai se tornando estranho ao leitor, que deixa de perceber o heptassibilismo, e, também, o acorde (pensando com Alfredo Bosi) expressivo que fecha, em outros casos, os versos heptassílabos. O poema acima trás sobre o aspecto temático algo recorrente na poesia de Péricles Eugênio: o embate entre a religiosidade e a sensualidade exalada pelo ser amado. Cabe salientar, que não se trata de uma sensualidade no sentido vulgar, mas, sim, o sensual próprio da natureza humana, naquilo que ela tem de natural. O poema não deixa de ter certo elo com o simbolismo, já que certas passagens herméticas confluem para um poema mais sugerido do que abertamente discursivo. Exemplos disto podemos retirar dos versos 2 e 3:

qualificar os irmãos do eu-lírico. Entre os dois, temos a dubiedade do claro (lua) e do escuro (trevas). Assim, vamos percebendo alguns detalhes que enriquecem o poema, mas que por outro lado trazem certas dificuldades ao leitor, embora seja esta uma das características do poema simbolista. O ritmo adotado pelo poeta se inscreve em duas acentuações, o ritmo binário (1-3-5-7) e o ritmo 2-4-7. O poema tem pouca variação estrutural, sempre em versos heptassílabos e ritmos constantes. Um tema aparentemente simples e comum na poesia tradicional, mas que neste poema surge de forma modificada, ou seja, moderna. Ainda estruturalmente, o poema possui uma construção bem interessante. Ele inicia-se com um verso isolado onde se encontra descrita a atmosfera do poema. 1 Noite, noite, doce noite!

2 No regaço das espôsas 3 meus irmãos são lua e trevas. 331

Aparentemente, os versos surgem com um sentido bem claro, ou seja, quando o eu-lírico se encontra no colo da esposa, os irmãos são a lua a as trevas. Mas verificando com maior cuidado os versos estes passam a ser ambíguos. Podemos nos perguntar: quem está no regaço das esposas? O eu-lírico ou os irmãos? Assim, alguns pontos do poema começam a corromper a normalidade discursiva, será esta esposa, indicada no plural, o que realmente sugere o vocábulo, ou apenas uma transposição semântica para outro sentido? Se usarmos esposas no seu aspecto natural, teríamos de pensar em um casamento poligâmico, ou apenas em esposas dos irmãos do eu-lírico. Continuando, no verso 3 os substantivos lua e trevas, aparecem sem o uso dos artigos, o que não corresponde ao uso claro do português discursivo, já que ao surgir os substantivos deveriam oferecer alguma informação adicional - artigo indefinido (para primeira aparição) ou o artigo definido -, desta maneira os substantivos se transformam em adjetivos, e assim passam a

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Ainda neste verso podemos notar uma reiteração que pode demarcar o desejo pela “noite” por parte do eu-lírico. A seguir, o poema se divide de forma regular, temos dois grupos de versos duplos, e na sequência dois tercetos, para então o poema fechar com mais dois grupos de versos duplos. Vamos observar um pouco estes versos duplos. Reparamos que os versos 2 e 3 possuem o mesmo ritmo, neste caso o ritmo binário: 2 No/ re/ga/ço/ das/ es/pô/sas 3 meus/ ir/mãos/ são/ lu/a e/ tre/vas.

1-3-5-7 1-3-5-7

Já nos versos 4 e 5 o ritmo muda para a acentuação 2-4-7, vejamos: 4 Por/ que/ di/zer/ que é/ ve/da/do 5 o/ que/ se/ cum/pre/ com/ al/ma?

2-4-7 2-4-7

Já nos dois pares de versos duplos no final do poema os ritmos irão se mesclar, vejamos a seguir os versos:


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12 Por/ que/ teus/ o/lhos/ são/ cla/ros, 13 de/se/ja/da, e/xal/to a/ Deus/!

2-4-7 1-3-5-7

14 Por/ que/ teus/ sei/os/ são/ be/los, 15 con/so/la/da, eu/ a/mo a/ Deus/...

2-4-7 1-3-5-7

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versos heptassílabos, mas o uso do ritmo é claramente uma opção pessoal do autor, é ele quem define as regras que conduzirão o poema. Também deve ser notado o uso das assonâncias e das aliterações. Logo no primeiro verso temos um caso interessante de assonância:

Nota-se que os versos onde ocorrem dúvidas e interrogações (4/5/12/14) o ritmo que ocorre é a acentuação em 2-4-7, já nos versos afirmativos ou exclamativos (2/3/13/15) o ritmo passa a ser o binário O que podemos deduzir destes versos apresentados (2/3/4/5/12/13/14/15) é que o poeta se preocupa tanto com a regularidade métrica, quanto com certa regularidade sintática. E neste ponto é interessante notar que a sintaxe dos versos corrobora para o ritmo a ser empregado. Já os versos dos tercetos estão todos na acentuação rítmica 2-47, com exceção do verso 9 que está no ritmo binário. 6 Ou/ con/de/ne/mos/ as/ flô/res, 7 as/ pró/prias/ flô/res ins/ci/en/tes, 8 que/ lan/çam/ pó/len/ aos/ ven/tos.

2-4-7 2-4-7 2-4-7

9 Lei/to e/ nu/vem/, ro/sa e/ so/nho! 10 en/car/ce/ra/do/ na/ som/bra, 11 teu/ ven/tre/ de âm/bar/ su/ge/re.

1-3-5-7 2-4-7 2-4-7

Notemos que este é o único verso exclamativo dos tercetos, ou seja, mais uma vez o poeta parece nos chamar a atenção para um verso não somente pelo seu teor exclamativo, mas também pelo emprego de um ritmo diferente, que destoa claramente dos versos ao seu redor, todos em acentuação 2-4-7. Isolado ritmicamente o verso se destaca dos outros, e o poeta demonstra com isto toda sua preocupação construtivista na elaboração do poema. Mas o que podemos concluir a partir destes detalhes expostos? O poema ainda continua explorando a linguagem com o intuito de transparecer ao leitor uma imagem visual verbalizada pelo poeta. A tradição poética ainda se mantem com o recurso dos

1 Noite, noite, doce noite!

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Percebemos, primeiramente, que todos os vocábulos, por praticamente se repetirem, terminam com a vogal “e”, também, por esta repetição, temos a presença de três ditongos “oi”. O interessante a notar é a sonoridade, que na palavra doce, surge da vogal “e” seguida da consoante fricativa “c” mais a vogal final “e”, que em português é comumente pronunciada como “i”. Este som praticamente imita o som do ditongo “oi”, e, ao mesmo tempo, recupera o final “e” presente nos outros vocábulos. A presença maciça das vogais deixa o verso melodioso, deste modo o conteúdo semântico do verso é iconizado pelo poeta. O único impacto dentro do verso seria a presença da consoante oclusiva “d”, pertencente ao vocábulo doce, mas esta oclusiva ao ser proferida explode na boca do leitor sugerindo o prazer que o vocábulo doce sugere. Estes aspectos sonoros podem ser verificados em outros momentos do poema. E esta é a grande qualidade da poesia moderna, a capacidade de iconizar o conteúdo semântico dentro das próprias capacidades sonoras das palavras. Parece-nos que na poesia moderna não adimite apenas dizer, mas dizer e mostrar através das palavras. Peguemos outro ponto do poema para verificação, agora o primeiro terceto, que corresponde aos versos de 6/7/8: 6 Ou condenemos as flôres, 7 as próprias flôres inscientes, 8 que lançam pólen aos ventos.

Novamente ficamos tentados a relacionar a sonoridade dos


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versos com o sentido empregado pelo poeta. Abaixo segue a marcação da aliteração formada por consoantes constritivas presente nos versos e que pode potenciar a leitura:

Mas o que concluímos destas verificações é que em nenhum momento o poeta mostrava desconhecer o modo de construção da poesia tradicional. E somente a partir dela se poderá criar uma obra moderna, sem cair num vazio estético. Poesia é tradição/ tradução ao mesmo tempo.

6 Ou condenemoS aS flôreS, 7 aS própriaS flôreS inSCienteS, 8 que lanÇam pólen aoS VentoS.

O chiado das constritivas percorrendo, ou melhor, surgindo e desaparecendo dentro dos versos, nos faz termos a sensação de que o vento está presente dentro do poema, e percorre nossa boca, ou soa em nossos ouvidos. Ao mesmo tempo, as flores imprecisas lançam ao vento seu pólen. Vale perceber que este feito percorre praticamente todo o poema. Após estas averiguações nos ocorre que a poesia moderna prende-se amplamente no apreço à linguagem. Assim, não temos apenas um repositório conteudístico na poesia, mas um aprofundamento das camadas linguísticas das palavras. O discurso em alguns momentos deixa espaço para que a sonoridade, ou até mesmo a imagem iconizada, possa transcender dentro do poema. Recordamos aqui aquele pensamento de Mallarmé, que dizia: o poema não é feito de idéias, mas, sim, de palavras. O texto apresentado não tinha como meta expor uma análise definitiva da obra de Péricles Eugênio, mas apenas levantar algumas considerações que devem ser refletidas entre aqueles que estudam poesia, e principalmente a poesia moderna, pois é comum um estudante de obras ou autores modernos se sentir isento de leituras e análises da poesia tradicional. Como observamos aqui, para uma melhor compreensão da leitura dos poemas, foi necessário recuperar técnicas e estruturas tradicionais. Nas análises alguns aspectos tiveram maior destaque no desenvolvimento, como o estudo do ritmo acentual. Foi verificado o uso específico dos versos heptassílabos, e o modo como ele ocorre na poesia moderna, além de verificarmos alguns aspectos sonoros do poema.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia da Letras, 2000. CHOCIAY, R. Teoria do verso. São Paulo: Editora McGraw-Hill do Brasil, Ltda, 1974. RAMOS, P. E. da S. Poesia quase completa. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1972. TAVARES, H. Teoria literária. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1969. 337

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ARRISCANDO FRONTEIRAS: EL EXILIO vOLUNTARIO E OS BOLIVIANOS EM SÃO PAULO José Maurício da Conceição Rocha Propomos neste trabalho um cotejamento entre as representações dos bolivianos encontradas no romance El exilio voluntario, do boliviano Claudio Ferrufino-Coqueugniot, e a situação dos imigrantes bolivianos que vivem em São Paulo. O romance em questão, vencedor do prêmio Casa das Américas em 2009, foi escrito nos Estados Unidos em espanhol. Nossa leitura da obra tem como ponto de partida reflexões de Jean-Luc Nancy, Giorgio Agamben e Edward Said a respeito do exílio. O discurso desses autores é posto em relação com alguns dos trabalhos acadêmicos já publicados sobre a comunidade boliviana em São Paulo, nos quais são analisadas, entre outras, questões como a manutenção de valores culturais e acesso à educação. Pretendemos, assim, evidenciar o que entendemos como característico das fronteiras na situação em questão: ao mesmo tempo que demarcam territórios e separam os seres humanos, tais linhas – reais ou imaginárias – permanecem atuando para além de seus limites e concorrem para a reconfiguração do espaço. Os trabalhos acadêmicos que abordaremos e nossas próprias observações sobre o coletivo boliviano em São Paulo nos servirão de base para que possamos apontar em que medida a representação dessa comunidade feita por Ferrufino-Coqueugniot nos Estados Unidos corresponde à realidade de seus conterrâneos que vivem na cidade de São Paulo. PALAVRAS-CHAVE: Exílios; El exilio voluntario; Imigração; Bolivianos em São Paulo.

INTRODUÇÃO Consideremos o tópos de nossa tradição ocidental que consiste em afirmar, segundo Jean-Luc Nancy (1996), que a existência é um exílio. O autor mencionado propõe em “La existencia exiliada” uma reflexão a partir desse lugar comum. Nancy reflete sobre a condição humana ao elaborar um ensaio que passa por pensadores

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como Heidegger, Hegel e Hannah Arendt. Esta é citada por Giorgio Agamben (1996) em “Política del exilio”; ele afirma que Arendt não teria analisado a conexão “íntima e necessária” entre a situação dos direitos do homem e a da Nação-Estado – conexão que, de acordo com Agamben, seria uma ideia implicada por “La decadencia de la Nación-Estado y el final de los Derechos del Hombre”, título do quinto capítulo de Los orígenes del totalitarismo. Edward Said (2003), por sua vez, afirma em suas “Reflexões sobre o exílio” que a ambição dos governos totalitários é um dos fatores que contribuíram para que vivêssemos uma época que ele chama de era do refugiado, da pessoa deslocada, da imigração em massa. Said assevera no mesmo texto que, na melhor das hipóteses, a literatura sobre o exílio objetiva uma angústia e uma condição que a maioria das pessoas raramente experimenta em primeira mão e que seria banalizar as mutilações e as perdas que sofrem os exilados o fato de pensar o exílio como benéfico para a literatura acerca dele. Neste artigo, o discurso de Nancy, Agamben e Said é posto em relação com alguns dos trabalhos acadêmicos já publicados sobre a comunidade boliviana em São Paulo, nos quais são analisadas, entre outras, questões como a manutenção de valores culturais e acesso à educação. Pretendemos, assim, evidenciar o que entendemos como característico das fronteiras na situação em questão: ao mesmo tempo que demarcam territórios e separam os seres humanos, tais linhas – reais ou imaginárias – permanecem atuando para além de seus limites e concorrem para a reconfiguração do espaço. Os trabalhos acadêmicos que abordaremos e nossas próprias observações sobre o grupo de imigrantes da Bolívia que vivem em São Paulo nos servirão de base para que façamos um cotejamento entre as representações que o boliviano Claudio Ferrufino Coqueugniot faz dos seus conterrâneos no romance El exilio voluntario (2009) e a situação dos imigrantes bolivianos que vivem na capital paulista.


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nAnCy e A existênCiA COmO exíLiO Jean-Luc Nancy, em “La existencia exiliada” (1996), desenvolve uma reflexão acerca do lugar que o exílio ocupa na sociedade em que vivemos. Tal reflexão tem como ponto de partida o questionamento da necessidade de reapropriar-nos do lugar comum da tradição ocidental: afirmar que a existência é um exílio. Destacamos, primeiramente, do texto de Nancy, a afirmação de que nossa experiência parece ser, em muitos aspectos, a experiência de um exílio definitivo e sem retorno. O autor sugere que haveria uma espécie de exílio constitutivo da existência moderna, e aponta para o exílio como movimento sempre iniciado e que talvez nunca termine. Pensando no exílio como lugar de asilo, constituindo por si mesmo a propriedade do próprio – no exílio se encontraria abrigo, não se poderia ser expropriado do exílio –, Nancy afirma que esse lugar de asilo no exílio é triplo: lugar do corpo, da linguagem e do “com”. O corpo poderia ser pensado como exterioridade na qual a “interioridade” encontra-se exposta; o corpo é o exílio e o asilo no qual algo como um “eu” acaba ficando exposto. A linguagem, por sua vez, foi pensada como exílio do sentido, de um sentido puro, não expressado e não expressável. O sentido é ele mesmo esse “exílio” e esse “asilo” que é a linguagem; é a língua ou as línguas mesmas, enquanto transporte indefinido de significado. Se pensarmos o exílio como, de fato, um movimento sempre iniciado e que talvez nunca termine, vamos nos deparar efetivamente com a condição de milhares de homens e mulheres que deixamos uma terra que nos foi adotada, à qual pertencemos imaginariamente, a fim de buscar o que nela não nos é oferecido. A promessa de uma vida melhor se concretiza para alguns e o discurso dá lugar ao que chamaremos aqui de aparente nostalgia – exemplificada neste relato de um dos bolivianos entrevistados por Ubiratan Silva Alves (2011, p. 53): “Nunca vou abandonar minha querida Bolívia. Eu cheguei aqui sem nada e já tenho muitas coisas.

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Estou aqui apenas para juntar dinheiro enquanto a situação por lá não está boa. Mas vai melhorar. Daí eu volto” . A incerteza da permanência, seja ela motivada pela nostalgia ou pela insegurança da situação irregular, acaba se refletindo no “ser com”, na união entre corpo e linguagem. E o silêncio dos filhos de imigrantes bolivianos que frequentam a escola em São Paulo é uma espécie de exílio no exílio, por vezes causador da evasão escolar – conforme relata Magalhães (2010) – e do retorno de alguns jovens e crianças para a Bolívia a fim de retomar/concluir seus estudos.

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AgAmBen e A pOLítiCA dO exíLiO Giorgio Agamben afirma no início de “Política del exilio” (1996) que qualquer aproximação ao problema do exílio deve começar questionando a associação que se costuma fazer entre a questão do exílio e a dos direitos do homem. A reflexão se desenvolve a partir da citação de Hannah Arendt, para quem a concepção de direitos humanos baseada na suposta existência de um ser humano como tal teria se quebrado no momento em que aqueles que afirmavam nela acreditar se depararam pela primeira vez com pessoas que haviam perdido todas as suas qualidades e relações específicas. Agamben afirma que no sistema de Nação-Estado os chamados direitos sagrados e inalienáveis do homem aparecem desprovidos de toda tutela e realidade precisamente no momento em que não é possível configurá-los como direitos dos cidadãos de um estado – o que estaria implícito na ambiguidade presente no próprio título da declaração de 1789, Déclaration des droits de l’homme et du citoyen, onde não fica claro se os dois termos nomeiam realidades autônomas ou formam um sistema unitário. O trabalho de pesquisa realizado por Magalhães (2010) contemplaria em parte essa ambiguidade ao analisar a situação de conflito ocorrida na década de 1990 no Estado de São Paulo no âmbito do acesso à Educação. A pesquisadora expõe os entraves causados pelo “anacronismo do Estatuto do Estrangeiro”, como é conhecida a Lei 6815/80, que não permite a matrícula de


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estrangeiros que não estejam “devidamente registrados”. Essa lei, para Magalhães, acabou fazendo com que fosse relegado o valor da Constituição, da Lei de Diretrizes e Bases e do Estatuto da Criança e do Adolescente, “que afirmam a educação como um direito de todas as pessoas – e não apenas dos cidadãos e cidadãs brasileiros” (MAGALHÃES, 2010, p. 107). Chocar-se-iam, nesse contexto, a garantia de um direito que deveria ser de todo ser humano e a garantia de um direito apenas ao cidadão de um Estado. edwARd sAid e As ReFLexões sOBRe O exíLiO Tendo vivido a condição de exilado, ao contrário de Nancy e Agambem, Edward Said inicia seu texto afirmando que o exílio nos compele a pensar sobre ele, mas é terrível de experienciar. Fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar, o exílio gera, de acordo com Said, a dor mutiladora da separação. Dor que alguns episódios da literatura e da história se esforçam para superar. Para o autor, esse esforço banaliza mutilações e perdas, e algumas visões do exílio obscurecem o que é realmente horrível. Said afirma que para tratar o exílio como uma punição política contemporânea é necessário, entre outras coisas, mapear territórios da experiência situados para além daqueles cartografados pela própria literatura do exílio; deve-se pensar na miséria das pessoas “sem documentos” subitamente perdidas, sem uma história para contar; é preciso deixar o modesto refúgio proporcionado pela subjetividade e apelar para a abstração da política de massas. A reflexão do autor nos leva ao nacionalismo e a sua associação essencial ao exílio. Said diz que o nacionalismo é uma declaração de pertencimento: pertencer a um lugar, a um povo, a uma herança cultural. Ele, o nacionalismo, afirma uma pátria criada por uma comunidade de língua, cultura e costumes e, ao fazê-lo, rechaça o exílio, luta para evitar seus estragos. Said diz ainda que é impossível

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discutir o exílio e o nacionalismo com neutralidade, sem referir-se um ao outro, pois os dois termos incluem tudo, “do mais coletivo dos sentimentos coletivos à mais privada das emoções privadas” (SAID, 2003, p. 50). Grande parte da vida de um exilado, para o autor, é ocupada em compensar a perda desorientadora, criando um novo mundo para governar. O novo mundo do exilado é logicamente artificial e sua irrealidade se parece com a ficção. O autor ressalta que não fala do exílio como um privilégio, mas como uma alternativa às instituições de massa que dominam a vida moderna e que, no fim das contas, o exílio não é uma questão de escolha: nascemos nele ou ele nos acontece. Said conclui: “o exílio é a vida levada fora da ordem habitual. É nômade, descentrada, contrapontística, mas assim que nos acostumamos a ela, sua força desestabilizadora entra em erupção novamente” (SAID, 2003, p. 60). Os bolivianos que vivem em São Paulo, conforme relatos presentes nos trabalhos aqui mencionados, vivem situações apontadas por Said como inerentes à vida do exilado. O exílio não é, no caso dos bolivianos que vivem na capital paulista, uma questão de pessoas “sem documentos”, mas “indocumentadas” – expressão comumente utilizada ao se tratar deles. Esses imigrantes vivem, usando palavras já citadas, entre o mais coletivo dos sentimentos coletivos e a mais privada das emoções privadas. Silva analisa em seus trabalhos (1995, 2002) o processo de reprodução social dos imigrantes bolivianos em São Paulo, bem como a recriação cultural que eles fazem de suas festas devotas. Apesar do risco de redução, acreditamos que a artificialidade do mundo do exilado a que se refere Said poderia ser comparada à reprodução dos traços culturais pela comunidade boliviana em São Paulo conforme relatada nos trabalhos de Silva. Também as rádios, as revendas de produtos típicos, a feira realizada na Praça Kantuta, entre outras, são práticas sociais nas quais podem ser percebidas representações, que nelas entram em jogo, que as acompanham.


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Enquanto tentam compensar a “perda desorientadora”, reforçando o sentimento coletivo do nacionalismo, muitos bolivianos experimentam, ao mesmo tempo, a solidão do exílio. Um boliviano afirmou-nos em diálogo informal que “os bolivianos não se ajudam”. A Magalhães (2010, p. 148), uma das mães bolivianas entrevistadas afirma: “usted sabe, boliviano no es unido” . Por fim, Alves (2011, p. 131) reporta que bolivianos por ele entrevistados “não parecem ser muito solidários com seus compatriotas, tampouco com indivíduos de outras nacionalidades”. Um deles, perguntado se aconselharia um compatriota a vir para o Brasil, respondeu: “Eu diria a eles para virem, pois aqui tem mais trabalho que na Bolívia; mas não peçam emprego pra mim. Cada um tem que arrumar o seu trabalho” . EL EXILIO vOLUNTARIO O romance El exilio voluntario, do boliviano Claudio Ferrufino Coqueugniot, vencedor do prêmio Casa das Américas em 2009, nas palavras do próprio autor, “habla de la emigración de un boliviano, por azar en principio, que se ve después absorbido por el rodillo económico de los Estados Unidos”[1]. A “casualidade” não protege o personagem de questões que envolvem a vida de um imigrante, como a luta pela sobrevivência e o choque cultural. Percebemos uma proximidade entre a situação do imigrante boliviano nos Estados Unidos – representado no romance – e a descrição que se faz nas pesquisas já mencionadas a respeito da situação dos bolivianos que vivem em São Paulo. Recuperando a ideia de movimento sempre iniciado e nunca terminado refererido por Nancy, encontramos no romance alguns traços que podem ser interpretados como representativos desse movimento. O papel da memória é fundamental porquanto a narrativa é costurada pelas idas e vindas que aquela realiza entre Bolívia e Estados Unidos. Em função da memória, “historias van 1 Entrevista publicada em Espéculo – Revista de estudios literarios n°42. Disponível em http://www.ucm.es/info/especulo/numero42/cl_ferru.html. Última consulta: 31/03/2012.

y vienen”, produzindo efeitos de “tiempos mezclados, rostros confundidos”. O protagonista do romance, que vive entre o espaço que habita e a memória daquele que um dia habitou, pode ser comparado, em parte, aos bolivianos que frequentam a feira dominical da Praça Kantuta. Um dos entrevistados por Alves (2011, p. 152) relata: “Já levei minha família a alguns parques para a gente conhecer, mas o gostoso mesmo é quando a gente vem na Kantuta ver os amigos bolivianos e jogar bola. Sinto-me em casa, na minha terra”. Outro entrevistado pelo pesquisador afirma sobre as tardes de futebol na praça: Às vezes, durante um jogo aqui na Praça, me sinto como se estivesse na Bolívia: o cheiro, a comida, a música e o futebol. Daí eu ‘acordo’ e vejo que eu estou apenas num pedaço da Bolívia aqui no Brasil, mas é uma sensação muito boa. (ALVES, 2011, p. 152). 345

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A reflexão de Giorgio Agamben sobre os Direitos do Homem e do Cidadão, que relacionamos anteriormente ao direito à educação, pode ser relacionada também ao direito que toda pessoa tem, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de ter um trabalho com condições justas e favoráveis. Dois trechos do romance de Ferrufino-Coqueugniot nos parecem exemplares da negação do direito universal do homem de ter um trabalho. O primeiro aparece na página 55: “No podemos contratarlo. Sus papeles son de turista”. O segundo se verifica na sequência, à pagina 56: “Comienzo a trapear Wait, Wait! afanoso regresa el gerente y me dice que ve en la computadora que mi nombre no está autorizado a trabajar”. Justas e favoráveis não são exatamente as condições de trabalho de um grupo de imigrantes bolivianos citado no romance: “En un cuarto, Arlington, doce cochabambinos de Arbieto pasaron el año 89 con papa hervida y huevos duros más dieciséis horas de trabajo al día.” Os relatos de longas jornadas de trabalho desempenhadas


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pelos bolivianos em São Paulo são recorrentes – tendo muito destaque ultimamente na imprensa. Os fatos, uma vez mais, colocam em xeque a “Declaração”. Retomando Said, lembramos que o exílio não é uma questão de escolha: nascemos nele, ou ele nos acontece. Acrescentaríamos que há uma terceira possibilidade: a de aceitarmos a ilusão de que ele é voluntário. A narrativa, por sua vez, traz uma citação do poeta cubano Reinaldo Arenas, que transcrevemos: “en el exilio no es más que un fantasma, una sombra de alguien que nunca llega a alcanzar su completa realidad; yo no existo desde que llegué al exilio; desde entonces comencé a huir de mí mismo”. Podemos nos perguntar diante da citação: quem se converteria voluntariamente em sombra? Parece-nos que o imigrante muitas vezes nela é convertido sem saber. Tais imagens nos remetem a um lugar comum em se tratando da comunidade boliviana em São Paulo: foi dito muitas vezes que eles são invisíveis. Sylvain Souchaud manifestou-se contrariamente a esse lugar comum da seguinte maneira: Muitas vezes se fala no Brasil da invisibilidade dos bolivianos, […] mas eles não são invisíveis. Todo mundo conhece a Praça Kantuta. Os bolivianos são identificados nas ruas, eles têm comércio, tem locais de encontro. Eles têm atividades, só é preciso ir ao bairro deles para perceber que eles não são invisíveis.[2]

Invisíveis ou não, acreditamos que o espaço ocupado talvez seja o aspecto mais importante ao tratarmos dessa questão. A feira da Praça Kantuta, por exemplo, ocorria numa praça da qual os bolivianos foram obrigados a se retirar. Afinal, qual é o espaço ocupado pelos imigrantes? A afirmação de Souchaud nos remete a uma passagem do romance que recupera um movimento motivado pela ação de um francoatirador em Washington: 2 Entrevista publicada em http://www.dw-world.de/dw/article/0,,5208480,00.html. Grifo nosso. Última consulta: 31/03/2012.

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Las últimas novedades, en vivo, son el jefe del condado pidiendo a los ilegales, que son los que pueblan la noche y los rincones más inesperados del país con su trabajo, incluyendo a mis amigos, que salgan a la luz y declaren lo que han visto. Nosotros nos movemos, insectos que somos, donde no se mueven los blancos [...] Insisten en televisión que la comunidad hispana deve saber algo, ella tiene los espías involuntarios donde menos uno lo imagine. Mas no ofrecen garantías de protección inmigratoria para aquellos que se adelanten a declarar. Así sólo conservarán el silencio.

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CONCLUSÃO Diversos aspectos do romance El exilio voluntario aguardam um olhar mais detido e oferecem outras possibilidades de leitura. Limitamo-nos, aqui, a estabelecer uma relação entre alguns dos aspectos já abordados em pesquisas sobre a comunidade boliviana em São Paulo e o romance em questão. Tais pesquisas evidenciam situações que os bolivianos vivem na capital paulista que podem ser relacionadas a aspectos do exílio destacados dos ensaios de Nancy, Agamben e Said, aqui mencionados. Voluntário ou não, o exílio apresenta características semalhantes àquelas presentes em contexto de imigração. Igualmente, relatos de bolivianos em São Paulo se assemelham a representações feitas por Ferrufino-Coqueugniot em seu premiado romance. Exílio ou imigração, ficção ou realidade, Brasil ou Estados Unidos? Os elementos que reunimos indicam uma possível permeabilidade ou, ainda, uma dupla função das fronteiras: delimitar um espaço e continuar atuando para além dele. As correspondências que evidenciamos entre o romance e a situação vivida pelos imigrantes bolivianos em São Paulo não visavam um esgotamento das possibilidades de leitura e análise. Esperamos ao menos ter contribuído de alguma maneira para que esses imigrantes – e o próprio romance – deixem de ser invisíveis.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SILVA, S. A. Festejando a VIRGEM / MÃE / TERRA numa pátria estrangeira. Devoções marianas num contexto de permanências e mudanças culturais entre os imigrantes bolivianos em São Paulo. 326 p. 2002. Tese de Doutorado em Antropologia Social – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2002.

AGAMBEN, Giorgio. Politica del exilio. Archipiélago. Cuadernos de critica de la cultura, no. 26-27, pp. 41-60, invierno 1996. ALVES, Ubiratan Silva. Imigrantes bolivianos em São Paulo: a Praça Kantuta e o futebol. 192 p. 2011. Tese de doutorado em Atividade Física, Adaptação e Saúde – Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, 2011.

VIEIRA, Maria Eta. Ensino e aprendizagem de português língua estrangeira: os imigrantes bolivianos em São Paulo. 179 p. 2010. Tese de Doutorado em Linguagem e Educação – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2010.

FERRUFINO COQUEUGNIOT, Claudio. El exilio voluntario. 1ª ed., Santa Cruz de la Sierra: El País / Casa de las Américas. MAGALHÃES, Giovanna Modé. Fronteiras do direito humano à educação: um estudo sobre os imigrantes bolivianos nas escolas públicas de São Paulo. 182 p. 2010. Dissertação de mestrado em Sociologia da Educação – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2010. NANCY, Jean-Luc. La existencia exiliada. Archipiélago. Cuadernos de critica de la cultura, no. 26-27, pp 34-39, invierno 1996. SAID, Edward. Reflexoes sobre o exilio. In: SAID, Edward W. Reflexoes sobre o exilio e outros ensaios. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 46-60. SILVA, S. A. Costurando sonhos: etnografia de um grupo de imigrantes bolivianos que trabalham no ramo da costura em São Paulo. 292 p. 1995. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social – Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina, Universidade de São Paulo, 1995.

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A ÉTICA DO CUIDADO DE SI NA OBRA REUNIDA, DE CAMPOS DE CARVALHO: A BUSCA POR UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA Josiane Gonzaga OLIVEIRA (UNESP/São José do Rio Preto) Este trabalho tem por objetivo discutir a trajetória de autoconstituição dos narradores da Obra reunida (2002) do escritor mineiro Walter Campos de Carvalho. De acordo com Foucault, o sujeito moderno é apenas objeto de um sistema de relações de poder e saber orientado e moldado a partir de um código moral que se fundamenta em leis externas ao indivíduo. Foucault nos propõe um novo conceito de ética cujo aspecto fundamental é a progressiva consideração do si. Para embasar essa perspectiva, o filósofo francês retorna à Antiguidade grega e ao início da era cristã em busca de uma cultura denominada a cultura do “cuidado de si” ou epiméleia heautoû. Trata-se de uma série de práticas que se baseiam na ideia de que o indivíduo deve “ocupar-se consigo”, “cuidar de si mesmo” (FOUCAULT, 2006). Esse preceito constitui, para os gregos, um dos grandes pilares da vida em sociedade, uma regra da vida social e pessoal, um dos fundamentos da arte de viver. A partir da vivência dessas práticas, o indivíduo é capaz de construir a si mesmo resistindo às imposições identitárias promovidas pelas relações de poder e saber, e, ao mesmo tempo, consegue dotar sua vida de uma beleza e esplendor únicos, tornando-a digna de ser lembrada e contemplada como uma obra de arte. Propomo-nos nesta discussão, a observar a releitura e a experimentação do preceito grego realizadas nos romances de Campos de Carvalho, a fim de focalizar a árdua atividade de autoconstituição de seus sujeitos ficcionais, que ao renegarem uma moral orientada para o código, perfazem uma trajetória ética, elaborando por meio de técnicas de si, uma estética da existência. PALAVRAS-CHAVE: Ética; cuidado de si; autoconstituição; escrita de si; exame de consciência.

Neste trabalho, pretendemos analisar a trajetória de autoconstituição dos narradores da Obra reunida, do ficcionista mineiro Walter Campos de Carvalho (1916-1998). Partimos

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do pressuposto de que essas personagens, ao se colocarem na contramão das relações de poder que as envolvem e, ao problematizar constantemente os códigos e comportamentos morais vigentes em nossa sociedade, possam ser vislumbradas como indivíduos éticos. A Obra reunida é composta pelos romances A lua vem da Ásia (1956), Vaca de nariz sutil (1961), A chuva imóvel (1963), O púcaro búlgaro (1964). Das quatro narrativas, duas são escritas em forma de diário e duas são relatos pessoais construídos por meio do monólogo interior. Em A lua vem da Ásia, o protagonista excêntrico narra em seu “diário íntimo” sua rotina dentro de um hotel de luxo, que aos poucos descobre ser um campo de concentração e, por fim, um hospital psiquiátrico. Vaca de nariz sutil é o relato de um ex-combatente de guerra esquizofrênico apaixonado por uma adolescente “débil mental”, obcecado pela morte e que vive numa pensão a espiar a intimidade dos outros moradores pelos buracos das fechaduras. A chuva imóvel é o relato de André Medeiros, um indivíduo em crise e que nutre um amor incestuoso pela irmã gêmea Andréa. E por fim, O púcaro búlgaro, uma espécie de diário de bordo em que o protagonista Hilário narra uma expedição à Bulgária, cuja finalidade é descobrir se tal país existe, e ainda se existem os púcaros búlgaros. Para elaborar oPara esta análise adotamos a perspectiva foucaultiana acerca do conceito de ética. Segundo Foucault o sujeito moderno é apenas objeto de uma rede de relações de poder e saber que disciplinam seu corpo e sua mente tornando-o um indivíduo útil e dócil frente a um sistema invisível e onipotente. Portanto, esse indivíduo, aparentemente livre, segundo Jacoto “toma para si uma identidade que reconhece como sua, mas que, na verdade, lhe é dada por estas relações de poder, de produção e de significação a que, inevitavelmente, ele adere a sua existência” (Jacoto, 2007). Esse sujeito-objeto, do qual nos fala Foucault, não pode, em sua


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perspectiva, ser considerado um indivíduo ético, já que ética, para o autor, é o “tipo de relação que se deve ter consigo mesmo [...] e que determina a maneira pela qual o indivíduo deve se constituir a si mesmo como sujeito moral de suas próprias ações” (FOUCAULT, p. 1995, 263). Trata-se de uma atividade de autoconstituição que permita ao indivíduo desassujeitar-se das imposições identitárias veiculadas pelas relações de poder. Para elaborar sua visão de ética, Foucault retoma uma série de práticas que tiveram muita importância durante a Antiguidade Clássica e tardia, trata-se do “cuidado de si”. Essas práticas baseiam-se na ideia de que o indivíduo deve “ocupar-se consigo”, “cuidar de si mesmo”. O preceito do cuidado de si constitui, para os gregos, um dos grandes pilares da vida em sociedade, uma regra da vida social e pessoal, é um “dos fundamentos da arte de viver” (FOUCAULT, 1994). [1] A cultura do cuidado de si engloba uma série de técnicas praticadas na Antiguidade pelos indivíduos com a finalidade de autoformação. Essas técnicas seriam: práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de valores estéticos e responda a certos critérios de estilo. (FOUCAULT, 1994, p. 15).

No texto Técnicas de si, Foucault apresenta essas práticas da seguinte maneira: cartas ou escrita de si, exame de consciência, interpretação dos sonhos e ascese. Essa é uma divisão proposta pela filosofia estóica. Dentre as quatro técnicas, uma parece exigir atenção especial, trata-se do conceito de ascese. Foucault busca na filosofia estóica “Na tradição filosófica inaugurada pelo estoicismo, 1 Informações baseadas no texto “Les Techniques de soi”, de Michel Foucault, publicado originalmente em Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994, vol. IV. Disponível em: http:// www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/.

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a askêsis, longe de indicar a renúncia a si mesmo, implica na consideração progressiva de si, a maestria de si [...]” parafrasear. (FOUCAULT, 1994). Em A hermenêutica do sujeito, Foucault define este termo como um “trabalho de si para consigo, elaboração de si para consigo, transformação progressiva de si para consigo em que se é o próprio responsável por um longo labor” (FOUCAULT, 2006, p. 20). É uma atividade transformadora do indivíduo que deverá guiá-lo rumo à construção de si mesmo como um sujeito capaz de verdade. Na descrição de Foucault parece haver certa confusão em relação a esse conceito, já que em alguns momentos a ascese indica o processo de autoconstituição dos indivíduos como um todo e em outros, aparece apenas como uma dentre as demais técnicas de si. Como optamos, para este trabalho, pela primeira conceitualização, assumiremos a ascese como um processo de autoconstituição que engloba as demais técnicas de si. Tendo em mente o conceito de ascese, como o próprio processo de autoconstituição dos indivíduos, partimos agora para a análise das técnicas de si. No texto A escrita de si (FOUCAULT, 2006a, p. 157), o filósofo aponta essa tecnologia do eu como uma arte da existência praticada na Antiguidade como um exercício diário e a divide em duas modalidades, os hupomnêmata e correspondências. Essas formas são “os primeiros desenvolvimentos históricos do relato de si” (parafrasear) (FOUCAULT, 2006a, p. 157). O primeiro correspondia a livros de contabilidade, registros públicos, (paramos aqui) cadernetas individuais usadas como lembrete. O público culto freqüentemente utilizava essas anotações como uma espécie de “livro de vida” e guia de conduta. Esses livros “constituíam uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas; assim eram oferecidos como um tesouro acumulado para releitura e meditação posteriores” (FOUCAULT, 2006a, p. 147). Uma das lições de Sêneca pontuada por Foucault acerca dos hupomnêmata é a necessidade do indivíduo criar a própria alma


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naquilo que escreve. A partir deste aspecto, poderíamos pensar a escrita de si, desde essas primeiras manifestações, como uma atividade de auto-elaboração do indivíduo. A outra modalidade de escrita como exercício diário na Antiguidade é a correspondência. Conforme denota a própria nomenclatura, esta modalidade tem como característica principal, o fato de ser um texto destinado a outro indivíduo, desse modo, a carta age sobre aquele que a recebe e sobre aquele que a envia. No parecer de Sêneca, na tarefa de elaboração da alma sobre si mesma a ajuda do outro é essencial. De acordo com Foucault, outra lição de Sêneca, com relação às correspondências, é que “ao se escrever, se lê o que se escreve, do mesmo modo que, ao dizer alguma coisa, se ouve o que se diz” (FOUCAULT, 2006a, p. 153). Assim, o exercício da escrita permite ao indivíduo refletir sobre si mesmo e observar-se a si mesmo a partir de diferentes pontos de vista. A modalidade de correspondência pode tomar, por vezes, a forma de um relato de um dia comum, trata-se do hábito de fazer a revisão do dia. Nesse sentido, aparece conectada à técnica da escrita, outra técnica de si, que é o exame de consciência. Em diversas correntes filosóficas como a pitagórica, a epicurista e a estóica, o exame de consciência constitui uma forma de o indivíduo transformar-se num “inspetor de si mesmo” de modo a avaliar as ações, as faltas e impor-se regras de comportamentos (FOUCAULT, 2006a). Cabe ainda assinalar uma das principais características da escrita de si no contexto da reflexão foucaultiana: trata-se de sua função etopoiética. Esta é uma expressão de Plutarco e diz respeito à função específica da escrita de ser “operadora da transformação da verdade em êthos” (FOUCAULT, 2006a, p. 147), ou seja, a escrita de si congrega uma função estética e ao mesmo tempo política de auto-criação. Nas palavras de Ortega (1999, p. 57), a escrita é uma “prova transformadora de si”, um indivíduo escreve-se com

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a finalidade de transformar-se, e essa busca por uma (trans) formação é o aspecto etopoiético da escrita. Retomando os romances de Campos de Carvalho, podemos perceber nas quatro narrativas o ataque recorrente dos protagonistas às diversas instituições representativas do poder como o hospício, a guerra, a prisão, e também às normas sociais, o discurso científico e o pensamento racional. A lua vem da Ásia, por exemplo, é um romance marcado pela tensão entre a individualidade excêntrica do narradorpersonagem e a instituição psiquiátrica, cuja função normalizadora é a de enquadrar e tratar comportamentos tidos como anormais. A partir do confronto entre as noções de loucura e normalidade, várias instâncias representativas da problemática do poder serão questionadas, conforme evidencia o trecho a seguir, em que o narrador envia uma carta, uma modalidade da escrita de si, ao Times por meio de uma garrafa lançada no esgoto: 355

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Trata-se apenas de despertar a consciência de VV. Exas. para o fato de, em pleno século XX, e ao que consta em pleno período de paz, ser permitido a um pequeno grupo de idiotas manter presos e por vezes mesmo amarrados alguns cidadãos de alta linhagem e de reputação acima de qualquer suspeita – só porque esses cidadãos, entre os quais estou eu naturalmente, não pactuam e não poderiam mesmo pactuar com suas ideias retrógradas e obsoletas, seja em matéria de religião como de política, de amor como de finanças e arte. Pois o que ocorre neste campo de concentração onde me encontro [...] é apenas isso [...] uma minoria armada até os dentes, inclusive com cadeiras elétricas, manda e desmanda sobre uma maioria de indivíduos realmente individuais e tenta impor-lhes à força a sua cartilha de primeiras letras, quando não o seu catecismo religioso dos tempos antediluvianos, que é a quanto chegam no melhor dos casos as ideias ou que outro nome tenha a intolerância desses senhores da terra e dos céus (CARVALHO, 2002, p. 73).

Este trecho nos apresenta um indivíduo que se inscreve, por


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meio de uma carta, como um sujeito resistente às imposições identitárias de uma minoria classificada pelo narrador como “um pequeno grupo de idiotas”. Essa minoria age em nome de uma certa instituição identificada pelo protagonista como um “campo de concentração”. Percebemos que o conflito entre o grupo descrito e os “cidadãos de alta linhagem”, os “indivíduos realmente individuais” se deve ao fato de que esses cidadãos encarcerados não compartilham com as ideias impostas pela minoria que age dentro da instituição. Sabemos, contudo, que essa minoria age de forma autorizada por uma maioria que se encontra além dos portões do campo de concentração, ou seja, por uma sociedade normalizadora. Os indivíduos que desviam do que é imposto pelas normas sociais são excluídos, segregados, e, no trecho, torturados. Assim, surpreendemos o protagonista de A lua vem da Ásia, numa tarefa simultânea de recusa e de (re)construção de si por meio da escrita. Apesar de encarcerado e de ter suas possibilidades de ação reduzidas, ele se propõe a escrever um diário íntimo, que, para ele, se constitui um espaço de libertação, em que as “paredes sempre imóveis” (CARVALHO, 2002, p. 41) são implodidas e todas as normas abolidas. Neste diário, o narrador assume a autoria de sua própria vida, e caminha, desse modo, na contramão do poder. É livre para percorrer todos os espaços do planeta extrapolando a realidade espacial castradora que o enclausura. No romance Vaca de nariz sutil, percebemos que o protagonista se autoconstitui aos olhos do leitor por meio da atividade constante do exame de consciência. Conforme podemos observar no trecho a seguir: A princípio, diziam, era a amnésia, depois a esquizofrenia – tantas palavras belas para camuflar esse vazio, esta cratera de suas bombas que se abriu dentro de minha consciência: um buraco, eis o nome. [...] Puseram-me uma medalha no peito [...] por dentro eu estava que era só vazio [...] Quando vi já estava chorando no meu canto, sem uma tristeza, chorando simplesmente, como se me derretesse ao sol [...] todos me

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saudavam como herói [...] e eu era para mim mesmo um desconhecido [...] Era mais um vômito, o estrebuchamento de uma consciência morta a golpes de baioneta [...] Desde então fiquei sozinho para sempre, com a nova consciência que me pregaram a martelo no peito, este fundo abismo sem fundo, frio frio frio, como um ressuscitado em verdade mais morto do que nunca, sem passado, sem futuro, enxergando as coisas por um binóculo tão distante de tudo, todos (CARVALHO, 2002, p. 157,158).

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A partir da leitura do trecho acima, é possível observar alguns dos motivos que se conectam, ainda que simbolicamente, ao tema principal do romance, ou seja, a morte. O primeiro deles é a amnésia, o apagamento das memórias mais caras ao protagonista e vem seguido pelo motivo da esquizofrenia, ambos, em sua perspectiva, são apenas nomes cunhados para ocultar seu vazio existencial. Na tentativa de definir esse vazio, o ex-combatente utiliza um campo lexical relacionado à guerra: no lugar de sua consciência há uma cratera causada por bombas, em seu peito vazio há uma medalha, o título de herói não o faz mais conhecido para si mesmo. Seu choro é um “estrebuchamento”. O narrador nos parece, portanto, um amontoado de resquícios da guerra, trata-se, em sua própria acepção, de um cadáver vivo e frio, cujo passado é inexistente e o futuro, impossível. É um sujeito marcado pela violência e pela solidão que se manifesta, inclusive, no hábito da espionagem pelos buracos da fechadura e da masturbação. Nesse sentido, o trecho elenca motivos que apontam para o apagamento do indivíduo, de seus desejos e memórias. Todos os motivos remetem a vazio, desconhecimento e silêncios, ou seja, evocam várias formas simbólicas de morrer. O trecho é retirado do primeiro capítulo do romance em que o protagonista narra a sua condição de herói de guerra e hóspede de uma pensão. O capítulo é composto por fragmentos de sua vida pregressa entremeados por fragmentos de sua situação presente. Por meio do monólogo interior, a personagem se joga numa atividade profunda de auto-análise e acaba por construir


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uma espécie de retrato de sua personalidade fragmentada para si mesmo e também para o leitor, ou seja, o exame de consciência adquire a condição de uma atividade auto-formadora. Em A chuva imóvel também podemos perceber uma constante atividade de auto-análise por parte do protagonista que aparece de forma conectada com a necessidade (obsessivamente reiterada ao longo do relato) de dar um testemunho:

narrador encontra para recuperar a memória e reencontrar seu objetivo extraordinário. O nonsense que dá o tom da narrativa desde as primeiras páginas se acentua a partir do aparecimento de um dos expedicionários da grande aventura à Bulgária. Trata-se do professor de bulgarologia nascido em Quixeramobim, Radamés Stepanovicinsky. O professor, após ser incorporado ao grupo, decide ir morar no apartamento de Hilário. Logo após sua chegada o leitor começa a ter contato com toda a sabedoria do mestre, que passa a ensinar ao protagonista uma série de lições acerca de temas relativos à Bulgária e outros assuntos. Seguem-se as primeiras impressões de Hilário diante dos ensinamentos de Radamés:

Não sou o que sou neste instante, mas um só desde que nasci: múltiplo, múltiplo, múltiplo. Cada fio do meu cabelo é uma verdade diferente, e todos me pertencem: respiro por todos os poros, cada um por sua vez, e só assim não morro de asfixia. [...] De qualquer forma tenho que dar meu testemunho, para isso aqui estou: inútil fugir de mim – dos outros! (CARVALHO, 2002, p. 232) [...] Mesmo morto continuarei dando meu testemunho de morto, esta chuva imóvel serei eu que estarei cuspindo (CARVALHO, 2002, p. 306).

Trata-se de um testemunho de resistência e revolta contra a sua condição “homem moderno aprisionado em infinitas redes disciplinares e normalizadoras” (SCAVONE; ALVAREZ; MISKOLCI, 2006, p. 58) e que desemboca em seu suicídio, sua resistência extrema. O exame de consciência e a escrita de si funcionam como um grito de revolta e um espaço de registro de todo seu asco pela vida e pela moral que o impede de vivenciar o seu amor pela irmã Andréa. Em O púcaro búlgaro, último romance da Obra reunida podemos verificar nas primeiras páginas uma fase de auto-sondagem em que o protagonista busca retomar sua memória e com ela, a razão que o levou a escrever o diário, ou seja, a expedição à Bulgária. O narrador sabe apenas que se trata “de algo extraordinário, tão extraordinário que me escapa [....] deve ser qualquer coisa relacionada com viagens, que falei muito de Colombo e outros pândegos no que escrevi ontem a noite” (CARVALHO, 2002, p. 321). Parece-nos que, neste caso, a escrita é uma forma que o

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O professor Radamés, enquanto arrumava seus trastes no quarto que lhe destinei, pôs-se então a dizer que me achara um tipo muito apegado à realidade, em vez de à sua realeza, na última e primeira vez em que estivéramos juntos. – Quando perguntei pelo seu gato o sr. foi logo procurar pelo gato, como se isso tivesse realmente a menor importância. Ainda bem que não encontrou gato nenhum, o que não deixa de ser um castigo. E começou a acariciar o gato que havia trazido para uso próprio, e que me pareceu antes o dorso de sua mão esquerda – é verdade que bastante peluda e irritadiça. (CARVALHO, 2002, p. 334).

A partir daí, o professor encarna a figura do filósofo que tenta transmitir ao discípulo, no caso, Hilário, todas as nuances de seu sistema de pensamento. Nessa fase o narrador envereda por um interessante processo de (des)aprendizagem e de desapego dos saberes racionais. Temos a seguir, as primeiras noções da antilógica ensinadas pelo professor: – A primeira condição para se ir à Bulgária, e já não falo para chegar até lá – continuou o professor acariciando o gato – é acreditar piamente que ela esteja ao alcance da nossa mão, como este belo gato está sempre ao alcance da minha mão, tão


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ao alcance que às vezes chega a confundir-se com ela. – De inteiro acordo – falei por falar. – O fato de se ir procurá-la não quer dizer que não a tenhamos achado, ou mesmo que nela não moremos desde o início dos séculos, como é exatamente o meu caso. Ou o senhor pensa que sou o maior bulgarólogo vivo apenas por haver estudado profundamente os costumes dos búlgaros, a sua pré-história e sobretudo a sua nao-história? Fiz-lhe com a cabeça que não tinha a menor ideia a respeito. [...] Olhou-me com profunda piedade: – Quando procurei uma Bulgária qualquer, nem que fosse um filhote de Bulgária, debaixo do seu tapete, notei que o senhor se mostrou surpreso e até mesmo indignado, como se eu procurasse um rato morto ou um resto de lixo [...] pois o senhor está muito enganado. Se não admite a hipótese de que qualquer Bulgária, ou o que quer que seja, possa estar debaixo do seu tapete ou dentro do seu bolso, como pode honestamente ir procurá-la ou procurá-lo nos confins do mundo, na Lua, no fundo do mar, na casa de mãe Joana ou no raio que o parta?! (CARVALHO, 2002, p. 334-335).

O diário de Hilário, marcado pela radicalização do nonsense, pode ser entendido como um meio de crítica, ou mesmo, como abolição do pensamento racional e da lógica, ou seja, das bases que sustentam a engrenagem da sociedade que Foucault denominou disciplinar. Neste caso, a escrita de si representa uma forma que o protagonista encontra para se desvencilhar das relações de poder atingindo sua auto-subjetivação. De acordo com Foucault, “desaprender (de-discere) é uma das importantes tarefas da cultura de si” (FOUCAULT, 2006b, p. 602). Por meio da releitura das práticas de auto-formação do cuidado de si, a escrita de si e o exame de consciência, os narradores da Obra reunida, perfazem uma trajetória ascética, ou seja, a partir da elaboração e contemplação do si como uma obra de arte, delineiase uma ética pessoal marcada pela resistência às imposições identitárias de um poder e saber subjetivantes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SCAVONE, L.; ALVAREZ, M.C.; MISKOLCI, R. (Org.) O legado de Foucault. São Paulo: Editora da UNESP, 2006. CARVALHO, C. Obra reunida. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002. FOUCAULT, M. Les Techniques de soi. In: FOUCAULT, M. Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994, vol. IV. Disponível em: http:// www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/. Acesso: 15 ago 2010.

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FOUCAULT, M. Sujeito e o Poder. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. FOUCAULT, M. Ética, sexualidade e política. In: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos, vol. V. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006a. FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006b. JACOTO, L. A ética do desassujeitamento nos contos de Herberto Helder. In: Anais da Abralic, 2007. Disponível em: http:// www.abralic.org.br/enc2007/anais/52/25.pdf. Acesso: 10 jul 2008. ORTEGA, F. Amizade e Estética da Existência em Foucault. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda., 1999.


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DRUMMOND E ABREU, ENGAJAMENTO E/OU INDIFERENÇA: A MEMÓRIA COMO UMA SENTENÇA A AVALIAR/VALIDAR O PASSADO Juliana Silva Dias O presente trabalho teve como objetivo analisar dois contos “Com o andar de Robert Taylor”, do livro Quando fui morto em Cuba (1982), de Roberto Drummond, e “Aconteceu na Praça XV”, da obra Pedras de Calcutá (1977), de Caio Fernando Abreu; sob a perspectiva, principalmente, da memória e compará-los. Dessa forma, as análises dos contos foram feitas separadamente e, depois, finda essa etapa, foram traçadas algumas relações entre os contos envolvendo personagens, temas e motivos. Para tanto, foram utilizados alguns trechos da teoria da memória coletiva elaborada Maurice Halbwachs, contida em A memória coletiva (1968), para que pudéssemos analisar e interpretar algumas manifestações memorialísticas que aparecem nos contos. Além deste sociólogo, tivemos como aporte teórico outros textos que, de alguma maneira, tratam da questão da memória não somente no nível sociológico, mas também no nível filosófico e no nível psicológico. Restringindo-nos mais aos textos analisados, vale dizer que demos atenção especial à questão do “espaço” atrelado à memória: um aspecto muito forte relacionado aos contos no que se refere ao tema aqui estudado. Por fim, nos valemos de alguns trabalhos específicos que envolvem a obra de Drummond e Abreu e, que, de alguma forma, estão conectados à perspectiva adotada por este trabalho. PALAVRAS-CHAVE: memória coletiva, espaço, Drummond, Abreu, ressignificação.

Reencontro, sentimentos do passado e do presente, os contos “Com o andar de Robert Taylor” e “Aconteceu na Praça XV”, respectivamente, dos livros Quando fui morto em Cuba (1982) e Pedras de Calcutá (1996), revelam, cada um à sua maneira, o tecido de uma memória tanto individual quando coletiva, trabalhado no

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espaço e no tempo nos quais se situam ambas as personagens protagonistas. Por meio dos encontros casuais que acontecem no “agora”, fatos do passado são revelados, revitalizados ou, até mesmo, “modificados”. É assim que eventos que nos parecem somente individuais se transformam também em acontecimentos coletivos e vice-versa, em um movimento contínuo: referências temporais, situações de vivência das personagens, marcas de produtos, nomes de personagens e artistas que pertencem ao “nosso” real, “comportam-se” como dados particulares e coletivos do construto literário. Promovendo esses múltiplos encontros, temos o espaço, o lugar em que se viveu no passado, no caso do conto de Drummond, e a praça XV, em se tratando do conto de Abreu. Esses espaços parecem ser o elemento que estabelece a conexão entre passado e presente. No texto de Roberto Drummond, decorridos tempos de tortura e exílio, a personagem protagonista de “Com o andar de Robert Taylor”, ao mesmo momento em que volta ao local que viveu com sua companheira Patrícia em seu tempo de revolucionário na época da ditadura militar brasileira, recorda fatos desse passado. Ao chegar a esse espaço, a personagem passa pela rua em que morava, permanece por alguns instantes debaixo da árvore em que foi preso e, em seguida, dirigi-se para o supermercado onde ele, no passado, marcara, com Patrícia, um encontro que não aconteceu, visto que fora este o dia em que ele foi preso. No supermercado, inesperadamente, ele reencontra Patrícia e descobre que foi sua antiga companheira quem o denunciou. Após a revelação, ele sai do supermercado, deixando Patrícia. Já em “Aconteceu na praça XV”, de Caio Fernando Abreu, no fim do que parece ser um dia rotineiro de trabalho, um homem, envolvido em seus pensamentos, inesperadamente, reencontra uma mulher com quem tivera algum tipo de relação no passado. Os dois conversam, vão para uma espécie de bar, falam sobre algumas coisas do presente, recordam alguns fatos do passado, tomam chopes e, logo após, ela vai embora e ele permanece no


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bar, absorto novamente pelos seus pensamentos. De uma praça ou de um bairro. É do/no espaço urbano que as narrativas de Abreu e Drummond são geradas. Notamos que menos do que lugares nos quais acontecem as narrativas, os espaços são elementos profícuos que estabelecem uma conexão entre presente e passado e, no caso das narrativas em questão, estabelece-se também uma conexão entre ficção e realidade, em que a última parece ficcionalizar-se, em dada medida, em prol a plena realização da primeira. Assim, em meio a um processo voluntariamente escolhido de trabalho com os fatos passados, como é o caso do conto de Roberto Drummond, ou em meio a um chamado inesperado de trabalho com a memória, situação essa enfrentada pela personagem de Caio Fernando Abreu, acontecem os encontros. No conto de Drummond é a personagem que, ao se decidir voltar para o espaço de outrora, encontra a condição ideal para que suas lembranças ressurjam, é assim que suas lembranças formam uma espécie de reconstituição da cena que foi interrompida do passado. Apesar do objetivo da personagem ao voltar para o bairro seja apenas o de rever o lugar (DRUMMOND, 1994, p.35), na verdade, o comportamento de Leopoldo no desenrolar de suas ações indica-nos que é como se o tempo não tivesse passado para ele e a sua história do passado pudesse ter seu desfecho modificado como, em dada medida, o foi para ele. É como se sua volta estivesse marcada por uma espécie de interconexão de tempos (LIMA, 2007). Dessa forma, percebemos que a trama é construída em um movimento que parte dos dados reconstruídos pela memória até se chegar ao encontro. Já no conto de Abreu, é a partir do encontro que momentos esparsos vividos no passado se reúnem no presente por meio da memória. Em ambos os contos, é o hoje, ou melhor, o que se vive nesse hoje que tem as condições ideais para que esses momentos possam vir à tona. Ou seja, no texto de Drummond a memória, para a personagem protagonista, trabalha como uma espécie de conector que religa

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passado e presente sem, contudo, contrastar, nos dois diferentes períodos, a trajetória traçada pela personagem lá no passado que é refeita no presente, já que Leopoldo parece não perceber as nuances entre um e de outro ao “transitar pelo tempo” até chegar ao encontro[1]. De forma a reforçar ainda mais essa relação entre tempos, há, por exemplo, um elemento da narrativa que reforça e/ ou propicia que essa sensação venha ao encontro de Leopoldo de forma natural: “[...] clareado pelas lâmpadas de mercúrio, respira o mesmo cheiro doce e enjoativo da dama-da-noite que respirava naqueles tempos de ditadura do general Médici [...]” (DRUMMOND, 1994, p.36, grifo nosso)[2]. Já na narrativa de Caio, os contrastes entre presente e passado parecem ser profundamente sentidos pelo protagonista do começo até o fim do encontro, já toda a conversa com sua amiga é marcada por idas e vindas entre fatos do presente e do passado. Pontos de verdadeiro xeque-mate nas narrativas, esses, na verdade, reencontros (já que apontam a continuidade de relações que tiveram início no passado), determinam a morte de certas inverdades e motivam o falecimento de determinadas ilusões, muitas vezes, de forma abrupta, contundente. Se a opção de se escolher esses contos de Abreu e Drummond para que fossem juntos analisados foi feita devido às aproximações incontestáveis relativas aos acontecimentos das próprias narrativas, como o da existência do tema da ditadura militar, o do desconsolo das personagens masculinas, o da importância do significado das personagens femininas na vida deles e, principalmente, o do reencontro, faz-se importante dizermos, ainda, no que se refere principalmente à memória relacionada ao Essa espécie de “permanência do tempo” (Halbwachs (2006) fica mais fortemente marcada pela forma com a qual o narrador narra os acontecimentos. Nos ateremos mais a essa forma de narrar e a esse narrador no decorrer deste trabalho.

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2 Apesar de não haver, a partir do respirar o cheiro da dama-da-noite, um desencadeamento de lembranças que formam a memória de Leopoldo, não há como não nos lembrarmos do, digamos, clássico encontro de tempos, através do gosto do chá com o bolinho, da obra de Marcel Proust. Contudo, se lá o acontecimento é marcado por certa magia do encontro, visto que uma boa sensação vivida na infância é resgatada, aqui, a sensação promovida pelo sentido do olfato reforça a marca (talvez, inapagável) da tortura.


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espaço, que o desamparo no qual se encontra Leopoldo quando este retorna ao bairro e se depara com as modificações que nele foram feitas, parece ser descrito e explicado de forma precisa em um trecho do conto de Abreu: [...] ele disse que era incrível assistir como as ruas iam se modificando e de repente uma casa que existia aqui de repente não ocupava mais lugar no espaço, mas apenas na memória, e assim uma porção de coisas, ela completou, e que era como ir perdendo uma memória objetiva e não encontrar fora de si nenhum referencial mais e que (ABREU, 1996, p.77).

Apesar da grande diferença existente entre as personagens dos contos, ambos parecem estar presos a esse último “que”: sem uma espécie de continuum por direito (no mínimo, sintático) que é atestado/sentenciado pelo ponto final. Ambas as personagens parecem querer viver novamente aquilo de bom que viveram com suas companheiras, contudo, só lhes restam a memória desses tempos de outrora. É interessante notarmos, por meio da análise desses contos, a manifestação de três diferentes tipos de memórias (HALBWACHS, 2006): a histórica, a coletiva e a individual. A primeira, relativa a acontecimentos “tabelados” e datados, aparece nos textos quando é feita, por exemplo, à menção ao período da ditadura militar. No caso do texto de Drummond, há, ainda, uma maior especificidade já que é há uma espécie de recorte em relação a esse período, visto que o General Médici é citado no conto e, dessa forma, sabemos que é feito um registro desse tipo de memória que compreende o período que vai entre 1964 e 1974. Aqui, um nome e uma data reais da tabela da História são apropriados pela literatura. Já a segunda, a memória coletiva, revela-nos a situação das personagens em meio ao drama coletivo, como a questão da ditadura, que, no caso, influenciou as ações das personagens[3]. 3 Que é justamente entendido por coletivo pelo fato de ter influenciado as ações e o comportamento das personagens e, por isso, está, segundo Halbwachs (2010), mais próxima do sujeito do que a memória histórica.

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Notamos, aqui, que se a personagem do conto de Abreu cita seu envolvimento com o movimento somente em uma passeata, por meio de um pensamento que ele nem sequer compartilha com sua amiga durante a conversa (ABREU, 1996, 73); “Com o andar de Robert Taylor” mostra-nos um impacto mais profundo de um acontecimento coletivo na vida de um integrante dessa sociedade, já que Leopoldo torna-se Afonso, um guerrilheiro, um não simpatizante assumido do governo vigente. Já a última, a memória individual, se faz muito presente em ambos os textos, visto que é ela que nos aponta as diversas “memórias” do sujeito captadas a partir das diversas relações que este estabelece com o meio em que vive (HALBWACHS, 2010), ou melhor, com os grupos dos quais faz parte, estabelecendo, assim, um conjunto único, singular de relações. Dessa forma, vejamos a “composição” da qual é feita memória individual de Leopoldo: ele vive sob a pele de Afonso, na sua relação com Patrícia - em um determinado período do governo militar brasileiro - com os vizinhos, com outras pessoas de outros países, entre outros grupos sociais presentes nessa narrativa. Em “Aconteceu na Praça XV”, diversos também são os grupos que se entrelaçam para construir a memória individual da personagem protagonista: o dos engajados políticos, o do cinema, o da música popular brasileira, o dos trabalhadores do Brasil, entre outros. Levando em consideração que a narrativa retrata um fim de tarde na vida da personagem, vale, ainda, pensarmos no organismo vivo, nessa espécie de pulsar de um compêndio memorialístico em formação que marca esse momento do dia no conto de Abreu a partir da quantidade de grupos distintos e de entrecruzamentos entre eles que acontecem para que se estabeleça não somente a memória individual da personagem protagonista, mas que também, e de quebra, estabeleça-se também a memória individual de todas essas personagens que compõem esse cenário que cerca a personagem central. A beleza da cena parece estar justamente na produção simultânea de uma multiplicidade de vivências, que pra sempre serão únicas, mas que, contudo, só o tempo poderá


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firmá-las como memória que tiveram como origem um mesmo fim de tarde. Na ficção ou na realidade, parece ser desses acasos que a memória é construída (BENJAMIN, 1985). Importante também ressaltar a diferença no procedimento de ambos autores, Drummond e Abreu, ao trabalharem com a ficção e a realidade, a partir dos caminhos escolhidos e traçados por ambos. Drummond, ao intitular seu texto por “Com o andar de Robert Taylor”, fixa, dessa forma, ao trazer a imagem de uma estrela do cinema norte-americano, a construção do seu texto no campo ficcional para, aos poucos, inserir elementos do que poderíamos chamar de “campo real”, mais especificamente, sobre o período da ditadura brasileira e o período pós-ditadura, ao descrever a sensação de deslocamento de uma personagem que vive(ra) estes dois períodos. Já Caio Fernando Abreu, ao compor “Aconteceu na Praça XV”, parte de um espaço não ficcional, já que, de fato, a Praça XV existe, e, assim, apresenta-nos outra Praça XV, essa, sim, ficcional já que é fruto das percepções de uma personagem. Em relação aos narradores dos contos, notamos que esses, apesar de parecerem ocupar posicionamentos bem semelhantes nas narrativas (os dois são de terceira pessoa, ambos têm como foco uma personagem, os dois têm onisciência parcial, pois sabem apenas sobre os pensamentos de uma personagem, ambos acompanham de perto os acontecimentos das narrativas e, em termos estilísticos, os dois se utilizam dos parênteses para fazer certas considerações em relação às ações ou aos pensamentos que transmitem), há grandes diferenças entre os dois no que tange o, digamos, trato com as personagens. O narrador de Drummond escancara e espetaculariza os fatos da vida de Leopoldo, expondo-o ao espectador/leitor e, nesse sentido, apresenta-se de forma um tanto cruel para nós, pois aparenta fazer pouco caso dos sentimentos de Afonso tanto em relação à sua memória, marcada fortemente por dramas, produto dos tempos da ditadura, quanto em relação ao drama que ele vive no momento da narrativa: “[...] Observem: o supermercado já não é o mesmo [...]. Estejam atentos:

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ele pega um carrinho de fazer compras [...].” (DRUMMOND, 1994, p.39, grifo nosso). Na verdade, o que parece importar para este narrador é uma espécie de imagem de “Afonso-produto-a-servendido-para-o-público”, pois Afonso está ali para entreter os espectadores desse narrador. Já o narrador de Abreu denota certo tom intimista (e, até poderíamos dizer, solidário) tanto em relação à personagem quanto em relação ao leitor. Estabelece empatia entre personagem e leitor por meio de colocações e indagações que poderiam, na verdade, ser a de qualquer sujeito diante das, por vezes, inevitáveis amarguras que cerceiam o indivíduo citadino contemporâneo: “[...] tentava inutilmente dar uma outra orientação ao cansaço despolitizado e à dor seca nas costas, alguém compreenderia? [...]” (ABREU, 1996, p.70). Situase, assim, mais próximo a esse leitor, parece compadecer-se, de certa forma, da situação de desconcerto em relação ao mundo pela qual passa a personagem protagonista. Nesse sentido, é como se, em relação a Afonso, o observássemos de longe, mas, em relação ao protagonista de “Aconteceu na Praça XV”, parece que estamos ao seu lado, sentindo com ele seu desconforto. É como se nos fosse possível sentir essa espécie de “mormaço de fim do dia” que, de certa forma, parece sufocar o protagonista de Abreu. O incômodo dele também parece ser o daqueles que com ele compõem o cenário social, o sistema. A sua voz e seus pensamentos parecem ser aqueles que foram pinçados diretamente da multidão, visto que parecem representar um sentimento que a une. É ele quem aparenta ter condições de compilar e expressar a disposição de todos em relação ao meio no qual (sobre?)vivem: Quando a irritação não era muita, conseguia olhar para os lados pensando que dentro das corridas, dos gritos e dos cheiros havia como olhos que não precisavam se olhar para que uma silenciosa voz coletiva repetisse, olha, venci mais um [...] (ABREU, 1996, p. 70).

É isso, talvez, o que amplifica nosso incômodo em relação


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a personagem de “Com o andar de Robert Taylor”. Quando comparamos a situação da personagem Abreu com a de Drummond, notamos que a personagem principal do último parece estar totalmente desamparada. Nesse caso, é o trabalho comparativo que envolve as duas narrativas, que apura nossa visão e, dessa forma, nos permite enxergar certos traços fortes (e um tanto cruéis) do texto de Drummond. Continuando nesse caminho, notamos que, definitivamente, não há um porto seguro para a personagem de Drummond. O inesperado reencontro entre Leopoldo e Patrícia, codinome Afonso e “A menina”, causa felicidade a Afonso, pelo fato dele poder ver novamente sua companheira do passado no momento em que refaz o trajeto de outrora. Contudo, a personagem-protagonista se depara, (somente) no presente, com a verdade de que foi Patrícia quem o denunciou em seus tempos de guerrilha política. Esse é o grande choque do conto: a felicidade é substituída de forma implacável pela decepção e pela sensação de abandono. No também inesperado encontro de “Aconteceu na Praça XV”, apesar da nova perda que a personagem protagonista sofre após o momento em que a personagem feminina o deixa no Chalé, ficalhe, ainda, o resquício do olhar que ambos mantiveram no instante fugaz: “[...] ela olhou bem para ele, mas os dois baixaram a cabeça quase ao mesmo tempo [...]” (ABREU, 1996, p. 77). Entendemos que, para Leopoldo, a perda de Patrícia é total, contudo, para a personagem protagonista de Abreu, há uma espécie de esperança, visto que essa personagem encontrou um olhar que se “manteve” ao seu mesmo que por um “instante fugaz”. Apesar desse positivo encontro promovido pelo olhar, o protagonista de Abreu tem uma espécie de agravamento de seus males quando revê a antiga companheira, pois ele, por causa do encontro, aparenta ter a realidade do ontem - que lhe parece ser mais agradável, apesar de deslocada desse sistema em que vive - mais intensa aos seus olhos, “mais real”, visto que:

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Quando encontramos um amigo de quem a vida nos separou, inicialmente temos de fazer algum esforço para retomar o contato com ele. Entretanto, assim que evocamos juntos diversas circunstâncias de que cada um de nós nos lembramos (e que não são as mesmas, embora relacionadas aos mesmos eventos), conseguimos pensar, nos recordar em comum, os fatos passados assumem importância maior e acreditamos revivê-los com maior intensidade, porque não estamos mais sós aos representá-los para nós (HALBWACHS, 2006, p.30-31, grifo nosso).

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A casualidade dos encontros, acrescido do peso significativo dos lugares nos quais se encontram as personagens protagonistas dos contos analisados neste trabalho, culminam em uma espécie de necessidade nas personagens de ressignificação em relação ao que elas acreditavam até o momento do encontro. Dessa forma, entendemos que sair do supermercado com o andar de Robert Taylor é abandonar a sua pretensa singularidade como “Afonso”, guerrilheiro, e buscar abraçar, com a ajuda da memória, os símbolos que encantaram e, de certa forma, “cegaram” alguns de sua geração para os problemas sociais. A Leopoldo não há saída senão a de ter que viver no passado, não há um presente do/no qual ele possa continuar, visto que viver por uma causa já não é mais possível pois os tempos de revolução acabaram. Por isso é que ele abandona a ilusão do passado, ao virar as costas para Patrícia no supermercado e, sem mais opções, adota outra ilusão que também fora adotada por aqueles de sua geração: Robert Taylor. Traçando mais um paralelo entre os contos, notamos que para a personagem feminina, lá no conto de Abreu, o significado de parar a conversa corrente e recorrer ao assunto astronomia, parece ser um recurso, do qual ela se vale, cujo efeito, ao nosso entender, é parecido com o que a troca que Leopoldo faz de Afonso para Robert Taylor no conto de Drummond. Ela, não desejando, aparentemente, prolongar ou aprofundar um assunto do passado mencionado pela personagem masculina, desvia-se muitas vezes


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daquilo que ele relembra e diz para ela, para falar sobre astronomia e, de certa forma, “fugir da realidade”, realidade essa com a qual ela parece identificar-se, mas, ao que tudo indica, não condiz ou não pode mais fazer parte de seu presente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, C. “Aconteceu na Praça XV” In: Pedras de Calcutá. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 70-77.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Relacionar os dois contos nos permitiu enxergar novas perspectivas, já que analisar as obras de Drummond e Abreu é mergulhar em um misto de aproximações e contrastes que parecem realçar as já “cores fortes” de ambos os textos. Notamos, dessa forma, que a memória atua de forma a reavaliar os acontecimentos do passado e contrastá-los com o presente, de forma a ressignificar o último em ambos os contos. A partir de um reencontro, em um dado espaço, personagens que seguem sua vida no presente são convidados a revisitar seus sentimentos, suas emoções, demonstrando, dessa forma, a importância da memória como desmascaradora de ilusões, como aquela que permite um novo enfrentamento em relação a algo que aparentemente já se foi. Nesse sentido, as narrativas tecidas por Drummond e Abreu apresentam-se para nós como espécies de grandes acontecimentos que não somente atestam seus lugares em dados tempos fictícios, mas sim, tornam esse tempo pleno já que constroem uma realidade em que não só é possível observar os acontecimentos, mas também é possível que os sujeitos reencontrem as suas lembranças, em movimentos de contínua renovação e descobertas.

BENJAMIN, W. “O narrador”, que está em Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política, ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, vol.1, p. 197-221. DRUMMOND, R. “Com o andar de Robert Taylor” In: Quando fui morto em Cuba. 5. ed. São Paulo: Atual, 1994, p. 34-39.

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HALBWACHS, M. A memória coletiva. Tradução de B. Sidou. São Paulo Centauro, 2006. LIMA, D. M. A. Imagens Contemporâneas de Espaço e Tempo em Caio Fernando Abreu. 2007, 119f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade do Ceará, Fortaleza.


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e a repetição para os leitores que começassem a acompanhar a narrativa já em andamento (MEYER, 1998a: 13-14). A ideia de Girardin se provará muito em breve genial. Seu jornal, La Presse, no prazo de um ano tem sua tiragem ampliada de 70 mil para 200 mil exemplares. Utilizando-se de estratégias que o aproximavam do melodrama popular, como enredo trágico, cercado de lágrimas, mas admitindo um final feliz, ou ao menos uma boa lição de moral, o romance de folhetim passa a ser maciçamente consumido pelos operários em busca de divertimento (SERRA, 1997: 19). A receita é consolidada no início da década de 1840 e é o grande atrativo dos jornais para atrair e segurar assinantes. A fórmula do “continua amanhã” entrou na rotina e suscitou expectação. Para supri-la, surge uma modalidade especifica de folhetim: o folhetim romance ou feuilleton tout cour(MEYER, 1998b: 114).

O FOLHETIM NA FORMAÇÃO DO ROMANCE BRASILEIRO[1] Juliana da Silva Passos (UFPR) Desde o fim do século XVIII até a contemporaneidade o romance é o mais popular dos gêneros literários. Nas palavras de Antonio Candido, o romance “complexo e amplo, anticlássico por excelência, é o mais universal e irregular dos gêneros modernos” (CANDIDO, 2000: 97). Por sua abertura e flexibilidade, o romance tornou-se o principal gênero da modernidade, ofuscando outras formas narrativas e sua dimensão faz com que potencialmente englobe todas as outras narrativas, literárias ou não. No Brasil, o romance nasce a partir de uma condição muito específica, assim como nossa própria literatura, gerada no seio da portuguesa e dependendo da influência de mais duas ou três para se constituir (CANDIDO, 2000: 9). Uma influência evidente foi o folhetim, e quando me refiro a folhetim, não me refiro apenas ao meio de produção e circulação, mas àqueles escritos que vieram a se constituir como um gênero narrativo – de valor literário questionável – posteriormente inclusive desassociados da circulação nos jornais. O folhetim foi concebido pelo jornalista francês Émile de Girardin que em 1836 lança um jornal em cujo rodapé publica-se um fragmento de romance que “haverá de continuar amanhã” – modo de aguçar a curiosidade do leitor e aumentar a tiragem e o público do jornal. A fórmula foi se aperfeiçoando para adequar-se às peculiaridades do gênero, como o corte, a necessidade de suspense Este texto é o primeiro ensaio de um capítulo da tese de doutoramento da autora, ainda sem título definido, em fase de elaboração entre os anos de 2009 e 2012.

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Toda carga pejorativa associada ao gênero, porém, não assusta os jornais, que, independente de suas ideologias expressas, aderem todos à novidade, que, caindo nas graças do público, poderia levar a uma explosão nas assinaturas. O sucesso do modelo acaba por generalizar o modo de publicação de toda ficção, o que nos trás uma nova ambivalência do termo: todos os romances passam a ser publicados em folhetim. E embora todos os romances passem a ser publicados na configuração de folhetim, nem todos constituem romances-folhetins, ou seja, não possuem as características folhetinescas acima já apontadas (MEYER, 1998b: 117-118). Houve por parte do público, senão a solicitação destas obras, no mínimo a receptividade delas, influindo na consolidação do romance entre nós, comprovada pela vasta quantia de traduções e publicações encontradas no Brasil inteiro. Cabe ainda destacar que, a partir do desenvolvimento de uma produção nacional mais relevante, diminuiu o número das traduções, o que indica que aquela tomou o lugar destas e ainda que se tratasse de uma carência do meio (CANDIDO, 2000: 107). Estas traduções, na maioria de títulos franceses, eram de romances aos quais se


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convencionou chamar de folhetinescos. E aqui cabe a pergunta de Candido, cuja resposta já supõe e com a qual as pesquisas de Marlyse Meyer vêm a contribuir: “Quem sabe quais e quantos desses subprodutos influíram na formação do nosso romance? Às vezes, mais do que os livros de peso em que se fixa de preferência a atenção” (CANDIDO, 2000: 108). O folhetim – tanto modo de veiculação quanto gênero ficcional – está no âmago das primeiras manifestações romanescas no Brasil. E se o romance e o romance folhetinesco no Brasil percorrem um caminho tão semelhante ao dos precursores franceses, cabe questionar até que ponto estes não terão sido apenas imitações e arremedos. Marlyse Meyer acredita que não. Que, ao contrário, o exercício da escrita no território livre do folhetim – e do romance – ajudará os nossos primeiros ensaios de cultura a tomarem forma “soltando a língua e obrigando precisamente a não ficar só de olho em Paris” (MEYER, 1998b: 152). Como um espaço aberto a tudo, o folhetim será um espaço potencial para a criação e para a experimentação, e, como já mencionado, será nele que encontramos algumas das primeiras tentativas da produção de uma literatura nacional (MEYER, 1998b: 153). E é inscrito neste formato que encontramos as obras que figuram como as fundadoras do romance brasileiro: O Filho do Pescador (1843), de Teixeira e Sousa e A Moreninha (1844) de Macedo. Em suas origens, os expoentes de nossa literatura brotavam nas famílias mais abastadas, e se ilustravam – geralmente estudando Direito ou Medicina – nas cidades grandes, como Rio de Janeiro, São Paulo ou Recife, ou ainda em Portugal. Destaca-se como uma grande exceção a regra Teixeira e Souza, o “bom, simpático e infeliz carpinteiro de Cabo Frio” (CANDIDO, 2000: 112). Menos considerado que seus contemporâneos pelos críticos da época e posteriores, por certo desdenhado em razão de suas origens que, por sua vez, também não eram compensadas por algum talento

excepcional. Sua qualidade literária pode ser duvidosa, mas considerável é sua importância histórica por representar no Brasil, maciçamente, o aspecto que se convencionou chamar folhetinesco do Romantismo. Ele o representa, com efeito em todos os traços de formas e conteúdos, em todos os processos e convicções, nos cacoetes, ridículos e virtudes. (CANDIDO, 2000: 112)

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Alfredo Bosi, em sua História Concisa da Literatura Brasileira, considera O Filho do Pescador como o primeiro romance brasileiro. E são os romances folhetinescos franceses, ou, nas palavras de Bosi, “a subliteratura francesa” que “no original ou em más traduções, vai sugerir a um homem semiculto, como Teixeira e Sousa, os recursos para montar as suas sequências de aventuras e desencontros” (BOSI, 1997: 112). Isto porque, segundo o crítico, com a ampliação do público ledor, que agora passa a incluir jovens, mulheres e semiletrados, há um “nivelamento por baixo” para atender a demanda de entretenimento destes grupos (BOSI, 1997: 112). Ainda assim, reconhece que “seja como for, foi com ele que o Romantismo caminhou para a narração, instrumento ideal para explorar a vida e o pensamento da nascente sociedade brasileira” (BOSI, 1997: 113). Contrariando a tradição crítica, Massaud Moisés nega a Teixeira e Sousa o mérito de inaugurador do romance brasileiro, com o seu O Filho do Pescador, que precede A Moreninha de Macedo em doze meses, De acordo com Moisés, O Filho do Pescador não seria um romance não pelo número de páginas, mas por sua estrutura linear, priorizando a peripécia em detrimento da prospecção, com ênfase nas ações e no suspense e apelo às coincidências (MOISÉS, 1984: 68). Apesar do evidente desgosto do crítico pela obra de Teixeira e Sousa, é forçado a admitir, que, graças aos valores pressupostos de uma classe média emergente, consumista de produtos alienantes


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e com complexo de colônia, a ficção de Teixeira e Sousa frutificou e se instalou entre nós (MOISÉS, 1984: 67). Afrânio Coutinho irá inúmeras vezes referir-se a O Filho do Pescador como uma novela, mas apesar disto, jamais entrará na polêmica de diferenciar a novela do romance ou justificar o uso do termo e, como maioria da crítica, considerará a obra o prelúdio do romance brasileiro (COUTINHO, 1969: 228). Sem perder o senso crítico, Afrânio Coutinho reconhece deficiências da obra do autor, cujas personagens são demasiadamente convencionadas, sem vida ou outra marca além daquilo encarnam. Tais deficiências, porém, são justificadas e justificáveis pelas condições do autor: sua formação limitada, sua inexperiência e a falta de antecessores, de modelos, de bagagem cultural não apenas do autor, mas da própria nação. Assim, suas fraquezas não tiram em momento algum o mérito de Teixeira e Sousa de fundador e arauto do romance nacional, influenciado e inscrito sob o signo do folhetim (COUTINHO, 1969: 230). Em 1844, ano seguinte a estréia de Teixeira e Souza com o Filho do Pescador, temos outro grande marco da gênese do romance brasileiro: A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo. Leitor de Eugène Sue (MEYER, 1996: 396), médico por formação, nunca exerceu a profissão, tendo exercido o ofício de professor e político e se dedicado a vasta obra literária, que compreende mais de dezessete romances (BOSI, 1997: 143). Embora Macedinho, como era conhecido o romancista das famílias, não tenha o mesmo poder de despertar a cólera da crítica encontrado em seu predecessor e contemporâneo Teixeira e Souza, também é certo que sua obra impeliu mais às críticas negativas do que à dileção. Curioso notar que a causa das críticas a ambos fundadores do romance brasileiro acaba se iniciando ou culminando nos mesmos argumentos: a crítica do emprego de diversos recursos muito característicos do romancefolhetim, quando não objetivamente a inferência à semelhança entre as obras brasileiras e os romances-folhetins estrangeiros.

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Candido afirma que certos autores parecem escrever em função de si mesmos, tendo o leitor como um acessório e procurando convertê-lo às suas visões do mundo, enquanto outros, em detrimento da mensagem, preocupam-se com a capacidade receptiva do leitor, procurando ajustar a obra à capacidade mental do público sem lhe fazer grandes exigências. Candido pontua que este não é um juízo de valor, uma vez que se pode identificar sem dificuldades grandes autores pertencentes a esta segunda categoria de escritores, como Balzac, Dickens ou Eça de Queirós. Por outro lado, também não é difícil perceber que as características deste tipo de escrita são absolutamente recorrentes em gêneros menos prestigiados, como, por exemplo, o folhetim (CANDIDO, 2000:121). Segundo Candido, não poderíamos encontrar autor brasileiro do século XIX mais bem adaptado a esta categoria que Joaquim Manuel de Macedo. Ajustado a esta via de fácil comunicação, o valor da sua obra é muito mais social, devido ao intento em transpor um novo gênero para a sociedade brasileira com uma identidade própria do que propriamente valor literário (CANDIDO, 2000: 122). Bosi aponta que mesmo tendo carreira longa e produtiva, a produção macediana não teve progresso literário relevante ao longo do tempo. Isto porque muito cedo Macedo teria descoberto algumas fórmulas de efeito cômico ou sentimental, às quais aplicou assiduamente na execução de sua obra romanesca. Ainda de acordo com Bosi, em todos os dezessete romances escritos após A Moreninha, prevalecerá uma mesma fórmula totalmente baseada no gosto importado e nos autores folhetinescos estrangeiros (Scott, Dumas, Sue, etc) adaptados aos nossos contextos sociais (BOSI, 1997: 144). Massaud Moisés, que não escondia sua antipatia pela obra de Teixeira e Souza, por outro lado, como já tínhamos algumas indicações no momento de sua História da Literatura Brasileira dedicado ao autor de O Filho do Pescador, será de fato lisonjeiro


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no que se refere à obra de Macedo, reconhecida por Moisés como a introdução do romance nacional, que abrasileirou a prosa de ficção nos temas e nas técnicas, iniciando uma tradição ficcional com fisionomia própria (MOISÉS, 1984: 79). Porém, ao mesmo tempo em que exalta a obra macediana, aponta-lhe uma série de características que aproximam esta dos folhetins importados e mesmo da obra do mal quisto antecessor (MOISÉS, 1984: 79-80).

De acordo com Candido, tais influências serão determinantes na realização da obra do autor como ficcionista (CANDIDO, 2000: 200). Poucos escritores na literatura brasileira parecem capazes de produzir juízos tão contraditórios quanto Alencar, frente ao qual “parece que não se conhecem meias tintas nem serenidade” (MOISÉS, 1984: 88). Dividida também parece ser a sua obra, como aponta Candido, quando afirma que “há, pelo menos, dois Alencares (...): o Alencar dos rapazes, heróico, altissonante; o Alencar das mocinhas, gracioso, às vezes pelintra, outras, quase trágico” (CANDIDO, 2000: 201). Objetivamente, Sodré (1988) inclui Alencar à lista de nomes do período que importaram e adaptaram as receitas dos romances de folhetim europeus, mas afirma que:

Tanto a obra de Teixeira e Souza – generalizadamente menosprezada – quanto à de Macedo – negativamente criticada por tantos –, consideradas como os dois grandes marcos de nascimento do romance brasileiro, são claramente marcadas pelas influências do folhetim – tanto o folhetim como meio de produção e consumo, quanto o folhetim gênero ficcional, novelas de “segundo time”. E provavelmente seja esta a causa do maior de todos os incômodos da crítica com os dois ficcionistas. Ainda contemporâneo a enorme produção já em decadência de Macedo, aparecerá aquele que será o primeiro grande romancista brasileiro, mais importante ficcionista do Romantismo, pelo volume de sua obra, variedade de temas e estilo (MOISÉS, 1984: 89): José de Alencar. Este, como registrado em suas memórias, tem o romance folhetinesco estrangeiro como um elemento absolutamente presente em sua memória de leitor. Em Como e porque sou romancista, de 1873, recorda suas primeiras experiências de leitura, ainda na infância: Contando como eram os serões da infância, Alencar informanos: “conforme o humor em que estava, minha mãe às vezes divertia-se logrando com histórias a minha curiosidade infantil; outras deixava-me falar as paredes e não se distraía de suas ocupações de dona de casa”. Que histórias seriam? Apenas as escassas obras do “repertório romântico”, como diz o ficcionista, que tinha à mão?: “Amanda e Oscar, SaintClair das Ilhas, Celestina e outros de que já não me recordo”. (MOISÉS, 1984: 99)

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O fato é que, na obra de um mesmo escritor, podem-se encontrar textos consagrados como “literatura culta” e textos de natureza claramente folhetinesca ou “de massa”. O José de Alencar de Senhora não é o mesmo de A viuvinha, assim como o Machado de Assis de Dom Casmurro não é o mesmo de Iaiá Garcia ou Helena. (SODRÉ, 1998: 12)

E aproveitando a deixa de Sodré, falemos então de Machado de Assis, de cuja ficção caracteriza-se como “o ponto mais alto e mais equilibrado da prosa realista brasileira” (BOSI, 1997: 193), “glória da literatura brasileira e figura de projeção internacional pelo caráter universalizante de sua ficção” (D’ONOFRIO, 1990: 389). Maior nome da ficção brasileira, ao qual talvez só venha se comparar, no século XX, João Guimarães Rosa, o brilhantismo do “bruxo de Cosme Velho” tem sido apontado unanimemente pela crítica literária nacional. O entusiasmo expresso acima, na citação de Salvatore D’Onofrio e Alfredo Bosi são muito ilustrativas da posição da crítica brasileira com relação ao autor.


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Recorrentemente a crítica literária brasileira tem dividido a carreira de ficcionista do autor duas fases distintas, sendo uma composta das primeiras obras, de tendência romântica, que enfeixa os romances desde Ressurreição até Iaiá Garcia, publicado em 1878, e a outra, com os romances da maturidade, de tendência realista, que se inicia com as Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881, até o Memorial de Aires em 1908 (COUTINHO, 1969b: 137; MOISÉS, 1984: 392; D’ONOFRIO, 1990: 389). Sobre esta divisão, Moisés polemiza: Divisão esclarecedora, e de certo modo valorativa, dado que a segunda fase engloba as obras mais acabadas do engenho de Machado de Assis, não espelha, porém, toda verdade. A rigor, se há predominância da pigmentação romântica nos livros iniciais, lá também se observam traços de heterodoxia, a revelar um temperamento que aderiu com reservas à estética romântica, e nele instilou a marca de inconfundível talento. (MOISÉS, 1984: 392)

Na mesma linha de Moisés também está D’Onofrio, quando afirma sobre Machado: “cavaleiro entre duas épocas – Romantismo e Realismo –, Machado não pode ser filiado a nenhuma escola literária, pois o verdadeiro gênio não segue, mas cria cânones estéticos” (D’ONOFRIO, 1990: 389-390). A grande ironia destas colocações, que procuram valorizar a produção de Machado de Assis como um todo, e em especial aquelas obras ligadas ao período romântico, ofuscadas pelos romances de características realistas – que são considerados as grandes obras-primas machadianas –, é que, a exemplo de Candido, em seu capítulo dedicado ao Romantismo em Formação da literatura brasileira (2000), Bosi, no capítulo dedicado ao mesmo período em História concisa da literatura brasileira (1997), e Coutinho, no segundo volume do seu A literatura no Brasil, dedicado ao Romantismo, nos capítulos dedicados a este período, tanto em

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Literatura ocidental (D’ONOFRIO, 1990) quanto em História da literatura brasileira (MOISÉS, 1984) Machado de Assis não figura entre os grandes autores do Romantismo e nem suas obras são mencionadas entre as obras românticas de relevância. Machado de Assis só irá figurar nestes compêndios de história da literatura brasileira nos volumes ou capítulos dedicados ao Realismo. E assim, suas obras classificadas como românticas, anteriores a Memórias Póstumas de Brás Cubas, não aparecem ou são apenas mencionadas. Cabe perguntar a razão da omissão de Machado e suas obras nos compêndios do Romantismo. Isto nos leva a pensar que, ainda que haja um esforço da parte de alguns críticos em promover essa parte menos prestigiada da produção machadiana, no final das contas, assim como Sodré, Moisés e D’Onofrio também sabem que o “Machado de Assis de Dom Casmurro não é o mesmo de Iaiá Garcia ou Helena” (SODRÉ, 1998: 12)[2]. O próprio D’Onofrio, em um momento diferente do seu Literatura ocidental, deixará isso claro, quando afirma que Com o enorme sucesso de A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), a narrativa ficcional se afirma como o gênero literário mais popular, iniciando a longa tradição do romance “urbano’, de cunho ideológico, em que o casamento feliz põe termo à série de percalços que embaraçavam o amor do casal de namorados. Tal filão romanesco terá como ilustre seguidor o Machado de Assis da primeira fase (A mão e a luva, Ressurreição, Helena, Iaiá Garcia) (D’ONOFRIO, 1990: 337).

Marlyse Meyer, um dos principais nomes da nossa crítica quando o assunto é folhetim, dedica especial esforço no intento de traçar as marcas do gênero na formação de nossa ficção. Dentro de sua pesquisa, encontramos muito acerca de José de Alencar, o que não é especialmente inédito ou surpreendente, mas sobretudo 2 Acerca dos romances românticos de Machado de Assis, Bosi afirma: “É também verdade que os romances iniciais nos parecem fracos mesmo para o nível de consciência crítica do autor na época de redigi-los” (BOSI, 1997: 197).


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acerca de Machado, o que se revela de especial valor, uma vez que a crítica tem sido hesitante em relacionar o grande nome das nossas letras com este gênero desprestigiado.

Siqueira abriu o primeiro volume, e deitou os olhos ao começo do cap. II, que já trazia de cor. [4] (110)

Uma evidência da exposição de Machado a tais leituras é a recorrência destas obras sendo representadas no mundo ficcional do autor. São inúmeras as personagens leitoras das “moderníssimas novelas”. Tais personagens parecem se situar na fase de descoberta da excelência do mundo ficcional e representam uma classe média emergente de origem roceira, que procura se distrair e ilustrar. Leitores do já mencionado Sinclair das Ilhas, aqui já mencionado, e tantas vezes mencionado na obra machadiana.

Sinclair das ilhas, que aparece quase num cacoete narrativo[5], foi certamente conhecido, lido e relido pelas “gentis leitoras” de Machado de Assis. Tal recorrência do aparecimento da obra na produção machadiana, nos permite ainda divagar sobre a leitura que o próprio autor teria feito dela, muito embora Sinclair não apareça nos levantamentos feitos pelos especialistas acerca da biblioteca do autor.

Em Helena, temos a figura da matrona D. Úrsula, que reiteradamente lê seu exemplar de Saint-Clair: Na seguinte manhã, Estácio levantou-se tarde e foi direito à sala de jantar, onde encontrou D.Úrsula, pachorrentamente sentada na poltrona de seu uso, ao pé de uma janela, a ler um tomo do Saint-Clair das Ilhas, enternecida pela centésima vez com as tristezas dos desterrados da ilha da Barra; boa gente e moralíssimo livro, ainda que enfadonho e maçudo, como outros de seu tempo. Com ele matavam as matronas daquela quadra muitas horas compridas do inverno, com ele se encheu muito serão pacífico, com ele se desafogou o coração de muita lágrima sobressalente. [3](11)

Novamente, em Quincas Borba, teremos a imagem do velho que reiteradamente lê o seu tão estimado romance:

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Que fique claro que chamar a atenção para este aspecto menos falado da obra machadiana, da sua relação e da influência dos textos folhetinescos, de forma alguma é um modo de diminuir a obra do autor. O mesmo vale para aqueles anteriormente citados – Teixeira e Souza, Macedo e Alencar –, e cuja relação com o gênero popularesco é mais evidente e explorada pela crítica. Cabe aqui é retomar a pergunta de Candido: “Quem sabe quais e quantos desses subprodutos influíram na formação do nosso romance?” (CANDIDO, 2000: 108). A contar pela investigação das obras e influências de Teixeira e Souza, Macedo, Alencar e Machado, os grandes nomes da formação do nosso romance durante o século XIX, os dois primeiros pelo pioneirismo e os dois últimos pela qualidade e desenvolvimento do gênero, podemos acreditar que, antes das grandes obras da literatura universal, somos herdeiros diretos deste gênero bastardo e desprestigiado. E por mais que isto possa eventualmente constranger a intelligentsia brasileira, Texto-fonte: Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em folhetins, de 1886 a 1891, em A Estação. Publicado em volume pela Garnier, Rio de Janeiro, no mesmo ano de 1891, com substanciais diferenças com relação aos folhetins. O que aqui vai é justamente a edição em livro. Disponível em http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/romance/marm07.pdf (acesso em 23/10/2011).

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Logo que Rubião dobrou a esquina da Rua das Mangueiras, D. Tonica entrou e foi ao pai, que se estendera no canapé, para reler o velho Saint-Clair das ilhas ou os desterrados da ilha da Barra. Foi o primeiro romance que conheceu; o exemplar tinha mais de vinte anos; era toda a biblioteca do pai e da filha. 3

Idem.

Além dos romances mencionados, Sinclair da Ilhas ira figurar ainda em alguns contos do autor. 5


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é a liberdade implícita ao gênero que devemos grande parte do crédito da construção – sobretudo por estes quatro romancistas – de uma ficção com cores e cara brasileira (gostando delas ou não).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998. ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ bv000311.pdf (acesso em 23/20/2011). ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Machado de Assis: obra completa. Disponível em http://machado.mec.gov.br/ (acesso em 20/10/2011).

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A LITERATURA ENTRE FRONTEIRAS: ApROximAções entRe pedRO nAVA e eUCLides dA CUnhA Júlio de Souza VALLE Neto (IEL-Unicamp) Em mais de uma oportunidade, Pedro Nava declarou a sua admiração por Os Sertões. Em uma entrevista, chega mesmo a considerar o clássico uma “influência marcante” em suas Memórias. A tentativa de aproximar as obras pode revelar, de fato, confluências marcantes. O presente artigo pretende privilegiar três delas. A primeira examina uma chave de leitura bastante recorrente nos estudos euclidianos e navianos, tendente a considerar os escritores como “intérpretes do Brasil”. Tanto em um como em outro, como se pretenderá mostrar, o dado particular (Canudos e a experiência autobiográfica, respectivamente) são tratados como “variante de assunto geral”, donde o convite àquela chave interpretativa. A segunda aproximação, por seu turno, pretende concebê-los como dois escritores cuja formação científica (Engenharia e Medicina, nesta ordem) deixa marcas sensíveis em suas atividades literárias. Neste particular, a ideia de raça (e no caso de Nava, especialmente, a de genealogia) cumpre um papel relevante em ambos os textos (inclusive estruturalmente). Por fim, o terceiro paralelo examina o modo como, em um e outro caso, a complementação romanesca parece servir, até certo ponto, a uma dada fidelidade historiográfica. Empreendendo uma leitura cruzada ainda pouco explorada pela crítica, pretende-se contribuir para a melhor compreensão não apenas das fronteiras entre os textos, mas também daquelas intrínsecas a cada um deles: de fato, neles o particular e o geral, a ciência e a arte e, por fim, a história e o romance imbricamse continuamente, engendrando relações cujo teor pode esclarecer, por assim dizer, esta dimensão fronteiriça de ambas as obras. Palavras-chave: Pedro Nava; Euclides da Cunha; Memorialismo Brasileiro; Literatura Comparada.

Leitor voraz de Os Sertões, Pedro Nava nutria, pelo clássico euclidiano, admiração sem limites e um fervor quase religioso. “Fiz com ele o que os protestantes fazem com a Bíblia”, registra

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em Beira- Mar: “durante muito tempo”, conclui, a obra seria o seu “livro de cabeceira” (NAVA, 2003, p. 91). Com isto, ao longo da vida o “grosso tomo” teria sido lido “umas vinte vezes”. Que consequências, do ponto de vista interpretativo, poderão advir desta “influência marcante” – como a define, em entrevista, o próprio memorialista (SANTILLI, 1983, p. 108). Adiante-se, desde logo, que este artigo não adotará, no exame desta “influência” declarada, um encadeamento rígido e redutor – de resto, um procedimento sempre perigosamente arbitrário. Antes, interessará tão somente compensar, em alguma medida, a relativa exiguidade do paralelo crítico entre as Memórias e Os Sertões, valendo-se para isto da comum dimensão fronteiriça típica das obras: cindidas entre o geral e o particular, a Ciência e a Arte e, por fim, a História e a Literatura, ambos os escritores exploram, em suas respectivas épocas, os limites associados, com maior ou menor pertinência, à prática literária. É tão somente esta coincidência, desvinculada de qualquer relação estrita de causa e efeito, que se pretende abordar a seguir.

A literatura enquanto amostra Tanto Os Sertões quanto as Memórias empreendem, cada obra a seu modo, a revisita de um passado do qual o autor foi testemunha ocular. Em Euclides, este passado é recente e nele o escritor toma parte como um observador “sincero”, retomando a expressão utilizada na “Nota Preliminar” d’ Os Sertões; em Nava, ele tende a ser mais recuado e, não obstante o caráter de testemunho sóciohistórico valorizado pelo memorialista, prende-se antes de mais nada a uma experiência autobiográfica. Estas diferenças, no entanto, não os impedem de coincidir num procedimento marcante. Em ambos, o evento focalizado (o conflito em Canudos e a história pessoal de Nava) impele ambos os narradores a revisitarem um passado muito mais remoto, sem o qual o foco escolhido padeceria de uma superficialidade enganosa. É assim que o foco-Canudos


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leva naturalmente, para Euclides, às longínquas formações geológicas do solo brasileiro ou aos fiéis do Cristianismo mais larvar, estações aparentemente insólitas nas quais o discurso se detém de forma a aclarar, respectivamente, o espaço e a religião do sertanejo, protagonista do evento narrativo central. Da mesma forma, Nava precisa recuar, de conjectura em conjectura, até 14 de fevereiro de 1192, data do primeiro documento conhecido no qual figura o sobrenome da família (NAVA, 2000, p.11), cuja saga pelos rincões nordestinos e mineiros, por vezes tingida de cores épicas euclidianas, desembocará na vida do narrador das Memórias. Este recuo temporal em relação ao foco será um dos procedimentos-chave para outra afinidade estrutural marcante: a intenção de conferir a uma história mais ou menos restrita, inclusive em termos espaciais, uma dimensão descritiva e interpretativa da cultura do país como um todo. Disto, a própria estrutura tripartite d’ Os Sertões constitui uma engrenagem eficiente, com a sua concepção generalizante da terra, do homem e da luta; sob tais parâmetros, frequentemente se define um conceito em função do outro (o homem do litoral versus o homem do interior, por exemplo), garantindo-se com isto um alargamento do objeto propício àquela dimensão interpretativa mais abrangente. No caso de Nava, este alargamento pode ser bem resumido pela metáfora do tronco comum – ou seja, o próprio memorialista -, do qual derivam ramificações – familiares, sociais, intelectuais, episódicas, culturais etc. – condizentes com as pretensões de representatividade cultural do autor.[1] Espaço e tempo em ambas as obras, portanto, servem a esta ambição comum de redimensionamento de foco, dispensada a fazer do evento central quase um epifenômeno das injunções históricas coletivas – ou, em outras palavras, quase uma amostra destas últimas. Em suma, tenta-se com isso dotar o Davi Arrigucci Jr. (1987) realça este aspecto no ensaio “Móbile da Memória”. José Maria Cançado lembra, por seu turno, a intenção declarada do memorialista de perscrutar o “rosto do Brasil” (CANÇADO, 2003, p. 50). 1

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estatuto literário de uma dimensão também simpática ao registro historiográfico e sociológico, investindo-se, por assim dizer, em seus virtuais contornos de exemplaridade.

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Literatura e Ciência A comparação anterior, de natureza mais geral, insinua-se ao crítico mais solicitamente do que outras, de recorte mais específico, como por exemplo a temática. É nesse nível em que o paralelo tende a ficar mais oblíquo. “O meu sertão é (...) interior”, dirá numa oportunidade Pedro Nava, dando mostras desta clara divergência temática (NUNES, 1987, p. 392). Tal divergência, entretanto, deve tornar ainda mais digno de nota o trecho de Galo-das-Trevas no qual doutor Egon, recém-formado médico, lança-se aos sertões mineiros de Caeté e Taquaraçu para tentar conter uma epidemia de tifo. Aqui, o sertão de Nava não é apenas interior, circunstância propícia à aproximação com Euclides – em especial por ressaltar, em geral, traços extensíveis a outras porções das Memórias. Na oportunidade, esta “gente perdida, desvivida, pobre, doente e ignorante”, tão diversa da “população praieira e capitaleira” na qual o protagonista se desenvolvera, acaba por aproximar-se, por conta de um episódio surpreendente, do passado familiar do doutor: À noite, o Egon conversando com os donos da casa (...) descobriu os mesmos como uns Pinto Coelho que ali estavam atolados há mais de cem anos. Eram homens do campo, iam madrugada para a lavoura de alpercatas ou descalços e não sabiam ler. Eram brancos, cara de pássaros, olhos muito verdes mas dois tinham mulheres quase pretas cuja descendência ia escurecer o sangue luso, galaico, suevo, godo, aquitanense e celta – sendo transfundido ali. Logo que o Egon se disse também Pinto Coelho da Cunha aqueles descendentes de ricos-homens de Portugal e de potentados da Colônia, não mudaram o a-vontade com que tratavam o hóspede. Eram todos da progênie do patriarca de Pitangui. (NAVA, 2003, p. 153)


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Os dois universos opostos, portanto, unem-se por intermédio do sangue, cuja importância, para Nava, não passa despercebida a nenhum leitor familiarizado com as habituais incursões genealógicas das Memórias. Comentando o venerável sangue Pinto Coelho, do qual Egon é representante legítimo, o narrador parece, por outro lado, nutrir certa dificuldade em reconhecer semelhante legitimidade nos parentes campesinos. O contraste bem marcado entre, de um lado, os analfabetos seguindo de “madrugada para a lavoura de alpercatas ou descalços” e, de outro, os “ricos-homens de Portugal e de potentados da Colônia”, parece apontar para esta cisão. Estranha, também, o comentário de que, à revelação da consanguinidade ilustre, não tenha sucedido uma mudança de comportamento, permanecendo “o a-vontade com que tratavam o hóspede”. O comentário é um tanto enigmático. Pode assinalar um reconhecimento de autenticidade moral, indiferente à possível afetação de superioridade virtualmente advinda da descoberta. Mas pode assinalar, também, uma quebra de expectativa, como se, à notícia genealógica, devesse corresponder uma alteração de modos condizente com a “progênie do patriarca de Pitangui”. Seja como for, olhando-se para quaisquer das interpretações arroladas, a própria estranheza do narrador quanto ao fato assinala uma sobrevalorização inegável da importância do sangue. Este aspecto será reiterado por outra peculiaridade do trecho: a menção ao escurecimento do “sangue luso, galaico, suevo, godo, aquitanense e celta” decorrente do casamento de dois dos parentes, cujas mulheres eram “quase pretas”. Novamente, emerge uma dupla interpretação. A primeira: trata-se de um dado meramente descritivo de um processo natural de miscigenação. A segunda: trata-se de outro nível de descaracterização indesejável de sangue tão nobre, traço realçado pela longa enumeração da filiação europeia de um clã formado por “brancos” de “olhos muito verdes”. E, também de novo, vigora a mesma evidência pairando sobre as duas interpretações contrastantes: a sobrevalorização da ascendência – aqui, menos genealógica do que propriamente

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racial -, tocada inclusive por certa ingenuidade: é como se aquele sangue azul nunca tivesse experimentado, durante toda a sua longa história, cruzamentos “exteriores”, fato cuja inédita iminência o narrador crê presenciar naqueles rincões. Estas interpretações ambíguas reverberam e se esclarecem, até certo ponto, num subcapítulo de Baú de Ossos, no qual elas penderão, justamente, para aquelas de potenciais contornos racistas. Pretendendo sustentar a importância do estudo genealógico, o memorialista defende a adoção, pelo Brasil, de uma política imigratória semelhante à dos Estados Unidos, de forma a preservar “um dado percentual de sangue” e a alcançar uma bem-vinda “unidade cultural”. Como a proposta, obviamente, dá margem à suspeita de racismo, o autor apressa-se em recusar o rótulo. Critica, por exemplo, o erro dos “cozinheiros” norteamericanos - em cuja receita racial teria faltado o “quantum satis indispensável do seu negro” -, declara-se contra “princípios racistas no Brasil” e hostil à ideia de “unidade racial, Deus me livre!” (NAVA, 1999, p. 169-170). Nada disso abole, em absoluto, os riscos discriminatórios inerentes à proposta desastrada de Nava. A sua defesa de “seleção imigratória”, pretendendo realçar o sangue lusitano, a seu ver muito diluído pelo africano (“usamos e abusamos da pimenta que nos veio da África” (NAVA, 1999, p. 169), equivale na prática a uma proposta de branqueamento – cultural e racial. Apesar de declarar-se contra “princípios racistas”, o seu projeto encorajaria, na prática, a discriminação racial contra o afrodescendente: a eleição de um sangue preferível a outro, sobretudo partindo de um poder instituído, como seria o caso, não poderia redundar em outra coisa. Afinal, se um “Bon sang ne peut mentir”, como declara o narrador no trecho em questão, é porque, inversamente, um “débile sang peut mentir”. Ora, este tipo de teoria parece estar na raiz do mal-estar de Egon quando confronta, nos familiares campesinos, a iminência de um arranjo genético não só contrário à pretensa


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tradição do venerável sangue Pinto Coelho como também, em nível mais geral, à desejável lusitanização do sangue brasileiro.[2] Tanto em Nava quanto em Euclides, portanto, a linhagem racial, genealógica - permanece como critério válido de distinção dos agrupamentos humanos. Evidentemente, o mineiro a toma bem menos dogmaticamente - a ascendência genealógica prevalecendo sobre a racial -, esvaziando-a do caráter sistemático e explicativo corrente n’ Os Sertões, mesmo com todas as restrições formuladas pelo próprio Euclides. Nada disso, entretanto, invalida a conclusão deste raciocínio, cujo fim último é sugerir que, em Pedro Nava, ainda vigoram, sob certos ângulos, valores radicados nos finais do século XIX, tão bem corporificados numa obra como Os Sertões. Neste sentido, Davi Arrigucci Jr. identifica, na “formação espiritual do médico”, certo “materialismo difuso, não necessariamente doutrinário, mas herdeiro das doutrinas materialistas dos modernos representantes das ciências naturais”. Mais especificamente, Esse materialismo parece uma extensão, sob forma ingênua e vulgarizada, de tendências marcantes do pensamento filosófico da segunda metade do século XIX, como o evolucionismo spenceriano, o monismo naturalismo de Haeckel, o positivismo, etc. Todas muito influentes na direção das ideias do início do século no Brasil, onde, como mostrou Cruz Costa, logo desaguariam no sociologismo que, em chão social propício, acabaria dominando então a inteligência brasileira. Mas o fato é que nos anos de formação de Nava na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, em meados da década de vinte, as ideias materialistas deviam corresponder a uma atitude cientificista vinda do outro século, mas muito em voga ainda entre os componentes da elite culta brasileira, como se vê um pouco antes, pelo livro de João do Rio, O Momento Literário. (ARRIGUCCI, 1987, p. 90) 2 Convém remeter o leitor às argumentações contrárias às defendidas neste artigo: para este fim, consultar José Maria Cançado (2003, pp.132-134) ou, ainda, a tese de doutoramento Das Aparas do Tempo às Horas Cheias, de Maria Luiza Medeiros Pereira (2001), especialmente o subcapítulo “Sejamos Lusitanos”. Por outro lado, os estudos de Joaquim Aguiar, identificando em Nava um “sentimento de superioridade de linhagem” (AGUIAR, 1998, p. 27) ou de Marta Campos (1992, p. 76-81), por fim, apresentam conclusões próximas às deste trabalho.

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As considerações de Arrigucci são valiosas para melhor compreender certas afinidades entre valores correntes n’ Os Sertões e nas Memórias, com diferentes graus e utilidades, esteja sempre claro. Mas, como mostra o crítico, a distância entre algumas ideias que formaram o engenheiro Euclides e outras da “formação espiritual do médico” Pedro Nava não parece tão grande assim. A revivescência nas Memórias de certos esteios ou derivações deste ideário essencialmente oitocentista, como o prestígio das noções algo correlatas de clã e de raça, é a marca literária deste cenário intelectual mais ou menos afim, além de configurar um indício de que, aos olhos do leitor-devoto Pedro Nava, Os Sertões não trabalhassem, do ponto de vista da análise científica, com um repertório tão controverso quanto, atualmente, julga-se prudente considerá-lo.

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A Literatura entre o Romance e a História A preocupação com a credibilidade do relato constitui outro vínculo entre os escritores. Euclides, como se sabe, adota para si os preceitos do “narrador sincero” de Taine, enquanto Pedro Nava espalha pelas Memórias numerosas epígrafes nas quais reafirma o seu propósito de alcançar a máxima fidedignidade narrativa. Esta preocupação, naturalmente, os obriga a tecerem considerações sobre o que vem a ser a fidelidade do registro. Nesse âmbito, no tocante a Nava, será de utilidade transcrevermos um trecho revelador de Território de Epidauro, obra anterior às Memórias (a sua primeira edição data de 1947) na qual já se descobrem, entretanto, procedimentos correntes na série iniciada mais de duas décadas depois. Empenhado em reconstruir, no livro, a “história” e a “crônica da Medicina Brasileira”, Nava então apresenta o que lhe interessa reter enquanto pesquisador investido de sensibilidade literária: Todos os pequenos detalhes e os fragmentos de humanidade,


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às vezes tão importantes na interpretação de um caráter e na explicação do lado profundo das existências. Material que não figura nos necrológios, nos discursos, nos ‘documentos declarados’ (quase sempre repositórios onde a censura e as conveniências falseiam a vida das criaturas), mas que chega ao nosso conhecimento pela palavra antiga das filhas ou das viúvas, quando repetem as conversas um dia soltas nas varandas ou em torno às mesas de jantar das casas consumidas. (...) E quem quiser se pôr em dia com a história de certos concursos de escola de outrora, compulse as atas oficiais, mas não deixe também de recolher as informações de Dona Rita Guimarães Freitas, viúva de Cipriano de Souza Freitas, mestre de gloriosa memória. (NAVA, 2003, pp. 117-118)

Nava divide as suas fontes em dois grupos: um, representativo da “história não oficial”; outro, da história oficial com os seus respectivos “documentos declarados”. A fidelidade do registro, como fica claro no último parágrafo do trecho, só se alcança mediante uma combinação laboriosa dos dois grupos de fontes, cuja meticulosa análise deve conformar um quadro historiográfico mais fidedigno. A rigor, portanto, não há distinção hierárquica entre os dois domínios: ambos são mutuamente dependentes. O “não oficial” em relação ao oficial, sem cujo esqueleto perdese a sustentabilidade documental de ordem convencional – e o segundo em relação ao primeiro, corrigindo, nesse grupo, a ação da “censura” e das “conveniências” que “falseiam a vida das criaturas”. A história não oficial, nesse sentido, apesar de eivada por lacunas e imperfeições, amplia a veracidade historiográfica. É como se, em mais uma antecipação das Memórias, a História já se confundisse um pouco com o “verossímil”, definido, em Baú de Ossos, como “um esqueleto de verdade encarnado pela poesia” (NAVA, 1999, p.58). O documento oficial equivale, logo se deduz, ao “esqueleto de verdade”; o “não oficial”, com seu teor potencialmente imaginário, à “poesia”. Ambos servem aos propósitos do narrador sincero naviano. A expressão final do parágrafo remete, não gratuitamente,

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a Os Sertões. De fato, o “narrador sincero” de Taine, sob cujas coordenadas pretende se guiar Euclides, apresenta muitos pontos de contato com o narrador sincero, sem aspas, subjacente às formulações de Nava. Na “Nota Preliminar” ao seu livro, Euclides, citando o autor francês, rejeita a adoção exclusiva do domínio estritamente documental e oficial (“data” e “genealogia”, por exemplo), procedimento propício à aparição, como costumaria acontecer na historiografia tradicional, das “meias-verdades que são as meias-falsidades”. Euclides, portanto, força-se a empreender uma abordagem mais atenta aos “sentimentos”, aos “costumes”, à “cor dos fatos”, sua “alma”. A adesão desse narrador ao objeto de estudo deve ser total: “il veut sentir en barbare, parmi les barbares, et, parmi les anciens, en ancien” (CUNHA, 2000, p. 2). Ora, um mero ajuste terminológico basta para aferir a proximidade entre as propostas. Euclides, pode-se dizer, recusa ater-se ao “esqueleto de verdade”, aos “documentos declarados” – os quais, aliás, lançariam por terra, nesse caso específico, os propósitos de “denúncia” da obra, sujeitos como estão, diria Nava, à ação da “censura” e das “conveniências” –, lançando-se deliberadamente aos domínios não adstritos pela história oficial. Textualmente, esta confluência de propósitos resolve-se, em cada caso, de modo bastante comparável. Em ambos os escritores, a lacuna (ou o fragmento, poder-se-ia dizer) cumprirá papel preponderante neste processo. Euclides, descrevendo os primeiros passos do jovem Conselheiro pelos sertões da Bahia, vale-se do depoimento de “um velho caboclo”, que contribui, entretanto, apenas “vagamente, sem precisar datas, sem pormenores característicos” (CUNHA, 2000, p. 137). E, curiosamente, o que se segue a este depoimento é um relato romanescamente rico em “pormenores característicos”. É o modo como, mantendo-se fiel aos preceitos de Taine, o escritor preserva a “cor dos fatos” e “costumes” em questão (no caso, a cultura dos “matutos supersticiosos”). Aderir a eles é imperativo para o narrador empenhado em sentir-se “entre os bárbaros, um bárbaro”. Dentro da lógica euclidiana, portanto, se


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o discurso exteriormente parece ficcionalizar-se, isto se dá apenas porque, no interior das balizas do narrador sincero de Taine, este é o seu modo de ser mais verdadeiro.[3] A lacuna também encoraja, de parte de Nava, procedimento similar. Pretendendo descrever, no citado Território de Epidauro, um certo Dr. Titara - e tendo angariado, para este fim, apenas “informações parcas e longínquas” (NAVA, 2003, p. 120) -, o escritor gesta um texto no qual abundam recursos expressivos próprios do discurso ficcional – especialmente, no caso, o tom hiperbólico, tão familiar às Memórias. Tomando-o como “monstro” e “herói”, o futuro memorialista carrega nas tintas romanescas de modo a, não obstante as referidas informações parcas e longínquas, sugerir uma imagem fidedigna do médico cuja capacidade de trabalho parecia, de fato, lendária. A senda literária assim aberta não configura, como n’Os Sertões, um desgarre das ambições historiográficas do narrador, mas um modo de, euclidianamente, cingir-se à “cor dos fatos” e “costumes”, operação na qual a hipérbole, recurso-chave na evocação do doutor Titara, funcionará não como obstáculo, mas como instrumento.

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3 Esta adesão ao universo sertanejo ao longo d’Os Sertões, não é nem sistemática e nem, menos ainda, ideológica. Ela se dá por vezes, como é o caso, via um arranjo discursivo no qual as técnicas literárias forjam precisamente uma ilusão de proximidade, essencial para o cumprimento, pelo menos parcial, dos preceitos do narrador sincero. Ou, nas palavras de Luiz Costa Lima (1997, p. 149): “De Euclides, não se poderia esperar, em relação ao mundo de Canudos, mais do que a solidariedade de quem se mantinha à distância”.

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QUESTIONANDO AS FRONTEIRAS DA IDENTIDADE: O OUTRO PÉ DA SEREIA E A QUESTÃO DA AFRICANIDADE Luís Francisco Martorano MARTINI [1] O conceito de identidade, diferentemente do que possa dizer o senso comum, não mantém qualquer ligação com um conjunto de valores, práticas e normas dados como essenciais e transcendentais, ou seja, não se reduz a uma essencialidade, um ponto em que o sujeito, a comunidade ou a nação estão fixados desde a origem e a ela condicionados. Ao contrário, é uma construção com a qual os sujeitos constantemente estão em luta, uma vez que toda experiência humana, ao longo da história, é dependente de trocas culturais, de negociações e de traduções. Fato que demonstra o caráter híbrido – “impuro” – de todas as sociedades. É a essa visão construtivista da identidade que o romance O outro pé da sereia (2006), de Mia Couto, está filiado, pois a obra traz à baila a impossibilidade de se pensar em uma identidade africana e moçambicana transcendental, cuja pureza pode ser encontrada, quer pela volta ao nativismo quer pelo regresso as origens raciais tomadas como puras e historicamente localizadas. Portanto, o hibridismo de culturas e crenças diversas perturba a fixidez das fronteiras e demonstra criticamente que as mesmas são criações políticas e históricas recentes, não admitindo, assim, a possibilidade do nativismo e do essencialismo identitários, como quer impor certa elite racial. Assim, nosso objetivo, neste estudo, é demonstrar de que maneira Mia Couto critica a ideologia nativista e como o hibridismo cultural é ficcionalizado por ele para essa tarefa crítica. PALAVRAS-CHAVE: Identidade. Diffèrance. Hibridismo Cultural. O outro pé da sereia.

Introdução O título da obra que vamos analisar, O outro pé da sereia, confirma um estranhamento em relação à figura mítica da sereia. A atribuição de “outro pé” a um ser que, desde sua concepção mítico1

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religiosa, não possui nenhum, sugere não apenas o hibridismo, a fusão da deidade pagã com o ícone cristão, mas o surgimento de um outro ser resultante de tal mistura, um ser fabricado no interstício, no “terceiro espaço”, na negociação/tradução dos bens culturais. Por sua “indecibilidade”, pode-se constatar uma aproximação com a formação da própria identidade africana (ou africanidade). Uma “identidade” que não se resume a um corpo homogêneo de elementos culturais, raças, crenças e valores transcendentes e transcendentais, como pretende sustentar certa elite racial. Ao contrário, é o resultado de embates e choques culturais ao longo de séculos de atividades pré-coloniais, coloniais e pós-coloniais. Essa sereia com pé sobejante é também a santa conspurcada pela falta de um membro: um ser fluído e líquido que representa com exatidão o próprio ethos africano. Como, então, nos referirmos a ela? Em que termos nomeá-la? Pré-sereia, pós-sereia, dessereia? Essa indefinição resultante do ser híbrido, esse estranhamento, coloca-se como um problema real e concreto para uma definição da identidade (una e autorreferente) o que nos permite formular as seguintes perguntas: o que é ser africano? Em que consiste a africanidade? Quais os limites dessa identidade? Há uma identidade africana pura e legítima? A obra O outro pé da sereia, publicada em 2006, para além dos questionamentos ora apresentados, é considerada pela crítica acadêmica e especializada (MACÊDO; MAQUÊA, 2007), como o romance de consolidação da maturidade literária de Mia Couto. Diferentemente das outras obras publicadas até então, esse romance em particular estabelece uma ruptura no estilo que tem caracterizado sua restante publicação. Nas palavras do próprio autor[2]: Não sei se eu consegui, mas eu quis que houvesse não uma ruptura, mas uma descontinuidade e, a certa altura, me apetecia fazer alguma coisa que fosse diferente, que não fosse tão 2 Essa transcrição foi obtida em: SILVA, Ana Cláudia. A História Revisitada nas Epígrafes de O Outro Pé da Sereia. Revista Vagão, v.2, p.113-120.


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das prerrogativas advogadas por certa elite racial que pretende, por meio da ideologia nativista, legitimar direitos civis e sociais a uma “raça certa”. Assim colocado, a obra O outro pé da sereia é uma resposta pós-colonial à perpetuação do racismo, ao demonstrar o hibridismo como o elemento constituinte da própria condição do “ser africano”.

apegada à reconstrução de uma linguagem trabalhada. A mim punha-se assim: pior do que não escrever um livro é escrever esse livro demasiadamente, escrever em demasia. Então eu optei por ensaiar uma escrita mais fluida, menos trabalhada do ponto de vista da criação do neologismo e que fizesse com que a história valesse mais por si mesma. Obviamente que não consigo desligar-me de um certo tom poético, de um certo trabalho poético, mas isso eu não quis fazer, também. Não sei se eu consegui não fazer ou fazer, mas há esta tentativa de escrever numa linguagem mais enxuta.

Para além das rupturas com a linguagem e com o estilo poético, esse romance em particular é sua primeira experiência com o gênero romance histórico. Tal gênero narrativo vem ao encontro de seu objetivo que é o de “recontar a história da colonização de Moçambique”, pois permite revisitar a história oficial ou, para usar um termo caro a Walter Benjamin, “ler a contrapelo” fatos e evidências históricas que promovem a subjugação e a subalternização dos vencidos. Para além dessa especificidade, o autor se propõe a rever, não apenas os efeitos do colonialismo sobre a sociedade, mas, sobretudo, demonstrar a relação paradoxal entre o hibridismo cultural e o dualismo social, para dessa forma reinscrever o hibridismo, não apenas como uma fusão de elementos contraditórios e conflitantes, mas, sim, como um meio de burlar a clivagem social e facultar ao sujeito colonizado a manutenção de sua subjetividade por meio da mistura de elementos tão diversos. Por conta do espaço limitado de que dispomos, vamos selecionar quatro personagens que nos ajudam a explicar essa relação e, assim, compreender sua importância no questionamento da identidade. São eles, no plano presente, Zero Madzero, Mwadia Malunga, e, no plano histórico, Nimi Nsundi e Manuel Antunes. A definição de hibridismo que propomos para este trabalho e que vem sendo estudo por nós desde a elaboração de nossa dissertação de mestrado tem a ver com seu caráter subversivo em relação ao profundo dualismo social herdado da colonização, que transforma o fundir de elementos em uma forma de desconstrução

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1. Zero madzero e mwadia malunga: hibridismo e a violência ontológica Ao apresentar as personagens que abrem a narrativa, Zero Madzero e sua esposa Mwadia Malunga, desde o início, o narrador se preocupa em apresentar o hibridismo que lhes caracteriza a identidade. A cerca de Zero Madzero, dois detalhes são colocados em destaque. Em primeiro lugar, sua origem. O narrador o apresenta como pertencente aos Chikundas, lendária tribo guerreira e caçadora de elefantes (uma tribo formada a partir dos deslocamentos promovidos pela administração colonial). E, em seguida, seu pertencimento à igreja protestante fundada por John Marange, os vapostori e seu evidente abandono das práticas rituais, o que é sublinhado pelo narrador ao afirmar que a adesão de Madzero à igreja era motivada porque “ele gostava da diferença, trazia-a sempre ao peito como se de uma medalha se tratasse. Cabelo sempre rapado, não bebia álcool, não fazia uso dos tambores nem das mbiras para convocar os espíritos” (p.16). A princípio, o narrador não problematiza a questão dos Chikundas, a qual permanece aparentemente em segundo plano, ao contrário da religião – uma herança do colonizador – o narrador a firma e salienta que a adesão de Zero não se deu porque aceitara a teologia do marangismo, pois “o juízo de Zero não aguentava nem a metade de crenças” (p.16), mas, sim, porque “A seita seria onde os pastores pobres como ele se reuniriam e evocariam o dia em que o planeta inteiro se converteria numa reverdejante paisagem” (p.16).


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Como podemos constatar sua entrada no grupo se dá por razões sociais, uma vez que a igreja profetizara o fim de um mundo solapado pela desigualdade social, fruto do dualismo herdado da colonização, em que o mundo dividiu-se em classes irreconciliáveis, e se converteria, de uma vez, como se apresenta na expressão “reverdejante paisagem”, em um espaço igualitário. Portanto, esse hibridismo, um africano aceitando a religião cristã, não significa a imposição forçada da Cultura e a exclusão permanente e sistemática da cultura, como fica evidente nessa expressão de Madzero, ao ver precipitar do céu aquilo que ele julga ser uma estrela: “Me salve, Deus! E acrescentou, em célere sussurro: E me acudam os meus deuses, também…” (p.17). Nota-se, a partir desse excerto, que a consciência da personagem, embora esteja dividida, cindida, entre dois mundos incompatíveis, ainda assim nela convivem sempre dois valores: os coloniais e os autóctones. A despeito de sabermos que a imposição da Cultura pelos colonizadores foi sua característica máxima, com o passar dos anos e com a nacionalização de elementos anteriormente tidos como forâneos, tais elementos revelam a própria condição de ser híbrida da africanidade, ou seja, produto inevitável daquilo que Homi Bhabha (2007) chamou de “terceiro espaço”, o que pode ser confirmado também, por meio da personagem Mwadia Malunga. Mwadia Malunga, a semelhança do marido, não é um sujeito puro e livre de contatos culturais. Apresenta, entanto, uma aparente negação dos elementos autóctones, parecendo sucumbir diante da Cultura, como se pode notar neste diálogo que tece com o adivinho Lázaro Vivo: Lázaro segurou as mãos de Mwadia, abençoando a viagem e dando-lhe as devidas instruções: – O barco está lá, na curva do rio. Lá dentro está o remo. – E depois, onde guardo a canoa? – Não se preocupe, ela vem sozinha de volta. Mwadia sorriu, sem esconder alguma desconfiança. O curandeiro enrugou a voz, realçando o tom de desagrado.

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– Você está a duvidar, comadre? – Deixe, Lázaro. Não me dê importância. – Há muito tempo que lhe queria dizer isto, Mwadia Malunga: você ficou muito tempo lá no seminário, perdeu o espírito das nossas coisas, nem parece mais uma africana. – Há muitas maneiras de ser africana. – É preciso não esquecer quem somos… – E quem somos, compadre Lázaro? Quem somos? – Você não sabe? Mwadia baixou o rosto, sentindo que tinha ido longe de mais (p.45 e 46).

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Vê-se que Lázaro Vivo sustenta uma concepção essencialista da identidade, que não vê com bons olhos o hibridismo e suas consequências. Para ele o fato de Mwadia ter estudado no seminário de Darwin, corrompeu nela o ethos africano. O narrador parece abonar essa ideia ao mostrar que seus estudos a fizeram desconsiderar as crenças passando a “chamar de crendices” (p.18). No entanto, a expressão, “E quem somos, compadre Lázaro? Quem somo?”, desconstrói a intenção advogada pelo vidente, ao demonstrar uma posição construtivista da identidade em que o hibridismo não é um elemento descaracterizante, mas, sim, a própria realidade inerente à africanidade. No entanto, os motivos pelo qual Mwadia vai estudar no exterior devem ser levados em consideração. Segundo o narrador, sua ida ao Seminário se deve, sobretudo, porque “o Zimbabwe podia dar-lhe um futuro incerto. Mas era um futuro” (p.83). O que é confirmado pela fala da Tia Luzmina Rodrigues: “- Não quero que acabe como nós: sem tamanho, sem destino” (p.83). O que também pode ser visto, em outro momento, por ocasião da viagem de retorno a Vila Longe, a fim de encontrar um local adequado para depositar a Santa, a fala de Mwadia dirigida à imagem demonstra de forma explícita a condição servil a que o sujeito está condicionado: O sol queimava e Mwadia abriu o velho guarda-sol sobre o jumento. Não era o bicho que ela protegia. A sombra pousava, sim, sobre a sagrada imagem.


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Nimi Nsundi e Manuel Antunes: o estabelecimento de uma contraordem Em relação a Nimi Nsundi, o hibridismo assume de forma explícita a subversão aos desníveis sociais causados pela empresa colonizadora. Ao contrário do que acontece no plano presente, em que essa característica do hibridismo é implícita, no plano histórico, por meio dessa personagem, pode-se saber qual o significado do hibridismo e, assim, reconhecer uma mesma estrutura em ambos os tempos. Após salvar a imagem que tombara no lodoso rio Mandovi, o escravo começa a demonstrar toda sua devoção a ela. O que, aos olhos do missionário Dom Gonçalo da Silveira é visto como uma verdadeira demonstração da fé cristã, como mostra o narrador:

– Não quero que adoeça, Santinha, com essa pele tão branca… Nossa Senhora caísse em doença e a desgraça desceria em Antigamente (p.66).

Assim, contextualizada a condição de existência das personagens, tipificada por Mwadia, pode-se compreender que, embora sua educação tenha lhe feito desacreditar na África espiritual, sua ida ao Seminário e sua relação servil com a Santa apontam para as faltas de oportunidade e a perpétua condição subalterna em que se encontrara o sujeito afro-moçambicano. Contudo, isso não significava que a personagem tenha deitado fora e eliminado mesmo as crenças originais. Mesmo no colégio de Zimbabwe, ela não vê com desagrado a proposta feita por Lázaro Vivo de ela ser uma curandeira, ao que a tia esperava que a sobrinha “reagisse com estrépito” (p.84) tal convocação, pois para Luzmina, “A educação colonial sutilmente deixava a impressão de que sua finalidade era o melhoramento das mentes não-instruídas e selvagens e, portanto, altamente beneficente ao colonizado” (BONNICI, 2005, p.26). E agora, diante do achado de Madzero, ela aceita tacitamente recorrer ao vidente para que explicações espirituais fossem dadas. Como se pode notar, tanto em Madzero quanto em Mwadia, o hibridismo aponta para a superação das limitações colocadas aos sujeitos pela própria sociedade colonial. Não significa, porém, uma rejeição implícita dos valores comungados pela sociedade autóctone. A subversão por meio da clivagem social é a força motriz que move ambas as personagens a recorrerem a elementos forâneos. Passemos agora a personagem Nimi Nsundi, no plano passado, e a forma como ele corrobora essa atitude em relação a esse fenômeno cultural, propondo, desde o passado, uma contraordem social a partir do hibridismo cultural.

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Nos dias que se seguiram, o missionário iria presenciar um fenómeno invulgar: a devoção arrebatada do escravo à Santa. Não havia dia em que Nimi Nsundi não prestasse homenagens a Nossa Senhora, falando com ela, limpando-a, lavando-a, cuidando de que nem sol nem sal molestassem a sua pintura. Gonçalo da Silveira muito se comovia com a entrega cristã do cafre (p.55)

No entanto, mais adiante, o próprio narrador desvenda o que se esconde por trás de tais mesuras e demonstrações espirituais: “Mal ele sabia o que essa devoção ocultava” (p.55, grifo nosso). E mais adiante: “De todas as vezes que rezei não foi por devoção. Foi para me lembrar. Porque só rezando me chegavam as lembranças de quem fui. […] Era a voz da Santa que percorria por dentro. A voz tomava posse de mim” (p.113). Nota-se, portanto, que a personagem, diferentemente do que possa parecer, inclusive aos olhos de seus pares, sincretiza a fé, burla o olhar vigilante de seus “superiores”. Para tanto, ele ressignifica os valores dos elementos culturais, a partir do exercício da “civilidade dissimulada”, transformando-os em expressão autêntica de sua própria “différance”. Pode-se dizer,


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assim, sem querer ser redundante que o hibridismo propõe um posicionamento crítico e subversivo em relação à própria estrutura social na qual se origina, bem como, por meio do cotejo entre essa personagem e as duas já analisadas, a histórica ligação desse fenômeno à constituição da identidade africana. Para finalizar a análise, passamos agora a analisar a personagem Manuel Antunes, buscando verificar como o hibridismo desconstrói a ideologia nativista e essencialista que tem se afirmado na concepção da africanidade.

encontra diante da felicidade dos negros que cantavam e dançavam, mesmo sucumbindo a dor da escravidão, ao que o narrador, mais uma vez, aponta para a questão racial:

3. Manuel Antunes: a africanidade dilatada Pode-se dizer que Manuel Antunes é a personagem que mais detidamente discute, a partir do hibridismo, a condição da africanidade, por apresentar em si, o Colonizador e o estrangeiro aclimatado às condições da África e, assim, metaforizar o verdadeiro ethos africano. Por verdadeiro não se quer inferir a existência de uma falsa identidade africana, antes, afirma-se a condição histórica do que é “ser africano”. Manuel Antunes é outro sacerdote que acompanha a viagem de Goa a Moçambique. A seu encargo está relatar a viagem e também o tempo em terra. No entanto, essa personagem vivenciará não só uma travessia espacial, mas também uma travessia de ser. O narrador nos diz que

Interessante notar como o narrador acentua a questão da descendência do jovem sacerdote: “filho e neto de portugueses” e “branco e filho de branco”. Esse acento não é gratuito, ao contrário, marca a impossibilidade de se pensar a identidade nos parâmetros genéticos ou espaciais. Assim como ridiculariza o nativista que vê na cor da pele um pretexto para a identidade. O “ser africano”, a africanidade, é uma construção que se dá, por ocasião dos reiterados encontros com a cultura do outro. Não obstante, o sincretismo em que Manuel Antunes se envolve, antes e após a morte de D. Gonçalo da Silveira, desconstrói definitivamente qualquer possibilidade de se cogitar a africanidade em termos transcendentais.

Até dia 4 de Janeiro, data do embarque em Goa, ele era branco, filho e neto de portugueses. No dia 5 de Janeiro, começara a ficar negro. Depois de apagar o incêndio no seu camarote, contemplou as suas mãos obscurecendo. Mas agora era a pele inteira que lhe escurecia, os seus cabelos se encrespavam. Não lhe restava dúvida: ele se convertia num negro (p.164).

E mais adiante, Manuel Antunes protagoniza uma cena que demonstra sua entrada no mundo da África. A fim de conter a balbúrdia que vinha do terceiro pavimento da Nau Nossa Senhora da Ajuda, ele, acompanhando D. Gonçalo da Silveira, desce e se

Sem que escutasse a resposta, Manuel Antunes foi amolecendo, solto e leve. E se foi entornando no sono, deslizando nos seus labirintos interiores. D. Gonçalo falava nas almas dos negros que ele tanto queria brancas. Pois, naquela noite, o padre Antunes, branco e filho de brancos, duvidou da cor da sua alma (p.202).

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[…] as pessoas da aldeia chamavam-no de Muzungu Manu Antu e estavam lidando com ele como um nyanga branco. Manuel Antunes, ou seja, Manu Antu, aceitara tacitamente ser considerado feiticeiro, rezador de Bíblia e visitador de almas. Aprendera a lançar os búzios e ler os desígnios dos antepassados. No terreiro, frente à casa, o português misturava rituais pagãos e cristãos. E procedia como nenhum adivinho antes fizera: em cima de uma esteira colocava a pedra de ara que havia pertencido a Silveira. A seu lado se conservava um pedaço de madeira que, à primeira vista, surgia informe mas, depois, se configurava como um pé. Aquele era o tão falado membro que Nimi Nsundi havia decepado à Virgem Santíssima? Era o que constava no império: que o branco mantinha essa madeira porque ela estava benzida por Deus.


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Ou talvez fosse, simplesmente, o toco de pau que o carpinteiro Mendonça preparara como remendo para a estátua original (p.313 e 314, grifo nosso).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Na nascente Moçambique, Manuel Antunes, ou melhor, Manu Antu, representa o que é o próprio ethos africano: uma mistura de elementos, de figuras, de crenças e ideias, que, embora conflitantes e contraditórias, formam o que é a africanidade: uma concepção identitária alargada, dilatada e ilimitada. Conclusão As perguntas que expusemos na introdução deste estudo demandam uma resposta negativa. Negativa porque a identidade, como ficou bastante evidente em todos os casos estudados, não pode ser definida a partir de um signo eterno, essencialista e préfixado. Temos visto, a partir dos trabalhos de Jacques Derrida, Stuart Hall, Homi Bhabha e Edward W. Said, que a identidade se lê sob o signo da différance, que é “a implosão da hierarquia proposta pela filosofia ocidental” (BONNICI, 2007, p.62 e 63), o que nos faz lê-la como uma marca de resistência no espaço pós-colonial. As personagens aqui analisadas, além das outras que abundam a obra, metaforizam a condição de ser da própria África, espaço em que o hibridismo, para além da simples fusão de elementos contraditórios e colidentes, permite ao sujeito subverter os limites impostos pelo dualismo social e invadir as fronteiras existentes entre o colonizador e o colonizado, ou o estrangeiro e o autóctone.

BONNICI, Thomas. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências. Maringá: Eduem, 2007. ______. Conceitos-chave da teoria pós-colonial. Maringá, PR: Eduem, 2005. COUTO, Mia. O outro pé da sereia. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. MACÊDO, Tânia; MAQUÊA, Vera. Marcos e Marcas: Moçambique. São Paulo: Arte e Ciência Editora, 2007. 415

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SILVA, Ana Cláudia. A História Revisitada nas Epígrafes de O Outro Pé da Sereia. Revista Vagão, v.2, p.113-120.


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A EMANCIPAÇÃO DO HOMEM COMUM EM BALAIO DE BUGRE, DE HéLIO SEREJO Mara Regina PACHECO (PG-UFGD/CAPES) Prof. Dra. Leoné Astride BARZOTTO (UFGD/Dourados/MS) Na atualidade, um dos elementos centrais da reflexão no âmbito dos Estudos Culturais é a questão da identidade e de como a mesma é construída a fim de gerar emancipação, dignidade e protagonismo aos indivíduos. No bojo dessas preocupações, encontram-se relativas discussões acerca da fronteira e do intercâmbio cultural representantes dos recortes geográficos privilegiados por Hélio Serejo. Não obstante, analisa-se o potencial agressivo e modificador da globalização face aos aspectos culturais enaltecidos na obra serejiana. Neste sentido, as narrativas de Hélio Serejo são estudadas com o propósito de compreender as estratégias literárias e culturais impregnadas nos textos desse autor ao elevar o homem comum (caboclo, campesino, sertanejo, andarilho, indígena, peão, migrante, dentre outros) ao status de supremo protagonista de suas histórias. Os personagens baseados em figuras emblemáticas do sertão, do pantanal, do chaco e da fronteira. São pessoas supostamente comuns, para alguns, mas o autor as posiciona em primeiro plano, atribuindo-lhes a supremacia do protagonista, a atenção maior na narrativa porque são essas personagens que formatam e sustentam o entendimento de crioulismo do mesmo autor. A compreensão da obra do escritor sul-mato-grossense é feita a partir do questionamento dos conceitos de identidade, representação, cultura, fronteira, origem e tradição, já que este estudo pretende compreender a literatura serejiana como artefato multicultural. Palavras-chave: Emancipação; Homem comum; Balaio de Bugre; Hélio Serejo.

Introdução O cientificismo e o tecnicismo sempre estiveram presentes na literatura tentando posicionar pessoas e coisas, cada uma no seu

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lugar, cada uma com sua função. Na época de Platão, por exemplo, o poeta em seu pedestal tinha de adequar o mundo sensível ao inteligível (o mundo das ideias). Platão impunha uma tarefa ao artista, ao poeta, que antes de tudo era política, o que implicava em uma adequação da ação a uma concepção de estado, indivíduo, e sociedade. O mundo das ideias tinha que obedecer a normas e a regras de construção; depois tinha que passar pelo crivo dos intelectuais para se consagrar canônico, sem querer adentrar aqui na questão mercadológica. A obra A invenção do cotidiano (2003), de Michel de Certeau apregoa que foram postas abaixo as ditaduras normativas quando o homem comum assumiu a pena e passou a escrever. Este novo escritor, o homem ordinário, apropriouse dos códigos, dos objetos, do espaço, e passou a usá-los à sua maneira. Assim como enfrenta a vida à sua maneira, vivendo como é possível, abre seus próprios caminhos, seus próprios recursos no mundo da escrita. Apoiados em Michel de Certeau (2003) podemos afirmar que Hélio Serejo sabe-fazer e sabe-dizer. Ele sabe fazer arte ao escrever, e na sua arte presenciamos o saber-dizer (que é o relato). Quando relata narrativamente tudo o que via e ouvia, o escritor confia credibilidade à narrativa, tecendo-a com característica de documento, e essa é uma maneira de fazer ciência. Ainda em Certeau, averiguamos que o relato não exprime uma prática, ele faz uma prática, o relato é uma inteligência vivenciada na prática. A literatura antes concebida pelos escolhidos, pelos homens brilhantes, por iluminados, inspirados pelos deuses e pelas musas, parece percorrer uma travessia e chegar a outro ponto extremo: passa a ser arquitetada pelo homem comum, enfocando o homem ordinário e sua prática cotidiana. A obra Balaio de Bugre (2008) é escrita por um homem comum “E por acaso, não é o autor, bugre também? Bugre legítimo com arremedos de homem civilizado” (SEREJO, 2008, v. 7, p. 93), enfocando o homem comum, o caboclo, o campesino, e sua alma sertaneja:


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A alma cabocla é assim mesmo: sensível como o lírio-da-noite quando as carícias do beijo frio do orvalho, no romper da madrugada. Por ser cabocla, la em o cheiro gostoso do sertão. Quando contente, canta naquele doce extravasamento que é o misto da cavatina da patativa apaixonada e do sabiaúna. A alma do poeta canta, hoje. Canta porque está contente. Canta porque se sente feliz. E este canto, de amizade e ternura, é dedicado, carinhosamente, a essa legião valorosa de homens puros de espírito que vêm incentivando o prosador sertanejo, numa demonstração encorajadora de bem-querer e estima. (SEREJO, 2008, v. 7, p. 94)

Hélio Serejo enfoca em primeiro plano o homem simples e as coisas simples que o rodeiam: o meio que o circunda, os sentimentos que dele surgem, a irmandade fortalecida do cotidiano do meio rural. Esse direcionamento de “olhar”, de foco, para esse tipo de obra que o autor produz, tem sido possível graças às possibilidades que os Estudos Literários e Culturais veem solidificando, e trabalhando em prol de um posicionamento erigido do Sul. Somente um escritor ordinário é capaz de “saber/fazer”, a la Michel de Certeau (2003), o cotidiano do homem comum porque ele é um deles, vive no meio deles, como eles (assim como HS). Na representação desse mundo à parte, é capaz de demonstrar com supremacia um mundo pelo qual antes não se tinha interesse. No entanto, o retratar dessa vida cotidiana dos homens simples se sobrepuja de tal maneira, e ganha descomunal força, uma vez que transfigura na verdade a “vida como ela é” da maioria dos mortais que habitam a face desse planeta Terra. Ao permitir voz à periferia do mundo, ao se permitir que esse cidadão da margem fale e, acima de tudo, seja ouvido; ecoa alto uma nova perspectiva nunca proferida. A voz sempre foi originária do Norte. Eles proferiam pelos do Sul. O Sul nunca falou por si; conforme postula Boaventura de Souza Santos (2008). Esse autor levanta a bandeira ‘da fala pelo Sul’, de uma teorização pelo Sul, da construção de um novo paradigma – contra-hegemônico – frente

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ao poderio e força do Norte. Nessa perspectiva contra-hegemônica, a América Latina tem muito a falar, tem muito a mostrar. Apesar de anos e anos vivendo sob o estigma de “colonizados”, oprimidos, massacrados, a literatura mostra que como fênix renascemos das cinzas, fizemos a nossa história, criamos os nossos próprios mártires, sublimamos a vida cotidiana do homem ordinário, do homem comum e transcendemos a um novo nível: da emancipação. O falar do Sul faz ecoar o grito dos que se sublimaram e que a seu modo sobreviveram dignamente a todas as 1utas e intempéries. A ênfase a esse aspecto do homem comum e ordinário que se sublimou, liga-se a todos os homens que em todos os cantos do planeta o fizeram. É uma característica que não é local, que não é periférica, que não ocorre apenas no Sul, mas que se encontra também nos borderlands do Norte. O paradigma da contra-hegemonia não quer provar a superioridade do Sul sobre o Norte. Não coloca o Sul como aqueles que sofreram com o estigma dos que um dia foram subjugados. Mas, um paradigma erigido do Sul propõe a visão dos homens como iguais, que devem ser encarados em pé de igualdade de direitos e deveres, ou seja, a possibilidade de enaltecimento global de um novo lócus de enunciação que não o propagado pelas academias anglo-americanas. Queremos demonstrar que o autor, na fronteira do Brasil/ Paraguai, no estado do Mato Grosso do Sul, nessa fronteira longínqua pertencente à América Latina, foi capaz de “saber-fazer”, como diz Certeau, a retratação fiel e simples do homem comum. Colocou o ordinary man como personagem principal das suas narrativas. Usou do seu poder de bom observador para registrar “nas suas mal traçadas linhas” a vida cotidiana do peão ervateiro, do homem simples, do guerreiro do dia-a-dia, do sobrevivente dos territórios ermos. Através da literatura de HS, da sua narrativa, somos capazes de interconectar a universalidade da experiência humana aos mais diversos rincões da terra. A partir das obras desse escritor, somos


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capazes de demonstrar a invenção da nossa própria história. Uma que irá apagar a história de subordinação à qual fomos subjugados. A narrativa de Serejo registra a sua consciência observadora, o lugar, os fragmentos dos seus saberes, o exponencial leitor da vida, das coisas simples e charruas. Práticas cotidianas no entre-lugar fronteiriço Hélio Serejo é esse homem simples, de gestos xucros, como ele mesmo se denomina no conto “Palavras do prosador crioulo”, selecionado como uns dos contos corpus dessa pesquisa. Lá, o prosador se apresenta como homem que veio de longe (faz menção aos seres diaspóricos vindos das terras incaicas, do recôncavo do mar, do altiplano boliviano, do Chaco Paraguaio), vencendo bailados demoníacos, cólera e tormentas até se afixar na fronteira do Brasil com o Paraguai “na cidade de Ponta Porã, a Princesa da Fronteira, sentinela avançada das terrarias mato-grossenses” (SEREJO, 2008, v. 7, p. 150). Sabe-se que com o advento do capitalismo muitas mudanças ocorreram nas sociedades e em todos os seguimentos inerentes a ela. A literatura, por exemplo, que antes servia ao clero, à nobreza, aos burgueses, passa a se deslocar no enfoque dos trabalhadores, nas lutas de classes, nas reivindicações de direitos, como a literatura chamada “engajada”. Envereda por defender as minorias étnicas, sexuais, etc., até que dá enfoque ao homem comum, às pessoas comuns. Interessante é pensar no fato de que ao se instaurar a Era da Morte do Autor, abre-se espaço para o herói anônimo, para o homem que Certeau (2003, p. 60) denomina de “cada um” e “ninguém”. O extravio da escrita fora de seu lugar próprio é traçado por este homem ordinário, metáfora e deriva da dúvida que a habita, fantasma de sua “vaidade”, figura enigmática da relação que ela mantém com todo o mundo, com a perda de sua isenção e com sua morte (CERTEAU, 2003, p. 61).

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O homem comum que sempre apareceu na literatura como o oprimido, o subordinado, o execrado, passa a figurar supremo em primeiro plano, numa explícita inversão do saber que era de poder do “iluminado”. O trivial passa a não ser mais o Outro, mas o outro. O homem ordinário passa a ser o narrador que dita o lugar, o discurso, o espaço da sua interlocução. Este novo espaço que conquistou é o ponto de chegada de toda uma trajetória de evolução dentro da literatura. Essa nova trajetória, essa nova mobilização faz parte do que Boaventura Santos (2008) chama de construção de um novo paradigma, o contra-hegemônico: o reposicionamento do homem comum. Esse novo paradigma conceitual suscita a reorganização do lugar de onde se produz o discurso (antes do Norte, agora do Sul). O projeto contra-hegemônico assegura ao Sul, à América Latina, que temos o que dizer, que temos que nos fazer ouvir. A América Latina permite o discurso ao homem comum. Serejo faz isso com supremacia em suas obras, pois são vários os contos da obra em estudo que servem como exemplo desse homem comum em primeiro plano; aqui escolhemos apresentar o Conto “João” (SEREJO, 2008, v. 7, p. 207), no qual o escritor dá um panorama de vários ‘Joões’ dos quais ele teve notícia. Abre o conto argumentando que joões povoam o mundo inteiro, que cada comunidade tem seus joões. No entanto os Joões se subdividem: em bons, ruins, notáveis, dignificantes, patrióticos, conforme sua escolha em viver na sociedade. Também Serejo aponta o nome de João como “cognomes brejeiros e até depreciativos” (SEREJO, 2008, v. 7, p. 207), a exemplo dos apelidos dados pelo povo a fim de ridicularizar e humilhar o cidadão, fazendo ser um fardo a carregar pela vida. Serejo afirma que catalogou vinte e sete Joões, mas apresenta apenas dezessete no seu conto: João da Égua, João do Pito, João Bocó, João Bundão, João Peludo, João Lingüiça, João Boca de Bagre, João Rezador, João Torto, João Risada, João Verão, João Bocão, João Sarnento, João Chato, João Molenga, João Rengo, João Coxo. Hélio Serejo descreve suas características, suas peculiaridades, seus hábitos. Todas as histórias de homens


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simples, homens não interessantes para a História, para o arquivo oficial. Homens que tiveram sua história, que fizeram sua história na recolha das práticas cotidianas. Um escritor ao criar sua obra, por exemplo, constrói o modelo de uma suposta realidade (hábito) através de fatos observados (estratégias). O discurso de um escritor organiza a maneira que ele pensa na sua maneira de fazer. Certeau (2003, p. 140) afirma que o saber-fazer depende de uma ciência, já que esta daria credibilidade à arte, uma vez que pensa na sua articulação (apesar da arte não ter que ser esclarecida e explicada). O estudioso pensa então em uma terceira possibilidade que seria o meio termo entre a ciência e a experiência: um terceiro homem – o engenheiro. Esse exerce o saber sem o aparelho técnico. É um saber-fazer por gosto, por tato. É um saber anônimo de possibilidades práticas, de um inconsciente que sabe. A simplicidade na confecção da sua narrativa não exigiu que tivesse grande conhecimento teórico e científico. À teoria cabe desvelar os segredos submersos de sua escrita simples. Ao saber do inconsciente – como ao das “artes”- o analista oferece por isso a possibilidade de palavras “próprias” e de uma distinção entre os “sinônimos”. Daquilo que se move obscuramente no fundo do poço de saber, a teoria “reflete” uma parte à plena luz da linguagem “científica” (CERTEAU, 2003, p. 144).

O relato serejeano não exprime unicamente uma prática, ele faz uma prática, ou seja, o relato é uma inteligência mergulhada na prática. E isso acontece com esse autor que reconstrói um lugar ao qual nos temos acesso hoje através da sua narrativa, através das suas memórias registradas em texto. Essa estrutura memorialística fortalece um espaço demarcado, ou seja, ao relatar oficializa e perpetua um espaço, o deixa disponível para a prosperidade e a todo momento isso acontece nos contos que selecionamos para esta pesquisa; como no Conto “Um pouco sobre os índios”, no qual

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descreve sobre os hábitos, costumes, comidas, superstições dos Quilniquinaus, dos Xamacocos, dos Araés, dos Guaicurus. Nessa narrativa, atentamos para o evento do Multiculturalismo Emancipatório (SANTOS, 2008) onde se reconhece as diferenças entre essas culturas e se reconhece, ainda, as diferenças internas das mesmas. Ao descrever características e peculiaridades, o escritor estipula o que define cada etnia que narra, atribuindo-lhe caráter singular diante da multiplicidade, ou seja, emancipando culturalmente cada grupo indígena com suas melhores características, como por exemplo, os quilniquinaus serem hábeis caçadores, apreciadores da carne de caça, e abominarem a sua própria sombra; os xamacocos a não apreciarem carne de caça, preferirem se alimentar de gafanhotos, apreciarem a dança e se desagradarem com o canto dos pássaros; os araés serem na sua maioria mulheres belas e musculosas de longos cabelos, que se alimentavam mais de furtas, que usavam o fogo como elemento sagrado e temiam o relâmpago, os raios e os trovões; os guaicurus truculentos cavaleiros adoradores da noite apreciavam a caça de grande porte como alimento preferido e abominavam água parada por ser sinônimo de infelicidade e maldição (SEREJO, 2008, v. 7, p. 128-131). Certeau (2003) confere ao relato uma relação de fronteira e ponte, ou seja, um espaço que é legítimo à sua exterioridade. Esse é um lugar onde se encontra a maior riqueza do relato: “O relato não se cansa de colocar fronteiras. Multiplica-se, mas em termos de interações de personagens – coisas, animais, seres humanos (...)” (CERTEAU, 2003, p. 212). Entendemos a fronteira com um papel mediador, articulador, de onde saem trocas, interações, intercâmbios. Esse é o contexto do relato presente na narrativa de Serejo. Para exemplificar a característica de relato temos vários contos que se aplicam a essa proposta, um deles é o conto X, “Balaio de Bugre” que abre o livro. O escritor inicia o conto explicando o motivo do título em uma “quase” conversa. Detalhando informalmente ao leitor,


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esclarecendo pormenorizadamente o que viu e viveu com os bugres no sul de Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul, sempre acompanhando seu pai na atividade ervateira. Essa passagem mostra que a história a ser contada se relaciona à cultura, hábitos, costumes da região que sobrevivia da extração do “ouro-verde” (a erva mate). Hélio Serejo se faz um legítimo contador de causos, um daqueles peões proseadores que tiram do seu embornal histórias e histórias sem fim. Serejo retoma a “conversa” ao pé do fogo, dos trejeitos dos bugres, do seu comportamento, do modo como riem, de como se portam, o que comem, quais suas manias e quais seus valores. Presenteia-nos com uma fabulosa riqueza cultural que foi própria dessa gente e tanto valoriza esses aspectos que passa a sua vida a anotar em seus caderninhos todos os detalhes relativos a esse povo, a essa cultura. Transformar em texto escrito o que ouviu faz cristalizar a perpetuação de uma origem que se perderia, que se transformaria, via transculturação, já que sabemos que todo encontro de culturas acaba passando pelo processo de troca, de intercâmbio, fazendo-se uma terceira, uma outra. Esse encontro de Serejo, dos homens “civilizados” com os índios, bugres, paraguaios, uruguaios presentes naquela fronteira fez a cultura, hábitos, pensamentos, etc., se mixarem, se mestiçarem, se miscigenarem. Nota-se que Hélio Serejo, o escritor, ao cruzar com essas tantas culturas outras, congrega para si um pouco de cada uma delas se fazendo outro também através desse contato. Quando no conto afirma: “E por acaso, não é o autor, bugre também? Bugre legítimo com arremedos de homem civilizado” (SEREJO, 2008, v. 7, p. 93). Serejo valoriza tanto o bugre, que se coloca como um deles, posiciona-se no mesmo patamar de igualdade (mesmo HS sendo filho de dono de ranchada, letrado, reconhece no outro os seus valores tais quais os seus próprios). Outro ponto relevante de notar nesse conto é o “balaio” em si. Aquele objeto que carrega tudo o que couber e o que necessitar ser levado. O balaio de Serejo leva esse nome porque contem em si de

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tudo um pouco (contos, provérbios, crendices, palestras, verbetes, etc.). O balaio do bugre carrega tudo o que há de mais precioso em sua vida (pólvora, raízes, folhas, colher, faca, cuia de porongo, etc.). É interessante perceber que assim como o balaio (típico do bugre), o porongo também é um objeto característico deste povo, e ambos dão ideia de mistura de tudo que se encontrar dentro. Edgar Cézar Nolasco (2010) vê a simbologia do porongo como metáfora do local: “A expressão “encher o porongo” foi criada na região fronteiriça brasileira-paraguaia o que, por si só, já assinala sua condição de entre-lugar, lá e cá, dentro e fora, ou seja, um lugar, uma fronteira de natureza híbrida” (NOLASCO, 2010, p. 91). A metáfora proposta por Nolasco nos faz ver no porongo, no balaio, a “boca sempre aberta”, o local sempre aberto, aberto às trocas, aos intercâmbios. Assim como a expressão “encher o porongo” é a própria metáfora do “local”, segundo Nolasco, já que tanto o porongo, quanto o local (fronteira Brasil/Paraguai) se constituem na borda, na fronteira do dentro e do fora. A literatura vista como um lugar que permite que se volte atrás e que se reavalie comportamentos e posições, assim posto, através da narrativa de Serejo, podemos reconstruir uma história, reconstruir visões, bem como através da literatura feita na América Latina, podemos nos posicionar frente a outras literaturas e frente ao que Boaventura (2008) chama de Reforma Contra-Hegemônica. Temos o estigma de sempre termos sido contados pelos Outros, sempre fomos vistos como queriam que nos vissem. Hélio Serejo permite que aflore o que nós pensamos de nós. O que somos nós por nós. Serejo, como um homem simples, valoriza o homem simples, coloca-o em primeiro plano, vê naquele que é visto “à margem”, o centro. Um simples “João” (conto “João”), um simples carpinteiro (conto “O carpinteiro”), um simples galponeiro (conto “Galponeiro), um simples tropeiro (conto “O tropeiro cortador de chão”), um simples andariego (conto “O andariego”); enfim, todos tem seu valor como qualquer outro ser na obra serejiana. No conto “João” (já citado aqui anteriormente), HS finaliza


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rendendo honras aos Joões que viveram suas vidas em busca de sobrevivência: “Lutaram, dentro das aptidões próprias, aceitáveis ou escassas de todo, pelo pão de cada dia, engolfados, constantemente, em indagações que poderiam levá-los a outros caminhos” (SEREJO, 2008, v. 7, p. 216). No conto “O carpinteiro”, o escritor conta a vida de um carpinteiro paraguaio (também excelente cozinheiro) que chegou na ranchada do pai de Hélio pedindo emprego, seja ele qual fosse, já que precisava trabalhar para suster a família composta pela esposa e cinco filhas. Dom Chico Serejo emprega-o, e ele volta para buscar a família. Quando chega à ranchada com a mulher e as belas filhas, passa a lutar pela conservação da virgindade das mesmas já que “os lobos famintos, segregados naquele ermo, há mais de um ano, entraram em conflito e houve entreveros, em após outros, facadas, tiros, machetaços e duas mortes” (SEREJO, 2008, v. 7, p. 145-6). A fim de defender as inocentes e acabar com as brigas, Dom Chico Serejo precisou transferir a Ranchada de Ajuricaba para Naranjay. No entanto, Serejo relata que isso de nada adiantou, já que as belas índias acabaram por serem vendidas para a melhoria de vida dos pais. No conto “Galponeiro”, Serejo exalta o que diz ser a “imagem autêntica do crioulismo”, “o símbolo de vivência charrua”, a “estátua haragana do xucrismo”. Segundo o escritor, na língua castelhana “o índio chegante é galponeiro, que tem respeito na bombacha larga, no vozeirão, nos gestos largos e no talho nativista do cabelo” (SEREJO, 2008, v. 7, p. 179). Serejo pontua que um galponeiro legítimo, filho do crioulismo xucro tem no seu galpão um altar onde reza submisso ao Dios del cielo, já que o dia seguinte pode trazer amarguras, dissabores e duros pesadelos. No conto “O tropeiro cortador de chão”, eleva o simples e humilde tropeiro a senhor das jornadas campechanas, homem guapo destemido. “Sua sina é essa; veio ao mundo predestinado; não arrenega a vivência; se golpeado rudemente, em certo dia, reúne forças, firma o pensamento e, resoluto como um reizinho

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envaidecido, prossegue a jornada” (SEREJO, 2008, v. 7, p. 180). Segue assim o tropeiro, que em dias de glória, passará oculto, despercebido aos olhos de muitos, mas rei na visão de Hélio Serejo. Rei porque reinou bravamente no sertão bravio, sobreviveu “derramando suor de seu rosto na porfia duríssima, em busca de melhores dias” (SEREJO, 2008, v. 7, p. 182). No conto “O andariego”, fica evidente a sublimação que Hélio Serejo dá ao homem comum. Quem dá atenção aos viajantes encontrados sem rumo em beiras de estradas nesses rincões sem fim da terra? Hélio Serejo dá! Ele os considera uma “obra do Criador, um elo dos mistérios da criação” (SEREJO, 2008, v. 7, p. 219). O escritor denomina o andariego de predestinado charrua, o vencedor das lonjuras, o caminhando das paisagísticas do crioulismo. A simpatia pela obstinação do andariego faz Hélio Serejo enxergar nele um irmão, um mesmo, um de si: “Sempre hei de abraçar o irmão andariego, uma vez que juntos trilhamos os mesmos caminhos, contamos as mesmas estrelas e servimos obedientes, ao mesmo Deus Criador” (SEREJO, 2008, v. 7, p. 220). Enfim, Hélio Serejo se põe sempre em igual patamar do homem simples, enxerga o outro como a si mesmo, e faz dessa visão a diferença nas suas obras e, em especial, em Balaio de Bugre (2008). No conto “Chimarrão”, constamos a expressão maior da confraternização, do encontro favorável às trocas, ao compartilhamento das experiências de vida, é uma prática cotidiana do homem simples. O chimarrão une, “com o mate se conquista amizade, firmam-se negócios, idealiza-se, discute-se, pondera-se e tantas coisas mais” (SEREJO, 2008, v. 7, p. 143). Com a cuia de porongo passando “de mão em mão, cultiva-se a hospitalidade e se pratica o cavalheirismo, porque gaúcho bom e mateador de outros rincões deve e precisa ser, acima de tudo, hospitaleiro e cavalheiresco” (SEREJO, 2008, v. 7, p. 143). É interessante perceber também que essa confraternização do chimarrão não faz secções, aceita a todos:


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O mate-chimarrão é companheiro inseparável do gaúcho, do vaqueiro, do campeiro, do cruzador de caminhos, do índio faceiro, bem pilchado, da china amorosa e apaixonada, do piazote atrevidaço e disposto e das velhas gaúchas, imagens imperecíveis da terra bravia e do crioulismo (SEREJO, 2008, v. 7, p. 143).

Esse é um dos ícones da vivência cotidiana onde todos, sem distinção, se unem, se agregam. É nessa cuia feita de um chifre de vaca, ou em um porongo escolhido a dedo, que a erva se deposita, e na sua borda se prostram, a sorver o sangue verde, as mais diversas etnias, as mais diferentes culturas, dos mais diversos hábitos e costumes. No conto “Couro seco de vaca”, encontramos outro pertence do homem simples, à semelhança do balaio do bugre, Serejo pontua: “Tínhamos o tema charrua em nosso desbeiçado balaio de bugre onde guardamos as nossas relíquias campesinas que serão, com o tempo, transformadas em crônicas” (SEREJO, 2008, v. 7, p. 167). Segundo o escritor desfia, o couro de vaca alinhavado se moldava às intempéries do tempo, da vida. No relento engruvinhava, às vezes apresentava calombos. Em dias de chuva inchava, para logo após, em dias seguidos de sol, retorcer e originar “moldes excêntricos” (SEREJO, 2008, v. 7, p. 167). À semelhança do balaio, por conter, por guardar as preciosas riquezas dos homens simples, esse mesmo homem simples engruvinha, apresenta calombos, incha e se retorce e se adapta e se molda no entre-lugar, nos encontros, nas trocas. Mixa-se, mistura, transcultura, torna-se outro, torna-se “ex/cêntrico”. Nessa capacidade de congregar a transformação e mudança do mundo em situações corriqueiras e simples é onde impera a força e magnitude da escrita serejeana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. 9.a edição. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 2003. NOLASCO, Edgar Cézar. Babelocal - Lugares das miúdas culturas. Campo Grande/MS: Life Editora, 2010. SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo. Para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2008. SEREJO, Hélio. Obras completas. (org.). Hildebrando Campestrini. Campo Grande/MS: Instituto de História e Geografia de Mato Grosso do Sul, 2008. 429

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RISCOS DAS FRONTEIRAS EM ROSA MARIA EGIPCÍACA DA vERA CRUZ, DE HELOISA MARANHÃO Marcela de Araujo Pinto[1]* Esta comunicação objetiva discutir o tracejar e o superar de fronteiras geográficas, culturais e temporais entre duas personagens no romance Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz: a incrível trajetória de uma princesa negra entre a prostituição e a santidade (1997), de Heloisa Maranhão. Essas personagens são a versão fictícia de uma escritora, que muito se assemelha à própria autora Heloisa, e a versão fictícia da figura histórica Rosa Maria, que teve sua vida registrada no livro Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil (1993), do historiador Luiz Mott. Com o transitar dessas personagens entre realidade e ficção, entre passado e presente, entre a magnitude do Brasil colonial e a densidade do quarto em que a escritora cria sua narrativa sobre a vida de Rosa Maria vislumbram-se os riscos, ora exacerbados, ora imperceptíveis: das fronteiras nacionais e internacionais, da separação entre público e privado, da intertextualidade com obras da literatura brasileira e com a historiografia, da distinção entre literatura e história, da escrita sendo realizada, da autora em sua corajosa criação, da Rosa Maria em suas audaciosas buscas, do leitor ao enfrentar a complexa literatura contemporânea, do trabalho do crítico em face de um texto que não se deixa encaixar em categorias de conhecimento pré-estabelecidas. Palavras-chave: Heloisa Maranhão; Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz; Romance Histórico Contemporâneo.

Acompanhando o tema do I Congresso Internacional do PPGLetras da UNESP/São José do Rio Preto, esta comunicação analisa no romance Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz (1997), de Heloisa Maranhão, o tracejar e o superar de fronteiras geográficas, culturais e temporais. As ideias aqui apresentadas compõem a pesquisa de 1 Mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Letras – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/São José do Rio Preto – São José do Rio Preto – SP – Brasil. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP. E-mail: marcela@dmj.com.br

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doutorado O que é um lar? Revisão do conceito histórico de nação em Paradise (1997), de Toni Morrison, e em Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz (1997), de Heloisa Maranhão, ainda em desenvolvimento, com apoio da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Nesse romance, as fronteiras são estabelecidas e superadas na relação entre duas personagens: a versão fictícia de uma escritora, que muito se assemelha à própria autora Heloisa, e a versão fictícia da figura histórica Rosa Egipcíaca. A figura histórica resgatada como personagem ficcional é a africana Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz que viveu no Brasil, no século XVIII, e teve sua vida registrada em um processo arquivado na Torre do Tombo de Lisboa. Em 1993, o antropólogo Luiz Mott publicou a biografia Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil, relatando desde a chegada ao Rio de Janeiro até a prisão pelos Tribunais da Santa Inquisição. A personagem da escritora, presente no romance, não possui nome, mas, em uma conversa, ela menciona os títulos dos livros escritos por ela, que coincidem com os de Heloisa Maranhão: “Lucrécia, Florinda, Dona Leonor Teles, A Rainha de Navarra e Adriana” (MARANHÃO, 1997, p.16). Heloisa nasceu no Rio de Janeiro, em 1925, formou-se em Direito, mas seguiu carreira no campo das Letras e da arte. Escreveu peças, poemas, romances e trabalhou como tradutora. Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz é seu último romance publicado. Carlos Drummond de Andrade, em poema dedicado à escritora, descreve: Heloisa, a que no branco da página acompanha a fuga de uma palavra alada e nos transporta no seu ritmo. (MARANHÃO, 1997, p.1)

A trajetória de Rosa Egipcíaca, de acordo com a biografia escrita por Luiz Mott (1993), começa com sua chegada ao Rio de Janeiro,


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ainda criança, onde viveu até os 14 anos, quando foi comprada por uma família de Minas Gerais. Em Minas, ela viveu como prostituta, até ter a visão mística que a fez arrepender-se de seu modo de vida, abrir mão de seus objetos de luxo e adotar uma nova vida de devoção. Nessa época, ela foi comprada em copropriedade pelo Padre Francisco Gonçalves Lopes, o Padre Xota, e pelo Sr. Pedro Rois Arvelos. Eles desejavam protegê-la, pois ambos acreditavam em sua santidade. Porém, em Minas ela desafiou membros do clero e da alta sociedade. Tornando-se figura muito chamativa e já sofrendo acusações de embusteira, Rosa parte para o Rio de Janeiro com Padre Xota. Já alforriada, no Rio, ela viveu em casas onde era acolhida, para poder dedicar sua vida apenas à devoção. Surge-lhe então a ideia de fundar um Recolhimento para moças que, como ela, haviam sido prostitutas e, deixando essa profissão, não tinham dinheiro nem lugar para morar. O Recolhimento do Parto tinha base na visão de Rosa dos cinco Sagrados Corações. Normalmente, a devoção é aos três Sagrados Corações, mas Rosa teve uma visão em que cinco lhe apareceram: Jesus, Maria, José, Santana e São Joaquim (MOTT, 1993). Ela também aprendeu a ler e a escrever em português, sendo, de acordo com Mott, a primeira ex-escrava no Brasil a escrever um livro. Enquanto alguns a consideravam santa, outros a tratavam como golpista e até mesmo feiticeira. Ela viveu no Rio de Janeiro até ser denunciada e levada para os tribunais da Santa Inquisição. Nessa época foram destruídos os manuscritos de seu livro. Essa é a versão histórica de Rosa, mas a versão ficcional é a que se encontra com a personagem da escritora. O encontro acontece no quarto da escritora, no século XX, quando Rosa Maria surge exigindo que a escritora registre a sua história. Embora nesse momento já exista o livro histórico com a sua biografia, ela aparece no quarto expressando essa necessidade. Talvez, para Rosa Maria, o livro de 750 páginas de Mott não fosse o suficiente para retratar sua vida, ou estivesse incompleto. De uma forma ou de outra, a personagem parece ter urgência em certificar-se de que sua

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história será registrada. Esse encontro, entre personagem histórica ficcional e personagem escritora ficcional, constitui o início do romance e estabelece o delineamento de fronteiras entre literatura e história. Nesse caso, o termo delineamento expressa o sentido de “riscar a divisão”, apresentando uma das ideias relacionadas a “riscos”, a ideia de “estabelecer a fronteira”. A menção aos romances da escritora e a alusão a uma personagem histórica marcam a divisão entre o mundo histórico e real e o mundo da ficção. Entretanto, ao mesmo tempo em que esse risco, esse limite, é estabelecido, ele também é superado. Ele não é respeitado, porque não há uma divisão clara de quem é personagem fictício e de quem é histórico, nem há uma medida exata para determinar até que ponto certa personagem é histórica, real ou fictícia. Rosely Santos Guimarães (2003), no artigo “Corpo negro: entre a história e a ficção. O caso de Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz”, ao comparar o romance à biografia histórica, defende que Rosa teve um papel transgressor na sociedade escravocrata. Segundo Guimarães, “Rosa foi uma escrava que aprendeu a ler e a escrever na língua do dominador e teve a coragem de se colocar como o sujeito de um discurso que busca mudanças na cultura vigente a partir de questionamentos dessa cultura” (2003, p.161). Porém, o que se percebe tanto na personalidade histórica, quanto na personagem ficcional, não é um questionamento da cultura vigente. Ambas ocupam diferentes posições sociais ao longo de suas trajetórias, mas apenas essa mobilidade não é o suficiente para afirmar que elas se colocaram como sujeito de um discurso que buscava mudanças. A personagem fictícia ainda demonstra certa preocupação em libertar escravos (ao menos os seus amigos). Já a figura história não fala em nenhum momento em nome dos escravos. Ela não combate a escravidão e não defende os direitos das mulheres. Na verdade, o Recolhimento se torna uma espécie de prisão para as mulheres. Os maridos as deixavam lá como forma de punição por comportamento inadequado ou quando


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iam viajar e não confiavam que suas esposas ficassem sozinhas. Mesmo em relação à Igreja, ela não deseja mudar o contexto social vigente, ela quer apenas ser aceita nesse grupo seleto de devotos. Todas as suas atitudes demonstram mais uma exacerbação das características culturais de sua época do que uma contestação dessas características. No romance, a intensificação das características culturais vigentes é percebida na pompa da personagem de Rosa, que só aumenta. Ao contrário de Santa Egipcíaca que abandonou todo luxo, Rosa Maria fica cada vez mais rica, possui cada vez mais bens. Embora não tenho sido esse o caso da figura histórica, que não aumentou sua riqueza ou a quantidade de bens, ela, ainda assim, ocupou gradativamente posições de maior conforto na sociedade. O dinheiro investido no Recolhimento foi imenso e ela comandava o lugar. Rosa está mais próxima de ser uma figura tipicamente barroca, como Mott sugere, do que de uma ativista de mudanças sociais e culturais. Tanto a Rosa histórica quanto a ficcional não mudam comportamentos vigentes, apenas os intensificam. Além disso, Rosa Egipcíaca não é bem o sujeito da enunciação. Pelas descrições de Mott, o Padre Xota-Diabos se destaca como sujeito da enunciação, e Rosa apenas como objeto desse discurso. Ele está sempre envolvido nas atividades de Rosa, e, pelo o que Mott sugere, tinha um interesse financeiro nas demonstrações públicas de possessão espiritual. Também no romance, Rosa Maria não é totalmente sujeito do discurso, porque o divide com a escritora. A voz narrativa oscila entre as duas ao longo do texto, mas, ao final, quem se coloca como detentora do discurso é a escritora, e não Rosa. Quando a narrativa se encerra, no quarto da escritora no final do século XX, é a personagem da escritora quem comanda a voz narrativa. No romance, Rosa Maria fica cada vez mais rica, com mais pompa, à medida que caminha pelo Brasil colonial, de Pernambuco a Minas Gerais. Ao longo dessa viagem, ela deixa para trás as referências africanas e chega a Vila Rica completamente transformada. No

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começo da narrativa, enquanto é escrava, ela é também amante do senhor de engenho. Por isso, ela tem algumas regalias e continua tendo alguns privilégios, assim como tinha na África, quando era princesa. Nesse momento, ela é muito bondosa e prestativa. Nas ajudas que realiza, ela tem o apoio de uma deusa, africana. Com a morte do senhor de engenho, Rosa Maria é alforriada e herda uma das maiores minas de ouro do país. Durante a viagem, ela começa a mudar. Ela abandona a deusa africana e decide se tornar uma cristã exemplar. Assim, ela chega a atacar pessoas na igreja:

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Chegamos. Igreja cheia de gente. Cumprimento aqui e acolá. O príncipe Kacoumba é a grande atração. Mas todos sabem quem eu sou: a dona da melhor mina de ouro. Escolhemos um banco. [...] Levanto-me decidida. Empunho meu chicote. Grito: - SER UM BOM CRISTÃO É EXPULSAR DO TEMPLO O PECADOR!!! Avanço para os dois índios. Chicoteio-os a valer. Eles, com o rosto lanhado, escorrendo sangue, fogem espavoridos, acompanhados pelos outros índios que estavam lá no fundo da igreja. Agora é a vez da menininha. Vou castigando sua mbunda (nádega) sem dó nem piedade. Grita a menina, grita a mãe. (1997, p.231-233)

Nesse momento, Rosa Maria deixou de viver em estado de hibridação (África/Brasil – princesa/escrava) e possui unicamente a denominação de rica cristã dona de mina de ouro brasileira. A tentativa por se encaixar em uma categoria definidora pura leva-a a excluir violentamente quem não está adaptado a essa categoria. Esse ponto de atitude extrema é também o ponto em que a personagem da escritora encerra a narrativa que está escrevendo. Depois disso, tudo começa a sumir e Rosa é levada de volta ao quarto da escritora. A trajetória de Rosa Maria termina, para a escritora, nesse momento. O que a escritora desejava registrar de sua personagem é essa transformação. Não é uma transformação


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positiva, Rosa não era agressiva antes, quando vivia em estado de hibridação. Por esse caminhar de Rosa pelo Brasil colonial, percebe-se também que as fronteiras entre nacional e internacional (entre Brasil e África) são riscadas (no sentido de apagadas e no sentido de delimitadas). Há sérias consequências quando o risco está muito forte, ao final, isto é, quando há uma determinação fixa do que é o Brasil, um bom cristão ou uma rica dona de mina de ouro. São os riscos aos quais uma sociedade está exposta quando se organiza em linhas de divisão bem estabelecidas. O aniquilamento de uma parte da população é um desses riscos. Há outros. Rosa corre muitos riscos por sua conduta. No romance, quando ela se transforma totalmente e vira a protetora dos templos, ela deixa de existir: “Súbito... mas o que é isso? Padre Xota e frei Alberto desapareceram. Some o altar. Onde estão o príncipe Kacoumba, Matilde, Engrácia? Onde estão os fiéis que ouviam a missa? Não vejo ninguém. Pessoas, altares, bancos, a igreja? Estou só. Tudo branco. Será que eu também? Vou desaparecer? Invoco o Deus Cristão. Não. Oh! Lá vou eu, para onde?” (MARANHÃO, 1997, p.234). É o risco de deixar de existir ao se delinear uma identidade com fronteiras rígidas. A personagem da escritora também se arrisca. Há o riscar da escrita, consolidado na atividade de passar a noite toda escrevendo o romance. Essa é uma atividade arriscada, porque significa perder o início dos encontros oficiais para discussões sobre heranças afrobrasileiras. No início do romance, ela está se preparando para esses encontros, mas os cancela para ficar escrevendo, a pedido de Rosa Maria. Assim, nem história, nem encontros oficiais suprimem a necessidade da escrita da ficção. Uma atividade arriscada, também porque é um misto de história e ficção, de romance e biografia, não estando presa a nenhum gênero literário específico. O risco que a personagem da escritora assume nos lembra que ler também é assumir riscos. “Encarar” a literatura é entender as fronteiras e superá-las. Por isso a crítica literária assume um risco

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maior ainda: porque precisa apontar quais fronteiras são riscadas, como elas se estabelecem e quais perigos elas trazem.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, M. Formas de tempo e cronotopo no romance: ensaios de poética histórica. In:___. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. 5.ed. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Annablume, 2002, p.211-362. BHABHA, H. The Location of Culture. London e New York: Routledge, 1995. BHABHA, H. (Org.) Nation and Narration. London e New York: Routledge, 1999. COELHO, N. N. Heloisa Maranhão. In: ______. Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras: 1711-2001. São Paulo: Escrituras Editora, 2002, p.253-256. GUIMARÃES, R. S. Corpo negro: entre a história e a ficção. O caso de Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz. Em Tese, Belo Horizonte, v.6, p.159-164, ago. 2003. HUTCHEON, L. A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction. London and New York: Routledge, 1988. HUTCHEON, L. The Politics of Postmodernism. London and New York: Routlegde, 1993. MARANHÃO, H. Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz: a incrível trajetória de uma princesa negra entre a prostituição e a santidade. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997.

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ROBERTO PIVA: APROPRIAÇÕES, CRIAÇÃO POéTICA E CRÍTICA Marcelo A. M. Veronese Este artigo dá continuidade ao estudo da poesia de Roberto Piva (19372010), particularmente das apropriações que envolvem sua criação poética desde os primeiros poemas publicados nos livros Paranoia (1963) e Piazzas (1964), passando por 20 poemas com brócoli (1981) e Quizumba (1983), até chegar em Ciclones (1997). Após trabalhar a intertextualidade na primeira poesia de Piva (como procedimento particular de composição autoral), aborda-se os campos da apropriação literária segundo uma dupla leitura, entendida como um desenvolvimento do fazer-poético dialógico: por um lado, ainda através de diálogos com categorias e temas literários encontrados em autores e obras de tempos diversos; e, de outro, relacionada com os campos experimentais desta poesia enquanto composição artística inspirada, isto é, considerando a visão da literatura e das artes inserida numa filosofia de vida rebelde e singular. Salienta-se, ainda, a existência de alguns textos críticos escritos sobre esta obra (que até o momento foram realizados por poucos estudiosos), quando não pelo próprio poeta que, através de prefácios e posfácios, regularmente pensou sobre seu ofício. Este último suporte “crítico” do próprio poeta é parte intrínseca de uma linguagem que busca sua expressão e manutenção através da experiência de vida individual e coletiva (compreendendo também sua leitura de outros autores). PALAVRAS-CHAVE: Roberto Piva; Poesia Brasileira; Poesia Contemporânea; Crítica Literária, Apropriações Literárias; Intertextualidade.

Este artigo propõe um pequeno estudo da poesia de Roberto Piva (1937-2010) através da abordagem de algumas apropriações que funcionam como base de uma criação literária bem particular. Na verdade, trata-se do início de uma pesquisa maior, em

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andamento, na forma de projeto de doutorado sob a orientação da Profa. Dra. Suzi Frankl Sperber, no IEL/Unicamp.[1] Ao contrário do que possa parecer num primeiro momento, a raiz da postura poética de Piva, altamente independente, pode ser mais bem interpretada se observada através do diálogo que a escrita do poeta trava com a própria literatura. Isso, mediante citações, alusões e epígrafes poéticas constantes em seus poemas, incluindo também referências a outras expressões artísticas afins. Dessa forma, no trabalho “A intertextualidade na primeira poesia de Roberto Piva”[2] existiu a tentativa de analisar, pelo viés intertextual e especialmente em seu primeiro momento de produção, a maneira como grandes autores nacionais e estrangeiros – principalmente Mário de Andrade e Allen Ginsberg – funcionam de matriz poética para a constituição de uma obra de caráter autoral. É interessante notar que alguns temas tradicionais da literatura e suas derivações na escrita, decorrentes do diálogo intertextual, comparecem para favorecer interpretações de caráter concomitantemente plural e particular, como, por exemplo, a postura existencial do flâneur e a metrópole como locus da poesia moderna, bem como a estrita utilização de artifícios poéticos impulsionadores do verso livre (a exemplo da enumeração caótica e da escrita automática, entre outros). Muitas vezes, a análise de versos comparados também ressaltou a existência de outros temas e tópicas exemplares no cânone literário que, repostos quase que permanentemente (e isto, não apenas em seus primeiros livros), acentuam a criação de um universo poético que prescinde dos diálogos, mas que também permite ajustar o conjunto desta poesia pelo conhecimento de obras prévias. Decorre daí, também, que o viés estritamente intertextual, oferecendo uma base sólida de contato inicial com esta poesia, se 1

Este projeto conta com a Bolsa Doutorado FAPESP (Processo Nº 2011/50.399-1).

Dissertação de mestrado que realizei no IEL/Unicamp com apoio da Bolsa Mestrado FAPESP (processo nº 06/59023-6), sob orientação do Dr. Prof. Antonio Alcir Bernárdez Pécora.

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mostra ainda insuficiente para a apreensão das criações originais que envolvem momentos da obra. O caráter de originalidade, como é interessante salientar neste caso, possivelmente não compareceria resolvido através da intertextualidade nem mesmo através de um estudo minucioso das “leituras” do poeta. Para além do ponto de vista comparativo ou referencial, é possível perceber que a poesia de Piva apresenta apropriações específicas que, numa linha de pensamento e de interpretação muito pessoal, se insinuam como fórmula de criação (e crítica também). Esta é a matriz principal, uma espécie de leitmotiv peculiar que recobre toda sua produção poética num panorama artístico-literário. Não por acaso, o primeiro ponto que se reafirma quanto mais contato se toma com os poemas de Roberto Piva é, nas palavras de Alcir Pécora, que “a literatura de Piva (...) É literatura embebida em literatura, que respira literatura, que fala o tempo todo de literatura” (PÉCORA, 2005, p. 14). Este tipo de fusão criativa – quer dizer, um recurso ou fórmula para a construção de uma poética pessoal cujo tema recorrente da literatura é entendido como apropriação e criação – certamente não é exclusivo de Piva.[3] Contudo, seu diferencial é prontamente reconhecido aqui: os pilares literários de toda sua obra, além de remeteram às mais variadas artes, também surgem explicitamente apontados e constantemente afirmados pelo autor para determinar o equivalente a pensar sobre si mesmo – seja sobre sua escrita e possíveis desdobramentos particulares, seja pelo comportamento experimental que rege sua poesia e, ao final, sua própria vida. O olhar para dentro da própria criação, neste caso, fornece um roteiro de leitura obrigatório no tocante ao seu alicerce literário, filosófico e artístico mais exclusivo, mas que deve ser considerado também como o principal balizamento experimental dentro da poética de Piva. Se quisermos entrar em contato com os mesmos 3 Alguns dos próprios autores com quem Piva dialoga intertextualmente são exemplos disso: Mário de Andrade em Pauliceia Desvairada; Allen Ginsberg em Howl; o próprio Fernando Pessoa no poema Saudação a Walt Whitman.

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horizontes vislumbrados ao longo de toda a obra, convém considerar um desenvolvimento de uma poética piviana enquanto expressão, manutenção e constituição de uma linguagem viva, continuamente autossustentada pela aplicação das características singulares que o poeta escolheu para criar. Os conteúdos mais idiossincráticos desta produção, desde a originalidade da obra até seus momentos de “releitura” ou “autocrítica”, equivalem a um modus operandi preciso, ainda que experimental, caótico e catártico por excelência. Não é de outra coisa que trata o poeta quando nos fala, no “Postfacio” de seu segundo livro, Piazzas (e evocando Nietzsche): “Sob o império ardente de vida do Princípio do Prazer, o homem, tal como na Grécia dionisíaca, deixará de ser artista para ser Obra de Arte”. A aproximação do prazer corporal com o trabalho artístico é uma das melhores maneiras de se adentrar nos conteúdos pessoais desta poesia. A excessiva sexualização do corpo refletida no mundo exterior e no outro, por exemplo, é também um dos indícios dessa linguagem “apropriativa”. Ao longo dos textos, o desejo sexual e o erotismo, expresso não raro à maneira de Marquês de Sade, comparecem também na esteira das sugestivas imagens sensuais desde Virgílio, Marcial ou Catulo, passando necessariamente por Dante, e o próprio Petrarca, bem como William Blake, Walt Whitman, Baudelaire, Rimbaud e Lautréamont (e, já no século XX, na esteira de poetas como Apollinaire, os surrealistas, Artaud, Pasolini, além de Fernando Pessoa e os já mencionados Mário de Andrade e Ginsberg, e outros beats como Michael McClure e Philip Lamantia), constituindo elementos que propiciam, então, o contato com o veio místico e esotérico. Em Piva, é correto afirmar que aspectos do xamanismo e da tópica do sagrado também predominam em todos os seus momentos, e se confundem com sua expressão sensual e sexual, o que pode remeter o estudo crítico comparado desta poesia não apenas a diferentes poetas, mas também aos trabalhos de Sigmund Freud (1913), Georges


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Bataille (1957) e Mircea Eliade (1976), entre outros, que operam leituras decisivas sobre tais assuntos (correlacionados ou não). Por esse “percurso” referencial já é possível entrever uma relação intrínseca entre o real e o imaginário, a qual se desdobra através de apropriações precisas que, por sua vez, servirão apenas de suporte matricial para a experiência na linguagem – que é antes da ordem da experiência com o mundo sensorial e espiritual (ou psicológico). Neste sentido, a dimensão das próprias matérias – do sexo, da natureza humana e de sua contrapartida espiritual ou mística – são variáveis novas nesta expressão literária de caráter transgressivo, isto é, na qual a busca da transcendência através do desejo é também o registro de um processo artístico compartilhado e, por isso, ilimitado. Eliane Robert Moraes (2006, p. 160) fala com precisão sobre a aposta no “excesso como o único meio capaz de dar conta de uma vertigem que é a um só tempo erótica, estética e existencial”. Além de radical e provocativa, a linguagem particular de Piva torna-se voz original impulsionando a experiência corporal e psicológica para, ampla e extrapessoal, buscar o conhecimento de si e do outro também, como que do universo enquanto um todo. Em última instância, a expressão da transgressão, da ritualística pagã, da vidência através das drogas e da violência ou do amor erótico[4] comparece como suporte seguro na tentativa de representar todo tipo de excesso de sentidos e sentimentos vislumbrados pela linguagem poética – como o próprio poeta, com base em outro autor, fez questão de afirmar também no “Postfácio” de Piazzas: Foi em Freud que encontrei melhor formulada esta Proposição inicial que desde a adolescência fermentava em mim: “O verdadeiro gozo da obra poética reside na libertação de tensões em nossa vida psíquica. Talvez este resultado obedeça em grande parte ao fato de que o poeta nos permite gozar de nossas próprias fantasias sem vergonha & sem escrúpulos” (PIVA, 2005, p. 129). 4

Ver PÉCORA (2005), MORAES, 2006, FRANCHETTI, (2007) e ARRIGUCCI JR. (2008).

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Seja sob a forma de profanação e supressão de interditos, ou através do empreendimento sensual e visionário mediante a “postura” pessoal do poeta frente a tais matérias, uma das maneiras de considerar a singularidade desta criação poética como elemento fundador de sua qualidade – ou seja, de esclarecer as grandes virtudes nas características particulares de seu discurso e de sua livre linguagem – é buscar na experiência poética vivenciada sua própria inspiração e manutenção transgressiva. Uma vez que já vinculam características temáticas singulares num discurso poético de radicalização das múltiplas apropriações, a possibilidade de desenvolver uma leitura aprofundada da poesia de Piva compartilha, ao final, de sua própria essência experimental – correndo o risco de trair sua base de fundação primeira, caso isso não ocorra. O último texto crítico importante escrito sobre esta poesia, a cargo de Davi Arrigucci Jr., começa com a seguinte constatação: 445

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O que primeiro chama a atenção na poesia de Roberto Piva, desde a estreia explosiva de Paranoia em 1963, é seu ímpeto para a provocação. Com efeito, o poeta entregava ao delírio sistemático a condução do lirismo, fazendo de seu comportamento desregrado também o modo de ser de sua linguagem. (ARRIGUCCI JR., 2010, p. 151. Grifo nosso).

Antes de ir adiante, porém, é interessante observar de perto como se constitui a obra isoladamente e, junto a ela, a crítica (ainda reduzida) que a acompanha nos últimos tempos. Sabendo que a obra publicada e mais conhecida de Roberto Piva não é extensa quantitativamente[5], a recente publicação de Obras reunidas (Globo) representa seu atual corpus organizado que, no conjunto, destaca três fases distintas até o momento: A produção da poesia de Piva, vista ao longo do tempo, descreve Contando exatamente com nove livros individuais publicados ao longo de sua vida (incluindo também uma Antologia Poética), além de participações importantes em antologias, desde a estreia em Antologia dos Novíssimos (Massao Ohno, 1961), 26 Poetas Hoje (Labor, 1976), até a Antologia poética da Geração 60 (Editorial Nanquim, 2000). 5


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um desenho cronológico bem particular. A publicação dos seus livros parece dar-se por surtos, e mais exatamente por 3 grandes surtos de duração variável: o da primeira metade dos anos 60; o da segunda metade dos 70, que se estende à primeira dos 80; e enfim o do final dos anos 90, que se estende até o presente. (PÉCORA, 2005, p. 9)

Um resumo crítico de como é construído este discurso poético, de forma geral, é dado por Davi Arrigucci Jr. (2008, p. 198. Grifo nosso): “A sequência da obra não desmereceu o turbilhão inicial (...) expandiram-se as imagens com força alucinada, para condensar em unidade insólita, soldada pela analogia, a multiplicidade caótica da visão do universo”. Assim, os versos a seguir exemplificam as diferentes etapas referidas anteriormente, nas quais comparece, ainda segundo Pécora (2005) e Moraes (2006), respectivamente, o “efeito de alucinação” ou o “incansável trabalho de alucinação” – também de acordo com Arrigucci Jr. (2008) –, uma das características mais contínuas em todo o conjunto da obra: os banqueiros mandam aos comissários lindas caixas azuis de excrementos secos enquanto um milhão de anjos em cólera gritam nas assembleias de cinza OH cidade de lábios tristes e trêmulos onde encontrar asilo em tua face? (“Visão 1961” em Paranoia) (PIVA, 2005, p. 31); Papè Satan, papè Satan aleppe/ Stradivus cordis meus/ formavulva falastros/ ripus Nicomedis/ fla-flu Kricotomba/ cantus Servilius/ Baudelaire-Maxixe/ fontana efó luzes pardoin/ farofa extravivax Vox voluptas/ moqueca/ cachimbando cullus puer (…). (“Jorge de Lima + William Blake + Tom Jobim. Dante observa”, em Quizumba) (PIVA, 2006, p. 132); Paracelso cercado/ de jasmins/ leve como o fogo/ no embalo do/ navio-tortilla/ poder das Ervas/ poder que avança/ na rapidez/ de um beijo. (Em Ciclones) (PIVA, 1997, p. 44).

Contudo, como já salientado, a fortuna crítica sobre a poesia de Piva é quase inexistente. Entenda-se: seus críticos mais importantes afirmam que esta poesia ainda não possui aparato

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crítico condizente – incluindo o que eles mesmos escreveram. Enquanto Arrigucci Jr. diz que “[A] crítica brasileira (e não me ponho fora dela), já de si vasqueira, fez que não viu (...) No conjunto e nas partes, compreender criticamente essa obra continua sendo um aberto desafio” (Ibid., p. 198-199), Pécora afirma categoricamente que “até agora, incluindo o que escrevi sobre ela [a obra de Piva], foram apenas arranhões na grandeza da sua poesia”.[6] Embora prevaleça há tempos a exigência de uma atenção urgente, quando não mais rigorosa e apurada, a cargo de um discernimento crítico sério e responsável que a obra impreterivelmente supõe – são ainda os críticos que dizem[7] –, pouco se aprofundou sobre seus temas, tópicas e características poéticas mais relevantes. Assim, a própria análise desta crítica constitui, por si só, observar inicialmente de perto alguns dos mais importantes procedimentos poéticos encontrados em Piva. Vale lembrar que, como nas Obras reunidas não estão representadas as fotografias e ilustrações que acompanham algumas das edições originais dos livros de Piva, o estudo geral e organizado desta obra ainda prescinde de aprofundamento temático da questão artístico-visual, a qual repõe a exigência de uma análise voltada para suas postulações de ordem mais experimental, sem abdicar da atenção, por parte do poeta, dada primordialmente à linguagem. Como exemplo do que se afirmou, nos versos de “Visão de São Paulo à noite - Poema Antropófago sob Narcótico”, do livro Paranoia, há uma espécie de imaginação delirante a qual o poeta sucumbe por força de seu próprio discurso: “Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas acende velas no meu crânio (...) na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida”. É preciso atentar para este encontro consigo mesmo, no decorrer do poema, como forma de representação do envolvimento com a própria poesia, uma vez que é ela quem possibilita e reforça 6

In: Folha de São Paulo, 06.07.2010. Ver Bibliografia.

Ver Pécora (2005, 2006, 2008), Arrigucci Jr. (2008, 2010), Bonvicino (2008), Franchetti (2007), Moraes (2006), Willer (2005), Hollanda (2003), Faria (2000), entre outros estudiosos e comentadores de Piva. 7


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durante todo o discurso a ideia de uma ampliação de contato do eu-lírico frente ao ambiente e acontecimentos que testemunha como que biograficamente. O desvario, neste caso, não é a perda da realidade ou exclusão do que experimenta e vive, mas sim a condição para que seja capaz de descrever a carga enorme de acontecimentos, sensações e desejos que se alternam – e que brotam de um experimentalismo representado de maneira a ser admitido como vivenciado:

início, para se afastar do mínimo realismo na busca de uma máxima representação do que é desejo, sentimento e ainda transgressão. A um só tempo distorcida, pessoal e direta, a violenta expressão homossexual do amor em “Poema XIV (para Carlinhos)”, de 20 Poemas com Brócoli, é tanto maior quanto mais clássico é o tema e clássica sua ambientação sonora: vou moer teu cérebro. vou retalhar tuas/ coxas imberbes & brancas./ vou dilapidar a riqueza de tua/ adolescência. vou queimar teus/ olhos com ferro em brasa./ vou incinerar teu coração de carne &/ de tuas cinzas vou fabricar a / substância enlouquecida das cartas de amor./ (música de/ Bach ao fundo). (Idem, 2006, p. 109)

Eu vejo putos putas patacos torres chumbo chapas chopes / vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e / abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos / colisão na ponte cego dormindo na vitrina do horror / disparo-me como uma tômbola / a cabeça afundando-me na garganta / chove sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me / nas tripas, meu amor, eu carrego / teu grito como um tesouro afundado quisera derramar sobre ti todo meu epiciclo de centopeias (...). (PIVA, 2000, p. 39)

Ao lado da expressão lírica da experiência, as próprias fotos que acompanham o poema ajudam a fixar com realismo uma maior carga delirante, quase nunca se resolvendo entre representar o texto ou ser representadas por ele. Ainda que possa ser bem entendida através da escrita apenas, compete à crítica avaliar esta expressão poética como ela busca se comunicar e se manter, a saber, através de todos os recursos a que recorre (no caso do poema acima, ao lado de fotografias da cidade de São Paulo). A manutenção da experiência de vida, enquanto pressuposto estético e ideológico, estabelece um patamar condizente com o conteúdo mais idiossincrático de sua transgressão e revolta também. Portanto, o experimentalismo entre texto e fotografia permite ampliar adequadamente a imagética do delírio e sua expressão vivenciada através de narcóticos, por exemplo, da mesma forma que ajuda na leitura peculiar de matérias clássicas não exclusivas desta poesia, tais como o sexo e o amor. O tratamento de temas tradicionais foge da forma e da ordem, de

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Para além da indicação de uma suposta inspiração que acompanhou a composição do poema, bem como o tema em si – Bach embalando o amor, ao que tudo indica, pelo lado mais doce (“dilapidar a riqueza de tua adolescência”) – não surpreende que também a “dança” dos versos[8], distribuídos como desejos repentinos que se encadeiam, permita inferir alto grau de sensualidade na relação amorosa, que aqui é carnal acima de tudo: “vou incinerar teu coração de carne”. Sendo um poema violento de amor, uma carnificina sensual, é ainda, sobretudo, um desespero apaixonado. E tal espécie indomável de paixão parece ser passível de representação na escrita (no poema) através de conteúdos básicos ou tradicionais – como a vida amorosa, a relação sexual, o desejo apaixonado, etc. – que não deixam de exprimir a condução da transgressão, a experimentação ativa dentro da relação com a vida mantida desesperadamente – cujas ilustrações, existentes no livro, adicionam mais movimentos e sentidos. Além do diálogo com artes visuais e do experimentalismo constante, é possível ainda recorrer a outros textos que Neste poema em particular, a disposição espacial dos versos na página (não reproduzida, aqui, com as características do original) é altamente desordenada, ainda que sugira um ritmo musical uniforme.

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comparecem nesta reunião para, através da própria consulta à obra autoral, tentar superar em parte o reduzido aparato crítico literário. Isso porque os livros de poesia de Piva apresentam, além de uma introdução (Piazzas) em forma de prosa-poética, consistentes posfácios (Piazzas e 20 poemas com brócoli) escritos pelo próprio poeta, sendo pertinente considerá-los como extensão do discurso poético e reposição crítica deste. Trata-se de um movimento cuja linha de força se mostra ainda baseada na experiência de vida exigida pela poesia do autor. Ele mostra ter extrema consciência da importância de tais textos dialogarem, em outros formatos, com seu corpus poético mais elementar, ainda evitando, no caso dos posfácios, qualquer detrimento no primeiro contato com os poemas. Isso, sem abdicar do registro temporal, espacial e histórico mais pessoal, que ajuda a definir parte da experiência de vida como criação artística literária. A “Introdução” de Piazzas (a) é muito semelhante a algumas composições em verso (b): a) Às cinco horas eu recomeço uma vida a partir do caprichoso hálito que Jacob Boehme me acusa naquela tarde de gelo & tristeza originais/ Meu companheiro dizia: é fácil aprisionar alguém na fome de uma flor/ (...) Às cinco horas aquele que Devora se mostrou entre as ondas/ Infantil entre as pálpebras como num enterro Soluçando/Aquele que Devora teve suas núpcias de pedra – Freud é o Inferno Musical/ Nietzsche é o Paraíso/ Meu companheiro é o Jardim das Delícias (...). (PIVA, 2005, p. 76)[9]. b) Uma tarde é suficiente para ficar louco/ ou ir ao Museu ver Bosch/ uma tarde de inverno/ sobre um grave pátio/ onde garófani/ Milk-shake & Claude/ obcecado com anjos/ ou vastos motores que giram com/ uma graça seráfica/ tocar o banjo da Lembrança/ sem o amor encontrado/ provado/ sonhado (...). (de “Piazza I”, em Piazzas) (PIVA, 2005, p.79); Tarde de estopa carcomida/ e pêssego com marshmallow no Lanches Poncho/ meu pequeno estúdio invadido por meus amigos/ bêbados/ Miles Davis a 150 quilômetros por hora (...) minhas almas estão sendo enforcadas/ com intestinos de 9

“O Inferno Musical”, “Paraíso” e “O Jardim das Delícias” são títulos de poemas de Piazzas.

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esqualos/ meus livros flutuam horrivelmente/ no parapeito meu melhor amigo/ brinca de profeta/ no meu cérebro oito mil vaga-lumes/ balbuciam e morrem. (de “Poema lacrado”, em Paranoia) (Ibid., p. 54-55).

Já o posfácio de 20 poemas com brócoli é, efetivamente, uma releitura de sua própria reunião de poemas, e se encontra estrategicamente ao final do livro num movimento “crítico” consciente de comunicação com o público:

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“O poeta faz-se vidente mediante um longo, imenso e sistemático desregramento de todos os sentidos.” Assim Rimbaud definia a passagem da Poesia para a Vidência. Tendo essa afirmação em mente, o leitor deve entrar neste livro para percorrer as veredas do sonho & da Paixão através das quais cheguei a reunir estes estilhaços de visões. (...) Foi repensando Dante Alighieri & relendo o Inferno & o Paraíso (na magnífica edição ilustrada que me foi presenteada pelo escultor italiano Elvio Becheroni) que surgiram, numa síntese caligráfica & na eletricidade de uma manhã paulista de 1979, estes 20 poemas com brócoli. (...) Marinetti, Reverdy & o jazz têm também muito a ver com este livro no que diz respeito ao Ritmo. (PIVA, 2006, p. 116)

O viés crítico mais rigoroso também pode ser prontamente encontrado neste tipo de texto: Em todos os meus escritos procurei de uma forma blasfematória (Paranoia) ou numa contemplação além do bem & do mal (Piazzas) a la Nietzsche explicitar minha revolta & ajudar muitos a superar esta Tristeza Bíblica de todos nós, absortos num paraíso desumanizado, reprimido aqui & agora. (...) Já em minhas conversas com Willer & leituras de Freud, Desnos, Ferenczi, Monnerot, eu consolidava mais & mais minha ideia da Poesia como instrumento de Libertação Psicológica & Total, como a mais fascinante Orgia ao alcance do Homem. (“Posfácio”, em Piazzas) (Idem, 2005, p. 129).

Sempre se insinua a tentativa de encontrar no próprio fazer-


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poético, ou, concomitante à sua apresentação, o ato de pensar a criação mediante uma escrita que relê criticamente a própria obra, ao mesmo tempo em que se projeta na dimensão vivenciada de seus temas e conteúdos. Ao final, impulsionando emoções e ações a ser representadas nesta poesia, o experimentalismo, aqui, não abdica da revisão ou releitura crítica de suas apropriações.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ARRIGUCCI JR., Davi. “O Mundo Delirante (A poesia de Roberto Piva)”. In: PIVA, R. Estranhos Sinais de Saturno. Obras reunidas vol. 3. São Paulo: Globo, 2008. ARRIGUCCI JR., Davi. “O cavaleiro do mundo delirante”. In: PIVA, R. Paranoia. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2010. MORAES, Eliane Robert. Posfácio. In: Mala na mão & asas pretas. Roberto Piva - Obras Reunidas. Volume 2. Alcir Pécora (Org.). São Paulo: Globo, 2006.

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PÉCORA, Alcir (Org.). Roberto Piva. Um estrangeiro na legião. Obras Reunidas Volume 1. Nota Editorial. São Paulo: Globo, 2005. PÉCORA, Alcir “Piva deixa obra marcada pela provocação”. Folha de São Paulo, São Paulo, 06 jul. 2010. Caderno Ilustrada, p. E5. PIVA, Roberto. 20 poemas com Brócoli. São Paulo: Global, 1981. PIVA, Roberto. Ciclones. São Paulo: Nankin Editorial, 1997. PIVA, Roberto. Paranoia. Fotografado e desenhado por Wesley Duke Lee. 2ª ed. São Paulo: Instituto Moreira Salles e Jacarandá, 2000. PIVA, Roberto. Quizumba. São Paulo: Global, 1983.


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A ESTéTICA DIASPÓRICA NA CONSTRUÇÃO DA(S) IDENTIDADE(S) NAS SOCIEDADES PÓS-COLONIAIS: UM ESTUDO SOBRE CLARICE LISPECTOR E MIA COUTO.

No início, viajamos porque líamos e escutávamos, deambulando em asas feitas de papel, em asas feitas de antigas v o z e s . Hoje viajamos para sermos escritos, para sermos palavras de um texto maior que é a nossa própria vida. (2011, p. 76)

Márcia Pereira da Veiga Bucheb (UNESA/UFRJ) A pesquisa pretende analisar a relação das personagens criadas por Clarice Lispector e Mia Couto – respectivamente, em A Hora da Estrela e Terra Sonâmbula –, com os elementos transpostos da história contemporânea à escrita, mediante à observação do registro do processo de “zona de contato”, nos termos de Stuart Hall. A partir do conceito de performance, como encenação e postura crítica da pós-modernidade – segundo Linda Hutcheon–, analisamos o processo escrita/leitura, em ambas as narrativas, como consolidação da “estética diaspórica” por permitir que as personagens assumam a fala em presença; revelando, por um lado, o esvaziamento dos significantes e a recodificação dos sistemas de comunicação, por outro, a tentativa de recuperação da memória dos códigos culturais ancestrais para valorizar a edificação do futuro. Nesse sentido, os fatos da História, que pontuam a ficção e com ela dialogam, assinalam o aspecto paródico das narrativas da pós-modernidade e situam-se como cenário móvel para a construção de uma versão de um lugar para onde se possa voltar, mesmo que no imaginário do cidadão em situação de pós-guerra ou do excluído da sociedade de consumo. PALAVRAS-CHAVE: estética diaspórica, performance, polifonia, pósmodernidade.

Inicio meu texto citando um questionamento proposto por Mia Couto, em sua mais recente obra E se Obama fosse africano: “O que nos leva à errância quando bem podíamos ficar quietos?” ( p.71). A indagação tem como resposta uma razão atávica: os seres humanos têm uma “necessidade intrínseca e constante de partir, vasculhar”. A questão do nomadismo, da errância, nesses termos, deixa de ser um movimento que nasce do desconforto, para ser justificado, antropologicamente/biologicamente, como uma pulsão de sobrevivência física, que se manifesta hoje como sobrevivência/reconhecimento intelectual –

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Ler e escutar possibilitam a viagem, a errância e o reconhecimento. Por outro lado, ler e escutar, escrita e fala, constituem o centro de outro tema bastante caro ao autor: a denúncia da importância dada à escrita, em detrimento da oralidade. Sua tese é a de que, ao se instalar a lógica da escrita em Moçambique, de forma hegemônica, teme-se perder “pressupostos filosóficos do mundo rural”( 2011, p.78) transmitidos pela oralidade e a lógica que lhe é inerente, a demarcar as fronteiras de seu território. Isso nos leva a pensar sobre a importância que o tema toma em sua obra, qual seja: a bipolaridade cultura oral/ cultura escrita, assim como a consideração dessa zona de atrito entre dois modos de manifestação, que trazem em seu bojo “lógicas” particulares e excludentes. Como propõe o autor: É preciso estar livre para mergulhar no lado da não-escrita, é preciso capturar a lógica da oralidade, é preciso escapar da racionalidade dos códigos da escrita enquanto sistema de pensamento. (...) Não se trata de visitar o mundo da oralidade. Trata de deixar-se invadir e dissolver pelo universo das falas, das lendas, dos provérbios.”(2011,p.108)

Mais do que apenas um modo de expressão, dessa forma, a oralidade é um termo que “transcende o sentido das orientações anteriores de ‘tradições orais’ para abraçar a noção de conceitos generalizados, símbolos, capacidades retóricas, e até suposições inarticuladas cuja inspiração é a totalidade da cultura oral”, segundo Quayson − em um estudo intitulado “Realismo mágico e o romance africano” (2009). Assim, paradoxalmente, para “partir” a direção pode ser incerta, em círculos, pode, até mesmo, não significar um movimento de quem fala, mas da terra que se habita; não se pode perder de vista,


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entretanto, a origem. Mais do que isso: a origem entranhada, constituída pela memória de uma instrução ancestral, é recuperada pelo modo de contar desse viajante, falseando a escrita em oralidade, presentificando a fala por meio da sua imitação, como se lê em Terra Sonâmbula (2007), de Mia Couto. A presença da fala, entendida como ato enunciativo, ou a referência à produção do texto que se constrói pela leitura, em tempo presente, remete à percepção da feição performática de sua construção, ou seja, de compreendê-lo como discurso, atualizando permanentemente sua compreensão e seus significados. No entanto, como sua estrutura se edifica a partir da certificação de sua atualidade, não raro ampara-se em referências históricas que possam validar o pertencimento a um presente enunciativo. Se em Terra Sonâmbula, a cronologia se estabelece pela independência de Moçambique, cuja data nomeia um dos personagens, em A hora da estrela, o presente é uma marca de refrigerante. A escolha por essas obras, então se explica pelo fato de que ambas as narrativas se constroem em tempo presente, ou procuram certificar o leitor disso, apresentam-se como “performance”[1], ou seja, teatralização, encenação da atividade da escrita, parodiando não apenas a produção do texto literário e suas agruras, no caso clariceano, mas também a atividade da leitura, a recepção da obra. Para Hutcheon, a performance cria um processo dinâmico de geração de sentido, concedendo ao leitor um papel de “colaborador” da construção do texto, decorrente do caráter irônico ou paródico de narrativas da pós-modernidade, pois consideram o produtor do texto e seu lugar de enunciação 1 A interface do termo se estabelece entre a linguagem cênica e a linguagem literária, na medida em que se coloca como uma definição para a representação de uma ação em outro topos, que seria o da ressignificação dos constituintes do fazer narrativo. Citando Marvin Carlson: a performance seria uma “arte completa, na qual ambas, a passagem do tempo e a separação etnre o observador e o observado cessam de existir.” ( CARLSON, 2009, p.143)

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como significativos para a constituição do sentido da obra e da sua compreensão. Consideradas as devidas distinções entre momentos históricos e contextos geográficos, as obras de Clarice Lispector e Mia Couto trazem à cena a operação delicada da versão ficcional e o questionamento de sua capacidade de representação das realidades, por identidades móveis, descentradas, em construção. Mais ainda, pela problematização do choque das referências atávicas, ou transmitidas pela oralidade, e a impossibilidade de acordo com um presente determinado pela força dos instrumentos da sociedade de consumo ou pela devastação do panorama pósguerra. Assim,“estética diaspórica”, em nossa acepção particular, representa-se pelo mapeamento dos significados, nos contextos ficcionais, da inserção de elementos – signos, símbolos, parábolas, lendas, marcas da oralidade ou de variações regionais, etc–, representativos de culturas diversas nas obras literárias dos autores escolhidos, em situação de uso, ou seja, em performance do ato enunciativo. Na verdade, a expressão foi cunhada por Kobena Mercer, em citação de Stuart Hall: Numa gama inteira de formas culturais, há uma poderosa dinâmica sincrética que se apropria criticamente de elementos dos códigos mestres das culturas dominantes e os “criouliza”, desarticulando certos signos e rearticulando de outra forma seu significado simbólico. (apud Hall, 2009, p. 33)

Apesar de entendermos que a operação de crioulização é comum aos dois textos, observamos que o sincretismo não se realiza em síntese, mas em antítese. As oposições se impõem como aspecto atrativo, que encanta por apresentar-se como novo e diferente, o que não quer dizer que tenha sido compreendido dentro de sua lógica original. Nessas “zonas de contato”, de onde nascem as relações de apreço ou rejeição, instaura-se a estética diaspórica. Até porque Hall chama a atenção para a impossibilidade de se


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considerar o conceito de diáspora apoiado em uma diferença entre “eu” e “outro”, pois não se trata de uma relação binária, mas de compreender que a noção de identidade cultural remete à noção “derridiana de différance – uma diferença que não funciona através de binarismos, fronteiras veladas que não separam finalmente, mas são também places de passage, e significados que são posicionais e relacionais, sempre em deslize ao longo de um espectro sem começo nem fim. (...) Sempre há o “deslize” inevitável do significado na semiose aberta de uma cultura, enquanto aquilo que parece fixo continua a ser dialogicamente reapropriado. (HALL, 2009, p. 33)

Articulando com o que propõe Homi Bhabha, resguardadas as diferenças de posição, o que hoje é inovador é a “necessidade (...) de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação das diferenças culturais” (p.19). E é exatamente nessa “zona intersticial”, nesse “entre-lugar”, na “emergência dos interstícios (...) que as experiências intersubjetivas e coletivas de nação, o interesse comunitário ou o valor cultural são negociados.” (2010, p.20). Assim, o sujeito pós-moderno não tem “uma identidade fixa, essencial ou permanente. E também, não pode por isso ser sincrética. A identidade torna-se uma celebração móvel: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.”( apud HALL, 2006, p12-13). Nesse sentido, observamos expedientes semelhantes nas duas narrativas escolhidas, como instrumentos de distanciamento do narrador e a instauração de uma relação de dependência com a leitura do texto, que se consubstancia em estratégia paródica que contextualiza e supõe o leitor em situação de questionamento das identidades e do confronto entre orientações culturais diversas. Procurando respeitar a ordem cronológica de publicação, Em A Hora da estrela, o papel do leitor é fundamental, pois ele é

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instado a estabelecer com o enunciador do texto – um narradorpersonagem– um pacto de fidelidade, cumprido apenas por um dos lados: o leitor. Isso porque a autoridade de narrador foi concedida por uma questão de gênero, e não de competência. A delegação da voz narrativa surpreende o leitor, mas simultaneamente reforça a estratégia irônica de abordagem da obra: um eficiente procedimento que se compreende como crítica ao contexto social e ao patrulhamento exercido pelo controle ideológico, da época. Afinal, a novela foi publicada em 1977, período em que as narrativas sobre tortura e exílio, no Brasil, alcançaram sucesso, como observou Flora Sussekind (1985) acerca da leitura como purgação da culpa da classe média. A contrapelo da tendência narcotizante da literatura produzida neste período, Clarice denuncia a violência comezinha, silenciosa, da cidade contra os que chegam de longe. O enredo nos conta sobre Macabéa, a alagona órfã de pai e mãe, criada por uma tia rigorosa e fria. Aprendera datilografia, mas, como sua instrução era precária, apenas copiava as letras. Seguindo essa descrição, percebe-se que há elementos para a condução de uma narrativa dramática, ou melodramática – alertado que foi o leitor de que era “literatura de cordel” (p. 48) – afinal a moça não tem nada, nem a perspectiva da esperança. Macabéa, porém, frustra a expectativa, escapa de ser vítima, porque, acometida pela sensibilidade e destituída de maldade, ela sonha em ser estrela, de ser reconhecida como uma estrela de cinema. As referências às mídias, que vendem imagens de consumo como estratégia de ascensão social, dão um chão à narrativa: a cidade, a metrópole e seus emblemas culturais. Ao mesmo tempo, informa o leitor sobre a relação que a personagem estabelece entre a propaganda e a sua compreensão desses signos, assim como a sua assimilação. Nesse sentido, a problematização do uso da língua revela o processo hibridizante dos signos culturais do ambiente urbano da região Sudeste àqueles que marcam a singularidade do Nordeste.


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A dificuldade de compreensão manifestada por Macabea de sua própria língua sugere a não-equivalência dos significantes a conteúdos simbólicos consolidados, bem como o desconhecimento do vocabulário, motivando um processo de recodificação do próprio idioma. Esse processo, no entanto, não se coloca como impedimento, na medida que a personagem se apropria dos vocábulos, mas a eles não atribui nenhum significado, apaixonase pelos significantes vazios, eventualmente modificando sua estrutura: “Havia coisas que não sabia o que significavam. Uma era “efeméride”. E não é que Seu Raimundo só mandava copiar com sua letra linda a palavra efemérides ou efeméricas? ”(p. 56). A fenda, que se abre entre os significantes e os significados do código línguístico, aprofunda-se em diversos momentos da narrativa, expondo as distâncias sociais e exigindo do leitor uma operação de desdobramento pela incongruência dos enunciados. Por um lado, os diálogo “ocos” significam a ausência de sentido ou de importância do que dizem as personagens; por outro lado, mais do que o humor, ou a piedade, o que se pretende é denunciar o excesso de informações supérfluas acumuladas, que bem poderiam caber em outro contexto, cujos interlocutores fossem outros. O fato de Macabéa mencionar as informações da Rádio Relógio, por exemplo, como citações de um outro texto, deslocam o cerne da conversação do conteúdo para a forma, nesse caso a retórica vazia. É interessante assinalar que a constituição da identidade do imigrante nordestino não se apresenta de maneira idêntica na obra, pois Olímpico de Jesus, ao apropriar-se dos símbolos de poder, usa de expedientes violentos, proporcionalmente à percepção que tem de si, como alguém tão distante dos padrões necessários à inclusão na sociedade de consumo. A violência, que atinge o clímax, pela referência ao histórico de homicídio, continuará sendo o motor de sua suas ações, no entanto deslocada para os atos de corrupção, como político. A máscara do êxito social, deputado que se tornará no futuro, mal encobre a identidade nordestina, imigrante, cujo

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lugar de destino é o da força bruta e do anonimato – “(...) ele não era inocente coisa alguma, apesar de ser uma vítima geral do mundo.Tinha, descobri agora, dentro de si a dura semente do mal, gostava de se vingar, este era o seu grande prazer e o que lhe dava força de vida.” (p. 64). Enquanto Olímpico atinge seus objetivos por meio da manipulação oportunista e trapaceira das situações, Macabéa é desprovida de sentimento de revanche. O confronto deliberado entre dois tipos de inserção na sociedade de consumo é atravessado pela concepção de sujeito sociológico em direção à constituição do sujeito pós-moderno, nos termos de Hall:

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O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está-se tornando fragmentado; composto de várias identidades (...) Correspondentemente, as identidades que compunham as paisagens sociais “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as necessidades objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. (2009,p.12)

Em outras palavras, o convívio de cidadãos urbanos, inseridos na sociedade de consumo, com aqueles que se deslocam da zona rural em busca de trabalho configura uma zona de conflito, cuja violência se mede pela rejeição aos hábitos, costumes, sotaque, prosódia, que tanto podem ser lidos numa clave cultural, ou como indicador de ausência de traquejo social ou poder aquisitivo. O drama de Rodrigo S.M., narrador instituído, sim, é desolador, ele não tem matéria-prima para escrever a sua obra, sua personagem lhe escapa. A mudança que Macabéa opera na constituição do narrador impõe, mediante o impacto da diferença, a sua individuação, que se consubstancia pela construção polifônica do texto. Assim, a personagem assoma a narrativa em presença, recortando-se na temporalidade do presente, marcada e “patrocinada” por uma marca de refrigerante. Uma ironia, sem


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dúvida, que se constrói pela menção à atualidade da narrativa, bem como pela atualização pelo leitor que registrará o objeto de consumo, a marca como pista de leitura para o tempo da enunciação. A multiplicidade de vozes que se fazem presentes – e em diálogo com o narrador constituído e o leitor – explicitam a impossibilidade de se considerar a identidade como uma construção monolítica, mas em processo, em diálogo, em discurso. No entanto, a percepção do “outro”, recriada pela sua presença em voz, é feita a partir de um lugar determinado no contexto histórico e social, como ensina Bakhtin, no exercício de apreensão do outro: Eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, completar o horizonte dele com o excedente de visão que desse meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão, do meu conhecimento da minha vontade e do meu sentimento. (BAKHTIN, 2003 p. 23)

Daí ser paradoxal exigir-se um recorte fiel desse embate, porque, ao fim e ao cabo, o registro é sempre complementado pela natureza subjetiva da estética verbal. E talvez seja essa a maior denúncia do texto clariceano: a impossibilidade de tornar-se porta-voz, porque aquele que porta, que traz a voz em presença, acaba por emprestar o seu tom e ritmo. Vamos voltar a essa questão após a apreciação de Terra Sonâmbula. O expediente performático não encontrará em Mia Couto igual solução para a apreciação da estética diaspórica, ou a descrição do embate entre os registros oriundos de culturas variadas. Até porque a situação de pós-guerra, de luto colonial, exercerá grande peso na criação ficcional, haja vista a constituição conflituosa das identidades, firmemente marcada após a independência. Em Moçambique: identidade, colonialismo e libertação, José Luis

Cabaço, em uma análise detalhada sobre a história do país, chama a atenção para um aspecto desse confronto entre as culturas diferentes, a do colonizador e a do colonizado, que transcrevo: Criar um vínculo com a história e a cultura portuguesa, com a nação lusitana, era o objetivo das políticas coloniais. As políticas de identidade eram determinadas pela necessidade de impor às sociedades existentes no território um sistema de “regras” que o colonizador dominava e o colonizado desconhecia, afirmando a própria “superioridade” no controle social e determinando a instabilidade emocional e a inibição cultural do outro. (2009, p.318)

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Ao se focalizar a construção de identidade, no caso das sociedades pós-coloniais mais recentes ou que se libertaram de uma relação colonial mais recentemente, no que se aplica à sociedade moçambicana, segundo o autor, há aspectos que não podem ser ignorados, pois “a identidade, sendo sempre em processo, em permanente dialética com o passado e com o outro, não se conclui e nunca assume o perfil dos modelos prescritivos”(2009, p. 320). O ideal de moçambicanidade como representação identitária coletiva está longe de se realizar, uma vez que ao longo do processo de colonização, seja pelas políticas de assimilação, seja pela tentativa de “construção da unidade nacional” pela FRELIMO (Frente de Libertação Nacional), a composição da identidade de uma nação multiétnica se fundou sobre um paradigma bipolar de adesão ou exclusão aos projetos de colonialismo ou de ruptura com esse sistema, os quais tomavam para si a tarefa ou de anular as diferenças pela força, ou pelas “narrações de sofrimentos”[2]. A performance se estabelece na narrativa a partir da leitura dos diários de Kindzu, dispostos em cadernos encontrados em uma mala ao lado de um cadáver. Muidinga, o leitor, acompanhado de um idoso, Tuahir, perambulam pelas estradas de um país devastado pela guerra. Enquanto lêem os diários, os personagens Técnica desenvolvida pela FRELIMO para ganhar a confiança dos membros de sociedades tribais.

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percebem que a paisagem que os cerca muda constantemente, tornando-se sempre outra e apresentando novos desafios e surpresas. Paralelamente, a performance da leitura de Muidinga, conduzindo a narrativa, em tempo presente, atualiza as aventuras e desventuras do suposto autor dos diários, Kindzu. Constitui o centro do enredo a busca de Gaspar, filho de Farida, mulher por quem Kindzu se encanta, mas que lhe dá a exata dimensão de suas diferenças: (...) nós dois estávamos divididos entre dois mundos. A nossa memória se povoava de fantasmas da nossa aldeia. Esses fantasmas nos falavam em línguas indígenas. Mas nós já só sabíamos sonhar em português. E já não havia aldeias no desenho do nosso futuro. (...) E sobretudo, culpa nossa. Ambos queríamos partir. Ela queria sair para um mundo novo mundo, eu queria desembarcar numa outra vida. Farida queria sair da África, eu queria encontrar um novo continente dentro da África.. (p. 93)

Como se observa, no fragmento transcrito, a identidade das personagens se constrói pela percepção da duplicidade estrutural formada pela hibridização de culturas sobrepostas e pela dupla determinação: ficar e partir. A solução para o conflito se coloca como a evasão do contexto particular de guerra e da situação de angústia ante as determinações sócio-culturais que já os descaracterizara de todo. As personagens se ressentem da história perdida, assombrados pelos fantasmas de uma cultura ressentida e morta, apenas recuperada pela memória. Os episódios se apresentam em dois eixos: os vivenciados em tempo de leitura da narrativa por Muidinga e Tuahir, e no passado, que se registra no texto de Kindzu. Em ambos, assomam personagens fantásticas, em cujas falas se observam a presença da “oralidade” africana; em outras palavras, o recorte de um imaginário particular, mas cuja expressão tem que ser feita por uma língua que adapta a lógica dos idiomas tribais a uma sintaxe

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discursiva e semântica outra. Daí, a fluidez da narrativa, o sonambulismo da terra que não acorda de seu estado de torpor e latência. Assim, embora se observe a presença do discurso direto, como um expediente polifônico, esse decorre já de uma tradução anterior, de uma duplicação da inscrição do texto: por um lado, denuncia a urgência de sua singularização; por outro, o faz pela língua daquele que tem os mecanismo para fazê-la ouvir. Consciência que o escritor tem de sua situação de tradutor nesse universo de fronteira em que ele se coloca. Para superar o impasse de mediador, o narrador vê-se obrigado a recriar a língua, empregando provérbios, crendices, “sabenças”, desdobrados em neologismos e emprego de uma retórica poética, repleta de metáforas, sinestesias e recursos estilísticos fonéticos e de construção. Reconstruir a linguagem, nos termos rosianos, emprestando a seu produto a sonoridade oral, sua prosódia e encantamento, torna-se uma solução de tradução. Em conseqüência, a dificuldade em emprestar a palavra aos personagens, para que se contem por si mesmos, transparece na narrativa pela falsidade de um “eu” que inicia o relato, mas depois é trocado pela voz onisciente de Kindzu. Como se observa no trecho “Me chamo Farida, começou a mulher o seu relato.” (P. 70), o narrador não delega a voz narrativa, apenas a apresenta em discurso direto, o que denota, por um lado, a dificuldade em desdobrar sua voz e, por outro, o onisciência narrativa. No penúltimo capítulo, no entanto, a parceria Muidinga/Tuahir se desfaz, pois o velho adoece e pede para o menino colocar o seu corpo no mar, encerrando o processo de construção narrativa estabelecido desde o primeiro capítulo e estabelecendo uma nova interlocução: Kindzu e leitor. A mediação da leitura desaparece e o leitor é surpreendido no último capítulo, pois revela a situação de personagem do menino Muidinga, cuja identidade – ele é o menino Gaspar – será revelada pelo fantasma-autor Kindzu, que se explica e se despede das lembranças, para tornar-se sombra.


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A voz que se apaga, aos poucos, permite que o feiticeiro, representação da oralidade, interprete o contexto: REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Foi por isso que fizeram esta guerra, para envenenar o ventre do tempo, para que o presente parisse monstros no lugar de esperança. Não mais procureis vossos familiares que saíram para outras terras em busca da paz. Mesmo que os reencontreis eles não vos reconhecerão. Vós vos convertêsteis em bichos, sem família, sem nação. Porque esta guerra não foi feita para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós.(p. 201)

A narrativa dissolve-se juntamente com a despedida do narrador, que sabe que o relato decorreu da viagem em uma estranha estrada, que o descaminhou. A morte de Kindzu faz nascer a voz do narrador da obra, aquele que faz chegar às mãos das personagens os textos para serem lidos, explicando-se em uma estratégia circular a criação da narrativa. Macabéa também morre, entregue ao chão dos paralelepípedos, tornando-se matéria vegetal, e matando o narrador, que sem ela perde sua identidade narrativa. Morre em posição fetal, berço que é de todas as outras Macabéas que fará viver com sua existência fictícia. Quem são Kindzu e Macabéa? Seus corpos feitos de palavras repousam no chão movente de Gondwana, berço deslizante, condição errante primeira. Sua permanência, atualizada pelo sopro da leitura: presente – tempo eterno.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução: Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003 (Coleção Biblioteca Universal) BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: ed. UFMG, 1998. CABAçO. José Luis. Moçambique: identidade, colonialismo e libertação.São Paulo: Editora UNESP, 2009.

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CARLSON, Marvin A. Performance: uma introdução crítica. Trad. Thais Flores Nogueira Diniz, Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. COUTO, Mia. Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? E outras interinvenções. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. HALL, Stuart. Identidade e diferença.9.ed.Petropólis, RJ: Vozes, 2009. HALL, Stuart. Da diáspora:identidades e mediações culturais. Trad. Adeliane La Guardiã Resende...et al. 1. ed. Atualizada. Belo Horizonte: UFMG, 2009.


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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11 ed. Rio de Janeiro:DP&A, 2006. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991. (Série Logoteca) LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 22.ed Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. QUAYSON, Ato. Magical realism and the African novel. In: Cambridge Companion to the African Novel. Ed. F. Abiola Irele. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2009. SUSSEKIND, Flora.Literatura e vida literária: polêmicas, diários e retratos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

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A VOZ (ATé ENTÃO) SILENCIADA: A expeRiênCiA de seR mULheR nO BILDUNGSROMAN FEMININO CONTEMPORÂNEO[1] Maria Alessandra Galbiati (UNESP-SJRP) Neste artigo, objetiva-se tecer algumas considerações sobre o universo ao qual estão circunscritas as protagonistas Molly Bolt, Edith Hope e Nomi Nickel, nos Bildungsromane femininos Rubyfruit Jungle (1973), Hotel du Lac (1984), e A complicated kindness (2004), respectivamente. Considerando que cada texto literário dialoga direta ou indiretamente com sua época e seu contexto cultural, esses romances retomam criticamente os valores humanistas da Bildung germânica dos finais do século XVIII (aperfeiçoamento individual associado com a vontade autônoma de enriquecimento interior, amplitude intelectual, elevação moral do caráter e desenvolvimento de talentos próprios em prol da comunidade) e incentivam novas concepções de autoformação, relacionadas com evasão e resistência à socialização, com esferas sociais desarmoniosas, ou com processos de formação da identidade híbridos, ambivalentes ou traumáticos. Tendo em vista que tais indivíduos femininos representados são seres sempre em devir de autoformação, o processo de aprendizagem e de transformação das heroínas é constantemente problematizado. Sob tal perspectiva, ao se observar as três trajetórias, pretende-se verificar como a representação das protagonistas questiona as relações de gênero, reflete a imagem da mulher e reavalia suas experiências nos seus respectivos processos de (auto)formação na contemporaneidade. PALAVRAS-CHAVE: Bildungsroman. Autoria feminina. Ficção de língua inglesa. Rita Mae Brown. Anita Brookner. Miriam Toews.

Na história literária ocidental, sabe-se que a produção de textos revela-se predominantemente masculina. As mulheres foram inclusas, mas, não havia plena participação. A marginalidade do 1 Este artigo baseia-se no projeto de doutorado, com o auxílio da bolsa CAPES, intitulado Revendo o gênero: formação e representação da mulher no Bildungsroman feminino contemporâneo, sob a orientação do Prof. Dr. Peter James Harris, do Programa de Pósgraduação em Letras da UNESP em São José do Rio Preto-SP.

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status da mulher escritora pode ser explicada pelo fato de que ela sempre esteve inserida numa cultura literária organizada por normas, valores, julgamentos e leis patriarcais. Por isso, não só a escrita lhe era uma ideia impossível ou inconcebível, como também fazer parte de comissões editoriais, científicas e postos de liderança nas universidades. O ato de escrever para a mulher lhe foi historicamente negado. Por muito tempo, a ideia de conciliar a criatividade, a independência e a vida doméstica das mulheres era incompatível, devido a conceitos hegemônicos e patriarcais predominantes em vários campos sociais e culturais. No entanto, ao mesmo tempo, sabe-se que as mulheres sempre escreveram muita ficção, embora pesquisas de/sobre o resgate e de/sobre o reconhecimento de uma tradição literária feminina sejam recentes, o papel social tradicional dado à mulher censurava a possibilidade de oficialização da autoria feminina. Na década de 1920, Virginia Woolf já escrevera ensaios sobre a escrita de mulheres, perguntando-se quais eram as barreiras que as mulheres enfrentam na tentativa de produzirem literatura; por que não havia uma escrita feminina contínua antes do século XVIII; quais são as consequências, para a mulher autora, das mudanças histórias da posição das mulheres na sociedade. Em Um teto todo seu, na sua fábula sobre Judite, a fictícia irmã de Shakespeare, radicalizou sua posição: “qualquer mulher nascida com grande talento no século 16 teria certamente enlouquecido, ter-se-ia matado com um tiro, ou terminaria seus dias em algum chalé isolado, fora da cidade, meio bruxa, meio feiticeira, temida e ridicularizada” (WOOLF, 1985, p. 65). No século XIX, nem mesmo às (poucas) mulheres instruídas e pertencentes a uma classe social cheia de recursos era concebível a ideia de se tornar escritora, mesmo que tivesse vocação. A impossibilidade de uma mulher tornar-se escritora acompanhou o século XIX e entrou no século XX, por conta da associação à imagem da mulher ideal (“o anjo do lar”). O discurso sobre o papel feminino


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impõe-se na sociedade burguesa em ascensão, definindo a mulher, quando maternal e delicada, como força do bem. Quando sai da esfera doméstica ou rejeita atividades que lhe são culturalmente atribuídas, torna-se potência do mal, um monstro. A divisão radical entre a esfera pública (presidida pelo homem) e a esfera privada (protagonizada pela mulher) está no cerne do conceito burguês (e patriarcal) de família, uma vez que as tarefas desempenhadas pela mulher – no âmbito do lar – deixaram de ser consideradas trabalho, sendo solapadas pelas ideias de amor, felicidade familiar e harmonia doméstica. Tal discurso trouxe profundas repercussões na vida e na condição da mulher contemporânea. Ao longo do século XX, viu-se o fortalecimento de um pensamento feminista contrário à imagem estereotipada da mulher, a sua área de atuação restrita e a suas atividades delimitadas, reivindicando respeito, liberdade e igualdade de oportunidades. Na ficção, “o anjo e o monstro são aspectos da imagem da autora e suas estratégias antipatriarcais”. As autoras dos séculos XIX e XX criaram suas personagens sob o constructo anjo-monstro, “independentemente de seu estado de humor [...], desenvolvendo ações simbólicas que subvertem a opressão patriarcal e denunciam a exclusão feminina enraizada na cultura e, conseqüentemente, na literatura” (BONNICI, 2007, p. 22-23). As mulheres propiciaram transformações na produção, recepção e publicação de obras, na construção de metáforas e no tratamento de temas da literatura. Segundo Bonnici (2007), a literatura de autoria feminina contemporânea adotou várias alternativas: a) a representação positiva através de personagens femininas fortes, independentes dos protagonistas masculinos; b) a introdução de uma literatura que focaliza áreas especificas ou unicamente femininas (experiências de nascimento ou estupro ou de ser ignorado pelos homens); c) a mera focalização da consciência da personagem feminina sem atitudes conscientemente políticas ou de confronto.

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A pergunta que se faz é: por que a voz da mulher foi silenciada na história literária ocidental? Elaine Showalter (2009) sugere algumas hipóteses: Talvez essas mulheres, e outras como elas, chegaram à maturidade no momento errado, entre dois movimentos. Quiçá, eram muito contaminadas pelo sentimentalismo ou eram muito radicais. Possivelmente, eram muito limitadas e intensas. Talvez elas não tenham explorado suas vidas interiores; talvez as explorassem muito insistentemente. Ou, por ventura, essas escritoras, no meio de tantas outras, precisassem de uma crítica que julgasse sua igualdade, a fim de se analisar seus trabalhos, para explicar os seus símbolos e significados e demonstrar a sua contínua relevância para todos os leitores (p. xi, tradução nossa).

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A herança do silêncio foi questionada com o surgimento do Feminismo. Caracterizando-se como um movimento de libertação e reivindicação, em suas múltiplas manifestações, na Europa e nas Américas, denunciou a existência de formas de opressão que não se limitavam ao econômico: os feminismos romperam com os modelos políticos tradicionais, despertando a conscientização de que as relações interpessoais contêm um componente de poder e de hierarquia. Assim, o discurso feminista “busca repensar e recriar a identidade de sexo sob uma ótica em que o individuo, seja ele homem ou mulher, não tenha que adaptar-se a modelos hierarquizados, e onde as qualidades “femininas” ou “masculinas” sejam atributos do ser humano em sua globalidade” (ALVES & PITANGUY, 2007, p. 9). Mudança significativa aconteceu quando as mulheres conquistaram politicamente poderes diversos na cultura em geral e nas humanidades em particular. Essa transformação deve-se em parte à luta das várias frentes feministas, e, de modo especial, aos Estudos Feministas e de Gênero. Tais estudos oferecem uma postura ética para uma comunidade justa, livre de preconceitos classistas, raciais e sexuais.


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A década de 1970 foi importante nesse processo de transformação: a sexualidade e a mentalidade femininas começaram a sofrer uma redefinição. Havia uma vontade de mudar “de protestos contra a vitimização para a asserção da determinação feminista na transformação política, espiritual, estética e sexual” (SHOWALTER, 2009, p. 441, tradução nossa). Sendo a década do despertar, as ativistas demonstraram otimismo e determinação sobre as possibilidades de mudança nas relações entre mulheres e homens, e mulheres e sociedade. Refutando os estereótipos historicamente construídos, as escritoras tinham um novo mundo para criar e, assim, a ficção de autoria feminina começava a trilhar novos caminhos. Para elas, o feminismo prometeu o fim do status de segunda classe, difamação e autocensura. Isso significou a legitimação de sua criatividade; não faz muito tempo, as mulheres deviam pedir a permissão de seus pais, professores ou maridos para escrever [...]. Em um tempo não tão longínquo, as escritoras deviam se censurar com o intuito de não ofender as convenções tradicionais de feminilidade (SHOWALTER, 2009, p. 442-443, tradução nossa).

Estudos críticos e literários sobre o feminismo estavam surgindo, uma vez que havia um novo território – o da escrita da mulher – a ser mapeado e explorado. O direito da mulher em expressar sua singularidade exigiu atenção imediata de filósofos, historiadores, acadêmicos, críticos literários, escritores, etc. A crítica literária feminista tem como marco a publicação de Sexual politics (1970), de Kate Millett. Essa corrente crítica participa tanto da redescoberta e reavaliação da escrita de autoria feminina, como também envolve a releitura da literatura do ponto de vista da mulher. Vários textos suprimidos ou perdidos de autoria feminina foram recentemente (re)descobertos e recuperados, promovendo um reexame no conceito de cânone literário:

Desde a década de 1970, estudiosos da literatura norteamericana propuseram-se a mudar o cânone literário, por meio do redescobrimento e da reimpressão de centenas de trabalhos perdidos, esquecidos ou negligenciados de escritoras. Agora, se tem os principais textos, às dezenas, de autoras do século XVII ao XX, tais como biografias, edições de cartas, antologias e coleções pioneiras de ensaios críticos (SHOWALTER, 2009, p. xiii, tradução nossa).

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A redescoberta de textos perdidos, esquecidos ou negligenciados de autoria feminina provocou uma discussão acerca dos critérios de constituição do cânone literário ocidental, além da percepção de que a mulher enquanto leitora e escritora possuía uma experiência distinta da do homem, trazendo consigo “significativas mudanças no campo intelectual, marcadas pela quebra de paradigmas e pela descoberta de novos horizontes de expectativas” (ZOLIN, 2009, p. 217). Sabe-se que esses textos não estavam perdidos, mas simplesmente suprimidos porque, no contexto das normas sexuais contemporâneas, eram altamente críticos para sobreviver à crítica masculina. Considerando que “a finalidade da crítica literária e da leitura feministas é focalizar a constituição do estilo, da imagística e das características do patriarcalismo numa determinada obra” (BONNICI, 2007, p. 49), a crítica feminista instrumentaliza uma leitura que desarranja as relações historicamente patriarcais, responsáveis por colocar a mulher à margem da história (literária), caracterizada como um ser submisso, sem direito à voz, educada para o casamento e para a maternidade. Na efervescência do pensamento feminista, pesquisadores trabalharam no sentido de fazer emergir a consciência histórica da mulher como ser marginalizado pelas práticas sociais hegemônicas. Os estudos tratam do desejo de redefinição da identidade feminina, enfatizando o debate sobre a diferença e sobre os sentidos de valores como liberdade, cidadania e ética. Entre tais estudos, historiadores e críticos literários


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identificaram um número de gêneros literários sobrepostos, associados direta ou indiretamente com as aspirações da Segunda Onda Feminista. Como forma de ficção popular, o Bildungsroman (“romance de (auto)formação”) revelou-se um gênero importante para a literatura de autoria feminina, não apenas por estimular a revisão da tradição desse romance, como também por evidenciar o autodespertar (autoconscientizar-se, autoconhecer-se) de uma jovem personagem central feminina no seu processo de desenvolvimento físico, social e espiritual. Graças à Teoria e Crítica Literária Feministas, a descoberta desses romances, na década de 1970, também contribuiu no reconhecimento de uma produção literária feita por mulheres. Adotado majoritariamente por autoras de literaturas nacionais de origem europeia e americana, o Bildungsroman feminino ofereceu oportunidades de rever a representação estereotipada da mulher como um ser sem voz e sem atitude, que ocupa um lugar secundário em relação ao status do homem. Levando-se em conta que o Bildungsroman deixou há muito tempo de ser um fenômeno histórico-cultural exclusivamente alemão, e que, a partir de sua gênese na segunda metade do século XVIII, ganhou visibilidade mundial, o gênero manteve-se ativo e renovadamente discutido até hoje. Isso se deve porque “a riqueza [...] de qualquer [...] forma ou gênero literário está precisamente na sucessiva revisitação crítica da tradição, que se consolida e amplia pela continuada produção de novas obras teóricas e de criação artística” (CARVALHO, 2010, p. 128). As pesquisas sobre a literatura escrita por mulheres são importantes porque expandem os modelos teóricos e sugerem novas maneiras de ler/interpretar as infinitas variações de um mesmo texto, além de inserções, reorganizações e ampliações dos cânones. Compartilhamos a visão crítica de Carvalho (2010) sobre o Bildungsroman não ser simplesmente a narrativização do processo de autoformação do herói ou heroína, passando por um processo de aprendizagem e de transformação no confronto com a sua

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realidade, mas sim, a sua permanente problematização crítica. Sob este ângulo, deve-se ter em mente que o indivíduo representado é “um ser sempre em devir de autoformação” (CARVALHO, 2010, p. 154). Sob tal perspectiva, neste artigo, objetiva-se tecer comentários sobre as personagens femininas centrais nos romances Rubyfruit Jungle (1973), da norte-americana Rita Mae Brown; Hotel du Lac (1984), da inglesa Anita Brookner, e A complicated kindness (2004), da canadense Miriam Toews. Ao se observar as trajetórias de Molly Bolt, Edith Hope e Nomi Nickel, pretende-se verificar como a representação das protagonistas questiona as relações de gênero e reavalia as experiências da mulher contemporânea nos seus respectivos processos de (auto)formação.

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Rubyfruit Jungle, Hotel du Lac e A Complicated Kindness: Bildungsromane femininos contemporâneos Rubyfruit Jungle é o primeiro romance da autora norteamericana Rita Mae Brown, publicado em 1973. O romance focaliza a vida de Molly Bolt. Adotada por um casal pobre, ela tem uma beleza notável e é ciente de sua homossexualidade desde a infância. Seu relacionamento com a mãe é instável: aos 7 anos de idade, Molly fica sabendo que não é a filha biológica de Carrie. Sua primeira experiência sexual foi com sua amiga Leota Bisland na sexta série. No colegial, Molly envolveu-se com Carolyn Simpson, a líder das animadoras de torcida, que se oferece sexualmente para Molly, mas recusa o nome “lésbica”. Bolt também se relacionou com homens, incluindo seu primo Leroy quando eram bem jovens. Carl, seu pai adotivo, morre quando ela está no último ano do colegial. Ao contrário de Carrie, Carl sempre apoiou os objetivos, os sonhos e a educação de Molly. Combinando sua personalidade forte e seu desprezo por Carrie, Molly esforça-se para terminar o colegial e ganha uma bolsa integral para estudar na Universidade da Flórida. No entanto, quando o namoro de Molly com sua colega


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de quarto alcoólatra é descoberta, a renovação de sua bolsa foi negada, sendo ambas expulsas da faculdade. Humilhada e recusada por Carrie, Molly decide ir para Nova York para tentar ingressar no curso de graduação em Cinema. Com pouco dinheiro, ela tem que trabalhar para se manter na cidade e, durante o tempo de adaptação, Bolt continua em suas aventuras amorosas e sexuais. Com sua beleza estonteante, inteligência e determinação em se tornar uma grande cineasta, percebe que, mesmo na grande cidade, nada é fácil ou simples de se conquistar. A adoção, a relação tensa, agressiva e conflituosa com a mãe, a conscientização de sua homossexualidade desde a infância, os casos amorosos com mulheres no colégio e na faculdade, o preconceito e exclusão pela sua orientação sexual são eventos ficcionais que podem ser pensados dentro do contexto de produção (segunda onda feminista; liberação sexual; manifestação pelos direitos civis; justiça/igualdade da comunidade gay). Tais eventos apresentam certa proximidade com as experiências pessoais da autora e, neste caminho de leitura, Rubyfruit Jungle pode ser analisado como um texto de cunho autobiográfico. Rubyfruit Jungle é aclamado pela crítica literária por se tratar de um livro que aborda a homossexualidade feminina de uma maneira debochada, irreverente e divertida. Inclusive, o próprio título do livro é uma gíria em inglês para designar a genitália feminina. O livro está repleto de observações irônicas e inteligentes sobre o modelo heterossexual presente nas relações sociais, em que a própria narradora-personagem – Molly Bolt – tenta compreender, por meio do repensar acerca de questões relativas à identidade do ser humano. Por outro lado, apesar de ser visto como uma celebração do feminismo lésbico, Rubyfruit Jungle revela-se um trabalho mais complexo. Enquanto marca uma direção nova e importante na literatura lésbica, há “falhas” significativas que o desqualificam de ser uma “celebração”. Sugere-se que Brown faz da homossexualidade feminina algo exclusivamente sexual, reduzindo-o à atividade

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sexual por si só; o livro não seja um tratado feminista, pois não haveria afeição real para/entre as mulheres. Por ser um sucesso de público por quase 40 anos, Harris (2004) chama-nos a atenção para pensar sobre a que preço a acessibilidade foi adquirida em Rubyfruit Jungle, sobretudo, porque é um preço que a maioria dos leitores não consegue perceber: é visivelmente contra o contexto dos Movimentos Feminista e de Lésbicas e Gays no início da década de 1970. Segundo o autor, infelizmente, o romance carrega o impulso de libertação desses movimentos (a rejeição dos papeis de gênero socialmente prescritos e sexualidades) e acaba vendendo o que “pode parecer ser” seu público primário, a fim de atrair a atenção de um público mais amplo: adolescentes, homens e mulheres heterossexuais. De qualquer forma, Brown escreve um romance que todos podem ler e cria uma personagem apaixonante que quase todos os leitores podem se identificar. Hotel du Lac (1984) é a história de Edith Hope, uma escritora de 40 anos que busca a autorrealização no amor. Está “exilada” na Suíça porque, na visão de seus amigos, desgraçou a sua vida quando não apareceu no dia de seu casamento. Despachada até que ela “voltasse a ser ela mesma”, Edith é obrigada a passar algumas semanas num hotel quase deserto à beira do lago, na companhia de mulheres “gentis e fracassadas” assim como ela. Durante sua estadia, ela entra num processo de reflexão e de reavaliação de sua vida. O romance termina com Edith recusando outra proposta de casamento, a sua decisão de voltar para casa e dar boas vindas a sua vida do jeito que ela é. Por meio da mudança de estação e da presença de personagens que simbolizam os conflitos e emoções dos ideais de vida femininos, discute-se sobre a solidão, o amor, a autoafirmação, a autorrealização e a feminilidade oculta/reprimida pelos papeis sociais de gênero socialmente prescritos. Com um estilo elegante e uma estrutura narrativa bem articulada, o romance de Brookner explora o universo psicológico de uma escritora dividida entre


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seus sonhos românticos e o bom senso/equilíbrio que lhe são exigidos no convívio social. Brookner, historiadora e crítica de arte, tornou-se uma romancista com quase 50 anos. Como as mulheres que assumem papeis gerenciadores na meia-idade, Brookner escreveu para se impor controle sobre sua vida emocional. Seus enredos possuem fortes elementos autobiográficos; ela escreve sobre mulheres de meia-idade impotentes, cujo envelhecimento (ou amadurecimento) as força a perceber que elas nunca encontrarão realização de seus ideais românticos da juventude. Embora Brookner valha-se de sua própria experiência, ela julga o comportamento de seus personagens contra uma moralidade severa (ou inflexível). É visível que o processo de envelhecimento a assusta. Embora seu medo tenha estimulado seu impulso criativo, ela nitidamente tem reações ambivalentes em relação ao processo todo. Ela sugere que tem alguma confiança que a escrita lhe oferecerá uma defesa útil contra alguns dos problemas do envelhecimento vivenciado por mulheres solteiras na sociedade moderna. Em A Complicated Kindness (2004), a autora premiada Miriam Toews equilibra angústia e esperança (amor e ódio) na voz de uma adolescente espirituosa, cuja família é destruída pelo cristianismo fundamentalista. Nomi Nickel nasceu e cresceu em uma pequena cidade canadense chamada East Village, nas planícies frias de Manitoba, no Canadá. A cidadezinha é dominada pelos Menonitas, seita de fundamentalistas cristãos, que transforma a rotina diária dos cidadãos em uma prisão, onde não há esperança de libertação. Deixada sozinha com seu pai triste, frágil e religioso, ela passa seus dias buscando encontrar as razões misteriosas que levaram sua mãe e sua irmã a fugir da cidade, contemplando sua carreira inevitável no Happy Family Farms, um abatedouro de aves, e, ao mesmo tempo, aprendendo a administrar um profundo sentimento de desamparo, os conflitos e as transformações físicas e emocionais da adolescência. A luta para escapar à pressão massacrante da tirania moral e

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religiosa de East Village é acompanhada pelos embates crescentes de Nomi com a intolerância que domina toda a vida social da cidade e de suas principais instituições. A transição para a adolescência é embalada por muito sexo, drogas e rock ‘n roll: as ações da heroína são irreverentes, autodestrutivas e mordazes. À restrição de oportunidades de lazer, trabalhar no abatedouro é uma das poucas opções profissionais abertas aos jovens. Soper (2011) relaciona a representação do abate de animais como o símbolo central do processo de se tornar adolescente. O suspense na narrativa é criado, aludindo ao trabalho e esperando Nomi se decidir se permanece na cidade ou não. Fiel à estrutura dinâmica do romance, vemos a protagonista adiar a decisão, rejeitando, assim, a ideia de conquista definitiva da Bildung na conclusão da narrativa. O estilo e conteúdo refletem sobre o papel da mulher na sociedade Menonita e sua submissão à autoridade patriarcal. Ela aponta seu humor irônico para a separação singular da comunidade Menonita, utilizando-se da incoerência como arma discursiva para incutir um sentimento de solidariedade com os deslocados e os marginalizados. Segundo Ohmovere (2010), o romance de Toews está, por consequência, em ressonância com os anseios de uma cultura nacional que se esforça para conjugar, no mesmo espaço, as reivindicações de suas minorias com as aspirações étnicas de uma maioria cada vez mais diversificada. Algumas considerações finais O Bildungsroman do século XX, iniciado no Modernismo, faz parte da tentativa de revisão crítica do conceito iluminista da Bildung germânica, sem o otimismo e a integração harmonia na sociedade. O indivíduo representado, em moldes renovados, escolhe os próprios valores da liberdade-responsabilidade no processo autônomo de formação interior. Nos três romances privilegiados, a autoformação retoma um sentido pessoal interior, seguindo o ideal de aperfeiçoamento estético-espiritual


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e melhoramento do caráter cívico, ético, sensível, intelectual e cultural das protagonistas. Apesar do poder de escolha no trilhar de seu próprio caminho, os embates familiares, profissionais e sociais são representados explicitamente, apresentando uma visão patriarcal e discriminatória. Por exemplo: a expulsão de Molly da faculdade e de sua casa quando sua homossexualidade é descoberta; a decisão de Edith de não se casar no dia de seu casamento; a expulsão de Nomi da igreja menonita por causa de seu comportamento “desregrado”. Essas três narrativas de autoformação feminina destacam o processo de despertar e de iniciar-se das personagens. Constantemente problematizadas, suas trajetórias contemplam os dilemas entre “o que se quer” e “o que a sociedade quer”. Mesmo num mundo onde não há condições sociais que auxiliem o indivíduo no desenvolvimento de suas qualidades inatas, Bolt, Hope e Nickel, dentro dos ambientes onde convivem, sobressaem por sua capacidade de reflexão sobre sua posição no mundo e pela conscientização de sua diferença. A representação da imagem da mulher, de sua sexualidade e de seu papel social está em contradição com as conquistas históricas feministas, reflexo das relações de desigualdade entre os seres humanos. Entendemos que suas escolhas revelam-se como forma de rejeição de normas culturais pré-estabelecidas. Por isso, as três jornadas devem ser compreendidas como processos de (trans) formação, através da aprendizagem em confronto com a realidade, sem destino pré-fixado, sendo mais interessante observar o trânsito e as mudanças, que acontecem durante o trajeto, a partir daquilo que pode restringir ou ampliar as escolhas das personagens.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, B. M.; PITANGUY, J. O que é feminismo. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2007. BONNICI, T. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências. Maringá: Eduem, 2007. BROOKNER, A. Hotel du Lac. New York: Vintage Books, 1995. BROWN, R. M. Rubyfruit Jungle. New York: Bantam Books, 1988.

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CARVALHO, J. V. Bildungsroman: origem e contexto. In: ______. Jorge de Sena – Sinais de Fogo como romance de formação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 29-154. HARRIS, W. C. Dr. Molly Feelgood; or, How I Can’t Learn to Stop Worrying and Love Rubyfruit Jungle. In: LONG, K. M. (Ed.). EAPSU Online: A Journal of Critical and Creative Work. © Shippensburg University of Pennsylvania, v. 1, Fall 2004, p. 23-41. OHMOVERE, C. Strong Women among ‘The Defenseless Christians’: la place des femmes dans les romans mennonites Sweeter than all the World de Rudy Wiebe et A Complicated Kindness de Miriam Toews. Anglophonia, n. 27, p. 51-60, 2010. SHOWALTER, E. A Jury of Her Peers: American Women Writers from Anne Bradstreet to Anne Proulx. 1st edition. Virago, 2009.


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SOPER, E. “Hello, abattoir!”: Becoming Through Slaughter in Miriam Toews’s A Complicated Kindness. SCL/ÉLC, v. 36, n. 1, 2011. TOEWS, M. A complicated kindness: a novel. New York: Counterpoint, 2005. WOOLF, V. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. ZOLIN, L. O. Crítica feminista. In: BONNICI, T.; ZOLIN, L. O. (Orgs.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3. ed. Maringá: Eduem, 2009, p. 217-242.

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No sentido literal da palavra, “apontamentos” são registros ou anotações para posterior aproveitamento e isto indica que, como escritor, Jorge Amado possivelmente poderia aproveitar os tais apontamentos para transformá-los em uma narrativa diferente ou em memórias.

APONTAMENTOS EM NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM: MEMÓRAIS FRAGAMENTADAS DE JORGE AMADO Maria Cleunice Fantinati da Silva (MeEL/UFMT) Sheila Dias Maciel (MeEL /UFMT) Embarcar em Navegação de Cabotagem – apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei (1992) de Jorge Amado, pode parecer, a princípio, uma viagem sem a profundidade do mar aberto, visto que o título indica a navegação por águas costeiras de um só país, mas acaba por se tornar uma rota que garante descobertas interessantes sobre seu autor e sobre a própria escrita de memórias.São 638 páginas povoadas por 1.211 personagens que aparecem no conjunto de apontamentos que compõe a obra. Escrita em primeira pessoa, Navegação de Cabotagem relata fatos, relacionados à fase adulta da vida do escritor Jorge Amado. Por ser um compósito de fragmentos, nesta obra o início da leitura não tem porto previsto, pois qualquer um dos apontamentos serve como um ponto para o embarque. A narrativa, ainda que fragmentada, sem uma sucessão linear de acontecimentos, conta uma história, a “do saldo de miudezas de uma vida bem vivida”, ou seja, a vida do escritor Jorge Amado. A insistente negação de suas memórias é retomada frequentemente pelo escritor, na obra, que afirma categoricamente se tratar apenas de uma forma precária de escrita, ou seja, algumas pequenas notas ou simples apontamentos. PALAVRAS-CHAVES: memórias; negação; vida; escritor.

Porto de Partida A obra é composta por apontamentos, forma de escritura que é apresentada pelo autor já no subtítulo – apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei – e deixa transparecer uma sugestiva negação à forma das memórias. Apontamentos são pequenos textos, resultado de pensamentos que surgem espontaneamente e, o escritor os anota ainda que lhes pareça sem sentido.

Um Mar de Apontamentos

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O primeiro apontamento de Navegação de Cabotagem pode ser considerado como uma autopromoção por parte do autor, pois relata o pacto firmado entre ele e Ilya Eremburg que diz: “Jorge somos escritores que jamais poderemos escrever memórias, sabemos demais” (NC, 2001, p.1)[1]. Ao revelar o acordo entre ele e Eremburg, o de nunca escrever suas memórias visto que eles sabem demais o autor automaticamente se autopromove. Nesta autopromoção está o intuito de despertar no leitor o interesse de desvendar esses “segredos”, visto que, apesar de negá-las são as memória da vida do escritor. Esse pacto travado entre esses escritores foi descumprido primeiramente por Ilya Eremburg que, anos depois publica sete tomos de memórias e, exatamente no sétimo, Amado e Zélia figuram como simpáticos personagens. Segundo Amado (NC, 2001, p.1), Irina[2] contou-lhe, em 1988, que estava pondo em ordem os papéis do pai com o fim de editar vários volumes de memórias inéditas que ele não conseguiu publicar durante a abertura de Kruchev[3]. O pacto de nunca publicar um relato memorialístico firmado entre Jorge Amado, Ilya Eremburg e Pablo Neruda se desfaz Para o estudo foi utilizada a quinta edição da Editora Record (2001) da obra base e as citações que dela advém serão seguidas pela sigla NC, pelo ano de publicação e pelo número da página.

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Irina Eremburg, filha do escritor soviético Ilya Eremburg (1915/1967).

O Degelo de Kruschev ou Degelo na União Soviética refere-se ao período entre 1956 e 1964 na União Soviética, onde a repressão política e a censura foram parcialmente relaxadas devido às políticas de “desestalinização” implementadas pelo novo líder soviético Nikita Khrushchev.

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porque assim como Ilya tem suas memórias publicadas, o poeta chileno legou à posteridade suas memórias em Confesso que vivi (1974). O mesmo ocorre com o escritor brasileiro que em primeiro lugar publica O Menino Grapiúna (1982), relatos de infância, e por último, Navegação de Cabotagem, só que ainda em vida. O subtítulo – apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei – alude a esse acordo descumprido. Simultaneamente no subtítulo está a negação e a afirmação das memórias de Jorge Amado. “Cada autobiografia foi escrita porque o autor precisava atribuir-se um significado, ou melhor, muitos significados, e apresentar-se, mostrar-se/ocultar-se. Mostrar-se e ocultar-se, morrer no tempo e nele reviver” (OLMI, 2006, p.23). Assim, a negação de suas memórias é um recurso utilizado pelo escritor. Na constante negação, iniciada desde o subtítulo, de que Navegação de Cabotagem não se refere a um livro de memórias, reside a estratégia e o desejo de permanência. A negação fica expressa no subtítulo imposta pelo autor, pois são apenas apontamentos. Ao negá-las, implicitamente assume que são suas memórias, ainda que fragmentadas, pois revelam-se e ocultam-se simultaneamente. No apontamento denominado (Lisboa, 1991 – elogio) (NC, 2001, p. 236-237), Jorge Amado prossegue o jogo simultâneo de afirmação e negação de suas memórias. A negação fica explícita logo na primeira frase quando Amado retoma a ideia da forma de escrita do livro: “No decorrer da concatenação e da escrita destes apontamentos [...]” (NC, 2001, p. 236). Na página seguinte volta a afirmar que: “[...] por mais de uma vez tomei da máquina de escrever para redigir um apontamento sobre o Tivoli [...]” (NC, 2001, p. 237). Mas, as suas lembranças não o deixam negar suas memórias, já que: “[...] O Tivoli é hotel e casa de família, aqui vai de graça a propaganda, pois o louvor é merecido e o velho marinheiro deseja consigná-lo na escala de Lisboa, entre as boas lembranças da navegação de cabotagem” (NC, 2001, p. 237). O jogo duplo entre negação e afirmação de suas memórias,

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portanto, prevalece na obra como estabelecido pelo subtítulo desde o início para justificar um pacto descumprido. Navegar entre a certeza e a dúvida estabelece com o leitor um novo pacto: o da permanência. A permanência, por conseguinte, está vinculada à autopromoção, pois Amado não deseja apenas dar mérito ao Tivoli, o hotel que é o oposto dos hotéis americanos onde o cliente é uma coisa, uma conta, um cartão de crédito. Ao denominar-se “o velho marinheiro”, o escritor mostra-se como um homem que viajou muito e, portanto, traz uma bagagem elevada de conhecimentos. Por meio do artigo determinado “o” revela-se, pois que “o velho marinheiro”[4] tratase de Jorge Amado, um escritor conhecido internacionalmente. Em Navegação de Cabotagem, “apontamentos” é a forma escolhida pelo escritor, que afirma logo no início, na apresentação, que: “Quanto aos apontamentos[5] não datados traduzem a experiência adquirida no decorrer dos anos; [...]” (NC, 2001, p. II). Neste momento o autor cede à diversidade de suas aptidões e registra ao acaso o que lhe passa pela cabeça. E ainda podemos observar outro momento em que o autor declara que sua obra é composta por apontamentos, pois: “Cada um dos apontamentos[6] que venho redigindo significa perguntar aos familiares: lembram-se desse fato?” (NC, 2001, p. 21). A forma como foi composta Navegação de Cabotagem é sempre retomada por Jorge Amado, pois insistentemente o autor relembra que: “Ao redigir o apontamento onde recordo Gilberto Freyre saindo do hall do hotel para ir almoçar no restaurante da Mimi [...].” (NC, 2001, p. 236). Os apontamentos não seguem nenhuma ordem ou obrigatoriedade, surgem de maneira espontânea no pensamento e são anotados aleatoriamente pelo escritor. No momento presente não lhes são atribuídos sentidos, mas, somente mais tarde, 4 Grifo Nosso. 5 Grifo Nosso. 6 Grifo Nosso.


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quando tudo parecer ter sido escrito por outra pessoa, esses tais apontamentos adquirem sentido para outros. Canetti (2001) diz que os apontamentos têm de emergir como se viessem do nada e não conduzissem a lugar algum, pois: Apontamentos são espontâneos e contraditórios. Contêm pensamentos que por vezes resultam de uma tensão insuportável, mas com frequência, também de uma grande leveza [...]. [...] será algo geralmente breve, rápido, veloz como um relâmpago, irrefletido, indomado, sem vaidade e sem a menor intenção. O próprio escritor que nas demais ocasiões, é rigorosamente senhor de si torna-se por alguns instantes o joguete dócil de seus pensamentos (CANETTI, 2001, p. 57).

Na perspectiva teórica deste autor, apontamentos passam a adquirir sentido somente bem mais tarde, quando outros lhes atribuírem. Nesse momento, o próprio escritor também já pertence a esses “outros” podendo então selecionar aquilo que considera aproveitável desses sopros espontâneos e contraditórios que permaneceram escritos. Considerando apenas a forma como estão dispostos na obra em análise, pode-se afirmar, assim como o próprio autor, que se tratam de apontamentos, entretanto, ao observar sobre o conteúdo que Amado escreve, logo nos afastaremos desse ponto. A princípio será considerada apenas a forma como estão colocadas “o saldo das miudezas de uma vida bem vivida” (NC, 2001, p. IV), mas que o autor deseja que não se percam, pois insiste em contá-las, ou seja, torná-las públicas, ir ao encontro do leitor. Os apontamentos que permeiam a obra em análise são precedidos por uma espécie de título, entre parênteses, e apresentam a indicação de um lugar e de um ano seguido de um travessão sugerindo uma pausa e um sintagma mais desenvolvido, especificando, geralmente, o assunto que será abordado. Para Topa (1992, p. 2) o interesse da obra está para além da informação documental imediata, porque recusa categoricamente uma forma

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de “livro” e uma modalidade de “memórias” nobres. Esses apontamentos não seguem uma sequência temporal ou tópica, e percebe-se, a princípio, que essa desordem segue o curso da memória, ou seja, conforme vão surgindo na mente as lembranças. E assim, num fluxo descontínuo, vai reconstituindo os acontecimentos e produzindo a narrativa, pois “[...], à proporção que me vinham memória começaram a ser postas no papel a partir de janeiro de 1986” (NC, 2001, p. I). Segundo Bergson (1999, p. 6) não temos poder sobre o futuro sem uma perspectiva igual e correspondente sobre o passado, o impulso de nossa atividade para diante cria atrás de si um vazio onde as lembranças se precipitam, e a memória é assim a repercussão, na esfera do conhecimento, da indeterminação de nossa vontade. Duvignaud, (2006, p.15) diz que podemos duvidar que a dicotomia da “memória em relação ao espaço” e da “memória em relação ao tempo” seja realmente eficaz, porque a distinção entre “duração” e “espaço” continua escolástica, como demonstrou a física contemporânea. Para Amado a referência ao ano e ao local destina-se apenas para situar no tempo e no espaço o acontecido, a recordação (NC, 2001, p. IV). Para evocar o passado em forma de imagem, [...] preciso poder abstrair-se da ação presente, preciso saber dar valor ao inútil, preciso querer sonhar. Talvez apenas o homem seja capaz de um esforço desse tipo. Também o passado que remontamos deste modo escorregadio, sempre a ponto de nos escapar, como se essa memória regressiva fosse contrariada pela outra memória, mais natural, cujo movimento para diante nos leva a agir e a viver (BERGSON, 1999, p. 91).

O autor de Navegação de Cabotagem se desvincula do compromisso de ser preciso com os acontecimentos em relação a datas e espaços porque os fatos são retomados a partir de suas lembranças num processo descontínuo e, deste modo, algo pode escapar e deixar de ser contado. Segundo Halbwachs (2006, p. 37),


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poderíamos nos lembrar de todos os detalhes em sua respectiva ordem. É do conjunto que temos de partir, mas, isto não é possível porque há muito tempo nos afastamos dele e teríamos de voltar muito tempo atrás. Com o passar do tempo muitos detalhes são apagados da memória. Neste sentido, resgatar o passado não parece algo fácil para o escritor e, em muitos momentos, ele precisa recorrer a outras pessoas que participaram dos acontecimentos, visto que:

Ao escrever a sua própria história, o escritor se conhece melhor e automaticamente se reconhece, pois, na perspectiva de Olmi (2006), ao repensar aquilo que vivenciou, cria-se uma alteridade que erra ou acerta, mas que naquele momento se posicionou ou se omitiu. Agora ao escrever tem uma nova oportunidade de, assim, definir melhor os problemas vividos vendo sua vida por uma nova luz: [...] através da narrativa autobiográfica, podemos dar forma e dignidade a essa história, podemos fixar fatos e memórias de fatos e lembrar. Dessa maneira, o tempo não poderá mais escamoteá-la [...]. Na medida em que escrevemos, é possível sentir o passado sair de seu esconderijo, dia a dia. É como revelar os negativos de uma vida, retomando-os nas mãos, assumindo a responsabilidade de tudo aquilo que fomos ou fizemos [...] (OLMI, 2006, p. 24).

Cada um dos apontamentos que venho redigindo significa perguntar aos familiares: lembram-se desse fato? Lembram-se de todos, se bem cada qual o rememore à sua maneira. Em que data se passou? Ninguém sabe dizer com precisão e se escuto de alguém afirmação peremptória quase certo que comete erro (NC, 2001, p. 21).

A incerteza dirige o escritor a recorrer à memória de outras pessoas, isso denota a imprecisão em relação a datas e, logo, encaminha o leitor para uma viagem que não sugere um porto exato de partida ou chegada, não é possível saber qual o porto em que irá atracar, pois o percurso desta navegação se dá pelas correntezas da memória. Ao levantar esses questionamentos o autor está atuando no processo de busca. Seria uma retrospectiva e, neste momento, como espectador do filme de sua própria vida. Neste ponto, também é possível observar que o desejo do escritor, apesar de negá-las, é narrar as suas memórias autobiográficas, pois revela a preocupação em buscar os fatos vividos com certa precisão, e isto o faz esmiuçar suas lembranças e também recorrer a outras fontes de informações. Neste sentido Olmi explica que: [...] o acesso ao pensamento autobiográfico nos transforma em artífices e artesãos, impacientes pesquisadores de cada indício e de cada de infância, juventude, primeira maturidade ou idade plena e, ao mesmo tempo, em meticulosos costureiros de fragmentos, em organizadores atentos de fichas desorganizadas e esquecidas ou, mais frequentemente, removidas. (OLMI, 2006, p.24).

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A narrativa de vida permite conhecer-se, aproximar-se de si e “segurar o tempo que passou para segurar-se, para juntar o que sobrou, para não perder-se, é assumir uma disciplina que, organizando fragmentos, inventa quem somos e quem fomos” (OLMI, 2006, p. 28). Através dos questionamentos e tentativas de resposta é possível lançar um olhar sobre o passado e reconstruirse, pois: “Não quero erguer um monumento nem posar para a História cavalgando a glória. Que glória?” (NC, 2001, p. IV). Ao anunciar o desejo de não querer a “glória”, Amado inicia a negação da memória expressa pela História que relata os “grandes feitos”. Entretanto, a publicação de Navegação de Cabotagem vem sustentar os “grandes feitos” do escritor. A permanência que Amado busca por meio de Navegação de Cabotagem deixa transparecer certa ostentação, assim como na “civilização epigrafia” nos países gregos e romanos na época áurea das inscrições da pedra e do mármore que segundo Le Goff (2003) [...] serviam, na maioria das vezes, de suporte a uma sobrecarga de memória. Os “arquivos de pedra” acrescentavam à função de arquivos propriamente ditos de um caráter de publicidade


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(1891/1967), escritor soviético”; “Jan Drda, (1915/1970), escritor tcheco”; “Irina Eremburg, filha de Ilya”. Ao contrário da precisão de informações permeadas por notas explicativas sobre a identidade das personagens, há também as “Marias”, personagens que por um motivo ou outro perderam suas identidades igualando-se a um único nome. Segundo Jorge Amado:

insistente, apostando na ostentação e na durabilidade dessa memória lapidar e marmorear. (LE GOFF, 2003, p.428).

Assim, as memórias, por muitas vezes negadas, ficam expressas em Navegação de Cabotagem e revelam-se como armazenamento de informações, de memorização e registro. Uma vida retomada por pequenos textos que falam muito e de muitos, um relato autobiográfico deste escritor que não quer ser esquecido. Textos denominados por Jorge Amado como: “notas”, “rascunhos”, “apontamentos” que merecem ser lidos, pois têm um valor – produzem a vida. Amado expressa um desejo no presente, daquilo que não quer para o futuro, e através do questionamento reavalia e nega seu passado – “Que glória teria ele?”. Assim, Navegação de Cabotagem é uma espécie de relato autobiográfico, no qual Jorge Amado documenta sua experiência, deixando um testemunho de si para os outros por meio de seus “apontamentos”. Para Jorge Amado os textos de Navegação de Cabotagem são apenas apontamentos nos direcionando, deste modo, tratá-los como textos de memórias. Do início ao final da obra o escritor assim os denomina, pois “Ao ver que a escrita destes apontamentos aproxima-se do fim, Zélia chama-me a atenção [...]” (NC, 2001, p. 547). Assim as 638 páginas da obra são preenchidas por esta forma de escrita fragmentada. Entre os apontamentos com títulos e datados aparecem alguns textos soltos destacados em itálico, sem títulos ou datas, mas que também rememoram fatos relacionados à vida do escritor. A identidade dos tripulantes de Navegação de Cabotagem quando não estão diretamente no corpo do texto encontram-se à margem direita de cada página. Nestas pequenas notas aparecem os nomes das personagens (quando falecido, a data de nascimento e falecimento), e ainda identificando-os de acordo com as profissões ou nível de parentesco. Como por exemplo, na página 1, no primeiro apontamento temos três dessas notas: “Ilya Eremburg

Nesta navegação de cabotagem nomes de mulheres foram, por um motivo ou outro, substituídos pelo único nome de Maria, nenhum mais belo: Maria cada uma, todas elas, passageiras embarcadas nas escalas, sombras fugidias no cais no porto, de porto em porto, ciranda do velho marinheiro (NC, 2001, p. II).

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Desta maneira, pode-se perceber o jogo narrativo formulado por duas medidas diferentes: de um lado o excesso de informação que aproxima o texto da historiografia e, de outro, a declarada negação do nome próprio que transforma a especificidade da narrativa em algo fugidio, ou melhor, isento da aparente sinceridade que costuma rondar os textos desta natureza. A forma como foi escrita esta obra realmente parece afastá-la das memórias narrativas tradicionais que trazem no seu corpo um enredo com começo, meio e fim. É o descontínuo que serve como norma, o que impossibilita uma explanação inicial que dê conta da história a ser contada. Por outro prisma, a negação de memórias expressa pelo subtítulo – apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei – se desfaz com a publicação da obra. Essa negação é explicada por Paloma Amado, filha do escritor na abas do livro: O ano era 1991. Creio que a proximidade dos oitenta anos fez papai - o escritor Jorge Amado - decidir-se por, finalmente, colocar no papel algumas lembranças e alguns pensamentos, fruto de uma vida intensamente vivida. A idéia o tentava há muito tempo, porém um pacto feito com Ilya Eremburg e Pablo Neruda, de nunca publicarem livro de memórias, o retinha (AMADO, P. In: Amado J, 2006).


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Nas palavras de Paloma Amado fica expresso o desejo do pai em escrever suas memórias, este desejo esbarrava no pacto feito com Eremburg e Neruda. O Primeiro apontamento de Navegação de Cabotagem Intitulado (Moscou, 1952 – os desmemoriados), relembra esse pacto:

Comenta Olmi (2006, p. 14) que “narrando-se, o ser humano aprende a documentar sua experiência no passado e no presente, deixando testemunho de si para outros, escrevendo com mais motivação, pensando e refletindo com maior profundidade”. Falar de si a partir do passado retomado no presente é rebuscar-se por meio da narrativa autobiográfica que é considerada como um método de formação. Ao narrar-se autor e personagem se fundem buscando-se no passado para alcançar o futuro.

Estamos em janeiro de 1952, vinte graus abaixo de zero, vento gélido varre as ruas de Moscou, emborcamos os cálices de vodca no apartamento da rua Gordi, Ilya me diz: Jorge, somos escritores que jamais poderemos escrever memórias, sabemos demais. No abalo da conversa que acabamos de ter, balanço a cabeça concordando (NC, 2001, p. 1).

Ao relembrar o pacto, Jorge Amado também justifica o descumprimento do mesmo, pois da forma como está expressa, a proposta do pacto foi pronunciada por Eremburg e aceita, através de um gesto afirmativo, balançando a cabeça, pelo escritor baiano. Os comentários de Paloma Amado, nas abas do livro Navegação de Cabotagem (2006) confirmam que seu pai, Jorge Amado, inicia o processo de colocar suas memórias na forma escrita porque, depois da morte de Ilya, sua filha Irina publicou não um, mas uma série de livros de memórias que o pai havia deixado pronto. O livro de memórias de Neruda, também póstumo, Confesso que vivi, saiu em plena ditadura Pinochet. Assim, o tal pacto não se justificava mais e Jorge Amado então “já tinha o título para o pequeno conjunto de lembranças que iria oferecer ao público: “Navegação de Cabotagem”. Neste momento, Estavam em grande temporada francesa, para grande alegria minha, que vivia em Paris. O apartamento do Quai des Celestins era o local ideal para escrever, aconchegante, dona Zélia cozinhando risotos e brodos italianos deliciosos, o tempo friozinho, não precisou muito para seu Jorge botar mãos à obra. Aliás, o mesmo clima propício à escrita contagiou dona Zélia, que também foi para a máquina — no seu caso um computador —, escrever Chão de meninos. (AMADO, P. In: Amado J, 2006).

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Porto de Chegada Ao negar suas memórias, pois “não vale a pena escrevê-las”, Amado organiza o saldo das miudezas de uma vida bem vivida em pequenos textos. Assim, deixa pairar incertezas e dúvidas, afinal são rascunhos, ou seja, algo que definitivamente não poderia ser concebido como texto acabado. Nesse jogo duplo entre negação e afirmação de suas memórias, a narrativa estabelece uma ligação com o leitor. A ligação se firma no desejo de buscar, descobrir e navegar nos bastidores da vida do escritor que é Jorge Amado. Portanto, as memórias amadianas contidas em Navegação de Cabotagem são constituídas por pedaços (apontamentos) que se juntam formando um grande mosaico que representa a sua própria vida. Cada apontamento inicia uma nova história formando um conjunto sugestivo de continuidade, ou seja, do desejo de não morrer.


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TOPA, F. Recensão a Amado Jorge – Navegação de Cabotagem: Apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. Lisboa: Europa-América, 1992. Disponível em: <web.letras.up.pt/ftopa/...Pdf/Navegação%20de%20 cabotagem.pdf>, acesso: 21/06/2010.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMADO, J. Navegação de cabotagem - Apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. 5 ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. AMADO, P. Abas do Livro. In: AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. 6 ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. BERGSON, H. Matéria e Memória. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. CANETTI, E. A consciência das palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. DUVIGNAUD, J. Prefácio. In: HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006. HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006. LE GOFF, J. História e Memória. Tradução de Bernardo Leitão, [et all]. 5. Ed. Campinas: UNICAMP, 2003. OLMI, A. Memória e memórias: dimensões e perspectivas da literatura memorialística. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006.

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INTRODUÇÃO O texto que segue aponta para a possiblidade de repensar as relações e conflitos acerca da pluriculturalidade[3] que formam o acervo de obras de um sistema literário. E, principalmente apontar que o estudo das fontes documentais pode propiciar as interrogações e os caminhos para a relevância do conhecimento das vozes plurais que formam a produção e crítica literária. Fazer uma leitura do sistema literário como um acervo da memória cultural da literatura proporciona a reflexão acerca da co-relação entre a História da Literatura e a Literatura Comparada com a possibilidade de refletir sobre a relação entre a literatura e a formação de identidades plurais, discutida por Evelina Hoisel:

FONTES LITERÁRIAS: MEMÓRIA CULTURAL PARA A RECONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE UMA LITERATURA PLURICULTURAL Markley Florentino Carvalho [1] Alexandra Santos Pinheiro [2] A literatura e a memória cultural apontam para a interdisciplinaridade, a qual se concretiza no encontro do discurso literário e do discurso da memória e se torna uma fonte de pesquisa e de produção de saberes para a reconstrução da identidade de um sistema literário pluricultural. Sob um olhar comparatista, relacionado com a história da literatura, é possível refletir sobre o processo de releitura das fontes literárias a partir da perspectiva da heterogeneidade do sistema literário, pois no acervo da literatura se realizam as consignações das fontes literárias, das tendências críticas e dos discursos de um modo sistêmico, mas não hegemônico. E pensar acerca das especificidades locais e históricas da literatura para que a identidade pluricultural seja potencializada entre os sistemas literários de culturas centrais e periféricas. O discurso da literatura pode acontecer por meio de uma releitura dos textos literários sob a ótica da interrelação dos estudos literários e dos estudos culturais coexistentes no acervo da memória cultural. Para tanto, é necessário um olhar para o sistema da literatura por uma perspectiva histórica não-linear e pelos conceitos do limiar, ruptura, corte e transformações. A correlação da História da Literatura e da Literatura Comparada tem no aspecto da memória coletiva a possibilidade de um dispositivo de pesquisa e de socialização do conjunto de obras literárias. É preciso pensar nos acervos literários como patrimônios culturais, pelo viés do discurso da memória para uma reflexão histórica e comparatista sobre o sistema literário no contexto da globalização e da recontextualização da literatura a partir da produção de textos de uma determinada época, de um círculo literário de autores; de uma comunidade de leitores, e assim pode se tornar uma fonte de conhecimento dos registros literários e de descobertas acerca das inúmeras pesquisas a respeito da complexidade dos textos literários. PALAVRA-CHAVE:Acervo Cultural.

Literário;

Pluriculturalidade;

Memória

1 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Letras. UFGD/Faculdade de Comunicação, Artes e Letras. Email: markleycarvalho@gmail.com.

Profª. Drª. do Programa de Pós-graduação em Letras. UFGD/Faculdade de Comunicação, Artes e Letras.

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[...] o processo de releitura operado pela contemporaneidade que abala, a história instituída, impõe refigurações de culturas e formações identitárias, desvela os pressupostos etnocêntricos que edificaram a cultura européia como cultura de referência [...]. Afirma a pluralidade de histórias, de culturas, impõe outros critérios de filiação, de hereditariedade, desconstrói noções de fontes, influência, origem, através dos quais, a História Literária e a Literatura Comparada alicerçam as suas investigações [...] (HOISEL, 2001, p.78).

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Porém, quando se pensa nos registros dos textos literários e a sua representatividade no sistema literário brasileiro é necessário uma releitura em contraponto para também se pensar a respeito do texto-limite produzido sob a instância da colonização e que tanto foi debatido, do Modernismo ao Pós-modernismo, como circunstância de uma sociedade resultante do multiculturalismo. A releitura torna-se uma possibilidade para se enxergar no acervo da memória da literatura brasileira, a pluralidade presente na história da literatura. VIANNA NETO, A.R. Multiculturalismo e pluriculturalismo, In.: FIGUEIREDO, E. (org.). Conceitos de literatura. Juiz de Fora: UFJF, 2005. O autor define o pluriculturalismo a partir dos estudos multiculturalistas sob a perspectiva da construção do sujeito à teoria da identidade (inclusive gênero, relações interpessoais e reivindicações identitárias) e a concepção da realidade e do conhecimento, no âmbito de uma antropologia urbana.

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O ACERVO DA LITERATURA E A MEMÓRIA CULTURAL COMO FONTES DOS DISCURSOS E DA FORMAÇÃO DAS IDENTIDADES PLURICULTURAIS Resende (2001, p. 83) estabelece que a construção do discurso crítico da literatura, precisa acontecer por uma revisão crítica das identidades pluriculturais e das interrelações entre os estudos literários e os estudos culturais, pois esta pluralidade e essa interdisciplinaridade são coexistentes no acervo da literatura, ou seja, presentes no sistema literário através dos registros literários e da memória cultural. Portanto, um olhar significativo para a formação do sistema da literatura operado em tempos de pós-modernidade é possível a partir de uma perspectiva histórica não-linear e operado sob os conceitos de rupturas e transformações. Assim, o discurso crítico do sistema literário representa um espaço de observações, interpretações e interrogações “sobre a incidência das irrupções dos acontecimentos, dos deslocamentos e transformações” (HOISEL, 2001, p.74). Além, dos registros das fontes literárias e históricas do sistema literário, outra possibilidade de observar a pluriculturalidade em relação à literatura pode ser por meio dos registros da memória coletiva[4] representativa do universo literário de uma sociedade ou de uma comunidade, com as suas marcas e influxos: “a memória apóia-se sobre o ‘passado vivido’, o qual permite a constituição de uma narrativa sobre o passado do sujeito de forma viva e natural [...]” (HALBWACHS, 2004, p.75). Verifica-se, também, no aspecto da memória coletiva, uma corelação da História da Literatura e da Literatura Comparada que se torna um dispositivo de pesquisa e de socialização das obras literárias produzidas e/ ou lidas por certa sociedade ou por uma comunidade de leitores (as). Por isso, quando se fala da literatura na pós-modernidade, é necessário observar e pensar numa “renegociação da memória, do patrimônio cultural (por meio 4

HALBWACHS, M. A memória coletiva. S. Paulo: Centauro, 2004.

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dos acervos literários), entendendo o discurso da memória como grande sintoma cultural nas sociedades ocidentais” (RESENDE, 2001, p.83). Além da reflexão histórica e comparatista acerca da literatura sob o contexto da globalização, se faz necessário a recontextualização do problema da literatura, perante a questão da tensão entre a homogeneização e a pluralidade cultural “fazendo justiça a suas variantes locais e principalmente as suas complexas misturas geográficas e temporais, e para isto se recorre aos estudos focalizados nas questões de memória e direito humanos” (HUYSSEN, 2002, p.17). O que reforça a importância do discurso da memória, como meio de pesquisa e valorização da presença das pluriculturalidades na literatura. O encontro do discurso da memória e a literatura proporciona o meio de resistência à homogeneização do sistema literário, assim como é um lugar para a socialização da produção e da crítica literária. Portanto, a partir de um acervo de textos literários produzidos em uma determinada época, em um círculo de autores, e os estudos acerca da recepção das obras em uma comunidade de leitores; pode se pensar em pesquisas e estudos acerca dos textos e registros literários abrindo caminhos para inúmeras propostas de novas pesquisas, por exemplo, estudos a respeito da “complexidade de repetição, a reescrita, a bricolagem [...], a intertextualidade sugestiva, a imitação criativa, o poder de questionar hábitos enraizados por meio de estratégias narrativas [...]” (HUYSSEN, 2002, p.30). Segundo Antelo, cabe no propósito de estudos literários e culturais, a formação de um discurso crítico pelo viés da memória cultural, representada por um acervo literário, com o fim de abranger as “ações simbólicas unitárias ou pluralistas que cabem ao papel do multiculturalismo” (ANTELO, 2002, p.157) na literatura brasileira, em conformidade com a literatura produzida pelo encontro das vozes interculturais, periféricas e centrais (étnicas, de gêneros, e de outros grupos).


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Portanto, o espaço da valorização e o próprio lugar da produção de saberes são intrínsecos à memória cultural e ao acervo literário. E tem na produção do texto e na crítica literária, o dispositivo que fomenta o discurso e o desenvolvimento da crítica cultural, sob a ótica da multiculturalidade brasileira, e por fim, da pluriculturalidade contemporânea embasada no intercâmbio das vozes e das identidades plurais. CONCLUSÃO A literatura e a memória cultural como um caminho para a interdisciplinaridade e o fomento do discurso literário e do discurso da memória contribuem para a reconstrução da identidade de um sistema literário pluricultural. No entanto, com o exercício da releitura do conjunto de obras literárias corre-se o risco (visto como perigo) de aproximação das literaturas, de lidar com uma perspectiva fora do eixo centro-periferia e com o plural de textos, críticas e vozes literárias que dinamizam o jogo intertextual da literatura contemporânea. Em contrapartida aos tempos da globalização e da idéia de homogeneização das culturas, há na literatura, a busca pela heterogeneidade, pela pluriculturalidade e a fragmentação das identidades locais, afirmando o afastamento da dicotomia centro e periferia. Partimos dos estudos do cânone para o estudo das margens e da memória literária, as vozes do discurso da memória literária passam a ser plurais e intercambiais. Atualmente, pode-se dizer que, os espaços de produção e de crítica literária estão no entre-lugar, na interdisciplinaridade e na busca por narrativas de memórias e registros literários de diferentes enunciados. A história literária configurada numa perspectiva não-linear ganho novos espaços de diálogos entre os estudos literários e os estudos culturais, a literatura canônica passa a ser mais uma fonte dos registros literários a ser considerada, e não mais como referência única e significativa da produção literária e do discurso crítico de

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um grupo ou sociedade. Esses espaços da produção de saberes e da valorização da pluralidade presente na literatura e o próprio lugar são intrínsecos aos registros da memória cultural e aos estudos do acervo literário e inserem na pesquisa e na produção do texto literário, a ótica abrangente e consciente da pluriculturalidade na literatura. Nos estudos e trabalhos acerca da memória literária há a perspectiva de se refletir a questão do acervo literário como, com bem simbólicos, um patrimônio cultural e de fomento às pesquisas abertas ao novo, à interdisciplinaridade entre História e Literatura e a Literatura Comparada, o que certamente, proporciona um interessante espaço para o debate e para a soma das produções dos textos e das críticas produzidas na Literatura com forte interesse na heterogeneidade, na diversidade de campos de pesquisas e aos diferentes lugares dos enunciados. Os acervos literários enquanto produções literárias que comportam tempos, espaços, histórias, impressões distintas dos padrões tradicionais, mas com configurações particulares que formam a pluralidade do sistema literário escapando das tentativas de homogeneização da história da literatura em vogas até então. Pelo viés do estudo do acervo literário, a expectativa é abranger o estudo das fontes documentais e literárias com o interesse de refletir acerca das plurais identidades presentes na literatura.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTELO, R. Valor e pós-crítica. In.: MARQUES, R.; VILELA, L.H. (Orgs.). Valores: arte, mercado, política. B. Horizonte: UFMG. ABRALIC, 2002, p.145-157. HOISEL, EVELINA. Os discursos sobre a literatura: algumas questões contemporâneas. p. 73-95. In.: COUTINHO, E. (org.). Fronteiras imaginadas. R. de Janeiro: Aeroplano, 2001. HALBWACHS, M. A memória coletiva. S. Paulo: Centauro, 2004. HUYSSEN, ANDREAS. Literatura e cultura no contexto global. In.: MARQUES, R.; VILELA, L.H. (orgs.) Valores: arte, mercado, política. B. Horizonte: UFMG. ABRALiC, 2002, p. 15-35. RESENDE, BEATRIZ. A formação de identidades plurais no Brasil moderno. p.83-95. In.: COUTINHO, E. (org.). Fronteiras imaginadas. R. de Janeiro: Aeroplano, 2001. VIANNA NETO, A.R. Multiculturalismo e pluriculturalismo. p.289-311. In.: FIGUEIREDO, E. (org.). Conceitos de literatura e cultura. J. de Fora: UFJF, 2005.

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A DRAMATIZAÇÃO DA LINGUAGEM EM LYGIA BOJUNGA Marta Yumi Ando[1] As narrativas Fazendo Ana Paz (1991) e Retratos de Carolina (2002) de Lygia Bojunga configuram-se como obras em que as situações são presentificadas ao leitor. Essa dramatização instaura-se a partir da preferência conferida à apresentação dos fatos e não à narração, predominando a técnica da cena e não a do sumário. Tendo isso em vista, este estudo, que resulta de nossa tese de doutorado desenvolvida na UNESP/São José do Rio Preto, propõe-se a analisar a feição dramática, responsável por conferir dinamicidade ao texto, em virtude do efeito de proximidade gerado na interação texto/leitor. PALAVRAS-CHAVE: Literatura juvenil. Dramatização. Lygia Bojunga.

Publicadas, respectivamente, em 1991 e 2002, Fazendo Ana Paz e Retratos de Carolina de Lygia Bojunga configuram-se como obras em que as situações, mais do que narradas, são presentificadas, como se passassem diante dos olhos do leitor. No dizer de Eikhenbaum (1973, p. 157-158), essa dramatização da linguagem instaura-se a partir da “preferência outorgada à apresentação dos fatos e não à narração: percebemos as ações não como contadas [...], mas como se elas, encenadas, se produzissem à nossa frente.” O “falar mais dramaticamente do ato de escrever”, como revela Lygia no prólogo “Caminhos”, é que fez com que criasse a inusitada personagem tripartite, as três Anas que protagonizam Fazendo Ana Paz. Esse modo dramático funde-se à intenção de escrever um texto de caráter metalinguístico, denunciada a partir do título, cujo verbo evidencia esse fazer experimental. Ao fazer as três Anas, a autora intercala o contexto espácio1

Faculdade Alvorada/Maringá-PR

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temporal da arquinarradora[2] com o de Ana Paz, articulando a presentificação dramatizada das vivências da protagonista. Como esse artifício cria a ilusão de tratar-se de três personagens diferentes, provoca-se um adensamento na narrativa, por meio da sobreposição de tempos e espaços distintos. Esse jogo espáciotemporal, em que o passado, longe de reduzir-se a uma evocação saudosista, é encenado perante o leitor, atinge seu ápice no momento em que as três Anas se encontram, de modo que passado e presente, numa perspectiva cênica, coexistem na narrativa. Antes mesmo, porém, de Ana Paz encenar seus papéis, é a arquinarradora que simula o papel de escritora, habilmente incorporado como personagem da trama: “Eu sempre gostei de ler livro de viagens, um dia me deu vontade de escrever um” (NUNES, 1992, p. 11)[3]. É interessante notar a transição do sentido literal para o figurado da “viagem” a ser empreendida: “Comecei então a pensar no jeito que eu ia usar pra viajar no papel” (1992, p. 11). Trata-se de uma viagem às terras da imaginação e da fantasia, como poderá supor o leitor, mas sua partida é bruscamente interrompida por uma personagem que, viajando no tempo, rompe fronteiras e se instala no texto que ainda seria escrito: Quando no fim eu me sentei pra escrever o livro, saiu um bilhete assim: ‘Prezado André Ando querendo bater papo. Mas ninguém tá a fim. Eles dizem que não têm tempo. Mas ficam vendo televisão. Queria te contar a minha vida. Dá pé? Um abraço da Raquel.’ (NUNES, 1992, p. 11)

A viagem, então, toma outro rumo a partir da “invasão” de Termo empregado com diferentes acepções na crítica, neste estudo, designa a autora ficcionalizada ou narradora-escritora, considerando-a como uma voz que se concretiza entre as demais, embora se situe em uma instância superior.

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Nas citações e nas referências, preservamos o sobrenome com que a autora assina cada obra. Se inicialmente assinava Lygia Bojunga Nunes, como é o caso de Fazendo Ana Paz, posteriormente passou a adotar, como nome artístico, Lygia Bojunga, caso de Retratos de Carolina.

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Raquel e do bilhete, que surge como que à revelia da escritora; afinal, ela não diz que escreveu o bilhete e sim que este “saiu”. Figurativizando o próprio espanto, a arquinarradora dramatiza seu dizer, mediante a inserção de sua fala, que é incorporada ao discurso indireto até então utilizado: “Larguei o lápis, li e reli o bilhete, o que que é isso?! que Raquel é essa que se intromete assim, de cara, na viagem que eu vou contar?” (NUNES, 1992, p. 11). No fragmento em que Ana Paz surge na narrativa, a mediação discursiva operada pela narradora-escritora é mínima, uma vez que quem passa a dominar as rédeas da narração é a própria protagonista: “ela chegou, e sem a mais leve hesitação foi me dizendo:/ ‘Eu me chamo Ana Paz; eu tenho oito anos; eu acho o meu nome bonito.’” (NUNES, 1992, p. 13). Temos aí a “enunciação na enunciação”, como elucida a dialogia bakhtiniana, o que se configura mediante vozes que se encontram separadas apenas graficamente e se interpenetram. Nessa mescla de discursos, observamos a encenação da fala da menina Ana Paz, que deixa então de ser objeto de narração da arquinarradora para narrar a própria história. Assim, sua voz é incorporada ao texto como uma voz autônoma, de modo que, no fluxo da leitura, quase passa despercebido o fato de que a fala de Ana Paz subordinase, na verdade, a um discurso maior, articulado pela instância demiúrgica da criação. Se o discurso de Ana Paz encontra-se incorporado ao da arquinarradora, o dos seus pais incorpora-se à narração da personagem, em um singular procedimento em que verificamos um desdobramento: a dramatização da dramatização: “O meu pai escolheu a Ana [...] mas a minha mãe achava curto; ele então quis Ana Lúcia, Ana Luísa, Ana Helena, mas na hora que eu nasci a minha mãe escolheu: Paz! E ele topou: Ana Paz” (NUNES, 1992, p. 13). Dessa forma, o discurso dos pais encontra-se encenado no discurso da menina, o qual já é encenação sob o ponto de vista da enunciação da arquinarradora. É possível, portanto,

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observar a mescla de quatro vozes: de Ana Paz, do Pai, da Mãe e, implicitamente, da arquinarradora, que manipula a totalidade dos discursos, ainda que crie a ilusão de que a voz de Ana Paz seja autônoma, quando, na verdade, é (con)cedida à personagem. Em outro trecho, em que Ana Paz rememora a cena da morte do Pai, a pluralidade discursiva também se faz notar nos modos como os diálogos vão sendo incorporados à enunciação narradora, de maneira a concretizar a tensão que envolve a cena, cuja dinamicidade encontra-se refletida na pontuação e na insistente sucessão de aditivas. Assim, a dramaticidade da cena é figurativizada mediante uma construção discursiva marcada por um ritmo veloz, provocado pelo modo inovador com que a autora emprega a pontuação:

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[...] e quando eu cheguei perto dele me pegou num abraço e disse Ana Paz me promete uma coisa, que é, pai, que é? promete que tu nunca vais te esquecer da Carranca, mas pai o que é que tá acontecendo? ele me sacudiu e pediu de novo, promete que tu não vais te esquecer da Carranca, Ana Paz! eu prometi e não deu pra dizer mais nada, a campainha tava tocando, e tinha gente dando soco na porta, e a minha mãe veio dizer apavorada eles tão aí! eles tão aí! (NUNES, 1992, p. 14)

Mais uma vez, as falas não são simplesmente descritas, mas concretizadas, conferindo vivacidade à situação e evidenciando a profusão de vozes que se articulam na enunciação. Ao colocar em cena a Ana Paz-moça a relatar sua história com Antônio, novas dramatizações são instauradas, na medida em que o diálogo da jovem com Antônio não é apenas reportado pela narradora-escritora, mas concretizado na narrativa. [...] e foi só depois dum tempo enorme que ele lembrou duma coisa importante: – Já pensou se alguém senta aqui entre nós dois? – Que horror. (NUNES, 1992, p. 16-17)


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A personagem-narradora não apenas introduz, mediante o emprego dos dois-pontos, a fala de Antônio, mas inclui ainda a própria fala, encenando o início do diálogo com aquele que se tornaria seu marido. A seguir, esse recurso é novamente agenciado, por intermédio da personagem-narradora, que não apenas promove a transmutação do discurso indireto para o direto, como também mimetiza a própria fala na enunciação: A gente chegou mais pra perto um do outro, e depois [...] ele falou: – Que sol, hein? – Pois é. – Sabe que ele te faz brilhar todinha? – É? – É. – Ah. (NUNES, 1992, p. 17)

Note-se a função fática, utilizada pelos apaixonados apenas para manter aberto o canal de comunicação verbal. Contudo, é interessante observar que não há uma sintonia entre ambos: se Ana Paz se entrega ao momento, Antônio mostra-se envolvido pela razão, mergulhado que está em cálculos referentes ao andar térreo de um prédio, o que, paradoxalmente, ocorre logo após mencionar o mistério existente em torno do coup de foudre. – Coup de foudre é uma coisa muito misteriosa, não é? Eu ia perguntar como é? mas não tive coragem, e então perguntei: – Por quê? – Veja bem, eu estou aqui sentado pensando, sabe o quê? calculando como é que vai ser o andar térreo de um prédio que... (NUNES, 1992, p. 17)

Como se vê, Antônio gera uma ruptura com a expectativa da Moça, pois, em vez de falar por que coup de foudre seria tão misterioso, desfaz o clima romântico, ao mudar repentinamente de assunto. Aliás, a personagem não apenas muda de assunto,

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como se desvia para um tema totalmente antitético. É, enfim, a vida materialista que se sobrepuja às emoções e aos sentimentos. Desse modo, essa comunicação falha ou deficiente funciona como um prenúncio narrativo não apenas do casamento mal-sucedido que nasceria desse instante, como também da ideologia utilitarista com que Antônio impregnaria seu filho. Assim como na intercalação dramatizada da Ana Paz-menina e a da Moça, o discurso da Velha é também apresentado diretamente ao leitor, verificando-se, mais uma vez, reduzida intervenção da arquinarradora. Logo, mais que narrado, o episódio é encenado ao leitor, de modo que a arquinarradora aproxima-se de um narrador de uma peça teatral ou de um filme, que prefere se esconder nos bastidores: “E ainda por cima uma outra personagem entrou no meu estúdio [...]:/ ‘Acordei no meio da noite pensando no que o meu filho me disse: você é uma velha egoísta!’” (NUNES, 1992, p. 19-20). Se, em momentos anteriores, foi possível extrair o discurso de Ana Paz-menina e o de Ana Paz-moça do discurso da arquinarradora, desta vez, ocorre o mesmo em relação à Ana Pazvelha, que passa a assumir novo papel como narradora. Nessas vozes que se intercalam, opera-se o discurso dramatizado no interior do discurso da velha. No entanto, o discurso desta também é dramatizado da perspectiva da arquinarradora, detentora maior dos fios que tecem a trama. Desse modo, na fala do filho, tem-se a dramatização da dramatização, que se estende à dramatização da fala da personagem-narradora, ao reviver a cena do diálogo: “meu amor, eu não tô entendendo essa história de festa que você falou...” (NUNES, 1992, p. 21). Após o encontro entre Ana Paz-velha e a Moça-que-seapaixonou-pelo-Antônio, ressurge a Ana Paz-criança. Esta, numa cena tipicamente cinematográfica, é contemplada pela Ana Pazvelha, como se se tratasse de duas imagens que se desdobram do mesmo sujeito: “– Pai! Pai!/ Era a voz da Ana Paz-criança


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chamando. E a Ana Paz-velha ficou olhando pra ela mesma-alicriança chegando.” (NUNES, 1992, p. 31). Nesse desdobramento, se Ana Paz-criança assume novamente o papel de personagem central, Ana Paz-velha assume o de espectadora da encenação, sendo tudo isso alinhavado pela arquinarradora cujo papel varia entre narradora e personagem. É justamente esse jogo de vozes e a troca de papéis entre os seres ficcionais que conferem caráter dramático à obra. Em determinadas passagens, essa teatralidade se evidencia de modo ainda mais contundente, em vista das notações responsáveis por marcar a entrada da personagem, performatizando, assim, o script de um texto dramático: “A voz do Pai anunciando:/ – Prontinho, estou aqui. Cadê o pente?” (NUNES, 1992, p. 32); “Voz do Pai: – Ana Paz! olha aqui o presente que eu te trouxe.” (NUNES, 1992, p. 33). O diálogo de Ana Paz-velha, seja com o jardineiro, seja com seu filho, também não é sumarizado e enfocado de uma perspectiva distante, mas trazido à boca de cena e colocado como que diante dos olhos do leitor. Trata-se de uma característica observada não apenas nos discursos diretos, mas mesmo no discurso indireto: [...] Estendeu a mão. Viu que ela tinha um pouquinho de terra, limpou ela na calça e estendeu ela de novo com outro parabéns! Apertou minha mão: saúde! Outro apertão: felicidades! Mais outro apertão: muitos anos de vida! (NUNES, 1992, p. 43)

Nesse fragmento, a fala do jardineiro, em seus efusivos cumprimentos à aniversariante, é intercalada à narração desta, de modo a configurar um discurso híbrido, misto de discurso direto e indireto. Também na conversa com o filho, esse procedimento é agenciado na cena de despedida entre mãe e filho: “Me deixou aqui em casa e já ficou despedido, – vou pegar o primeiro avião da manhã –, e foi pro hotel” (NUNES, 1992, p. 48). Em Fazendo Ana Paz, temos, assim, diferentes formas por meio

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das quais se faz a dramatização do discurso, o qual se mostra ora mais explícito, ora mais sutil, mas, seja de uma forma ou de outra, promove o fazer dramático de Lygia Bojunga. A presentificação dos acontecimentos engendrada por esse fazer, quando comparada à sumarização, além de conferir maior vivacidade às representações imaginárias, faz com que o leitor seja remetido à experiência de Lygia como atriz e dramaturga, às suas Mambembadas, bem como às demais obras reveladoras da profunda ligação da autora com o palco. Esse “falar mais dramaticamente do ato de escrever” também se evidencia, por intermédio de diferentes estratégias enunciativas, em Retratos de Carolina, como veremos a seguir. ***

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Em Retratos de Carolina, no “Pra você que me lê”, em que se delineia o autorretrato da protagonista, a dramatização do narrar envolve o entrelaçamento do discurso de Carolina com o de uma personagem hipotética, surgindo, assim, um novo nível diegético criado a partir da instância da protagonista, que se torna, então, uma espécie de ser autopoietico, ou seja, criador da própria realidade[4]. Em outras palavras, tem-se uma inusitada situação em que a personagem central cria, em seu imaginário, outra personagem. Fruto da fantasia de Carolina, o hipotético prefeito de Arraial é assim trazido ao plano da enunciação: Nesse tempo todo em que eu estou aqui pendurada, só esperando ela voltar, eu fico sonhando um sonho que toda a vida eu sonhei: de repente, um poderoso qualquer me chama e diz, Carolina, aqui vai nascer uma cidade, você tem carta branca pra planejar ela todinha. [...] Mas não precisava ser um poderoso-presidente, não! [...] Podia ser esse vilarejo aqui! O prefeito lá de Arraial me chamava e dizia: Carolina, carta branca pra reestruturar aquele distrito onde ‘penduraram’ você. (BOJUNGA, 2002, p. 175)

4 Termo originalmente empregado na biologia para designar a capacidade de os seres vivos, enquanto sistemas autônomos, produzirem a si próprios.


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A seguir, intensificando a vivacidade da representação imaginária, a alternância de vozes dá corpo a um vivo diálogo entre a heroína e o prefeito, de modo que a situação é, como no cinema, encenada no plano da enunciação:

agora quem toma corpo é Discípulo, que então migra da peça que supostamente estava sendo escrita para a fantasia de Carolina. Desse modo, os sonhos com Discípulo ganham concretude no imaginário da protagonista:

– Mas, Sr. Prefeito, já aconteceu cada barbaridade por lá!... – Reestruture. Bote abaixo se for preciso. – Pode?

Sonhei! (Ou será que imaginei?) Ele estava lá mesmo. Na restinga. Deitado. O braço atrás da cabeça, fazendo de travesseiro.

– Carta branca, já disse. (BOJUNGA, 2002, p. 175)

O olho bem aberto pro céu. (BOJUNGA, 2002, p. 198)

Nessa estratégia enunciativa, a cena imaginária, além de ser trazida para próximo do leitor, é permeada de humor, o que se percebe na referência aos juros sendo devolvidos “com juros”, bem como no discurso exemplar e politicamente correto na fala do prefeito: – Vindo de onde [a verba]? – Do FMI. – De onde?! – Tudo que é juro que o Brasil já pagou dessa famigerada dívida externa está sendo devolvido. Com juros. [...] – Isso não vai dar ensejo a corrupções? – E eu? o que que eu estou fazendo aqui? Você se esquece que os prefeitos foram feitos pra garantir os interesses públicos? (BOJUNGA, 2002, p. 176)

Outra situação hipotética vivenciada por Carolina é o seu encontro com Discípulo. Como no caso anterior, trata-se da ficção dentro da ficção. Assim, se temos a diegese de Carolina em seus retratos de vida, agora o que temos é um nível intradiegético situado no relato do processo de construção de Carolina e, ao mesmo tempo, da interrupção desse processo, já que a protagonista ficara “pendurada” em seus retratos e, simultaneamente, foi sendo (des) construída em sua elaboração artística. Como primeira personagem a ser extraída desse microuniverso, tivemos o prefeito de Arraial e

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É, pois, misturando sonho e imaginário, que Carolina deixa de ser simples personagem para conquistar estatuto autoral. Em virtude disso, no microuniverso onírico de Carolina, Discípulo deixa de ser o Discípulo imaginado pela escritora para se tornar o Discípulo moldado pela imaginação da protagonista. Nesse inusitado sopro de vida, é interessante o modo como ocorre a transição do discurso indireto para o direto: “[Ele estava] Pensando./ – Em quê, meu amor? – eu quis saber. E me sentei do lado dele.” (BOJUNGA, 2002, p. 198). Nesse trecho, ocorre uma interessante fusão dos discursos articulados pela personagem-narradora, em função da versatilidade com que se opera a passagem do discurso indireto para o direto, estabelecendo um continuum. A par disso, uma intensa fruição sinestésica, conjugando o visual e o tátil, marca a cena, em vista do deleite com que a protagonista se enamora de Discípulo: “A barba dele tinha crescido./ Ele pegou a minha mão e ficou roçando a barba na palma dela./ Bom.” (BOJUNGA, 2002, p. 198). E acaba culminando em uma acentuada plasticidade, por conta da composição pictórica com que a autora tece a cena: “Tinha uma orquídea em flor bem perto dele. Amarela e roxa./ Bonito que era olhar pros dois.” (BOJUNGA, 2002, p. 198). Nesse microuniverso, o fato de surgir outra personagem além de Discípulo – um garoto – confere ainda maior autonomia ao mundo criado pela imaginação de Carolina, tornando-o,


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de fato, independente da autora ficcionalizada. Isso porque não é a arquinarradora, e sim uma personagem, Carolina, que, conquistando estatuto de autor, rege esse mundo, ainda que inconscientemente na instância do sonho:

É interessante a dinamicidade que marca o discurso de Priscilla. Seu dizer, permeado de breves interrupções no narrado para voltar-se à sua interlocutora, apresenta um ritmo veloz, que se traduz no ritmo do andar de Priscilla e que “Carolina mal conseguia acompanhar”. Desse modo, a personalidade de Priscilla é diretamente apresentada ao leitor, sem que seja necessária a intrusão de um narrador onisciente. Até mesmo em notas de rodapé a dramatização do narrar se faz presente. Assim, se convencionalmente esse tipo de nota é empregado apenas para prestar esclarecimentos acessórios ao leitor, em Lygia Bojunga, essa função é ampliada, na medida em que se presta a manipular a ordem temporal dos acontecimentos e a presentificar o narrado.

Mas aí [...] quando ele tirou minha blusa pra casar a barba dele com o meu peito, chegou um garoto. [...] Disse que tinha um recado pra dar: “tão esperando vocês dois pra votar lá na eleição”. “Que eleição?” “Hoje vão resolver como é que fica essa história de invasão.” (BOJUNGA, 2002, p. 199)

No reencontro entre Carolina e Priscilla, a dramatização do narrar também se faz presente no discurso de Priscilla quando conta para Carolina como conseguiu convencer seu pai a criar uma fundação voltada para atender pessoas carentes que necessitam de cirurgia plástica não para alimentar a vaidade, e sim para “corrigir coisa séria: queimadura, acidente, defeito de nascença, o diabo” (BOJUNGA, 2002, p. 216). Tem-se, nesse discurso, o diálogo dentro do diálogo, em que a personagem encena o próprio dizer e o de seu pai. – Essa sugestão veio no meio de uma discussão que a gente teve (a gente discute à beça); falei que na hora dele prestar contas [...] (meu pai é carola que você precisa ver), isso ia contar ponto. Pelo menos, eu falei, você vai poder dizer pra eles que aqui na terra você não atendeu somente à vaidade [...]. – Priscilla ia andando tão depressa que Carolina mal conseguia acompanhar. – Acertei na mosca com esse argumento dele ganhar ponto pra entrar no céu. Mas ele é meio turrão, sabe, e falou assim: – Eu tenho uma fila gigante de nariz e ruga e peito e bunda me esperando: onde é que você quer que eu arrume tempo pra organizar uma fundação?... “Quem vai organizar sou eu.” “... pra procurar uma casa...” “Quem vai procurar sou eu.” (BOJUNGA, 2002, p. 216-217)

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Quando um dia perguntaram pra Priscilla por que que ela e a Carolina já não eram amigas, a Priscilla respondeu: – A Carolina esfriou comigo. – Ué, por quê? – Porque eu chamei a mãe dela de puta. (BOJUNGA, 2002, p. 27)

*** Um Turner e um Stubbs. Carolina já tinha ido duas vezes à Galeria, na companhia do Pai. Quando disse pra ele que, podendo escolher dois quadros pra levar pro Rio, ela levava aqueles dois, o Pai se surpreendeu: – De todas as pinturas que você viu desde que saiu do Brasil? – É. (BOJUNGA, 2002, p. 51)

Em ambas as notas, percebemos uma manipulação da sequência temporal, visto que o tempo aí presente não coincide com o tempo apresentado na enunciação. Se na primeira nota temos um movimento de prolepse, na segunda temos o movimento inverso,


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o da analepse, configurando-se essa nota como um flashback dramatizado. No “Pequeno retrato do Homem Certo”, encaixado na narrativa principal para explicitar as motivações que presidiram o comportamento dessa personagem, a encenação do narrar também pode ser observada. Desta vez, porém, alterna-se o discurso do narrador com o de Eduarda, personagem que, embora apenas seja aludida no texto, nesse momento ganha maior visibilidade. Em termos gráficos, esse discurso configura-se mediante o emprego dos parênteses, de maneira que estes são usados para distinguir a voz do narrador da de Eduarda. Passado um tempo, a Eduarda começou a reivindicar do Homem Certo o abandono de antigas predileções, feito cheirar pó (você vive dizendo que não é dependente; mas se não é, vai ficar), adular o uísque (por que você não aprende a parar depois do primeiro ou segundo?), fumar três maços por dia (se você não se importa de morrer, eu me importo: não tô mais agüentando respirar tanta fumaça), um consumismo que ela achava excessivo (você não é mais criança, já tinha que saber que não se pode gastar desse jeito!), um ritual superelaborado na fazeção de amor (lá uma vez que outra, tá bem, mas isso todo dia não tem que agüente), etc. (BOJUNGA, 2002, p. 97-98)

Entretanto, a nosso ver, onde a dramatização da linguagem adquire um de seus pontos altos é o monólogo interior dialogado em que Carolina dramatiza uma conversa com um amigo do Rio. Em uma espécie de prolepse imaginária, a personagem interioriza um diálogo que hipoteticamente viria a ter com seu amigo. [...] há pouco tempo ele tinha ido à Europa, mas não a Londres, e por que que você não foi lá? ela quis saber, fazer o quê? ele respondeu, eu não gosto daquela cidade, mas como é que você pode não gostar se você nunca foi lá? porque eu sei que eu não vou gostar, mas sabe como?, sabendo, ué, essas coisas a gente intui... Agora, abrindo caminho entre os pombos de Trafalgar,

Carolina já está escutando a pergunta que o amigo vai logo fazer quando ela chegar, você quer, por favor, me explicar por que que você gostou tanto de Londres? Ah, sei lá, paixão é coisa difícil de explicar, eu concordo que Paris é mais bonita, Veneza então nem se fala, Madri eu também achei linda, mas elas todas se mostram logo, tipo: olha eu aqui, vê só o arraso que eu sou! mas Londres, não: ela se esconde, se a gente não gasta sola de sapato procurando, acaba não encontrando os maiores encantos que ela tem [...] (BOJUNGA, 2002, p. 52)

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Mais uma vez, o que se observa é a (con)fusão de vozes no discurso. Introduzido pelo narrador, o discurso se estende em meio ao confronto de vozes entre Carolina e seu amigo. Desse modo, o narrador, agindo como uma câmera, opta mais por uma atitude de mostrar, em vez de comentar os fatos. Esse diálogo nos é apresentado em um só segmento textual e sem o emprego de aspas que pudessem facilitar o trabalho do leitor. Mas é justamente por isso que o texto se torna mais instigante. Em vistas das considerações apontadas, podemos dizer que tanto Retratos de Carolina como Fazendo Ana Paz são obras que dificultam o trabalho do leitor, que é então incitado a “cooperar”, ao interagir com o texto. Como afirma Eco (2001, p. 41), embora a obra de arte “não se entregue materialmente inacabada, exige uma resposta livre e inventiva, mesmo porque não poderá ser realmente compreendida se o intérprete não a reinventar num ato de congenialidade com o autor”. É, portanto, por meio dessa congenialidade que o leitor lygiano é impulsionado a exercer uma participação (cri)ativa, ao defrontar-se com textos que, presentificando o narrado, estreitam os laços entre texto e leitor.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOJUNGA, Lygia. Retratos de Carolina. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2002. ECO, Umberto. Obra Aberta. 8. ed. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2001. EIKHENBAUM, B. et al. Teoria da Literatura: formalistas russos. Trad. Ana M. R. Filipouski et al. Porto Alegre: Globo, 1973. NUNES, Lygia Bojunga. Fazendo Ana Paz. Il. Regina Yolanda. Rio de Janeiro: Agir, 1992. 523

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Identidade e Experiência em Pelo Fundo da Agulha de Antônio Torres Maurício Silva O presente artigo procura analisar o romance Pelo Fundo da Agulha (2006), de Antonio Torres, inserindo-o no contexto da literatura brasileira contemporânea, sobretudo nas possíveis relações que seu plano narrativo estabelece com a constituição de uma identidade híbrida, a qual, levada ao seu limite, desintegra-se pela ação radical de um processo de desidentificação do protagonista. Dialogando de perto com outras obras de Antonio Torres, o presente estudo procura reconhecer em sua produção ficcional uma contínua reflexão sobre as mutações identitárias do migrante brasileiro inserido no contexto autofágico da implacável realidade urbana. PALAVRAS-CHAVE: Antônio Torres, literatura brasileira, identidade, urbanismo

Como em poucos momentos de nossa história cultural, a atual produção literária brasileira assiste a um dilema nascido da necessidade de lidar com o impreciso conceito de diversidade cultural, cuja consideração, no âmbito das manifestações artísticas, impõe desde o início pelo menos duas atitudes críticas: a urgência de uma revisão ampla dos paradigmas do conhecimento humano que dão sustentação à atividade literária, estabelecendo novos protocolos de apropriação, interpretação e reorganização da produção ficcional; e a imposição de um deslocamento epistemológico que passa do foro textual como centro do discurso estético para a consideração de outras instâncias conformadoras e legitimadoras da obra literária. Com efeito, a partir do avanço de teorias pautadas numa perspectiva pós-moderna da realidade cultural contemporânea, conceitos

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como os de sujeito e centro – fundamentais para a constituição de um saber unidirecional – cedem espaço a noções mais operatórias, como as de multiculturalismo, hibridismo cultural, estudos póscoloniais e outros, os quais procuram traduzir, mais de acordo com uma realidade múltipla e diversificada, as formações culturais relacionadas ao mundo contemporâneo. Nesse contexto, o conceito de identidade adquire, mais do que qualquer outro, uma reconhecível prevalência, a partir, sobretudo, da contribuição dos chamados Estudos Culturais (CEVASCO, 2003). E se, como quer Jameson, em seu estudo sobre a relação entre cultura e globalização, a própria esfera da cultura se expandiu, coincidindo com a sociedade de consumo de tal modo que o cultural já não se limita às suas formas anteriores, tradicionais ou experimentais, (JAMESON, 2002, p. 115) é preciso levar em consideração as transformações por que têm passado não apenas a atual produção ficcional, mas também as mais recentes teorias da literatura, as quais procuram dar conta de um novo olhar que se impõe e das novas práticas de leitura e modos de relacionamento a que estão sujeitos o produtor cultural e seu produto. Desse modo, sobretudo a partir da década de 1980, a Literatura Brasileira incorpora, com maior ou menor grau de evidência, temáticas relativas à questão da diversidade, redundando em obras que procuraram dar voz – no âmbito da representação literária – aos diversos extratos da sociedade, num arcabouço ideológico em que se inscreve uma nova vertente da literatura brasileira, a qual não apenas busca tematizar extratos sociais variados, mas procura torná-los componentes centrais da narratividade contemporânea, dando-lhes um papel de destaque em nosso universo ficcional e dotando-os de um olhar crítico que destoa da média dos personagens historicamente consagrados pela prosa de ficção brasileira. Vivendo uma espécie de deslocamento identitário, tais personagens personificam uma identidade dramaticamente híbrida, em que a idéia de descentramento acaba por promover ininterruptos deslocamentos estruturais, dando origem aos


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conceitos permeáveis e interagentes de descontinuidade e fragmentação, tudo isso plasmado numa representação estética em que o espaço urbano revela-se a tônica da nova narrativa ficcional, rompendo com a linearidade do realismo tout court e que, desde o advento do romance modernista, procura subverter as formas tradicionais de constituição da percepção do homem e do mundo que ele habita e instaurando o diverso, o oblíquo, o instável no âmbito da composição narrativa. (ROSENFELD, 1973) O presente artigo procura analisar o romance Pelo Fundo da Agulha (2006), de Antonio Torres, inserindo-o no contexto da literatura brasileira contemporânea, sobretudo nas possíveis relações que seu plano narrativo estabelece com a constituição de uma identidade híbrida, a qual, levada ao seu limite, desintegrase pela ação radical de um processo de desidentificação do protagonista. Dialogando de perto com alguns estudos que publiquei outrora – tanto acerca da obra de Antonio Torres em geral, (SILVA, 1993) quanto acerca de seu romance Essa Terra (1976), em particular (SILVA, 1990) –, o presente estudo procura reconhecer na produção ficcional de Antonio Torres uma contínua reflexão sobre as mutações identitárias do migrante brasileiro inserido no contexto autofágico da implacável realidade urbana. O romance Pelo Fundo da Agulha, de Antônio Torres, representa, como poucos, um fazer literário que não está isento das noções de hibridização, de descentramento ou de diversidade, conceitos que compõem, isoladamente ou em conjunto, as mais recentes propostas de criação literária aliada à inovação estética, uma vez que concebe, entre outras coisas, um vínculo entre temática social e a representação de identidades complexas, tudo concorrendo para a conformação de uma escrita igualmente híbrida e fragmentada. Desfecho de uma saga que se inicia com Essa Terra, passando ainda por O Cachorro e o Lobo (1997), o romance em questão amplia o sentido de deslocamento, presente nas obras citadas, fazendo com que o termo seja ressemantizado e tenha maior alcance: deslocarse, aqui, não exprime apenas uma conotação espacial (sentido

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prevalente do termo em Essa Terra), mas significa sobretudo desidentificar-se. Nessa nova acepção, a idéia de deslocamento aproxima-se e complementa um sentido maior e psicologicamente mais abrangente, que é o sentido de perda da identidade. Com efeito, uma das marcas mais recorrentes desse romance refere-se à questão da identidade, que é representada no texto sob perspectivas diversas, já que se manifesta ora em consonância com a imobilidade espacial, ora como resgate de um passado por meio da memória, ora ainda como transformação do interiorano em homo urbanus. Em relação ao primeiro modo, assistimos atônitos à passagem de uma mobilidade total (representado por Nelo, de Essa Terra) à condição de uma extrema imobilidade do protagonista, cujas lembranças são resgatadas com ele deitado sobre uma cama; em relação ao segundo, vemos a passagem de uma tentativa frustrada de retomar o passado (representado pelo retorno de Totonhim, de O Cachorro e o Lobo) à tentativa desesperada de mantê-lo por meio da memória; em relação ao terceiro, testemunhamos a passagem da essência ontológica do homem do campo (representado por Totonhim em Pelo Fundo da Agulha) à condição de homem da cidade, portanto deslocado de seu meio original e de sua condição existencial. Em todos esses casos, cumpre ressaltar, o denominador comum é – como sugerimos – um fundo sentido de perda da identidade. Como sugere Stuart Hall, ao analisar o mundo contemporâneo, a idéia de identidade passa, atualmente, por um processo de transformação em várias áreas do conhecimento, transformação que se caracteriza principalmente pela crítica à noção tradicional de uma identidade integral e unificada: “as identidades não são nunca unificadas; (...) elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; (...) elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente


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qual, diferentemente daquela que se constrói no presente, não é especular:

em processo de mudança e transformação”. (HALL, 2003, P. 12)

De fato, fragmentária e híbrida, a representação da identidade, em Pelo Fundo da Agulha, manifesta-se sob uma tripla perspectiva: relacionada à idéia de deslocamento, à de memória e a uma questão ontológica, todas elas resultando no já citado fenômeno da desidentificação do protagonista. Relacionando-se à idéia de deslocamento, percebe-se que a manifestação da identidade, nesse romance de Antônio Torres, além de estabelecer uma proximidade com outras obras do autor, sugere o curioso fato de que o retorno concreto ao passado – isto é, à sua cidade natal, ao seio de sua família, de onde Totonhim teria saído “aos 20 anos, numa viagem sem volta”, (TORRES, 2006, p. 66) não o faz reencontrar a identidade perdida, arrancada à força aos que migram para a cidade grande; essa saga do deslocamento, “movimento pendular dos sem-chão: ir-e-vir, vir-e-ir”, (TORRES, 2006, p. 66) não alivia sua dor, não encurta a distância da solidão, fazendo com que ele retorne à cidade grande mais desidentificado ainda: “voltou se sentindo um contador sem números, um orador sem palavras, um narrador sem fábulas, um peixe sem água, um pássaro sem asas”. (TORRES, 2006, p. 67) Instaura-se, por meio do processo de desidentificação da personagem – a qual resulta, direta ou indiretamente, como estamos demonstrando, do fenômeno do deslocamento migratório –, o universo da solidão no romance, aqui representado pela prática de Totonhim em falar consigo mesmo por não ter para quem contar suas histórias. A solidão, bem como o isolamento social causado por sua condição de migrante, busca refúgio na memória, num contexto em que recordar é, ao mesmo tempo, situar-se entre as pessoas queridas e readquirir a identidade perdida, agora, num passado longínquo e distante. Relacionando, portanto, os conceitos de memória e identidade, o narrador faz dessa relação uma espécie singular de resgate de uma identidade pretérita, ingênua até, a

“O homem na cama riu. Estava a recordar-se de uma música dos bons tempos, que tocava no serviço de auto-falantes e nas rádios do interior. Tinham sido tão bons assim, aqueles tempos? Pelo menos eram mais simples, quando ainda se sonhava com um mundo a ser inventado, não exatamente este que está aí, do qual fugiria, se pudesse, para a Lua, onde, quem sabe, deveria haver um porto seguro e gente feliz, por não ter espelhos”. (TORRES, 2006, p. 45)

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Desse modo, não apenas o protagonista, por meio de um ilusório resgate da identidade, mas todo o mundo à sua volta parece ganhar mais consistência ao se socorrer numa memória proustianamente recuperada, já que até mesmo o cheiro do coentro e do alecrim lhe trazia à mente a lembrança dos sabores da infância. Assim, as lembranças – embora o auxiliem a reconstruir a própria história e a definir sua identidade – surgem, ao mesmo tempo, como alívio e martírio de sua vida presente: a lembrança da mãe, da esposa, dos parentes, dos filhos, todos distantes, cala fundo em seu coração, mas é somente por meio desse expediente que Totonhim consegue manter o mínimo de integridade identitária. Esse vínculo entre memória e identidade guarda, no romance, um sentido estrutural, marcando as temporalidades da narrativa: é pelo resgate do passado que o protagonista procura reorganizar sua identidade esfacelada, a qual teria se desintegrado, junto com sua vida pessoal, no presente. Desse modo, Totonhim já não é mais o pai, pela perda dos filhos; já não é mais o marido, pela perda da esposa; já não é mais o filho, pela perda da mãe... Por fim, já não é mais nem ele mesmo, pela perda inexorável de sua própria essência, de sua própria identidade. Semelhante recurso, no contexto específico do romance em causa, não deixa de ter um significado supra-ficcional, na medida em que se afirma como uma espécie de resistência à efemeridade do mundo contemporâneo.


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Com efeito, segundo Jean Baudrillard, as formas contemporâneas perderam o seu sentido e isso, logicamente, implica outra relação com a maneira como concebemos a identidade: “já não temos tempo – diz o filósofo – de buscar uma identidade nos arquivos, na memória, nem num projeto ou no futuro. Precisamos de uma memória instantânea, de ligação imediata, espécie de identidade publicitária que possa acontecer no mesmo instante”. (BAUDRILLARD, 1990, p. 30)

Porventura, o último recurso que lhe resta, a obsessão de Totonhim pelo passado emerge, aqui, como uma forma de resistência ao apagamento do eu, promovido de modo inexorável pela modernidade tardia. É precisamente nesse sentido que podemos interpretar a relação que, em Pelo Fundo da Agulha, se estabelece entre identidade e ontologia. Nesse romance, pode-se afirmar sem perigo de exagero que a identidade constrói-se também pela diferença, pelo seqüestro de uma outra identidade: no caso de Totonhim, sua identidade fazse pela negação de uma identidade suposta, que o definia como “o irmão do suicida”, (TORRES, 2006, p. 123) qualificação que ele recusa peremptoriamente. Com efeito, já se tornou um altruísmo o fato de que a construção de uma identidade só se faz por meio da relação direta com a alteridade, na medida em que nossa identidade afirmase na oposição/contraste com o outro: somos o que somos em comparação (semelhanças e diferenças) com o outro, e essa é uma das chaves de compreensão do romance de Antônio Torres, que se inicia precisamente com estas palavras: “era outra a cidade, e outros o país, o continente, o mundo deste outro personagem, um homem que já não sabia se ainda tinha sonhos próprios”. (TORRES, 2006, p. 7) Trata-se, como vimos demonstrando desde o início, de um persistente processo de desidentificação do protagonista, que chega ao seu auge quando Totonhim se descobre estrangeiro (Eu,

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o estrangeiro). Com efeito, trata-se de um processo tão radical que, aos poucos, a personagem vai se autodenominando de modo impessoal (o homem na cama) e como que se desdobrando em dois: o narrador-personagem, que assume um papel autônomo, e o protagonista, visto de longe, deitado sobre uma cama... Como sugerimos antes, temas diversos como o da existência, da memória ou do deslocamento se desdobram, neste romance de Antônio Torres, numa verdadeira crise de identidade. De fato, vítima de um persistente processo de (auto)exílio, Totonhim se situa nos interstícios da própria sociedade, vivenciando não uma identidade plena (supondo que essa fosse uma situação possível), mas antes uma identidade fragmentária e híbrida, uma quase nãoidentidade, resultado mais palpável de um pertinaz processo de desidentificação. Essa condição, por assim dizer, intermediária explica de modo cabal o fato de Totonhim, sem obter pleno êxito no resgate de um imaginário advindo do passado, não se amparar também numa realidade vinculada ao futuro: afirma-se, dessa forma, como autêntico deserdado, ser em transição, seja entre dois espaços distintos (campo/cidade), dois tempos diferentes (passado/ futuro) ou mesmo duas personalidades diversas (eu/outro). Enfim, personagem que, a rigor, carece de um traço identitário definido, Totonhim vive plenamente a crise de identidade a que nos referimos, a qual encontra correspondência em outras situações e outras personagens do autor, seja na revolta de De Jesus (sintomaticamente também chamado de Estrangeiro), em Os homens dos pés redondos; seja na solidão quase crônica de A., personagem sem nome de Um cão uivando para a lua; seja ainda no elucidativo suicídio de Nelo, em Essa Terra. O complexo de culpa do protagonista de Um cão uivando para a lua, por exemplo, tem muito a dizer sobre a crise vivida por esse retirante consciente de sua condição de indesejado: deixando para trás a família, culpando-se pelo que acredita ser uma desconsideração da sua parte, A. sente-se como um verdadeiro


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desenraizado na cidade que precisa conquistar; não bastasse isso, a própria desidentificação de algumas personagens do romance (que são chamados apenas pela primeira letra de seus nomes: A., T.) já se afirma como indício marcante desse fato. (TORRES, 1982) Mais do que o complexo de culpa vivido pelo protagonista desse romance, é a contundente experiência do encontro de Marília com a cidade grande, em Carta ao Bispo, que nos irá revelar todo o caráter trágico da crise de identidade presente nas obras de Antônio Torres: “Eu, Marília, gelei quando bati com a cara na primeira porta. Foi aí que descobri que eu simplesmente não existia. Fui uma invenção de um lugar, de um povo, de uma era, de mim mesmo. E nada disto existe.” (TORRES, 1979, p. 57)

Salta aos olhos o contraste brusco entre a afirmação deliberada e enfática de sua condição ontológica (Eu, Marília) e a posterior revelação de sua completa insignificância e anulação (eu simplesmente não existia), sobretudo se lembrarmos da já citada afirmação de Totonhim, em Pelo Fundo da Agulha (Eu, o estrangeiro). Independentemente do determinismo social que possa resultar do conflito vivido por personagens colocadas num meio adverso, (SILVERMAN, 1981) o importante é notar a dimensão da crise de identidade advinda desse conflito, uma crise que vai funcionar como condicionador da personalidade de cada personagem e como elemento estruturador do próprio romance. Não resta dúvida de que a crise de identidade a que vimos nos referindo ao longo desse estudo tem relação direta como a dicotomia cidade-campo – e seus conseqüentes desdobramentos – presente na maior parte dos romances de Antônio Torres, como ocorre maximamente em Essa Terra: (TORRES, 1987) ao terminar a narrativa aconselhando Totonhim a partir para a cidade grande, mas deixando a frase em suspenso, sem completar o que ia dizer, seu pai traz à tona a face mais cruel do processo migratório, que

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se completaria na desidentificação vivida por Totonhim em Pelo Fundo da Agulha. Em Antônio Torres, linguagem e ideologia conjugam-se num corpus literário de primeira grandeza, no qual o homem ocupa um lugar central: sujeito e objeto de toda a trama, é também a medida de toda narrativa. Pouca importância possuem outros componentes da narrativa, já que tudo passa a ser minimizado diante da importância assumida pelas personagens, a qual se revela – como a crítica já sugeriu – por meio de uma singular experiência do olhar, (HELENA, 2008) o qual não está isenta de uma particular percepção urbana. (FERRARA, 1988; HAUSER, 1985) Como se houvesse narrativas paralelas – uma no presente, outra no passado –, o romance em questão vai-se construindo como um enredo que se mira no espelho, em que o presente se acha incrustado no passado, e o passado, refletido no futuro. São temporalidades que se fundem interminavelmente, resultando numa composição prismática, caleidoscópica, feita, no final das contas, de memórias, recordações e remissões a tempos que não voltam mais... Exílio, solidão e memória são termos de uma complexa equação, que o autor procura conciliar em Pelo Fundo da Agulha, fazendo desses e de outros conceitos uma base para a compreensão da identidade – instável, híbrida, furtiva e oblíqua – de Totonhim, em particular, e do migrante, em geral. Camus – citado no decorrer da narrativa – questiona, em seu romance O Estrangeiro, (CAMUS, 1997) sobre a possibilidade de um homem viver toda a sua existência olhando o mundo exterior unicamente pela janela de uma prisão. Mas seria possível – talvez se perguntasse Antônio Torres, neste seu romance – levar toda a existência assistindo à passagem da vida por um intangível buraco de agulha?


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ROSENFELD, Anatol. “Reflexões sobre o Romance Moderno”. Texto/Contexto. São Paulo, Perspectiva, 1973. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SILVA, Maurício. “Essa Terra, de Antônio Torres: Um Romance Crítico-Regionalista”. Jornal de Letras, Rio de Janeiro, No. 461: 09, Ago./Set. 1990.

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A DICÇÃO POéTICA E O VERSO ROMÂNTICO NA CRÍTICA LITERÁRIA E NA POESIA DE ÁLVARES DE AZEVEDO Natália Gonçalves de Souza SANTOS[1] Este artigo prefigura um dos aspectos de um estudo que objetiva analisar e sistematizar os textos teóricos e os prefácios do escritor romântico Álvares de Azevedo, ressaltando as semelhanças e, principalmente, o possível hiato existente entre o seu fazer poético e o seu pensamento crítico. Um desses limiares refere-se à teorização de uma dicção poética e de um tipo de verso considerados ideais à poesia romântica, sendo que tais escolhas são, de certa forma, preteridas em sua prática poética. Podese dizer que as questões de readequação da linguagem poética em função de uma nova configuração social e política surgem no debate oitocentista, em larga escala, a partir do prefácio de Wordsworth às Lyrical Ballads (1800), implicando, até mesmo, na cunhagem de novas metáforas que exprimissem o fazer poético. Álvares de Azevedo, a par dessas polêmicas, especialmente a que se refere ao verso romântico, cuja ressonância foi grande no cenário brasileiro, discuti-as em diversas passagens de sua crítica literária e, em particular, em Literatura e civilização em Portugal – Fase heroica e fase negra e no ensaio sobre o poema “Rolla”, de Alfred de Musset, ambos de 1850. Neste último, defende o emprego de uma espécie de linguagem essencial, vinculada à poesia por uma dicção mais popular, ao mesmo tempo em que parece preterir o próprio Wordsworth como exemplo de seus ideais críticos, deixando entrever um hiato já conhecido entre a teoria e a prática poéticas do escritor inglês. No entanto, ao assumir semelhante argumentação, Azevedo também caracteriza, em alguns pontos, a configuração de posturas aparentemente distintas entre sua teoria e prática literárias. PALAVRAS-CHAVE: Romantismo, crítica literária, Álvares de Azevedo.

O processo de reordenação, operado desde o século XVIII e especialmente no decorrer do século XIX, daquilo que M. H. Abrams chama de “analogias arquetípicas” é de fundamental compreensão 1

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para o trabalho de interpretação e análise crítica das obras de arte (ABRAMS, 2010, p. 52). Embora seja possível verificar que há certa continuidade, paralelamente à revolução iniciada pelos escritores do Romantismo, entre as metáforas críticas empregadas no Classicismo e a sua nova configuração dentro dos padrões estéticos românticos, podemos perceber que o que mais radicalmente se reordena é a posição ocupada pelo artista que é deslocado “para o centro do sistema crítico” (ABRAMS, 2010, p. 50). Consequentemente, essa mudança de foco alterará os critérios de valor subjacentes ao julgamento de uma obra artística. Características como a espontaneidade, a expressão da subjetividade do artista na obra são, a partir do Romantismo, valorativas para um determinado produto estético em detrimento das regras imutáveis da estética da Bela Natureza (ABRAMS, 2010, pp. 59 a 66). Tentativas pragmáticas são, na maioria das vezes, tidas pela estética romântica como artifício retórico e, portanto, desqualificadas enquanto produto orgânico da mente do autor. Tendo em vista as referidas características valorativas, é compreensível o fato de o gênero lírico ter se tornado, pela primeira vez, o mais importante na hierarquia dos gêneros literários, pois ele, aparentemente, contentaria as metas de espontaneidade pretendidas pelos poetas daquele momento (ABRAMS, 2010, p. 123). Paralelamente a essa supervalorização do gênero lírico no campo literário, houve uma perda considerável do status das atividades artísticas de maneira geral, e especialmente da atividade poética, no processo de ascensão da burguesia na Europa. Dessa forma, muitas das metáforas críticas produzidas pelos escritores românticos possuem um cunho utilitário de validação da atividade poética sob uma postura de aparente descompromisso ideológico, que procura acentuar o seu lugar de exceção, quando, na verdade a própria sociedade os exclui devido ao que eles podem oferecer-lhe. É o que podemos dizer da metáfora empregada por Wordsworth, no prefácio às Lyrical Ballads, de 1800: “a poesia é o


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transbordamento espontâneo de sentimentos poderosos; originase na emoção acumulada na tranquilidade [...]” (Apud LOBO, 1987, p. 184). A ênfase na liberação espontânea do sentimento e a importância conferida a ele contrastam fortemente com o modelo de organização social sedimentado a partir do momento em que Wordsworth escreve. O grau de relevância dessa metáfora também pode ser mensurado por meio do seu poder de dispersão, tendo em vista as inúmeras paráfrases que a proposição inicial sofreu ao logo do desdobramento do movimento romântico. Podemos encontrar seus ecos em vários pontos da obra do poeta Álvares de Azevedo e, especialmente, no prefácio à primeira parte da Lira dos vinte anos, publicado a cinquenta anos da proposição original.[2] Azevedo nos diz que seus poemas são “cantos espontâneos do coração, vibrações doridas da lira interna que agitava um sonho, notas que o vento levou, - como isso dou a lume essas harmonias” (2002, p. 49). Dada a grande abrangência da metáfora de Wordsworth para a criação da poesia lírica, não é absolutamente possível afirmar que Azevedo haja retirado sua inspiração exatamente do poeta inglês para a escrita de seu prefácio, tendo em vista que as ideias do prefácio às Lyrical Ballads podem ter chegado ao Brasil no bojo de muitas outras. É possível dizer o mesmo do conceito de dicção poética recomendado por Wordsworth e que é, de certa forma, adotado pelo escritor brasileiro, especificamente, na tradução comentada de alguns trechos do poema “Rolla”, de Alfred de Musset e no longo ensaio Literatura e civilização em Portugal – Fase heroica e fase negra, ambos de 1850. 2 Embora Lira dos vinte anos tenha tido sua primeira edição em 1853, menos de um ano após o falecimento de seu autor, o prefácio à primeira parte do livro saiu apenas na 2ª edição, de 1862, ocupando o lugar que ocupa atualmente apenas a partir da 4ª edição, em 1873 (AZEVEDO, 2000, pp. 547 a 553 e consulta às primeiras edições. Disponíveis em: www.brasiliana.usp.br).

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A dicção poética proposta por Wordsworth para a poesia moderna funciona organicamente à sua exigência de espontaneidade. Nesse sentido, ele lança o questionamento “que é um poeta? […] Ele é um homem que fala aos homens […] (1987, p. 176)” e nessa resposta está contida uma tentativa de comunicação, talvez mesmo de inclusão, de outras esferas sociais que não estariam dentro do círculo cultural de então e em cujas vidas o sentimento estaria mais aflorado. Por isso, para Wordsworth O poeta pensa e sente como o espírito das paixões humanas. […] o poeta deve descer de suas supostas alturas, e exprimir-se como outros homens […]. Nossos sentimentos são os mesmos com relação à métrica pois, como seria apropriado lembrar ao leitor, a característica do metro é ser regular e uniforme, e não, como quando provocado pelo que geralmente se chama de dicção poética, arbitrária e sujeita aos infinitos caprichos com relação aos quais não se pode fazer qualquer conjectura (1987, p. 181). 539

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As preocupações com a linguagem essencial não têm fundo apenas estético, mas também ideológico, pois poderiam corresponder, de forma geral, aos ideais revolucionários do período provenientes da França. Embora, no caso específico dos “lake poets”, o seu entusiasmo com a Revolução Francesa foi apenas inicial, assumindo depois, uma postura prioritariamente contrarrevolucionária, em acordo com a defesa de seus privilégios de classe (CARPEAUX, p. 1692). No Brasil, a situação intelectual dos anos de 1840/50 é distinta, como se sabe, da Europa dos inícios do século, porém, o anseio de elaboração de uma poesia que empregasse linguagem mais espontânea também se manifesta. É o que podemos ver neste trecho do ensaio Literatura e civilização em Portugal, no qual Azevedo critica a poesia contemporânea portuguesa por sua demasiada afetação, ou seja, seu alvo são as extravagâncias, a seu ver, do ultrarromantismo,


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da afetação em geral de toda essa mocidade que desgarrouse da simpleza de dizer do Sr. Almeida Garret, e foi-se à cena falar às turbas uma língua que não era a dela, a língua bela sim, mas morta - do quinhentismo: e, como Chatterton, sacrificou porventura o cintilar das ideias pela hirteza de um falar elaborado, e em lugar de inspirações de poesia, preferiu mostrar a sua ginástica de jogral [...] (2000, p. 719).

Quanto à linguagem, dissemo-lo, ajeita-se à feição do seu modelo: Rolla amanta-se como o Cavaleiro do mar. Não se enubla nas melodias confusas da escola francesa, reflexo macio das harmonias do Lakismo de Wordsworth – belos, mas a quem se pudera aplicar as palavras da rainha Agandecca de George Sand, ao pálido Aldo, o bardo – “poeta, és belo como a lua à meia-noite, e monótono como ela” (2000, p. 687).

Para Álvares de Azevedo, como é dito, um dos grandes problemas do século é a alta recorrência de arcaísmos, pois ela desviaria o poeta de sua função de falar aos homens de seu tempo, na sua linguagem característica, tornando-o um “antiquário” e por isso, pelo menos em Portugal, a poesia de Almeida Garrett é apontada como solução de estilo “no drama, no poema, nas poesias fugitivas, isso que os Ingleses chamam poetry of the heart, o eloquente orador, o publicista de tão bem escritos pamphlets, o Sr. Garrett [...] (2000, p. 721).” Com relação a Alfred Musset, Álvares de Azevedo levanta algumas questões semelhantes sobre a dicção poética. A linha comparatista, geralmente adotada pelo brasileiro, faz com que a análise de Musset se baseie em pontos de aproximação ou não com a poética de Lord Byron. É nesse sentido que o escritor afirma:

Quando Álvares de Azevedo qualifica de monótonas as harmonias do lakismo de Wordsworth, ele pode estar sugerindo que características propostas no prefácio às Lyrical Ballads, ao serem aplicadas na poesia, não parecem tão vivazes assim. Por isso, é interessante perceber que, nesse ponto, há a adoção de um padrão de dicção poética semelhante à proposta por Wordsworth no prefácio às Lyrical Ballads, mas que essas mesmas poesias não são tomadas para legitimar essa mesma dicção e logo depois, há, mesmo que inconscientemente, um tipo de preterição da poesia do poeta inglês tendo em vista a influência exercida por este na escola francesa. Este fato deixa transparecer uma espécie de hiato entre a produção crítica e a produção poética de Wordsworth que é, aliás, agudamente apontado por Samuel Colerigde. Em sua Biographia Literaria (1817), entre outros assuntos, ele trata do projeto das Lyrical Ballads, sendo uma de suas primeiras preocupações a de se desvincular das ideias contidas no prefácio em questão:

Aí é [no estilo] que sobretudo ressumbra no autor dos Contos de Espanha e Itália a poesia byrônica. É aquela força de dicção, livre e chã, sem cair no ridículo pelo uso do exprimir popular; que nele se embebe de mais têmpera, e mais viva palpita [...] (2000, p. 686).

É possível perceber como as exigências do primeiro momento do Romantismo inglês, tornadas exigências românticas gerais, fazem eco no Romantismo tardio que é o de Álvares de Azevedo, naquilo que toca o anseio pela linguagem essencial. Neste outro trecho, o brasileiro reconhece a influência da geração de Wordsworth na geração francesa de 1830, que é a de Musset, apontando inclusive, problemas nessa influência:

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Jamais contribuí para muitas partes deste prefácio, no sentido que lhe é atribuído e cujas palavras indubitavelmente parecem autorizar; pelo contrário, objetei que elas eram errôneas em princípio e contraditórias em relação ao próprio princípio que o autor mantinha na maioria dos próprios poemas (Apud LOBO, 1987, p. 203).

Sendo um dos principais pontos de divergência o da utilização do verso e do metro que, para Coleridge, trata-se de algo orgânico dentro da composição de um poema e que alteraria toda a sua


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organização, tornando-o “legítimo” (1987, p. 205), enquanto, para Wordsworth, a adição do metro implicaria apenas um tipo de “charme” adicionado à linguagem natural sob a influência dos sentimentos poderosos (ABRAMS, 2010, p. 163). Essas escolhas estéticas influenciariam, consequentemente, o tipo de público atingido por tais composições, o que motiva Coleridge a dizer que, se para Wordsworth, o poeta é um homem falando para outros homens, não são exatamente as “classes mais baixas”, matéria das Lyrical Ballads, que vão escutá-lo e admirá-lo, mas sim, em sua maioria “jovens de forte sensibilidade e espírito meditativo (1987, p. 203)”, pois a linguagem empregada pelo autor das baladas, muitas vezes, ultrapassa sua proposta de dicção poética e de linguagem natural, exigindo um grau de sensibilidade maior por parte do público leitor, fazendo aí a clivagem daqueles que terão acesso. De forma geral, esse distanciamento entre teoria e prática poética no Romantismo não é, como se sabe, uma particularidade de Wordsworth. Álvares de Azevedo trilha semelhante caminho ao cotejarmos as características que ele valora como positivas em Musset e a sua prática poética. Nesse sentido, Péricles Eugênio da Silva Ramos nos explica que A composição de Álvares de Azevedo, aliás, é a de quem estudara retórica e poética. Assim usa mais de uma vez “versus applicati” ou “singula singulis”, como em “Ó florestas! Ó relva amolecida, / A cuja sombra, em cujo doce leito”, estrutura que deve ser entendida como: “Ó floretas a cuja sombra, ó relva amolecida em cujo doce leito.” [Sendo que] O uso desses recursos por vezes dificulta a compreensão de Álvares de Azevedo, pois as figuras tipo “singula singulis” são extremamente escassas em nossa literatura, excluído o período barroco (1968, pp. 113 a 115).

Fato que não exatamente surpreende, tendo em vista que os poucos interlocutores que o poeta podia ter eram os outros jovens meditativos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, membros da elite brasileira. O “exprimir do povo” e a comunicação

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com ele se dava da maneira como nos explica Hélder Garmes: “É a partir de Lamennais que os acadêmicos dialogam com o povo, isto é, com o “povo” de Le livre du peuple (2006, p. 67)” justificando, assim, o tipo de linguagem encontrada em sua poesia e a discordância, em partes, com seu pensamento teórico.

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LIMITES ENTRE FICÇÃO E HISTÓRIA NO ROMAN A CLÉF O INFERNO É AQUI MESMO, DE LUIZ VILELA Pauliane Amaral (PG-UFMS) Nossa proposta de estudo analisa como a forma do roman a cléf se constitui de maneira única dentro do romance O inferno é aqui mesmo (1979), do escritor mineiro Luiz Vilela, expondo a partir dessa abordagem as possibilidades de estudo de obras que trabalham na área limítrofe que marca a fronteira entre história e ficção dentro da estética do roman à clef. O inferno é aqui mesmo reconstrói a experiência do autor como jornalista durante os nove meses em que trabalhou na redação do Jornal da Tarde, em 1968. Nosso desafio principal é distinguir e delimitar a abordagem da relação ficção/história do roman à clef ao lado de outras narrativas autobiográficas, como a autoficção e o memorialismo. Surgido na França durante o século XVII, o roman à cléf nasceu para possibilitar a apresentação de personagens e fatos históricos sob nomes fictícios, gerando, ao mesmo tempo, anonimato e provocação. Dessa forma, escritores que frequentavam os salões literários faziam representações ficcionais de pessoas conhecidas da corte de Luís XIV para apimentar suas histórias. Segundo definição do Dicionário de Termos Literários (2004, p. 399), de Massaud Moisés, o roman a cléf é uma expressão francesa que designa romance ou novela com uma chave, em que personagens e acontecimentos reais aparecem sobre nomes fictícios. Além de enriquecer os estudos sobre o livro corpus O inferno é aqui mesmo, este trabalho também pretende entender como a estética do roman à clef se modificou através do tempo, através da comparação do livro de Vilela com outros livros classificados como roman à clef, como é o caso dos romances valsa Negra (2003), da também contemporânea Patrícia Melo e Recordações do Escrivão Isaias Caminha (1909), do pré-modernista Lima Barreto. Palavras-chave: autobiografia; roman à clef; ficção; história

Presente na escrita ocidental ainda na forma de hypomnemata[1] FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Passagens. 1992. pp. 129-160.

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na Grécia antiga, as chamadas escritas de si sobreviveram ao tempo e hoje passam por redefinições dentro da literatura contemporânea. Se, como aponta Sheila Dias Maciel (2004, p. 79) o inicio das escritas confessionais datam do século XIX, elas se afirmam como gênero no século XIX e tem seu apogeu no século XX, quando se tornam produto de consumo, qual caminho podemos vislumbrar para as escritas autobiográficas nesse inicio de século XXI? Os apontamentos são muitos e um dos poucos consensos entre os estudiosos é que cada vez mais a literatura contemporânea cria desdobramentos que desafiam os limites entre ficção e história. Procurando maneiras de identificar as fronteiras entre história e ficção, investigaremos como o roman à clef, gênero que “remonta à França do século 17, na qual os integrantes dos salões literários queriam apimentar suas histórias com a inclusão de representações ficcionais das pessoas conhecidas na corte de Luís 14” (PIMENTA, 2009, p. 44), se configura na escrita autobiográfica contemporânea através de um estudo do livro O inferno é aqui mesmo (1979), de Luiz Vilela. Nesse trabalho restringiremos a análise do roman à clef ao lado do memorialismo e da autoficção, consideradas por nós como desdobramentos da escrita autobiográfica, e deixaremos para um segundo momento uma análise que inclua os outros gêneros. A concepção de história é entendida por nós dentro do plano do biográfico, da experiência pessoal em contraponto com a história como metanarrativa, que interessa a toda uma comunidade; ao ponto que ficção refere-se à criação literária com origem na imaginação do escritor. É pertinente a distinção que White (1992) faz da essência da criação histórica e da literária: Ao contrário de ficções literárias como o romance, as obras históricas são feitas de acontecimentos que existem fora da consciência do escritor. Os acontecimentos relatados num


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romance podem ser inventados de um modo que não podem ser (ou não devem ser) inventados numa história (WHITE, 1992, p. 21, [nota de rodapé]).

[...] para que haja autobiografia (e literatura íntima), é preciso que haja relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem. (LEJEUNE, 2008, p. 15).

Utilizando ferramentas como a fortuna crítica, entrevistas e outros textos podemos encontrar elementos que nos dão pistas sobre os limites dessa tênue fronteira, mas nunca com exatidão e concretude. Essa impossibilidade está presente no cerne da própria historiografia que, a priori, trabalharia apenas com o real, mas que não escapa ao emprego da imaginação e linguagem poética.

Na escrita autobiográfica, autor, narrador e personagem são marcados pelos limites entre experiência vivida e criação ficcional. Lançado no fim da década de 70, o romance O inferno é aqui mesmo data do período chamado por alguns críticos como boom literário nacional, iniciado a partir de 1975, caracterizado, entre outros fatores, pela “conquista de mercado, divulgação de novos autores, interesse pela produção nacional, lucros editoriais maiores [...]”. (SUSSENKIND, 1985, p. 20). O livro é narrado pelo protagonista Edgar, jornalista mineiro que é convidado para trabalhar em um jornal na cidade de São Paulo. A narrativa retrata o período em que o jornalista-protagonista trabalhou no jornal, desde sua chegada a cidade até a volta para a sua cidade natal, no interior de Minas Gerais, antes de partir para uma viagem ao exterior. Ao colocarmos lado a lado a narrativa do romance e a biografia do próprio escritor fica evidente a ligação entre as duas. Assim como o protagonista, o autor também foi convidado para trabalhar como jornalista em São Paulo, e lá ficou durante nove meses do ano de 1968. O ano também é o mesmo retratado em O inferno é aqui mesmo, o que nos leva a primeira chave do roman à clef: o nome do jornal, que passa do biográfico Jornal da Tarde para o ficcional O Vespertino, nos fornece a primeira pista sobre a ligação entre biografia e ficção na narrativa. Antes de nos debruçarmos sobre das fronteiras autobiográficas dentro do romance de Luiz Vilela, é pertinente revermos alguns pontos que ajudaram a formar a noção de autobiografia que conhecemos hoje. Com o advento do modernismo, iniciado tardiamente no Brasil na primeira metade do século XX, marcado pela Semana de Arte Morderna de 1922, surge a consolidação de um sujeito burguês que se volta cada vez mais para si, e a partir dessa introspecção tenta entender a si e ao mundo.

O conhecimento histórico é indireto — por via das fontes —, parcial — os documentos não fornecem visão total e isenta sobre o pretérito —, imaginativo — a imaginação preenche as inevitáveis lacunas — e, em resumo, construído pelo historiador a partir de vestígios do passado, ou seja, ficcional. (VIEIRA, 2009, p. 26-27).

Considerando essa problemática, nos parece mesmo impossível definir obras como sendo puramente ficcionais ou não-ficcionais. Mas se essa premissa estiver correta, então devemos nos perguntar: qual o sentido em desvendar os limites da ficção e história em gêneros autobiográficos? Muito mais profícuo que procurar a projeção do universo empírico no confessional, a análise de textos que trabalham nesse limite nos permite ver a mudança da própria imagem do homem a cada mudança nas formas autobiográficas. A autobiografia, entendida dentro dos limites do pacto autobiográfico de Philippe Lejeune, é definida como [...] narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade. (LEJEUNE, 2008, p. 14).

Em complemento a essa definição, Lejeune determina que

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A fragmentação do sujeito moderno é o grande responsável pela vontade despertada nos escritores das décadas de 20 e 30 em juntar as peças desse quebra-cabeça e tentar redefinir o homem e suas relações dentro de uma sociedade em transformação. Aqui, temos o primeiro grande momento da escrita autobiográfica na literatura brasileira, fortemente ligado a escrita memorialística e ao resgate do clã, da família e não apenas do eu. como aponta Diane Klinger, citando observação de Silviano Santiago: Os textos modernistas, segundo Santiago, tendem a apresentar uma visão conservadora da sociedade patriarcal brasileira: o narrador modernista “pactua com os antepassados patriarcais e com atitude estóica daqueles que, tendo já experiência longa de vida, se resguardam das intempéries existenciais”. (KLINGER, 2006, p. 22).

Nesse momento começam a ser formadas marcas da escrita autobiográfica que ainda ressoam na literatura contemporânea, como a busca pela experiência como formação (Bildungsroman) e a discussão em torno da própria escrita como possibilidade representativa de uma nova noção de sujeito. O inferno é aqui mesmo pertence, ao segundo grande momento autobiográfico da literatura brasileira, que ocorreu entre os anos 60 e 70, quando o escritor coloca em [...] segundo plano nos seus textos a dramatização dos grandes temas universais e utópicos da modernidade, da mesma forma como guarda distância dos temas nacionais clássicos, e ainda discute sem piedade os temas oriundos de 22 que falavam da indispensável modernização industrial do país. (SANTIAGO, 2002, p. 16).

Procurando fazer o luto da experiência ditatorial, a produção literária nacional e, por extensão, a literatura Latino Americana, encontraram alguns caminhos para abordar o assunto. Entre as principais formas literárias do período estão a alegoria e a escrita

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autobiográfica, como mostra Idelber Avelar em Alegorias da derrota. A ficção pós-ditatorial e o trabalho de luto na América Latina (2003). Silviano Santiago afirma que a literatura fantástica e o romance-reportagem “foram dominantes nos primeiros anos da chamada ‘abertura’ [1964-68]” (SANTIAGO, 1989, p. 32). A narrativa do tipo autobiográfica só ganharia força com o retorno dos exilados políticos, que teve seu ápice entre 1975 e 1979, como mostra Franco (1998), ao estudar o 3º movimento da literatura pós-64 em Itinerário político do romance pós-64: A festa. Incluído na alternativa autobiográfica, O inferno é aqui mesmo mostra um panorama de um dos anos em que a repressão militar atuou com maior força no país: 1968, marcado pela implantação do AI-5. Outro ponto importante do livro é o fato do narrador trabalhar em um jornal, cenário ligado à prática da censura e matéria para outras narrativas da época, como A festa (1976) de Ivan Ângelo e Bar Don Juan (1971), de Antônio Callado. O universo jornalístico, tendo papel principal ou secundário, é repetição temática na obra de Luiz Vilela e aponta para uma imagem ficcional criada a partir da experiência biográfica. Ao analisar a autobiografia no livro O choro no travesseiro (1979), Maria Rita de Oliveira Wider (2007), destaca um movimento recorrente no trânsito das personagens da periferia para o centro que pode ser visto em obras como Entre Amigos (1983), Te amo sobre todas as coisas (1994), assim como em O inferno é aqui mesmo (1979): Esse deslocamento, semelhante ao do escritor, acaba por trazer para o palco do debate a questão do teor testemunhal de suas obras, concebendo a ideia de ‘testemunho’ não apenas como um relato de grandes experiências factuais, mas como relato de experiências vivenciais do pequeno ‘eu’ no emaranhado humano da vida. (WIDER, 2007, p. 38).

Assim como o deslocamento das personagens da periferia para


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o centro, outro traço autobiográfico dentro da obra de Vilela é a presença do universo jornalístico, presente tanto no relato de experiências dentro da redação, assim como em observações do autor sobre a ação dos meios de comunicação nas relações interpessoais. O último romance de Luiz Vilela, Perdição (2011), também é narrado por um jornalista. O trecho do romance “Oração ao cowboy”, publicado na revista Digital Luiz vilela n° 1 evidencia a forma irônica que o autor utiliza para falar do ofício jornalístico, nesse caso em uma cidade de interior: Barroso, filho único de um rico fazendeiro, dizia para as pessoas que, chegando aos cinquenta anos e pensando sobre a sua vida até então, concluiu que já cometera todos os tipos de loucura, menos uma: abrir um jornal no interior. Aí resolveu cometer essa loucura também. Comprou — como já contei — as máquinas de um jornal que havia tempos fechara, trazendo com elas três gráficos. Depois alugou o prédio de uma velha escola desativada. Então contratou para redator um entediado professor de português no colégio — este, que ora escreve estas linhas —, para repórter, Nina, uma sobrinha que “gostava de escrever” — ganhara, por duas vezes, o prêmio de melhor redação na escola! — e para fotógrafo um rapaz, Tobias, seu protegido (segundo as más línguas, um de seus vários filhos, espalhados pela cidade), e nascia, assim, a Tribuna do Povo, nosso prestigioso hebdomadário. Epa!... (VILELA, 2011, p 13-14, grifo nosso).

No trecho acima, o autor explicita o caráter amador do jornal aberto por um filho de fazendeiro, que longe da preocupação de servir a sociedade parece cumprir mais a função de terapia ocupacional do dono. As aspas em “gostava de escrever” indicam ironicamente ao leitor que gostar de escrever não garante que a sobrinha do dono do jornal Tribuna do Povo saiba de fato escrever. Outro roman à clef também passado em uma redação de jornal é Recordações do escrivão Isaias Caminha (1909), de Lima Barreto. A narrativa conta a história de mulato que sai do interior

para tentar a carreira como jornalista no Rio de Janeiro, capital do Brasil na época. Assim como Vilela, Lima Barreto também trabalhou no jornal carioca Correio da Manhã e lá conheceu o lado não glamoroso da profissão, que incluiu preconceito racial e negociatas políticas. Assim como em O inferno é aqui mesmo, também encontramos em Recordações do escrivão Isaias Caminha o tom satírico próprio do roman à clef. Francisco de Assis Barbosa, no prefácio de umas das edições do livro, afirma que Lima Barreto [...] retratou certos políticos e certos literatos como eram de fato: caricaturas de líderes e de intelectuais” e que o livro “representa a luta não somente contra o preconceito de cor, mas contra a mediocridade, contra uma falsa concepção de imprensa e literatura. (BARBOSA In: BARRETO, 1995, p.4).

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Regis de Morais, em Lima Barreto. O Elogio da subversão (1983) lembra que “os personagens foram calcados na gente desse periódico [Correio da Manhã], podendo-se até usar uma chave para decodificar quem Lima estava escrevendo [sic] em cada passo do texto” (MORAIS, 1983, p. 67, grifo nosso). Sobre a reação da crítica, Morais conta que: Contra o escritor foi erguida uma parede de ostensivo silêncio, só de vez em quando quebrado por uma ou outra voz que não lograva conter sua ira. Desdenhosamente, chamaram seu livro de romanas a cléf, um livro, segundo certo crítico enraivecido, escrito em cima de personalidades concretas por pobreza de imaginação e baixos sentimentos de vingança. (MORAIS, 1983, p. 67).

O roman à clef é caracterizado também por possibilitar ao mesmo tempo anonimato e provocação. Segundo definição do Dicionário de Termos Literários, de Massaud Moisés, “o roman à cléf é uma expressão francesa que designa romance ou novela com


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uma chave, em que personagens e acontecimentos reais aparecem sobre nomes fictícios”(MASSAUD, 2004, p. 399). O anonimato dos personagens permite ao escritor se ater ao referencial ao fato biográfico sem que isso lhe cause futuros constrangimentos. A possibilidade do romance ser lido por meio de chaves (se você conhece o referencial é possível identificar o biográfico dentro do texto) indica uma estreita relação entre o que o texto remete e o que existiu de fato fora dele, característica que se estande às outras formas de escrita autobiográfica. Num devir temporal, as escritas autobiográficas foram mudando sua forma e com isso gêneros tão antigos como o roman à clef se apresentam hoje de uma maneira muito diferente de quando da época de seu surgimento. Ao colocarmos lado a lado os romans à clef Recordações do escrivão Isaias Caminha (1909), O inferno é aqui mesmo (1979) e Valsa Negra (2003), da escritora Patrícia Melo, só para citarmos um dos últimos livros lançados utilizando a estética do roman à clef, notamos a mutação do gênero ao longo do tempo. Uma dessas mudanças diz respeito a focalização, onde notamos uma crescente “contaminação” do olhar do narrador sob os demais personagens. Comparando as duas obras mais recente, percebemos uma mudança acentuada da focalização externa para a interna nos narradores protagonistas. Há uma grande distância entre a posição quase antropológica do narrador de Vilela em relação ao protagonista de Melo, que não se importa em contaminar e distorcer as outras personagens na sua narração. Essa mudança nos faz propor uma tendência de aproximação gradual entre o roman à clef e a autoficção, gênero autobiográfico que em que a fronteira entre história e ficção se apresenta de forma mais embaraçada possível, da qual que trataremos adiante. Ao lado de uma narrativa memorialística, com “maior liberdade imaginativa que os outros gêneros autobiográficos” (MACIEL, 2004, p. 84), o roman à clef consegue indicar mais pistas do biográfico no texto, ao deixar implícita a existência de chaves.

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Não esquecendo que todos os gêneros autobiográficos são entrecortados pela ficção, o roman à clef remete a estratagemas próprias do jornalismo. A estratégia a que nos referimos é a prática comum em jornais quando, em um conflito de interesses, desloca da matéria para as crônicas, editoriais e artigos a informação que não pode ser comunicada de forma direta. Similarmente ao que acontecia com as matérias codificadas nos jornais no período de ditadura militar — publicação de receitas de bolo no lugar de uma matéria censurada, que indicava censura —, no roman à clef, há possibilidade dos detentores da informação biográfica identificar personagens e situações presentes no romance. Considerado esse fato, vemos que o roman à clef tem referenciais mais estreitos com a história do que um relato memorialista, por exemplo.. No aspecto referencial, a escrita da memória estaria mais ligada à experiência de formação do autor, em que personagens secundários ajudam a formar o significado da experiência de quem recorda, e não tem maior peso fora desse contexto. Como em Memórias do Cárcere (1953), de Graciliano Ramos, o sujeito autor rememora a experiência da prisão através do rememorar do próprio narrador. Ao contar suas histórias, suas angústias, o prisioneiro sempre insere os outros personagens a partir da experiência que esses desencadearam na personagem narradora. Nenhuma personagem existe autonomamente no romance, todas elas provocaram alguma experiência no narrador e apenas por isso estão vivas na narrativa. Em Graciliano essa característica perpassará toda a sua obra, até mesmo nas mais distantes da escrita confessional, como vidas Secas. Em Ficção e confissão, Antonio Candido ressalta que “o escritor vê o mundo através dos seus problemas pessoais; sente necessidade de lhe dar contorno e projeta nos personagens a sua substância, deformada pela arte” (CANDIDO, 2006, p. 90). Sem equívoco, a assertiva acima também serviria para definir a relação do narrador de valsa Negra com as demais personagens do livro,


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com um único adendo: no memorialismo o escritor vê o mundo através dos seus problemas pessoais, ao passo que no roman à clef só podemos afirmar que o narrador vê o mundo através dos seus problemas pessoais. Ao analisarmos como o outro é focalizado de forma diferente nos romans à clef valsa Negra e O inferno é aqui mesmo (em que as demais personagens da narrativa se relacionam com outras personagens, sem a necessidade de vínculo com o narrador), percebemos uma mudança na estrutura narrativa do próprio gênero. No livro de Melo, o roman à clef também agrega características do memorialismo e da autoficção. Em O inferno é aqui mesmo, mesmo surgindo por meio da narração, as personagens tem uma vida autônoma do olhar do narrador, e isso permite que a história se desenrole como em qualquer romance ficcional. Nesse roman à clef o trabalho de descoberta de si é marcado pela epifania, como o momento em que o narrador profere a frase que dá título ao livro[2]. A busca pelo conhecimento de si e a relação com o passado biográfico que vemos no memorialismo e no roman à clef, se diluem em uma das formas mais recentes de escrita autobiográfica: a autoficção. Dentro desse gênero já não é mais possível vislumbrar o contato com a verdade biográfica como no roman à clef e no memorialismo. Mesmo que no roman à clef a ambiguidade referencial impossibilite que haja de fato um pacto autobiográfico, o leitor pode tentar achar a chave, pois essa é a possibilidade que o autor lhe confere ao escrever dentro dessa estética. Na autoficção, ao contrário do que acontece com o memorialismo e o roman à clef, encontrar as fronteiras entre história e ficção dá lugar a discussão sobre as próprias fronteiras que marcam a figura do autor, “uma figura que se situa no interstício entre ‘mentira’ e ‘confissão’” (KLINGER, 2006, p. 55). A inclusão da autoficção dentro do que consideramos escrita autobiográfica é pertinente 2

VILELA, 1983, p. 154.

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ao considerarmos que há dentro desse gênero uma identidade nominal entre autor, narrador e personagem. A emergência da autoficção é evidente ao considerar a reavaliação da própria noção do sujeito contemporâneo. Fragmentado e ao mesmo tempo interligado ao mundo todo, esse homem contemporâneo é marcado pelo paradoxo gerado pela junção da superexposição com o isolamento. Se o sujeito do memorialismo procura sua identidade no clã, na família, no passado histórico e o sujeito autobiográfico a partir de seu eu tentava alcançar o sentido do que o rodeava, o sujeito da autoficção procura entender o que é esse eu, o que pode ser chamado de eu em um tempo em que o mesmo sujeito pode ter vários eus. Um desses eus explorados pela autoficção é a própria figura do autor, que hoje tem rosto conhecido, dá palestras, aparece na televisão, publica na internet (em blogs, redes sociais, etc.), tornando-se ele mesmo uma espécie de criação ficcional[3]. Dessa forma, a autoficção pode ser entendida como “uma ‘escrita de si’ sobre a encenação da própria criação e produção” (SHOLLHAMMER, 2011, p. 49). A principal distinção entre o roman à clef, o memorialismo e a autoficção é que o último gênero não permite a possibilidade de encontrar referencial na história. Como aponta Diana Klinger, na autoficção o conceito de verdade não está ligado a uma verdade autobiográfica e não pode ser verificável. Na autoficção “a única verdade possível reside na ficção que o autor cria de si próprio [...]” (KLINGER, 2006, p. 56). Essa impossibilidade referencial pode ser vista em Nove Noites (2001), de Bernardo Carvalho, que conta a história de um jornalista que... [...] se interna na aldeia de índios krahô no Xingu em busca de dados sobre Bell Quain, promissor antropólogo norteamericano que, em 1938, aos 27 anos se suicidou em 3

Sobre a relação autor mídia e literatura ver SHOLLHAMMER, 2011, p. 47.


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perspectivas de recuperar a sanidade. A força da narrativa de Melo não se sustenta pela procura das chaves desse roman à clef, mas na intrincada construção psicológica do narrador. A análise desses três gêneros autobiográficos nos permite afirmar que, não apenas o roman à clef, mas outros gêneros autobiográficos, ao tratar das questões entre o eu e o mundo, ou o eu no mundo, como é o caso da autoficção, vê as fronteiras entre ficção e história em progressiva diluição. Como consequência, a perda da referencialidade entre história e ficção abre espaço para a discussão sobre a figura do autor e da literatura em tempos em que a mídia tornou-se a principal criadora das narrativas do cotidiano.

circunstâncias misteriosas quando voltava da aldeia indígena para a cidade de Carolina. (KLINGER, 2006, p. 9-10).

Klinger pensa as formas autoficcionais a partir da transgressão do pacto ficcional, “incorporando elementos que exigem serem lidos em clave, referencial” (KLINGER, 2006, p. 10). Em Nove noites, [...] a figura do narrador também está montada com traços autobiográficos e Bernardo Carvalho, ao colocar na orelha do livro uma foto sua, aos seis anos de idade de mãos dadas com um índio no Xingu, insere sua própria imagem na trama romanesca. É precisamente essa transgressão do ‘pacto ficcional’ em textos que – no entanto – continuam sendo ficções o que os torna tão instigantes: sendo ao mesmo tempo ficcionais e (auto) referenciais, estes romances [autoficcionais] problematizam a ideia de referência e assim incitam a abandonar os rígidos binarismos entre “fato” e “ficção”. (KLINGER, 2006, p. 11, grifos meus).

Essa relação entre ficção e história na autoficção influência a escrita contemporânea do roman à clef. É sintomático encontrar no livro de Patrícia Melo características de escritores contemporâneos representantes da autoficção. A escritora, assim como João Gilberto Noll e Bernardo Carvalho, mostra predileção pela... [...] narrativa construída sobre a figura do trauma [...], pois permite que o incidente traumático pessoal remeta metonimicamente ao trauma da história e porque assim se justifica a necessidade de reconstrução da realidade individual numa identidade mais ampla, histórica, que o escritor trata de recuperar. (SHOLLHAMMER, 2011, p. 52).

O narrador-protagonista do romance valsa Negra é uma figura intelectual, um maestro, que cai gradativamente em um abismo do eu, causado pela sua incapacidade de se relacionar com os outros, até o ponto em a personagem se vê totalmente solitária e sem

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não tem tido correspondente interesse de avaliação teórica na universidade brasileira. Já nos países de língua castelhana das Américas, nomeada quase sempre como microficción, mas também recebendo outras denominações, há uma produção teórica que procura descrever o subgênero, verificando sua configuração e traçando os seus limites. O objetivo deste trabalho é, por meio de 29 aforismos, principiar um levantamento das características do microconto brasileiro, considerando publicações assim nomeadas por autores que já tenham alcançado algum reconhecimento crítico ou editorial por suas realizações literárias.

APONTAMENTOS SOBRE O MICROCONTO Rauer Ribeiro Rodrigues[1] Reflexões sobre o microconto brasileiro contemporâneo, em forma de 29 aforismos. De maneira oblíqua, retoma a trajetória do conto moderno, iniciada com Edgar Allan Poe e marcada, em especial, pelas contribuições de Machado de Assis, Tchekhov, Joyce, Kafka, Virgina Woolf, Mansfield, Borges, Hemingway, Cortazar, Piglia e Luiz Vilela. Vê em passado mítico e nas histórias orais do período ágrafo rastros do que é o microconto dos nossos dias. Deduz ligações entre a virtualidade dos bytes contemporâneos e o novo modo de construir as micronarrativas. Insiste na intangibilidade do literário.

OS AFORISMOS 1. O microconto é uma casca de ovo, com alguma clara e um pingo de gema que escorreu, boiando na enxurrada escura sob a luz noturna da lua minguante.

Palavras-Chave: Conto; Hemingway; Literatura Brasileira Contemporânea; Luiz Vilela; Poe; Tchekhov

O assim chamado microconto têm-se destacado nos últimos tempos, no Brasil, como subgênero da prosa ficcional com imensa divulgação, centenas de cultores e milhares de publicações nas mídias sociais. Disseminado sob a égide da virtualidade digital, trata-se, no entanto, de modalidade de expressão literária que já era cultivada, em especial entre autores hispano-americanos, desde meados do século XX. A forma expressiva do microconto, cuja síntese termina por coalescer com formas expressivas de outros subgêneros e mesmo com o gênero lírico, faz com que, olhando em revisão crítica para a expressão poética do modernismo, percebamos que muitos poemas do início do novecentos, e mesmo de épocas precedentes, podem ser lidos hoje como microcontos avant la letre. A presença massiva de produções chamadas de microconto em blogs e em outras plataformas e mídias da internet Doutor em Estudos Literários pela UNESP de Araraquara; professor de literatura brasileira na UFMS, atuando no Mestrado em Letras do Câmpus de Três Lagoas; realiza em 2012 estágio pós-doutoral na UERJ, tendo por supervisor o prof. Roberto Acízelo, estudando o conto de Machado de Assis. 1

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2. O microconto já existia em sociedades ágrafas; na sequência, podemos vê-lo em Tales e em Heráclito, assim como em Hesíodo e em Safo. 3. O microconto foi praticado em todos os períodos da humanidade, oculto nas dobras de outros gêneros e formas. 4. O microconto marca a ascensão do mundo digital, eletrônico, computacional, internético, que sepulta — sem ultrapassar — o universo das máquinas mecânicas. 5. O microconto é alexandrino por essência, e se vale da ambiguidade do ocaso que é aurora. 6. É desse microconto, que sepulta o albatroz baudelariano erigindo bytes virtuais, de que falamos.


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7. O microconto só se faz — de modo intenso e completo — com o espírito da virtualidade, mas se presentifica independente do suporte e do media.

18. O microconto realiza todos os gêneros literários, todas as formas poéticas, todas as estratégias narrativas; o microconto é um fractal que convida o leitor para a contradança.

8. O microconto é a fronteira da expressão literária, no limes entre poesia e prosa, entre épica e elipse, entre a rigidez do amor e a sinfonia atonal.

19.

Não existe microconto de atmosfera ou de enredo: todo microconto persegue um enredo forjando uma atmosfera.

O microconto, mesmo aquele que se aproxima do humor mais escrachado, tem algo de soturno.

20. O microconto é o encontro da poesia com a prosa no balbucio do recém-nascido.

10. O microconto absorve todas as formas, fôrmas, gêneros e modos de expressão de todas as artes: é antropofágico e onívoro.

21. No microconto não há uma história evidente e uma segunda história, secreta — jamais fragmento, há no microconto o encontro de diversas histórias, ou microconto não há.

11. O efeito único do microconto é como um raio de sol que se refrata em todas as cores do arco-íris.

22. Se a narrativa tem mais que a epifania após o clímax, não é um microconto.

9.

12. O microconto apresenta tantas menções intertextuais quantas são as palavras que o compõe. Onde se lê intertexto, leia-se hipertexto. 13. O microconto é o nó da rede: cada nó nunca é mais que a fração mínima de um possível narrativo: o microconto é um fóton que contém o universo. 14. No microconto, os hipertextos intertextuais que suplementam em acréscimo, debate ou derrogação presentificam-se como a sombra de um eclipse. 15. O microconto é silêncio, alma, morte e ressurreição. 16. O microconto transpõe barreiras, sendo o próprio limes. 17. A história submersa do microconto é um mergulho em desvãos pressentidos, porém insondáveis.

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23. Se a epifania do microconto fulge, o microconto vira um falso fogo-de-artíficio 24. O microconto pode ser um haiku, mas ao contrário do haiku, que morre se recebe um título, o microconto sem título fica manco das duas pernas. 25. O microconto pode ser lido em uma única risada. 26. O microconto, ainda que encene um dia radioso, de sol escaldante, no meio da tarde, é um gênero noturno. 27. O microconto é inapreensível. Toda arte é. A arte, em seu recorte, representa uma totalidade fechada, autônoma — e oxímora, referencial. O microconto também é totalidade.


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28. O microconto coalesce nos limites da poesia e da narrativa, incorporando e transformando formas simples e subgêneros literários, formatando-se como um novo gênero. 29. O microconto é a poalha em réstia de luz nos escombros de uma casa em ruínas.

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pessoas buscam o reconhecimento dos outros no eterno processo de conhecimento de si. A escrita, assim, aparece como um lugar onde o eu que escreve sobre si ao mesmo tempo necessita da referência de um outro. A escrita de si é um meio de se ver de fora a partir de dentro, sendo que o dentro e o fora partem do mesmo ponto. Com tudo isso, o objetivo do trabalho é investigar como se dá a permanente influência do outro, especialmente do leitor, representado pelo personagem Wilhelm, sobre Werther. Essa problemática da relação com outro, apresentada por Goethe, está presente até os dias de hoje. Trata-se da necessidade de expressarse através da escrita e assim influenciar e ser influenciado, reconhecer e ser reconhecido em um eterno jogo de espelhos.

A INFLUÊNCIA DO OUTRO: NOS ESCRITOS DO EU DE WERTHER Roberson Rosa dos Santos[1] O presente trabalho parte de um interesse pelas narrativas de si a um outro. Ao ler a obra “Os Sofrimentos do Jovem Werther” de Goethe, percebemos que essa forma de endereçar um discurso sobre si, expressando os sentimentos mais íntimos e obscuros, já era um recurso explorado pelo Sturm und Drang e logo depois pelo movimento romântico alemão. Esta pesquisa investiga a influência do outro nas cartas de Werther e também na constituição do sujeito através do “Estádio do espelho como formador da função do eu” de Jacques Lacan. A partir disso, problematizamos Werther, Goethe e público como personagens de um jogo de espelhos. As cartas de Werther são uma forma de expressão do íntimo que necessita uma confirmação, um retorno por parte do outro. Essa influência advinda do outro está presente nos mais diversos contextos. Palavras-chave: Werther; romance epistolar; psicanálise.

INTRODUÇÃO Ao ler a obra “Os Sofrimentos do Jovem Werther” percebemos que o endereçamento de um discurso sobre si, expressando os sentimentos mais íntimos e obscuros, já era um recurso explorado pelo movimento romântico alemão. A partir disso, constatamos a pertinência das relações entre o narrador e o destinatário da escrita - autor e leitor . A base norteadora é a temática do “outro em si” no romance acima mencionado. Esta escolha parte da investigação sobre a influência do outro tanto na escrita sobre si quanto na constituição do sujeito. A obra de Johann Wolfgang Goethe, porém, provoca uma relevante discussão sobre as relações, mostrando o quanto as 1

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A pAixãO de weRtheR Quando “Os sofrimentos do jovem Werther” foi publicado em 1774 obteve um grande sucesso, tornando-se o paradigma da exacerbação sentimental, romântica e trágica, que se alastrou por todo o século XIX. A obra de Goethe mostrou aspectos trágicos e inviáveis da paixão. O romance é desenvolvido à moda epistolar: um “eu” (Werther) vai contando para um interlocutor, chamado Wilhelm, por meio de cartas, o desenrolar dos acontecimentos que resultam em seu suicídio. Um outro narrador, suposto editor, conta que recolheu essas cartas e as transformou num livro. O livro narra o amor não-correspondido do jovem Werther pela bela Carlota S. A história se desenrola quando Werther a fim de tomar posse de uma herança instala-se numa pequena cidade, onde conhece e enamora-se de Carlota durante um baile. Esta, porém, é noiva e está prometida a Albert, tornando-se mais tarde sua esposa. Perdidamente apaixonado por Carlota, Werther utiliza-se de cartas enviadas ao amigo Wilhelm que deixara em sua cidade natal para contar seu idílio amoroso:


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muitos momentos as epístolas a Wilhelm confundem-se com um diário íntimo, no qual o herói deixa transparecer o sofrimento e o crescente desespero que vão se apossando de sua alma vítima de um amor inacessível:

16 de junho Por que não lhe tenho escrito? Justamente você, que é um sábio, me pergunta isso? Devia ter adivinhado que estou muito bem e que... resumindo, conheci alguém que tocou o meu coração. Eu... eu não sei mais o que dizer. Não é fácil contar-lhe na ordem como as coisas aconteceram, que me fizeram conhecer a mais adorável das criaturas. Sinto-me contente, feliz; serei, por conseguinte, um mau cronista. É um anjo!... Ora, já sei que todos dizem isso de sua amada, não é verdade? Todavia, é-me impossível dizer a você o quanto ela é perfeita, e o porquê de ser tão perfeita. Só isto basta: ela tomou conta de todo o meu ser (GOETHE, 2002, p. 23).

Dominado por essa paixão intensa, Werther passa a freqüentar assiduamente a casa de Carlota, enquanto o noivo está fora. É, então, que Albert retorna de viagem. Werther logo se torna amigo dele e continua a freqüentar a casa de Carlota. Entretanto, com o passar do tempo esta situação vai angustiando-o e ele toma a difícil decisão de não mais vê-la, como escreve a Wilhelm: 30 de julho Albert voltou, e eu quero partir. Mesmo que ele fosse o melhor, o mais nobre dos homens, e eu me reconhecesse inferior a ele de todos os pontos de vista, ainda assim não suportaria vê-lo, com os meus próprios olhos, possuidor de tantas perfeições... Possuidor!...Wilhelm, isto é o bastante: o noivo está aqui (GOETHE, 2002, p. 44). 3 de setembro Preciso ir embora. Obrigado, Wilhelm, por haver tomado por mim uma decisão! Há quinze dias já que eu penso em afastarme dela. Tenho de ir! Ela veio à cidade ainda uma vez em visita a uma amiga. E Albert...eu...tenho de ir embora! (GOETHE, 2002, p. 57).

Tomado pelo ciúme, Werther parte sem dizer adeus, pondose por algum tempo a serviço de um embaixador, porém, logo se desentende com ele e pede demissão. Uma nova decisão repentina o empurra de volta para Carlota, agora já casada com Albert. Em

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Por que é que aquilo que faz a felicidade do homem acaba sendo também a fonte de suas desgraças? [...] É como se um véu que se tivesse rasgado diante de minha alma e o espetáculo da vida infinita se transformasse em um túmulo eternamente escancarado diante de mim. [...] E é assim que caminho, vacilante e o coração oprimido entre o céu e a terra com as suas forças sempre ativas, e nada mais vejo senão um monstro sempre esfomeado e devorador. [...] Oh, quando, ainda cambaleando de sono eu a procuro a meu lado, tateando, e, ao fazê-lo, de repente acordo completamente, e então choro desolado, contemplando amargurado o sombrio futuro que me aguarda. [...] Assim sendo, meu amigo, a aspiração que sinto de mudar de vida não será uma secreta inquietude, um malestar interior que me perseguirá por toda parte? [...] Infeliz! Você está louco? Por que procura enganar a si mesmo? Para onde vai levar essa paixão furiosa e sem limites?... (GOETHE, 2002, p. 52-56).

Diante disso, Werther não podendo mais suportar esse sofrimento vai aos poucos esboçando em seu espírito a idéia de que só a morte poderá libertá-lo, deixando-a subentendida nas entrelinhas de suas cartas: Wilhelm, a permanência numa cela solitária, o cilício e o cinto de pontas de ferro são o consolo a que minha alma aspira!... Adeus! Só vejo um final para esta miséria: o túmulo (GOETHE, 2002, p. 56).

Após considerar a possibilidade de matar Albert ou de que Carlota morra, ele decide dar cabo da própria vida, conforme este trecho da última carta que deixara para sua amada: Quero morrer! Dormi, e esta manhã, erguendo-me tranqüilo,


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ilustração do conflito entre o sentimento exacerbado da paixão e a racionalidade que deveria prevalecer na vida prática. Na realidade, o problema não é o de uma paixão maior ou menor, a questão está na articulação, que segundo Konder (2007), é dificultada pela sociedade burguesa, entre a razão da busca apaixonada da felicidade individual e a razão necessária para orientar a inserção de cada um na coletividade.

encontrei ainda em mim aquela resolução, sempre firme, forte e inabalável: Quero morrer!...Não é o desespero; é a convicção de que suportei quanto pude e de que eu me sacrificarei por você... (GOETHE, 2002, p. 102).

A partir daí, Werther pôs-se a planejar de forma calma e serena seu suicídio, utilizando-se de um pretexto simples para que ninguém desconfiasse de sua intenção. E, antes da meia noite, a hora fatal, em seu quarto, Werther escreveu ainda um último bilhete ao pai de Carlota pedindo-lhe que cuidasse de seu corpo. Em seguida pediu uma garrafa de vinho e mais lenha no fogo da lareira. Estava, pois, saindo da vida para a eternidade. Em suas páginas encontramos não apenas um jovem inexoravelmente divorciado do corpo social, mas alguém que se lança com sofreguidão a ondas de exacerbação amorosa tão arrojadas que acabam por tragá-lo irremediavelmente (VOLOBUEF,1999, p 400).

A alma de Werther é o verdadeiro cenário do romance, palco pelo qual os demais personagens apenas transitam em torno da interioridade soberana do protagonista. Seu amor por Carlota é apenas uma parte se sua abundante vertente subjetiva. Desde sua primeira carta, o núcleo de sua narração está no “eu” do protagonista, o que permite o romance ter um caráter confessional. Werther expressa suas emoções, que sempre se encontram no extremo, quer na mais alta exaltação, quer no mais profundo pessimismo. Para Volobuef (1999), pensativo e sonhador, Werther não está apto para o convívio em sociedade e se subtrai à vida prática preferindo entregar-se à solidão em meio a natureza, que nada mais é do que o reflexo de sua própria alma. Já Carlota é um personagem complexo, que possui características maternais, e que se volta para Werther em razão de sua sensibilidade e amor pela natureza ao mesmo tempo em que está envolvida com Albert, seu noivo, homem ativo e responsável. O romance foi interpretado por algumas pessoas como uma

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Num meio assim, entre uma sociedade assim, com gostos estudos desse gênero, atormentado por paixões insatisfeitas, sem ser excitadas por nenhum móbil exterior a uma atividade séria, sem outra perspectiva além da obrigação de encerrar-se numa insípida e lânguida vida burguesa, a gente se familiarizava, no seu, no seu dolorido orgulho, com pensamento de poder deixar a vida quando quisesse, quando não achasse mais do seu agrado, e com isso se furtava um pouco às injustiças e ao tédio cotidiano. Essa disposição era geral e, se o Werther produziu um grande efeito, é que estava em afinação com todas as almas e exprimia aberta e claramente o segredo de um mórbido devaneio juvenil (GOETHE, 1986, p. 440).

A repercussão desse romance de Goethe foi imediata, conquistando a Europa de forma arrebatadora. A obra foi bemsucedida e deixou seu rastro em gerações futuras. O drama de Werther, com sua paixão desmedida, comoveu muitos leitores porque tocava em uma questão que era vivida por muita gente: o amor na sociedade burguesa.

ROMANCE EPISTOLAR “Os Sofrimentos do Jovem Werther” é considerado um dos mais importantes romances do gênero epistolar. Dentre os vários aspectos pertinentes a serem pesquisados nesta obra, abordase aqui a relação entre dois jovens, que mesmo permeada pela distância, é mantida através do vínculo afetivo produzido por suas cartas.


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Segundo Bastos, Cunha e Mignot (2002), escrever cartas é uma forma de compartilhar vivências pessoais, íntimas e até mundanas. Para as autoras, a escrita e o envio de cartas se dá por vários motivos: conversar, desabafar, agradecer, informar, etc. A carta não apenas aproxima, mas fala a respeito de quem escreve e revela sempre algo sobre quem a recebe, permitindo avaliar a intensidade do relacionamento entre os correspondentes. É com o romance epistolar que o gênero por cartas se torna por completo uma forma literária. O romance epistolar consiste em cartas escritas por um ou vários personagens e enviadas seja aos confidentes ou aos antagonistas. No caso do romance de Goethe, a troca de correspondências entre os personagens Werther e Wilhelm é fio condutor da história. Percebe-se nas cartas de Werther enviadas ao amigo, o profundo teor afetivo confiado a este, que serve como um destinatário do drama de Werther. Segundo Bettiol (2008), de um modo geral, o gênero epistolar é narrado quase todo na primeira pessoa, seu discurso é centrado no enunciador. O narrador em primeira pessoa ordena o mundo de acordo com o que vê e pensa. Ao mesmo tempo, ele é narrador e protagonista de suas próprias histórias baseadas nas suas impressões e sensações revividas pelo fio condutor da memória. Os episódios são simultaneamente discurso social e interior, objetividade e subjetividade, eu crítico e eu lírico, espaço em que o imaginário vai sendo construído. Os narradores fazem uma seleção, um recorte, escolhem certos personagens, certas paisagens, episódios nos seus relatos. Eles tentam capturar o momento que interessa trazer a público, o que revela que a narrativa passa pelo filtro da subjetividade daquele que escreve. É nesse sentido que Foucault (2002) considera que a escrita de si mesmo atenua os perigos da solidão, e dá o que se viu ou pensou a um outro olhar. O autor acredita que a carta constitui também uma certa maneira de manifestar a si próprio e aos outros. A carta, assim, faz o escritor “presente” àquele a quem a dirige. Presente

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não apenas pelas informações que ela remete ao seu destinatário, mas também por uma espécie de presença imediata e quase física. O trabalho que a carta opera sobre esse destinatário, mas que também é efetuado sobre o escritor pela própria carta que envia, implica, pois, uma “introspecção”. Contudo, há que entender esta menos como uma decifração de si por si mesmo do que como uma abertura de si mesmo que se dá ao outro (FOUCAULT, 2002). Um eu somente pode narrar suas experiências vividas, falar de si, se puder contar, implicitamente ou explicitamente, com um tu interlocutor, ou um leitor implícito, mesmo que este seja um leitor futuro (GAGNEBIN, 2009). No caso do romance em questão, o personagem Wilhelm, participa da narrativa como esse tu. É a seu amigo Wilhelm que Werther se refere em grande parte das cartas presentes no romance. “Não pude resistir, tive de ir até ela. E aqui estou de novo, Wilhelm, para comer meu pão com manteiga de todas as noites e seguir te escrevendo” (GOETHE, 2007, p.36). 577

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O OUTRO COMO ESPELHO O desejo de se ver levou o homem a buscar uma superfície refletora, o que ocorreu por volta do ano 3000 a.C, na idade do bronze. Os primeiros espelhos planos, que temos hoje, surgiram só no final do século XIII. Para Slavutzy (2009), o espelho é um objeto sem vida, pois somente reflete a imagem de quem nele se mira. Entretanto, a atração pelo espelho teria de encontrar uma explicação que justificasse tanto fascínio e tanto temor. Coube ao psicanalista Jacques Lacan, primeiro em 1936 e depois em 1949, propor uma teoria sobre a superfície refletora da imagem. Seus estudos levaram-no a criar a tese de que há uma fase pela qual passa toda criança e a qual deu o nome de fase do espelho, que transcorre entre os 6 e os 18 meses de idade. Essa fase é uma porta de entrada para se entender alguns dos mistérios da relação do sujeito com o mundo (SLAVUTZY, 2009). Lacan (1949) acredita que o ser humano tem uma representação do corpo na qual este aparece fragmentado. A imago de seu


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esquema corporal fragmentado continua a se expressar durante a vida adulta nos sonhos, delírios e processos alucinatórios. Há uma concepção do corpo como quebrado ou sujeito a se partir em pedaços. É este tema que Lacan evidenciará como essencial em seu artigo “O estágio do espelho como formador da função do eu”. Nele, o autor propõe a idéia de que o sujeito constitui-se como tal pela existência do outro. É pelo fato do outro nos amar, nos falar e nos olhar que nós existimos enquanto sujeito humano. O que está em jogo no estágio do espelho é o narcisismo que irá definir como cada um irá se amar a partir de como foi amado. Logo, o que importa é o quanto cada um é desejado pelo desejo do outro. Esse estágio é concretizado, segundo Garcia-Roza (1988), de forma exemplar pela experiência que a criança tem ao perceber sua própria imagem num espelho. Essa experiência é fundamental para o indivíduo, e nela Lacan identifica a matriz a partir da qual se formará um primeiro esboço do ego. Apesar do nome, o estágio do espelho não se refere necessariamente à experiência concreta da criança frente a um espelho. O que ela assinala é um tipo de relação da criança com o seu semelhante, através da qual ela constitui uma demarcação da totalidade do seu corpo. Essa experiência pode-se dar tanto em face de um espelho como em face de uma outra pessoa. De acordo com Dor (1989), a criança só se reconhece em sua própria imagem na medida em que pressente que outro já a identifica como tal. Ela recebe, assim, do olhar do outro o assentimento de que a imagem que percebe é realmente a sua. Nesse sentido, o advento da subjetividade que se esboça ao nível do estágio do espelho prefigura que o eu, como construção imaginária, aparece irredutivelmente submetido à dimensão do outro. No romance de Goethe, Wilhelm cumpre uma função especular a Werther, ao tornar-se referência, ao perceber-se através do amigo. Ao escrever suas cartas, Werther, pede o posicionamento do

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amigo, frente aos seus pensamentos, dando importância à opinião de Wilhelm. Isso, para Slavutzky (2009), parece fazer parte dos relacionamentos entre os indivíduos, uma vez que pensamentos dos outros sobre si são importantes, pois cada sujeito precisa ser reconhecido em suas capacidades, valorizado. Para ele, o público de um espetáculo, por exemplo, tem em suas mãos a capacidade de aplaudir e em suas bocas a de vaiar o que está vendo. Nas relações humanas, há sempre uma tensão entre o reconhecimento e a indiferença. Não, não me engano! Leio em seus olhos negros o sincero interesse que tem por mim e por meu destino. Sim, sinto, e nisso posso apelar ao meu coração, sinto que ela...Oh, devo, ou melhor, sequer posso fazer o céu inteiro caber nessas palavras...e dizer que ela me ama? Me ama! E tanto mais me estimo por isso!Quanto eu me...A ti eu posso dizê-lo sem perigo, tu compreendes bem essas coisas...Sim, quanto eu me adoro desde que ela me ama! (GOETHE, 2007, p.61) 579

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Lacan (1949) considera que só existimos quando somos reconhecidos por algo ou alguém. Inicialmente, pelos nossos primeiros educadores que são nossos “primeiros objetos”. A presença do outro, assim, traz como conseqüência a constituição do nosso psiquismo. Enfim, o indivíduo só existe para nós quando o investimos afetivamente, sendo esse o mesmo movimento que constitui o outro como outro e o sujeito como sujeito. É possível visualizar no romance de Goethe, trechos em que Werther relata a importância do outro para seu próprio reconhecimento. CONSIDERAÇÕES Esse trabalho tratou das influências entre eu e outro, na obra “Os Sofrimentos do Jovem Werther” de Goethe. As cartas de Werther são uma forma de expressão do íntimo que necessita uma confirmação, um retorno por parte do outro. Essa influência advinda do outro está presente nos mais diversos contextos.


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Todo bem-estar na vida repousa sobre um retorno periódico dos objetos exteriores. A sucessão do dia e da noite, das estações, das flores, das frutas e de tudo que se nos oferece por períodos regulares, para que o homem possa e deva desfrutálo: eis ai os verdadeiros motores da vida terrena. Quanto mais acessíveis formos a esses prazeres, mais felizes seremos; mas quando esses fenômenos diversos passam e repassam diante de nós sem interessar-nos, quando somos insensíveis a tão nobres dádivas, é então que nasce o maior dos males, a mais grave enfermidade: sente-se a vida como um penoso fardo (GOETHE, 1986, p. 438).

Atualmente, por exemplo, proliferam modalidades de autoconstrução na internet. Nesse movimento, insinua-se uma nova retirada das fontes do eu, que abandona sua morada dentro de cada sujeito, anunciando uma gradativa exteriorização da subjetividade. Os freqüentadores de blogs, leitores dos “diários” de outras pessoas, podem ser comparados aos destinatários das cartas de antigamente. Esses leitores se identificam com os relatos autobiográficos, e constroem suas subjetividades nesses jogos de espelhos. Os computadores e as redes digitais são, assim, mais um cenário para desenvolver relações como a proposta por Goethe entre Werther e Wilhelm em “Os Sofrimentos do Jovem Werther”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERTTIOL, M. R. B. A Escritura do Intervalo: A poética epistolar de Antônio Vieira. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2008. DOR, J. Introdução à leitura de Lacan. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. FOUCAULT. O que é um autor? Lisboa: Vega, 2002

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GAGNEBIN, J-M. Entre moi et moi-même (Entre eu e eumesmo) In: GALLE, H.; OLMOS, A. C.; KANZEPOLSKY, A; IZARRA, L. Z. Em primeira pessoa: abordagens de uma teoria da autobiografia. São Paulo: FAPESP, 2009. GARCIA-ROZA,L. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. GOETHE, J. W. Memórias: Poesia e Verdade. Tradução de Leonel Vallandro. Segunda edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986. Dois volumes. GOETHE, J. W. Os Sofrimentos do Jovem Werther. Porto Alegre: L&P, 2007. GOETHE, J. W. Os Sofrimentos do Jovem Werther. São Paulo: Martin Claret, 2002. GOETHE, J. W. Werther. São Paulo: Scipione, 1998.


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KONDER, L. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu (1949) IN: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. LACAN, J. O seminário: Livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1959.

MIGNOT, A. C. V.; BASTOS, M. H. C.; CUNHA, M. T. S. Refúgios do eu: educação, história, escrita autobiográfica. Florianópolis: Mulheres, 2000. SLAVUTZKY, A. Quem pensas tu que eu sou? São Leopoldo: Unisinos, 2009. VOLOBUEF, K. 1999. Frestas e arestas. A prosa de ficção do romantismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999.

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A INVENÇÃO DA PERVERSÃO NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO Ronnie Francisco Cardoso[1] Nos textos de Glauco Mattoso, a própria linguagem torna-se objeto da fantasia erótica dos personagens e apresenta um novo traçado da sexualidade para o leitor: a perversão não aparece só na perspectiva temática, mas principalmente na forma de enunciação. Em função dessa perspectiva, vamos analisar se a perversão não seria uma forma de invenção que se sobrepõe à estrutura clínica definida pela psiquiatria e pela psicanálise, observando-a assim em seu aspecto estético. A nossa intenção é desvincular a perversão do discurso normatizador para pensála como dispositivo literário, sublinhando como na obra de Mattoso há uma confluência discursiva entre literatura, podolatria e outros desvios de ordem sexual. Palavras-chave: Glauco Mattoso; Perversão; Projeto Literário.

“Tudo, em cópulas, é cópia/ Ninguém bola a foda própria,/ diferente e inusitada”. Nas letras brasileiras, a extensa obra de Glauco Mattoso ganha relevância justamente por mostrar o contrário dessa observação feita no soneto denominado “Pecado original”, catalogado com o número 3.961, de uma série de mais de cinco mil sonetos. O fetiche por pés e a prática sadomasoquista são temas recorrentes que singularizam a produção textual do escritor paulistano. Em diversos gêneros, na poesia, no ensaio, na prosa, ficcional ou autobiográfica, a podolatria, associada muitas vezes ao sadomasoquismo, é o mote a ser repetido, duplicado e ampliado por meio da escrita. Além de mais de 5.000 sonetos, escritos até o ano de 2011, Glauco Mattoso publicou mais de 50 livros, a maior parte de poesia em 1

Doutorando do curso de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da USP.

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torno do seu objeto de desejo; publicou ainda ensaios sobre a lírica marginal, a tortura, a história do trote estudantil, o rock; também escreveu tratado de versificação, dicionário, romance, memórias, “autoficção” e contos. O fetiche por pés e as experimentações sadomasoquistas estão presentes, direta ou indiretamente, em grande parte da produção poética do autor, como também nos ensaios O que é tortura (1984) e O calvário dos carecas: história do trote estudantil (1985), o romance autobiográfico Manual do podólatra amador: aventuras e leituras de um tarado por pés (2006), o romance A planta da donzela (2005) e os livros de contos Contos hediondos (2009) e Tripé do tripúdio e outros contos hediondos (2011). Antes de começar a discutir a especificidade da invenção literária de Glauco Mattoso, vamos considerar a relação entre a literatura e a clínica, entre o texto e a patologia, entre o sintoma e a estética, assim como fizeram André Breton e Louis Aragon, ao tratar a histeria não como estrutura clínica, mas sim como estilo, um meio supremo de expressão. Na revista La Révolution Surréaliste, em março de 1928, eles dedicaram algumas páginas ao cinquentenário da histeria, que na concepção deles era a maior descoberta poética do fim do século XIX. Portanto, em sintonia com os surrealistas, vamos analisar se o sintoma não é uma invenção que pode e deve também ser considerada esteticamente. Especificamente no caso da perversão, como propõe Deleuze: É preciso recomeçar tudo, e recomeçar pelas leituras de Sade e de Masoch. Sendo o julgamento clínico cheio de preconceito, devemos recomeçar tudo, e de um ponto situado fora da clínica, o ponto literário, a partir do qual, aliás, foram denominadas as perversões em questão. Não por acaso o nome de dois escritores serviu à designação; pode ser que a crítica (no sentido literário) e a clínica (no sentido médico) estejam fadadas a entrar em novas relações, num ensino recíproco. A sintomatologia diz respeito à arte. As especificidades clínicas do sadismo e do masoquismo não são separáveis dos valores literários próprios de Sade e Masoch. (DELEUZE, 2009, p. 14).


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A perversão foi primeiro uma discussão moral que só teve interesse científico tardiamente e de forma indireta, já que não era matéria específica da clínica, mas uma classificação associada à consequente sanção a ser imposta por instâncias legais. A medicina só passou a tratar do assunto a pedido dos magistrados. Segundo Lanteri-Laura, em Leitura das Perversões (1994), quando havia perícia, o discurso médico era menos para sustentar uma psicopatologia sobre o réu que para incriminá-lo, já que visava tão-somente descrever ao tribunal os danos sofridos pela vítima. Na língua portuguesa, a palavra perversão surge entre os anos de 1562 e 1575. Trata-se de um empréstimo do latim clássico perversione. Além do significado corrente de depravação, traz o sentido adicional de alteração de um texto, a inversão da construção no estilo. Então, comecemos por perguntar como a perversão passou a ser considerada uma patologia. Para tanto, observaremos o manual Psychopathia sexualis (2000), obra clássica da ciência médica do século XIX. No referido manual, está catalogada uma grande variedade de casos dos transtornos psíquicos relacionados com a sexualidade. O eminente psiquiatra organizou os elementos e as variações do fenômeno percebido como perversão do instinto sexual, contribuindo assim para a constituição de um campo patológico que até então não existia. Para tanto, procurou reunir e classificar todas as possíveis variações, efetuando uma síntese rigorosa de todas as correntes da sexologia. Visava consolidar, assim, a partir do seu esforço classificatório, e não menos normatizador e moralizador, uma scentia sexualis. Após um longo período em que coube à religião o controle sobre a confissão dos prazeres sexuais, a medicina, especificamente a psiquiatria, junto com a pedagogia, passaram a ter o domínio e a registrarem as variações em torno do ato sexual. Segundo Foucault, em História da sexualidade I: a vontade de saber (1988), não se tratava somente de descrever tal prática, mas reconstituir os pensamentos e as

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obsessões, as imagens, os desejos, as modulações e a qualidade do prazer que o sexo contém. Nos escritos de Krafft-Ebing (2000), encontramos, em suas próprias palavras, “as anomalias das práticas de reprodução da espécie”, relatadas por meio de pequenas histórias envolvendo incesto, necrofilia, pederastia, bestialidade, travestismo, transexualismo, automutilação, sadomasoquismo, exibicionismo, dentre outras perversões, chamadas pelo médico de parestesias — isto é, excitabilidade das funções sexuais por estímulos desviantes da norma e, por isso mesmo, considerados inadequados e patológicos. Assim como varia o método de captação de dados, também são diversas as formas de enunciação: o autor de Psychopathia sexualis usa não só de estratégias descritivas, criteriosamente científicas, perfazendo uma completa anamnese do paciente, como também faz uso de narrativas curtas, estabelece comparação com personagens literários e incorpora cartas. Evocativo, pretensioso, invasivo e impreciso por tantas vezes, até mesmo por isso, sua escrita ganha uma dimensão que se aproxima muito da ficção ou do poético. Como exemplificação dessa observação, no caso 58, o referido médico apresenta um funcionário público que se sentia impelido a oferecer-se como cadeira, a fim de sustentar toda a beleza da mulher desejada. Sentia vergonha de seu desejo e havia o medo de como tal proposta seria recebida por sua mulher, por isso, refugiou-se em seu imaginário: Assim, por exemplo, sonhava que ele era um nobre corcel fogoso, montado por uma bela dama. Sentia seu peso, o freio a que tinha de obedecer, a pressão de suas coxas contra seu flanco; escutava sua voz harmoniosa e divertida. O esforço o levava a transpirar, o toque das esporas fazia o resto, e sempre induzia espasmos com um grande prazer voluptuoso. (KRAFFT-EBING, 2000, p. 62).

A síntese vocabular quase sempre predomina sobre a


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inflação de dados, um simples detalhe ganha mais relevância do que o histórico completo dos fatos, envolvendo o desviante e a sua patologia. Interessante que, em alguns casos, o próprio testemunho dado ao médico reveste-se de uma definição sobre o sintoma. Em um testemunho, o sujeito sob observação diz que as ideias, ou seja, o elemento mental, são essenciais no masoquismo, como percebemos na seguinte reflexão: “Se a realização das ideias masoquistas (isto é, flagelação passiva etc.) fosse o fim desejado, isso se oporia ao fato de que a maioria dos masoquistas nunca procura a realização; quando o fazem, sempre ocorre uma grande decepção, ou, seja como for, a satisfação desejada não é alcançada.” (KRAFFT-EBING, 2000, p. 60). Na visão do autor de Psychopathia sexualis, a sexualidade deveria se restringir ao intercurso heterossexual e centrado exclusivamente nos genitais. As mulheres são frequentemente o campo de provas sexuais do paciente masculino, que utiliza os bordéis para praticar todas as possibilidades do sexo não convencional. Por outro lado, usadas para corrigir os atos invertidos, são indicadas pelo doutor como cura para homossexuais, sádicos, masoquistas, fetichistas, zoófitos, necrófilos e outros tipos de parafilia. A prostituta e o bordel constituem, nesse sentido, uma importante força social, tanto por terem a função do empuxo à normalidade das práticas sexuais, quanto por serem para o perverso a figura e o lugar apropriados para exercitar toda ordem do imaginário sexual. Alguns relatos derivam da consulta, do tratamento e do acompanhamento clínico de algum paciente. Outros são incorporados por Krafft-Ebing de forma indireta, advêm de comentários de outros médicos ou até mesmo de casos que acompanhava por meio de jornais, como o de “Jack, o Estripador”. O único grande relato apresentado pelo médico em seu livro é denominado de “autobiografia de um transexual”. Não sabemos, no entanto, se se trata de uma peça ficcional, de uma recriação ou elaboração em torno de um caso real, ou se é realmente um relato autobiográfico enviado ao médico. Há informações que

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lhe chegam por terceiros, cujas fontes não são citadas, outras lhe chegam por cartas, de pessoas preocupadas com seus sintomas lhe escrevem, algumas vezes pedindo uma solução para o seu conflito sexual, outras apenas para testemunhar o prazer, ou sua possível patologia, a um especialista sobre o assunto. Um caso significativo, da inflação do imaginário, que se observa na perversão, aparece em um relato classificado pelo referido doutor como Sadismo Ideal:

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Praticava sadismo-fetichismo. Deliciava-se com fantasias de situações nas quais flagelava seu irmão menor, uma babá ou freira; inventava histórias que sempre terminavam numa cena de flagelação; respondia a anúncios como: “Professora severa procura pupilo” e extraía o maior prazer da correspondência que se seguia; desenhava cenas de flagelação, de nádegas nuas de mulheres, vasculhava bibliotecas em busca de livros contendo escritos sádicos, fazia resumos de toda a literatura, colecionava imagens relacionadas com seu tema favorito e ele mesmo desenhava algumas para registrar os progressos que fazia no desenvolvimento da sua perversão. (KRAFFT-EBING, 2000, p. 43).

É curioso notar que não só alguns sujeitos vão se identificar com os casos narrados, após a leitura, fazendo chegar ao médico novos relatos que serão incluídos nas edições posteriores, como vão fazer do Psychopathia sexualis um objeto de fetiche, fazendo chegar ao médico novos relatos. Em várias passagens, ficamos sabendo que a própria leitura do referido manual psiquiátrico é apresentada como motivadora da cura do desviante, tal como apresentado no caso 72: Deparou, então, com uma das primeiras edições de Psychopathia sexualis, e descobriu a real condição de sua anormalidade. Escreveu para sua antiga conhecida e restabeleceu relações íntimas com elas, mas disse-lhe terminantemente que as antigas cenas absurdas de “escravidão” não deveriam mais ser representadas e que, sob circunstância alguma, mesmo se ele


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o pedisse, ela deveria se envolver com suas idéias masoquistas. [...] Estava tão satisfeito com sua cura que veio agradecer-me pela valiosa ajuda que encontrara na leitura cuidadosa do meu livro, que lhe mostrara o caminho correto para remediar sua deficiência. (KRAFFT-EBING, 2000, p. 76).

Em outro momento, um candidato a paciente tenta se incluir nas inversões sexuais catalogadas por de Kraft-Ebing, cioso talvez de se encontrar em alguma comunidade que possa ser nomeada, procurando por si mesmo uma classificação adequada: Se minha condição anormal não se modificar, estou decidido a colocar-me sob seu tratamento; e isso principalmente porque, depois de uma cuidadosa leitura de sua obra, não consigo incluir-me na categoria dos homossexuais; e também porque tenho a firme convicção, ou pelo menos a esperança, de que uma vontade forte, assistida e combinada com um tratamento especializado, poderiam me transformar num homem com sentimentos normais. (KRAFFT-EBING, 2000, p. 136).

A partir de Psychopathia sexualis, catálogos elaborados em torno da perversão serão escritos pelos próprios desviantes, como se buscassem a afirmação de uma comunidade que se percebe sob diferente organização do desejo. Glauco Mattoso rastreia essa tradição e se incluirá nela. Em Manual do podólatra amador, relata que um dos seus primeiros contatos teóricos com assunto sexo foi por meio de um livro de Frank S. Caprio, cujo título é Aberrações do comportamento sexual: estudo psicodinâmico dos desvios de várias expressões do comportamento sexual (1955). Contudo, em diferente época, seu intuito é alterar o discurso normativo para o ganho da sua “ficção mastubatória”, para subverter a ordem do discurso científico. Tanto na obra de Glauco Mattoso, como nos casos apresentados por Krafft-Ebing, notamos o caráter inventivo da perversão que se organiza em torno da linguagem. Fazendo um percurso inverso ao do médico, que pretende deserotizar a linguagem, alguns

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desviantes fazem a paródia do discurso da ciência. Mais próximo, portanto, dos textos de Marquês de Sade e Leopold von SacherMasoch, sexualizam as palavras, percebendo nelas o objeto em torno do qual se fixam seus prazeres. Dessa forma, põem em curso a cópula do seu corpo com elas, de maneira que trazem à tona a parte obscura do desejo humano, ao mesmo tempo em que fazem da linguagem o suporte do seu próprio fetiche. Para um leitor perverso, ou que se coloca nessa posição no ato de leitura, os termos técnicos tornam-se excessos da linguagem, que não só evocam seus referentes, mas também atuam como seus substitutos. O próprio vocabulário da linguagem técnica pode, assim, alcançar o status de fetiche. O Manual do podólatra amador é o livro que nos dá o aporte mais profícuo para pensarmos o projeto estético-literário de Glauco Mattoso. Esse livro representa não só a consolidação literária de tal concepção estética, como também é uma contribuição crítica aos estudos literários brasileiros e aos estudos sobre perversão. Em vários momentos é possível perceber nele determinados posicionamentos, programas ou concepções típicos de um manifesto. O livro apresenta os princípios, as proposições, o embasamento conceitual, a genealogia e as filiações da concepção estético-literária que estamos denominando “estética da perversão”. Além do caráter biográfico (ou de autoficção), o Manual do podólatra amador não deixa de ser, portanto, um romance de tese. Glauco Mattoso observa que o texto surgiu ao pensar alternativas para o impasse, qual seja, o que é possível fazer diante da repetição que não permite a instauração da diferença: como reverter o processo de esgotamento e de homogeneização do relato pornográfico que gira em torno de clichês sobre a sexualidade? O primeiro passo, alegado pelo autor, foi colocar a sua vida, as suas experiências sexuais, seus conhecimentos e suas leituras sobre a tradição obscena como foco e fonte da escrita. A ideia de se autobiografar pareceu-lhe uma tarefa grandiosa. Logo se deu


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conta que, para resgatar a memória do que foi vivido ou para romancear os fatos, reflexões e emoções da sua existência, seria preciso determinar o ponto de corte, apresentado pelo autor na seguinte passagem do Manual do podólatra amador: Só me dispus a isso quando percebi que a fórmula tava bem mais aquém: bastava ficar em torno daquilo que eu havia lido & feito com relação aos pés. Já que nesse terreno a literatura é curta e minha experiência larga, tudo o que eu passasse pro papel seria lucro. Sem o peso de compromissos mais genéricos com a Ficção ou a Memorialística, foi fácil & rápido produzir este livro. Que nem fazer um gol de pênalti, bater num cara amarrado, empurrar cego em ladeira, tirar doce da boca de criança ou gozar tocando punheta (MATTOSO, 2006, p. 162).

Ao longo do livro, o autor procura questionar, deslocar, erotizar ou perverter as definições a respeito de sexualidades desviantes encontradas nos manuais de sexologia aos quais teve acesso (atitude que evoca a de outros sujeitos perversos, cujos relatos encontramos no Psychopathia sexualis, do Doutor Krafft-Ebing). Glauco Mattoso (observado aqui em seu papel de autoria, como também de eu-textual, instâncias que se mesclam o tempo todo na obra do escritor paulista) revela ser um leitor contumaz de manuais de sexologia desde a adolescência, principalmente do Aberrações do comportamento sexual, de Frank Caprio. Esse livro, segundo Mattoso, rendeu-lhe “material pra muita punheta” (MATTOSO, 2006, p. 29). Em alguns momentos, o escritor paulista chega a citar passagens do texto de Caprio, recortando e desviando o caso relatado pelo médico do dispositivo clínico que o circunscreve, pervertendo dessa forma a finalidade didática e científica de tais relatos. Ao alterar o texto original, Mattoso diz satisfazer seu desejo por meio da palavra escrita, contudo foi preciso deslocar os princípios normatizadores do texto científico, reescrevendo-o à sua maneira. Nos escritos de Caprio, o escritor paulista recorta as aberrações em função do seu desejo, desviando-se do tratamento

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e da cura associados a cada caso. Encontra-se em consonância, assim, com o que pensa Roland Barthes (2003, p. 77) no seu livro autobiográfico: “A Lei, a Doxa, a Ciência não querem compreender que a perversão, simplesmente, faz feliz; ou, para ser mais preciso, ela produz um mais: sou mais sensível, mais perceptivo, mais loquaz, mais divertido, etc. — e, nesse mais, vem alojar-se a diferença (e, portanto, o Texto da vida, a vida como texto)”. Na produção literária de Mattoso, notamos que a fixação em pés masculinos — que, segundo a sua preferência, deveriam ser grandes, desleixados e malcheirosos — é desviada em direção ao espaço textual, duplicando e ampliando, assim, a dimensão do prazer. Tal perspectiva poderá ser analisada a partir do livro A planta da donzela. Nesse volume, fica claro que não é só o texto clínico que é rasurado, alterado ou reescrito por Glauco Mattoso, mas também o texto literário. Em Manual do podólatra amador e em alguns contos, ele já tinha mostrado o rastro que a podolatria tem deixado nas letras brasileiras, no entanto, como constata, eram apenas passagens, flagrantes, lampejos selecionados e destacados em função do seu recorte fetichista. Em A planta da donzela, o trabalho é mais amplo. Mattoso se propõe a reescrever totalmente aquele que considera “o grande monumento ao pé, o clássico da podolatria em sua concepção feminil, elevada ao status de tese estética” (2006, p. 81.). Esse livro é A pata da gazela, de José de Alencar, um romance inteiro desenvolvido em torno da singularidade do pé como atrativo sexual e como princípio moral. Conforme observa o escritor paulista: Trata-se mais duma fábula desenvolvida, com alguma pitada de conto de fada, que duma crônica de costumes. A ambientação do enredo no cenário urbano da corte imperial é meramente circunstancial. O autor pretende expor uma tese, e pra isso traça o caráter dos personagens da forma mais estereotipada e simbólica: cada um com sua carga moral, avaliada pela cômoda balança do maniqueísmo. O mocinho & o bandido, o


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feio & o bonito, o certo & o errado, o bom & o mau, o vício & a virtude, o castigo & o prêmio. Nada do “rigor científico”, dos “fisiologismos”& “psicologismos” que caracterizariam mais tarde “teses” da ficção naturalista. A de Alencar era só uma “tese” romântica, para efeitos “edificantes”. Uma fábula, embora para adultos. (MATTOSO, 2011, p. 81-2).

Nesse caso, não nos parece que Mattoso tenha feito mero pastiche. A singularidade da literatura do escritor de A planta da donzela mostra que esse conceito é insuficiente para entender a especificidade da sua obra. No mínimo, é uma questão que fica em segundo plano diante do movimento de seleção, recorte e arquivamento realizado em função de um traçado fetichista que envolve acúmulo e repetição em torno do objeto do seu desejo (o pé). A reescrita pode ser entendida aqui como movimento de rastreamento e formação de uma estética sobre perversão ou, de outro modo, de construção de uma plasticidade que foi moldada por meio do desvio sexual; não como cópia, mas sim como invenção e fundação de uma prática textual. O tripé do tripúdio é outra obra importante para investigar o projeto estético de Glauco Mattoso. Em alguns contos desse livro, encontramos uma perspectiva crítica, tendo em vista os clichês da literatura erótica: Um soneto como aquele “Higiênico” (143) me veio na mesma noite em que, conversando com Carlos Carneiro Lobo, a monotonia dos contos eróticos foi a pauta central. Comentávamos que, no caso da literatura gay, sempre houve pouca vanguarda e muita retaguarda, e o magistral ficcionista de Histórias naturais e d Geografias humanas, que costumeiramente me visitava, expunha então sua própria teoria a respeito: a arquetípica estrutura narrativa na base do começo-meio-e-fim, contestável ou não, fica reduzida, no homoerotismo, à mera sequência ereção-penetraçãoejaculação, que, já pouco criativa por si mesma, resulta ainda mais burocrática por estar presa a falsos clichês como o mito do pau grande e o vício do coito anal. (MATTOSO, 2011, p.70).

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O livro foi publicado em 2011, mas os contos foram concebidos ao longo de uma produtiva interlocução com os sonetos que escreveu a partir do momento em que ficou totalmente cego. Aliás, como podemos observar na singularidade da denominação heteronímia do autor (Glauco Mattoso = glaucoma), a cegueira, cantada em verso e prosa, é um dado relevante na literatura do autor paulista. Trata-se da única patologia assumida como tal na invenção estética de Mattoso, sendo um desafio constante para o seu percurso perverso. Ou seja, pode-se dizer que a estrutura perversa do desejo de Mattoso transformou a própria deficiência em mecanismo de prazer, quando este percebeu que a cegueira poderia legitimar e intensificar a sua atuação masoquista. Nessa perspectiva, a deficiência visual e a palavra se suplementam no mesmo movimento de duplicação e ampliação do gozo perverso. A despeito da limitação causada pela ausência de visão, o escritor decide registrar por meio de uma forma fixa, o soneto, todo o roteiro sexual delineado por sua imaginação nas noites de insônia. A memória erótica, que intumescia o corpo e a palavra de Glauco Mattoso, era então convertida em sonetos. Tal estratégia permitia que o autor se lembrasse, ao acordar, do itinerário textual do seu gozo, mostrando assim que, apesar da cegueira, seu “tesão continuava vivo e esperneando” (2011, p. 75)., talvez até para compensar a angústia. No conto “O sexagenário sedentário”, registra assim o seu estado atual: Não me adaptei, mas hoje convivo com a cegueira mais pacificamente que nos anos 90, quando o impacto da desgraça me levou a sonetar desesperadamente, como no soneto “Perpétuo”, em que me considero prisioneiro e condenado a chupar o pau do primeiro carcereiro (leia-se qualquer visita) que aparecesse. Com o passar do tempo, consegui me virar na vida prática, e o fantasma da solidão deixou de ser um pânico meramente material par ase concentrar na carência afetiva. Já não era a incapacidade que me assustava, e sim a ociosidade, que a punheta talvez não fosse bastante para preencher. (MATTOSO, 2011, p. 58).


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Os contos de Tripé do tripúdio vão ampliando as formas da interlocução intratextual com diferentes personagens (reais e fictícios). Em todo o livro, o autor explora o palimpsesto como forma de enunciação: cada conto remete a um ou mais sonetos que, por sua vez, retratam uma circunstância erótica que atualiza alguma cena já experimentada no passado pelo eu-textual. A narrativa é sempre em primeira pessoa, intercalada, muitas vezes, com discursos diretos, confissões ou relatos do que foi observado por diferentes interlocutores, além de citações de diferentes gêneros textuais. nesse percurso, Mattoso executa, como já vinha fazendo, um trabalho arqueológico que visa resgatar textos esquecidos, renegados ou disfarçados por discursos civilizadores. Justamente por solicitar o texto, de lavra própria ou de outrem, como motivação masturbatória, percebemos, dessa forma, que no texto literário e ensaístico de Glauco Mattoso, um certo fetiche pela letra vai suplementando ou sobredeterminando o fetiche por pé. Enfim, na obra desse autor, parece que toda perversão só existe em nome da letra ou, mais especificamente, só seria possível uma estética da perversão sob a condição de um fetiche da letra, caso contrário não haveria invenção, mas apenas o estetismo e a idealização traçados em função de uma fixação do desejo perverso. Encontraríamos assim apenas uma repetição que não geraria diferença, o que seria pouco profícuo em termos artísticoliterários.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. CAPRIO, Frank. Aberrações do Comportamento Sexual. São Paulo: Ibrasa, 1965. DELEUZE, G. Apresentação de Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de Saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. 597

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KRAFFT-EBING, Richard von. Psychopathia sexualis: as histórias de caso. São Paulo: Martins Fontes, 2000. LANTERI – LAURA, Georges. Leitura das perversões. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. MATTOSO, Glauco. O tripé do tripúdio. São Paulo: Tordesilhas, 2011. MATTOSO, Glauco. Contos hediondos. São Paulo: Editora Demônio Negro, 2009. MATTOSO, Glauco. Manual do podólatra amador: aventuras e leituras de um tarado por pés. São Paulo: All Books, 2006. MATTOSO, Glauco. A planta da donzela. Rio de Janeiro: Lamparina, 2005.


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MATTOSO, Glauco. O que é tortura. São Paulo: Brasiliense, 1986. MATTOSO, Glauco. O calvário dos carecas: história do trote estudantil. São Paulo: EMW Editores, 1985. MATTOSO, Glauco. Sonetodos: poesia completa de Glauco Mattoso. Disponível em: <http://sonetodos.sites.uol.com. br/>. Acesso em: 18/03/2012.

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e dramático. Os subgêneros são, no caso do gênero narrativo, o conto, o romance, por exemplo. Como o fantástico não pode gerar uma nova forma autônoma dentro da concepção de narrativa, poder-se-ia afirmar que não é um gênero nem um subgênero. E, ainda, quando se pensa na noção de “modo literário”, visto como uma categoria meta-histórica e universal, abstrata e atemporal, atualizada e realizada em gêneros diversos, como o romance, conto, tragédia, comédia etc., o problema, longe de se resolver, aprofunda-se. Nessa esteira, o crítico italiano Remo Ceserani, em sua obra O fantástico (2006), quando comenta a proposta de definição de Tzvetan Todorov sobre o fantástico, destaca:

O FANTÁSTICO EM DISCUSSÃO Roxana Guadalupe Herrera Alvarez [1] O fantástico, se abordado sob a perspectiva de gênero, segundo a apreciação de Tzvetan Todorov em sua obra Introdução à literatura fantástica, publicada em 1970, ou sob a perspectiva de modo literário, segundo Remo Ceserani na obra O fantástico, publicada em 1996, suscita incessantes discussões em torno de sua natureza. Tal polêmica se apresenta como terreno propício para constantes indagações, decisivas para o surgimento de contribuições significativas, fundamentais para a recepção e compreensão dos textos literários que são inseridos no campo do fantástico, seja pelos autores ou críticos. Dentre essas contribuições importantes selecionamos a de Jaime Alazraki, em seu texto “¿Qué es lo neofantástico?” (2001) e a de David Roas, em seu ensaio “La amenaza de lo fantástico” (2001). A partir do confronto das propostas teóricas de Alazraki e Roas, que indiscutivelmente dialogam com as de Todorov e Ceserani, pretende-se apresentar uma visão de conjunto que, tomando como ponto de partida os pontos coincidentes e divergentes trazidos pelas abordagens teóricas selecionadas acerca do fantástico, possa apontar as questões que ainda permanecem em aberto e cujo estudo é essencial para caracterizar o fantástico dentro dos estudos de Teoria da Literatura. Especial importância apresenta o emprego de conceitos como real, realidade, cotidiano e sobrenatural, nos quais tem se apoiado muito do que já se escreveu e disse sobre o fantástico. PALAVRAS-CHAVE: Fantástico, Neofantástico, David Roas, Jaime Alazraki, Remo Ceserani, Tzvetan Todorv

O fantástico tem suscitado inúmeras abordagens segundo variadas perspectivas. Dentre elas, destaca-se a que discute a natureza do fantástico enquanto gênero. Isso supõe pensar numa conhecida conceituação de gênero baseada na noção de forma, correlacionada com a noção de estrutura e composição. Segundo essa visão, os gêneros correspondem a lírico, épico, ou narrativo, 1

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Pode-se perguntar: é correto considerar o fantástico, assim como se faz para outras formas de produção literária, como um modo específico e autônomo, isto é, um conjunto de procedimentos retórico-formais, comportamentos cognoscitivos e associações temáticas, articulações do imaginário historicamente concretas e utilizáveis por vários códigos linguísticos, gêneros artísticos ou literários? É correto difini-lo como uma nova modalidade do imaginário, criada no fim do século XVIII e utilizada para fornecer eficazes e sugestivas transcrições da experiência humana, em particular da experiência humana da modernidade? Se aceitarmos a colocação de Todorov, a resposta deveria ser positiva, ainda que ele não use nunca o termo “modo”.” (CESERANI, 2006, p. 8).

Essa indagação tangencia um dos problemas do fantástico que permanece ainda insolúvel: o da sua natureza enquanto produção literária. Mas isso não impede que os estudiosos e teóricos tentem esboçar um conjunto de características que daria ao fantástico uma feição própria. Nesse sentido, é frequente encontrar estudos que, apoiados em Todorov, denominam gênero ao fantástico, da mesma forma como o maravilhoso também é um gênero. Seria legítimo apreciar o fantástico como uma forma de escrita literária relacionada com a preferência por um repertório de temas e


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maneiras de tratar esses temas dentro de um gênero (o narrativo) ou subgênero (conto ou romance). Mas de modo algum a polêmica está encerrada, como é possível apreciar pelas propostas de três teóricos do fantástico: o já referido Tzvetan Todorov, David Roas e Jaime Alazraki. Todorov (2003, p. 29-46), em sua conhecida obra Introdução à literatura fantástica, afirma que o fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, na presença de um acontecimento aparentemente sobrenatural. Assim, a categoria do real proporciona a base para a definição do fantástico. Por isso o fantástico se define com relação aos conceitos de real e de imaginário. O autor também aponta que a hesitação, isto é, não saber se os fatos referidos na narrativa são sobrenaturais ou não, é o que instaura o fantástico. E ainda observa a importância de o leitor (que ele chama de leitor implícito) estar integrado no mundo das personagens e possuir uma percepção ambígua dos acontecimentos narrados. Também destaca a importância da maneira de ler, a qual pode se definir negativamente: não deve ser nem ‘poética’, nem ‘alegórica’. Todorov (2003, p. 47-63) ainda oferece a caracterização do fantástico como sendo um gênero sempre evanescente porque parece se localizar no limite de dois gêneros, o maravilhoso e o estranho, mais do que ser um gênero autônomo. Essa percepção se origina quando a hesitação é abandonada e opta-se por uma solução na qual as leis da realidade permanecem intactas e permitem explicar os fenômenos descritos. Esse é o gênero estranho. Se, pelo contrário, opta-se por admitir novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode ser explicado, apresentando a existência exclusiva de fenômenos sobrenaturais, sem implicar a reação provocada nas personagens, entra-se no maravilhoso. Todorov aponta que há, ainda, gêneros híbridos: o fantástico-estranho, no qual os acontecimentos que parecem sobrenaturais ao longo de toda a história no fim recebem uma explicação racional, e o fantástico-maravilhoso, que engloba uma classe de narrativas

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aparentemente fantásticas e que terminam por uma aceitação do sobrenatural. Visto dessa meneira, o conceito de gênero representa precisamente uma estrutura, uma configuração de propriedades literárias, um inventário de possíveis, segundo Todorov. O teórico espanhol David Roas (2001, p. 7-44), em seu ensaio “La amenaza de lo fantástico”, destaca que a maior parte dos críticos coincide em apontar que a presença de um fenômeno sobrenatural é indispensável para que o efeito do fantástico seja produzido nos relatos. Sobrenatural é, para Roas, tudo aquilo que transcende a realidade humana, transgredindo as leis que regem o mundo real e não pode ser explicado porque não existe segundo essas leis. Mas isso não significa que todos os textos nos quais aparece um fenômeno sobrenatural sejam fantásticos. Nas epopeias gregas, nas novelas de cavalaria, nos relatos utópicos ou de ficção científica é possível encontrar elementos sobrenaturais, mas isso não é fundamental para a caracterização desses subgêneros. No entanto, a literatura fantástica é o único gênero literário que não pode funcionar sem a presença do sobrenatural. E para funcionar, o relato fantástico deve criar um espaço similar ao habitado pelo leitor, um espaço que será invadido por um fenômeno desestabilizador. Por esse motivo, o sobrenatural será sempre uma ameaça para a realidade, cujas leis parecem imutáveis. Para Roas, o fantástico situa o leitor frente ao sobrenatural com o propósito de levá-lo a perder sua segurança diante do mundo real. Nesse ponto, é possível ver uma divergência entre Todorov e Roas. Todorov não afirma a presença do sobrenatural no fantástico, mas a hesitação entre uma explicação plausível para os fenômenos e outra que os tire da realidade, mas sem jamais escolher declaradamente entre um e outro. Para Roas, o relato fantástico, ao oferecer um confronto entre o sobrenatural e o real dentro de um mundo ordenado e estável como se pretende o nosso, provoca incerteza em relação à percepção da realidade e do eu, porque o relato fantástico revela uma realidade incompreensível e


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alheia à lógica racional que garantiria segurança e tranquilidade e, desse modo, contamina o mundo do leitor. Roas apresenta outro ponto básico que determina o caráter fantástico de um relato: afirma que quando o sobrenatural não entra em conflito com o real, o fantástico não se produz. Por isso, os contos de fadas não pertencem ao fantástico. Quando o sobrenatural se transforma em evento perfeitamente aceitável, o fantástico cede espaço ao maravilhoso. Roas também afirma que o leitor precisa contrastar o fenómeno sobrenatural com a concepção de real, uma vez que toda representação da realidade depende do modelo de mundo de uma dada cultura. A participação ativa do leitor é fundamental para a existência do fantástico porque o leitor precisa cotejar a história narrada com o real extratextual para assimilá-lo como relato fantástico. O fantástico dependerá sempre do que seja considerado real e o real depende do conhecido. Em suma, a definição de Roas acerca do fantástico inclui tanto os relatos em que a evidência da presença do sobrenatural não está em discussão, quanto os relatos em que a ambiguidade é irresolúvel. Em ambos se dá a irrupção do sobrenatural no mundo real e não há possibilidade de explicá-lo satisfatoriamente. Por essa percepção, Roas propõe utilizar como classificação dos relatos o binômio literatura fantástica/literatura maravilhosa. O teórico argentino Jaime Alazraki (2001, p. 265-282) em seu ensaio “¿Qué es lo neofantástico?” reflete sobre a caracterização do fantástico e afirma que, na tentativa de delimitá-lo, houve uma espécie de consenso entre os críticos, teóricos e autores: coincidem em apontar que a capacidade própria do gênero fantástico de gerar algum medo ou horror seria o que o distingue de outros gêneros. Dessa forma, o maravilhoso é um gênero autônomo porque nele não há lugar para o espanto e o horror. Esses seriam elementos próprios do fantástico. Alazraki observa que, quando se começa a ter a ideia de um mundo domesticado pelas ciências, durante o século XVIII, o relato fantástico oferece um vislumbre das trevas por meio do elemento sobrenatural, trazendo o medo e

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o calafrio. O medo é visto como a possibilidade de derrubar as certezas impostas pelas ciências como um valor. O medo é visto como uma compensação pelo excesso de racionalidade imposta no Iluminismo como forma de conhecer o mundo. O fantástico precisa de uma imagem ordenada do real, dada pelas ciências, para melhor desafiar as certezas. No entanto, para o contexto de inícios do século XX, há a necessidade de buscar uma nova caracterização para obras que buscam uma expressão literária harmonizada com as inquietações próprias de sua época. Por esse motivo, Alazraki situa o início dessa nova forma de encarar o fantástico nas décadas em que eclodem a Primeira Guerra Mundial, os movimentos de vanguarda, a psicanálise de Freud, o surrealismo e o existencialismo, entre outros. Alazraki propõe uma nova denominação para esses novos relatos que guardam relação estreita com o fantástico. Essa denominação aparece a partir da afirmação de Julio Cortázar acerca da existência de uma realidade segunda, profunda e radicalmente humana, e, por isso mesmo, resistente a ser classificada como misteriosa, transcendente ou teológica, mas diversa da realidade primeira. Essa realidade segunda, manifestada em momentos raros e especiais, parece romper os nexos seguros que a realidade primeira (a da cultura, da racionalidade e das máscaras que nos obrigam a vestir) ensina a ver. Autores como Kafka e o próprio Cortázar escreviam seus relatos a partir dessa realidade segunda. Cortázar reconhece que nos seus contos a irrupção daquilo capaz de altera a realidade é algo prosaico, de tal modo que não chega a instaurar o horror à maneira do fantástico tradicional. Alazraki propõe denominar “neofantástico” ao gênero descrito por Cortázar. A caraterística principal do neofantástico seria a de tentar intuir e representar a realidade segunda além da barreira criada pela fachada construída racionalmente e que se apresenta como realidade primeira. Isso supõe um questionamento radical do que se considera a realidade. Segundo Alazraki, os relatos neofantásticos se distinguem


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dos fantásticos pela sua visão, intenção e modus operandi. Visão: o relato neofantástico assume que o real é uma máscara que oculta uma segunda realidade. Intenção: o relato neofantástico não provoca medo, provoca inquietação, perplexidade. Modus operandi: o relato neofantástico se inicia contando já com a aceitação do fato insólito. Por isso, Alazraki sustenta que o relato neofantástico é metafórico. Propõe uma segunda leitura a partir da qual se revelaria a realidade segunda. Assim, os textos neofantásticos não desejam devastar a realidade por meio da introdução abrupta de um fato sobrenatural, como acontecia no fantástico tradicional. Os textos neofantásticos desejam propiciar a oportunidade de conhecer e intuir a realidade ultrapassando a fachada racionalmente construída que a esconde, valendo-se de um fato corriqueiro ou despojado de seu potencial assustador. O leitor ‒e também a personagem‒ é induzido a desconfiar da existência de algo oculto, impossível de ser enxergado com clareza e que acaba se manifestando no meio das atividades cotidianas, sem aviso e sem explicação, e o texto literário mimetiza essa condição de alheamento. Quando a personagem e o leitor se defrontam com o fato oculto, discretamente revelado na narrativa, manifesta-se neles a perplexidade e a inquietação, pois não sabem ao certo como lidar com o novo dado revelador de algo impactante, do modo mais sutil. O texto neofantástico não se concentra em apresentar um simulacro de realidade que possa ser destruído pela irrupção abrupta de um fato sobrenatural. Pelo contrário, parte do fato insólito e o vai tornando aceitável, uma vez que está fortemente imbricado na tessitura dos eventos referidos. Personagens e leitor estão presos numa teia vagarosa e habilmente tecida, sem sobressaltos, surpresas ou reviravoltas contundentes. O que une as perspectivas teóricas de Todorov, Ceserani, Roas e Alazraki? A certeza de que a literatura fantástica do século XIX corresponde a uma expressão das necessidades próprias dessa época. Da mesma forma, a literatura fantástica do século XX busca se relacionar com a tradição literária fantástica precedente a partir

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de noções e necessidades próprias do seu tempo. As convergências entre Todorov, Roas e Alazraki também se evidenciam em relação à necessidade de estabelecer o fantástico a partir da noção de real. Mas é preciso observar que, para cada teórico, o conceito de real assume nuanças particulares, como foi possível apreciar ao longo desta exposição. Outro dado fundamental está relacionado com a noção de sobrenatural. Para Todorov e Roas, a conceituação coincide quando afirmam que o sobrenatural constitui uma intervenção no mundo real ficcional. Para Alazraki, o que ele chama insólito, já estaria imbricado na própria noção de real ficcional, daí a pouca ou nenhuma reação das personagens. Desse modo, é possível perceber como as diferenças e aproximações entre as perspectivas teóricas em apreço mostram o quanto o debate envolvendo o fantástico e sua natureza, longe de se encaminhar para uma confluência, aponta para visões ancoradas em diversas abordagens. As teorias assumem feições características se a escolha do teórico recai sobre a discussão da noção de real e sobrenatural; se a questão é enfocar o efeito provocado no leitor, seja medo ou inquietação; se a literatura fantástica de hoje ainda guarda uma relação direta com a literatura fantástica tradicional; se o modo de composição do texto fantástico atual se afasta do da literatura fantástica tradicional. Em suma, a discussão em torno do fantástico aponta para a multiplicidade e é muito pouco provável que uma única teoria explique a totalidade das obras da literatura fantástica, do passado e do presente.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALAZRAKI, J. ¿Qué es lo neofantástico? In: ROAS, David (Org.). Teorías de lo fantástico. Madrid: Arco/Libros, 2001. p. 265-282. CESERANI, R. Delimitação de uma modalidade do imaginário. In: ____ O fantástico. Curitiba: Ed. UFPR, 2006. p. 7-12. ROAS, D. La amenaza de lo fantástico. In: ___ Teorías de lo fantástico. Madrid: Arco Libros, 2001. p. 7-44. TODOROV, T. Definição do Fantástico. In: ____ Introdução à literatura fantástica. 2ª. ed. Tradução de Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 29- 46. TODOROV, T. O estranho e o maravilhoso. In: ____ Introdução à literatura fantástica. 2ª. ed. Tradução de Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 47-63.

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MULTICULTURAL, MULTICULTURALISMO E POLÍTICAS MULTICULTURAIS PARA MINORIAS éTNICAS, EM ESPECIAL DOS CIGANOS Silvia R.C.F.Simões O presente trabalho pretende num primeiro momento apresentar algumas reflexões sobre os termos multicultural e multiculturalismo. Busca também abrir discussão sobre políticas multiculturais, sobre “modelos” vistos como ideais e mais especificamente investigar essas políticas no exterior e no Brasil em relação à minoria étnica cigana. Palavras-chave: Multicultural, multiculturalismo, políticas multiculturais, ciganos.

Introdução: Apesar de ser um termo recente, o termo multicultural refere-se à coexistência de culturas distintas nas sociedades “modernas”. No entanto, as sociedades multiculturais não são uma “criação” da modernidade. Os grandes impérios, otomano, grego, romano, islâmico foram sociedades multiétnicas e multiculturais. Mas, foi somente a partir da II Guerra Mundial, devido às grandes alterações oriundas de reconfigurações geopolíticas do pósguerra e das reações e manifestações resultantes desse processo, que o multiculturalismo se evidenciou com mais força no campo político. A questão multicultural pressupõe também uma relação estreita com os episódios pós-coloniais, e com as decorrências da globalização. Haja visto os conflitos atuais promovidos, entre outros fatores, pelas diferenças e contradições no interior de populações nativas, ou na relação das mesmas com o universo

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global. Fato esse, agravado pelo ressurgimento de antigos nacionalismos étnicos e religiosos. A globalização, pela forma como está estruturada, provoca ou acentua o “desenraizamento social” e a “ruptura das tradições culturais”. Essa ruptura tem por pressuposto homogeneizar as culturas, tendo as potências econômicas como paradigma. Apesar de ser uma das principais características da globalização, os processos de homogeneização cultural tem desencadeado efeitos “diferenciadores” nas sociedades. Esses efeitos “diferenciadores” são denominados por alguns autores como “localismo”, e, segundo os mesmos, seria uma espécie de resistência a esses processos de homogeneização cultural. No entanto, em alguns casos fica difícil falar em localismo, como no caso da minoria étnica cigana. Pois se trata de um povo que tem o nomadismo como princípio, e que, apesar dos deslizamentos que fazem em direção as diferentes culturas, conseguem manterse alijados de um compartilhamento cultural mais estreito e continuo com a cultura do entorno. Multiculturalismo Os anos 80 e 90 foram marcados por muitas discussões acerca do multiculturalismo, principalmente no meio acadêmico. Nesse sentido, Bauman (2006, p.112) afirma que o “multiculturalismo” é a resposta mais “comum” dada pelos intelectuais, particularmente nos dias atuais, para as incertezas sobre valores e direções a serem seguidos. Na concepção de Baumam (ibidem, p.112) ao evocarem o “multiculturalismo” como resposta, esses intelectuais estariam, na verdade, pedindo perdão por sua incapacidade de “resgatar” as pessoas dessa crise. Já para Boaventura (2003, p.2), o termo multiculturalismo está entre um conjunto de termos utilizados na atualidade numa espécie de jogo com as tensões geradas. Por se tratar de um termo ambíguo, o autor ressalta que a mobilização do mesmo, tanto pode encerrar pressupostos “eurocêntricos” quanto “ações emancipatórias”.


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Mesmo reconhecendo a importância da utilização do termo multiculturalismo, como recurso em diferentes trincheiras de lutas sociais, Boaventura (ibidem,p.2) entende que é necessário começar a desconstruir de forma crítica alguns conceitos como: “justiça multicultural”, “direitos coletivos”, “cidadanias plurais” e o próprio “multiculturalismo”. Entretanto, o autor reconhece que a importância da mobilização do termo “multiculturalismo”, em determinadas causas, principalmente as sociais, tem demonstrando o “peso” que esse termo carrega e o cuidado que se deve ter ao lidar com o mesmo. Retornando ao conceito de multiculturalismo Bourdieu (2004, p.25) dirá que o “multiculturalismo” é: Um termo importado, na Europa, para designar o pluralismo cultural na esfera cívica, enquanto nos Estados Unidos se refere, no interior do próprio movimento pelo qual ele os mascara, à exclusão contínua dos negros e à mitologia nacional do “sonho americano” da “oportunidade para todos”, correlativa da falência que afeta o sistema do ensino público num momento em que a competição pelo capital cultural se intensifica e quando as desigualdades de classe crescem vertiginosamente.

Bourdier (2004), ao se reportar particularmente ao multiculturalismo americano, acrescentará que o mesmo pretende ser diversas coisas, mas que no final, o resultado é um “(...) gigantesco efeito de alodoxia[3] nacional e internacional que engana tanto aqueles que estão nele como os que não estão(...)”, e que de fato trata-se de uma construção genuinamente americana, que é transmitida para o resto do mundo como universal, hegemônica. Shohart (2006, p.85), ao comentar sobre a origem do multiculturalismo concorda com Bourdier quando diz que essa questão é um debate considerado especificamente norte-americano e que essa discussão desencadeou diferentes reações políticas. Assim, é que, “(...) para os neo-conservadores o multiculturalismo é sinônimo de ‘oposição de esquerda’ e ‘pessoas de cor’(...)”. Para

os nacionalistas militantes trata-se de algo “(...)‘estratégico’ para a ‘regeneração nacional’(...)”, enquanto para os liberais intelectuais o multiculturalismo é uma “(...) bem comportada ‘diversidade ’que seria essencial para a boa imagem das universidades(...)”. Ainda na concepção da autora(idem, p. 85) o termo multiculturalismo é um termo polissêmico.E é devido ao seu uso indistinto, em particular na esfera política, que ele adquiriu “um significado vazio”.

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Multiculturalismo e Minorias étnicas Trazendo esse debate para o plano prático, caberia a pergunta: De que forma, nas sociedades multiculturais ocorre os processos de reconhecimento das identidades, especificamente das minorias étnicas? No mundo hoje existem um conjunto de instrumentos internacionais e regionais de promoção e proteção dos direitos de minorias étnicas e raciais. São tratados, convenções, protocolos, acordos, compromissos, que têm por finalidade assegurar a essas minorias direitos iguais. Por se tratar de contextos em que elementos culturais se entrecruzam, quando se trata de minorias étnicas o desafio é bem mais complexo. É o caso dos ciganos, que, apesar de contarem nos dias atuais, com alguns dispositivos legais continuam enfrentando as mesmas dificuldades do passado no que diz respeito a convivência com as demais sociedades. Essas dificuldades dizem respeito em primeiro lugar, ao desconhecimento, por parte das sociedades não-ciganas, dos distintos elementos que compõem essa cultura tais como: a leitura de mão (“buena dicha”, quiromancia); os ritos e mitos; o nomadismo; a língua(Romani) e a organização social intra-grupo. Outro aspecto que também interfere nas relações dos ciganos com os não-ciganos, são as representações presentes no imaginário coletivo à seu respeito. Por exemplo, a ficção de que os ciganos “roubam criancinhas”. Retomando a questão sobre como a identidade étnica é vista nas sociedades multiculturais remetemo-nos novamente a


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Shohart(2006, p.86) que faz a seguinte colocação: “O que falta em grande parte nas discussões sobre multiculturalismo é a noção de responsabilidade étnica e comunitária. Essa noção de responsabilidade, ou a falta dela, pode-se perceber na colocação de Baumam(2006, p.82) quando ele assinala que “(...) as pessoas são designadas de ‘minoria étnica’ sem que lhes seja pedido consentimento”. Outro aspecto importante nas reflexões sobre multiculturalismo são as políticas multiculturais. Políticas Multiculturais Falar de sociedades multiculturais é diferente de falar de políticas multiculturais. Ao atentar-se para a pluralidade das sociedades contemporâneas percebe-se que “sociedade” tornou-se sinônimo de “multicultural”, sem que isso signifique reconhecimento das diferentes alteridades e valorização do simbólico que cada um carrega. Esse desconhecimento ou negação do outro faz com que as políticas sejam pensadas numa perspectiva da cultura hospedeira. A compreensão de como são elaboradas essas políticas tornasse importante na medida em que possibilita identificar uma real condição de questioná-las e até influenciá-las. Nesse sentido é que, no afã de encontrar soluções para seus “problemas”, muitos países tentam reproduzir “modelos” de multiculturalismo desconsiderando os contextos socioculturais nos quais foram elaborados os mesmos. Nessa linha do que “deu certo” o modelo do Canadá aparece como exemplar. Trata-se do país mais mencionado, elogiado e “copiado” quando se fala em políticas multiculturais. Bissoondath(2002), escritor canadense, ao expressar suas percepções sobre o tema em questão observa que: O propósito declarado de Multiculturalismo do Canadá Art (1971) é reconhecer ‘a existência de comunidades cujos membros compartilham uma origem comum e sua contribuição histórica para a sociedade canadense. Ele promete promover o seu desenvolvimento e promover a compreensão e a

criatividade que surgem a partir da interação entre indivíduos e comunidades de origens diferentes’. A natureza (Inglês e Francês) bicultural do país está sendo deliberadamente transformada em um ‘mosaico’ multicultural.

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Para o autor, apesar de terem sido elaboradas com um intuito nobre, as leis multiculturais canadenses têm na verdade incentivado as diferenças étnicas, a guetização e os estereótipos de grupos culturais. Como o Canadá, a Austrália é outro exemplo de multiculturalismo que “deu certo”. Esse país atrai muitos imigrantes, principalmente jovens. Entretanto, apesar das inúmeras possibilidades de trabalho, intercâmbios culturais, entre outros, o Estado Australiano impõe ao imigrante algumas condições que de fato fazem parte de uma proposta assimiladora que vai desde a aceitação das estruturas e princípios básicos da sociedade australiana, a adoção do idioma inglês como língua nacional. No caso Europa, os esforços em elaborar políticas multiculturais efetivas têm sido constantemente desafiados por conflitos e tensões como, por exemplo, a questão cigana. Na Itália, no ano de 2009, o governo elaborou um programa de habitação, intitulado “plano nómada” que tinha como suposto objetivo construir moradias e dar dignidade a esse povo. Devido a sua localização “estratégica”, as casas mais pareciam fruto de uma política higienista que objetivava manter os ciganos afastados, o máximo possível, dos grandes centros culturais. Esse fato gerou inúmeros protestos por parte de ONGS e entidades de direitos humanos e levou o Comité Europeu dos Direitos Sociais a considerar que a Itália com essa atitude estaria discriminando e negando aos ciganos vários direitos[1]. Já a França, em 2010, estabeleceu um processo de expulsão e destruição dos acampamentos ciganos afirmando tratar-se de uma medida contra os “ilegais”, mas, quem seriam esses ilegais, se os ciganos, em questão, faziam parte da Comunidade Européia? 1

A Itália nega proteção contra a pobreza (inclusão nos programas de assistência).


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Diante de tantos percalços, como os ciganos particularmente os europeus estariam se organizando? Os ciganos, apesar do histórico de perseguições, começaram a se articular coletivamente somente a partir de 1971. Nesse ano foi realizado, em Londres, o Primeiro Congresso Mundial Romani, com delegados de quatorze países. Na ocasião foi criado o Comitê Internacional ROM (cigano) e cinco comissões para tratar de assuntos específicos tais como: assuntos sociais, educação, crimes de guerra, língua e cultura. Posteriormente outros congressos e eventos menores aconteceram, todos com a perspectiva de que a cultura cigana fosse de fato reconhecida pelas políticas públicas. No Brasil a questão cigana é diferente. Os ciganos, apesar de numerosos[2], estão espalhados por todo território brasileiro, com mais freqüência nas cidades do interior ou na periferia das grandes cidades. Organizam-se em pequenos grupos, o que faz com que cada grupo como eles costumam dizer, “viva sua própria vida”. Essa organização atende geralmente a princípios de parentesco, e os processos de itinerância ocorrem de forma circular dentro de um determinado espaço geográfico com algumas exceções. No que diz respeito às políticas publicas especificas para essa população, ainda há muito a ser feito. Por bastante tempo os ciganos brasileiros se mantiveram e foram mantidos na invisibilidade. De uns anos para cá, algumas “lideranças” ciganas resolveram reivindicar direitos. Até então o que se tinha era algo institucional, sem a participação dos interessados. Um exemplo disso foi a criação da Coordenadoria de Defesa dos Direitos e Interesses das Populações Indígenas e Minorias Étnicas pela Procuradoria da República. Apesar disso, a existência dessa Coordenadoria é até hoje desconhecida por grande parte dos ciganos. Em 2006 o Ministério da Cultura instituiu a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura (SID/MinC). O diferencial dessa Secretaria é que os grupos de Estima-se que no país existam cerca de 600 a 800 mil ciganos.(Fonte: Ministério da Cultura/Minc).

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trabalho(gts), criados para pensar e construir políticas para algumas minorias étnicas dentre elas os ciganos, puderam contar com a participação dos sujeitos. Esse grupo de trabalho cigano, que conta com representantes de algumas associações ciganas, elaborou um conjunto de demandas que foram apresentadas a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) da Presidência da República. Essas demandas são: documentação; acesso a postos de saúde, escolas, alfabetização de adultos, alfabetização de crianças de uma maneira especial, considerando que nem todos têm moradia fixa. Apesar da lista de reivindicações os “avanços” alcançados, se é que se pode chamar assim, são mais de ordem simbólica como a instituição do dia 24 de maio como Dia Nacional do Cigano (Decreto assinado Presidente da Republica Luiz Inácio Lula da Silva em 2006), a assinatura (2007) do protocolo de cooperação para realização de censo específico para minoria étnica cigana, bem como, a instituição do Prêmio Cultura Cigana. O Prêmio Cultura Cigana, trata-se de um concurso que está na segunda edição e que envolve trabalhos, individuais ou coletivos, que fortaleçam as expressões culturais ciganas e contribuam para a continuidade e manutenção das identidades dos diferentes clãs e presentes no Brasil. A segunda edição do Prêmio Culturas Ciganas, em 2010, envolveu varias entidades o que denota maior participação e compromisso com essa causa. Conclusão Apesar dos desafios, observa-se que os ciganos, à sua maneira, começaram a se mobilizar na luta por direitos. Nesse sentido, Melluci (2001, p.112), ao comentar sobre o ressurgimento das lutas de minorias étnicas nos dias atuais, dirá que, o que está promovendo essas lutas é a “(...) velocidade com que a ‘mundialização’ tem se deslocado em direção as culturas na tentativa de homogeneizálas, particularmente as culturas minoritárias”. Portanto, a busca pela homogeneização não se dá só em direção aos ciganos. Mas, é


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exatamente por possuírem um tipo de organização social diversa, que os ciganos não conseguem ter suas demandas atendidas. Os ciganos, como eles mesmos dizem, “não têm chefe”, dessa maneira é que cada clã ou grupo tem os anciões e homens adultos como lideres. Outros processos associativos mais amplos não são sequer aventados. Portanto, é desse traço cultural que emerge a dificuldade de geração de políticas estatais, na medida em que elas emanam de um único chefe, o Estado. Essa dificuldade, que vem da diferença de compreensão do que seria cidadania, não deve servir de justificativa para a não elaboração de políticas para essa minoria. A forma como eles irão ou não lançar mão das mesmas precisa, também, ser alvo da incorporação do multiculturalismo em seus efeitos práticos. Os ciganos têm plena consciência de sua condição de sujeitos de direitos. O fato de terem sido usurpados historicamente desse direito é o que fez com que desacreditassem na possibilidade de mudança.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BISSOONDATH, Neil.“The Cult of Multiculturalism in Canada”. 2ª ed. revista e actualizada.Toronto, Penguin Books, 2002. HALL, Stuart. Da diápora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik.Trad. Adelaide La Guardia Resende. Belo Horizonte, MG: UFMG, 2003. MELUCCI, Alberto.“A invenção do presente:movimentos sociais nas sociedades complexas”. Tradução de Maria do Carmo Alves. Bonfim-Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

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SANTOS, NUNES, João Arriscado. “Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade”. In SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. SHOHAT, Ella; STAM, Robert. “Crítica da imagem eurocêntrica. Multiculturalismo e representação”. Tradução: Marcos Soares. São Paulo: Cosac Naify, 2006. SILVA, Tomaz Tadeu da. “Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais”. Tomaz Tadeu da Silva (org).Stuart Hall, Kathryn Woodward.-Petrópilis, RJ:Vozes, 2000. VAUX DE FOLÊTIER, F. “Le monde des tsiganes”. 1.ed., Espaces des Hommes, Paris, Berger-Levrault. 1983.


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REFERÊNCIAS ELETRôNICAS www.dhnet.org.br/w3/.../60_pierre_bourdieu.htm.Acesso em 15/08/2011. http://www.npm.cjb.net/. BOURDIEU, Pierre.WACQUANT Löic: O imperialismo da razão neoliberal. Revista Possibilidades. Publicação do NPM – Núcleo de Pesquisa Marxista. Ano 01, no 01, Jul./Set. de 2004. Acesso em 20/09/2010.1

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O RISCO DA ESCRITA COMO PROJETO LITERÁRIO MACHADIANO[1] Daniela Soares Portela Em artigo de 1878, ao responder às críticas ingênuas que recebera de leitores sobre a avaliação que fizera de O primo Basílio, de Eça de Queirós, Machado de Assis refuta a percepção realista da arte, porque esta naturaliza arbitrariamente o que é cultural: Très naturel aussi, mais je porte des culottes. ( ASSIS, 1962, v. III, p. p. 913). Como leitor de seu tempo histórico, e das normas preestabelecidas de leitura e decodificação automatizada de significados fixados pela tradição literária, Machado reinventa a forma de leitura de suas obras da segunda fase. Esta reinvenção está intimamente ligada ao “risco da escrita” e à percepção do corpo material da literatura: ao capítulo curto, à “montagem” do livro impresso pela obediência às ordens proferidas por um autor voluntarioso, como Brás Cubas, e principalmente à construção de um enredo de partes interpoladas, como ocorre nas cinco obras da segunda fase. Assim, o uso do capítulo curto, a interpolação de enredos que faz com que o leitor se encontre diante de uma fragmentação da linearidade da narrativa e estímulos alheios à narrativa (como a leitura de elementos gráficos incorporados a ela: pontilhados, mudanças de fonte, distribuição incomum do texto na página, etc.), obrigam o leitor a desviar a atenção da trama principal, propondo como artefato a tradicional imitação mimética da realidade realista. PALAVRAS-CHAVE: Ideografia; romance; Machado de Assis; artefato; arte mimética

O estabelecimento do cânone literário enquanto instituição social remonta à escolarização da literatura moderna, que ocorre durante o século XIX, primeiro à margem das universidades, onde se privilegiava o estudo dos clássicos da Antiguidade canonizados por séculos de imitação e comentário, depois, já no início do século 1

Trabalho desenvolvido graças ao apoio da FAPESP processo 10/51855-8

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XX, na própria academia, onde se concretizava através de listas de textos a serem lidos e interpretados pelos alunos. No caso do Brasil, Candido (1975) descreve o trabalhoso processo de formação do cânone literário pelos primeiros críticos, a saber, Januário, Pereira da Silva e Varnhagen, posteriormente acompanhados de Norberto, Pizarro e Baltasar Lisboa. Em meados do século XIX, a cultura brasileira estava submissa às regras e critérios do cânone francês, questão que mobiliza a produção ensaística e ficcional de Machado de Assis. Ao propor que longe de ser um dogma, o cânone constitui-se num critério histórico, adotado por indivíduos que são autorizados por seus pares como críticos legitimados de um determinado estrato cultural, o autor carioca, por meio de seus ensaios, discute o cânone literário, e determina duas características específicas de sua produção intelectual, a saber, a consciência de que o cânone deve ser percebido como um processo histórico e cultural, portanto sujeito às convenções e arbitrariedades próprias a esses processos e a resistência à tradição francesa, dispositivo pelo qual consegue criar sua contribuição pessoal como artista que, dialeticamente, elege essa tradição como ponto de tensão e resistência, onde concentra grande esforço intelectual de leitura, mas principalmente de irrisão. Ao resistir ao cânone francês, Machado propõe o signo literário como elemento simbólico da cultura e revela uma consciência dialética de seu papel de intelectual e crítico do século XIX. Crítica dialética, no sentido atribuído por Adorno (1998), porque o autor não adotava uma postura aristocrática de distanciamento em relação à época em que vivia, como se tivesse a cultura que julgasse faltar à sociedade que o rondava. As crônicas, ensaios e outros escritos, de gêneros mistos, os quais o autor nomeou de “miscelâneas” demonstram que Machado ora distanciavase, geralmente pela ironia, ora inseria-se como um homem que compartilha a cultura vigente em seu tempo, às vezes até de forma contraditória, quando, por exemplo, afirma que não vai às touradas, mas não deixa de descrevê-las.


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Machado considerava ser função do intelectual, amparado pela democratização da informação, conquistada graças ao jornal, uma revolução pelas letras. Em um de seus primeiros textos críticos, publicado ainda na juventude do escritor, aos 19 anos de idade, em janeiro de 1859, “O jornal e o livro”, ele demonstra que confiava no jornal como um meio de comunicação capaz de democratizar a informação no país e implantar o progresso social amparados pela república e pelo liberalismo econômico. Para ele, o país tinha todas as possibilidades de vir a ser uma grande potência: extensão territorial, pessoas de engenho e riquezas naturais. Faltava, apenas, a divulgação da língua como forma de fortalecimento do sentimento nacional: O jornal é a verdadeira forma da república do pensamento. É a locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das ideias e o fogo das convicções, (ASSIS, J. M.M, 1962, vol. III p. 945).

À medida que o escritor carioca vai perdendo a esperança de uma revolução social pelas letras, (processo que culmina com o censo de 1876), seus ensaios se voltam para outra questão: a necessidade de os intelectuais e artistas brasileiros se emanciparem da tirania da cultura francesa. Muito pertinente a esse respeito é a escolha de um dos maiores ensaios machadianos (em extensão gráfica) publicado em outubro de 1896, sobre as cartas trocadas entre Henriqueta e Ernesto Renan. Esse ensaio traça o processo de amadurecimento intelectual de um filósofo nascido numa comuna francesa na Inglaterra, Tréguier, e a tensão instaurada na construção de uma identidade que recebe influências marcantes da Inglaterra e da Alemanha, apesar da origem francesa. Ponto interessante do ensaio e bastante significativo como marca da consciência machadiana de que as culturas são intraduzíveis é o deslocamento do tema para as consequências que a relação afetiva entre Henriqueta e Renan produziu na constituição intelectual do

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autor da Vida de Jesus. Machado não discute o conteúdo das cartas (motivo inicial do ensaio), nem tampouco a obra de Renan, porque isso o leitor deve ou pode “ler nessa língua única”, (ASSIS, 1962, vol. II p. 626), o francês. Ao discutir as cartas (que não aparecem senão por referências ou pequenas citações de trechos, que não ultrapassam dez palavras), Machado desvenda as contradições e polarizações de uma alma que ser quer livre. Renan inclinava-se ao cristianismo, mas não tinha fé o suficiente nesta doutrina para segui-la. Se a maior parte do clero é fútil e ambiciosa, ao seguir a doutrina católica o que garantiria, como questiona Henriqueta, que “o número e o costume não levaria atrás de si a minoria e o dever” (ibid., p. 631). Ponto de reflexão, parece bastante sintomático que entre as inúmeras personalidades citadas ao longo de sua obra, Machado tenha eleito Renan como trajetória intelectual a ser analisada. Ao propor como modelo de livre pensador alguém que se recusou às facilidades angariadas pelo pertencimento a uma instituição cultural e religiosa poderosa, que lhe garantia subsistência farta e segurança material, Machado insere-se como um homem de seu tempo que escolhe o risco e a liberdade em detrimento das normas consagradas pela instituição da tradição. Nessa escolha, insere-se a tensão entre os cânones francês e inglês que promove um distanciamento das bases do nacionalismo romântico, segundo Guimarães (2008) e cria um efeito de abismo na relação entre a obra machadiana e o repertório literário da época, uma vez que o próprio paradigma inglês é fragmentado e refratário aos modelos continentais, como indica Passos (2000, p. 18): Apenas a Inglaterra resistiu à miragem gálica. Aliás, é conveniente ressaltar-se um ponto. Muito de que se fazia de novo, sob o ponto de vista intelectual, era originário, no século XVIII, da própria terra de Shakespeare. Locke, Hume, Newton e as instituições sociais inglesas eram muito caras aos olhos dos enciclopedistas, haja vista, por exemplo, a obra de Montesquieu e Voltaire.


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O resto da Europa, se mostraria ávido em partilhar do gosto francês.

Portanto, um passeio pelos ensaios machadianos, dispersos pela extensa obra do escritor, formados por diversas ervas que resultam numa salada, como insinua a epígrafe de Montaine que abre “Páginas Recolhidas”, “Quelque diversité d’herbes qu’il y ayt, tout s’enveloppe sous le nom de salade”, (ASSIS, 1962, vol. II, p. 574) propõe duas questões que serão retomadas em toda a carreira do polígrafo Machado de Assis: a irrisão dos discursos ideológicos de seu tempo histórico e a tensão entre aproveitamento do cânone literário francês e ruptura com esse modelo. Essa resistência à submissão brasileira em relação à cultura francesa é o ponto de tensão mais fértil do autor carioca, tanto ao que se refere às reflexões como intelectual comprometido política e culturalmente com seu tempo histórico, como em relação às faturas estéticas que irá imprimir como inovação técnica nos seus últimos cinco romances. A tensão com a filiação gálica inicia-se de forma sistemática a partir do ensaio “O ideal do crítico” (Ibid., 798). Nesse texto, Machado disciplina, de forma bastante rígida, os critérios estéticos e civilizatórios aos quais sua produção deverá obedecer. Entre os critérios, três merecem destaque: a natureza analítica, a sinceridade e a coerência. O primeiro refere-se à necessidade de extrema intimidade entre o crítico e o objeto a ser analisado. Só é possível avaliar com justiça um objeto várias vezes revisitado. A sinceridade refere-se à independência intelectual e até mesmo mundana do crítico. Alienado de interesses pessoais e despido do autoritarismo das verdades absolutas, próprias ao século XIX, seria possível ao crítico produzir uma avaliação útil do objeto analisado. E a coerência refere-se tanto à obediência à tradição das regras poéticas clássicas, quanto às contingências pessoais às quais cada escritor se subordina, ou seja, à tensão entre subserviência à tradição e ruptura com o cânone. A cultura brasileira do século XIX, para contrapor-se à

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metrópole, numa tentativa de afirmação de autonomia intelectual por meio do afastamento do modelo português, o substitui pelo cânone francês, ao invés de criar, com autonomia, um sistema artístico que correspondesse à realidade nacional.[2] Refutar essa substituição torna-se o dispositivo pelo qual Machado consegue criar sua contribuição pessoal como artista que, dialeticamente, elege a tradição francesa como ponto de tensão e resistência, onde concentra grande esforço intelectual de leitura, mas também de irrisão. Em ensaio de 23 de abril de 1858, ao discutir “O passado, o presente e o futuro da literatura” no Brasil, Machado associa a atividade literária à emancipação política das ideias e reclama de uma ausência muito marcante para a discussão civilizadora da cultura brasileira: a produção teatral: “O nosso teatro é um mito, uma quimera. E nem se diga que queremos que em tão verdes anos nos ergamos à altura da França, a capital da civilização moderna; não!”, (Ibid., p. 788), para no parágrafo de baixo apontar como maior problema da dramaturgia brasileira justamente a encenação de peças francesas traduzidas, “sem o mérito da localidade e cheias de equívocos, sensaborões às vezes, e galicismos, a fazer recuar o mais denodado francelho?” (Ibidem, grifo nosso), em que o termo francelho (tagarela na época) retoma por paranomásia, francês. Em ensaio de 1878, mais um ponto de irrisão da tradição francesa: a escola realista. Ao responder às críticas ingênuas que recebera de leitores sobre a avaliação que fizera de O primo Basílio, de Eça de Queirós, Machado de Assis refuta a percepção mimética da arte, porque esta naturaliza arbitrariamente o que é cultural: Très naturel aussi, mais je porte des culotes, (Ibid., p. 913). Como leitor de seu tempo histórico, e das normas preestabelecidas de leitura e decodificação automatizada de significados fixados pela tradição literária, Machado reinventa a forma de leitura de suas 2

Sobre isso ver: PASSOS, G. P. Passos. O Napoleão de Botafogo – presença francesa em Quincas Borba de Machado de Assis. São Paulo: Annablume, 2000.


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obras. Esta reinvenção está intimamente ligada ao capítulo curto, à “montagem” do livro impresso pela obediência às ordens proferidas por um autor voluntarioso, como Brás Cubas, e principalmente à construção de um enredo de partes interpoladas, como ocorre nas últimas cinco obras. Assim, o uso do capítulo curto, a interpolação de enredos que faz com que o leitor se encontre diante de uma fragmentação da linearidade da narrativa e estímulos alheios à narrativa (como a leitura de elementos gráficos incorporados a ela: pontilhados, mudanças de fonte, distribuição incomum do texto na página, etc.), obrigam o leitor a desviar a atenção da trama principal, propondo como artefato a tradicional imitação mimética da realidade realista. Dessa forma, o projeto estético machadiano refuta o experimentalismo científico da estética realista-naturalista de Zola, pois apresenta, ironicamente, uma ficção em que a obra de arte é proposta como construção artificial, regida por regras próprias, não raras vezes alheias à realidade empírica. Logo, a proposta mecanicista de Claude Bernard, de que o determinismo é absoluto, tanto para os fenômenos dos corpos vivos como para os dos corpos brutos, embora muito difundida no século XIX, não é um discurso verossímil para o escritor brasileiro, desde o ensaio de 1878. Ao invés de exercitar a técnica de retratista fiel da realidade, Machado investe na teatralização mecanicista do processo de construção da literatura sobre um suporte determinado. Como escritor lacunar, repleto de subterfúgios, Machado convida o leitor a completar os sentidos de seus textos. A técnica de construção do sentido do texto impresso é fraturada e exposta ao voyerismo do leitor. A imaginação do leitor machadiano deve ordenar um projeto de leitura que é necessariamente pessoal. A ordem em que os capítulos serão lidos, a possibilidade de ser obediente ou não aos ordenamentos de narradores intrusos, pular ou reler capítulos, estabelecem uma relação de autonomia e ao mesmo tempo liberdade criativa em relação ao sentido do livro que se quer construir. No caso de Memórias Póstumas de Brás Cubas, por

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exemplo, o texto impresso funciona, no mínimo, com uma dupla articulação: o desenvolvimento do enredo e o desenvolvimento da leitura. Basta observamos os capítulos e frases que servem como ordenamento do ato da leitura. São eles que instigam o leitor a substituir a leitura sequenciada e linear, por outra intercalada e irregular (tanto sob o ponto de vista da velocidade, já que há capítulos que literalmente “emperram” o processo, quanto do ponto de vista do manuseio do livro, pois o livro deve ser montado enquanto objeto). Se por um lado temos a representação concreta da leitura ativa, para a qual Machado quer preparar o leitor moderno, e para isso deve subjugá-lo insistentemente à noção de autonomia do objeto livro, por outro, esse processo cria no leitor a possibilidade de autonomia na produção do sentido diante de uma realidade apresentada. Ou seja, à medida que o leitor descobre que pode montar a realidade livro que será lida, pode transferir, por analogia, essa forma de raciocínio para a decodificação dos sentidos de sua realidade empírica, que assim como o livro apresenta-se como um poliedro de possibilidades semânticas. Se a lógica empregada nessa leitura for estendida para todo o processo de invenção da obra machadiana, ou seja, um móbile de partes independentes e ao mesmo tempo relacionais que criam nexos associativos, e se autocorrigem à mediada que montagens específicas são realizadas, o leitor machadiano passa a ser um operador técnico dos textos que deve construir para decodificar. Com isso Machado realiza na prosa, o projeto que Mallarmé previa para Un coup de dês, de 1897. A diferença (e isso importa salientar) é que se a singularização da técnica coloca a poesia francesa numa “chave de vitimização” (SISCAR, 2009) simbólica de representação, para Machado ela funciona como a dissolução da lógica cartesiana de uma cultura que funciona seguindo critérios associativos de propulsão de sentidos. Ao propor como artefato a construção simbólica de seus textos, ele consegue rejuvenescer a invenção da prosa do século XIX e desmistificar a linearidade causal do post hoc propter realista.


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Nesse sentido, é oportuno salientar que Machado substitui a fé pela descrença elegendo a mesma técnica que a Igreja católica: a cultura gráfica. Petrucci (1986) chama “cultura gráfica” ao conjunto de objetos escritos e às práticas sociais de decodificação de um determinado contexto histórico-espacial. Nesse sentido, orienta uma perspectiva analítica engendrada pela construção de uma semântica do sinal gráfico. Ao incorporar o objeto livro como elemento fundamental da cultura cristã, o filólogo italiano propõe que esse objeto participa da criação de uma cultura da iconografia, funcionando como estratégia de linguagem aplicada à comunicação e ao convencimento “do evento da fé” (PETRUCCI, 2003). Machado opera com a mesma funcionalidade, substituindo a comunicação da fé pelo projeto estético que evidencia o arbitrário simbólico da cultura gráfica com que o inventa, dessacralizando a fé do leitor na representação realista unívoca. Esse processo de corrosão das verdades autoritárias do século XIX é feito de forma programática em seus ensaios e traduzidos de forma simbólica para seus textos ficcionais. Por isso, ao propor o encurtamento dos capítulos como técnica narrativa de expressão de uma realidade fragmentada, Machado rompe com o ilusionismo de totalidade do projeto de inventário da estética realista francesa, bem como das propostas filosóficas do século XIX: o positivismo de Augusto Comte, a evolução de Darwin, enfim a ideia de um tempo evolutivo e totalizante, pelo qual a história da humanidade pudesse ser explicada e controlada como num sistema de regras imutáveis e previsíveis.[3]. Dessa forma, há uma íntima relação entre a produção ensaística e crítica de Machado de Assis, que finca suas bases na interpretação do aproveitamento dos cânones francês e, eventualmente, inglês para produção artística local, e propõe a descentralização desses 3

Sobre isso, ver, AUERBACH, E. Figura. Trad. Duda Machado. São Paulo: Ática, 1997.

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cânones, ou a modificação deles, como ocorre quando elege a herança inglesa de Sterne, mas também reestruturada no capítulo curto, procedimento este que não ocorre ao autor inglês. Como indica Baptista (2003), para quem o aproveitamento do espaço em branco da página e o uso do capítulo curto são duas estratégias que revolucionam a prosa romanesca do século XIX, e, porque refratárias a qualquer antecedentes, tornam-se a maior contribuição estética de Machado. Para além das tensões entre miméticos e simbólicos, isso indica que o projeto literário machadiano partia da incorporação das convenções editoriais do jornal na ficcção, isso inclui fundamentalmente seus ensaios. Especificamente, a incorporação dessa convenção consiste na criação de um capítulo curto, independente e integral, que funciona como a incorporação da materialidade do veículo jornal para a produção ficcional de Machado e tem como resultado a “alienação do texto escrito da responsabilidade do autor que o escreveu” (BAPTISTA, 2008, p. 15-31), como é comum no gênero jornalístico, já que a composição do objeto revista (ou jornal) é sempre coletiva, atenuando o papel da autoria. Ao incorporar as convenções gráficas e a linguagem do jornal no romance, Machado não apenas inova a forma romanesca, como o faz seguindo um projeto estético amparado por propostas políticas e sociais bem definidas. Mas, fundamentalmente, busca incorporar o efeito de confiança que a forma gráfica do jornal produz, à ficção literária. Não para propor a literatura como expressão da verdade empírica, mas talvez para denunciar como ficção o discurso jornalístico. Ou seja, ao aproveitar o jornal como elemento estético, desautoriza a credibilidade desse veículo e dos inúmeros gêneros textuais (entre eles o ensaio) que o compõem. Assim o faz também com os preceitos da escola realista francesa, instaurando uma fissura crítica nos critérios de avaliação da produção artística do século XIX. Ao desautorizar o estilo realista, o escritor carioca apela para um discurso de autoridade também francês. Ao citar Voltaire, “cuja


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eterna mofa é a consolação de bom senso, quando não transcende o humano limite” (ASSIS, 1962, vol. III p. 913), apoia-se na mesma cultura que afirma querer desautorizar. A escolha desse ponto de apoio pode ser lida de duas formas: uma aparente incoerência de princípios ou uma aporia deliberada cujo esforço depreciativo guarda em si o privilégio do modelo eleito como objeto que merece atenção crítica analítica, coerente mas nem sempre sincera, pois motivada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor, Wiesengrund. Prismas: crítica cultural e sociedade. São Paulo: Ática, 1998. ASSIS, . J. M. M. de Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, vol. III, 1962 AUERBACH, E. Figura. Trad. Duda Machado. São Paulo: Ática, 1997. BAPTISTA, A. B. A formação do nome. Duas interrogações sobre Machado de Assis. Campinas: Editora Unicamp, 2003. 633

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BAPTISTA, A. B. O romance extravagante. In: MACHADO DE ASSIS, Memórias Póstumas de Brás Cubas. Fixação de textos e notas Marcelo Módulo; prefácio Abel Barros Baptista. São Paulo: Globo, 2008, p. 15-31. CANDIDO, A., A Formação do cânon literário. In: CANDIDO, A., Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975, 2v, p. 310-316. GUIMARÃES, H. S. A emergência do paradigma inglês no romance e na crítica de Machado de Assis In: Machado de Assis ensaios da crítica contemporânea. Orgs., GUIDIN, M. L., GRANJA, L., RICIERI, F.W. São Paulo, Editora UNESP, 2008, p. 143 -177. GUIMARÃES, H. S. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Edusp, 2004.


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PASSOS, G. P. Passos. O Napoleão de Botafogo – presença francesa em Quincas Borba de Machado de Assis. São Paulo: Annablume, 2000. PETRUCCI, A. La scrittura. Ideologias e rapprezentazione. Turin: Eunaudi, 1986 PETRUCCI, A. La concezione cristiana del libro fra il VI e VII secolo. In: CAVALO, G., (org.). Libri e lettori nel Medioevo. Guida Storica e critica. 5ª ed., Roma-Bari: Laterza, 2003 SISCAR, M. A. O grande deserto da literatura. In: Remate de males. Campinas: Publiel, vol. 29, n º 1, 2009, p. 130 - 149.

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OSCAR WILDE: TEORIA E PRÁTICA Stephânia Ribeiro do Amaral Este artigo tem por objetivo divulgar os resultados obtidos na realização da dissertação de mestrado cujo propósito foi analisar da peça A importância de ser Prudente (2007), escrita por Oscar Wilde (1854 – 1900), de acordo com a perspectiva teórica de base estética, da qual Wilde foi um dos expoentes maiores. Para tanto, foram escolhidos alguns de seus ensaios críticos para compor o embasamento teórico necessário da análise. Entre eles, destacam-se “A decadência da mentira” e “O crítico como artista”, ambos compilados no volume da obra completa de Wilde (2007). Foi necessário voltar-se, ainda, ao conceito de estética a fim de compreender melhor os princípios do Movimento Estético, assim como sua importância no contexto da dramaturgia anglo-irlandesa do século XIX, considerando-se o envolvimento de Wilde na consolidação desse movimento artístico-filosófico. Por meio dessas considerações, foi possível atingir o objetivo do trabalho, isto é, foi feita a averiguação da associação das ponderações estéticas de Wilde à sua composição dramática – especificamente representada por A importância de ser Prudente – e aqui estão reunidas algumas evidências de como se dá a transposição da teoria em prática. PALAVRAS-CHAVE: Oscar Wilde; Movimento Estético; A importância de ser Prudente.

PRECURSORES DA ESTÉTICA WILDEANA O conceito de estética começa a ser delineado quando, em 1750, Alexander Baumgarten cunha o termo Aesthetica, em seu livro de mesmo nome (Fang, 2004). Este termo é originário da palavra grega aisthesis e faz referência a toda região da percepção e da sensação humanas. Baumgarten declara que a cognição estética é mediadora entre as generalidades da razão e as particularidades dos sentidos. Contudo, em seu surgimento, o termo não fazia

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referência a um conceito independente, e a estética era vista como uma parte da filosofia. Alguns filósofos passaram, então, a estudar a ligação entre a estética e a filosofia. Um novo marco na história dos estudos de estética ocorre somente em 1835, quando no prefácio de seu romance Mademoiselle de Maupin, Teóphile Gautier afirma a ideia de a arte não ter relações com a moral, com o bem público ou com qualquer outra coisa, exceto o prazer estético da beleza (Allen, 2009). A partir dessas declarações, o conceito começa a ganhar autonomia, até surgir o Movimento Estético, a partir da segunda metade do século XIX, no qual as afirmações de Gautier ganham fôlego e são incorporadas à uma série de outros princípios que marcam um novo olhar à arte. Quando Wilde publica “O crítico como artista” em 1891, a separação entre a estética e ética culmina por meio de sua assertiva de ambas pertencerem a âmbitos distintos. Enfim, o cenário estava preparado para a aceitação desse novo conceito de estética como autônoma e independente. Isso afetou diretamente os conceitos de arte e de crítica de arte, que passaram a ser vistas sob o prisma da estética. Essa, definitivamente, foi a maior contribuição de Wilde e o maior legado do Movimento Estético à arte, isto é, à concepção de arte da contemporaneidade, esta época denominada pósmodernidade. A ESTéTICA WILDEANA Como mencionado, a visão de Wilde da separação entre a estética e a ética estão expressas no ensaio “O crítico como artista”, publicado originalmente em 1891. Contudo, este não é o único postulado do Movimento Estético, tampouco ele resume as doutrinas estéticas wildeanas pelas quais uma obra literária poderá ser considerada uma obra de arte. Essas doutrinas são anunciadas sobretudo nos ensaios “A decadência da mentira” e, obviamente, “O crítico como


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artista”, embora possam ser encontradas ressonâncias delas em outros ensaios críticos de Wilde. Ambos ensaios mencionados são escritos em forma de diálogo, e em cada um deles, Wilde coloca dois personagens a discutir suas ideias. Em “A decadência da mentira”, os personagens Cirilo e Vivian debatem o texto que Vivian está criando, cujo título é “A decadência da mentira – uma observação”. Neste ensaio, Vivian defende o ponto de vista de a arte ser constituída do relato de belas mentiras, e, segundo ele, essa prática – de contar mentiras por seu próprio valor e não para qualquer outra finalidade – está em decadência. Entre outras afirmações, Wilde declara as quatro doutrinas de uma nova estética proposta no artigo: na primeira, ele defende a ideia de a arte expressar tão somente a si mesma, não tendo por finalidade qualquer utilidade outra que não a beleza; na segunda, ele afirma toda arte má prover de um retorno à vida e à natureza e, portanto, Wilde declara ser a arte criadora e original, não precisando de se utilizar de tais “matérias primas”; de acordo com a terceira doutrina wildeana, a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida, e o modo como vemos alguma coisa no mundo é afetado pelo modo como a arte nos mostrou isso. Se a arte, por sua vez, se utilizar da vida em seus materiais, nunca é para imitá-la, mas para recriá-la, transformando-a segundo seus padrões e pontos de vista. Finalmente, a quarte doutrina tem por pressuposto o fato de a mentira, isto é, o relato das belas coisas falsas ser a própria finalidade da arte. De acordo com essa doutrina, a verdade não cabe à arte, mas ao estilo, e cabe à arte, portanto, a expressão, antes de tudo, de si mesma, não sendo suas criações imitativas ou expressivas do mundo externo, de tal modo que a arte deverá relatar a beleza de suas invenções, sendo todas elas irreais e ilusórias. No ensaio “O crítico como artista” Wilde defende a ideia de a crítica ser tão artística quanto a obra de arte criticada. Essa ideia é justificada por ele por meio da afirmação de que “[...] não há arte dotada de beleza sem consciência de si mesma, e a consciência de

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si mesmo e o espírito crítico são uma e só coisa” (WILDE, 2007, p.1123). Além da ideia da convergência entre a crítica e a obra de arte, Wilde expressa a citada separação não apenas entre ética e estética, mas também entre arte e moral, pois declara: “Toda arte é imoral” (WILDE, 2007, p.1142-1143). Assim, ele rejeita a convenção do objetivo moral da literatura – ainda presente em seu tempo. Na verdade, Wilde coloca a estética em outro patamar ao defender que “a estética é mais elevada que a Ética” (WILDE, 2007, p.1163). Nesse sentido, ele declara a estética – e somente a estética – ser o parâmetro para conceituar qualquer obra como obra de arte.

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A IMPORTÂNCIA DE SER PRUDENTE A peça de Wilde é considerada uma obra canônica da dramaturgia ocidental, embora esse reconhecimento só tenha ocorrido vários anos após a morte do autor, pois a crítica a via como uma comédia extremamente divertida, porém, superficial. Somente após cerca de 70 anos de sua estreia percebeu-se a linguagem dos diálogos da peça portar uma riqueza interpretativa por trás do texto aparentemente leve e despretensioso. Assim, o papel do diálogo, para muitos críticos, assume o papel de “protagonista” da estrutura da comédia, pois é ele o responsável pela sustentação do enredo, pela caracterização dos personagens e pelo suporte da crítica. O enredo, improvável e absurdamente irônico, conta a história de dois amigos – Algernon e João – que vivem a se envolver em diversas complicações por fingirem ter relacionamento com pessoas que não existem: Algernon finge ter um amigo muito doente, habitante do campo, chamado Bunbury. A cada vez que deseja escapar de alguma obrigação social em Londres, Algernon alega a necessidade de visitar Bunbury. A essas escapadelas, ele chama “bunburismo”. João, por sua vez, mora no campo, onde é tutor de Cecília – a neta do homem que o encontrou em uma estação de trem ainda bebê, tendo o adotado – e, por ocupar essa posição de responsabilidade, ele sempre assume uma personalidade


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irrepreensível, quando no campo. Porém, para poder divertir-se, ele inventa ter um irmão devasso, habitante de Londres e chamado Prudente. A cada vez que alega a necessidade de ir a Londres com o propósito de tirar seu irmão de alguma enrascada, João assume a identidade, bem como a personalidade de Prudente e, portanto, comporta-se levianamente. João deseja casar-se com a prima de Algernon, Gwendolen. Porém, ela parece possuir um grande interesse em seu nome – Prudente. Ainda assim, o grande entrave desse romance é a mãe de Gwendolen, Lady Bracknell. Esta não deseja ter sua filha contraindo matrimônio com um homem sem antepassados ilustres. Quando Algernon descobre que a pupila de João, Cecília, está interessada em seu irmão fictício – Prudente –, ele decide ir até a casa de campo do amigo para conhecê-la. Ao chegar lá, ele se surpreende ao descobrir seu grande interesse no fato de ele chamar-se “Prudente”. As confusões advindas disso são diversas e são magistralmente encaminhadas para um final absurdo e feliz, no qual descobre-se João ser o irmão mais velho de Algernon, deixado por sua babá – a srta. Prism, agora governanta no solar de João – em uma estação de trem, ainda bebê. Além disso, ele tem o mesmo nome de seu pai, Prudente João. TEORIA E PRÁTICA A incorporação da teoria na prática pode ser vista pelo paralelismo existente entre alguns pontos discutidos nos artigos e trazidos ao texto teatral nas falas dos personagens. Contudo, há também pontos teóricos assimilados na estrutura da comédia, como é o caso da questão da forma, pois esta é um tópico de discussão de “O crítico como artista” a chamar a atenção, especialmente pelo fato de Wilde ter escrito o ensaio em forma de diálogo. O autor irlandês acreditava ser o diálogo uma forma literária rica de subsídios, permitindo ao crítico uma diversidade maior de “movimentos”: O crítico não se acha realmente limitado à forma subjetiva de

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expressão. O método do drama lhe pertence, bem como o da epopeia. Pode empregar o diálogo [...] Pode adotar a narração, como Walter Pater gosta de fazer, cada um de cujos Retratos Imaginários – não é este o título do livro? – nos apresentam, sob a máscara fantástica da ficção, alguns trechos de crítica sutil e estranha [...]. Sim; realmente o diálogo, essa maravilhosa forma literária que, desde Platão a Luciano, desde Luciano a Giordano Bruno, e desde Bruno a este velho e grande pagão que tanto entusiasmava Carlyle, [que] os críticos criadores do mundo utilizaram sempre, não pode perder jamais, como modo de expressão, seu atrativo para o pensador. Graças a ele, pode este expor o tema sob todos os aspectos e no-lo mostrar fazendo-o girar, de certo modo, como um escultor apresenta sua obra, conseguindo assim toda a riqueza e toda a realidade de efeitos que provêm desses paralelos. (WILDE, 2007, p.11501151)

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Em A importância de ser Prudente, o diálogo é a forma literária capaz de abranger teoria e prática, pois tanto a obra crítica quanto a obra literária pode ser considerada obra de arte pela forma literária dividida por ambas. E, nesse sentido, a peça, uma vez mais, incorpora elementos da estética wildeana, pois em “O crítico como artista” Wilde expressa claramente sua opinião de estarem a crítica e a obra de arte criticada no mesmo patamar, sendo a primeira tão criadora quanto a segunda: a Crítica é por si mesma uma arte. E da mesma maneira que a criação artística implica o funcionamento da faculdade crítica, sem a qual não poderia dizer-se que existe, assim também a Crítica é realmente criadora no mais alto sentido da palavra. A Crítica é, com efeito, ao mesmo tempo criadora e independente. [...] O crítico ocupa a mesma posição a respeito da obra de arte que critica, que o artista a respeito do mundo visível da forma ou da cor, ou do mundo invisível da paixão e do pensamento. [...] Na verdade, eu definiria a crítica dizendo que é uma criação dentro de uma criação. [...] Mais ainda: a crítica elevada por ser a forma mais pura de impressão pessoal, a meu ver, em seu gênero, é, a seu modo, mais criadora que a criação, porque tem menos relação com um modelo qualquer exterior a ela mesma e é, na realidade, sua própria razão de existência


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Portanto, a forma do diálogo é a responsável pela nova forma dramatúrgica dada por Wilde à sua peça. É importante mencionar o fato de a crítica ter considerado por muitos anos a peça digna de nota apenas por apresentar uma forma de difícil classificação, tendo sido a forma, até meados do século XX, o parâmetro de julgamento da qualidade de A importância de ser Prudente.

e, como afirmavam os gregos, um fim em si mesma e para si mesma. (WILDE, 2007, p.1129-1130)

A forma é também uma preocupação dos personagens: a forma desejada pode ser uma questão de nomenclatura – chamar-se Prudente – ou de comportamento, mas é essencialmente uma questão de expressão. Como Gwendolen lembra Cecília, “Em questões de grande importância o essencial é o estilo e não a sinceridade” (WILDE, 2007, p.830). Ainda nessa afirmação, Gwendolen ecoa o personagem Vivian em “A decadência da mentira”, quando este afirma: afinal de contas, as artes imitativas nos oferecem tão somente os estilos variados de diferentes artistas ou de certas escolas artísticas. [...] Nenhum grande artista vê as coisas tais como são na realidade. Se as visse assim, deixaria de ser um artista. [...] Julgamos o passado conforme a arte, e a arte, felizmente, nunca nos disse a verdade. [...] É o estilo e unicamente o estilo que nos faz crer em alguma coisa” (WILDE, 2007, p.1091)

Assim, se a arte não diz a verdade, cabendo ao estilo fazê-lo, fica evidente ser atribuído ao estilo um valor de verdade. E o estilo é a singularidade na forma de expressão do artista, pois a verdade está atrelada à forma de expressão peculiar de cada artista. Em outras palavras, cabe ao artista, no modo de expressar-se, conseguir exprimir uma ilusão de verdade convincente para seus espectadores/leitores/interlocutores da veracidade de sua arte. Portanto, a função do estilo é a verossimilhança, não enquanto probabilidade de ser verdade no mundo externo – até porque, seria incoerente afirmar ter a arte uma relação de verossimilhança com o mundo real, sobretudo quando Wilde rejeita a ideia de a arte ser imitativa –, mas como plausibilidade dentro da coerência interna da obra de arte. A forma aparece ainda na questão do gênero, pois, ao adicionar elementos singulares para modificar o gênero da sátira e da farsa, Wilde tornou sua comédia uma forma dramática única.

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Outro aspecto da teoria incidente na prática remete à mentira: ela pode ser vista como uma forma de criação artística. No ensaio “A decadência da mentira”, Oscar Wilde define a mentira da seguinte forma: “Afinal de contas, que é uma bela mentira? Simplesmente a que possui sua evidência em si mesma” (WILDE, 2007, p.1071). Quando João e Algernon inventam seus personagens fictícios, o perverso irmão Prudente e o inválido amigo Bumbury, respectivamente, eles não estão apenas inventando outros personagens, mas também criando pequenas obras de arte: cada um deles inventa uma pessoa com características singulares, com uma vida paralela e, nesse sentido, eles são criadores, pois suas invenções tem evidência em si mesmas, já que basta João sair do campo para tornar a existência de Prudente verdadeira, ao passo que, para Algernon, a existência de Bunbury torna-se real a cada vez que ele decide ir ao campo bunburizar. A respeito da mentira, Wilde ainda afirma em “A decadência da mentira” o fato de a vida imitar a arte muito mais que a arte imitar a vida, e essa doutrina estética pode ser vista no final da peça, quando é descoberto qur João, de fato, chama-se Prudente. Se a vida imita a arte, então, claramente, a vida de João imitou sua mentira artística, tornando-a verdadeira. Mais uma vez, Wilde permite a percepção de a arte ser de fato uma mentira. Há várias referências na peça A importância de ser Prudente à questão existencial: a começar pelo título, aludindo à importância de ser ou não algo/alguém que se afirma ser. Portanto, o personagem que tem maior destaque em meio a essa confusão de identidade é definitivamente João: ele, quando criança,


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o moralismo de aparências e a hipocrisia da sociedade vitoriana. Nesse sentido, esta comédia pode ser vista como um retrato irônico dos costumes hipócritas da sociedade vitoriana. Porém, ao retratálos, Wilde não está sendo um moralista conservador a rejeitar a ideia da vida de aparências: na verdade, ele se coloca no papel do observador divertindo-se com o mundo ao seu redor e realizando uma representação artística ressonante de sua afirmação em “O crítico como artista”: “toda arte é imoral” (WILDE, 2007, p.1142). João, particularmente, ecoa a teoria de toda arte ser imoral quando explica a Algernon a razão de ter inventado um irmão perverso:

foi trocado pelo manuscrito de um romance em três volumes e, portanto, ele ocupa o lugar de uma obra literária dentro do contexto da peça (Fineman, 1998, in Freedman, 1998). Assim, quando João é trocado por um manuscrito, ele entra no lugar de uma obra literária e, posteriormente, quando cria um alter-ego, ele está criando um personagem literário a transcendê-lo, pois apresenta um estilo de vida – ressaltando ser a vida de Prudente uma farsa – desejado por ele. Quando, no último ato da peça, João descobre ser, afinal, Prudente, sua unidade literária é alcançada, pois ele abrange em seu ser o eu literário imanente e o eu literário transcendente. Vale ressaltar, em O crítico como artista, Wilde ter afirmado que “[...] não há arte sem estilo, não há estilo sem unidade, e a unidade pertence ao indivíduo” (WILDE, 2007, p.1123).

Outro ponto da teoria explorado na peça é a questão da separação entre a estética e a ética. Como mencionado, essa foi a grande contribuição do Movimento Estético e de Wilde ao conceito de arte contemporâneo e, na peça, essa separação se dá, maiormente, por meio do olhar cínico de Wilde sobre as hipocrisias da sociedade vitoriana. A peça age, então, como uma espécie de documento que delata esse falso moralismo, e a separação propriamente dita, entre a estética e a ética dá-se por meio de referências à imoralidade e à superioridade da beleza em relação à moral e, consequentemente, à ética. A citada fala de Gwendolen de que “em questões de grande importância o essencial é o estilo e não a sinceridade” (WILDE, 2007, p.830) faz referência à superioridade da estética em relação à ética: se o estilo – relacionado ao indivíduo e à unidade da arte e, portanto, à estética – é mais importante que a verdade – relacionada ao território da moral e da ética –, então o estilo suplanta a verdade e a estética suplanta a ética. Na verdade, cada um dos personagens, cada uma das falas deles e mesmo alguns elementos do enredo contribuem para a ideia de haver, por detrás do texto leve e superficial, um subtexto crítico que atinge

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JOÃO. Meu caro Algy, não sei se você será capaz de compreender meus verdadeiros motivos. Falta-lhe a seriedade o bastante. Quando um homem exerce as funções de tutor, tem de adotar uma atitude moral elevadíssima em todas as oportunidades. É dever seu fazê-lo. E como uma atitude moral elevada é realmente muito pouco vantajosa para a saúde e a felicidade, a fim de poder vir a Londres inventei ter um irmão mais moço chamado Prudente, que vive no Albany, e costuma meter-se nas mais complicadas situações. (WILDE, 2007, p.795-796, grifo nosso)

Para João, a imoralidade está associada ao prazer e, portanto, quando ele adota uma atitude imoral, ele está sendo tanto um crítico quanto um artista: um artista porque ao inventar uma mentira – da existência de Prudente –, ele está criando um personagem e, um crítico porque ao conseguir prazer com sua criação, ele está colhendo os frutos da contemplação – que, de acordo com Wilde em “O crítico como artista”, é o fim da arte. Finalmente, um dos principais pontos da teoria expressos na peça aborda o dândi, o filósofo do simbolismo compartilhado pelo Movimento Estético. De acordo com Charles Baudelaire em seu artigo “O pintor da vida moderna” (1863), o dândi eleva a estética a um patamar de filosofia:


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Esses seres não têm outro estado de ser, a não ser o de cultivar a ideia da beleza em suas próprias pessoas, o de satisfazer suas paixões, e o de sentir e pensar. [...] Ao contrário do que muitas pessoas irrefletidamente parecem acreditar, o dandismo não é nem mesmo um deleite excessivo com as roupas e a elegância material. Para o perfeito dândi, essas coisas não são mais que o símbolo da superioridade aristocrática da sua mente. (BAUDELAIRE, 1863)

Dessa forma, o dândi pratica um culto das aparências, e a pose torna-se a melhor maneira de expor seus pensamentos. Assim, a preocupação com as aparências passa a ser vista como o modo de o dândi diferenciar-se em uma sociedade em que todos apresentam características semelhantes. O dândi do Movimento Estético apresenta essas qualidades, pois caracteriza-se por ser, acima de tudo, um perfeito esteta: sua relação com a beleza é intrínseca, e a beleza torna-se seu padrão ético e, para os estetas, a estética suplanta a ética. Porém, o dândi esteta wildeano apresenta ainda outras características melhor definidas por Arthur Ganz (apud Juan Jr., 1985, in Bloom, 1985)[1]: ele é aquele a ridicularizar a norma e configurar-se como um desvio desta e, portanto, ele não apenas expressa uma forte ligação com a beleza, mas também ocupa-se de subverter as regras. Ora, uma das regras quebradas pelo dândi esteta é a da consideração da moral como critério de julgamento de uma obra de arte, e esta foi a regra cuja rejeição permitiu a Wilde sua afirmação como um grande filósofo esteta. Nesse sentido, o dândi esteta apresenta características muito comuns não apenas a Oscar Wilde, mas também a seus personagens. Na verdade, o dândi, em seu papel de filósofo da estética, é levado à peça A importância de ser Prudente justamente por meio da figura dos personagens, pois estes apresentam uma caracterização muito semelhante à do dândi esteta: rejeitam as regras moralistas de sua O artigo original de Arthur Ganz, The Divided Self in the Social Comedies of Oscar Wilde, publicado na revista inglesa Modern Drama (v.3, n.1, p. 16-23), de maio de 1960, infelizmente não foi localizado e sua referência bibliográfica não consta do artigo de Juan Jr., de onde foi extraída a definição mencionada.

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sociedade, atribuindo à beleza uma autoridade suprema. O dândi se caracteriza ainda por possuir um discurso cheio de ditos espirituosos, isto é, cheio de chistes. O termo chiste, do original em inglês wit, define uma grande habilidade intelectual caracterizada, sobretudo, por uma rapidez e agudeza que qualifica o discurso ou a escrita por meio da associação adequada de pensamento e expressão, calculada para surpreender e deleitar por sua imprevisibilidade. Na verdade, essa é também uma das principais características do dândi e, da maneira como são utilizados na peça, os witticisms (chistes) de Algernon e João servem, não apenas para divertir a plateia, como também para expressar seus pensamentos, e, dessa forma, seus chistes apresentam traços filosóficos. Desse modo, por meio do discurso dos personagens é possível perceber uma inversão dos valores morais e dos costumes tradicionais da aristocracia vitoriana, sendo essa inversão um modo sutil de crítica. Assim, toda a crítica e toda a filosofia estética contida no discurso do dândi é, na maior parte das vezes, revelada por meio do wit, o principal recurso estilístico desse personagem-filósofo. Cada um dos personagens, como dândis, torna-se suporte dos preceitos estéticos, e concomitantemente caracteriza-se por ser elemento de crítica às normas: o dândi abrange elementos estéticos e críticos, sendo ele o elo entre as críticas estética e social existentes na peça. Portanto, o dândi é uma figura conciliadora de elementos aparentemente contraditórios, mas tornados complementares por meio de sua figura. PROCEDIMENTOS DE TRANSPOSIÇÃO Após ter sido feita a análise de método analógico entre os conceitos teóricos de Wilde – representados pelos artigos críticos mencionados – e sua prática dramatúrgica, especificamente representada por A importância de ser Prudente, foi possível concluir de fato haver uma correspondência entre a teoria e a prática. O foco, então, volta-se aos procedimentos utilizados pelo


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autor para fazer essa transposição. De fato, Wilde vale-se de um único tipo de procedimento para realizar sua transposição: a ressonância. Em outras palavras, seus preceitos teóricos não são justapostos à sua prática dramatúrgica, mas eles podem ser entrevistos e, até mesmo, reconhecidos nessa prática, mas nunca alcançados de maneira definitiva. Deste modo, é a análise interpretativa a permitir que cada um dos elementos estéticos passe a ser visto como constituinte da prática, pois esses ecos não são explicitamente dados. Em suma, é evidente que cada um dos elementos da peça – tanto estruturais, quanto linguísticos – servem como subsídio para a incorporação da filosofia estética de Wilde. Assim, Wilde mantém uma postura de coerência entre sua teoria e sua prática.

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O LÁPIS E O VINHO DO CARPINTEIRO Tatiana Bernacci Sanchez [1] Há uma angústia, uma inquietação que nos delimita como indivíduos e que, não raro, nos separa do Outro. Para além de reverberações particulares, tal condição delineia posicionamentos ideológicos, estruturas socioculturais, instituições etc. – afinal, grupos são formados por pessoas. Compreendendo o poder, e seu exercício, como possível elemento balizador desse conflito, parece-nos que tudo o que se apresenta como diverso da lógica vigente, hegemônica, não é nem compreensível, nem visível, instalando-se a intolerância para com o Outro. O pêndulo maniqueísta – de bem e mal, vida e morte, o eu e o outro – mantém seu ritmo no romance O lápis do carpinteiro (1999), de autoria do galego Manuel Rivas, principal corpus deste trabalho, que apresenta como cenário a Guerra Civil Espanhola de Franco, na década de 1930 – o pósguerra na Espanha constitui ainda memória dolorosamente viva. Seu foco volta-se para a vida pessoal e a cívica de personagens nela envolvidas, marcadamente o triângulo formado pelo revolucionário médico Daniel Da Barca, sua amada Marisa Mallo e o militar Herbal, com apoio de outras personagens, como a do pintor e a do próprio lápis de carpinteiro. Tendo como fio condutor e motivo central de sua obra a condição humana, pretendemos refletir acerca de relações – tanto de aproximação quanto de afastamento, no campo da temática e no da forma literária – entre esse romance de Rivas e a tragédia ática As bacantes (século V a.C.), de Eurípides, que, por seus elementos dionisíacos e seu contraponto com a Guerra do Peloponeso, nos faz trilhar caminhos de alteridade. Palavras-chave: Manuel Rivas; Eurípides; As bacantes; Guerra Civil Espanhola; Dionisismo; gêneros literários. Eu não sou eu nem o outro, Sou qualquer coisa de intermédio: Pilar da ponte de tédio Que vai de mim para o Outro. (Mário de Sá Carneiro) 1

UERJ – Rio de Janeiro

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Há uma angústia, uma inquietação que nos delimita como indivíduos e que, não raro, nos separa do Outro. Para além de reverberações particulares, tal condição delineia posicionamentos ideológicos, estruturas socioculturais e instituições. Compreendendo o poder, e seu exercício, como elemento balizador desse conflito, parece-nos que tudo o que se apresenta como diverso da lógica hegemônica, não é nem compreensível, nem visível, instalando-se a intolerância para com o Outro. O pêndulo maniqueísta – de bem e mal, vida e morte, o eu e o outro – mantém seu ritmo no romance O lápis do carpinteiro, de autoria do galego Manuel Rivas, publicado em 1999, principal corpus deste trabalho. Apresenta como cenário a Guerra Civil Espanhola de Franco, na década de 1930, com foco na vida pessoal e cívica de personagens nela envolvidas, marcadamente um triângulo formado pelo revolucionário médico Daniel Da Barca, sua amada Marisa Mallo e o militar Herbal, com apoio de outras personagens, como a do pintor. O pós-guerra na Espanha é ainda memória dolorosamente viva (FERRÁN, 2007, p. 273-274), de forma que há farta literatura recente a esse respeito, acerca do passado de repressão do período fascista de Franco (p. 106-107 e 131[2]), que se caracterizou pela ligação com o nazismo de Hitler. Essa memória se processa na obra especialmente por um objeto: um lápis de carpinteiro, que passa das mãos de um carpinteiro grevista, às de um carpinteiro libertário humanista, que presenteia um carpinteiro sindicalista. Este, antes de ser morto pelos “passeadores”, presenteia o pintor – que retomaremos –, o qual carrega o lápis até o momento de sua morte, quando Herbal lhe tira a vida e o lápis (p. 31). Voltaremos a esse objeto mágico, contudo, antecipamos que constitui, em Herbal, o fio de sua dualidade. 2 Sempre que apresentarmos número de página entre parênteses (p.), sem a indicação do ano, referimo-nos a O lápis do carpinteiro. Quanto apresentarmos versos (v.), referimo-nos à peça As bacantes.


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A respeito do fazer literário de Rivas, citamos as palavras de Orozco (2005, p. 209): Vida y literatura conforman en ambos [F. Ayala e Rivas] un espeso tejido en el que se imbrican experiencias personales y históricas. Así la guerra civil y la posguerra proyectan em sus novelas y relatos una reflexión sobre el poder y sus seqüelas. La prensa y la publicidad como instrumentos falsificadores de la realidad cotidiana constituirán también puntales básicos en sus obras. Dichos leit-motivs se completan com la búsqueda de redención a través del amor y la reivindicación de la fantasía como un medio prodigioso para vencer el dolor y la tragedia. Y como hilo conductor que permite trazar la unidad de sus obras, un motivo central: la condición humana.

Tendo como fio condutor de sua obra a condição humana, pretendemos observar e discutir uma relação entre esse romance e a tragédia grega As bacantes (404 a.C.), de Eurípides. Terceiro grande tragediógrafo grego – seguindo-se a Ésquilo e Sófocles –, oriundo da ilha grega de Salamina, Eurípides traz para o coração humano os conflitos a serem debatidos em sua obra, trabalhando o livre arbítrio em buscas que levam as tragédias às ruas e ao questionamento das tradições e instituições estabelecidas. Considerado ateu e misógino por séculos, parecia ridicularizar contextos míticos e impregnar suas personagens femininas de paixão – páthos, no sentido de “doença” do termo. Condição humana e guerra – ou condição humana diante da guerra – são alguns dos aspectos de tangência entre as obras que compõem o corpus do presente trabalho. Tratando-se da tragédia grega, o momento era a Guerra do Poleponeso, entre Atenas e Esparta, que teve graves consequências para toda a Grécia. Um período de colapso da democracia ateniense, em que ocorreram fatos como o massacre da ilha de Melos, que teve um momento de vacilação antes de se aliar a Atenas – esse episódio em especial parece ter influenciado fortemente Eurípides, tema de que trata subtextualmente na tragédia As troianas. Segundo Lesky (189,

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2006), em sua obra “encontramos em número bem maior do que outros trágicos, trechos condicionados pelos sucessos históricos”. Embora o rancor da guerra e a indignação diante de posturas ditatoriais unam as obras, suas estruturas diferenciam-se sobremaneira, portanto, comentaremos como se processam, a esse respeito, cada um dos textos. Vale comentar que não se trata de transportar a tragédia ática para o século XX ou de se colocar as duas obras de arte em nível semelhante. O lápis do carpinteiro, sendo um romance, apresenta estrutura narrativa, logo, decorrente do épico – o que o distingue do dramático[3], classificação a que pertence a outra obra que abordaremos. Faz uso de diferentes narradores e diversos tempos de ação, já que a linha narrativa passa primeiro por Da Barca, já idoso, e o jornalista; mas em seguida se transfere para Herbal – sempre sob um narrador onisciente heterodiegético. Em ambos os casos, o tempo da ação é diferente do tempo da narração principal, embora ocorram oscilações, as quais, sem indicação prévia de alternância de fala, fornecem à obra ritmo dinâmico e oral, portanto cinematográfico. Um dos indicadores de oralidade pode ser embasado pela explicação de Urbano (2000, p. 40): “É possível passar do comentário à narração e vice-versa. Essa passagem, quando muito frequente e rápida, constitui uma característica do discurso oral em relação ao escrito”. Adicionalmente, podemos afirmar que a narrativa de O lápis do carpinteiro presentifica o fato narrado com o uso pertinente de índices cenográficos[4], como pode ser exemplificado na última frase do seguinte trecho (p. 19): “Sem mais, apoiei a pistola em sua têmpora e lhe arrebentei a cabeça. E logo me lembrei do lápis. O lápis que ele carregava na orelha. Este lápis.” (grifo nosso). Indicando-se com o pronome demonstrativo, oferece caráter visual à passagem, pois sabemos que Herbal, enquanto narra essa 3 Cf. SOUZA, Roberto Acízelo de. “Gêneros literários”. In: JOBIM, José Luís (org.). Introdução aos termos literários. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999, pp. 9-67.

Cf. URBANO, Hudinilson. Oralidade na literatura (o caso Rubem Fonseca). São Paulo: Cortez, 2000.

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passagem a sua interlocutora, tem o lápis em mãos. Tal alternância de fala ocorre, não raro, quando o tempo do narrador coincide com o da narrativa, mas também durante o flashback, como na seguinte passagem (p. 33):

Dessa forma, torna-se o leitor mais propriamente imerso nas emoções do narrador. Cria-se a impressão de espontaneidade, afinal, o leitor embebe-se da leitura como se presenciasse a cena. Herbal, majoritariamente emissor do relato, em flashback, tem como interlocutora Maria da Visitação, uma prostituta que trabalha no mesmo “clube” em que ele é uma espécie de segurança. Conservando em si a herança de seu antigo posto e de sua postura de voyer, “ficava debruçado no fundo do balcão, como um guarda em sua guarita” (p. 15). Ela o ouve, e nos é apresentada da seguinte forma (p. 16):

E o pintor explicou que a base do Pórtico da Glória estava povoada de monstros, com garras e bicos de rapina, e quando ouviram isso todos se calaram, um silêncio que os denunciou, pois Herbal bem que percebia todos os olhos cravados na sua silhueta de testemunha muda. E por fim resolveu falar do profeta Daniel. Dele se diz que é o único que sorri com descaramento no Pórtico da Glória, uma maravilha da arte, um enigma para os conhecedores. Esse é você, Da Barca?

A última frase citada acima, pelo contexto, parece ter sido dita pelo soldado Herbal – no tempo da ação –, que observa os presos, em especial o pintor, o qual havia reproduzido o Pórtico da Glória, da Catedral de Santiago da Compostela, e o explicava aos demais, até chegar ao profeta Daniel em evidente comunhão com o médico revolucionário Daniel da Barca. Para além da estrutura, temos a questão do revolucionário, daquele que “sorri com descaramento” e, portanto, constitui ameaça ao poder militar[5]. Essa passagem se encontra no capítulo 5 do livro, que pode partir tanto do narrador onisciente heterodiegético quanto de Herbal; sendo relevante atentar para o fato de que os capítulos do livro são curtos – além de serem investidos de unidade, à maneira dos 24 capítulos de cada um dos dois épicos homéricos, Ilíada e Odisseia, que sabemos pertencerem à tradição oral –, fomentando a caracterização da obra como portadora de uma velocidade cinematográfica, propiciando envolvimento mais intenso e imediato do leitor. Tendo em vista seu tema, o espírito de trauma pós-guerra, subsídios para a identificação do leitor com a obra fomentam sua configuração duradoura, e não efêmera; trata-se da feição do relato de uma guerra a não ser esquecida. 5 A personalidade e as posturas de Da Barca o situam como par comparativo da personagem – e divindade – Dioniso, n’As bacantes, conforme veremos.

Maria da Visitação chegara há pouco de uma ilha do Atlântico africano. Sem documentos. Como dizem, tinham-na vendido a Manila [a dona da casa de prostituição]. Do seu novo país conhecia pouco mais que a estrada que ia para Fronteira. Ficava a contemplá-la da janela do apartamento, no mesmo prédio do clube, afastado, sem vizinhos. 655

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Um dos lugares dessa personagem, Maria, é o de narratária[6] – ou leitora implícita ou implicada –, a quem se dirige, majoritariamente, o discurso de Herbal. E assim se constrói a cena à qual o leitor assiste. Digna de nota é a referência “sem documentos”, que poderíamos inferir como uma insinuação metalinguística a seu papel de leitora implícita, sem [aparente] participação no cerne da obra. Sem participação e sem documentos, é o retrato de uma realidade de África na Europa; será a detentora do lápis, um presente – de Herbal e do pintor (p. 147). O texto nos leva a entender, finalmente, que Maria é quem consola Sousa (p. 147), tímido e alcoólatra jornalista que se encantara com o idoso e doente, porém cheio de vida, Da Barca e sua esposa Marisa (p. 7-11): o fim revisita e complementa o início da obra. Retomando o que comentamos a respeito da estrutura, citamos o épico Odisseia, um relato de retorno e de saudade, mas também um relato acerca do narrar e da memória, história feita de contar Cf. LEITE, Sara. “Leitor implicado” (verbete). In: CEIA, Carlos (edição e organização). E-dicionário de termos literários.

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histórias, e assim também O lápis do carpinteiro – odisseia do homem e odisseia da palavra proferida. O romance apresenta muitas histórias. É no presídio que Herbal ouve sobre as irmãs Vida e Morte (p. 27-28); e que nos é reapresentada no final (p. 148), feito metáfora para o derradeiro mal-estar cardíaco de Herbal – a vida (e a morte) de Herbal tinha como elementos constantes, pela memória, a vida dos presos, especialmente a de Da Barca. Transcrevemos abaixo as palavras de Schüler, referentes ao épico Odisseia (2007, p. 7): A epopeia que narra as aventuras de Odisseu dilata tempo, espaço e ação. Permanece o princípio de que a narrativa não ultrapasse, em tamanho, a capacidade de memorização. Embora Odisseu esteja envolvido em aventuras marítimas por dez anos, o narrador o apanha em Ogígia, uma ilha misteriosa nas proximidades de Ítaca. Em algumas semanas, o herói, livrando-se do cativeiro de uma ninfa, chega à sua terra, depois de breve estada em Esquéria, a ilha dos feáceos. Homero rompe, entretanto, a unidade do reduzido tempo desta última etapa, convertendo o herói em narrador de suas próprias aventuras, expediente estranho à Ilíada. […] Em vez de concentrar a ação, a Odisseia mostra-nos, no primeiro plano, Odisseu atuar em três lugares distintos: Ogígia, Esquéria e Ítaca.

Clara fica a relação entre o romance e o épico – valendo reforçar que o épico é a história de feitos de um povo, e que por isso deve permanecer na memória –, em sua estrutura narrativa, ao passo que igualmente transparecem as diferenças entre o romance e a tragédia, contudo, da Galícia relatada em uma narrativa surgem personagens com feições de heróis trágicos: Daniel da Barca e Herbal. A tessitura da tragédia se perfaz em diálogos e silêncios, contando com o coro e o mensageiro. Os temas, quase que em sua totalidade, retomam mitos, com a finalidade de abordar situações que sejam coetâneas ao momento da apresentação. A estrutura do romance de Rivas busca atingir o leitor para questões de máxima

importância sobre escolhas e liberdade, e o teatro ático tinha por premissa a releitura de acontecimentos importantes para o rumo da pólis – vemos que os objetivos se tocam quanto a uma postura engajada de questionamento[7]. Vale retomar as palavras de Vernant (2005, p. 214): A invenção da tragédia grega na Atenas do século V não se limita apenas à produção de obras literárias […] mas abrange a produção de uma consciência trágica, o advento de um homem trágico. As obras dos dramaturgos atenienses exprimem e elaboram uma visão trágica, um modo novo de o homem se compreender, se situar em suas relações com o mundo, com os deuses, com os outros, também consigo mesmo e com seus próprios atos.

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Apesar de referirmo-nos a uma peça tardia de Eurípides, cujas obras já não davam tanto espaço ao coro, notável é seu destaque e importância n’As bacantes, o que possivelmente se justifica pelo fato de o tema ser correlato ao surgimento tanto do teatro quanto do ator – acredita-se que a origem de ambos esteja relacionada aos rituais dionisíacos, e essa peça é a única a chegar até nós tendo o deus Dioniso como personagem, deus do teatro e do vinho[8]. Apresentada em 404 a.C. e premiada com o primeiro lugar, no teatro de Atenas, a peça As bacantes foi encontrada entre os escritos de Eurípides, após sua morte. Destarte, acredita-se que tenha sido escrita já na Macedônia, local em que morou ao final de sua vida, e em que, provavelmente, teve contato com elementos de adoração ao dionisismo. Conforme nos ensina Torrano (1995, p. 19), essa tragédia “constitui reconhecidamente o mais completo documento que a antiguidade nos legou a respeito do culto dionisíaco”. Em cena, Dioniso apresenta-se à plateia disfarçado de seu próprio sacerdote e elucida os dois motivos de seu retorno a 7 Não se pretende absolutamente afirmar que a arte está submetida à política e que seu valor esteja condicionado a um engajamento. Contudo, no presente trabalho, tal fator é relevante na economia das obras selecionadas.

Dioniso é considerado, principalmente, deus do vinho e do teatro, bem como se associa à natureza selvagem.

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Tebas, sua cidade natal, com suas fieis seguidoras – o séquito de mulheres estrangeiras, bacantes[9] –, que integram o coro. Pretende restaurar a honra de sua mãe, Sêmele, tida como aquela que forjou uma concepção divina, para encobrir alguma falta ou descuido, tendo sido por isso fulminada por um raio de Zeus; e implantar os rituais dionisíacos naquela cidade que não o respeita por proibição do rei, seu primo Penteu. Sua ligação com as mulheres e o respeito que lhes dirige o diferenciam em seu contexto social, afirmação aplicável tanto a Dioniso quanto a Da Barca. Sobre o deus, o item acima traz dois exemplos importantes. Quanto a Da Barca, conheceu Marisa durante um ato republicano em que se discutia a pertinência ou não da concessão de direito a voto às mulheres (p. 12): E então Daniel levantou-se e contou aquela história da rainha das abelhas. Lembra-se, Daniel? […] Na Antiguidade, não se sabia como nasciam as abelhas. Sábios, como Aristóteles, criaram teorias disparatadas. Dizia-se, por exemplo, que as abelhas vinham da barriga dos bois mortos. E assim foi durante séculos e séculos. E tudo isso sabe por quê? Porque não eram capazes de reconhecer que o rei era uma rainha.

A fim de seguirmos com maior segurança em nossa análise, comentaremos a importância dos rituais dionisíacos, já que a religião era uma das vertentes do poder soberano naquele período; nas palavras de Vernant (1990, p. 420): “A vida religiosa aparece integrada à vida social e política. (…) o sacerdócio é uma magistratura”. Tal culto chama a atenção por suas especificidades que o diferenciam do culto ofertado aos olímpicos, em que brilha a retidão e masculinidade apolíneas. Dioniso é associado à natureza e a elementos de espontaneidade, em par opositivo – mas 9 As bacantes, ou mênades, são seguidoras de Dioniso – também chamado Baco, Brômio e Iaco, entre outros nomes. Há, nessa peça, dois grupos de bacantes, um representando a manifestação de devoção e alegria, e o outro a dor dessa divindade: as que constituem o coro e o acompanham, representam devoção e alegria; as que pertencem à família real, e a Tebas genericamente, representam a dor, sendo enlouquecidas pela presença do deus na cidade.

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complementar – com Penteu, que representa o existir na civilização e suas regras verticais. A radicalização da hipocrisia transparece no agir de Penteu, pois este imagina os rituais dionisíacos de forma diversa do que são, atribuindo-lhes, sobretudo, caráter libidinoso; mas admite, próximo ao final da peça, desejar observálos e, em especial, observar sua mãe no agir báquico – portanto, entendemos que os recrimina não por moral, mas por não aceitar sua própria natureza menos racional e controlada. Dessa forma, é por força do medo que os “passeadores”, matam o pintor, pois era quem “pintava as ideias” (p. 22), ideias que eles sequer conheciam completamente. A ignorância de Herbal é clara por sua trajetória desde a infância, no entanto, é claro o fascínio que o pintor exerce sobre ele. A experiência proporcionada por aquele deus é de revolução: uma vivência libertadora que ameaça a ordem estabelecida, pois agita um povo com posicionamento crítico, subversão e horizontalização. O culto báquico exigia o indivíduo por inteiro, por meio do transe, que o lançava fora de si (“êxtase”), aproximando-o da divindade (“entusiasmo”), e que se mostra liberto por meio do vinho, da musicalidade frenética e de atividades noturnas e selvagens. Tais atributos opõem-se aos dos cultos apolíneos, que primavam pela ordem e pela cultura civilizada. Por conseguinte, o dionisismo opõe-se à polis segundo dada ordem estabelecida: tanto o revolucionário que deseja a queda de um regime fascista quanto o simpatizante de um movimento destruidor de hierarquias são elementos incorretos, que não deveriam participar do grupo e cujas ideias devem ser eliminadas. Lembremos que a tragédia, embora escrita e encenada no século V a.C., busca sua ambientação em períodos remotos da Hélade. A artificialidade e a civilização vêm associadas nessa peça, de maneira subtextual, a Atenas – e claramente não são valores vistos como sabedoria, nesse contexto –, culminando nos versos em que Dioniso afirma ao rei de Tebas que os bárbaros são mais sensatos do que os helenos, sendo diferentes apenas os costumes (v. 484),


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cena em que naturalmente se refere a Atenas de seu tempo. Essa busca poderia revelar ainda o escapismo e a melancolia refletidos na obra de ambos os autores. E o coro d’As bacantes entoa (v. 403406): “Pudesse eu ir a Chipre, a ilha de Afrodite, onde moram os Amores encantadores dos mortais.” Indo para o local de nascimento da deusa do amor e da alegria, mãe de Eros, as bacantes mostram-se distantes daquele ambiente de conflito e de artificialidade, que é Tebas – mas representa Atenas e sua postura na guerra. o autor, igualmente, permitiu-se distanciar dos problemas enfrentados – e proporcionados – por Atenas durante a Guerra do Peloponeso. Também Da Barca retorna a sua terra somente após a morte de Franco, em 1975. A adoração a Dioniso funcionava como uma retomada a tempos ideais. Conforme Vernant (2006, p. 79), “Para os fieis, em comunhão feliz com o deus, traz a alegria sobrenatural de uma evasão momentânea para um mundo de idade de ouro no qual todas as criaturas vivas se vêem fraternalmente misturadas”. O viver das bacantes demonstra como elas se encontram fora da civilização, sem “humanidade” e agindo, tanto na brandura de seus atos ritualísticos quanto na ferocidade de suas reações para com os intrusos, em harmonia com os ciclos da natureza[10]. Informa o mensageiro a Penteu, após observá-las (v. 695-703): Primeiro soltaram os cabelos nos ombros, recompuseram nébridas que tinham nós do amarrilho frouxos, e peles coloridas cintaram com serpentes linguejantes. Nos braços tinham cabritos e bravios filhotes de lobo e dava-lhes alvo leite: as recém-paridas com o seio ainda cheio deixam seus filhos e coroam-se de hera, de carvalho e de videira florida.

Assim é que Da Barca emite sua opinião sobre as fronteiras: “O doutor Da Barca sorriu pensativo. A única coisa boa das fronteiras são as passagens clandestinas. É extraordinário o que pode fazer uma linha imaginária traçada um dia por um rei caduco em sua 10

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cama ou desenhada na mesa pelos poderosos como quem joga um pôquer.” (p. 10). Todo o poder constituído e as regras sociais lhe soam pequenas. De maneira semelhante, não se coloca na posição de superioridade teocêntrica dos seres humanos: “De certa forma, dizia o doutor Da Barca, o ser humano não é fruto da perfeição, mas de uma doença. O mutante do qual viemos teve que se colocar de pé por algum problema patológico.” (p. 24). Isso se liga ao posicionamento de Nietzsche a respeito do ritual dionisíaco e à comunhão das bacantes com a natureza, ambos apresentados acima. Acrescentamos, ainda, algumas palavras de Freud (vol. 17): “O homem não é um ser diferente dos animais, ou superior a eles; ele próprio tem ascendência animal”. A questão do reverso é especialmente interessante, porquanto torna mais clara a dimensão e a potência mutante dessa divindade, deus da transformação, da metamorfose constante, de tudo o que flui. Ou seja, é por meio da experiência dionisíaca que o homem se transforma em deus; sai de si, tem um deus dentro de si, de onde deriva a condição do ator, aquele que se deixa possuir pelo deus, tornando-se Outro. Todo ator em cena é Dioniso. Como encarar essa experiência de se tornar Outro? Destruindo a barreira da individualidade, ou seja, anulando as distâncias que definem onde começa e onde termina cada ser. É a experiência do sparagmós, destroçamento, e por isso os rituais dionisíacos constituem-se de atividades em grupo. O coro de bacantes exalta a dança, a alegria, e o silêncio devoto e respeitoso (cf. v. 64-70). Da mesma forma, os soldados, em O lápis do carpinteiro, não entendem a alegria e o companheirismo dos presos. O racionalismo filosófico do tragediógrafo Eurípides pertence a um momento-limite de fracasso inevitável. É a chegada de Franco. E para Eurípides destacaremos a melancolia, que fornece a tristeza rala – embora profunda e apaixonada –, o escapismo e o desencanto. Por meio de sua tragédia-poesia-crepúsculo, delineiam-se limitações humanas atemporais. As limitações e vicissitudes acompanham Da Barca em sua luta pela liberdade,


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firme e com postura serena, de uma placidez incompreensível a Herbal (por exemplo, p. 87). A postura de Dioniso, que é misteriosa a Penteu (v. 436-440), até mesmo no momento de sua prisão. É que ambos unem a diferença e destroem as fronteiras, deixando Penteus e Herbaus divididos, em suas próprias limitações e vicissitudes. Contudo, da mesma forma que Penteu não se cansa de Dioniso, por ele tendo uma fixação específica, também Herbal não quer se afastar de Da Barca, sendo levado a agir, no campo profissional, por motivos de natureza pessoal: “Lembre-se de que isto não é uma questão pessoal, só se pretende obter informações. Não há nada pessoal, sargento, mentiu Herbal.” (p. 37). Herbal busca sua infância em Marisa (por exemplo, p. 46 e 91). Eis sua Idade de Ouro: Marisa, a natureza e o lápis do carpinteiro. O movimento dual do pêndulo delineia sua personalidade no costurar dos objetos: a pistola e o lápis. Aquele cessa o movimento e este, a inércia (p. 78-79), aquele é o soldado, o Homem de Ferro, e este, o pintor, sendo que o Homem de Ferro aproveita “a ausência do pintor” (p. 87) para agir, para odiar e servir externamente ao sistema fascista, mas internamente a suas próprias questões. Mas ele gosta do pintor a seu lado: “Foi então que percebeu o defunto já acomodado na orelha. Um alívio milagroso.” (p. 90), e lamenta sua morte (p. 19 e 22). Imprescindível é lembrar que o pintor foi morto pelo Homem de Ferro, passando a acompanhar e a aconselhar Herbal[11] até o fim, enquanto este empunha o lápis-Hermes[12]. Enquanto a obra de Rivas pode ser observada como alerta acerca da instalação e atuação de governos fascistas, a obra de Eurípides poderia falar da crítica a uma Atenas que se vê superior, tendo em vista sua atuação não raro autoritarista em tempos de guerra ou de postura ultrademocrática. Naturalmente, esses dizeres, dentro das obras, convivem dentre tantos outros fios de significância, mas 11 O mesmo ocorre no filme Un prophète (de Jacques Audiard, 2009), em que o protagonista, para sobreviver no presídio – dividido em grupos e etinias, mais uma vez evidenciando a intolerância ao mundo árabe –, é forçado a matar uma testemunha, um árabe culto, que passa a acompanhá-lo. 12

Uma das características do deus Hermes é ligar o mundo dos vivos ao dos mortos.

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aqui se busca tal recorte. A existência, a propósito, de diversos elementos e evocações nas obras não vem enfraquecer sua mensagem política, parecendo-nos o contrário, uma vez que não se mostra panfletária, e sim perpassa e habita, feito água, os demais objetos. E o lápis do carpinteiro segue escrevendo e vivendo sua odisseia, nas mãos de Maria.

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RISCOS E FRONTEIRAS NO LAGER – PRIMO LEVI E A ZONA CINZENTA Tatiana Gandelman Muito já se falou sobre relações entre vítimas e opressores. Primo Levi, químico e escritor, judeu italiano sobrevivente da Shoah, dedicou a atividade literária à tarefa de contar sua vivência durante a prisão em Auschwitz. Escrever sobre o que quer que fosse num campo de concentração era considerado ato de espionagem que teria como punição a morte. Mas, mesmo correndo este risco extremo, Levi inicia, ainda na prisão, os apontamentos de suas memórias. No capítulo “A zona cinzenta”, do livro Os afogados e os sobreviventes, o autor questiona a capacidade dos ex-deportados de compreender e de fazer compreender o que ele denominou “experiência fundamental”. Avesso a simplificações e classificações, o autor não reduz o sistema concentracionário dos campos entre “nós” e “eles”; ao contrário, seria impossível delinear o “inimigo”, que perdia contorno confundindo-se com os companheiros de infortúnio. Complexo demais para ser fronteiriço, o Lager era povoado por pessoas ambíguas, constituindo-se numa zona que “(...) ao mesmo tempo separa e une os campos dos senhores e dos escravos” (LEVI, p.36). E ao romper tais fronteiras, Levi, isento de qualquer juízo moral, leva seus leitores a reflexões que ultrapassam a superficialidade maniqueísta entre “bem” e “mal”, explorando as várias gradações de um mundo infernal e ilógico. Palavras-chave: Shoah – Representação – Desumanização

Primo Levi é testemunha de um dos acontecimentos mais atrozes da história moderna europeia: a deportação para os campos de concentração e extermínio e a redução à escravidão de milhões de seres humanos, executados pela Alemanha nazista no século XX. Tendo aderido muito jovem ao movimento de resistência italiana, foi preso em 1944 pela milícia fascista nas montanhas do

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Piemonte na condição de partigiano e, por ser judeu, deportado para Auschwitz, de onde sairá somente durante a liberação do campo pelas tropas soviéticas. Um ano depois, em 1946, escreve seu primeiro livro, no qual analisa sua experiência vivida: Se questo è un uomo (traduzido no Brasil por É isto um homem?) que, com o passar dos anos, ganha estatuto de clássico e impulsiona o autor – por ocasião de encontros sucessivos com os leitores – a retornar constantemente ao tema tratado. Em 1986, um ano antes de sua morte, nasce I sommersi e i salvati (Os afogados e os sobreviventes), espécie de testamento espiritual do autor, concluindo uma carreira literária iniciada 40 anos antes. Segundo o próprio Levi, I sommersi e i salvati distingue-se de Se questo è un uomo por privilegiar as reflexões, em detrimento dos contos (mesmo que os contos eventualmente também apareçam) e tais considerações referem-se muito mais às experiências dos outros deportados, que Levi descobre lendo as histórias ou escutando as narrativas. Entretanto, a mensagem contida nas duas obras permanece muito próxima: afirmar com força a humanidade comum – comum a todos independentemente de nossas convicções e ações. Em I sommersi e i salvati, o acento recai sobre os guardiães, os SS, as esquadras especiais (os chamados sonderkommando) e toda a estrutura que compunha o lager. E aqui vemos, mais uma vez, a grandeza de Primo Levi. Sem jamais perder de vista a distinção inequívoca entre “bem” e “mal”, leva em consideração, contudo, todas as possibilidades de gradações entre um extremo e outro. E mantém com primor este equilíbrio, sem qualquer traço de niilismo e maniqueísmo que o pudessem transformar em um rígido moralista. Nem as vítimas serão idealizadas, nem os assassinos demonizados. Entretanto, e isso é fundamental para o entendimento de seu pensamento, jamais confundirá vítima e assassino. Apesar disso, por mais assustador que nos possa parecer,


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não devemos esquecer que vítima e algoz pertencem ambos à espécie humana. Numa Europa em que leis raciais e campos de concentração e extermínio com câmaras de gás foram planejados e concebidos, ninguém está imune aos elementos perversos e nocivos da sociedade. Auschwitz, o sabe bem Primo Levi, não é um acidente isolado. Pertence a um mecanismo fundamental do sistema diabólico que foi se desenvolvendo com a permissão do ser humano. Em entrevistas e artigos, Primo Levi já antecipara, anos antes, alguns temas presentes em I sommersi e i salvati. Um deles é o das relações entre opressor e oprimido, que merece atenção e indagação. Sobretudo, não se deve aceitar a interpretação mais ingênua de que existe, de um lado, o opressor convicto, sem dúvidas metódicas, sem hesitações, e no oposto a vítima sacralizada pelo seu papel. Não funciona assim: o animal humano é mais complicado e abriga em si estados intermediários Desse modo, o livro – assim como toda a obra de Primo Levi – é, antes de tudo, a recusa em se contentar com respostas fáceis. Em cada capítulo, Levi analisa situações complexas com clareza de cientista – era químico de profissão e a ciência dava-lhe a limpidez, a transparência, a concisão e a elegância na escrita. Percorre questões filosóficas com lucidez obstinada, procurando usar a palavra justa para se fazer entender pelos seus leitores, e sobretudo para tentar restabelecer a ordem interna perdida em Auschwitz. Confia na memória, mesmo sabendo se tratar de “um instrumento maravilhoso mas falaz” (LEVI, 2007, p. 13).[1] Especialmente a memória traumática, que tenderia a ser recalcada, mas na obra é trabalhada com cuidado extremo. Trata-se de uma memória longínqua; portanto, suspeita, e merece ser tratada mais como considerações do que recordações. “La zona grigia” (A zona cinzenta) é, segundo o próprio Levi, o capítulo central, o mais importante do livro. Logo na abertura, a questão crucial é lançada: “Fomos capazes, nós sobreviventes, de compreender e de fazer compreender nossa experiência?” (LEVI, 1

Todas os trechos de Primo Levi aqui traduzidos para o português são de minha autoria.

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2007, p. 24). Uma pergunta que desestabiliza e embaraça o leitor, o persegue, levando-o a refletir sobre sua condição no mundo, sobre o estereótipo de que existe em cada ser humano um papel bem definido. Vítimas e assassinos se encontram numa zona povoada de figuras em condições miseráveis, pertencentes a uma normalidade degradada, denominada por Primo Levi de “zona grigia”. É o terreno ambíguo, a interseção entre a faixa de quem comanda e quem é comandado, sem definição clara das responsabilidades. É o lugar onde o ofuscamento do senso moral leva à aceitação do pior. É a “banalidade do mal” nos termos de Hannah Arendt em seu clássico Eichmann em Jerusalém, encarnada nos funcionários dispostos cegamente à obediência dos comandos. Mas Primo Levi vai além. Suas reflexões sobre as causas e as consequências do genocídio judeu, perpetrado pelo homem contra o homem, chegam às pulsões profundas que movem os seres humanos, aos mecanismos de poder, aos comportamentos dos opressores. Há, em certa medida, uma relação de dominação do homem sobre o homem inscrita em nosso código genético. E, se o acontecido não está ligado a qualquer temporalidade humana, as conclusões não são tranquilizadoras. A destruição de um povo e de uma civilidade demonstrou-se possível: aconteceu uma vez, pode se repetir. Partindo de complexidades como estas, I sommersi e i salvati é, sobretudo, uma obra para nos fazer pensar. São escritos que não afrouxam a tensão do arco e não solicitam o consenso; ao contrário, rompem o tempo todo com a inércia do pensamento. Sua importância consiste em desafiar as sutilezas da inteligência, em contraponto ao senso comum solidificado e à memória elementar e opaca. Estabelecer a zona cinzenta, pensá-la, significa abolir a zona de conforto. Sem jamais dividir o campo entre “nós” e “eles”, o autor analisa os meios-tons dos conflitos humanos e a rede de relações no lager. E percebe que as ambiguidades são a matéria-prima do ser humano, sobretudo num mundo que já se esperava terrível, ilógico (mas não se imaginava indecifrável). Na chegada ao inferno, sem


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solidariedade dos companheiros de infortúnio, o novo prisioneiro encontrava pequenos organismos, e entre eles uma luta desesperada e incessante. O projeto nazista previa a total desumanização do homem a partir do momento em que ultrapassasse a fronteira entre a realidade do mundo e o pesadelo do campo. O portão de entrada de Auschwitz era o limite para a compreensão. A partir dali, qualquer tentativa de entender o edifício nazista seria em vão. O Arbeit macht frei (O trabalho liberta), sentença diabólica inscrita na entrada do campo, era inócua, improfícua e levava a morte. Exatamente a inversão do ofício dignificante, esmerado e criativo do homem, tão caro a Primo Levi. Apesar de inesperado, nada era por acaso no lager. Fazer com que os homens não reconheçam mais nem em si próprios nem nos outros – seu espelho – qualquer centelha de humanidade era condição sine qua non, que muitas vezes minava no primeiro dia a capacidade de resistência de alguns prisioneiros. Pelo contrário, viam a própria morte refletida no rosto dos deportados. (...); os chutes e murros logo no início, quase sempre no rosto; a orgia de ordens gritadas com cólera verdadeira ou simulada; o desnudamento total; a raspagem dos cabelos; a vestimenta esfarrapada. É difícil dizer se todas essas particularidades foram estabelecidas por algum especialista ou aperfeiçoadas metodicamente com base na experiência, mas por certo eram deliberadas e não causais: uma orientação havia, e isso era evidente (LEVI, 2007, p. 26).

Dos que conseguiam sobreviver ao satânico “ritual de iniciação”, alguns acabavam no que Levi denominou “zona cinzenta”, espaço virtual que circunscreve e ao mesmo tempo une e separa opressor e oprimido. Sua organização é de tal maneira complicada que culmina numa impotentia judicanti, suspendendo qualquer tentativa de julgamento. Portanto, diante de particularidades como essas, não caberia um juízo moral. A culpa, em última instância, recairia sobre a estrutura do Estado totalitário. E, como diz Primo

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Levi, se algum parecer devesse ser dado, que fosse por “quem se encontrou circunstâncias análogas e teve oportunidade de sentir na pele o que significa agir forçadamente” (2007, p. 31). Para os judeus que ocupavam posições de comando dentro do campo, como os chefes (kapos) das unidades de trabalho; os chefes de alojamento; os escriturários e tantas outras funções dessa engrenagem horrenda – o julgamento se torna ainda mais delicado. Alguns combinaram astúcia e coragem e usaram o acesso privilegiado às informações para ajudar seus companheiros. Mas, como assinala Levi, a maior parte dos que detinham algum poder eram seres humanos medíocres e péssimos. Geralmente, em alguma medida, tendiam, ainda que de maneira inconsciente, a se identificar com os opressores. Apesar da existência de pessoas ambíguas dentro e fora dos campos, que Primo Levi chamou de “pessoas cinzentas”, é fundamental esclarecer que não se poderia jamais alinhar os prisioneiros aos guardiães nazistas. A respeito disso, e rebatendo a cineasta Liliana Cavani, diretora do filme O porteiro da noite a quem Levi se refere no livro, escreve: Não entendo de inconsciente e de profundo, mas sei que poucos entendem disto e que esses poucos são mais cautelosos; não sei, e me interessa pouco saber, se em meu profundo se aninha um assassino, mas sei que fui vítima inocente, e assassino não; sei que os assassinos existiram, não só na Alemanha, e ainda existem, em atividade ou não, e que confundi-los com suas vítimas é uma doença moral ou uma afetação estética ou um sinal sinistro de cumplicidade; sobretudo, é um precioso serviço prestado (intencionalmente ou não) aos negadores da verdade (2007, pp. 34-35).

Levi fala do caso-limite de colaboração nos campos de extermínio. Eram os sonderkommando (os esquadrões especiais), apelidados por Levi de “corvos do crematório”, um grupo de prisioneiros responsáveis pelo funcionamento de todas as etapas da “solução final” dos prisioneiros. Formados por judeus em sua


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maioria, deviam manter os fornos em pleno funcionamento em troca de condições de vida um pouco menos miseráveis no lager. Pequenos privilégios que faziam a diferença no contexto de horror. O ritual macabro consistia na manutenção da ordem para os que acabavam de chegar, muitas vezes sem saber do seu destino, enfraquecidos pela viagem em trens de carga, e já direcionados para as câmaras de gás. Depois de cada assassinato em massa, os esquadrões especiais faziam a retirada dos cadáveres das câmaras, a extração do ouro dos dentes, o corte dos cabelos das mulheres, a separação e classificação das roupas, dos sapatos e do conteúdo das bagagens; depois disso, o transporte dos corpos até o fornos crematórios, e por fim a eliminação das cinzas. Os integrantes do sonderkommando, no entanto, tinham o mesmo fim dos demais. Mais que isso, como sabiam demais sobre os segredos dos oficiais, havia da parte dos SS todo o cuidado para que nenhum desses homens sobrevivesse e posteriormente, por algum descuido, servisse de testemunha. Fazer parte de um sonderkommando significava ter seus valores morais extintos no primeiro ato de cooperação com os alemães, e sua submissão significava o mais completo triunfo do sistema nazista, pela implicação direta de suas vítimas nos crimes dos quais eles participavam: “(...): os judeus é que deveriam pôr nos fornos os judeus, devia-se demonstrar que os judeus, sub-raça, sub-homens, se dobram a qualquer humilhação, até mesmo a destruição de si mesmos.” (LEVI, 2007, pp. 37-38). O tema da ambiguidade humana que a opressão fatalmente provoca vem sempre acompanhada de uma tensão que nos leva a uma impotência judicante, que nos faz perder as referências conhecidas. Por tudo isso, dirá ainda Primo Levi, “peço que a história dos ‘corvos do crematório’ seja meditada com piedade e rigor, mas que o julgamento sobre eles fique suspenso”. (2007, p. 45). Testemunhar sobre o lager, na verdade, provoca mais perguntas que respostas e mostra a necessidade perene de se tentar compreender a zona cinzenta. É um mundo formado por

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seres humanos que não são monstros, mas, assustadoramente, são homens comuns. Que nenhum tribunal absolveria tais homens é certo; sobretudo no plano moral. Mas como atenuante há a vivência desesperada na ordem infernal e enferma do nacionalsocialismo, a degradação das suas vítimas, a destruição de sua magnitude moral. Toda a ambiguidade dos campos é também a nossa ambiguidade, característica congênita aos seres humanos, híbridos por natureza que somos, feitos “de barro e de espírito” (LEVI, 2007, p. 52). O sistema concentracionário alemão promovia, em igual medida, a desumanização em quem o exercitava e em quem o sofria. É necessário saber de onde nasce o mal absoluto, localizar o ovo da serpente, mesmo que jamais se compreenda. Mas se entender o terror nazista é impossível, conhecê-lo torna-se um dever porque, segundo Levi, “as consciências podem novamente serem seduzidas e obscurecidas: mesmo as nossas” (1992, “Appendice”, p. 177). Por isso, como nos campos de concentração, também nós devemos lutar sempre para nos mantermos homens, sem esquecermos de nossas fragilidades essenciais. Tanto na química quanto na literatura, Levi não se cansou de distinguir os elementos, de pesá-los, de analisar suas propriedades. A mistura o torna um escritor singular. Não existe, em toda a sua obra, nenhuma ambição filosófica de se chegar à raiz absoluta do conhecimento. O escritor quer, somente, percorrer todos os meandros da sua história, que também é o reflexo de uma época, tentando avançar cada vez mais na sua compreensão. E cumpre a tarefa passando ao largo das interpretações totalizantes e do subterfúgio das ideologias, consciente de que jamais atingirá alguma verdade ou realidade, furtando-se à tentação de atribuir aos fatos uma suposta natureza dos alemães. Como em um laboratório de química, nos livros, Levi tão somente reconstrói um pequeno segmento de mundo, unindo palavras e ideias.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LEVI, Primo. I sommersi e i salvati. Torino: Giulio Einaudi, 2007. LEVI, Primo. Se questo è un uomo. Torino: Giulio Einaudi, 1992.

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A TERCEIRA MARGEM DA DOS PIONEIROS DE TANGARÁ DA SERRA-MT Tieko Yamaguchi Miyazaki (UNEMAT) Walnice Matos Vilalva (UNEMAT) O foco das reflexões abaixo procura responder à pergunta: como ocorre realmente a comunicação entre o enunciador de relatos produzidos por fundadores de uma cidade no oeste brasileiro, em plena Amazônia virgem, e seus enunciatários? Desconfiando-se de que o conteúdo realmente veiculado não sejam as peripécias então vividas e agora relatadas, vale-se da estrutura do mito proposta por Roland Barthes em Mithologies (1957) e de Octavio Paz em El arco y la lira (1956) em sua compreensão da linguagem poética. Palavras-chave: Relatos. Tangará da Serra. Enunciação. Identidade. Fundação. Coletivo.

As presentes reflexões fazem parte de um projeto acadêmico[1] denominado Memória e relatos: pioneiros de Tangará da Serra e Assentamento Antônio Conselheiro, desenvolvido junto ao Mestrado em Estudos Literários (UNEMAT- câmpus de Tangará da Serra-MT). Nele analisamos um corpus de 24 depoimentos de famílias que desbravaram a Amazônia na região oeste brasileira, fundando a cidade de Tangará da Serra, no estado de Mato Grosso, no período compreendido aproximadamente de 1960 a 1970. Habitantes principalmente dos estados vizinhos de São Paulo, Paraná e Minas Gerais migraram para essa região, ainda coberta pela floresta amazônica, persuadidos pela propaganda desencadeada pelo Governo Central, em seu projeto denominado Marcha para o oeste. Em seus depoimentos relatam 1

Bolsa DCR, CNPQ-FAPEMAT.

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as dificuldades no deslocamento, principalmente a travessia a pé da serra do Itapirapuã e a instalação na floresta virgem; e posteriormente, após o desbravamento, focalizam o cultivo de café e arroz, as dificuldades para a sua comercialização; as rixas políticas até a autonomia político-administrativa. No conjunto, os relatos reproduzem em grandes linhas um mesmo roteiro. Este se caracteriza, em suas diferentes realizações, pela repetição de temas, motivos, figuras, personagens, com variações que se devem antes à cronologia: dos primeiros pioneiros que deslocaram para a floresta, para aqueles que vieram depois, quando a vila já se estava estruturando. Assim, enquanto os primeiros se fixam nas dificuldades do desbravamento propriamente, nos problemas de sobrevivência, no isolamento e nos primeiros movimentos de organização de uma coletividade, através da solidariedade na saúde, na educação, no entretenimento (jogos de futebol, bailes), os do segundo grupo focalizam a instalação de alguns serviços – primeiro bar, hotel, máquina de beneficiar arroz, igrejas de diferentes credos, lojas, sorveteria, escola - e a atuação política – a rivalidade com Barra do Bugres, de que Tangará da Serra era distrito, as eleições, disputas de cargos etc. De qualquer maneira, é possível estruturar uma espinha dorsal narrativa, conforme já fizemos à maneira de Propp, em outro artigo (MIYAZAKI; VILALVA, 2012) Apesar da reiteração de temas – alguns para eles memoráveis como a travessia da serra, a febre - curiosamente o leitor não se aborrece ao ler as narrativas de cada pioneiro, encontrando mesmo prazer no reconhecimento de alguma coisa que já se lhe fizera familiar. O prazer passa a provir não do conhecimento mas do reconhecimento do já visto. Ou seja, na recepção, alguma coisa acontece cuja justificativa parece não se encontrar mais na novidade como se poderia esperar de textos desta natureza: ou seja, no enunciado, nos eventos narrados. Apercebemo-nos dessa diferença principalmente quando nos remetemos a outro contexto em que o mesmo evento ou acontecimento é focalizado, ou o mesmo


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relato é citado: esvai-se a sensação a que nos referimos quando comparecem para exemplificação em contexto historiográfico; neste prevalece não o reconhecimento mas o conhecimento, portanto, o fato. De tal maneira que o caráter extra-ordinário que com se possa caracterizar o focalizado não é bem o que matiza a recepção, afetando o enunciatário. Para melhor se compreender a questão, é oportuno que se descreva a situação real em que se processou a comunicação entre pesquisador e entrevistado. A grande maioria dos pioneiros é constituída de pessoas simples, de escolaridade baixa ou média. Alguns poucos chegaram a professor do ensino básico, outros a políticos. De qualquer forma, a solicitação do depoimento se fez acompanhar das explicações dos objetivos: um órgão administrativo oficial – A secretaria municipal de cultura e educação de Tangará da Serra - encarregava a única universidade oficial da cidade, nas pessoas de professores da Letras, da coleta de relatos dos pioneiros ali ainda residentes para com eles editar um livro, para a preservação e divulgação desse período da História da cidade. Ou seja, todo um aparato de valorização – histórica, cultural – não só dos eventos focalizados mas da participação de cada um deles, de sua experiência particular e, portanto, da memória individual. Todo um jogo de imagens – na concepção de Pêcheux – deve ter-se dinamizado estruturando as relações entre depoente e pesquisador, cada qual reavaliando o seu passado, presente e futuro, a própria imagem para si mesmo, assim como a pressuposição da imagem que deles se fazia o outro, ali representado pelo pesquisador. Toda uma gama de estados passionais se pôde observar. Alguns familiares, envergonhados, se recusaram a falar, sequer a presenciar a entrevista; outros atenderam discretos, respeitosos; boa parte se preocupou em estabelecer um protocolo: vergonhosos, adiantavam a dificuldade, a pouca competência para falar, mal apropriada ao objetivo entendido; outros, após essa introdução,

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logo se soltaram e falavam sem grande preocupação, ao sabor da conversa. Ao contrário, houve igualmente aqueles em que se podia observar o cuidado com um planejamento do depoimento, não só na seleção dos eventos, mas na própria enunciação. Houve aqueles – geralmente os mais escolarizados – em que o tom beira a relatório, na observação da pertinência – segundo conceituação própria – onde duas atitudes opostas ocorreram: uma que acabou abundando nos pormenores, nas justificativas não tanto de ordem causal do relatado mas moral, ético do depoente com relação a si mesmo – sujeito duplamente, do enunciado e da enunciação. De modo geral, dentro dessa diversidade da enunciação, podemos pensar em dois grandes subgrupos: os depoimentos não bem planejados, que ocorreram ao fluxo da conversa, e os depoimentos programados. Ainda que tal classificação não se aplique, principalmente no segundo caso, ao todo do depoimento, havendo momentos de mescla das duas modalidades. Como explicar, por exemplo, que alguns se deliciavam em contar “casos” de que, contraditoriamente, são eles mesmos personagem, protagonista ou coadjuvante, testemunha? O que significa a disposição em destacar passagens engraçadas, lembradas por isso mesmo e não porque parte essencial do relatado? Mais que a metade das narrativas, principalmente do primeiro subgrupo, provoca uma empatia bastante agradável que impulsiona o leitor a persistir na leitura, buscando o próximo relato, ainda que, como se disse, acabe vendo-se numa situação de re-conhecimento. Uma resposta mais imediata a essa questão seria o estilo, individual, que pode ser heterogêneo, variável, apesar da situação padrão a que aludimos. Mas seria preciso entender o estilo não como aquela última camada da elaboração textual, retórica, linguística, muitas vezes deixada de lado em análises de textos narrativos, como se pouco tivesse a ver com os demais níveis anteriores da estrutura do texto; enfim, objeto específico de uma abordagem definida como estilística. Pelo contrário, deve-se compreendê-lo como um bojo que abrace o texto como uma totalidade, mas não


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pela preocupação de conferir ao assim abarcado uma unidade de sentido, contrariando, assim, aquele dialogismo tão apreciado por Bakhtin como a característica distintiva - em relação a autores como Cervantes, Shakespeare – de Dostoiewski. Cada relato é uma voz, uma enunciação que cobre o texto inteiro. Considerando o conjunto todo dos depoimentos, poderíamos pensar no que diz Bakhtin com relação ao escritor russo: não há essa voz dominante, abarcando todos, uniformizando-os num sentido. Preserva-se a autonomia da cada enunciação. Apesar disso, é possível encontrar nelas, enunciações, alguns denominadores comuns que justificam essa sensação de uma voz coletiva. Quando se pensa no objetivo que orientou a elaboração do livro, corpus destas reflexões - a criação de um acervo da memória e cultura de uma comunidade - mais premente se torna a resposta à pergunta sobre onde se dá realmente a empatia enunciativa em que se fundamenta o reconhecimento do pertencimento a uma comunidade e, com ele, o reconhecimento dos valores que ali circulam. Ou, em outros termos, o retrato do leitor, cidadão tangaranse, se originaria ali, nessa tensão comunicativa, mais que na leitura das peripécias focalizadas. Ao mesmo tempo em que cada pioneiro-narrador, ao narrar, se constroi como personagem do enunciado, constrói-se como personagem da enunciação, em que ele dialoga, confronta, se aproxima do parceiro de conversa, tecendo uma rede de valores, imagens ao redor de um ponto de convergência em que se ancora o espelho comum. Não é mais o enunciado responsável por isso. São recursos normalmente inconscientes que não servem para dar relevância a algum elemento enunciado, mas para criar afetivamente esse dinamismo, de um processo de afetamento, entre os parceiros de conversa. Seja o tom de distanciamento oriundo da imagem de autoridade que se queira obter, ou do contrato fiduciário que garantiria a sanção da honorabilidade da personagem, ator de ações no domínio político. Seja a ironia da fala bem humorada de quem hoje encara os sofrimentos passados, ou a fala também bem

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humorada, agora sem ironia, sem espanto. Sintomaticamente, os pioneiros convidados não são pessoas, nenhuma delas, dotadas de uma competência discursiva que propiciasse uma fala muito elaborada retoricamente, voltada para detalhes. Pelo contrário, a grande maioria dos textos caracterizase antes por expressões econômicas, descrições sem muitos pormenores, como se na fala oral os intervalos, as inflexões, a gestualidade pudessem naturalmente alojar a emoção não declarada, da parte de ambos os sujeitos implicados. Silêncios, interstícios cheios. Como os apontados pela notação do riso, momento de comunhão real. A diversidade, a especificidade dos eventos, da experiência, ao longo do tempo percorrido pela memória, acabam recebendo esse alinhavo, como característica de cada narrador: a graça irônica da parteira Maria Biazóli, a emotividade de dona Luisa, o sorriso da dona Miyoshe... Uma aproximação é possível à música na trilha sonora de um filme, não enquanto expressão adicional, sublinhando o enunciado, mas enquanto metalíngua que o interpreta. Esse estrato nos parece como um dos mais importantes dos textos, onde se assegura a sobrevivência deles na memória afetiva coletiva. Não seria, pois, o enunciado, a história em si que garantiria a circulação desses relatos no espaço e no tempo, vivificando o acervo e justificando-o realmente, como um valor vivo. Para compreender-se melhor o que estamos tentando expor, vamos nos valer do conceito de mito na modernidade desenvolvido por Barthes, em seu livro Mithologies (1957). Barthes começa pela pergunta: “O que é o mito na atualidade .”. Responde: “O mito é uma fala.” E observa: exatamente como indica a sua etimologia. Não se trata de qualquer fala, pois esta necessita de condições especiais para converter-se em mito. Antes de mais nada, segundo ele, é preciso entender que o mito constitui “um sistema de comunicação, uma mensagem”. Isso significa que o mito nunca é um conceito, uma idéia, mas “um modo de significação, de uma


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forma”. Mas essa forma deve sofrer as limitações históricas das condições de seu emprego: nela tem-se que investir a sociedade. O mito não se define pelo objeto de sua mensagem, mas pela forma em que é este é proferido. O que significa “forma de ser proferido”? Cada objeto do mundo pode passar de uma existência fechada, muda a um estado oral, aberto à apropriação pela sociedade. Pois é a história humana que faz passar do real ao estado de fala, só ela regula a vida e a morte da linguagem mítica. O relato dos pioneiros é exatamente isso: uma fala e uma mensagem. Mas ela, fala, precisa ser “um modo de significação”. Para isso é preciso entendê-la como uma “forma”, pois ela não se reduz a um conceito nem a uma idéia. Nem é o objeto dos relatos que está em foco – que seria o objeto da mensagem, da fala- mas a forma em que esse objeto é proferido na fala de cada um. A enunciação, não o enunciado, propriamente. O mundo narrado tem que ser apropriado de novo, num outro estágio, não da experiência em si, mas da enunciação dela, através de sua apropriação por cada depoente que convida cada ouvinte a segui-lo no caminho aberto para a significação mítica. Para exemplificar, Barthes remete à estrutura do sonho conceituada por Freud. Há no sonho um primeiro termo constituído pelo sentido manifesto da conduta; outro, um segundo, pelo sentido latente ou sentido próprio; o terceiro termo corresponde à correlação dos dois primeiros: é o sonho em si mesmo, em sua totalidade, tal qual o ato falho ou a neurose. Para Freud, o sonho não é nem o dado manifesto, nem seu conteúdo latente; é o vínculo funcional dos dois termos. Essa relação é que é a significação. Da mesma forma - concebe Barthes (1957, p.3) - constituído por duas linguagens, o mito é uma metalinguagem porque “ é uma segunda língua na qual se fala da primeira.” O que aí vale é o signo global na medida em que ele tem função significante; uma significação global porque ambos os sistemas são dados conjuntamente. O significante do mito é ambíguo: é sentido (do sistema primeiro) e é forma (no segundo). Esse duplo status o torna cheio

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de um lado e vazio de outro. Como sentido, postula imediatamente uma leitura: a saudação do soldado negro à bandeira francesa - no outro exemplo escolhido por Barthes - na capa de uma conhecida revista francesa. No primeiro sistema, o sentido está completo, postulando um saber, uma memória, um passado. Uma significação bastante, pois, em si mesma: a história do negro, soldado francês. Mas, ao ser apropriada pelo mito, essa significação se esvazia. Ao fazer-se forma, a contingência do sentido se esvai, se empobrece, a história se evapora, só fica a letra. Sua pobreza atual requer que uma significação outra a substitua: há que desalojar a história do negro soldado para receber um novo significado. O sentido, porém, não desaparece, continua a ser uma “reserva instantânea de história” (BARTHES, 1957, p.113), de que a forma segue alimentando-se e ao mesmo tempo nela se escondendo. “ O que define o mito é esse interessante jogo de esconde-esconde entre o sentido e a forma.”, explica Barthes ( 1957, p.113). A forma no mito não é símbolo: o negro do exemplo não é símbolo do império francês. Rica, espontânea, mesmo assim, ela se torna transparente, “se faz cúmplice de um conceito que recebe já armado”: no exemplo, “a imperialidade francesa” que “se converte em uma presença emprestada.” (BARTHES, 1957, p.114) Ao contrário da forma, o conceito nunca é abstrato, está cheio de uma situação. É através do conceito que se implanta no mito uma nova história. O soldado negro da capa: como forma, o seu sentido se restringe, isola, empobrecido; como conceito da imperialidade francesa, se liga outra vez à totalidade do mundo, à história geral da França, suas aventuras coloniais, suas dificuldades presentes. Mas aí, no conceito, “se investe mais um certo conhecimento do real que o próprio real.” (BARTHES, 1957, p.114) Um certo conhecimento do real. Os relatos dos pioneiros se compõem em primeiro lugar de um determinado sistema, o linguístico, que se nos impõe ao primeiro contato, que nos fala das experiências vividas pelos migrantes.


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Embora os temas ou motivos focalizados possam ser considerados mais ou menos os mesmos, formando um micro-universo semântico, talvez variando – perdendo-se alguns e acrescentandose outros - conforme o tempo corre pelos vinte anos abarcados pelo corpus, pode-se dizer que eles se caracterizam, no universo dos relatos, pela reiteração. A pergunta que ocorre é: por que a reiteração não diminui o interesse na leitura, pelo contrário, alimenta o prazer pelo reconhecimento? Por outro lado, apesar da recorrência de expressões genéricas, abrangentes, como as que se referem ao sofrimento e às dificuldades principalmente, esses motivos, essas unidades semânticas não recebem exatamente a mesma cobertura expressiva, a mesma cobertura discursiva, variando ao gosto do enunciador. Pensando nos termos de Barthes, talvez se possa dizer que aqui se verifica aquela não-correlação entre os dois planos quanto a riqueza qualitativa e riqueza quantitativa no mito. Segundo ele, no mito o significante é quantitativamente maior mas qualitativamente menor que o conteúdo. Ou seja, o significante não determina o conteúdo, nem esse postula a exigência de um determinado significante. Haveria aí uma relação de arbitrariedade entre os dois planos. Nesse sentido, podemos entender o conjunto dos depoimentos como um grande texto constituído pela reiteração de motivos, mas recobertos por distintos significantes: cada fala, uma nova expressão do mesmo. Essa relação de arbitrariedade, entretanto, entre significante e significado que possibilita essa diversificação expressiva, na verdade, acaba sendo lida como uma relação necessária. Não sabemos se - como no mito na perspectiva de Barthes - ocorre uma naturalização decorrente dessa relação, fundamental na concepção barthesiana do mito na modernidade. Mas o que se apreende é, pelo menos, o efeito de que ocorre na fala de cada um a equivalência exata: como se, em cada relato, o que se diz só pode ser dito daquela forma. Cria-se o efeito de que não há brecha entre os dois planos: é esse sentido que vai sustentar

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a aparição de um terceiro nível, abrangente, ou sistema de significação que se instala na enunciação. Ocorre aí um contrato fiduciário entre os dois actantes em comunicação: a crença nessa relação de necessidade entre expressão e conteúdo. É ela que possibilita a emergência do que na estrutura mítica de Barthes se denomina o conceito mítico, que, como ele diz, não é uma idéia clara.

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O saber contido no conceito mítico é, segundo Barthes, um saber confuso, formado de associações débeis, ilimitadas. O conceito é aberto: não é uma essência abstrata, purificada, é uma condensação instável, nebulosa, cuja unidade e coerência dependem sobretudo da função. Qual seria a função intencional no caso dos pioneiros? Ela ultrapassa o desejo explícito, manifesto, de contar cada qual a sua história. A função seria de inserir num outro universo maior, superior, que não possibilita, porém, nomear de forma precisa. Daí, como afirma Barthes com relação do mito, a necessidade de sintetizar esse conceito por neologismos. Qual caberia aqui? Embora, devido ao espectro temporal que as narrativas cobrem e, portanto, o espectro de circunstâncias envolvidas, talvez seria mais acertado dizer que esse conceito se matiza. Ainda que, mesmo assim, se possa reconhecer um núcleo comum à maioria delas. Melhor, dizendo de outra forma, cada relato tem um conceito mítico que aparece como um matiz particular do núcleo do conjunto. Talvez esse conceito comum se possa traduzir como a resposta à pergunta que permanece como o acordo enunciativo primeiro: o que faz uma pessoa, uma família fazer o que fizeram e a se comportarem como se comportaram? Não é a resposta segundo o primeiro sistema da estrutura aqui acompanhada, a história real, a da pobreza, a do desbravamento de terras inóspitas. Esta deixa filtrar-se uma nova história. Justamente por estar relacionado a uma contingência histórica o conceito nesse sentido também o é, contingente: daí a dificuldade de ser nomeado.


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Quantitativamente o conceito é mais pobre que o significante. Muitas vezes aquele só se re-apresenta. Qualitativamente a forma é mais pobre que o conceito, que é aberto a toda a história. À abundancia quantitativa da forma – de extensões variáveis, desde a dimensão de uma palavra à de uma obra inteira - corresponde um número pequeno de conceito, que se repete por formas diferentes. Mas é essa repetição que permite decifrar o mito: a insistência de uma conduta é a que mostra sua intenção. É aí que reside a dificuldade de apreender a espessura dos relatos: a linguagem dos depoimentos é marcada pela simplicidade, pela imediatez do primeiro sistema, o linguístico. Ou seja, ele não esconde nada, diria Barthes. Mas é exatamente essa fala simples que deixa entrever aquilo que falta: o silenciado não propositadamente, mas pelo tipo de competência narrativa e linguística que leva a um tipo desempenho. Alguma coisa falta ali onde parece nada faltar. No entanto, o efeito é de que os relatos se erguem sobre um terceiro nível de sentido, cujos sintomas ou índices estariam constituídos pelos traços estilísticos. A fala dos entrevistados, enquanto enunciação, e não enunciado, parece dizer da naturalidade do dito pelo enunciado, mesmo que este se constitua de eventos na realidade não ordinários. Daí a ironia, os risos e mesmo a disposição de contar “casos” que viram “causos”. A leitura do conjunto acaba erigindo a reiteração como a figura central, e, como diz Barthes, a insistência de uma conduta é que mostra a intenção. Qual? Um outro exemplo utilizado por Barthes ajuda a entender mais uma vez. De um carro em movimento, através do vidro olho a paisagem. Posso centrar a atenção ou no vidro ou na paisagem. Vejo de imediato o vidro e à distância a paisagem; posso ignorar o vidro que, tornando-se transparente, deixa perceber a profundidade da paisagem. O vidro me parecerá presente mas vazio; a paisagem, irreal e plena. No caso dos relatos, o enunciado se torna o vidro; a paisagem irreal e plena, a significação enunciativa. Pois uma outra intenção se insinua, além daquela manifesta, de depor. Há uma

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outra que me interpela para além da contingência dos eventos narrados, e funda o sentido. Para entender melhor o que aqui analisamos, talvez nos ajudem as explanações de Octavio Paz sobre a linguagem poética: La poesia vive en las capas más profundas del ser, en tanto que las ideologias y todo lo que llamamos ideas y opiniones constituyen los estratos más superficiales de la conciencia. (PAZ, 1972, p..41).

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Talvez possamos pensar que o que os textos expressam nessa estrutura proposta por Barthes seja equivalente ao que diz Paz sobre a função da poesia. Nela, os eventos narrados corresponderiam ao que este chama de “estratos mais superficiais da consciência”. Em contraposição, pode-se pensar que, embora não conscientemente, os depoentes tenham vivido o sentimento de que aquele era um instante específico, em que a parada somática para o cara a cara com o entrevistador suspendia o tempo do dia a dia para deixar intercalar-se um tempo qualitativamente verticalizado. Assim, na mesma proporção, ainda que aparentemente façam uso da norma linguística corrente de suas vidas, o desempenho deles produz uma linguagem capaz que transformar as imagens veiculadas no enunciado numa dimensão equivalente ao espaçotempo da enunciação. Ou seja, provavelmente as narrativas não se dissociarão, nem podem dissorciar-se dessa norma linguística e das características estilísticas; como no sonho na percepção de Freud, na fala deles significado e significante formarão um corpo, uma unidade.. Um corpo que tem que ser respeitado em sua totalidade, sob risco de perder-se. A leitura visual se fará leitura auditiva: ler equivalerá a ouvir a voz. Quando se repete o ato primordial a que alude Paz ( 1972, p.41): En el poema la sociedad se enfrenta con los fundamentos de su ser, con su palabra primera. Al proferir esa palabra original, el hombre se creó. Aquiles y Odiseo son algo más que dos figuras


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heroicas: son ele destino griego creándose a si mismo. El poema es mediación entre la sociedad y aquello que la funda. [...] El poema nos revela lo que somos y nos invita a ser eso que somos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, R. Mythologies. Paris: Seuil, 1957.

Os relatos não se classificam como poemas e nem como literários propriamente. Apesar disso, as narrativas têm a força de alçar-se acima da contingência que as criou e podem exercer as funções fundamentais que Paz atribui à poesia. Da mesma forma, a função que ele atribui a Aquiles ou Ulisses possa-se atribuir à figura coletiva dos pioneiros, que se particulariza, matizandose, nos diferentes depoentes. Aqui está-se em pleno exercício do ver e do ouvir, para a chegar à revelação. De quê? Do conceito barthesiano. Do não traduzível em palavra dicionarizada.

MIYAZAKI, T.Y.; VILALVA, W. Memória e Relatos: pioneiros de Tangará da Serra e Assentamento Antônio Conselheiro. (Inédito) MIYAZAKI, T.Y.; VILALVA, W. Relatos de uma saga: Pioneiros de Tangará da Serra–MT. In: FERREIRA, F.A.; MOMESSO, M.R.; SCHWARTZMANN, M.N; ABRIATA, V.L.R.A.(org.). Discursos e linguagens: objetos de análise e perspectivas teóricas. Vol. 6. Franca-SP: EDUNIFRAN. Coleção Mestrado em Linguística. 689

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PAZ, O. El arco y la lira. 3 ed. México: Fondo de Cultura Econômica, 1972.


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A PERMANÊNCIA DO REGIONALISMO NO ROMANCE DE CARMO BERNARDES Vanilde Gonçalves dos Santos Leite[1] O presente artigo discutirá a permanência do regionalismo literário na história da literatura brasileira e sua característica peculiar de alternar fases de relevância e de declínio para em seguida ressurgir sempre atual, perpassando o tempo e tornando-se referência para grandes produções literárias nacionais. Agrupa os mais significativos escritores brasileiros das diferentes regiões do país fazendo de cada uma delas “menos uma região do país que uma região de arte.” Pela presença recorrente do regionalismo na literatura brasileira objetiva-se mostrar possibilidades de sua permanência como prática evolutiva e como forma de manifestação artística em três romances de Carmo Bernardes: Jurubatuba, Nunila e Memórias do Vento, publicados em 1976, 1984 e 1986 respectivamente. Ao verificar a presença renovadora do regionalismo nesses romances pode-se afirmar que ela certamente continuará sendo parte integrante da história literária nacional, metamorfoseando-se, adaptando-se e contribuindo para a elevação do nível estético do caráter universal que alcançou. Faz-se, portanto, necessário desmistificar a vinculação do regionalismo à falta de qualidade e de universalidade literária que muitas vezes lhe foi atribuída e colocar o texto acima de qualquer forma de classificação. Sob a perspectiva de ser considerado um fenômeno moderno e de certa forma atemporal, o regionalismo tem sido suficientemente forte para superar as próprias contradições e reagir conta a hegemonia do romance urbano no processo literário brasileiro. A sua presença orientando a ficção carmobernardeana, representa o revigoramento dessa vertente literária garante e, portanto, sua consequente permanência nessas obras “onde os temas rurais são tratados com um requinte que em geral só” era “dispensado aos temas urbanos”. Palavras-chave: Carmo Bernardes - Regionalismo - Evolução Estética – Permanência Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás. vanildegsl@ hotmail.com

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Ao fazer uma retrospectiva da “formação da literatura brasileira”, é possível perceber ao longo de toda a sua história a presença permanente da vertente regionalista com uma característica que lhe é peculiar: a alternância de fases de relevância e declínio, mas ressurgindo sempre atual, como se tivesse “fôlego de sete gatos”, e cada vez mais enriquecida por produções literárias que estão entre as mais significativas do país. O Regionalismo teve sua importância inicialmente definida pela preocupação de representar as diferentes regiões do Brasil na tentativa de construir a identidade de um país de dimensões continentais. Num contínuo processo evolutivo os escritores regionalistas passaram a considerar essas regiões “menos uma região do país que uma região de arte”, cujos elementos diferenciais constituem uma literatura, acima de tudo brasileira. Walnice Nogueira Galvão defende que o surgimento do regionalismo foi fundamental para que o país se conhecesse como uma nação nova que se tornara. Considerando que o Brasil oficial estava localizado no litoral o fascínio pelo sertão, desde então se fez presente em nossas letras. A atração pelas entranhas do território seria responsável pela perpetuação e fruição dessa vertente literária. Foi então que: A tradição regionalista no romance brasileiro vai-se formando, deste modo, no correr de uma longa trajetória, que tem início com as preocupações nacionalistas dos românticos e que, a rigor, prossegue até hoje, enriquecendo-se cada dia de novos autores e obras. (ALMEIDA, 1999, p. 15).

A essa permanência ao longo de toda a produção literária do país que Hermenegildo Araújo chama de “tradição cultural”, José Mendonça Teles (2007) sabiamente nos leva a refletir com questões contundentes como: O que seria da literatura brasileira se não existisse a ficção regionalista? [...] Feliz o momento em que Bernardo Guimarães,


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a narrativa das obras que escreveu. Foi carpinteiro, pedreiro, tocador, carreiro, dentista prático, jornalista, editor e atento observador das relações humanas. Aprendendo o que a vida lhe ensinou Bernardes retratou em seus romances fatos de sua vivência, mesmo os não tão bonitos “de ver”. Chegou a publicar dezoito livros entre os autobiográficos, os de contos, os de crônica, os romances e os que tratam especificamente sobre a natureza do cerrado. Desse modo, Bernardes tirou o substrato da própria vida para tornar-se escritor, aliando conhecimento estético-literário à realidade que o circundava, podendo optar pela maneira do que dizer e como dizer, não se restringindo ao conhecimento limitado de uma região geograficamente determinada.

Afonso Arinos, Simões Lopes Neto e Hugo de Carvalho Ramos radiografaram a alma dos nossos sertões. Ao explorarem os conflitos locais e os introduzindo no cenário universal eles abriram caminho para o aparecimento de uma literatura local, voltada exclusivamente para os problemas do campo. Nascia o regionalismo, onde brilharam Guimarães Rosa e o nosso Bernardo Elis.

No regionalismo brilhou também Carmo Bernardes que transfigurou a realidade do cerrado goiano para uma dimensão que só a arte literária é capaz de atingir. Transformou essa realidade em “temas” universais adaptando a linguagem e a sua capacidade de contar “causos”, de expressar o amor, a intimidade e a preocupação pela preservação da região e pela condição humana dos que ali viviam. Nascido em 1915, numa fazenda no interior do estado de Minas Gerais, Carmo Bernardes é considerado um dos escritores mais goianos dentre os goianos, fato que o seu “próprio coração parece nunca ter entendido”. Mudou-se para Goiás aos cinco anos e continuou morando em fazendas ou pequenas cidades do interior do estado. Começou a ser alfabetizado em casa por dona “Sinhana”, sua mãe. Sentindo-se motivado passou a freqüentar a escola, mas nas aulas tinha dificuldade para entender as informações contidas nos livros. As palavras e os sons das letras eram muito diferentes de tudo que aprendera em casa. Mas superou essas dificuldades e aprendeu a ler e a escrever conforme as regras da língua oficial e jamais deixou de lado a leitura. Mesmo vivendo longe das grandes cidades, frequentemente comprava livros pelos correios. Dessa maneira entrou em contato com alguns dos escritores mais importantes da literatura brasileira que o influenciaram pela vida inteira, como Euclides da Cunha, Visconde de Taunay, Monteiro Lobato e o goiano Pedro Gomes. No contato com a leitura e a vivência no universo rural onde todos os conhecimentos eram transmitidos oralmente Bernardes adquiriu toda a sabedoria e sensibilidade usadas para compor

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Toda a minha literatura é um mosaico de fatos ocorridos comigo, com minha família, perto de mim ou do meu conhecimento. Junto esses fatos e faço a transformação artística. Todas as coisas que já escrevi são baseadas na realidade. (BERNARDES, 1995)

E nessa literatura que “retrata a realidade a partir da visão de mundo e da criação singular do autor”, com seu jeito aparentemente inocente e meio “dengoso de contar histórias” apresenta sempre nas entrelinhas do que escreve uma multiplicidade de significados fazendo do leitor um co-autor que vive com ele o drama de cada personagem. Sobre esse seu jeito de contar histórias Chaul (1998) concorda que: o leitor é convidado pelo escritor a vivenciar a trama; é envolvido pelo enredo, pela riqueza dos detalhes, pelo contexto, pelos traços físicos e psicológicos dos personagens que dão vida ao fato narrado ou descrito Ao narrar fatos e descobertas falava como se falasse de si mesmo, com a intimidade e a segurança que só um nativo desse ambiente é capaz de entender, de respeitar e de divulgar a quem ler os seus romances. Comportamento que remete ao escritor


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Hatoum, (1997) na defesa dessa mesma postura, mesmo não se considerando um regionalista:

desprezado pela “ingrata Ermira” a mulher amada, disse “adeus à Jurubatuba e, como cobra mudou de casca”, largou pras trás o que tinha sido para se transformar num novo homem. Em Nunila Bernardes trata da expansão da fronteira agropecuária do cerrado goiano impulsionada pelo crescimento de importantes centros consumidores como Goiânia e Brasília. Sua topografia plana facilita a mecanização e a criação extensiva de gado. A existência de grandes extensões de terras consideradas improdutivas, ou cujos donos não tem o titulo legal das mesmas, passa a ser alvo dos poderosos que alegando serem os verdadeiros donos expulsam as pessoas do lugar e introduzem ali agricultura e pastagem com tecnologia moderna e “em doses inadequadas”, conforme relato do personagem Ramiro, que agora é Antonino e vive no povoado do Descoberto:

Numa obra literária os traços da cor local e as circunstâncias históricas, geográficas e sociais são inevitáveis, pois o escritor está sempre rondando suas origens; às vezes, sem se dar conta, são sempre essas origens que o seguem de perto, como uma sombra, ou mesmo de longe, como um sonho ou um pesadelo.

Nos romances de Bernardes as personagens estão numa relação simbiótica com a natureza, e vivem os problemas autênticos da região do cerrado goiano. Mas o “homem humano’ é destaque fundamental para ele que sem muito alarde e sem narrativas dramáticas, desvenda os segredos da alma humana e denuncia uma realidade que se pode sofrer um disfacelamento irreparável com a chegada da exploração capitalista e a expulsão do homem da região. Jurubatuba publicado pela primeira vez em 1972 é o primeiro livro de uma trilogia que continua com Nunila, A Mestiça Mais Bonita do Sertão Brasileiro (1984) e Memórias do Vento (1986). Nesses romances a história é narrada por Ramiro, personagem central da trama, um homem que anda pelo mundo sem morada certa e sem riquezas. Tudo que possui carrega sobre o seu burro Saudoso. Ramiro é uma representação carmobernardeana do homem do sertão, com características opostas às do roceiro Jeca Tatu, de Monteiro Lobato. Para Bernardes esse personagem lobatiano foi considerado por muitos o retrato fiel do caipira brasileiro e colaborou para que se concebesse o preconceito do homem urbano em relação ao homem do campo. Ramiro, ao contrário de Jeca Tatu detêm conhecimentos, disposição e habilidades invejáveis para executar tarefas essenciais às pessoas que vivem na zona rural. De espírito livre e revoltado com a situação de exploração dos ricos sobre os pobres Ramiro interrompe sua viagem e se sujeita a ficar na fazenda Jurubatuba dominado por um amor proibido. Após três anos, passando “por baixo da árvore do bem e do mal”,

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O zomes de Santana e de Goiânia dizem que possuem os títulos legalizados dos terrenos de Coqueiro de Gália. Estão denunciando que os caboclos invadiram a propriedade alheia, instigados pelos comunistas. Eles contestam, dão provas de que são todos naturais dali, desde a antiguidade. Apresentam, como documentação de que são legítimos donos da glebas que ocupam, as mangueiras plantadas pelos primitivos, os pés de tamarindo, as moitas de sempre-lustrosa, os cemitérios crivados de cruzes de aroeira já meio podres, datas de até cem anos. (NUNILA, 1982, p.55)

Antonino conhece Nunila e se apaixona por ela. Envolvese na defesa dos moradores do lugar então vivia é considerado subversivo de alta periculosidade. Foge e leva consigo a reserva de ouro de Nunila, entregue a ele como prova do seu amor puro e verdadeiro, diferente do amor “desorientado” que sentira por Ermira na fazenda Jurubatuba. Em Memórias do Vento, o último livro da trilogia, o personagem Manelino, que fora Ramiro e que fora Antonino, continua narrando sua caminhada. A obra é ambientada na cidade de Goiânia, onde os costumes são outros, os interesses também, como também


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são outros os meios de sobrevivência. É uma história de gente do cerrado que muda para a cidade grande sem saber como viver nela. Nesse romance o autor expressa um novo processo de leitura do mundo descobrindo que as pessoas boas podiam representar um enorme perigo para outras que faziam parte do poder constituído. E expressa sua dor e sua revolta ao perceber que nessa relação entre pobres e poderosos o homem que vem do campo para a cidade perde “o caráter e vai confundindo-se com a multidão coisificada”. Além do conhecimento da realidade retratada em seus romances, a linguagem é um ponto de extrema relevância na composição da narrativa de Carmo Bernardes. Seguindo as regras de uso popular do interior de Goiás ele a incorporou naturalmente à sua escrita fazendo dela a força propulsora de suas obras. A fala de Carmo Bernardes foi o resultado da vivência com pessoas simples e de alma sublime, pertencentes “à mesma tribu” que ele. Mas, foi sobretudo herança de sua mãe, que com alma terna apresentoulhe as primeiras letras e despertou-lhe o interesse pelas pessoas e pelos livros que sempre fizeram parte de sua vida. Essa opinião foi endossada pelo escritor mundialmente conhecido Jorge Amado na contracapa de Nunila, o livro que dá continuidade à trama iniciada no romance Jurubatuba: Enquanto fixa com sabedoria a língua do seu povo, Carmo Bernardes constrói sua linguagem de mestre do romance. Utiliza forma e técnica não para o brilho de truques falsamente modernos, mas a serviço do despojamento de um texto mágico que envolve o leitor na humana vivência da liberdade. (NUNILA, 1984)

A habilidade de Bernardes tornou insignificante a diferença entre a fala do homem do campo e a do homem urbano. O autor dá a essa diferença um papel secundário ao compor sua literatura. Os dois tipos de fala, muitas vezes emitidos pelo mesmo personagem não causam incômodo ao leitor:

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Largava um bando de monólogos ferozes para desabafar. [...] Hora infeliz a que fui me encontrar com aquela tipa! Que eu tinha de me amarrar com ela e deixar virar um chamego desgraçado desse? Remoí muito tempo essa indignação impotente. A tensão nervosa subiu até os últimos limites para estourar uma apoplexia ou numa crise de gritos e desesperos, soltou o pique derradeiro, relaxou, caí no vazio. (MEMÓRIAS DO VENTO, 1982, p. 120)

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Bernardes, como outros escritores regionalistas, não se se portou como expectador culto diante do “linguajar errado” do homem do campo, ao mesmo tempo que aproximou suas obras do conceito de boa arte literária. Como forma de insubmissão pacífica contra as regras normativas da Língua Portuguesa o escritor registrou em suas narrativas a fala do homem inculto do cerrado goiano defendendo a opinião de que “o dono da fala é o povo” levando, com isso, claros traços de oralidade para toda a narrativa. A escrita oralizada de origem rural foi aprendida por Bernardes nas rodas de conversas em que as pessoas, informalmente, contavam suas histórias e transmitiam seus conhecimentos para as novas gerações. Essa habilidade adquirida pelo autor aproxima-o do conceito de narrador, sendo aquele que: ...pode recorrer ao acervo de toda uma vida (vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. (BENJAMIN, 1994, p. 221)

Segundo o próprio autor, sem essa gente e sem esse ambiente ele não seria o mesmo e não teria onde buscar “assunto” para se tornar o que chamava de “contador de potocas”. Ele construiu seus personagens para transmitir os conhecimentos, a cultura e os valores apreendidos ao longo da vida do autor. Seu instrumento


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foi a “literatura como missão” cujo resultado, se valorizado, ficaria para gerações futuras, conforme declara no trecho:

crenças. Ao mesmo tempo acompanha a transformação sofrida por esse sertanejo que se vê expulso de sua terra. E esses fatores o autor transferiu para a narrativa literária de maneira equilibrada, conseguindo com isso, uma obra que agrada plenamente a qualquer leitor. Nelly Alves de Almeida (1998) ao estudar os principais regionalistas goianos fala do regionalismo de Carmo Bernardes e explica que:

Daqui a uns anos, quando os que hoje acham que é feio fazer literatice com os temas da gente e da terra, tiverem outra compreensão e muita necessidade de assunto, aí não haverá mais sertão e pode ser que os meus apontamentos se avultem. (BERNARDES, 1968)

Esse foi o princípio norteador da produção do escritor que soube conhecer os elementos da fauna e da flora do cerrado goiano e registrar a alma das pessoas que viviam nesse espaço. Alcançou o nível dos grandes escritores que partindo do regional ultrapassaram as fronteiras de sua região para se tornarem universais. Os romances que escreveu apresentam a mesma qualidade comum a toda boa obra literária cujo tema é a terra onde viveram os seus autores. Atualmente muitos escritores não querem ser chamados de regionalistas. Isso quer dizer que a literatura regionalista deixou de existir? Certamente que não. Nenhum escritor ficaria contra o regionalismo se ele não estivesse presente na produção literária brasileira. Essa é uma das razões pelas quais a narrativa carmobernardeana tendo aparecido mais de três décadas após as consideradas melhores obras da ficção brasileira como são Bernardo e Vidas Secas, de Graciliano Ramos e o incomparável Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa desperta interesse do leitor. Em Goiás, Carmo Bernardes seguindo os passos de escritores de qualidade reconhecidos, como Bernardo Élis e Hugo de Carvalho Ramos, recorreu ao sertão como cenário, mas diferentemente do primeiro que montou as suas tramas presas e fatos históricos ou do segundo que “retrata o sertanejo oprimindo, acabunhado, sem perspectiva de mudança de vida, preso ao ajuste de trabalho, incapaz de saudar sua dívida” Bernardes descreve com naturalidade o universo próprio do sertão, seu cotidiano, hábitos,

como todos os movimentos modernos o regionalismo não tem fugido a necessidade de mudança. E nesta nova o que tem trazido é uma verdade baseada no sentimento nascido de experiências que externam o eu de quem o produz, ao mostrar que, universal, não é um movimento estagnado, mas em constante movimento de renovação. (BERNARDES, 1898, p. 334)

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As características regionalistas estão presentes nesses três romances: Em Jurubatuba e Nunila e Memórias do Vento. Características muito claras para o leitor onde o Goiás sertanejo real é representado numa ficção carregada de informações e de interpretações de uma região geograficamente determinada: A narrativa de Jurubatuba é constituída a partir de um vasto conhecimento da realidade. O autor, com sua forma sensível e analítica de mostrar a realidade goiana cria uma situação ficcional na qual as personagens, através de seu perfil psicológico e de seu constante envolvimento em conflitos interpessoais e sociais, fazem conhecer o modo de vida da sociedade sertaneja. (BRAGA E CHAVEIRO, 2005, p. 2)

Foi desse “vasto conhecimento da realidade” que resultou a literatura de Bernardes, à qual se pode aplicar o conceito de Regionalismo dado por Afrânio Coutinho, tanto no sentido amplo, visto que existe o cerrado, uma região determinada como plano de fundo, como no sentido mais restrito porque desse local foi


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tirado a substância de sua narrativa. E baseando-se nas palavras de George Stwart ele explica o que vem a ser essa substância.

da própria realidade físico-cultural da região, ainda que para transcendê-la”. Segundo Carmo Bernardes os seus romances nunca se distanciaram do tratamento estético, pois:

Essa substância decorre, principalmente do fundo natural, cima, topografia, flora, fauna etc, como elementos que afetam a vida humana na região, em segundo lugar, das maneiras peculiares da sociedade humana estabelecida naquela região e que a fizeram distinto de qualquer outra. (COUTINHO, 2004, p.

Não concebe a arte sem um bom tratamento dos temas e que tratamento artístico, tema e honestidade de informação são elementos que, ligados indissoluvelmente, constituem o ideal de todo o literato. Só assim poderá o escritor ter participação legítima no complexo social em que vive e só assim servirá sua obra, no futuro, de fonte fidedigna para estudiosos e pesquisadores. (BERNARDES, 1966)

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Para os que defenderam o fim do Regionalismo, a frequente força de sua presença tem provado que essa vertente literária não está condicionada a uma “data marcada com começo e fim”. E para reforçar essa constatação há de se concordar com Lígia Chiappini de que a sua permanência deve-se ao fato de ele ser histórico e por isso evolui. Tendo passado por diferentes fases da história literária brasileira, reaparece sempre, e a cada reaparecimento apresenta maior rigor em sua composição estética. Para complementar esse ponto de vista é difícil não lembrar de que na literatura carmobernardeana: se os temas permanecem os mesmos: se os cenários são ainda a terra que, soberana, domina os homens e os animais e as coisas se as condições socioeconômicas são ainda, na maior parte, aqueles que escravizam e aviltam, sem lhes dar oportunidade de fuga e superação; o ângulo de visão, o veiculo expressivo e a técnica da estrutura são outros. (CANDIDO, 1987, p. 161)

Bernardes assimilou essas mudanças transformando-as em literária de qualidade que produzida num contexto regional configurou-se numa constante busca do caráter universal. Os temas locais receberam de Bernardes tratamento estético que dialoga diretamente com o que José Maurício Gomes de Almeida defende sobre o que deve ser acrescida à uma obra regionalista depois de “haurir a sua matéria e a sua substância

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As obras carmobernardeanas refletem o vigor da tradição regionalista e traduzem uma tomada de consciência do autor do modo de vida de uma sociedade agrária que associada à observação direta da natureza serviu como “estímulo e substância da criação literária”. O regionalismo de Bernardes brotou de seu mundo rural através de sua sensibilidade tornando-se “universal por compreensão”, na forma do dizer simples de seus personagens, embora sem situações de grande alcance dramático ao longo de toda a narrativa. Como outros autores regionalistas conquistou um lugar frente à literatura nacional, num processo constante de atualização inserido num contexto onde: A leitura do regional que esses autores passa pela retomada dos signos, tipos e paisagens, criando um repertório, uma visibilidade própria e inconfundível, porém não reduzida ao típico, ao exótico, ao estereótipo enquanto imagem que não se questiona. (MENEGAZZO)

Carmo Bernardes absorveu essas mudanças para compor seus romances inspirados nas histórias que viveu e ouviu no contato com a gente simples e autêntica do cerrado goiano. Com esse conteúdo Bernardes organizou tramas repletas de significação,


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de reivindicação e de denúncia política a favor daqueles que se encontravam fora do novo sistema de produção. O caráter de denúncia se manifestou literariamente nos escritos de Carmo Bernardes pela preocupação em representar sentimentos e problemas locais, visto que a literatura regionalista, durante todo o seu processo de evolução histórica esteve empenhada nas lutas de uma sociedade em situação de transição, de uma economia agrária para uma economia baseada numa produção de caráter mais moderno e intensivo. O resultado foi uma produção que sem mitificar o homem do cerrado, não deixou enaltecê-lo e de explicar sua região fazendo dessa relação uma fonte renovadora de vida e de inspiração. Juntando a esses aspectos da realidade humana e social colaboraram também para se afirmar que os romances de Carmo Bernardes sejam realmente regionalistas o fato de retratarem a natureza local com uma linguagem que é a marca do saber e da cultura do povo do cerrado. Para Bernardes é segura a afirmação de que “o autor fenece quando se distancia da terra” garantindonos que ele, como escritor regionalista sempre se alimenta “dos assuntos que lhe oferece sua região”.

Anais

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