Anais do III Congresso Nacional de Pesquisa em Literatura e XI Seminário de Estudos Literários

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O CNPL E O SEL

O III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISA EM LITERATURA é uma iniciativa do Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (IBILCE), câmpus da Universidade Estadual Paulista (UNESP), de São José do Rio Preto (SP). O encontro reúne pesquisadores de literatura – mestres, doutores, pós-graduandos e graduandos –, além de poetas e escritores. O Congresso realizar-se-á nas dependências do IBILCE, nos dias 13, 14 e 15 de outubro de 2010. Perfis do Contemporâneo colocará em foco uma diversidade de visões sobre as atuais manifestações literárias, por meio de atividades voltadas à reflexão crítica e à atuação artístico-cultural. O propósito do evento é abrir-se a discussões acerca dos perfis da literatura em sintonia com posicionamentos inovadores do fazer literário moldado por distintas linguagens, no que se refere, por exemplo, a novas tecnologias no campo da literatura, em termos de produção e divulgação; às relações entre literatura e fotografia, literatura e cinema, literatura e pintura; às questões de gênero literário; à problematização da teoria da literatura no âmbito das obras contemporâneas. Portanto, perfis com muitas faces, em que se entrecruzam imagem, som, texto, palavra, movimento e corpo – signos múltiplos em diálogo. O XI SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS (XI SEL) é parte das atividades do Programa de Pós-Graduação em Letras do IBILCE. Tem como objetivo promover o debate dos projetos desenvolvidos em 3


nível de Mestrado e Doutorado, a fim de que haja, por meio da crítica, uma melhoria no trabalho de pesquisa como um todo. É um espaço importante para o pós-graduando, uma vez que ele já se prepara para o embate crítico de sua pesquisa. As bancas de avaliação dos projetos, além de professores do Programa, são compostas por docentes convidados especialmente para esse fim, permitindo uma discussão mais ampla das questões implicadas nos trabalhos. Comissão Organizadora

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OS FATOS E OS BOATOS DO SALAZARISMO NA ESCRITA DE LOBO ANTUNES Andréia Régia Nogueira do REGO (Unilago/SJRP)1 andreiaregia@uol.com.br RESUMO: Os procedimentos de escrita utilizados por António Lobo Antunes assentam-se numa estrutura fragmentada na qual se encontram bases da história (oficial e oficiosa) contemporânea de Portugal, o que abre o leque de leituras possíveis do cenário histórico. No romance aqui analisado, Exortação aos crocodilos (2001), os estilhaços da história de um controverso acidente envolvendo o então primeiro-ministro de Portugal articulam-se no texto ficcional por meio dos relatos das personagens, cujos discursos interrogam, denunciam (e sofrem) o poder autoritário presente em diferentes níveis das relações inter-pessoais. PALAVRAS-CHAVE: António Lobo Antunes; Narrativa portuguesa; Ficção e história Em seu livro Seis passeios pelo bosque da ficção (2006), em diálogo com Coleridge, Umberto Eco já nos indicava o pacto de concordância entre Leitor e Autor: sabe-se que o que será lido não é real, mas se aceita sua realidade, dentro dos limites do ficcional, como se real fosse. Seria a suspensão da descrença. Eis que nos encontramos no limiar aqui sugerido: a relação entre fato e boato, texto ficcional e história. Não relacionamos fato a texto histórico, pois sabemos que a história oficial nem sempre se escreveu 1 Doutora em Literaturas em Língua Portuguesa (UNESP/SJRP). 5


com base nos fatos... Tampouco ligamos ficção a boato, alertados que fomos pela crítica literária aqui citada. Mas o que dizer quando o texto literário traz à tona questões históricas de um contexto social que se fortalece pela disseminação de mentiras, como é o caso de um governo ditatorial? Afinal, sabe-se que a tônica da propaganda nazista era a de que “uma mentira contada mil vezes se torna verdade”... Diante de situações de extrema violência e massificação, é comum a tendência à suspensão da crença, percorrendo um caminho contrário ao proposto pela literatura. A esta cabe, portanto, restabelecer aquela, propondo caminhos diferentes para o real, como faz Umberto Eco ao nos propor passear pela ficção como passeamos por bosques, aproveitando a paisagem, procurando novas maneiras de explorá-la. Se o discurso ficcional permite-se ser reinventado, e se a ficção pode questionar o discurso histórico, também esta pode ser reinventada pela ficção? Acresce-se a essa pergunta, as reflexões de Hayden White, a respeito da construção da narrativa histórica: toda narrativa não é simplesmente um registro do que aconteceu na transição de um estado de coisas para outro, mas uma redescrição progressiva de conjuntos de eventos de maneira a desmantelar uma estrutura codificada num modo verbal no começo, a fim de justificar uma recodificação dele num outro modo final. Nisto consiste o “ponto médio” de todas as narrativas (WHITE, 2001, p.115).

A possibilidade de recodificar é o que enriquece a escrita contemporânea. Por sua vez, a multiplicidade da cultura de massa amplia os canais de propagação da história, de modo que fatos e boatos pouco se diferenciam, o que, numa visão otimista dos que ainda acreditam na literatura, também amplia as possibilidades do 6


narrar, uma vez que oferece aos autores um playground de imagens e motivos literários. É nesse contexto que nos propomos a analisar o romance Exortação aos crocodilos (2001), de António Lobo Antunes. A época histórica a que nos remete essa obra refere-se aos acontecimentos da segunda fase da Revolução dos Cravos em Portugal. O autor português usa as personagens masculinas para mesclar figuras históricas e fictícias, não nomeando nenhuma delas, mas caracterizando-as a todas com muitos detalhes, como a oferecer pistas para a investigação dos fatos, ao mesmo tempo que amplia as fronteiras entre aquilo em que devemos acreditar e aquilo em que não devemos. Vejamos, primeiramente, um pouco dos fatos históricos registrados nos meios de comunicação da época. De acordo com Adelino José Gomes e José Pedro Castanheira, jornalistas que fizeram um levantamento as principais notícias sobre o Verão Quente de 75 (2006), as ondas revoltas que trariam ao mar sociopolítico de Portugal a instabilidade vivida nesse período foram provocadas pela tentativa de golpe de Estado liderada pelo então general António de Spínola, a 11 de março de 1975. O discurso histórico-jornalístico da época é um misto de informações e especulações: “O vespertino A Capital anuncia mesmo um golpe ‘ainda antes do fim de Março’; segue-se a revista francesa Témoignage Chrétien. Ambos apontam o dedo à Central Intelligence Agency (CIA)” (apud GOMES; CASTANHEIRA, p. 18). Com o fracasso do golpe, Spínola foge para Espanha. Tem início uma série de assaltos a sedes de partidos de direita, erguem-se barricadas, o MFA decide deter “militares e civis suspeitos” e criar “um tribunal revolucionário” (apud GOMES; CASTANHEIRA, p.18). Os 7


textos históricos apontam, ainda, relações entre a direita conservadora portuguesa e os franquistas espanhóis, bem como a ligações entre a CIA e a polícia secreta soviética (KGB) com facções conservadoras do cenário político português. Devido aos embates ocorridos entre o conservadorismo de extrema-direita português e as esquerdas, essa fase seria chamada de “Verão Quente de 75”, durou menos de um verão, todavia seus raios continuariam a ser percebidos alguns anos à frente. Em 1980, um acontecimento reacende as especulações sobre atentados e sabotagens. O Cessna em que viajavam o PrimeiroMinistro de Portugal, Francisco Sá Carneiro, e o Ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa, além de outros passageiros, cai e explode minutos após levantar voo no aeroporto de Lisboa. O caso ficou conhecido pela História como o Crime de Camarate, bairro sobre o qual o avião caiu, e até hoje é assunto polêmico e controvertido nos registros jurídicos, jornalísticos e na própria sociedade portuguesa. No romance em questão, esse contexto histórico entremeia-se às reminiscências de vida de quatro mulheres, Mimi, Fátima, Celina e Simone, que são cúmplices, ainda que contra sua vontade, das ações de uma rede de bombistas, como eram chamados os grupos que teriam protagonizado os atentados terroristas. De modo polifônico, as vozes da história, das teses conspiratórias, das conclusões da justiça, dos textos jornalísticos e dos discursos políticos misturamse à versão ficcional que acaba por tornar-se mais completa do que todas as apresentadas pelo discurso oficial. Sob os divergentes pontos de vista das quatro mulheres, a história vai-se formando no plano da enunciação, que, aos moldes da narrativa de Lobo Antunes, mostra-se fragmentado e entrecortado, 8


mas não superficial. Assim, os elementos da história oficiosa do romance vão pouco a pouco se revelando para o leitor, que deve montar as peças que lhe são oferecidas. Em sua estrutura, o livro é dividido por subgrupos de quatro capítulos cada, em que se alternam as vozes de Mimi, Fátima, Celina e Simone, nessa ordem. No primeiro capítulo do primeiro subgrupo, em que predomina a voz narrativa de Mimi, esposa do mandante dos bombistas, anuncia-se o acidente com o avião do ministro, em Camarate, e parte da estratégia empregada: no dia do avião do ministro, os dois homens que conhecia a hesitarem, [...] os dois homens vestidos de empregados do aeroporto, com fardas demasiado grandes para lhes pertencerem, a fitarem-me [...] os dois cretinos como se eu tivesse o tempo todo do mundo para saber da bomba [...] //[...] o avião do ministro num telhado em Camarate, os empregados do aeroporto a aguardarem o furgão nos fundos, o que chamavam cadáveres e não passavam de manchas escuras, pedras, tijolos, fragmentos que se unem até compor um homem, o Tejo acalmando-se para a lua juntar na água os pedaços dispersos [...] o que sobrava do avião a balançar no telhado e os empregados do aeroporto trotando para o furgão tapados com bonés. (ANTUNES, 2001, p. 9-11).

Mais adiante, no capítulo quatro com alguns assomos e mais diretamente no capítulo oito, o possível acidente finalmente revelase atentado. Sob a perspectiva amargurada e sarcástica de Simone (a namorada do fabricante das bombas, também chofer de Mimi e de seu marido), agora dona da palavra, mandantes e detalhes do crime ganham imagem e voz: Posso viver com o chofer, mas não sou criada deles, não tenho de pôr touca, uniforme, luvas e servir à mesa 9


[...] quando recebem o general e o secretário para almoçar [...] eu entontecida pelo ramalhar das árvores, o som da torneira na piscina vazia e o monóculo do general [...], a entonar vinho tinto sobre o vinho branco, a pingar molho, o general recuou a cadeira com uma mancha nas calças ― Oh [...] toda a gente debruçada para a mancha num horror de sacrilégio, o comandante, o senhor bispo, os antigos polícias, a viúva do sócio [...] um dos antigos polícias, não o maior, o mais pequeno, o que ajudou o meu namorado a, endireitou-me a bandeja ― Você não é boa da cabeça ou quê? o que ajudou o meu namorado com o avião do ministro, vi-os construir uma caixinha com cilindros e tubos, procurarem as fardas de mecânicos do aeroporto, colocarem os bonés, esperarem o furgão com o polícia maior ao volante no portão dos fundos [...]. (ANTUNES, 2001, p.79-81)

Por meio da intratextualidade e, com base nela, pelo diálogo com o texto histórico, podem-se identificar algumas das figuras históricas citadas nesse trecho, como na referência a um general cuja descrição em muito se aproxima da do General António Spínola, ou na referência mais geral aos integrantes da PIDE. Passaremos a demonstrar essas relações, para tanto dialogaremos com outro romance de Lobo Antunes, Fado Alexandrino (2002). Neste romance, encontramos uma cena em que a personagem soldado acompanha toda a movimentação dos militares diante do Largo do Carmo, à espera da rendição de Marcelo Caetano. A certa altura, o soldado descreve: 10


O general do monóculo apeou-se, as condecorações e as estrelas brilhavam ao sol, desapareceu no prédio do Carmo acompanhado por dois ou três civis muito dignos, muito compenetrados, de gravata, uns segundos de expectativa, uns minutos elásticos que se eternizavam, mais sujeitos que trepavam para as árvores, os telhados dos edifícios em volta repletos de pessoas [...]. [...] O general de monóculo saiu por fim do quartel da Guarda, sem se emocionar com o entusiasmo, sem corresponder aos aplausos, instalou-se, com os senhores solenes, no carro que de imediato principiou a rodar para fora do largo, [...] a multidão batia com os nós dos dedos nas portas, cumprimentava-o, gritava [...] (ANTUNES, 2002, p.195-196, grifos nossos).

A cena descrita acima transforma em palavras as famosas imagens do momento em que o general António de Spínola chega para receber a rendição do governo do Estado Novo. Imagens que também foram escritas por vários autores que trataram do tema da Revolução, como o que se pode verificar a seguir: Com efeito, o General António de Spínola chegou ao Largo do Carmo cerca das 18 horas, depois de o Capitão Maia [...] ter anunciado o desfecho por que todos ansiavam. Populares encheram completamente o largo, alguns subindo para as árvores e muitos tomando lugar nas próprias viaturas militares. A tensão e o nervosismo aumentaram à medida que engrossava a massa humana. (PRAÇA et al, 1974, p.29, grifos nossos).

De modo irônico, o enredo de EAC sugere a inserção desse general, tão relacionado à luta revolucionária, no grupo reacionário bombista, cujo objetivo era combater os “comunistas”, os “inimigos do povo”, ou seja, o mesmo objetivo tantas vezes expresso pelo discurso estadonovista. 11


A ideia, tantas vezes propagada pelos ideais salazaristas, de que os comunistas pertenciam à esfera do mal é transmitida pelo texto diegético num misto de ironia e sarcasmo, que destitui tanto a imagem que o Estado Novo alardeava, como a que mitificava os comunistas como heróis do povo: era sempre assim que eu imaginava os comunistas, não criaturas como nós, falando como nós, não homens, não pessoas, não os demônios ou os enviados do demônio que o meu padrinho anunciava, apenas máscaras de entrudo, óculos de papelão, narizes de cartolina, barbas postiças, balandraus rasgados valsando num porão, obedecendo ao secretário que os animava com a pistola ― Alegria alegria o general no pavor desses palhaços tristes que se limitavam a esperar que os fuzilássemos entre a garagem e o muro e os transportássemos a Cabo Ruivo a jogá-los ao Tejo [...]. (ANTUNES, 2001, p.286).

Inseridas na diegese pela voz de Fátima, afilhada do bispo e a narradora do trecho anterior, os opressores discursos religioso e político são contrapostos à descrição caricata, próxima do grotesco e do bufão que se faz dos comunistas. Desse modo, o perigo vermelho é relevado à insignificância e com ele a justificativa para “guerra santa” proclamada pelo bispo e todas as movimentações de guerrilha por parte dos terroristas, e, na boleia do discurso romanesco, os acontecimentos registrados pelo discurso histórico seguiriam o mesmo rumo. Nesses trechos, o leitor depara-se com a veia grotesca que traduz “a relação perturbada com o mundo”, impelindo ao riso exasperado que confere:

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distanciação, denegação ou erosão, o riso que provém [...] de uma quebra do expectável, e que pode traduzir-se no humour que tanto interessou os românticos, riso parente da ironia, nervoso e “spleenático”, que detecta as degradações, os paradoxos, as máscaras, os enganos e desenganos [...]. (MEINDEL, 2005, p.25).

Suprimidas as máscaras da face da história, o discurso romanesco volta-se (retorna?) ao leitor, que se denuncia pelo riso nervoso que não consegue conter, descobrindo-se, o leitor, cúmplice dos paradoxos apresentados pelo romance. No último capítulo, Simone numa carta à amiga Gisélia desmente as versões jornalísticas sobre os atentados, especialmente aquelas que citam seu namorado como “presumível autor material” das bombas. A teia narrativa nesse capítulo é tecida pelo tom ao mesmo tempo confessional e inocente de Simone: o meu namorado [...] a fabricar não sei quê ligando fios amarelos e azuis aos ponteiros do despertador e unindo-os aos tubos em que não posso tocar, carregava-os da pasta para a mesa em precauções demoradas, ao esconder a pasta embrulhava-a em toalhas [...] (ANTUNES, 2001, p. 349).

Ou por vozes testemunhais: [...] um homem de terno de ganga que se intitulava jardineiro e afirmava trabalhar para ela [...] garantia que passava as tardes numa cadeira do terraço vigiada por antigos polícias (ANTUNES, 2001, p.349).

Os excertos de manchetes da imprensa falada e escrita são negados pela namorada do chofer, suscitando a descrença em relação ao discurso jornalístico, mas, por isso mesmo, revelando-o e trazendo 13


novamente à baila os acontecimentos a fim de proporcionarem sua releitura, não no sentido de ler para entender, mas ler para descobrir, desvelar: “o desgraçado que a rádio e os jornais transformaram de súbito, por necessidade de leitores e patrocínios, em presumível autor material” (ANTUNES, 2001, p. 346). Assim, o leitor percebe que a vivenda onde se faziam as reuniões e as bombas explode com todos os integrantes da rede de bombistas dentro da casa: “[...] não sei se te recordas da vivenda entre Sintra e Lisboa que explodiu há uns tempos, páginas e páginas nos jornais [...]” (ANTUNES, 2001, p.343). Revela-se a identificação dos bombistas: meia dúzia de cadáveres lá dentro de acordo com um semanário de escândalos (calcula até onde vai a má língua) pertenciam a um grupo saudoso da ditadura que perseguia democratas e pessoas de bem (democratas!) com metralhadoras, petróleo, explosivos caseiros, fotografias dos bandidos nas primeiras páginas, um oficial do exército, um oficial da marinha, um dono de hotéis, parece que mulheres, um diário socialista insinuava que um bispo [...]. (ANTUNES, 2001, p.343).

Ajudam a compor o cenário deste último capítulo, no qual o tom polifônico atinge altos decibéis, as teses conspirativas desenvolvidas à época do acidente de Camarate, e ainda hoje presentes, como já dissemos, nas discussões políticas de Portugal. Uma delas seria a de que o alvo do atentado seria o Ministro da Defesa, que investigava suspeitas de contrabando de armas envolvendo o Fundo de Defesa Militar do Ultramar, a CIA e a guerra Irã-Iraque (FERNANDES, 2001). Todo esse contexto é percebido no romance em pequenos trechos, sutil e estrategicamente colocados pelo autor, aparentemente 14


desconexos à trama, porém funcionando como elementos instigantes no jogo de montagem proposto pela narrativa desde seu início: “[...] o general a indignar-se com o secretário apontando os estrangeiros reunidos em conferência com o embaixador da América, sem lhe pedirem opinião [...]” (ANTUNES, 2001, p. 124); “[...] ou comprar armas a pides ou americanos ou persas [...]” (ANTUNES, 2001, p.350). O questionamento também se direciona para o discurso diegético, que se autoquestiona pela ironia do último capítulo, onde se revela a imagem de um quebra-cabeça aos poucos construído pela narrativa que dá a sua versão dos fatos. Assim, EAC apresentase como um dossiê intimista sobre uma das épocas mais violentas em Portugal e transforma-se em caixa-preta de certo momento do discurso histórico. Este, por sua vez, estabelece-se nos confrontos: entre os discursos da violência e o do sonho (o primeiro representado pelas vozes dos homens integrantes da rede bombista, o segundo pelas vozes das mulheres ligadas a esses homens); entre os ruídos do mundo externo e os do mundo interno (sons que se alternam no íntimo das quatro mulheres, particularmente no deslocamento temporal, para usar um termo de Maria Alzira Seixo (2002), que realizam frequentemente); por fim, entre a versão oficial e a literária para o embate político entre a extrema-direita e a extrema-esquerda que conturbaram Portugal a partir do verão de 1975. Dessa forma, encontramos um processo de construção da narrativa que transporta o leitor para o universo das notícias que circulavam no período histórico que Lobo Antunes usa como pano de fundo para apresentar os conflitos de suas personagens. Possivelmente, a essa altura, para o leitor, não há mais possibilidade 15


para uma escolha entre crença e descrença, visto que os fatos, ficcionais ou históricos, não mais se estabelecem por uma relação dicotômica. Em nosso auxílio, encontramos as palavras de Mignolo (1993, p.125): “A convenção de ficcionalidade não é, ao que parece, uma condição necessária da literatura, ao passo que a adequação à convenção de veracidade, ao que parece, é condição necessária para o discurso historiográfico”. Ao circular por esse universo, munido das ferramentas oferecidas pela ficção, o leitor pode atravessar os limites das convenções, como nos alerta Mignolo, e, livremente, estabelecer semelhanças entre realidade e ficção para, também livremente, construir suas próprias versões e, quem sabe, aceitar os boatos da literatura como um caminho para identificar os boatos da história que sorrateiramente se apresentam como fatos.

Referências bibliográficas ANTUNES, A. L. Exortação aos crocodilos. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. ______. Fado Alexandrino. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. ECO, U. Seis passeios pelo bosque da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. FERNANDES, R. S. O Crime de Camarate. Lisboa: Bertrand, 2001.

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GOMES, A.; CASTANHEIRA, J. P. Os dias loucos do PREC: do 11 de Março ao 25 de Novembro de 1975. Lisboa: Expresso/Público, 2006. MEINDEL, D. et al. O grotesco. Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras, 2005. MIGNOLO, W. Lógica das diferenças e política das semelhanças: da literatura que parece história ou antropologia e vice-versa. In: CHIAPPINI, L.; AGUIAR, F. (Org). Literatura e história na América Latina. São Paulo: Edusp, 1993. p. 115-134. PRAÇA, A. et al. 25 de Abril: documento. 2.ed. Lisboa: Casa Viva, 1974. SEIXO, M. A. Os romances de António Lobo Antunes: Análise, interpretação, resumos e guiões de leitura. Lisboa: Dom Quixote, 2002. WHITE, H. O texto histórico como artefato literário. In:___. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. 2.ed. São Paulo: Edusp, 2001. p. 97-116.

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UMA CIDADE EM FRAGMENTOS: UMA TESSELA NARRATIVA Antonio Rodrigues BELON (UFMS - Três Lagoas - MS) arbelon@uol.com.br RESUMO: O artigo estuda eles eram muitos cavalos (2001), de Luiz Ruffato, representação da cidade de São Paulo, a urbe, ao orbe, ao mundo dos humanos em geral, onde as personagens vivem e perambulam. A estrutura fragmentária, caleidoscópica tem uma relação profunda com um dos objetivos de toda a narração. O cenário, construído (tessela) pelos fragmentos e pelas muitas vozes, remete à condição de ruína da realidade urbana contemporânea e a polifonia possibilita a visão da urbe em suas relações: não há uma voz que se imponha às outras, cada uma tem sua visão, tão real quanto às demais. PALAVRAS-CHAVE: eles eram muitos cavalos; Luiz Ruffato; tesselas Eles eram muitos cavalos (2001), de Luiz Ruffato, representação da paulicéia com toda a sua problemática, por meio da estrutura composta de “rigorosas e cruéis instantâneas do dia-a-dia de São Paulo, elaboradas a partir de materiais heterogêneos, como diálogos, monólogos, anúncios publicitários, cartas, bilhetes, orações, flashes da realidade colhida nas várias dimensões: sonora, visual, tátil, olfativa, enfim sinestésica”. (OLIVEIRA, 2007, p.147). A estrutura fragmentária, caleidoscópica tem uma relação profunda com um dos objetivos de toda a narração: a história de vida da personagem, a cidade de São Paulo, contemplada do mais alto de 19


seus edifícios, ou do avião que se aproxima, à noite, dos aeroportos de Congonhas ou Cumbica, enquanto, em terra, uma visão descerra uma abrangente paisagem: a interpretação tendo como suporte os fragmentos. O cenário, construído pelos fragmentos e pelas muitas vozes, remete à condição de ruína da realidade urbana contemporânea e a polifonia possibilita a visão da urbe em suas relações: não há uma voz que se imponha às outras, cada uma tem sua visão, tão real quanto às demais (BAKHTIN, 2002). A narrativa organiza, temporal e espacialmente, o orbe, um mundo da ficção; evidencia uma realidade, num percurso do caos da cidade à cosmogonia (tessela), narrativa por fragmentos, por estilhaços, de uma urbe em ruínas, maltratada e ofendida. A união dos fragmentos não mostra somente a urbe partida e fragmentária das personagens, proporciona uma visão da sociedade em tesselas, em conjuntos fragmentários. O discurso fragmentado de Luiz Ruffato exibe os problemas sociais da contemporaneidade e aborda questões da classe operária nos centros urbanos, associando modernas técnicas cinematográficas para representar as máscaras do cotidiano. Em eles eram muitos cavalos são abordados os problemas especificamente de São Paulo e o processo de migração, formador da classe operária. A temática dos fragmentos da obra está comprometida com a realidade social do Brasil contemporâneo e abarca uma consistente crítica ao sistema social da capital paulista (e do capital paulista), a denúncia presente em todo o projeto literário desse autor. Embora essa crítica não esteja explícita na narração, integra uma reflexão sobre os temas, falando da angústia das pessoas, na atualidade, e seu sentimento de impotência diante dessa realidade violenta que as oprime; aborda, também, os 20


horrores, a violência, os amores e carências da grande metrópole brasileira. A narrativa linear, 69 fragmentos, tendo como eixo unificador um dia – 9 de maio de 2000 - na maior cidade brasileira: os flashes de seus habitantes e do dia-a-dia da cidade. O texto é um quebra-cabeça formado por estilhaços da vida urbana. Estes estilhaços nos oferecem uma visão parcial de tragédias (ou quase tragédias) individuais, sociais e econômicas que se multiplicam na megalópole brasileira. Por isso, a São Paulo de Ruffato compõe-se de vários recortes que captam, fugazmente, a multiplicidade socioétnica da maior cidade brasileira. (LEHNEN, 2007, p. 80).

Os textos ruffatianos articulam, dialeticamente, os elementos de ordem social com os elementos de ordem estética; um trabalho artístico na ruptura das convenções tradicionais de linguagem e de composição: transgredindo a gramática, subvertendo a sintaxe, criando palavras e inaugurando uma poética, a exemplo de grandes criadores. Da leitura dos fragmentos emerge a dura realidade dos explorados e oprimidos no caos urbano. Como os sistemas urbano, social, político, e econômico falharam em fornecer espaços e recursos básicos para estes necessitados, talvez um dos primeiros passos no caminho para entender este problema massivo é por meio da expressão da arte e da cultura. (VIEIRA, 2007, p.128).

A modernização de São Paulo passou pelas agruras da urbanização com todas as conseqüências para a sociabilidade dos efeitos sofridos e gerados pelo capitalismo. Remete à condição de 21


ruína da realidade urbana contemporânea, representa na ficção essa realidade desordenada com poucas possibilidades de solução dos problemas enfrentados pelos paulistanos. Na esquina com a Rua Estados Unidos, o tráfego da Avenida Rebouças estancou de vez. Henrique afrouxou a gravata, aumentou o volume do toca-cedê, Bettty Carter ocupou todas as frinchas do Honda Civic estalando de novo, janelas cerradas, cidadela irresgatável, lá fora o mundo, calor, poluição, tensão, corre-corre. Meninos esfarrapados, imundos, escorrem água nos pára-brisas dos carros, limpam-nos com um pequeno rodo, estendem as mãozinhas esmoleres, giletes escondidas entre os dedos, arranjos de estiletes em buquê de flores, cacos de vidro em mangas de camisa. (RUFFATO, 2005, p.81).

Problematiza a questão do urbano não apenas focalizando nas cidades, não apenas a metrópole com seus engarrafamentos, seus parques, ou o dinheiro correndo por entre os conglomerados econômicos; estabelece uma cumplicidade no acompanhamento de um dia marcado pela violência, pelo oportunismo, pela corrupção, pelo sonho, pelo medo, pela coragem, contraditoriamente, representa “a crise do espaço metropolitano, e por meio dessa articulação criticam o colapso da polis como um território de participação e comunicação, e sua substituição pelos não-espaços da globalização” (LEHNEN, 2007, p. 78). No trecho um exemplo da representação do espaço urbano fraturado e da violência social resultante: 9. Ratos Um rato, de pé sobre as patinhas, rilha uma casquinha de pão, observando os companheiros que se espalham nervosos por sobre a imundície, como personagens de um videogame. Outro, mais ousado, experimenta mastigar um pedaço de pano emplastrado de cocô mole, ainda fresco, e, 22


desazado, arranha algo macio e quente, que imediatamente se mexe, assustando-o. No após, refeito, aferra os dentinhos na carne tenra, guincha. Excitado, o bando achega-se, em convulsões. O corpinho débil, mumificado em trapos fétidos, denuncia o incômodo, o músculo da perna se contrai, o pulmão armase para o berreiro, expele um choramingo, entretanto, um balbucio de lábios magoados, um breve espasmo. A claridade envergonhada da manhã penetra desajeitada pelo teto de folhas de zinco esburacadas, pelos rombos nas paredes de placas de outdoors. Mas, é noturno ainda o barraco. (RUFFATO, 2005, p. 20-21)

No mesmo espaço da cidade imagens se iluminam e avizinham homens e ratos; uma representação da pobreza numa tensa semelhança, indigna e real, mas ainda assim poética. O fazer ficcional de Luiz Ruffato põe questões. Sua marca principal é a mistura de linguagem e o trânsito incontido entre factual e ficcional, uma marca das produções literárias contemporâneas. “É essa opção de não se colar à realidade extratextual que corrói o aspecto tautológico da linguagem e revela o seu caráter ficcional atado aos registros múltiplos e artificiosos do discurso”. (GOMES, 2005, p.183). A linguagem põe abaixo os limites entre a ficção e a realidade. “É o artifício da linguagem, portanto, que possibilita revelar a crueldade da inelutável realidade urbana de um Brasil contemporâneo, sublinhado a própria crise da representação”. (GOMES, 2005, p.183). A linguagem assume características especiais e estabelece uma nova ordem para as coisas representadas, permitindo a criação de novos universos, mas conservando um elo com o real. A cidade na sua diversidade humana e social: traficante de armas a bordo de uma Mercedes; empresário com filhos problemáticos (drogados); casais desfeitos; crianças roídas por ratos em barracos imundos; gente assassinada em seqüestros relâmpagos; vendedores 23


ambulantes; velhos sem mercado de trabalho; famílias vivendo aglomeradas em caixas-apartamentos; pastores pregando em praça pública; pedintes; vendedores de balas; assaltantes; motoristas de táxi contando suas vidas aos passageiros; recordações da vida boa do interior deixada pra trás em nome do dinheiro e da sobrevivência. Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, registra um só dia na vida em São Paulo. Essa vida, no singular, feita de muitas vidas e sobrevivências. A linguagem fragmentada reflete a correria da maior metrópole da América do Sul. O ritmo rápido da vida urbana leva à falta de comunicação, ao rompimento, ou ao não-estabelecimento de relações pessoais e sociais significativas “mas nós não nos conhecíamos. Nos vimos algumas vezes no elevador de serviço, a caminho da garagem do prédio, uma ou outra vez na piscina [...]” (RUFFATO, 2005, p.46). Os contatos ocorrem de forma passageira, superficial, pois a cidade, com sua ênfase no movimento, na eficácia, e também por causa da sua propagação de espaços anônimos e, finalmente, de territórios e sujeitos ameaçadores, limita a intensidade dos contatos sociais e pessoais. A desestruturação social predomina no espaço público da cidade e articula em causa e em efeito a violência desenfreada. A trama de discursos e práticas que cruzam o espaço urbano produzem um território geográfico, social e epistemologicamente esfacelado. Ao autor interessam, justamente, essas tesselas, e delas ele retira a linfa com a qual compõe toda a sua obra. Para isto, contribui sem dúvida a própria experiência pessoal, de menino crescido em uma pequena cidade do interior, em contato com mazelas de pequenas vidas, que são grandes só para quem as vive. A estas vidas ele retorna nos romances sucessivos, construindo um pungente quadro da realidade social brasileira. (OLIVEIRA, 2007 p.147). 24


Referências bibliográficas BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiéwski. Tradução direta do russo, notas e prefácio Paulo Bezerra. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. GOMES, R. C. Outras flores do mal: desmesura da violência e ordem da representação do espaço urbano. In JOBIM, José Luís et alii (org.). Sentidos dos lugares. Abralic, 2005. p. 173-189. LEHNEN, L. Os não-espaços da metrópole: espaço urbano e violência social em Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma cidade em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. Vinhedo - SP: Horizonte, 2007. p. 77-91. OLIVEIRA, V. L. Eles eram tantos corações, corpos, consciências. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma cidade em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. Vinhedo - SP: Horizonte, 2007. p. 146-154. RUFFATO, L. Eles eram muitos cavalos. 3.ed. rev. Rio de Janeiro: Record, 2005. VIEIRA, N. H. O desafio do urbanismo diferencial no romance de Luiz Ruffato: espaço, práxis e vivencia social. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma cidade em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. Vinhedo - SP: Horizonte, 2007. p. 119-131.

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MIGUEL DE UNAMUNO: A RECUSA AOS RÓTULOS EM BUSCA DO NOVO Cristiane Agnes Stolet CORREIA (UFRJ) cristianeagnesc@gmail.com RESUMO: No presente trabalho, busca-se repensar as noções de romance e trágico a partir da obra do pensador espanhol Miguel de Unamuno, valendo-se, principalmente, de duas obras do autor: Del sentimiento trágico de la vida en los hombres y en los pueblos (“Do sentimento trágico da vida nos homens e nos povos”) e Cómo se hace una novela (“Como se faz um romance”). PALAVRAS-CHAVE: Unamuno; trágico; romance. Entendendo o contemporâneo não como o datado nos dias atuais, mas como o próprio Unamuno o compreendia, como aquilo que tem atualidade permanente, as contribuições deste pensador espanhol são de grande valia no horizonte de nosso tempo. O foco do presente trabalho recai no capítulo intitulado Comentario da edição espanhola do livro Cómo se hace una novela do autor. Vale apresentar em linhas gerais o contexto de dita edição. Estando a Espanha afogada pela ditadura de Miguel Primo de Rivera (que teve início em 1923), Unamuno foi viver no exílio, primeiro nas Ilhas Canárias, depois na França. Escreve Cómo se hace una novela quando se encontra em Paris. Entrega o texto original a seu amigo Jean Cassou, que se encarrega de traduzi-lo ao francês e publicá-lo. Além disso, Cassou antecede ao texto unamuniano um tópico ao qual 27


chama Retrato de Unamuno, onde apresenta sua concepção sobre o autor. A publicação francesa sai em 1926. Cassou entrega o texto original a Heinrich Auerbach, já que este tinha a intenção de traduzilo ao alemão. Em 1927, Unamuno, sem posse do escrito originalmente, retraduz seu texto ao espanhol, utilizando-se da versão francesa, mas ampliando-o significativamente. O procedimento aumentativo do autor ao re-redigir o texto para a edição espanhola é o seguinte: acrescenta um prólogo, mantém o texto de Cassou intitulado Retrato de Unamuno, mas responde-o com um capítulo chamado Comentario. Nesta “seção”, Unamuno desconstrói uma série de nomenclaturas que Cassou utiliza, de certa maneira, para classificá-lo. Busca-se no presente trabalho, portanto, analisar a complexa resposta do autor, repensando alguns conceitos, como romance e trágico, valendo-se também de outros escritos seus que dialogam diretamente com as questões que se apresentam. Vale ressaltar que, ainda que Miguel de Unamuno tenha atuado em várias esferas (tendo sido professor, filólogo, poeta, filósofo, ensaísta, romancista, etc), toda a sua obra converge para uma grande unidade. Assim sendo, falar do tópico Comentario no texto Cómo se hace una novela é também falar de sua filosofia (difundida principalmente pelo livro Del sentimiento trágico de la vida en los hombres y en los pueblos) e de sua ampla literatura. O mesmo se dá com o movimento contrário. Unamuno sempre insistiu em recusar as classificações e os rótulos que os críticos da época já queriam lhe impor. Em Comentario, esta postura se mostra nitidamente. No Retrato de Unamuno, escrito por Cassou, este diz, entre outras coisas, que Miguel de Unamuno é paradoxal, niilista e apenas comentarista. 28


Fazendo uso desta última noção, Unamuno intitula sua resposta de Comentario. Mas questiona se tudo o que tem sido escrito até então não constitui comentário, se a história mesma não se tece a partir de comentários. Afinal, o homem se sente impelido a comentar, seja por não conhecer e buscar o conhecimento, seja por querer adentrar o que vê e adentrar-se1. Como o texto espanhol está sendo retraduzido do francês, o autor declara ainda que acrescentará comentários à edição anterior, os quais aparecerão entre colchetes. Repetidas vezes lê-se que a maneira de se fazer um romance é fazendo-o, assim como de viver a vida é vivendo-a. Não se admitiria, portanto, em ambos os casos, um plano prévio com todos os passos a serem seguidos. O surpreender-se e o descobrir-se fazem parte do caminhar vital. Refuta-se, desta maneira, a compreensão da literatura enquanto sistema que, como tal, mostra-se fechado em gêneros, inapto a invenções, a modificações substanciais. Eis as palavras do autor: “o sistema ─ que é a consistência ─ destrói a essência do sonho e com ele a essência de vida.” (UNAMUNO, 2009, p. 128) Daí, portanto, a invenção da palavra nivola por parte do autor espanhol, em lugar de novela. Se à noção de novela já se incorpora uma série de características tidas como imprescindíveis, nada melhor do que inventar um outro nome para aliar a este o que se queira, fugindo, assim, do que já esteja petrificado e gasto pelo uso. As criações unamunianas se multiplicam no decorrer de toda a sua obra, ousaria dizer que todas embasadas na sua compreensão do trágico querer humano, que consiste em lutar por perdurar, por não sucumbir, por permanecer. Deste modo, o romance se mostra como terreno fértil onde o homem busca resistir e perseverar em seu ser. 1 Vale ressaltar que o uso de ¡Adentro! é constante na obra de Miguel de Unamuno. Ele não incita o leitor a ir adiante (olhando sempre em frente e seguindo o fluxo), mas convida-o e instiga-o a voltar-se para dentro. 29


Unamuno ilustra a agonia trágica, humana: É certo, o Augusto Pérez da minha Névoa me pedia que não lhe deixasse morrer, mas ao mesmo tempo que lhe ouvia (...) ouvia também aos futuros leitores do meu relato, do meu livro, que enquanto o comiam, acaso devorando-o, me pediam que não lhes deixasse morrer. (UNAMUNO, 2009, p. 120)

Ao livro dá-se o status de alimento, passando a ser compreendido, assim, como um dos elementos essenciais para a manutenção da vida. À voz do personagem se soma à voz dos leitores. Todos se encontram na mesma condição. O próprio de uma individualidade viva, sempre presente, sempre mutável e sempre a mesma, que aspira a viver sempre ─ e sua aspiração é sua essência ─, o próprio de uma individualidade que o é, que é e existe, consiste em alimentarse das outras individualidades e dar-se a elas em alimento. (UNAMUNO, 2009, p. 125)

Eis o que Unamuno entende, pois, como romance: o dar-se como alimento. Tal percepção culmina na perspectiva de que todo romance é autobiográfico. Pode-se dizer que em Cómo se hace una novela, tal entendimento aparece em uma lente de aumento, já que o protagonista da história se chama U. Jugo de la Raza. Vejamos a explicação deste nome nas palavras do próprio autor: “U. é a inicial do meu sobrenome; Jugo o primeiro do meu avô materno (...) Larraza é o nome (...) da minha avó paterna.” (UNAMUNO, 2009, p. 140) Equivale-se, portanto, o autor ao personagem. Autor também se converte nitidamente em leitor, visto que, com a reescritura da obra, o Unamuno deste momento faz seus comentários entre colchetes, 30


sendo leitor não só do que está escrevendo (em espanhol), como também do que escreveu, de certa maneira, na edição francesa. O desdobramento do mesmo reflete a multiplicidade de papéis que cada um pode assumir, além da heterogeneidade que cada um comporta em seu próprio ser. Tal diversidade também desponta no interior dos personagens unamunianos, sendo talvez o mais recorrente e primordial na obra do autor. Afinal, os romances de Unamuno não mostram uma preocupação com características físicas, descrições externas, contextualização histórica (com exceção de Paz en la guerra), mas se pautam nos dramas íntimos, na luta que cada um trava dentro de si que, o que, por ser o mais intimamente pessoal, constitui o mais universal, o comum a todos os homens. De acordo com Unamuno, a luta interna de cada ser humano se perfaz principalmente entre o racional e o não racional, mas assume desdobramentos como: a confusão entre realidade e ficção, criador e criatura, consequentemente, autor e personagem, ser real-existente e ser ficcional-não existente. Todos estes termos passam a ter seus lugares tradicionais colocados em xeque. Na parte final de seu comentário, por exemplo, Unamuno agradece a Cassou, dizendo que ele, o retratado, fez o autor do retrato. Claro: se não houver retratado, não há autor de retrato. Dizendo de modo mais amplo: se não houver criatura/criado, não há criador. Cabe transcrever a famosa pergunta do personagem Augusto ao seu autor em Névoa: “Quando um homem adormecido e inerte na cama sonha algo, o que mais existe: ele como consciência que sonha ou seu sonho?” (UNAMUNO, 2007, p.256) A localização da origem do personagem no autor é questionada, 31


assim como a origem do romance na vida. Desconstrói-se a noção de verossimilhança. Para Unamuno, obra é vida e vida é obra. Portanto, a relação entre sonhador e sonhado, entre vida e ficção borra-se em névoa. As fronteiras parecem desvanecer-se e o limite passa a ser o não limite do sonho. Em Cómo se hace una novela, não há uma estruturação linear da narrativa. Como o fluxo do pensamento, as mudanças de focos e de perspectivas são constantes. O personagem é multifacetado, assim como a obra, assim como a vida. Declara-se ainda que o romance carece de argumento, também como a vida. Na verdade, o enredo mesmo é mínimo, o que se sobressai são as questões que dele advêm. A história se baseia em um personagem que compra um livro e começa a lê-lo. Depara-se com a informação de que ele, o leitor, morrerá ao terminar de ler o livro. Com o fim do romance, sua vida também terminará. Todo o texto se tece com o dilema vivido pelo personagem que vacila entre ler/viver a história e com ela morrer ou deixá-la de lado, não vivê-la. O intento autobiográfico repensa o que constitui o romance. Autor, ator e leitor passam a ser o mesmo em constante diálogo trágico, em interminável contradição. Os vários “eus” perfazem o drama íntimo vivido pelo indivíduo no romance de sua vida. Lendo, atuando e criando vive-se o romance vital onde não há certezas, onde a dúvida não tem fim. Eis a primordial noção unamuniana do romance: é vida que, como tal, tem trágica natureza. Cabe, portanto, apreender o que vem a ser esta natureza na visão de Miguel de Unamuno. Vejamos dois trechos do autor:

E o mais trágico problema da filosofia é o de conciliar as

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necessidades intelectuais com as necessidades afetivas e volitivas. Pois aí fracassa toda filosofia que pretende desfazer a eterna e trágica contradição, base da nossa existência. (UNAMUNO, 1996, p. 15) Mas será que podemos conter esse instinto que leva o homem a querer conhecer e, sobretudo, a querer conhecer o que leva a viver, e a viver sempre? A viver sempre, não a conhecer sempre (...) Porque viver é uma coisa e conhecer outra; e, (...) talvez haja entre ambas tal oposição, que possamos dizer que tudo o que é vital é anti-racional, e não só irracional, e tudo o que é racional, antivital. Esta é a base do sentimento trágico da vida. (UNAMUNO, 1996, p. 33)

A partir das citações, percebe-se que o trágico reside na insolúvel contradição existencial. O homem tem dentro de si o clamor da vida que se quer tão somente ser vivida, e ao mesmo tempo o anseio racional que tudo quer entender e explicar. Diz Unamuno que a tentativa de “conciliar as necessidades intelectuais com as necessidades afetivas e volitivas” faz fracassar a filosofia. Afinal, não há conciliação, pois “tudo o que é vital é antiracional (...) e tudo o que é racional, antivital”. Eis a apreensão unamuniana central do trágico: a interminável luta entre o racional e o vital que se perfaz em cada homem. É possível afirmar que a razão faz parte da vida, mas não o contrário, que a vida faz parte da razão. A vida abarca o todo e, neste todo, há um lugar que pode ser ocupado pela razão. Esta, assim sendo, só ganha espaço porque há vida, e vida que também quer ser pensada2 (ainda que nas suas individualidades). Daí a razão da razão. 2 Cabe aqui retomar o essencial de pensar, que reúne interno e externo, raciocinar e cuidar, visto que “pensar” significa não só raciocinar e refletir, como também colocar penso, curativo para tratar um ferimento. Esta ideia foi desenvolvida no subcapítulo de minha dissertação de mestrado intitulado O pensar como saber 33


A razão da vida parece não existir e, se existe, é inapreensível pela nossa capacidade intelectual que busca fixar âncora em um porto seguro. Tende-se a buscar uma causa para tudo que se vivencia, mas o fato é que as causas sempre serão questionáveis, sempre vacilarão, nunca se fixarão em uma estrutura inabalável, por mais que alguns assim o queiram. Todavia, “é trágico e de sempre o problema, e quanto mais quisermos fugir dele, mais vamos dar nele”. (UNAMUNO, 1996, p.44) Não há opção. Enquanto houver vida em nós, se quisermos que esta valha assim ser chamada, não devemos “procurar justificação alguma para esse estado de luta interior, de incerteza e de anseio: é um fato e basta”. (UNAMUNO, 1996, p. 124) Não confundamos este bastar, porém, com o fim do caminho, com a acomodação, com a desistência de se pensar a questão. Não é isso. Acabar com a tentativa de resolver o problema sim (já que este se instaura como enigma mesmo), mas não deixar de pensá-lo, pois é neste intento que o homem se perfaz, no sentir a ferida que não se cura. Aqueles que não encaram a questão essencialmente trágica podem ser o que Unamuno chama de “estúpidos afetivos”. Ele diz: Esses estúpidos afetivos dotados de talento costumam dizer que não adianta querer penetrar o inescrutável, nem rebelarse. É como dizer a alguém cuja perna teve de ser amputada que de nada adianta pensar nisso. E a todos nós falta alguma coisa, só que uns sentem e outros não. (UNAMUNO, 1996, p. 16)

Semelhante sandice também é ilustrada em outro contexto no procedimento de alguém que age com base no puramente racional: trágico, onde busco mostrar a equivalência entre ambas as noções. 34


“Um pedante que viu Sólon chorar a morte de um filho lhe disse: Para que chora assim, se não adianta nada? E o sábio respondeu: Precisamente por isso, porque não adianta nada.” (UNAMUNO, 1996, p. 16) Ambos os exemplos vivificam o que foi dito sobre o trágico até então. O sábio diz chorar exatamente por saber que está diante do insolúvel. A razão aqui não dá conta de apaziguar a dor que sente com a perda. O sentimento não pode ser reduzido a uma série de sentenças lógicas. A tentativa de se tomar o racional como único parâmetro culmina na total insensibilidade. Imaginar alguém que perdeu um membro e nem por isso deixa de pensar nele, ou melhor, talvez por isso mesmo é que o membro perdido passe a ser mais pensado, também traduz perfeitamente o que é este sentir trágico. É no sentimento de impossibilidade de mudança que o homem chora sua sentença trágica. O homem aspira “a viver sempre, não a conhecer sempre” (UNAMUNO, 1996, p. 33), como nos lembra bem Unamuno. Por mais que saiba que esta ânsia não se resolva, já que não se alcança o que se busca, é assim que o caminho humano se apresenta. Quando Unamuno diz que “o sentimento trágico da vida é um sentimento de fome de Deus” (UNAMUNO, 1996, p. 162-163), ele apreende esta vontade trágica do homem de se fazer imortal. No pensador Miguel de Unamuno (como em tantos outros), o insistente querer acabou lançando-o no horizonte da imortalidade, pois, desejando ser sempre inteiro e abismático (de ab-ismo, distante de todos os ismos, de todos os sistemas), revive em suas obras e em seus leitores. Ele comentava com relação às primeiras: 35


O que me importa que não leias, leitor, o que eu quis pôr nela, se é que lês o que te acende em vida? Parece-me bobo que um autor se distraia em explicar o que quis dizer, pois o que nos importa não é o que quis dizer, mas sim o que disse, ou melhor o que ouvimos. (UNAMUNO, 2009, p. 121)

Que possamos ouvir muito profundo, adentrando-nos. Pois “a vida, que é tudo, e que por ser tudo se reduz a nada, é sonho” (UNAMUNO, 2009, p. 127). Resta-nos tão somente criar romances e vivê-los. Sem respostas para muita coisa, que possamos ser embalados por sonhos. Mas que dos sonhos despontem nossas ações. Ainda que pareçam impossíveis. Afinal, como diz Unamuno, “quem não aspira ao impossível não fará nada factível que valha a pena.” (UNAMUNO, 1996, p. 269) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS UNAMUNO, Miguel de. Cómo se hace una novela. Madrid: Cátedra Letras Hispánicas, 2009. ______ Do sentimento trágico da vida. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996. ______ Niebla. Madrid: Alianza Editorial, 2007.

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APROPRIAÇÃO DA CRÔNICA COMO LITERATURA DE MASSA Fernando Moreno da SILVA (UNESP/Araraquara) fermosilva@yahoo.com.br RESUMO: A proposta inicial deste trabalho é investigar o fenômeno da leitura sob o ponto de vista do leitor, buscando os livros mais lidos. A definição do corpus deste trabalho surgiu quando a revista semanal Veja trouxe em sua capa, de 12/3/2003, o sucesso de vendagem dos livros de Luís Fernando Veríssimo, destacando-o como o escritor mais lido no país. Além de teorias que tratam do fenômeno do riso, a pesquisa foi norteada pela semiótica francesa ou da Escola de Paris, focando o eixo da enunciação para traçar um perfil do enunciatário desses textos. O que se pode estabelecer, por alto, é que à imagem desse destinatário cabe um leitor descompromissado com a leitura, que busca nessa atividade o lazer ou o passatempo. PALAVRAS-CHAVE: crônica; best-seller; literatura de massa.

1. O Best-seller A ideia de best-seller tem seu germe no século XVIII. Até então, os artistas viviam às expensas do mecenato. Cada obra gozava da “aura mística”, conforme Walter Benjamim definiu a autenticidade da criação artística. Talvez duas modalidades que ainda conseguem abster-se da 37


produção em massa sejam as artes plásticas, notadamente a pintura, e o teatro, no qual cada representação é única. Quanto ao impresso, há um aumento vertiginoso. Quando o mecenato é substituído pelo incremento de leitores, a originalidade fica ameaçada. Resta ao escritor uma escolha: buscar a emancipação artística, mantendo a autenticidade de seus escritos, contudo sem o retorno financeiro; ou se submeter às exigências dos leitores para garantir a independência financeira. Desta dupla possibilidade, artística ou mercadológica, nasce a oposição entre literaturas erudita e trivial. Com o primeiro gênero, a Literatura culta ou alta Literatura, grafada em maiúscula, estão escritores como Machado de Assis, Jorge Luís Borges e Guimarães Rosa. Ao segundo grupo, grafado em minúsculo, pode-se dar nomes como literatura trivial, subliteratura, literatura de entretenimento, de massa ou de mercado. E, quiçá, a denominação mais comum: best-seller. Nota-se que todos os termos estão ligados sempre ao mercado, ou seja, os livros que alcançam prodigioso sucesso de público. Enquanto o texto culto é sempre agraciado pelo reconhecimento de uma instituição, sobretudo a Academia, a literatura de massa não tem o mesmo respaldo, sendo produzida com vistas ao jogo econômico. Aqui está a primeira noção da expressão “best-seller”, referindo-se a uma avaliação quantitativa de vendagem. Não foi tão-só a evolução técnica que proporcionou à literatura de massa seu desenvolvimento. Seu primeiro impulso foi experienciado sob a forma de folhetim (em francês, feuilleton). Expressão originalmente criada na França, em 1836, no jornal La Presse, o folhetim surge ligado à indústria cultural. Eram narrativas 38


inseridas no rodapé das páginas dos jornais, divididas em capítulos. Em virtude da censura ordenada por Napoleão Bonaparte, os jornais foram obrigados a ocupar os espaços em branco com textos destinados ao entretenimento. Institui-se a novela do século XIX. A maioria dos romances desse período foi dado à luz em capítulos nos jornais. Parte dos escritores de renome deu os primeiros passos da carreira nessas publicações. A utilização desse suporte — o jornal — dava-se também pelas dificuldades técnicas para edição de livros. Foi uma moda inovadora para o Brasil. Com teor romântico, o material era lido pela classe alta, e, em menor proporção, pela classe média, à procura de entretenimento. Quanto maior e mais diversificado o público leitor, mais complicado agradá-lo. O escritor, por fim, sucumbe às necessidades de obedecer às normas socialmente aceitas que facilitem o consumo. Ele escreve o que o leitor quer ler. Entre as temáticas que mais agradam aos consumidores, percebe-se a constância de crime, amor, sexo e aventura. Tem-se, igualmente, a presença inconfundível do herói. É uma forma de o leitor projetar-se na intriga, ensejando o desejo de potência, espelhado no protagonista, de escapar a leis do cotidiano repetitivo e monótono. É uma espécie de fórmula à qual já atentava Marshall McLuhan, afirmando que um best-seller não pode conter mais de 10% de informações novas, sob pena de tornar-se enfadonho. Com este último parágrafo, chega-se ao que se poderia chamar de segunda acepção da expressão best-seller. Além da significação estrita de vendagem, a literatura de massa pode ser caracterizada como um tipo de narrativa ficcional, aquela que se enquadra nitidamente dentro de um gênero literário. Ao contrário da alta Literatura, que, devido ao esforço para fruição e à originalidade da narrativa, que não 39


permite a classificação dentro de padrões pré-estabelecidos, a trivial reafirma e repete o fruir convencional nos esquemas conceituais do leitor, estando presentes as velhas artimanhas maniqueístas: final feliz para os bons de espírito e sanção negativa para os perversos. Para problematizar ainda mais a ideia em torno da literatura de massa, há, segundo Reimão (1996), três abordagens interessantes. A primeira, denominada “teoria do degrau”, afirma que a paraliteratura é apenas uma etapa na preparação do leitor para capacitá-lo posteriormente a uma leitura qualitativa. O texto trivial seria, pois, o prelúdio para a caminhada. A outra posição, intitulada “teoria do hiato e regressão”, contrariando a anterior, radicaliza ao defender uma lacuna existente entre os textos popular e erudito. A trivialidade não só sedimenta como regride a consciência crítica do leitor, impossibilitando-o de ter acesso à alta Literatura. A terceira e última é um tanto positivista, pois, segundo a “teoria do filtro”, os malefícios da indústria cultural podem ser eliminados por obra e graça de um “filtro” de rejeição e seleção do qual disporia o público consumidor. A verdade é que cada uma das teorias carreia uma dose homeopática de polemicidade. É curioso notar, também, o processo de adaptação de um bestseller. Quando se o faz, na transcodificação do livro para o cinema, por exemplo, a estória permanece essencialmente inalterada, uma vez que o mais importante é o conteúdo, o enredo. Já com a Literatura culta o processo é contraproducente. Na transcodificação, do código verbal ao não verbal, as propriedades da obra são patentemente alteradas, pois seu valor está intrinsecamente ligado a outros fatores, como a lapidação da escrita, que a enobrece1. 1 Segundo Fiorin e Savioli (1995), há três possíveis maneiras de distinguir o texto literário do não literário: conteúdo, caráter ficcional/não-ficcional e função do 40


Apesar da classificação dos dois tipos de literatura, não se pode determiná-la de forma arbitrária, rígida, estatuindo como quesito a tiragem, afinal, é sobremaneira imprevisível o sucesso de vendagem de uma determinada obra. Embora não muito habitual, é possível um trabalho culto tornar-se um best-seller, uma referência mercadológica. Haja vista o exemplo de As palavras e as coisas, de Michel Foucault, cuja publicação, em 1966, teve um sucesso de vendas estupendo. Esse fenômeno por certo é passível de ter lugar, isto é, uma alta Literatura redundar-se numa produção em massa. Portanto, essa divisão estanque, de ordem didática, permite nuanças. No entanto a vendagem não deixa de ser o precípuo termômetro de avaliação. Para esse alcance de alto calibre, podem mencionar-se duas causas. A primeira refere-se a elementos internos da narrativa, conforme apontado anteriormente: o assunto, o enredo e as técnicas narrativas. Enfim, a velha fórmula exigida pelo mercado consumidor. Quanto à segunda razão, há fatores externos, como a popularidade do escritor. Um caso típico é o próprio Luís Fernando Veríssimo, que, além de ser filho de um dos maiores escritores brasileiro, Érico Veríssimo, escreve atualmente crônicas para 11 jornais do país. Segundo Jürgen Habermas, citado por Reimão (1996), o sucesso do best-seller se deve: (i) à facilitação econômica, proporcionada pelo barateamento dos produtos culturais, tornando-os acessíveis; (ii) à facilitação psicológica, cuja essência se baseia na simplificação de tais texto. As duas primeiras são descartadas pelos autores (Primeiro: não há conteúdos exclusivos para determinado gênero; segundo: como discernir o real do fictício). Resta como válida apenas a última. Para eles, o texto não-literário teria uma função utilitária, como o texto jornalístico, que se presta a informar. Já o texto literário, uma função estética. Nele predominam algumas características: relevância do plano de expressão, que se articula com o plano do conteúdo, recriando a significação em sua organização; plurissignificação e conotação. Enfim, o modo de dizer é tão importante quanto o que se diz. 41


produtos a fim de torná-los mais palatáveis e de fácil assimilação pelo público leitor. Neste derradeiro item, pode haver um paradoxo. Ao mesmo tempo em que a aculturação concede positivamente aos mais humildes e aos mais numerosos o acesso à cultura, a simplificação da cultura, ou seja, sua dessacralização, contém um aspecto negativo. Para o sucesso fácil, há uma massificação do banal. O resultado é a alienação e a ignorância no que diz respeito à boa arte.

2. Luís Fernando Veríssimo e o humor Um gênero que se destaca no mercado editorial é o humor. Na contemporaneidade, um dos escritores que mais se destacam é Luís Fernando Veríssimo, cuja especialidade é a arte de fazer uma radiografia bem-humorada da alma do brasileiro. Com os recursos sempre constantes em suas crônicas — o riso e a percepção fina da intimidade das pessoas — Veríssimo ganhou a simpatia do grande público, angariando destaque no mercado editorial. Um sinal dessa repercussão foi uma matéria de capa na revista Veja (GRAIEB, 2003). Com a chamada O bem-amado, seguida do subtítulo Com três milhões de livros vendidos nos últimos três anos, Luís Fernando Veríssimo é hoje o escritor mais lido no país, a reportagem destaca o sucesso de vendagem de suas obras. Entre os títulos que se destacam, estão: As mentiras que os homens contam (2000), com 310 mil exemplares; O Analista de Bajé (1981), 280 mil e Comédias da vida privada (1994), 240 mil. Foi exatamente a veiculação dessa matéria que despertou o interesse para a elaboração da presente pesquisa. O primeiro passo 42


foi converter a constatação do sucesso de vendagem em dados concretos para conferir estatisticamente os números. Para buscar esse amparo, a pesquisa foi baseada na coluna Os mais vendidos da revista Veja, no período de janeiro de 2000 a dezembro de 2003. Após o levantamento, chegou-se ao seguinte resultado: Período da pesquisa: 01/2000 a 12/2003 Fonte: Os mais vendidos – Revista Veja Periodicidade da lista: semanal Classificação: ficção Título do livro

N. de inserções na lista

Borges e Orangotangos Eternos

3

Clube dos Anjos

5

A mesa voadora

8

Todas as histórias do Analista de Bagé

9

Banquete com os deuses

21

Sexo na cabeça

22

Comédias para se ler na escola

45

As mentiras que os homens contam

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Nos dados arrolados acima, não se está considerando a posição em que o título foi colocado na ordem dos dez livros mais vendidos. Considera-se somente o número de vezes em que tal título consta na seleção. Ou seja, não se leva em conta se é mencionado na primeira ou na décima posição do ranking. Em mais de 220 listas consultadas, apenas em 29 o escritor não consta relacionado. E na maioria das listagens aparecem mais de dois títulos de sua autoria. 43


Confirma-se, em dados empíricos, o sucesso acaçapante do escritor. Nesse quadriênio, como se observou, há o predomínio incondicional do título As Mentiras que os Homens Contam, uma coletânea de crônicas divertidas dedicadas ao tema da falsidade no amor, nos negócios e na vida pública, com mais de trezentos mil exemplares comercializados. Esse foi o motivo pelo qual se escolheu a referida obra para centrar-lhe as atenções, prestando-se como corpus à dissecação. Quando se emprega a expressão “crônicas mais lidas de Luís Fernando Veríssimo”, é óbvio que seria impossível demonstrar se realmente tais textos foram lidos pelos leitores. Como indicar com precisão o que as pessoas leem numa época em que a cultura de massa goza de um fastígio no cenário midiático, disponibilizando uma avalanche de textos, informações, enfim, uma cultura ao alcance de todos. Ciente desse embaraço, a solução foi se respaldar na pressuposição. Se não se pode calcular quais são os livros mais lidos, pressupõe-se que os livros vendidos são lidos por aqueles que o compram. Nesse raciocínio, os livros mais vendidos também foram os mais lidos, mesmo tendo consciência de que aquele que adquire o livro numa livraria não venha posteriormente a lê-lo, simplesmente destinando-o a sentença do empoeirar-se numa estante, ou, pior ainda, afastado do convívio social, enclausurando-o no fundo de uma gaveta, esquecido. Selecionar o livro que se prestaria ao objeto de análise foi, por assim dizer, tranquilo, uma vez que a obra sobressaiu incontestavelmente diante dos outros títulos. A dúvida, então, consistia em estabelecer a forma como o livro seria enfocado. Sabendo que ele é composto de 40 crônicas, havia a consciência de que, ainda que se analisassem 44


todos os textos, não se chegaria a uma exaustividade. Por isso, foi necessário se pautar em alguns critérios para que o trabalho não se perdesse em excessos, já que muitas das crônicas se repetiam quanto aos recursos e às temáticas. Firmou-se, com isso, o seguinte método: dividir as crônicas em subtemas: engano, família, mentira, sexualidade e romance. De cada um deles, tomaram-se duas crônicas, definindo o corpus com o número total de dez textos. Ei-los: a) Engano: O Falcão; Sebo. b) Família: Trapezista; Lar desfeito. c) Mentira: A mentira; Grande Edgar. d) Sexualidade: O sítio do Ferreirinha; Infidelidade. e) Romance: O verdadeiro você; Cultura. Partindo do pressuposto de que o leitor busca nesse texto o riso, afinal, suas crônicas se baseiam no risível, o objetivo será demonstrar como se constrói esse riso, qual ou quais os recursos de que o enunciador lança mão para criar esse efeito de sentido.

3. Balanço das análises Na passagem pelo conjunto de crônicas selecionadas para análise, o que salta aos olhos é a recorrência ao tema da privacidade e do cotidiano, um recurso do enunciador em busca da empatia do seu enunciatário. Aliás, esse é um expediente próprio da crônica, ou seja, registrar ou pontuar fatos ocorridos no dia a dia, despercebidos pela maioria, mas não ao olho atento do cronista. E sempre tais descrições 45


estão em textos breves e fáceis de ler, como nos textos apontados, que nunca ultrapassam três páginas. Outra característica presente nos textos é o discurso direto, recurso este que é responsável pela criação do efeito de sentido de realidade. Dentre as dez crônicas analisadas, apenas uma, O verdadeiro você, não o apresenta, embora o texto seja narrado em primeira pessoa, claramente expresso o narratário interpelado com o qual o narrador dialoga: “Pense em tudo o que você já fez para conquistar uma mulher.” A debreagem interna, ou quando o enunciador delega voz aos actantes do enunciado, introduz traços da oralidade no texto, construindo não somente um simulacro do real, mas uma informalidade cuja função é precípua. O diálogo, como se verificou, tem sido um meio pelo qual o enunciador tem explorado suas crônicas para a criação do efeito risível. É justamente a fala particular dos interlocutores a ponte que estabelece o vínculo entre os planos de conteúdo e de expressão. Como se sabe, o riso é fruto de um estranhamento, de uma inversão da ordem. E esses elementos estão presentes, sobretudo, no plano do conteúdo do texto. Nas crônicas analisadas, o risível iniciase no plano da expressão, quando o enunciador insere o idioleto em contraposição ao socioleto2, abrindo mão da norma: “Cumé que é?”; “Que merda”. No plano do conteúdo, há convocação de formas fixas para, em seguida, anulá-las ou as deformar: “José e Maria estavam casados há 20 anos e eram muito felizes... Coisa mais chata. (...) O 2 A sociolinguística classifica algumas variantes: idioleto (particularidades da fala de um único indivíduo); socioleto (fala própria de uma classe ou grupo social); tecnoleto (fala própria de um domínio profissional, ou seja, o jargão); bioleto, dividido em dois: etoleto (fala de pessoas de faixa etária distinta) e sexoleto (fala do homem ou da mulher). 46


sonho de Vera era ter um problema em casa para poder ser revoltada como Nora”; nem mesmo estereótipos socioculturais são poupados: “Aquele imbecil é você. (...) Você nunca foi tão você quanto atrás daquele poste”. Nesse sentido, o que se percebe nesses textos é a ousadia de quebrar padrões e propor novos sentidos às esferas pública e privada. Além das inversões de valores que causam o estranhamento e, consequentemente, provocam o riso, outro traço manifestado nos textos é a relação contraditória entre alegria e tristeza. Quando se fala de tristeza, tange à desgraça ou aos constrangimentos por que passam os interlocutores. Esse estado tensivo é transformado em divertimento desfrutado pelos destinatários aos quais o texto se dirige. Das dez crônicas, pode-se dizer que em seis houve algum tipo de estado de tensão por parte de tais interlocutores: fugir dos amigos para encobrir uma farsa; desespero para corrigir uma disfunção do corpo; família dilacerada por um capricho dos filhos; constrangimento diante de um desconhecido; assassinatos por engano. Nas quatro restantes, o que há são descrições que desvirtuam, de algum modo, o comportamento humano: os maridos infiéis, a ridicularização de um homem apaixonado e a ingenuidade de um amante poeta. É a reiteração de um recurso costumeiro do antigo teatro grego, quando do nascimento da comédia, em que a função das peças cômicas era rebaixar o homem, exibindo seus defeitos e incorreções. O que se nota é que todas as crônicas são perpassadas pelo riso de escárnio, confirmando as proposições de Thomas Hobbes, que discorria sobre a soberba intrínseca do homem, ao dizer que o riso é um índice da superioridade humana: o homem ri ou zomba das desgraças alheias como se fosse imune a qualquer tipo de deslize 47


igualmente ridículo. Mas seja riso de zombaria, seja riso sem motivo algum, subjazem a essas encenações hilariantes sátiras cujos desígnios corroboram as teses de Bergson (1983, p. 50), para o qual o riso é um instrumento de regulação e de controle dos desvios sociais. É preciso ter em mente que a função primeira do riso, conforme afirma Yonnet (1990, p. 152153), é celebrar o “ser social”. O riso solitário tem um sinal negativo; é uma anormalidade patológica. Diante disto, rir é comunicar e, portanto, uma forma de participar de uma sociedade. Em todo ato de comunicação, o objetivo final não é apenas informar, é, na verdade, convencer o “outro” a aceitar o que está sendo proferido. A argumentação é um fenômeno que está inscrito no uso da linguagem, pois constitui uma atividade estruturante de todo e qualquer discurso. Por isso, por mais sincero que se suponha, o riso esconde uma segunda intenção. E no caso específico dos textos analisados, a crítica, ora às escâncaras, ora sorrateiramente, sempre está presente. Para construí-las, em geral na forma de sátira, o enunciador de vale, dentre os vários recursos, do humor (“Estava mal empregado, mal casado, mal tudo”), da ironia (“Você leu meu livro? Li! (...) Aliás, pequei e não larguei mais até chegar ao fim) e da comicidade (“Na próxima vez que alguém lhe perguntar ‘Você está me reconhecendo?’ não dirá nem não. Sairá correndo”).

Considerações finais Os livros cuja marca é o riso já impõem previamente um contrato ao leitor. Ele tem a consciência de que o texto transgride os valores, 48


o código discursivo e as regras sociais. Essas contravenções devem ser aceitas pelo leitor para que ele sancione os textos com o riso. Portanto, na leitura de textos humorísticos, há duas demandas: enquanto é uma exigência do leitor, estimulando a produção desse material no mercado editorial, pois ele gosta desse texto, busca-o para entretenimento, o riso também exige do leitor que ele não leve nada a sério. Daí não causar espanto tocar em assuntos íntimos ou tabus. Ressaltada essa relação, é possível traçar igualmente um perfil do enunciatário desses textos. É óbvio que uma determinação mais precisa, como faixa etária, sexo ou classe social, seria incorreta. O que se pode estabelecer, por alto, é que à imagem desse destinatário cabe um leitor descompromissado com a leitura, que busca nessa atividade o lazer ou o passatempo. Sem embargo disso tudo, não se pode estender a imagem do enunciatário ao conteúdo do texto. Embora se fale que essas crônicas estejam fortemente vinculadas a uma leitura cuja finalidade é o entretenimento do leitor, o que se nota numa leitura mais atenta é que os textos descortinam uma crítica velada aos costumes, à desfaçatez e aos comportamentos. Isso porque, conforme enuncia Greimas, “podemos dizer que todo objeto semiótico é dotado de uma dupla existência, pois existe o modo do ser e o modo do parecer” (GREIMAS, 1975, p. 92). Uma das marcas dos textos em questão foi o hábil jogo irônico com que o enunciador constrói seus textos. É justamente nessa sutileza que reside a relação entre o sentido manifestado e sentido latente, porque, no texto risível, isotopias diferentes revelam a ambiguidade, atributo constante nesse estilo. O riso é, pois, uma ousadia: causa 49


a estranha para distrair, mas, por trás dessa aparente ingenuidade, verdades são escamoteadas. Horácio, poeta da Antiguidade Clássica (65 a.C — 8 a.C), resumia um modo de dizer a verdade: Ridendo dicere verum (Rindo, a verdade é dita). A antiga Literatura Latina repisa esse pensamento com o mesmo mote: Ridendo castigat mores (Rindo, os costumes são castigados). O que se conclui deste trabalho é que a leitura do texto humorístico em si é uma grande ironia. As pessoas estão, no dia a dia, acostumadas às indiretas, às alfinetadas que visam atacar alguém, enfim, a ironia propriamente dita. Mas quando se fala desses textos, como os de Veríssimo, a imagem que se tem é de uma leitura meramente infundada, cujo fim é tão-somente suscitar o riso. Trocando em miúdos, a ironia, intrinsecamente ligada ao comportamento humano, quando passada para o papel, não é entendida a contento, ao menos pela maioria dos leitores. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. FIORIN, J. L.; SAVIOLI, F. P. Para entender o texto: leitura e redação. 10. ed. São Paulo: Ática, 1995. GRAIEB, C. O autor que é uma paixão nacional. Veja: revista semanal de informações gerais, São Paulo, ano 36, n. 10, p. 74-80, 12 jan. 2003. GREIMAS, A. J. Sobre o sentido. Ensaios semióticos. Trad. Ana C. Cruz Cezar et al. Petrópolis: Vozes, 1975. 50


REIMテグ, S. Mercado editorial brasileiro 1960-1990. Sテ」o Paulo: Com-arte; FAPESP, 1996. YONNET, P. La planティte du rire: sur la mediatisation du comique. Le dテゥbat, Paris, mars-avril, n. 59, p. 152-172, 1990.

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O ESPELHO E A VOZ: O PAPEL DO PARATEXTO EM VULGO GRACE DE MARGARET ATWOOD Gracia Regina GONÇALVES (UFV/Viçosa-MG) graciag@hotmail.com Thiago Marcel MOYANO (UFV/Viçosa-MG) thiago.moyano@gmail.com RESUMO: Dentre as diversas manifestações da Literatura Canadense contemporânea que envolvem a questão do gênero, avolumam-se obras que fazem uso do documental segundo a perspectiva crítica pós-moderna de Linda Hutcheon (1990). Vulgo Grace (2008), de Margaret Atwood, tem sido lido dentro de uma perspectiva da fragilidade acerca da caracterização “fato/ficção”. A obra trata de um episódio da história criminal do Canadá no século XIX em que a protagonista é acusada de ser pivô e cúmplice de um crime passional, juntamente com John McDermott, envolvendo seu patrão, Tomas Kinnear, e a governanta deste, Nancy Montgomery, a despeito desta última se apresentar grávida. Atwood, através da apropriação, recriação, paródia, disseminação e até contestação de diversas fontes, cria uma protagonista rica em nuances, emergindo de um entrecruzar de diferentes vozes. Neste trabalho, pretendemos explorar um recorte de tal romance (recorrente em todos os capítulos) que explicitamente coloca lado a lado ficção e história: o paratexto. Acreditamos que este jogo com a linguagem, levada a cabo no romance, contribuiria para o incitamento da reflexão do leitor que, como num caleidoscópio, se vê as voltas com configurações diversas que enriquecem a constituição da(s) personagem(ns) e suas subjetividade(s). PALAVRAS-CHAVE: Paratexto, Gênero, História, Pósmodernismo 53


O mesmo século que inventou a História inventou a Fotografia (...) Como a escrita, a fotografia é transformação, mais do que uma gravação (note mudanças na dimensão, cor, contextualização, escala); representação é alteração, seja em linguagem seja em imagens1. Roland Barthes.

O paradoxo de Barthes que ora se apresenta, retomado por Linda Hutcheon (1996) em suas reflexões sobre a metaficção historiográfica, mostra-se oportuno para engatilhar o confronto de idéias que aqui se desenvolverá. Trata-se de uma discussão no nível da interdisciplinaridade que envolve a composição do romance Vulgo Grace (2008) de Margaret Atwood. A obra tem sido lida, com propriedade, dentro de uma perspectiva de gênero e das diferentes nuances do discurso vitoriano. Como em outras narrativas, ainda segundo Hutcheon, identificadas como pertencentes à produção literária pós-moderna, proliferam no texto recursos paralelos, os quais se projetam com uma envergadura para muito além do meramente decorativo, tornando-se constitutivos da tessitura do enredo. Pretendemos aqui, em especial, explorar um desses recursos, recorrente em todos os capítulos da obra, que coloca lado a lado, ficção e história: o paratexto. Seguindo a teorização de Genette (1996), verse-á que o uso deste serve para “endossar a obra literária enquanto tal, constituindo-se desde título, autor, prefácio até ilustrações” (GENETTE apud HUTCHEON, 1996, p. 301). A própria Hutcheon (1996) desfila uma série de nomes que fizeram do paratexto, no contexto da literatura contemporânea, um atrativo a mais, a exemplo de “A 1 the same century invented History and Photography(...) Like writing, photography is transformation more than recording (note changes in dimension, colouring, framing, scale); representation is alteration, be it in language or in pictures. 54


Mulher do Tenente Francês” de John Fowles, “Os Filhos da Meianoite”, de Salman Rushdie e “O Beijo da Mulher Aranha”, de Manuel Puig. Paralelamente, percebe-se que, na estruturação de seu texto, Atwood consegue delinear uma vertente crítica para o paratexto que vai ao encontro da definição de Genette, propiciando uma nuance relevante, ao nosso ver, ainda pouco discutida. Segundo Hutcheon (1990) o uso de tais recursos direciona o leitor para um contexto histórico real e específico dentro (ou contra) aquele em que o universo fictício opera, porém, problematicamente. Tais textos previnem qualquer tendência por parte do leitor, em universalizar e eternalizar – ou seja, des-historicizar. […] qualquer que seja a forma de tal fonte – nota de pé de pagina, epígrafe, título – a função é criar um espaço para intertextos da história dentro de textos da ficção2 (HUTCHEON, 1990, p. 86. Nossa tradução).

Portanto, pretende-se perscrutar a natureza do próprio paratexto detectando-se neste, uma “sempre-já” irreverência que deixa entrever uma proposta de apropriação do paródico em si com uma mais profunda consciência do risco da demarcação de fronteiras. No decorrer das observações sobre a estruturação do texto do romance, evidencia-se neste sua fragilidade identitária face a inúmeras apropriações paródicas, comuns às obras já citadas. Nota-se então que a página ri de si mesma, consciente e irreverentemente, utilizando-se de diversos elementos, gêneros e discursos, literários ou não. Por exemplo, muitas vezes narrativas 2 to direct the reader to a specific, real historical context within (or against) which the fictive universe operates, however, problematically. These paratexts prevent any tendency on the part of the reader to universalize and eternalize – that is, to dehistoricize. […] whatever the paratextual form – footnote, epigraph, title – the function is to make space for intertexts of history within the texts of fiction. 55


orais de per se híbridas, as quais já perderam a distinção clara do seu caráter ora histórico ora ficcional, são recontadas a par de escrituras consolidadas canonicamente. O que aqui ora se levanta é que além de seu caráter para-historiográfico, pode-se percebê-lo também como parte de um movimento espiralar, não simplesmente uma forma estanque, dentro da clássica distinção entre ficção e história; por exemplo, muitas vezes através de cartas, notícias e versos inseridos no seu corpo, tem-se a sensação de retomada de vários discursos, demonstrando a complexidade de sua natureza. Nossa hipótese é que há uma predisposição que caracterizaria Atwood como uma escritora-leitora, crítica não só de uma tradição literária, mas de sua própria obra: nela, a apropriação do documental ou jornalístico, do romance epistolar, ou da narrativa oral em suas diversas nuances, faz-se dentro de uma consciência de quem se vê ou se lê jocosamente redistribuindo signos que, até então, eram peças de um tabuleiro bem definido, o da reconstrução da história. A partir de Vulgo Grace (2008) torna-se interessante a reflexão de que o jogo não se realiza como uma tradução em termos de uma língua de partida (história) para uma língua de chegada (ficção). Vê-se que as fronteiras em si são constantemente borradas em cada movimento, não se sabendo, no intuito de se utilizar deste ou daquele texto, como reconhecê-lo, se desta ou daquela natureza. Desta feita, distingue-se uma corrente temática como fio condutor, a da configuração do anjo do lar vitoriano, imagem dispersa em diversos paratextos. A fruição do romance de Atwood se processa então ao longo de um constante embate deste imaginário conservador, e de sua possível contra-leitura. Em termos bakhtinianos a crítica deste tipo de personagem torna-se evidente via toda uma constituição 56


contextual do discurso do qual o paratexto é peça importante. No jogo da autora, mesmo que pareça haver uma abertura para o surgimento de um tipo de sociedade emergente no campo intelectual, em que a mulher possa manifestar-se politicamente, por exemplo, opinando sobre falhas no sistema judiciário, ver-se-á que, o ideal conservador vitoriano, embora maquiado em um esquema vanguardista, é sempre restabelecido, recolocando a tradição, a família e a propriedade nos seus “devidos lugares”. Sendo assim, o discurso de Atwood sempre irá configurar realidades multifacetadas que a posicionam na moldura teórica da metaficção historiográfica, que, como comenta Duvall (2002) “é dispersão que precisa de centralização para ser dispersa” partilhando “de uma lógica de “ambos/e” e não de “um/ou”3 (DUVALL, 2002, p. 8, 9. Nossa tradução). Na sequência, faremos então, algumas considerações sobre o enredo. Vulgo Grace (2008) narra a história verídica de Grace Marks, uma jovem de meados do século XIX que é acusada de ser pivô e cúmplice de um crime passional, juntamente com John McDermott, envolvendo seu patrão, Tomas Kinnear, e a governanta deste, Nancy Montgomery. O caso Kinnear/Montgomery aparentemente causou grande estardalhaço na sociedade canadense da época sendo notícia tanto no país quanto nos Estados Unidos e na Inglaterra. Tanto Marks quanto McDermott são condenados à morte, porém, a cúmplice de assassinato é perdoada e condenada à prisão perpétua, onde por bom comportamento consegue um trabalho como criada na casa do diretor do presídio. Supõe-se que Grace, apaixonada pelo patrão, tenha manipulado o outro criado da propriedade para assassinar Nancy Montgomery e então tomar seu lugar. Entretanto, McDermott, 3 is dispersal that needs centering in order to be dispersal” (…) for Hutcheon, the postmodern partakes of a logic of “both/and” not one of “either/or” 57


na esperança de conseguir os favores da suposta mentora do crime, acaba executando tanto a governanta quanto o chefe. Alguns dados adicionais tornam a história mais polêmica e intrigante. Por exemplo, consta da autópsia que Nancy Montgomery estaria grávida, desfavorecendo ainda mais o perfil da ré. Por outro lado, Grace, após trinta anos de prisão, é libertada, mudando-se para Nova Iorque com nova identidade, o que lhe permite casar-se e construir então uma nova vida. Para ficcionalizar o relato supracitado, Atwood recorre a registros documentais encontrados no fórum, escritório do presídio, clínica psiquiátrica, jornais da época, bem como também no livro Life in The Clearings publicado por Susanna Moodie em 1853. É digno de nota que, tanto esta, quanto sua irmã Catherine Parr Trail abriram caminho para a ficção feminina ao inscrever suas narrativas de viagem no incipiente cenário da literatura canadense do século XIX, fato reconhecido por escritoras contemporâneas tais como Margaret Laurence, Carol Shields e a própria Atwood. De acordo com autora, Life In the Clearings pretendia mostrar o lado mais civilizado do Canadá Oeste, como então era chamado, e incluía descrições admiráveis tanto da Penitenciaria Provincial, em Kingston, quanto do Asilo de Lunáticos, em Toronto. Tais instituições públicas eram visitadas como zoológicos e, em ambas, Moodie pediu pra ver a principal atração, Grace Marks. (ATWOOD, 2008: 490)

Interessantemente, percebe-se uma inovação no que tange a estruturação do romance. Atwood cria um recurso narrativo que se diferencia de tantos outros no que diz respeito à perspectiva e a voz dos enunciados. Uma personagem, Dr. Simon Jordan, é projetada enquanto “ouvinte” da história de vida da protagonista, porém, a 58


forma sistemática pela qual o fato se desenvolve dá a Grace asas a sua imaginação, cultivando sua própria hesitação, transformando um discurso de tom confessional de intimidade entre duas pessoas para o reconhecimento de um caso de interlocução no nível psicanalítico. A apropriação satírica de uma proposta pretensamente séria, ou seja, a especulação acerca de métodos científicos para o desvelamento da mente da criatura humana torna-se a motivação primeira do romance, revertendo hierarquias consolidadas em torno da assunção do conceito de verdade. Esta reflexão maior, que propicia a criação deste artifício, é lançada formalmente através de uma abordagem paratextual que se insere antes mesmo do índice. Nela, contrastamse diferentes opiniões acerca da verdade, todas, porém, realçando nesta o seu caráter de construção:

(ATWOOD, 2008, p. 7)

Nas duas primeiras, perpassa a noção de um contexto judiciário (“defesa”, “tribunal”), enquanto que a terceira, mais metafísica, faz 59


indagações no nível da propriedade em se julgar alguém, equalizando revelação e “luz”. O discurso de Grace se pautará, contraditoriamente, na dúvida e não em certezas, conforme se lê: eu li tudo que escreveram sobre mim [...] grande parte do que está lá são mentiras [...] Na realidade, algumas são verdades [...] Seria eu realmente uma amante?, essa é a principal preocupação deles, e nem mesmo sabem se querem que a resposta seja sim ou não (ATWOOD, 2008, p. 37).

Um fator importante a se ressaltar são determinadas formas intencionalmente selecionadas para a configuração diagramática do livro. O romance é estruturado em 15 capítulos, numerados em algarismos romanos, que por sua vez são subdividos em outras seções identificadas em algarismos arábicos. Além disso, cada título de capítulo é envolvido em molduras e ilustrado por um tipo de filigrana central, de desenho aristocrático, o que corresponde a um caráter conservador atribuído ao conjunto de personagens da obra, remetendo-nos ao período vitoriano, o qual o leitor de Atwood será convidado a problematizar. Quanto a estas apropriações paródicas, Hutcheon (1988) afirma que as mesmas “sempre reconhecem o poder daqueles que parodiam, mesmo enquanto os desafiam”4 (HUTCHEON, 1988, p. 110. Nossa tradução). Assim, dentro de tal percepção, compreendemos que a alusão a figura do anjo do lar provê as sementes de sua própria desconstrução, gerenciando o status quo através da voz das personagens, em especial das femininas e, ao mesmo tempo, colocando-as em xeque. É significativo apontar para a gradação que se nota nos títulos de cada capítulo, os quais partem da esfera do doméstico, por exemplo, “Borda Dentada” ou “Louças Quebradas”, respectivamente capítulos I e V, em direção ao mítico ou 4 always acknowledges the power of that which it parodies, even as it challenges it. 60


metafísico, como observado em “A Caixa de Pandora” e “A Árvore do Paraíso”, XIII e XV. Ao longo do romance, a enigmática figura de Grace Marks transitará entre estes diferentes universos. Além da exploração dos elementos gráficos e estruturais, dois outros aspectos temáticos relacionados a figura do anjo do lar e veiculados através de elementos paratextuais são dignos de nota: primeiramente, o uso de epígrafes de caráter jornalístico, didático, ou literário, notadamente pertencentes ao imaginário do século XIX, incitam o olhar crítico do leitor; também a inserção arguta de recortes, muitas vezes não propriamente “históricos”, mas recriações pretensamente factuais, de cunho patriótico, impregnam o texto de sabor satírico. Em ambos os casos, esta figura é desconstruída pela leitura a contra-pelo do mesmo. Escolhemos aqui, de início, como alguns dos exemplos de “desleitura” de uma epígrafe possíveis na obra, a que abre o capítulo III – “Gato no Canto” – de Susanna Moodie: Ela é uma mulher de estatura média, com uma figura esbelta e graciosa. Seu rosto exibe um ar de desesperança e melancolia, muito doloroso de ser contemplado. Sua cútis é clara e deve ter sido radiante, antes que o toque de uma irremediável tristeza a embotasse. Seus olhos são azul-claros, seus cabelos, ruivos, e o rosto seria bastante bonito não fosse pelo queixo comprido e curvo, que confere, como sempre acontece com a maioria das pessoas que possui esse defeito facial, uma expressão astuta, cruel [...] Ela parece uma pessoa um pouco acima de sua origem humilde. (ATWOOD, 2008, p. 29)

A concepção de beleza e de sujeito registrada por Moodie espelha o senso comum da sociedade de sua época. As noções de alvura, da pele e da alma, são uma marca vitoriana. Baseado em seu narcisismo e na pretensa inferioridade dos demais, calcado em razões 61


levantadas pela bioética, o império britânico expandiu suas fronteiras pelo chamado terceiro mundo. As palavras desta fazem eco com a passagem que ora se segue, retirada de uma publicação brasileira do mesmo século: Para que uma senhora seja perfeita em beleza, deve possuir as trinta qualidades seguintes: a saber = Três coisas brancas: a pele, os dentes e as mãos Três pretas: os olhos, as pestanas e as sobrancelhas Três vermelhas: os beiços, as faces e as unhas Três longas: o corpo, as mãos e os cabelos Três curtas: os dentes, as orelhas, e os pés Três largas: o peito, a testa e as pálpebras dos olhos Três estreitas: a boca, a cintura e a planta do pé Três grossas: os braços, as nádegas e a barriga da perna Três finas: os dedos, os cabelos e os beiços Três pequenas: os seios, o nariz e a cabeça. (O Mentor das Brasileiras apud. JINZENJI, 2010, p. 174).

Como coloca Mônica Yumi Jinzenji (2010) esta passagem destaca a mulher perfeita em beleza, originada na tradição oral européia, como aquela de pele branca e traços delicados. (JINZENJI, 2010, p. 174-5). Dessa forma, podemos perceber que a jovem Grace Marks goza de status privilegiado apesar de sua condição de detenta, e estas características são as que primordialmente lhe abriram portas. É bom lembrar que tendo sido inicialmente condenada a morte, tal fato não ocorreu devido a interferência da igreja, de seu advogado e de um grupo de simpatizantes com a sua causa que alegaram sua juventude, a fragilidade “inata” do sexo feminino e sua suposta estupidez como atenuantes da defesa. Assim, o paratexto citado enriquece a leitura da obra tanto do ponto de vista crítico da estereotipia clássica com suas conotações discriminatórias, como da, talvez, falta de clarividência 62


da escritora dado ao seu contexto histórico, além de estabelecer possíveis diálogos com outras esferas da representação da mulher em suas respectivas realidades sociais, aprofundando nosso olhar. Uma vez trazidas à tona referências paratextuais tanto positivas quanto negativas sobre Grace, pode-se ainda acrescentar outro aspecto, que nos reporta ao caso anterior da mobilização dos grupos oficiais de simpatizantes a sua causa. No capítulo XIV – “A Letra X” – destaca-se a seção 50, a qual composta exclusivamente pela inserção de cartas aparentemente ficcionalizadas: de personagem a personagem abre-se um espaço para a voz que espelha o clero empenhado na libertação de Grace, cujo representante mor é o reverendo Enoch Verringer. Nesta lê-se: “Nosso Comitê consiste em um grupo de senhoras, entre as quais se inclui minha própria esposa, e de vários cavalheiros de projeção e de clérigos de três denominações, incluindo o capelão do presídio, cujos nomes encontrará apensos”. (ATWOOD, 2008, p. 458). Esta versão antecipatória do que poderia vir a ser entendido como movimento de emancipação da mulher requer considerações mais profundas. Ao descrever tais senhoras, Grace afirma que “não são apenas as senhoras parecidas com águas-vivas que vêm à casa do governador. Às terças-feiras, temos a Questão Feminina, a emancipação disso ou daquilo”. (ATWOOD, 2008, p. 32). Percebese, então, que Atwood brinca com fronteiras tradicionalmente demarcadas para o masculino e feminino em termos das esferas do público e do privado no século XIX. Janett Wolff (1990), em uma análise crítica da era vitoriana, afirma que mesmo “em casos das mulheres que continuaram a trabalhar [...] a ética dominante do papel doméstico e subserviente destas ignorou este fato”5. (WOLFF, 5 Women did continue to work […] the increasingly dominant ethic of woman’s 63


1990, p. 15. Nossa tradução) Entretanto, faz-se necessária uma ressalva: a supracitada beleza de Grace, que, nas palavras de Susana Moodie, a faz parecer acima de sua classe social, nos permite elaborar a hipótese de que tais senhoras da classe média canadense foram movidas por um tipo de reconhecimento, e não necessariamente por uma política igualitária e progressista. Retomando também o estudo de Jinzenji (2010) em um contexto nacional, esta comenta que à mulher não cabia apenas seus afazeres domésticos, mas também “educar os cidadãos e, sempre que necessário, apoiá-los na defesa da pátria”. (JINZENJI, 2010, p. 208. Nosso grifo). Em outras palavras, é preciso compreender que, interferir politicamente naquele contexto histórico, seja através da educação dos membros da família, ou de manifestações públicas contrárias a decisões judiciais, como no caso das senhoras da Questão Feminina, não prenuncia um feminismo, mas reforça as vozes do poder. Assim, de acordo com Carmichael (2002), “história e ficção estão ambas cada vez mais profundamente implicadas em uma crise da representação”, a qual torna-se, paradoxalmente, produto de “uma consciência das forças ideológicas” 6. (CARMICHAEL, 2002, p. 37, tradução nossa). O discurso vitoriano presente na obra se constitui por causa, e a despeito, destas forças, em especial via o paratexto, cujo papel problematizador é constitutivo da obra. À guisa de conclusão, pode-se dizer que as abordagens paratextuais em Vulgo Grace (2008) não somente nos auxiliam a questionar se a personagem era ou não vilã ou vítima do caso que a levou à prisão. Mais do que isto, a maneira pela qual Atwood se utiliza de tais domestic, and subservient, role ignored this fact. 6 history and fiction are currently both deeply implicated in a contemporary crisis in representation […]an awareness of the ideological forces at work in the representation of event. 64


recursos contemporâneos em sua produção literária identifica nela, uma tendência de recriação de paradigmas, em que o entrecruzar de vozes estabelece uma instabilidade produtiva no texto, projetando a meta-ficção historiográfica como parâmetro para se repensar o sujeito e a literatura como um todo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ATWOOD, M. Vulgo Grace. Trad. Geni Hirata. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. CARMICHAEL, T. “Postmodernism and History: Complicitous Critique and the Political Unconscious”. In: DUVALL, J. Productive Postmodernism: Consuming Histories and Cultural Studies. Albany: State of New York University Press, 2002. Cap. 2, p. 23-39. DUVALL, J. “Troping History: Modernist Residue in Jameson’s Pastiche and Hutcheon’s Parody”. In: DUVALL, J. Productive Postmodernism: Consuming Histories and Cultural Studies. Albany: State of New York University Press, 2002. Cap. 1, p. 1-22. HUTCHEON, L. “Shape Shifters’: Canadian Women Writers and the Tradition”. In: HUTCHEON, L. The Canadian Postmodern. Toronto, New York e Oxford: Oxford University Press, 1988. Cap. 6, p. 107-137 ________. “Postmodern Paratextuality and History”. In: Texte-revue de critique et de theorie litteraire 5. 1996, p. 301-312. ________. The Politics of Postmodernism. London and New York: Routledge, 1990. 65


JINZENJI, M. Y. Cultura Impressa e Educação da Mulher no Século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. WOLFF, J. Feminine Sentences: essays on women and culture. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1990.

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A CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA, DE LÚCIO CARDOSO: reescritura cinematográfica Humberto de Freitas ESPELETA (UFAC) hespeleta@uol.com.br RESUMO: A partir de uma leitura fundamentada nos princípios da narratologia, segundo Gérard Genette, faremos um estudo do sentido da vida, dos dramas existenciais e do caráter demoníaco no romance Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso, e no filme A Casa assassinada, de Paulo Cesar Saraceni. Serão enfocadas algumas perspectivas de tradução reescritural entre culturas e linguagens. A transposição da literatura para o cinema dá a marca da técnica cinematográfica de Paulo Cesar Saraceni para recodificar a linguagem do romance traduzindo-a para a linguagem do cinema sem desrespeitar a autoria de Lúcio Cardoso. PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Cinema; Narratologia; Lúcio Cardoso A narratologia busca, entre outros aspectos, o que há de comum entre as narrativas e aquilo que as distingue, como por exemplo, o que aproxima e o que distancia conto, novela, romance, roteiro fílmico. Gérard Genette (1983), em seu livro Discurso da Narrativa, distingue discurso, história (diegese) e narração, afirmando que o discurso é a ordem cronológica dos acontecimentos num texto narrativo; a história é a ordem em que as ações acontecem; e a narração é o ato de narrar. Existem três tipos de narradores: heterodiegético, homodiegético e autodiegético: 67


Distinguer-se-ão, pois, dois tipos de narrativas: uma de narrador ausente da história que conta [...], a outra de narrador presente como personagem na história que conta [...]. Nomeio o primeiro tipo, por razões evidentes, heterodiegético, e o segundo homodiegético.// [...]. Haverá [...] que distinguir no interior do tipo homodiegético duas variedades: uma em que o narrador é o herói da sua narrativa [...], e a outra em que não desempenha senão um papel secundário, que acontece ser, por assim dizer sempre, um papel de observador e de testemunha [...]. Reservaremos para a primeira variedade (que representa de alguma maneira o grau forte do homodiegético) o termo, que se impõe, de autodiegético (GENTTE, 1983, p. 243-244).

A Casa Assassinada, de 1971, é um filme de Paulo Cesar Saraceni, baseado no romance Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso, publicado pela primeira vez pela em 1959. É a história da decadência dos Meneses, família aristocrata de Vila Velha, Minas Gerais. O autor do romance cria um clima de diabolismo revelado pelo íntimo mórbido e atormentado de suas personagens, criando uma metáfora de que a casa é um jazigo, no qual se ocultam os mistérios da vida de cada uma delas. A obra é uma história narrada por meio de diários, de cartas, de narrativas, de confissões, de depoimentos das personagens, os quais escrevem polifonicamente o universo fantasmagórico da casa dos Meneses. As personagens narram suas histórias homodiegeticamente, porém podendo haver momentos de metadiegese. Este é o caso, por exemplo, de uma passagem do capítulo “37 Depoimento de Valdo”, no qual ele conta uma conversa que teve com Nina sobre uma carta que ela recebera. Valdo a interroga: “- De quem é, que carta é esta?”, ao que Nina responde: “- Valdo, preciso conversar com você.”, em seguida, ao longo do capítulo, Nina revela que precisa de um médico, e por esta razão deverá partir para o Rio de Janeiro. 68


Embora não seja revelado quem é o autor da carta que Nina está lendo, nem tampouco nos seja dado a ler o conteúdo dela, nós leitores podemos deduzir tratar-se de uma carta que Nina tinha escrito para alguém sobre seu estado de saúde, e que da qual ela lê a resposta sobre a necessidade de ela fazer exames, por meio dos quais se saberá que ela tem câncer. Toda a obra é metadiegeticamente construída, uma vez que cada capítulo é uma narrativa autodiegética, posto que em cada um deles esteja uma personagem fazendo uma narrativa sobre Nina, a protagonista do romance, porém em cada uma delas a personagem autora do capítulo se coloca como protagonista. Ressalte-se, ainda, que a protagonista do romance também escreve cartas que compõem a narrativa. As personagens da Crônica são os irmãos Meneses: Valdo, casado com Nina; Demétrio, casado com Ana; e Timóteo, homossexual frustradamente apaixonado pelo jardineiro Alberto, que, por sua vez, era apaixonado por Nina, em quem sua cunhada Ana vê uma rival onipresente, já que ela desperta para si os amores de seu marido Demétrio, e de Alberto, a quem ela ama e deseja, sem ser correspondida. Povoam ainda o romance as seguintes personagens: a criada Betty, o Coronel, o médico, o farmacêutico, o Padre Justino e, finalmente, André, que se pensava ser filho de Nina e Valdo, mas que ao final da obra, fica esclarecido que ele era filho de Ana, a esposa de Demétrio, e de Alberto, o jardineiro. Todos os Meneses vivem a miséria de suas almas e a decadência da aristocracia de sua família e de sua casa. A chegada de Nina vai desencadear o processo de desintegração total da família, até a mais completa ruína. O leitor vai conhecendo Nina, segundo a visão que 69


cada personagem tem dela. O leitor sabe que ela vivia no Rio de Janeiro e que vem de um passado pouco claro e, aparentemente, casase com Valdo Meneses, supondo-o rico. Para se casar com ele, Nina deixa o Coronel, com quem ela mantinha um tipo de relacionamento muito próximo ao da prostituição, já que ele a sustentava em tudo de que ela precisasse, sem ter com ela vínculos de parentesco ou de matrimônio. O romance começa com o diário de André, assim como o filme que seguirá um fio narrativo escolhido por Saraceni na sua tradução da obra para o cinema, cujas cenas primeira e última mostram o velório de Nina. No capítulo “1 Diário de André (conclusão)”, ele reflete sobre os últimos momentos das ações que o lançaram na dor e na revolta causadas pela morte de Nina, ele se pergunta: “18 de... de 19... - (meu Deus, que é a morte? Até quando, longe de mim, já sob a terra que agasalhará seus restos mortais, terei de refazer neste mundo o caminho do seu ensinamento, da sua admirável lição de amor, encontrando nesta o aveludado de um beijo - ‘era assim que ela beijava’ - naquela um modo de sorrir, nesta outra o tombar de uma mecha rebelde dos cabelos - todas, todas essas inumeráveis mulheres que cada um encontra ao longo da vida, e que me auxiliarão a recompor, na dor e na saudade, essa imagem única que havia partido para sempre? Que é, meu Deus, o para sempre – o eco duro e pomposo dessa expressão ecoando através dos despovoados corredores da alma – o para sempre que na verdade nada significa, e nem mesmo é um átimo visível no instante em que o supomos, e no entanto é o nosso único bem, porque a única coisa definitiva no parco vocabulário de nossas possibilidades terrenas...)” (CARDOSO, 2005, p. 19).

Concluída a passagem do filme que reproduz esse primeiro parágrafo, a película mostra a chegada do trem que traz Nina do Rio de Janeiro para Vila Velha, apenas para situar o espectador quanto 70


às animosidades entre os Meneses que de sua chegada adviria, principalmente motivadas por Ana e Demétrio. Num jantar com sua nova família, Nina fica sabendo, por meio de seu cunhado Demétrio, que ela fora enganada pelo marido, que na verdade a família estava pobre e cheia de dívidas. O diálogo entre os irmãos revela um desentendimento familiar, pois Demétrio faz questão de expor humilhantemente, Valdo denunciando que ele não tem dinheiro algum. Timóteo, desajustado e rejeitado pelos irmãos devido à sua homossexualidade e por o considerarem louco, vive isolado em seu quarto, sempre vestido com as roupas e as jóias de sua mãe, tem em Nina e na criada Betty suas únicas amizades. No seu comportamento delirante, é, talvez, o único que consegue, em meio a seus devaneios, compreender com lucidez o destino dos Meneses. No final do romance, finalmente ele consegue executar sua vingança contra todos durante o velório de Nina. Na Chácara dos Meneses vivia o jardineiro Alberto, num pavilhão nos fundos da propriedade. Ele será o eixo das paixões de Nina, de Ana e de seu cunhado Timóteo, com o qual ele nunca terá nenhum envolvimento, além de suas fantasias. Ana, depois que Nina é surpreendida por Demétrio em atitudes suspeitas com o jardineiro, decide forçar sexualmente o jardineiro, de quem ela engravida. No mesmo período, Nina também fica grávida de Valdo, seu marido. As acusações de Demétrio contra a cunhada e o jardineiro levam o marido de Nina a tentar o suicídio. Não suportando mais viver em Vila Velha, Nina abandona o casamento e parte para o Rio de Janeiro. Toda essa situação leva o jardineiro Alberto ao suicídio. Ana, se vê em má situação, não só por causa de sua gravidez e da 71


indiferença de Demétrio, mas também de medo de que ele descubra toda a verdade sobre ela. Sabendo que seu marido não suporta mais a ausência da cunhada, por quem ele nutre um amor que não ousa declarar, cria um estratagema e parte para o Rio de Janeiro para tentar convencer Nina a voltar para a casa dos Meneses. Permanece no Rio de Janeiro o tempo necessário para ter seu filho com Alberto. Nina, que tivera seu filho, e supostamente o entregara para adoção, em um encontro com a cunhada conta-lhe sua decisão de ter abandonado seu filho com Valdo. Ana, então, volta para Vila Velha e entrega seu filho com Alberto para o cunhado Valdo, que o cria como sendo seu. André, o suposto filho de Nina, vai crescer até a adolescência sem conhecê-la. Nina volta para o marido e, a partir daí, a vida de André ganha os movimentos da paixão, do pecado e do crime de incesto. Ele vive um intenso amor com sua suposta mãe, sem se dar muito conta do que está acontecendo, interessado apenas em satisfazer seus desejos e viver as emoções que o amor lhe provoca. Élcio Fernandes publica em 1969, na revista Momento Literário, da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, o artigo “Lúcio Cardoso: o drama existencial e o demoníaco na Crônica da Casa Assassinada”, no qual, o autor indica que no romance há um drama existencial situado entre dois planos diferentes: o “Existencialismo ateu”, representado por Nina, e o “Existencialismo cristão”, representado pelo Padre Justino. Para Élcio Fernandes, Nina é a consciência total do mundo. Somente as coisas do mundo lhe interessam. É a inconsciência do bem e do mal. Para ela tudo é permitido, desde que se arque com a responsabilidade de seus atos, aceitando totalmente o “pecado”.//O “Existencialismo ateu” que tem como ponto de partida a frase de Dostoievski: “Se Deus não existisse tudo seria 72


permitido”,// [...]//Através dessa personagem completamente desligada dos valores morais e religiosos pré-estabelecidos, a liberdade humana é levada ao mais alto nível (FERNANDES, 1969, p. 8-9).

É esse comportamento de Nina e todo o contexto de degradação moral e material dos Meneses que vai desencadear o diabolismo que domina todas as personagens do romance que vivem na Chácara dos Meneses. Aqui tomaremos algumas ações de Ana para demonstrar a predominância do demoníaco no desenvolvimento da narrativa escritural, e que Saraceni faz coincidir com a narrativa fílmica. Em um de seus relatos, Ana declara que Nina teria atirado pela janela o revólver com o qual o jardineiro – já abalado porque Demétrio o demitira - suicida-se depois de ter ouvido uma conversa entre Nina e Valdo, na qual ela diz que vai partir definitivamente para o Rio de Janeiro. Ana o vê morrendo, e ri da cena como num triunfo por ver as conseqüências da relação adúltera entre Nina e Alberto. Em outro momento, quando André já é adolescente e Nina já voltara a viver na Chácara dos Meneses, Ana, suspeitando das relações dela com André e procurando vingança, os segue até o pavilhão onde ela vê os dois em relações sexuais. Ana e Nina sabem que aquela relação não era incestuosa, mas nada revelam a André, e nem mesmo a Valdo, que também desconfiava das relações de André com sua esposa. É essa atitude de Nina e Ana que melhor ilustra o demoníaco na Crônica da Casa Assassinada. Em seu artigo, Élcio Fernandes diz que Nina é a representação do anti-Cristo, o demônio que vem trazer a consciência do mundo aos Menezes (sic). Ana descobre na cunhada tudo o que ela não é. O estado de apatia, e conformismo com a sua situação de 73


mulher que sem atrativos e sem paixões vai chocar-se com o mundo “vivo” de Nina, e causar um conflito interior que a leva a reconhecer a sua solidão [...]// O desespero por não acreditar na graça divina e estar em choque com as paixões do mundo fá-la recorrer ao Padre Justino que representa aqui uma espécie de “existencialismo cristão”.// Padre Justino faz uma revisão total dos valores da Igreja católica.// O desespero em que ela se vê leva-a a procurar o Padre Justino, que lhe diz: “O diabo, minha filha, não é como você imagina. Não significa a desordem, mas a certeza e a calma.” (FERNANDES, 1969, p. 8-9).

É no último capítulo do romance que o leitor vai se deparar com a luta de Ana com seu íntimo. Ela chama o Padre Justino para se confessar momentos antes de sua morte, e faz ao padre o relato das ações diabólicas de Nina e de suas próprias. Ela revela a verdade sobre o nascimento de André, sobre o conhecimento dessa verdade que Nina tinha, julgando-a mais culpada que a ela própria, a progenitora, por terem deixado André na ignorância de sua condição, carregando consigo culpas que não eram suas. Ana morre sem que o padre tenha tempo de perdoá-la. Aí, talvez esteja realizada uma parte dos propósitos de Lúcio Cardoso, que, segundo André Seffrin, em depoimento a Fausto Cunha, na época do lançamento do romance Crônica da Casa Assassinada, diz de seu livro: Meu movimento de luta, aquilo que viso destruir e incendiar pela visão de uma paisagem apocalíptica e sem remissão é Minas Gerais. Meu inimigo é Minas Gerais. O punhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja é contra Minas Gerais. Que me entendam bem: contra a família mineira. Contra a literatura mineira. Contra o jesuitismo mineiro. Contra a religião mineira. Contra a concepção de vida mineira. Contra a fábula mineira (SEFFRIN, 2005, p. 9).

Fica nestas palavras já uma orientação de leitura, a que se 74


pode dizer ser conveniente seguir para o reconhecimento do que André Seffrin afirma ser “A essência do livro”, que Paulo César Saraceni captou e levou à tela. Segundo François Jost e André Gaudreault, É com Gerard Genette [...] que se considera ter iniciado a narratologia como disciplina, ou pelo menos esse ramo particular que o próprio Genette (1983, p.12) chamou de narratologia modal, em oposição a uma narratologia temática (no mesmo sentido, propôs-se a distinção entre narratologia da expressão/narratologia de conteúdo) (JOST; GAUDREAULT, 2010, p. 23).

Para esses dois autores citados, o que lhes interessa para o livro A Narrativa Cinematográfica (2010), que escreveram em parceria, é a “narratologia modal”, a “narratologia da expressão”: em razão mesmo da prioridade que concedemos à mídia – o cinema, ou mais extensamente o audiovisual, por oposição à literatura ou ainda à história em quadrinhos – por meio da qual a narrativa é primeiro posta em forma e em seguida ofertada (JOST; GAUDREAULT, 2010, p. 24).

André Gaudreault, analisando aspectos do nível intradiegético, para tentar resolver certas questões narratológicas fundamentais, e tomando o cinema como objeto de estudo, escreve: Prenons le cas, fameux, des niveaux de récit ou de ce que l’on pourrait appeler l’« intradiégéticité ». Cette configuration diffère du tout au tout selon qu’on l’examine à partir du récit scriptural ou du récit cinématographique. Dans un récit scriptural, lorsqu’un premier narrateur (un narrateur premier) raconte que tel ou tel de ses personnages raconte telle ou telle chose, le sous-récit qui est ainsi produit est rapporté par le moyen du même véhicule sémiotique que que celui qu’utilise le narrateur premier: le langage verbal. [...]// Il 75


s’agit, on en conviendra, d’une situation tout à fait commune et habituelle dans un récit scriptural, la langue, et aussi, bien sûr, à son caractère monodique. [...]// Si pareille configuration va de soi dans un récit scriptural, tel n’est pas le cas du récit cinématographique. Il y a en effet pratiquement que « le film dans le film » qui permette une situation dans laquelle une instance de premier niveau cède la place à une instance de deuxième niveaux. [...] C’est que le récit cinématographique nous parvient par un média essentellement polyphonique, qui s’appuie sur les cinq matières de l’expression que sont les images mouvantes, les paroles, les mentions écrites, les bruits et la musique (GAUDREAULT,1998, p. 325-327).

Na citação acima, André Gaudreault explica que a diferença entre a narrativa escritural e a narrativa cinematográfica é marcada pela diferença existente entre o narrador que conta uma história, narrando o que uma personagem contou, utilizando o mesmo veículo semiótico: a linguagem verbal. Isso se deve ao caráter monódico da narrativa escritural em oposição ao caráter polifônico da narrativa cinematográfica, onde há o “filme no filme” que permite uma situação por meio da qual uma instância de primeiro nível cede lugar a uma instância de segundo nível. Isso acontece por causa do caráter polifônico da narrativa cinematográfica que se apóia sobre as cinco matérias da expressão: as imagens em movimento, as falas, as menções escritas, os ruídos e a música. O trabalho com a linguagem que transpõe a literatura para o cinema revela uma preocupação transcultural e dá a marca da técnica cinematográfica de Paulo Cesar Saraceni para recodificar a linguagem do romance, traduzindo-a para a linguagem do cinema sem desrespeitar a autoria de Lúcio Cardoso. Nas últimas cenas do filme, que coincidem com as últimas passagens do romance, em que Ana vai aparecer, é que se pode observar aquilo que André Gaudreault afirma 76


sobre o narrador escritural e o narrador cinematográfico. No caso de Paulo Cesar Saraceni, ele procura o máximo possível reproduzir a narrativa escritural na narrativa fílmica, como se nota na cena em que Ana se confessa com o Padre Justino. A fala de Ana no filme é uma espécie de declamação do texto do romance. A personagem Ana narra sua história autodiegeticamente, pois ela protagoniza sua própria narrativa, ao mesmo tempo em que narra homodiegeticamente sua história entrelaçada às histórias de Nina, de Alberto e de André. No entanto temos de reconhecer no último capítulo do romance, o capítulo “56 Pós-escrito numa carta de Padre Justino”, o aspecto polifônico da obra, ainda que na linguagem teórica de André Gaudreault, a narrativa escritural seja de caráter monódico. Neste capítulo, o Padre desempenha a função heterodiegética na medida em que narra os acontecimentos relativos à confissão de Ana e à afirmação do diabolismo presente na casa dos Meneses; mas também realiza a função autodiegética, porque narra seu próprio protagonismo em sua última narrativa, que é também a última do romance. Essa análise das cenas finais em que aparece a personagem Ana, que também é o estudo do último capítulo de Crônica da Casa Assassinada, demonstra a fidelidade de Paulo Cesar Saraceni à técnica narrativa desenvolvida por Lúcio Cardoso, dando ao seu filme um caráter de cumplicidade narrativa com o romance e seu autor. Do ponto de vista da ideologia, a narrativa cinematográfica de Saraceni afasta-se da narrativa escritural de Cardoso, o que se pode verificar na cena da confissão de Ana ao padre Justino, quando ela, em seu leito de morte, tem seu pedido de perdão inicialmente negado pelo Padre, mas que, minutos de hesitação depois, tem um gesto de perdão, quando já é tarde demais. 77


No filme, Ana aparece lúcida e bem de saúde (o contrário do que se lê na narrativa de Cardoso), porém dominada por uma espécie de transe. Ela procura o Padre e faz seu relato de confissão e de denúncia contra Nina, não demonstra arrependimento e pede a condenação dela. O padre se afasta, recusando-se a conceder-lhe o perdão, sem demonstrar nenhuma hesitação. A cena se fecha com o grito de revolta de Ana contra a religião enquanto rasga o peito do vestido. Pode-se verificar, assim, uma provável revisão da ideologia própria do Cinema Novo nas suas duas primeiras fases, nas quais se nota mais claramente os propósitos de denúncia da cena política brasileira no final da década de sessenta, com sua adesão à ideologia marxista que é, entre outras de suas características fundamentais, a recusa às religiões. O afastamento ideológico de Saraceni da obra de Cardoso não se dá do ponto de vista moral dominado pela ideologia cristã católica, mas do ponto de vista político aderido pelo programa ideológico do Cinema Novo, a denúncia social. Assim, este filme é importante tanto pelo material para estudo da narratologia fílmica quanto por propor uma revisão da obra magnânima de Lúcio Cardoso no evidenciamento temático, por meio do qual se pode entrever a existência de um programa literário almejado por este célebre escritor mineiro, que Saraceni soube tão bem encenar cinematograficamente, compondo a trilogia Porto de Caxias, A Casa Assasinada e O Viajante. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARDOSO, L. Crônica da Casa Assassinada. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 78


FERNANDES, E. Lúcio Cardoso: o drama existencial e o demoníaco na Crônica da Casa Assassinada. Momento Literário, n. 1. Araraquara: FFCLA, p. 7 – 9, abr. 1969. GAUDREAULT, A. De la narratologie littéraire à la narratologie cinématographique (et vice-versa). In: DUCHET, Claude; VACHON, Sthéphane. La Recherche Littéraire, objets et méthodes. Montréal: XYZ, 1998, p. 324 – 332. GENETTE, G. Discurso da Narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Veja, 1983. JOST, François; GAUDREAULT, A. Cinematográfica. Brasília: UNB, 2010.

A

Narrativa

SEFFRIN, André. Uma gigantesca espiral colorida. In: CARDOSO, L. Crônica da Casa Assassinada. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

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DESERTO: O ESPAÇO DO DESLOCAMENTO Maria Cristina Vianna KUNTZ ( PUC-SP – Cogeae) cvkuntz@uol.com.br RESUMO: A obra de Jean-Marie Gustave Le Clézio, Prêmio Nobel 2008, percorre um caminho de travessias desde seu início. De origem mauriciana, soube o autor utilizar essa origem “colonizada”, e “colonizadora-descolonizadora” em favor de uma mundividência sem limites. Em Désert, publicado em 1986, baseando-se em um fato histórico, ele relata a caminhada de um povo árabe através do deserto do Maghreb, no início do século XX e a repressão por eles sofrida por parte dos franceses católicos. Paralelamente, a história da menina Lalla, mostra o problema da imigração rumo à Europa, fugindo aos costumes muçulmanos e à pobreza. O espaço geográfico, o deserto, transforma-se em matéria do fazer literário. Assim, esses deslocamentos nos levam a refletir sobre conceitos de hegemonia, de nacionalidade, de raça, de humanidade. PALAVRAS-CHAVE: literatura Francesa; Maghreb; imigração; povo árabe

colonização;

A obra de Jean-Marie Gustave Le Clézio, prêmio Nobel 2008, percorre um caminho de travessias desde seu início. Nascido em Nice, na França, em 1940, o autor é descendente de família mauriciana pelo lado materno, e seu pai era inglês. A ilha Maurício foi importante possessão francesa e atualmente é inglesa. Soube, pois, o autor utilizar essa origem “colonizada” em favor de uma mundividência 81


sem limites. Ele próprio considera-se um “cidadão do mundo” porque tendo nascido em país livre, cultivou dentro de si a sensibilidade para compreender e representar essa antinomia colonizador/colonizado. Após uma estréia de contestação e revolta nos anos 60, (em 1963,– Le Procès verbal ), na década seguinte, embrenha-se na mata panamenha e depois vive uma experiência mística durante uma pesquisa junto aos índios no México. A descoberta de valores diferentes dos consagrados no mundo civilizado ocidental, bem como um profundo conhecimento das injustiças e massacres sofridos pelos povos indígenas levará o autor a dar voz às populações marginalizadas, aos povos dominados O romance Désert foi consagrado pela crítica com o Grand Prix Paul Morand de l’Académie Française. Neste romance, publicado em 1980, o autor baseia-se em um fato histórico. Desde meados do século XIX, a França empenhava-se em estender suas colônias ao Norte da África. A Argélia já estava conquistada desde 1830. Mas o Marrocos empenhava-se para resguardar ainda sua liberdade apesar de todas as pressões econômicas impostas pelos países europeus, principalmente em relação à França e Espanha. A partir de 1906, esse país do Maghreb encontrava-se em uma anarquia generalizada; com a concordância do sultão, pelo tratado de Algesiras, foi concedida carta branca ao governo Francês para conter as tribos revoltosas do país. As repressões culminarão com o massacre final e o estabelecimento do protetorado Francês em 1912. As tribos do Sahara ocidental se insurgem sob a liderança do xeique Ma El Aïnine; que lidera atentados contra importantes personalidades francesas. Em resposta, serão reprimidas definitivamente com dois acontecimentos principais que serão relatados em Désert: A batalha 82


de Tadla (junho de 1910), e o bombardeio de Agadir (março de 1912). A morte de Ma El Aïnine (em Tiznit, em 1º. outubro de 1910) que também é contada no romance contribui para o enfraquecimento dos revoltosos e sua derrota final. O romance segue cronologicamente esses acontecimentos que correspondem à História da França colonial.1 Entretanto, segundo Marina Salles (1991, p.16), Le Clézio afastase da versão oficial, substituindo-a pela versão de um aventureiro francês, Camille Doucey - morto em 1899 –– que em seu diário de viagem conta o encontro com o xeique Ma El Aïnine que teria “a doçura no seu olhar”. Ele será a personagem principal da primeira história de Désert. O autor confere, pois, certa dose de parcialidade à sua história real.

1 - A estrutura do romance De início, chama-nos a atenção a diagramação com justificativa dupla à direita que, nos dois primeiros capítulos da narrativa, difere da outra história, a história de Lalla, que tem início à página 75. Aponta Marina Salles (1991, p.21) que esse desenho tipográfico poderia corresponder à “l’écoulement de la caravane dans l’espace de la page” que é branca ou diríamos nós também, “o escorregar” no deserto de areia branca. Poderia ainda corresponder, lembra a estudiosa, a uma “marge de silence” apontada por Genette em Figures II, que conferiria à história dos homens azuis uma “forme poétique”, e assim os aproximaria dos poemas épicos, das canções de gesta, dos textos sagrados. 1 TOBIE ; MOYNIER. L’Histoire coloniale. v.2, Paris : Colin, 1991, p.281, apud SALLES, Marina, 1999, p.15.

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Desta forma, tem início a caminhada do povo árabe através do deserto. A multidão, o calor escaldante, a miséria, a poeira inundam a narrativa com uma eloqüência asfixiante. O deserto do Sahara ocidental será o espaço do massacre perpetrado pelos franceses católicos. A caminhada é, porém, interrompida pela história da menina Lalla, descendente daquele mesmo povo, passadas duas gerações. Assim, no romance, essas duas histórias alternar-se-ão construindo uma significância final. Essas histórias transcorrem no mesmo espaço - o deserto - com um intervalo de duas gerações. A primeira história com marcas do real – a data, o local, personagens e acontecimentos; e a segunda uma narrativa inteiramente ficcional.

2 - A primeira história A primeira história é a história do povo marroquino, nômades que vieram do Saguiet, ao Sul, rumo ao vale Vermelho, no Norte, justamente para fugir às forças disciplinadoras francesas. História do povo colonizado, explorado e dizimado (como outros tantos) pelo colonizador. O incipit dessa primeira narrativa já determina ao leitor o clima que deverá perpassar o romance: Saguiet El Hamra. Hiver 1909-1910 Ils sont apparus, comme dans un rêve, au sommet de la dune, à demi-cachés par la brume de sable que leurs pieds soulevaeint (LE CLÉZIO, 1980 : 7).

De um lado, o lugar preciso e a data indicam a correspondência ao real e de outro lado a comparação “comme dans un rêve” sugere ao leitor a perspectiva da ficção, bem como o tom da narrativa. De 84


fato esta primeira parte do romance mostra-se como um “mauvais rêve”, um verdadeiro pesadelo, fantasmagórico à medida que ressalta um sofrimento humano quase inimaginável, torturados os homens continuamente pelo sol e calor, pela sede e pela fome. Liderados por Ma El Aïnine, o xeique que fundara a cidade santa de Smara, seguiam lentamente através do deserto. Esse chefe de realidade atestada, sob o olhar do autor, reveste-se de um poder moral e espiritual insuperáveis. Ele conduz o povo e acolhe desde o mais ínfimo de seus seguidores até os grandes chefes. Ele se comprometera com seu pai a cumprir a missão junto a seus discípulos para se oporem custasse o que custasse, a todo invasor estrangeiro. Trata-se, pois, de uma luta pela liberdade e pela preservação da identidade do povo árabe e da integridade de seu território. Entretanto, apesar de seu esforço e daquela gente, Ma El-Aïnine antevia todos os percalços e previa que caminhava “rumo a seu fim”. Dentre essa multidão, destaca-se o adolescente Nour, que é filho de uma “chérifa”.2 O leitor acompanhará sua trajetória iniciática que culminará com a bênção pelo xeique, de quem ele herdará o carisma. No principio, ele se preocupa apenas com sua família, o velho pai e a velha mãe. Pouco a pouco, aproxima-se de Ma El-Aïnine e deixa-se fascinar por sua humildade e grandeza. Aprende com ele a solidariedade, o serviço ao próximo e a lealdade. Serve de guia a um velho cego, sobrevivente de um ataque de soldados franceses. Assim, esses nômades desenham grandes percursos, atravessam grandes extensões de areia do deserto infindável : «Ils marchaient sans bruit dans le sable, lentement, sans regarder où ils allaient...» 2 Chérif- prince chez les Arabes (ar. Charif) cf. Petit Robert, Paris : Dictionnaires Petit Robert, Paris, 2002. 85


(LE CLÉZIO, 1980, p.7).3 E é de fato muito lentamente que o leitor acompanha essa caminhada infindável: a fome crescente, a miséria; as condições desumanas em que vivem, comparáveis às de animais: “un troupeau d’hommes et de bêtes” (LE CLÉZIO, 1980, p.16).4 Dia após dia, durante semanas e meses, “Les hommes et les femmes vivaient ainsi en marchant sans trouver de repos” (LE CLÉZIO, 1980, p.24).5 Após a primeira interrupção da narrativa que dá lugar à história de Lalla (146 páginas), seguem-se os dois capítulos que relatam os acordos celebrados entre o filho de Ma El Aïnine e os franceses, a contratação de mercenários, a batalha arrasadora e traidora dos interesses árabes e finalmente o pacto que cria o protetorado Francês do Marrocos. A pungente narrativa da morte de Ma El Aïnine, em presença apenas de sua mulher e de Nour, constitui uma prolepse do massacre final de todo o povo árabe. O abandono do xeique por parte de seu povo e traído por seu próprio filho - o Leão de Marrakesh – transforma-se em momento trágico e em alegoria do sofrimento de todo o mundo árabe, enganado pelos colonizadores que lhes ofereceram “progresso, ordem e justiça”. O romance não termina com a história de Lalla e sua inesperada volta à terra natal (16 páginas), mas com o massacre final contra os habitantes de Agadir, ocorrido em 1912, sendo os guerreiros chefiados pelo traidor, um dos filhos de Ma El Aïnine. Os poucos árabes que restam, dentre eles Nour, se encaminharão rumo ao Sul. O final “aberto” do romance aponta, portanto, para a continuação da caminhada desses povos rumo à liberdade e em busca de uma vida mais humana. Esse final contando a história mais antiga, o passado de 3 “eles caminhavam sem barulho na areia, lentamente, sem olhar para onde iam” 4 “uma tropa de homens e de animais” 5 “Os homens e as mulheres viviam assim caminhando sem encontrar repouso.” 86


lutas do povo árabe, revela o peso histórico atribuído pelo autor à situação atual daquele povo.

3 - A 2ª. história Com o título “Le bonheur” – “A felicidade”, tem início à página 75, a segunda história. A menina Lalla é a protagonista. Ela vive em uma cidade chamada Cité, descrita como “uma dezena de barracos de madeira e de papelão”,6 na periferia de uma grande cidade litorânea, no Marrocos. Órfã de pai e mãe, ela mora com a tia e os primos desde menina. Amante dos insetos, da natureza, da liberdade e da vastidão do deserto, ela terá como grande amigo, Naman, o contador de muitas histórias que a incentivarão a buscar novos horizontes. Em companhia de um rapazinho surdo-mudo, Hartani, um pastor “chleuh”, Lalla percorrerá todos os inóspitos espaços do deserto e descobrirá seus segredos. Próximos à natureza adversa, ambos a dominam, reinam sobre o mundo até o horizonte, onde a vista pode alcançar. Numa cumplicidade e ingenuidade cativantes, crescem em amizade e sabedoria até que despertam para o amor que dará frutos: Lalla conceberá um filho. Entretanto em vão ela procura reencontrar o deserto de seus ancestrais. Sua tia lhe revelará sua origem que permitirá ao leitor unir as duas histórias: Lalla é filha de uma “chérifa”, isto é, uma “princesa árabe”, como o menino Nour. Ambos são, pois, descendentes de Al-Azraq, “o Homem Azul”. Estabelece-se então o elo entre as duas narrativas. A história de Lalla prossegue até sua adolescência, quando, fugindo à miséria e a um casamento imposto, parte para Marselha. Novamente interrompese a narrativa e tem-se a continuidade à trajetória da caravana em 6 «une dizaine de cabanes de planches et de papier goudronné» (p.87). 87


direção aos poços de Hausa, de Faunat, de Yorf e finalmente a chegada à cidade de Taroudant. “A vida junto aos escravos” é o título da segunda parte da história de Lalla que conta suas aventuras na cidade francesa de Marselha, onde já a esperava sua tia. Ela vai trabalhar em um hotel do submundo, em condições degradantes. É então que se desmistifica o sonho da possibilidade de melhoria de vida em uma grande cidade, sonho de esperança que alimentara toda a sua infância. Assim, mostra-se a vida da escravidão “dissimulada” a que são submetidos os imigrantes e todos os marginalizados, os excluídos da sociedade. E Lalla conhece outra realidade e um medo que jamais experimentara antes, no deserto: Elle ne savait pas bien ce que c’était la peur, parce que là-bas, chez Hartani, Il n’y avait que des serpents et des Scorpions, à la riguer de mauvais esprits qui font des gestes d’ombres dans la nuit ; mais ici, c’est la peur du vide, de la détresse, de la faim, la peur qui n’a pas de nom et qui semble sourdre des vasitas entrouverts des sous-sols affreux, puants, qui semble monter des cours obscures, entrer dans les chambres froides comme des tombes, ou parcourir comme un vent mauvais ces grandes avenues où les hommes sans arrêt marchent, marchent, s’en vont, se bousculent, comme cela, sans fin, jour et nuit, pendant des mois, des années, dans le bruit inlassable de leurs chaussures de crêpe, et montent dans l’air si lourd leur grondement de paroles, de moteurs, leur grognement, leurs halètements. (LE CLÉZIO, 1980: 279).

Essa vida das grandes cidades, essa prisão a que se submetem os pobres é vivida por Lalla e denuncia as condições de sobrevivência a que todos estamos condenados nesta civilização ocidental. Para mostrar a “única saída”, um repentino e espetacular encontro casual faz com que um fotógrafo de sucesso transforme 88


Lalla em modelo fotográfico. Torna-se famosa, viaja, ganha muito dinheiro, mas isso não a satisfaz. Um dia sofre uma grande vertigem em uma boîte onde estava dançando. Resolve então abandonar tudo: o benfeitor, fama, sucesso, dinheiro. Voltará às suas origens para ter o seu filho da mesma maneira que ela própria nascera: debaixo de uma árvore, sobre suas raízes. Junto à natureza, ela poderá reconquistar sua liberdade e seus valores ancestrais, em oposição aos valores materiais que fora procurar na cidade francesa. É aí que se encontra a reflexão do autor: opondo a vida “civilizada” à primitiva, ele questiona a chamada “civilização ocidental” e os estragos e injustiças que em seu nome são perpetrados. Não é o deserto que nos apresenta miragens, mas os falsos deuses da civilização.

4 - Narrativa especular A estrutura do romance que compreende a alternância entre as histórias é denominada “narrativa especular” porque o autor, implícita ou explicitamente, coloca as narrativas em espelho, refletindo-as uma à outra. Lucien Dällenbach ensina que sua função essencial é “fazer ressaltar a inteligibilidade da obra” (DÄLLENBACH, 1977, p.18). Uma história reflete a outra em um movimento infinito en abyme, (“em abismo”). Por isso mesmo essa técnica propicia o aprofundamento do significado do romance, e mostra a reflexão do autor sobre a própria criação (metaficção). Esse jogo de narrativas cria um “jogo ótico que reúne no interior da obra realidades que lhe são (fictivamente) exteriores” (1977, p.22).7 Assim, a história de Lalla “un jeu optique qui réunit à l’intérieur de l’oeuvre des réalités qui sont (fictivement) extérieures à elle”.

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reflete-se continuamente na caminhada do povo árabe através do deserto e a condição miserável em que vive a protagonista é ainda fruto do massacre histórico, relatado na primeira história. Em Désert, esse jogo ótico será, pois, fundamental para a compreensão do romance. A ordem das histórias no romance também é significativa. Conforme apareça no início, no meio ou no fim, a narrativa especular pode ser prospectiva, retro-prospectiva ou retrospectiva. Em Désert, a história secundária se apresenta prospectiva porque aparece logo no início Lalla. Seu lugar proeminente (em primeiro lugar na ordem narrativa) estabelece sua importância fundamental na compreensão do romance como explicação da condição do povo árabe. E como dissemos, fechando a narrativa com essa história secundária, do passado daquele povo, o autor ressalta as marcas históricas que determinam até nossos dias a inserção desse povo no contexto mundial. A aceleração que se verifica nos últimos capítulos (a partir da p.385) e a alternância entre as histórias de forma mais rápida indicam a urgência, a premência da problemática apontada pelo autor: O vaivém entre passado e presente mostra claramente a causa e efeito a que se atrelam esses povos que foram submetidos à colonização francesa. O autor privilegia a história de Lalla (271 páginas), mas fundamenta-a na realidade, no passado do povo árabe (127 páginas). Sem explicar ou tergiversar sobre esta última, ele ressalta esse passado que determina as migrações, a pobreza e as dificuldades a que os povos árabes se vêem condenados ainda hoje. Trata-se, pois, de um romance especular cuja estrutura constrói um significado de múltiplas facetas seja no plano social e histórico, seja no plano existencial, seja no plano literário. 90


5 - O deserto Em Gens de Nuages de 1997, romance de aventuras que escreveu com sua mulher, Jemia, Le Clézio conta que, já com treze anos, quando esteve no Marrocos pela primeira vez, ele escrevera um romance de aventuras que se passava no deserto. Assim, muito cedo, esse espaço imenso já o fascinava. O dicionário de símbolos indica-o como “lieu d’indifférentiation originelle, une étendue stérile sous laquelle doit être cherchée la Réalité » ( Dictionnaire de Symboles. Ed. Lafont, p.349 apud SALLES). Assim, para Le Clézio, o deserto é o lugar da solidão e da aridez, mas também o lugar onde o homem pode vencer seus demônios, sendo também o local de purificação dos ascetas, monges, santo (Santo Antonio) e até de Cristo (SALLES, 1991: 12). No deserto, despertados para o outro, em épocas diferentes, Lalla e Nour, crescem espiritualmente apesar da rudeza da vida. A esta, contrapõem-se o horizonte infindável, a largueza, o infinitamente grande que une o céu e a terra. Nesse sentido, o autor aponta para uma possibilidade positiva da vida se houver uma reflexão sobre a condição humana e a busca de identidade e espiritualidade. Por outro lado, uma leitura pós-moderna propõe uma reflexão sobre o homem aniquilado, a falta de perspectiva, o nada, a falta de resposta e ainda a ameaça de extinção: En ces temps où les formes d’anéantissements prennent des dimensions planétaires, le désert, fin et moyen de la civilisation, désigne cette figure tragique que la modernité figure à la réflexion métaphysique sur le néant. Le désert gagne, en lui nous lisons la menace absolue, la puissance du négatif, le symbole du travail mortifère des temps modernes jusqu’à son terme apolcalyptique (LIPOVETSKI, p.49-50).

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Lipovetski lembra ainda a outra forma de deserto que seria aquela também apontada por Le Clézio em seu romance, percebida por Lalla em sua estada em Marseille: o deserto das cidades, a solidão de viver “amontoado” em meio a tantos outros homens, a falta de perspectiva na existência cotidiana, o homem esmagado pelo excesso de trabalho, pela luta incessante, pela insegurança, pela violência. Conclusão Portanto em Désert, o espaço geográfico se transforma em matéria mesma do fazer literário. De cenário, o deserto passa a ser elemento constitutivo da narração. A travessia do Mediterrâneo feita por Lalla transforma-se em alegoria de todos os povos do Maghreb e ainda de todos os imigrantes que são movidos pelas mesmas necessidades da menina em busca de uma possibilidade de vida melhor. Ela sobreviverá, mas retornará ao Marrocos para reencontrar seu povo. Désert nos leva, pois, a pensar sobre as explosões migratórias, esta “nova pobreza”, a exclusão das minorias, própria de um mundo globalizado. Por outro lado, faz-nos considerar as causas e conseqüências dos acontecimentos históricos e das injustiças perpetradas em nome da civilização e da paz. Assim, esses deslocamentos nos levam a refletir sobre conceitos de hegemonia, de nacionalidade, de raça, de humanidade. Como classifica Claude Cavallero: a obra de Le Clézio é: “Oeuvre mouvante, plurielle s’il en est, placée sous le signe ambivalent du déplacement, du décalage et du métissage [...] elle montre les maux profonds de notre époque – la nouvelle 92


pauvreté, l’explosion migratoire, mondialisée, l’exclusion des minorités». (CAVALLERO, 2009).8

Referências Bibliográficas CAVALLERO, Claude. L’étoile. CAVALLERO, Claude (dir.). L’Europe, No. 957-958, Janv-Fév. 2009. DÄLLENBACH, Lucien. Le récit spéculaire : essai sur la myse en abyme. Paris : Seuil, 1977. LE CLEZIO, JMG. Désert. Paris : Gallimard, 1980, p.439. LIPOVETSKI, Gilles. L’ère du vide. Paris : Gallimard, 1983, p.313. SALLES, Marina. Étude sur J.M.G.Le Clézio : Désert. Paris : Ellipses, 1999, p.89.

8 “Obra movente, plural se assim for, colocada sob o signo ambivalente do deslocamento, da defasagem e da mestiçagem [...] ela mostra os males profundos de nossa época – a nova pobreza, a explosão migratória, globalizada, a exclusão das minorias”. (trad. nossa). 93



LETRA. IMAGEM. CINEMA. Paulo Custódio de OLIVEIRA (UFGD/FACALE) pensepaulo@gmail.com RESUMO: O presente trabalho trata da leitura que o filme Quanto vale ou é por quilo? (2005), de Sérgio Bianchi faz do conto “Pai contra mãe” de Machado de Assis, publicado no livro Relíquias da casa velha (1906). A proposta central será demonstrar o momento em que o Cinema tenha sido motivado a desenvolver mecanismos internos (de conteúdo e/ou de forma) condizentes com seu campo semiótico, constituindo-se como obra independente. PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Cinema; intermidialidade.

Introdução A crescente utilização das imagens visuais em toda sorte de mídias de nosso tempo tem aumentado o número de estudiosos preocupados com o assunto. Tais estudos revelam a necessidade de se considerar a relação entre as artes literárias e visuais como parte integrante de um conjunto de saberes que garantem o exercício da cidadania. Notadamente no Brasil que, à maneira da América Latina de modo geral, adequou-se mal à cultura letrada europeia. Todavia, ainda há muita divergência sobre a validade de um trabalho crítico sobre isso. A crítica do pós-guerra está dividida, para usar uma dicotomia criada por Umberto Eco, entre os “apocalípticos” e os “integrados”. Os primeiros enfatizam os problemas políticos e ideológicos gestados em uma sociedade fortemente marcada pela 95


presença do instrumental tecnológico (cinema, televisão e vídeo). Para estes a arte está em agonia. Transformar um livro em filme é desqualificá-lo. Os integrados, porém, defendem a existência de um acordo, moldado à maneira da arte, ressaltando a indiscutível onipresença da tecnologia no cotidiano do homem pós-moderno, afirmando ser interessantemente fértil a constante alteração dos conceitos e das obras de arte. Uma relação dialética, a ser conseguida com a demonstração da literariedade do conto “Pai contra mãe” e da “cinematografia” do filme/documentário de Sérgio Bianchi oportunizaria abordagens mais complexas do fenômeno. Se não forem mantidos os espaços originais, a abordagem terminará por considerar o filme, assim como a linguagem literária, como simples condutores de significado. Um grande desvio, se se considerar que as ilações mais razoáveis afirmam ser fundamental o estudo da matéria e da forma dos objetos estéticos. Portanto, tomar o filme como mero suporte do significado do conto é um erro. Partimos do princípio de que a transposição/ tradução de um conteúdo construído com letras para outras formas de expressão altera substancialmente o resultado final. A temporalidade da Literatura e a espacialidade da imagem visual, quando articuladas em formações discursivas, alteram de maneira profunda a fruição estética.

Cinema e realidade Walter Benjamin afirma no texto “A obra de arte nos tempos de sua reprodutibilidade técnica” que o cinema provocou alterações nas formas de se perceber a realidade. Ele defende a ideia de uma 96


sétima arte refinadora de nossa percepção, o que equivaleria dizer que “aumente nossa realidade”. De certa maneira, essa afirmação recebe grande consenso. Sobretudo por parte dos apreciadores dos trabalhos desse grande crítico da Escola de Frankfurt. O texto que segue concorda com isso. Os conceitos mais incisivos desse famoso artigo de Benjamin são tomados como ferramenta de abordagem do filme Quanto vale ou é por quilo?.

A intertextualidade A narrativa do filme Quanto vale ou é por quilo faz um paralelo entre o antigo comércio de escravos e a atual exploração da miséria pelo marketing social, com o intuito de mostrar as semelhanças entre as injustiças dessas duas épocas. O filme, de 2005, conta com o elenco composto por Ana Carbatti, Cláudia Mello, Herson Capri, Caco Ciocler, Ana Lúcia Torre, Sílvio Guindane, Miriam Pires, Lázaro Ramos, Leona Cavalli, Milton Gonçalves, Zezé Motta e Antônio Abujamra. As histórias principais do filme são intercaladas por pequenos relatos e crônicas ambientadas no período da escravidão. São acompanhadas por locuções que vão se sobrepondo às imagens e ilustrações contextualizadoras do século XVIII. É um filme forte, bem ao gosto dos realistas mais aguerridos (nesse sentido, com alguma distância das propostas estéticas do Machado de Assis mais conhecido), com histórias verídicas descritas em documentos oficiais dos autos do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. O tema é polêmico: a falência das instituições do terceiro setor no Brasil. A solidariedade das ONGs são de fachada. Estão sempre à cata de lucro, seja ele social, político ou econômico. Uma “indústria da miséria” extremamente útil, 97


que desde ontem chafurdou-se com a comercialização dos escravos e hoje se esbalda na criação dos intitulados projetos de assistência social.

Problemas de suporte midiático O filme é um articulador de campos semióticos distintos. O que antes estava separado pelas categorias de tempo (letra) e espaço (imagem), ali se encontra amalgamados. Percebe-se um diálogo crítico constante do filme com a fotografia, mais precisamente a jornalística. As personagens são constantemente convidadas a “fazer uma pose para foto”. Isso torna a película interessante para se discutir tanto a temporalidade da letra quanto a espacialidade da imagem, uma vez que cinema pode ser entendido, de uma maneira simplificada, como fotografias em diálogo. Esse movimento, fruto de uma intenção mimética, questiona o exercício da verdade como transcendência pura. O filme se inscreve entre outros, já numerosos no cinema brasileiro, que participam de denúncias sociais. Todos parecem granjear a simpatia do espectador por serem muito parecidos com reportagens. Tal é o caso de filmes como Bicho de sete cabeças, Carandiru, O invasor, Cidade de Deus. Como estes exemplos, o de Bianchi pode ser inscrito na linha da crônica, um gênero bastante ambientado no jornal. No filme, as narrativas migram dos tempos da escravidão para o século XXI com relativa desenvoltura. Apenas planos fechados separam os dois tempos e não há preparação maior que o figurino e o cenário para nos orientar a travessia. Coerentemente, reservou98


se a locução de Milton Gonçalves, ator negro de grande projeção na Televisão brasileira, para as histórias ambientadas no Brasil escravocrata do século XVIII e as de Valéria Grillo e Jorge Helal, ambos brancos, para as cenas ocorridas em nosso tempo. Nesses casos em que apenas aparece a voz do narrador orientando nosso olhar busca-se, como já se disse antes, histórias retiradas de documentos oficiais guardados no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. De uma forma geral, o filme parece aspirar aceitação como ícone da realidade, ao mesmo tempo em que reconhece sua condição de relato. Por isso lança mão de questionamentos técnicos dessa natureza, informando a platéria de sua condição ficcional. Almejando a autenticidade perdida? Procurando o antigo status da arte como instauradora da verdade? Impossível afirmar peremptoriamente, mas é claro o intuito de reconstituir a aura roubada pela consciência do signo.

Personagens tradicionais A personagem machadiana é explorada como metáfora de uma ironia existencial, aliás é muito bem aproveitada no filme (inclusive usando-se os mesmos nomes: Candinho, Arminda, Tia Mônica). A narrativa é quase fatalista. O personagem principal, Candinho, é conduzido pela criação sem muitos apelos deterministas. O narrador demonstra um grande distanciamento. Alguma simpatia pode ser entrevista, mas nada de pieguices passionais. Essa posição que conduz serenamente o movimento literário é fiel ao conceito de mímesis clássico, idêntico ao de Aristóteles, como apresentado em sua Poética:

se a tragédia é imitação de homens melhores que nós, importa 99


seguir o exemplo dos bons retratistas, os quais ao reproduzir as formas peculiar dos modelos, respeitando embora a semelhança, os embelezam. Assim também, imitando homens violentos ou fracos, ou com tais defeitos de caráter devem os poetas sublimá-los sem que deixem de ser o que são: assim procedeu Homero,que fez bom e semelhante a nós Aquiles, paradigma da rudeza. Esta leitura está de acordo com a doutrina: para ser herói de uma tragédia, Aquiles tinha de ser bom, isto é obedecer ao código da virtude heróica [sic]; mas também devia ser de algum modo semelhante a nós; pois do contrário, jamais suas aflições viriam despertar em nós as emoções trágicas de terror e piedade (ARITÓTELES, s.d. p. 263).

Para criar a personagem, Machado recorre à observação de outros seres, como a maioria dos autores realistas. Mas não é despropositado lembrar que ela só existe enquanto palavras e não existe fora da obra. A partir das palavras do narrador que finge distinguir-se das personagens, nos tornamos oniscientes da trama. No conto de Machado de Assis, a imagem criada pela palavra nos coloca diante dos aparelhos utilizados para ‘’corrigir’’ os escravos. Mas o cineasta conta com o benefício da imagem. Ele coloca os escravos utilizando esses aparelhos, alcançando resultados mais impactantes. A narração de Milton Gonçalves, sem qualquer traço de compaixão na voz, também torna a imagem do filme mais incisiva. Não somente vemos a máscara de flandres, mas os próprios escravos em sofrimento.

Entre realidades Trafegando pelo modelo já instituído de personagem, o cineasta progride na interação com a assistência. Seu tradicionalismo forja 100


uma identificação. Assim, nos encontramos com simplicidade com a personalidade de Candinho, quando Machado de Assis o descreve: “Tinha um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade”. Seu modo de ser, seu contorno bem definido e limitado é trazido integralmente para o filme, capturando nossa atenção. As personagens de Clara, noiva de Candinho, sua tia Mônica e a escrava Arminda, parecem mais reais, entre outros motivos porque não há quaisquer desvios no fundamento imagético buscado. De ordinário, Machado se dedica mais à construção de uma interioridade psicológica que à descrição da miséria física e circundante. Esse grande elemento da narrativa machadiana constitui-se um empecilho para a transformação de sua obra em filme. A necessidade de trafegar pela imagem visual conclama os sentidos a considerarem concretas quaisquer metáforas fílmicas de estados psicológicos. Na transposição de uma época para outra, frequentemente o diretor usa a mesma atriz. No filme, vemos Arminda, personagem de Ana Carbatti nos dois tempos. O recurso é simples. Estabelece apenas o fato de o filme contar com essa possibilidade visual que o conto não dispõe. Essa tradução não complica a aproximação das duas obras. Muito embora, também não acrescente muita coisa a ambas.

A personagem cinematográfica No livro, A Personagem de Ficção, organizado por Antonio Candido (2005), o professor Paulo Emílio Salles Gomes explica que a personagem cinematográfica, devido aos recursos narrativos do 101


cinema, adquirem maior mobilidade no tempo e no espaço que as dos romances. Mas existem algumas diferenças, pois no filme apesar da impressão de uma narração objetiva, na qual o narrador se retrai para dar lugar às personagens e suas ações, a imagem toma posição no espaço físico e não no intelectual. No romance as personagens são feitas de palavras, no filme são tomadas como se fossem pessoas. Esse fato faz com que a definição física imposta pelo cinema reduza a liberdade do espectador na imposição da imagem, porque na maior parte das vezes os atores são muito conhecidos, dificultando a abstração. Há quem veja nisso, nos tempos de Walter Benjamin (1980, p.25), um grande problema. O próprio articulista alemão chega a citar a controvérsia. Ele apresenta Duhamel, autor de um texto chamado Scéne de la vie future, que reclama irritado: “já não posso meditar no que vejo. As imagens em movimento substituem meus próprios pensamentos”. Não poder controlar a narrativa toda no “seu tempo” é um grande suplício para os críticos. Quando a obra literária é transposta para o cinema, ocorre uma tentativa de ‘’tradução’’ do universo literário para a tela, surgem muitos problemas já que, na narrativa escrita o leitor cria na sua imaginação um universo imagético sem limitações, ao passo que no filme as imagens parecem substituir o pensamento do espectador. Na linguagem do cinema toda informação deve ser visível ou audível como o espaço físico ambientado e as caracterizações dos personagens. O cinema é uma forma de expressão na qual o tempo das informações é definido pelo cineasta, ao contrário da leitura onde se pode estabelecer um ritmo independente do da criação. Na transposição da obra devem ser observados os pontos 102


de distanciamento entre essas linguagens. Por isso é complicado assumir a palavra “tradução” para esses casos. Mais adequada seria a “recriação” de uma leitura crítica e profunda do mesmo. Todavia, percebem-se claramente as propriedades verdadeiramente cinematográficas quando o tempo e o espaço se superpõem. A cena em que a personagem Mônica, representada pela atriz Cláudia Mello, está na feira com sua patroa é um bom índice desse momento produtivo do cinema. No devaneio da funcionária ela se desloca para o papel de patroa. Em seu sonho, ela se vinga de todos os seus desafetos da vida real. Percebe-se nitidamente as pressões anímicas sofridas por ela. Não de uma maneira explicativa, onde um discurso revela um significado, mas uma forma expressiva na e pela da visualidade da imagem em movimento. Em poucos movimentos, Sérgio Bianchi atualizou centenas de páginas escritas por Freud sobre a não racionalidade dos anseios humanos.

Referências bibliográficas ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Traduzido por Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. BENJAMIN, W. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In. OS PENSADORES. Traduzido por José Lino Grünnewald [ET. all]. São Paulo: Abril Cultural, 1980. GOMES, P. E. S. A personagem cinematográfica. In: CANDIDO, Antonio [et al]. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2005.

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Filmografia QUANTO vale ou é por quilo?: Direção Sérgio Bianchi, Produção Patrick Leblanc e Luís Alberto Pereira. Roteiro: Sérgio Bianchi, Eduardo Benaim e Newton Canitto, baseado no conto “Pai Contra Mãe”, de Machado de Assis. Intérpretes: Ana Carbatti, Cláudia Mello, Herson Capri, Caco Ciocler, Ana Lúcia Torre, Sílvio Guindane, Myriam Pires, Lena Roque; Lázaro Ramos, Leona Cavalli, Umberto Magnani, Joana Fomm, Marcélia Cartaxo, Odelair Rodrigues, Ariclê Peres, Zezé Motta, Antônio Abujamra, Ênio Gonçalves, Calara Carvalho, Noemi Marinho, Caio Blat, José Rubens Chachá, Mílton Gonçalves (locução), Valéria Grillo (locução), Jorge Helal (locução); Agravo Produções Cinematográficas S/C Ltda, Distribuição: Riofilme-Brasil, 2005. 1 filme (104 min).

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HÉLIO SEREJO: FÁBULA DO LUGAR OU VOZES NA FRONTEIRA Paulo Sérgio Nolasco dos SANTOS (UFGD/CNPq) RESUMO: O artigo propõe uma análise crítico-cultural da obra do escritor Hélio Serejo, o regionalista sulmato-grossense da fronteira Brasil-Paraguai, baseada na recente publicação de Obras completas de Hélio Serejo (2008). Desenvolve-se uma leitura crítico-comparativa dos mais de sessenta volumes do escritor, pondo em perspectiva o locus de enunciação do próprio escritor, simultaneamente à diversidade e riqueza dos loci de discursivização entranhados de regionalismos e crioulismos caracterizadores de um “chão” cultural e / ou ethos próprios, traduzidos numa oralidade que se dá sobre o “chão” de uma região cultural particular, do “local” fronteiriço do escritor. Ou seja, a partir do corpus de análise, propõe-se uma apreciação de textos e livros representativos como Pelas orilhas da fronteira (1981) –, alguns inéditos como Fiapos de regionalismos (2004), emblemático na produção de Hélio Serejo. PALAVRAS-CHAVE: Hélio Serejo; Regional; Estudos Culturais; Literaturas de fronteiras Começo com um parêntese. O título deste simpósio, sintomaticamente intitulado “Figurações do literário: para além das fronteiras”, é claro convite para discussão do que proponho nos limites deste texto. Quero dizer que, a partir deste locus enunciativo advêm sendas e veredas indiciadoras de “Caminhos da fronteira”, uma das regiões que, ao lado da de “Bonito / Serra da 105


Bodoquena-MS”, constituem regiões de limites com o Paraguai e a Bolívia, respectivamente, além de a primeira integrar-se a uma das sub-regiões da Grande Dourados, onde recentemente se criou e implantou a Universidade Federal da Grande Dourados e de onde eu venho. Caracterizada pelos seus atrativos de um contexto histórico ligado à Guerra da Tríplice Aliança, magníficas quedas d’água, rios de águas cristalinas, trilhas, grande diversidade da fauna e flora, “Caminhos da fronteira” forma um exuberante cenário ecológico. Dessa região, vetorizada pelos sintagmas “caminhos” e “fronteiras”, assim flexionados, que retomamos como espaço de intersecção em sua ampla significação, expandida em ressignificações tantas sobre o tópico da “fronteira” – caminhos da fronteira –, queremos desde logo descrever dois aspectos substantivos de sua identidade e representação cultural. O primeiro, refere-se à sua profícua produção literária despontando a recente edição de Obras completas de Hélio Serejo, de onde extraíamos os livros intitulados Pelas orilhas da fronteira , de 1981, e Fiapos de regionalismos , de 2004, bem como a obra fundadora de Hernani Donato, Selva trágica: a gesta ervateira no sulestematogrossense, de 1959. Ambos os escritores e respectivas obras ilustram o contexto de exploração do ciclo da erva-mate, ambientadas na região Centro Sul do estado e refletem narrativa épica que narra as “dantescas condições de trabalho da região” à época da exploração da erva. O segundo aspecto diz respeito à caracterização geofísica da fronteira Brasil-Paraguai e vai nos interessar, de modo particular, na medida em que amplifica as ramificações dos caminhos e fronteiras, aspecto central deste capítulo e do trabalho como um todo: sob o ponto de vista do espectador, ao lado de um dos marcos 106


que sinaliza os limites entre os dois países, apenas uma estrada de quinze metros de largura faz a divisa Brasil-Paraguai, causando sérias confusões, já que, teoricamente, à direita está o Brasil e à esquerda o Paraguai, mas nem sempre é desta forma, pois são diversas vias rurais, onde poucos se aventuram a transitar. Neste caso, a fronteira, sinalizada por marcos de cimento esquecidos no meio de um cerrado desabrigado e árido, é linha imaginária que marca, cicatrizando o imaginário desta região fronteiriça do País. Marco e cerrado fustigados pelo mesmo sol inclemente, desenhando uma paisagem que se perde de vista, alargando o olhar do observador para além, num horizonte infinito. Estamos, por conseguinte, no universo do erval e da prosa fronteiriça de Hélio Serejo. Considerado o “nosso Catulo, o das paixões sul-mato-grossenses”, Hélio Serejo dedicou inumeráveis páginas à sua cidade de Ponta Porã/ MS, fronteira seca com Pedro Juan Caballero/PY. Nascido em 1º. de junho de 1912, na Fazenda São João, no Município de Nioaque, Hélio Serejo faleceu no dia 08 de outubro de 2007, em Campo Grande, aos 95 anos de idade. Cidade predestinada a sua, pois, segundo o abalizado escritor Elpidio Reis, se houvesse um concurso “para saberse qual a cidade do mundo que mais livros tem sobre si escritos, Ponta Porã – com as obras de Hélio Serejo – ganharia de corpo inteiro!” (LINS, 1996, p. 79). Se em cada uma das regiões do Brasil encontra-se um relato constitutivo e próprio, aqui deparamos com a formidável narração de um escritor antes de tudo conhecedor dos mais variados estratos da gente, da formação étnica e do povoamento da região sulmato-grossense. Em tudo e por tudo, a extensa obra de Hélio Serejo, cujas composições literárias são lendas, contos, poesias, narrativas ervateiras e evocações de imagens do sertão, é compêndio dos usos e 107


costumes regionais e principalmente das tradições relacionadas com a atividade ervateira. É do próprio Hélio Serejo a caracterização mais adequada do locus de enunciação de sua variada produção de textos e o próprio lugar da cultura na qual se filiou, num emaranhamento resultante no contexto geral de sua prosa poética. Em “Amor pelo crioulismo”, relato que abre a coletânea de contos Contos crioulos, lêse no primeiro parágrafo: “Desde meninote fui assim: um enamorado, [...] das paisagens sertanejas, portanto, dos ‘mistérios’ das coisas charruas. Fui – sem nenhuma dúvida – um trilhador de caminhos, um observador incansável, um perguntador de muito fôlego.” (SEREJO, 1998, p. 35). Continua o narrador, falando da intensidade com que sorveu todos os momentos formadores de um “crioulismo embriagador”: Sorvi, com muita sofreguidão, o selvático, o descampado, os cômoros, os brejos infindáveis, as croas, o vargeado de moitas clorofiladas, os pára-tudos chamadores de raios, a solitária lagoa de água azulada, os trilheiros dos bichos-do mato, o vento sulino anunciando chuva, a sinfonia das taboas nos alagadiços, a algazarra ruidosa das ‘baitacas’ na roça de milho, as ‘canhadas’ onde as aves diversas buscam o farnel apetitoso, as árvores desgalhadas, no espigão de pouca sombra, o chirlar festivo da passarada, o urro da fera andeja que corta o despovoado sem rumo determinado, o barulho cantante da quebra d’água no coração das brenhas, e o luar que branqueja a vastidão. (SEREJO, 1998, p.35).

Também o relato “Das coisas crioulas” é emblemático, principalmente pela fixação do crioulismo e das experiências no mundo bruto da erva-mate, onde o crioulismo “impera, não só na vivência diuturna, mas também no falar, nas brejeiradas, nas manifestações de alegria, nas festanças e nas caminhadas exploradoras.”, pois que o crioulismo se manifesta em toda a labuta do ervateiro: 108


O velho pilão, o catre mal trançado, o arreio cacareco, o gamelão, o maroto chapéu carandá, o poncho descolorido, soltando fiapos, a forma de rapadura, o ferro de brasa para passar roupa, a mariquinha, corote, o panelão de ferro desbeiçado, o porongo guardador de água, a caneca de latão, o resto de cobertor para se defender do frio, o sapatão de couro de anta e centenas de outros pertences são marcas indestrutíveis do crioulismo. (SEREJO, 1998, p. 145).

A presença do autor como narrador e/ou personagem é uma constante nos relatos de Hélio Serejo. Em muitos deles é a figura do próprio pai do escritor – o furador de sertão Don Chico Serejo –, que, em companhia de Hélio Serejo tornam-se desbravadores e criadores dos “Ranchos”, espécie de parada, morada que abrigava o ervateiro, frequentemente assentados em lugares tão ermos que eram batizados de “divisas com o inferno”, pois situados em região de dificílimo acesso onde a maleita não perdoava nenhum vivente. Atravessando as lonjuras da linha fronteiriça e só conhecendo uma estrada boiadeira, por ali chegavam levas guaranis, paraguaios que sofriam, derramando o seu suor no mundo bruto e selvagem da erva-mate, trazendo para os ervais da região sulina mato-grossense, muitas criaturas excêntricas, algumas de hábitos verdadeiramente anormais, e até denotadoras de demência – como relata em “Tipos excêntricos dos ervais”. Tipos pertencentes a um mundo de amarguras, misérias e desgraças, como a personagem Zico do conto homônimo, dono de uma filosofia crioula, que Serejo assim caracterizou: frangalho humano, açoitado rudemente pelo vento de todos os infortúnios, caladão e envelhecido, descrente e amargurado; e ainda como as personagens Palmira e seu filho, no relato de “O conto”, que tinham uma expressão de horror na face bexigosa e desenhados, nos próprios gestos vagos, o infortúnio e a dor. Tipos que concorrem e resultam da paisagem aberta, vazia 109


e distante, formadora do variegado cipoal dos ervais. Provêm desse universo as lendas da erva-mate e do urutau, que ao lado da história da gente mato-grossense formam um fabuloso registro folclórico e de glossários, de que os “contos crioulos” denotam a capacidade inventiva do escritor na recriação da linguagem: Dia e noite, noite e dia, eu me irrito e xingo, vendo esses pingos, pingo a pingo, caírem na calçada lamacenta. Pinga, pingando, vai o chuvisco pingando, tamborilando no zinco, parece até que dizendo: um pingo, outro pingo: um pingo, outro pingo. E nesse pingar, de pingos pingalhados, o homem pingando pensamento, embarafusta-se no tédio e, sem ser pinguço, pensa na pinga. Pinga esquenta, encoraja, e traz pingo a pingo, pingaços de lembranças ao coração!. (SEREJO, 1998, p. 31)

Ademais, em toda a coletânea de Contos crioulos registram-se alusões e referências mil à virtude de permanecer entontecido com os amanheceres e a magia do sol-se-pondo. Seja no famoso “Discurso de posse” à Academia Sul-mato-grossense de Letras, seja em “Paisagem de erval”, ou ainda em “Paisagem sertaneja”, vamos encontrar o continuum significativo da escrita e da temática de Hélio Serejo, que ele deixaria consagrado na seguinte passagem de “Paisagem sertaneja”: Dentro de mim, como bênção do Senhor, viverá para todo o sempre a fulgurante e evocadora paisagem sertaneja, formada pelo entardecer, raiar festivo das madrugadas, aboio comovedor do vaqueiro, tropel de xucros, fogo dos pousos, silêncio aterrador da tarde escaldante, vento sulão soprando desabridamente pelos campos e varjões, rechinar de carretas, cantiga de andariego, tropilha em marcha cadenciada, marcação, pega, roça granando, colheita, soca de monjolo, estralidar de galhos na tormenta, enxurrada, cantar melodioso do sabiaúna, vôo de seriema, cargueiros, fogo de galpão, queimada de roça, armadilha de caça sinuelo, junta 110


de coice, pastorejo, festa de marcação, pega de baguais, floração campesina, redemunho de outubro, filigranas de luar, brilho das estrelas, vento bandoleiro balançando as folhas das árvores, o azul do céu imenso e cantaria de pouso ao anoitecer. [...]. Desejo, sinceramente, morrer como um xucro, com os olhos embaciados, voltados para essa paisagem. (SEREJO, 2008, p. 170-171).

Como autor de Surrão crioulo – uma coleção de cinco livros –, que levava em seu próprio surrão (embornal), Serejo formatou a tradução da vivência de um povo, tornando-se ele mesmo uma espécie de mimetismo da cultura fronteiriça deste extremo Oeste do Brasil Meridional. Sua obra constitui manifestação literária das mais importantes da região, e a que de forma mais completa se voltou para o registro da história e da vida na fronteira Brasil-Paraguai. Com longa história de vida dedicada à observação da cultura regional, a obra do escritor é imenso painel de análise de aspectos tão múltiplos quanto originais na abordagem das questões linguísticas, literárias e culturais a partir da convivência com os ervateiros, à época gloriosa da extração da erva-mate. Trata-se de obra que per se dá conta e constitui o registro de uma das regiões culturais mais singulares do Brasil, ao abordar as origens e a fundação do povoamento e do desbravamento socioeconômico da nossa “hinterlândia” inóspita. Retrato de um período de empreendedorismo que reuniu a região fronteiriça do Brasil, no Sul de Mato Grosso com o Paraguai e a Argentina, a obra do escritor é a tradução mais extensiva e completa de um mundo e de práticas culturais e de exploração que seriam substrato das denúncias encontráveis na crítica do paraguaio Augusto Roa Bastos, do representativo Hijo de hombre. Denúncia que Zokner (1991) recusou-se a aceitá-la como simples realidade ficcional, pois, 111


ao deparar com a palavra mensu, sentira-se constrangida diante do significado dessa palavra que mais tarde encontraria na obra Obrageros, mensus e colonos – no sistema das obrages constituindo o espaço do livro de Roa Bastos: “la ciudadela de un país imaginário, amurallado por las grandes selvas del Alto Paraná: ‘os ervais de TakurúPukú’” (apudZOKNER, 1991, p.103). Assim, a denúncia era sobre o destino do mensu, sobre o seu trabalho escravo na mata subtropical em território argentino e paraguaio na extração da erva-mate e da madeira. Mensu designava, portanto, o peão que chegava ao Brasil para trabalhar nas obragens, ou seja, nas lidas da erva-mate e das matas brasileiras, um ser de identidade perdida, subterraneamente sem remissão: Um caminho que é no entanto, sem volta, porque nas cidades onde se realizava o conchavo existia , ainda, alguma lei, algum simulacro de autoridade; porém, apenas embarcados, ficavam à mercê dos obrageros e de seus capatazes. ‘Logo que embarcavam para o Alto Paraná, os paraguaios, já de início, começavam a sentir os efeitos do domínio de uma obrage’. Assim, uma das primeiras agressões a que estavam sujeitos era a de serem desarmados, sendo surrados, já na viagem, aqueles que por esta ou por aquela outra razão protestassem. ‘Mas já não tinha jeito, o vapor não voltava mais’. [...]. Nos ervais de Takarú-Pukú os mensus chegavam amontoados numa chata ou caminhando cinquenta léguas por meio do mato, onde iam ficando os mortos de doença, de picada de cobra. Ou, os mortos pelos tiros de capatazes. (ZOKNER, 1991, p. 104-105).

Narrando a partir das orilhas da fronteira e testemunhando toda a gesta ervateira, Hélio Serejo trouxe, através de sua volumosa obra, vida e memória a esta microrregião do ciclo da erva-mate. Se em “Boicará” o folclorista genial dá vida a um boi que nasceu nas 112


“orilhas” da fronteira, criando assim a lenda do boi fronteiriço, em “Tereré”, ao evocar a convivência no erval, ele narra a história e os ritos envolvidos na prática comunitária em torno da roda de tereré: Disseram já, e é verdade, que o tereré, refrescante, é o abraço de quatro nações: Paraguai, o grande líder no uso, Uruguai, Argentina e Brasil. Afirmativa sem contestación. Esta bebida crioja, em qualquer um desses pagos, significa emotivamente: descanso, hora de meditação, amizade, troça, parceria para o trabalho, alegria e, algumas vezes... troca de ideia para a fuga temerária. (SEREJO, 2008, p. 197) (grifo nosso).

Assim, o “tereré” como a língua guarani destacam-se na prosa do escritor, principalmente na obra Fiapos de regionalismos, sobre a qual nos deteremos, sobretudo pelo seu ineditismo, pois que só hoje publicada em Obras completas de Hélio Serejo (SEREJO, 2008, p.171-246). O livro, inédito, revela talvez o ponto mais alto da prosa serejiana; a partir do título o leitor depara a matriz poética de um regionalismo bem formatado na região de fronteira entre Brasil e Paraguai. Já no início, o relato de “Peão paraguaio” prolonga magistralmente o topos referido da língua guarani e sua amplidão a batizar com nomes a topografia e as “denominações dos acidentes geofísicos da República do Paraguai, parte da República Argentina e da República Federativa do Brasil” e revelando-se como sendo “a alma de uma geração insubstituível, é a própria natureza da América Latina.”. Na realidade, este relato traduz uma originalidade perspicaz, cuja ideia é nuclear quando se considera a capacidade plástica de um narrador não somente sensível, mas acima de tudo consciente do caráter representativo, simbólico, da linguagem para a caracterização de sua região, do regionalismo que se tematiza na obra como um todo: 113


As historicidades manifestadas por esta língua continuam sendo as mesmas de antes. As descrições tecidas pelas suas construções idiomáticas continuam sendo as mais encantadoras narrações. Nesta língua encontramos ideias onomatopaicas, acentos melódicos dos pássaros, das árvores, dos animais silvestres, das cascatas, dos mansos córregos, dos majestosos rios, dos campos floridos, o sibilar dos ventos, o barulho ensurdecedor das tormentas, a magnificência do pôrdo-sol, a voz da natureza. (SEREJO, 2008, p. 178).

Ainda em Fiapos de regionalismos, noutro pequeno texto que vale a sua reprodução inteira, Hélio Serejo assim tece o relato de “Chuva fronteiriça”: Tenho amor... amor grande pela chuva fronteiriça da minha terra. Chuva que cai devagarzinho que nem dá para assustar a pombinha-rola que caminha, aqui e ali, procurando o farnel que a chuvinha sossegada espantou do esconderijo para buscar o trilheiro dos bichos. A chuvinha fronteiriça rega a terra para que a semente da esperança brote e cresça livremente, produzindo fartura, fartura que traz alegrias e põe brilho de fé nos olhos do vivente... vivente que, de mãos postas, agradece a Deus, porque a chuva criadora choveu na hora certa, por vontade do Pai Eterno, que vela sempre pelo seus filhos amados. (SEREJO, 2008, p. 242-243).

Um outro texto, digno de destaque, é “Apresentação”, que, assim intitulado, abre a obra em análise, projetando-a no universo do discurso sobre o regionalismo sul-mato-grossense e marcando o registro peculiar dessas narrativas, ao recobrir como um todo o mesmo livro Fiapos de regionalismos, que hora abordamos: Este livrote pode servir aos estudiosos do gênero em alguma coisa. O autor acredita que assim venha a acontecer. A realidade está nele espelhada. É vivência nua e crua. Não há enfeites bombásticos, nem imagens literárias para impressionar o 114


leitor. Homens entendidos das coisas do mundo da erva-mate e do idioma guarani manusearam os originais. Incentivaram de maneira franca o despretensioso escritor dos ervais. Daí a publicação. (SEREJO, 2008, p. 177).

Amplificando a caracterização do nosso personagem do erval, transmutado em autor-narrador, figurativização da voz serejiana, há que retomar a perspectiva dos Contos gauchescos, de Simões Lopes Neto, cujo herói, Jango Jorge, é descrito como o gaúcho que “tinha vindo das guerras do outro tempo; foi um dos que peleou na batalha do Ituzaingó [...]”, e é justamente a ele que seu Autor delega uma função indispensável no contexto do vasto pampa em que transcorrem as narrativas dos Contos gauchescos, numa ambiência e “fábula do lugar” que se pode transladar como citação de muitas falas do nosso narrador-autor, Hélio Serejo, que, como vimos nos excertos citados, frequentemente vai se mostrar como seguindo os ecos da voz e assim relendo aqueles Contos: Esse gaúcho desabotinado levou a existência inteira a cruzar os campos da fronteira: à luz do sol, no desmaiado da lua, na escuridão das noites, na cerração das madrugadas...; ainda que chovesse reiúnos acolherados ou que ventasse por alma de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada! (LOPES NETO,1949, apud CHAVES, 2006, p. 63).

Devemos ainda chamar a atenção para o processo de colonização no Sul do estado de MS enquanto resultante de uma heterogeneidade cultural. Segundo Marin (2004), esse processo muito decorreu das uniões matrimoniais inter-raciais, cuja mestiçagem torna-se um conceito crítico adequado para a explicação do caldo de cultura, que Lévi-Strauss atribuíra às “tradições brasileira, paraguaia, boliviana e 115


argentina.”, onde os elementos da indumentária eram de uso comum e alternado entre as diversas populações e etnias da região. Ainda, como zona de interculturalidade, de hibridismo cultural, a língua era o elemento agregador que, na realidade, se tornou constitutiva de uma Babel linguística: [...] a língua predominante era o guarani, seguida pelo castelhano, tornando a região numa nova “Babel”. A língua portuguesa era pouco empregada. De ambos os lados da fronteira, após uma polca alegre, ouviam-se aplausos bilíngues, trilíngues. Nas corridas de cavalo, o juiz de partida gritava a ordem de largada em guarani e repetia logo após em português. (DONATO, 1959, p.161, apud MARIN, 2004, p. 329).

De resto, deve-se salientar que a percepção de transnacionalização da região, calcada sobretudo na urbanização das cidades do antigo sul de Mato Grosso do Sul, torna-se aspecto relevante para o que observa o autor de Nas águas do prata (2009): O movimento de populações no Cone Sul era uma via de mão dupla. Da mesma forma que paraguaios desciam o rio para trabalhar na Argentina e no Uruguai ou subiam para o Mato Grosso, também os brasileiros, os argentinos e os uruguaios se movimentavam em busca de melhores condições de vida e trabalho. (OLIVEIRA, 2009, p. 57).

Decorria deste fato a mescla da língua que, fertilizada pelos contatos interculturais, resultava na mistura do guarani com o castelhano, carregada de “pitadas do regionalismo gaúcho”, despontando sobretudo devido à “exploração de madeira no Pantanal, nos ervais, nas fazendas de gado, entre outras atividades fronteiriças que utilizavam especialmente o trabalho compulsório de índios e 116


paraguaios” (OLIVEIRA, 2009, p. 56). Neste contexto, o ciclo da ervamate também vai encontrar um precioso registro dessa temática na obra fundadora de H. Donato (1959); ambientada na região Centro Sul do estado de Mato Grosso do Sul, trata-se de pujante narrativa épica que narra as “dantescas condições de trabalho da região” à época da extração da erva, daí extraindo a seiva para o que a crítica caracterizou a obra como “um dos mais altos momentos da novelística de conteúdo social no Brasil” (LUCAS, 1987, p. 53-54). A história do mundo do mate encontra sua robustez seja nas obras de Serejo e de Donato, seja na própria selva, ambas tema e personagem do “drama do mate”, a encontrarem ressonâncias em tantos textosdenúncia da luta do homem com a terra e das histórias de explorados e exploradores. Eis a descrição do dia-a-dia do peão do erval: O dia do mineiro, peão cortador de erva, começa no meio da noite, às três e trinta. A mata, os bichos, os caminhos, as aves dormem ainda e o mineiro estremunha. Cansado da véspera e das muitas vésperas. Prepara o tereré, enrola nos pés e nas pernas a plantilla, bebe tereré, calça as botas de couro, bebe tereré, come bocados de comida sobrada da tarde anterior, bebe tereré e mergulha no caatim. (DONATO, 1959. p. 16 et seq.)

Como vemos, a (re)verificação, seja de perspectivas críticas atuais, seja de obras e autores postos à margem, nas “orilhas”, como demonstrou Sarlo (2007), permite a rediscussão, hoje, acerca da natureza e funcionamento dos textos dentro de uma ordem e escala de catalogação que impõe considerar questões muito sérias como as que se vêem polemizadas em reflexões críticas como a de Casanova (2002). Logo, não causaria espécie estarmos a tratar de escritores como Hélio Serejo e Hernani Donato, dois escritores sulmato-grossenses, que, tendo angariado relativa ou maior fortuna 117


crítica, fazem jus à sua apreciação. Sobretudo quando, críticos e estudiosos do assunto vêm recolocar a pertinência do lugar, do regional, quer em função de uma abordagem de “periodização e regionalização literárias” ou da crítica das literaturas de fronteiras1. Segundo Chaves (2006), a extraordinária capacidade de renovação de um Jorge Amado, [...]se exerceu sempre sobre a sua base regional, o recôncavo baiano, [...]. Residia no acervo lendário e folclórico (às vezes sociológico) da região que o escritor ofereceu à literatura, fosse o naturalismo de Jubiabá ou a prodigiosa invenção de Gabriela. Por isso mesmo, Jorge Amado constitui o caso limite do regionalismo brasileiro. (CHAVES, 2006, p. 38).

E Guilhermino César, com perspicácia observou: [...] Só pode enriquecer uma literatura essa busca apaixonada do que é típico na sociedade, quando nada, para que a expressão estética represente forças de vida convergentes, construa a autenticidade de dentro para fora, ou seja, buscando o geral e o universal, no homem e suas paixões. Em outras palavras, o regional é o primeiro estágio de toda literatura. Sob pena de cair no despaisamento, no incaracterístico, no formal, nenhuma literatura pode negar as matrizes de que procede o homem que ela traduz e representa (apud SILVA, 2009, p. 161).

Disso resulta o instigante convite à (re)verificação do conceito de regional e regionalismo hoje2, dentro do que a crítica pontua como condição para uma real apreciação dos textos, nascedoura de 1 A propósito, para uma leitura mais ampliada sobre a questão, remetemos aos ensaios assim intitulados de Tania F. CARVALHAL, em O próprio e o alheio (2003). 2 Ver: Paulo Nolasco dos SANTOS . “Fronteiras do local: o conceito de regionalismo nas literaturas da América Latina”. Revista de Literatura, História e Memória. v. 5, nº. 5, 2009. Disponível em <http://e-revista.unioeste.br/index.php/rlhm/issue/ view/265/showToc>. Acesso em: 26 agosto 2009. 118


sua representatividade no diálogo e “comércio” alfandegário, que frequentemente embaralha o lugar de enunciação vinculado à ideia de fortuna crítica. Esta, ainda derivada do agente “institucional” enquanto comprometido com todos os seus meios legitimadores, quais sejam, editoras, críticos, revistas, jornais, televisão, rádio, publicidade direta, prêmios literários e outros, como salientou outro crítico contemporâneo do porte de Wladimir Krysinski. (KRYSINSKI, 2007, p.1-14).

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Obras

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de

Hélio

Serejo.


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ENTRE GÊNEROS E CULTURAS: a obra memorialística de dom Pedro Casaldáliga Rosana Rodrigues da SILVA (UNEMAT/Sinop)1 RESUMO: Dom Pedro Casaldáliga figura entre os autores que têm produzido, sob as marcas culturais de nosso tempo, uma poética que testemunha os conflitos sociais e atesta os limites dos gêneros. Embora lembrado mais pela produção poética, possui significativa produção autobiográfica que testemunha a luta pelas causas da população pobre no Norte de Mato Grosso e expressam, no conjunto, um manifesto de fé religiosa e vida compromissada. O memorando dá voz ao oprimido, consolidando uma narrativa que articula vozes da alteridade e impõe a representação do Outro ao decurso de sua própria fala. As memórias, enquanto representação simbólica do “entre-lugar”, conforme o define Bhabha (1998), formam o enunciado do espaço cultural que se faz entre o eu e o Outro, auxiliando na constituição de uma literatura pós-colonial que não se fixa na dicotomia colonizador e colonizado, mas se volta à exteriorização da cultura, formada segundo a perspectiva da minoria. PALAVRAS-CHAVE: Dom Pedro Casaldáliga; Memórias; Interculturalidade; Teologia da Libertação; Póscolonialismo. Quem busca sua identidade volta-se necessariamente para o passado. Para extrair dele o metal das armas que empunhará na construção do futuro. (Pedro Tierra) 1 Doutorado em Literatura Brasileira; professora da UNEMAT – SinopMT; pesquisadora do CNPq, com o projeto Multiculturalismo nas poéticas contemporâneas: tendências identitárias e transculturalidade em Mato Grosso. 123


Embora lembrado mais pela produção poética, Casaldáliga possui significativa produção autobiográfica ─ cartas, ensaios e memórias ─ que testemunham a luta pelas causas da população pobre na região Norte de Mato Grosso e expressam, no conjunto, um manifesto de fé religiosa e vida compromissada com as causas da chamada Teologia da libertação. A práxis contestadora nessa teologia encontra justificativa na experiência política aliada à teológica que direciona uma discussão, por sua vez, religiosa e política, pondo o sujeito oprimido no centro dos debates que mobilizam bispos, teólogos e sociólogos. A leitura que se faz da resistência para a libertação permite uma leitura singular da história e da sociedade, leitura que busca na teologia fundamentos do marxismo e socialismo. Leonardo Boff esclarece dessa relação que o marxismo auxiliou para que víssemos que o pobre é, sobretudo, um oprimido, alguém feito pobre com violência; enquanto o socialismo pode ser um instrumento político para a libertação dos oprimidos (2008, p. 120). A teologia da libertação tem dado a chave da interpretação aos estudos críticos sobre a poética de Casaldáliga. Os princípios dessa teologia encontram aplicação prática na obra do poeta: “Podemos dizer que Casaldáliga é precursor de um gênero novo a que poderíamos chamar de poesia de libertação” (MARZEC, 2008, p. 302). Do mesmo modo, pode-se afirmar que os relatos do memorando constituem as memórias da libertação. Não se trata de buscar nas mesmas explicação teológica; mas de reconhecer sua atualização teórica e sua exemplificação literária. Ao argumentar o sentido da luta e narrar a defesa da causa, o autor põe em prática a teoria que fundamenta a nova teologia e faz de sua escrita uma atividade de militância, sob a influência da interculturalidade religiosa. 124


A relação entre culturas se faz presente nas atividades e produções deste intelectual que consegue transpor barreiras ideológicas que poderiam separar o homem culto do popular para expressar a cultura do homem oprimido. Essa é, na formulação de Alfredo Bosi (1992), uma transposição que perfaz a grandeza da obra literária. Segundo o crítico, a cultura ocidentalizante acostumou-se a estigmatizar a cultura popular como expressão de estados de primitivismo, atraso, subdesenvolvimento. Na reação oposta, o artista busca regular expressão pessoal e comunicação pública, criando uma linguagem que situa seu trabalho na intersecção do corpo e da convenção social. Nessa regulação, o criador participa da dialética de sua própria cultura, possibilitando o diálogo entre instâncias internacionalizantes e instâncias populares ─ processo que resultaria em uma obra rica, densa e duradoura (1992, p. 343). A voz do sujeito que se narra apresenta em breves parágrafos a vida do memorando. Dom Pedro Casaldáliga chegou ao Brasil, em 1968, convocado pela congregação claretiana a missionar a região Norte do Mato Grosso, região desatendida, com uma população marginalizada (sem-terras, índios e posseiros). O compromisso com as causas que dão sentido ao seu credo destinou sua permanência em São Félix do Araguaia, cidade cerceada de tribos indígenas e marcada pela disputa por terra. Sua engajada atuação como missionário ficou registrada nas memórias: Creio na justiça e na esperança (1978); Em rebelde fidelidade (1984); Nicarágua: combate e profecia (1986); Quando os dias fazem pensar (2007). Os títulos das memórias confirmam um ideário que se fez na profícua relação, embora nem sempre clarificada, entre política e religião. As memórias dividem, no conjunto da produção de Casaldáliga, 125


espaço com poesia e ensaios de teor político e teológico. A obra memorialística dialoga com a produção poética do autor, o que torna possível leituras paralelas que direcionam o sentido de seus poemas. Os textos memorialísticos auxiliam diferentes enfoques críticos na investigação da poesia. Além da reconstituição da trajetória do memorando (a vida com a família na Espanha e a opção pelas missões no Brasil), as memórias permitem recuperar os elementos externos que estão na gênese da produção poética, bem como fornecem material para o estudo da recepção da obra literária, atendendo, com isso, ao enfoque sociológico. Conforme assinala o crítico Antonio Candido (2009), a obra literária, embora seja uma realidade autônoma que pode ser compreendida em qualquer circunstância, não prescinde dos elementos não literários em seu estudo crítico. Isso porque o texto, sendo um resultado, “só pode ganhar pelo conhecimento da realidade que serviu de base à sua realidade própria” (CANDIDO, 2009, p. 36). Ao lado dessa justificativa sociológica, está a importância documental das memórias. Por serem testemunho da marginalização e exclusão da população pobre de Mato Grosso, os relatos autobiográficos importam como fonte de denúncia, assim como o foi a Carta pastoral (1971), documento polêmico em que Casaldáliga denuncia a violência e o trabalho escravo no município de São Félix do Araguaia. A produção literária de Casaldáliga e sua atuação como bispo exemplifica a atividade transculturadora. Sua procedência de uma cultura dominadora, de uma religião imposta à força aos povos dominados, defronta-se com a personalidade do missionário ativista. Conforme nota Zofia Marzec, na condição de sacerdote 126


espanhol, o bispo assume individualmente os pecados coletivos dos conquistadores e pede perdão às culturas marginalizadas (2008, p. 303). A condição de bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia não o impediu de dialogar com a religiosidade da cultura popular e indígena, contrariando a ortodoxia católica. Assim como também, a condição de homem branco e europeu, de uma família de católicos direitistas, não impediu o convívio com a população mestiça da “América ameríndia”, como o memorando prefere chamar. Nem sempre datados, os relatos são circulares e retomam momentos diversos da vida do memorando e da vida do Outro, por ele sentida em testemunho. Um acontecimento presente repõe o autor na infância, levando-o à recordação enunciada de forma quase lírica. Em outros momentos, um comunicado de advertência, reproduzido na íntegra, traz a objetividade da apresentação; enquanto a transcrição de diálogos pode levar à tensão dramática que atualiza a cena narrada e problematiza o futuro. Os temas enveredados nas memórias não são específicos sobre a vida do memorando. A vida do outro é passível de ser memorizada, diante da condição do sujeito que testemunha, observa e atua. Se o início dos relatos memorialísticos possuem o enfoque no “eu”, já o desenvolvimento volta-se tanto à vida de homens simples do povo, quanto aos “mártires da caminhada” ─ mulheres e homens, perseguidos, torturados ou mortos, durante o regime militar. Casaldáliga testemunha a condição do Outro, orientado segundo ele próprio, pela dialética marxista e por uma “metanóia política total”. O memorando pretende dar voz ao oprimido, consolidando uma narrativa que articula vozes da alteridade e impõe a representação 127


do Outro ao decurso de sua própria fala. A forma como essa escrita é consolidada importa para descobrirmos a exteriorização do saber político, uma vez que o mesmo somente se cristaliza através de suas representações exteriores. É pela dinâmica da escrita e da textualidade que podemos reconhecer o político enquanto ação estratégica que visa à transformação social. No estudo dessa dinâmica, o crítico Homi Bhabha (1998) propõe o conceito do “entre-lugar” para auxiliar a reflexão sobre as condições discursivas da enunciação, vista de acordo com as instabilidades e mudanças culturais. O “entre” incorpora o significado da cultura, ao permitir que se comecem a vislumbrar as histórias nacionais e antinacionalistas do povo (1998, p. 69). As memórias, pensadas enquanto representação simbólica do “entre-lugar”, formam o enunciado do espaço cultural que se faz entre o eu e o Outro, auxiliando na constituição de uma literatura póscolonial que não se fixa na dicotomia colonizador e colonizado, mas se volta à exteriorização da cultura, formada segundo a perspectiva da minoria. As memórias são enunciadas como representação, sobretudo, política, alicerçada na significação cultural de um povo que, neste momento, possui a voz que o representa. Enquanto espaço de intermediação, a narrativa memorialística desfaz a unidade da cultura, bem como inviabiliza a pureza do gênero, processando a voz dialógica do enunciado, em nome de uma nova enunciação da cultura. Assim, sem desmentir a importância documentária e social dos relatos autobiográficos, o estudo da obra memorialística, enquanto categoria do literário, vem ao encontro do estudo desses relatos como representações simbólicas das transformações culturais. Na 128


mão dupla, o enunciado das memórias tanto representa quanto se modifica por essas transformações, operado pela nova dinâmica de seu contexto pós-colonial. O deslocamento que afetou a cultura do pós-colonialismo trouxe as alterações que incluem as discussões sobre gênero, classe, raça, orientação sexual, etc. Assim, não apenas o conceito de identidade fixa é posto em questão, mas o de gêneros e classes é destituído enquanto categoria organizacional básica. A escrita que forma o texto memorialístico constitui o processo que articula em enunciado as diferenças culturais que sobredeterminam a convivência da população mestiça e marginalizada com a autoridade local, ao mesmo tempo se revela como um texto dialógico, intercalado de vozes, e hibridamente constituído. As memórias trazem em sua composição a interseção de gêneros presentes em textos variados, nos quais se incluem: transcrição de cartas, de poemas e de diários; descrições prolongadas de eventos (como o encontro episcopal); citações de leis, de passagens bíblicas, versículos, comunicados, noticiário de jornal, etc. As transcrições, ou reproduções, operam mudanças estruturais que singularizam a narrativa das memórias; modificam a textualidade pertinente ao gênero. Além de reforçar o compromisso do sujeito de enunciação com a verdade dos fatos, atualizam o contexto da narrativa, chamando o leitor ao tempo presente do enunciado. Em nota prévia à obra Creio na justiça e na esperança, Casaldáliga argumenta: “copio várias páginas do meu Diário porque elas já estavam escritas anteriormente e dão, com mais franqueza e autenticidade, o pão quente de cada dia”. (1978, p 16). A preocupação com o convencimento do leitor exemplifica o método que orientou na 129


construção da obra. A seleção do trecho do diário a ser transcrito nas memórias envolve também a circunstância e intenção do memorando. O prefácio no gênero memorialístico extrapola a função elucidativa, exercendo domínio sobre a condição do leitor. Ao mesmo tempo em que justifica e esclarece o texto a ser lido, o prefácio direciona a compreensão leitora, atentando o leitor aos momentos de destaque da narrativa. Em nota prévia de Nicarágua: combate e profecia, o autor faz advertência sobre os possíveis conflitos que a leitura poderá evocar. Esse relato nasceu da viagem de dom Pedro Casaldáliga à Nicarágua (onde permaneceu de 28 de julho ao dia 21 de setembro de 1985), representando o bispado brasileiro. Iniciado antes mesmo da viagem, o relato apresenta o desejo do bispo, pondo-se na condição de bispo latino-americano, de juntar-se aos outros companheiros de luta, em especial juntar-se à vigília de padre Miguel D’Escoto, em jejum pela não-intervenção do governo de Reagan na Nicarágua e em toda América Central. Em sua narração, não deixa de apresentar o discurso da alteridade, o posicionamento alheio, ainda que oposto ao seu, como no episódio da crítica dos bispos da Nicarágua que se sentiram ofendidos em sua autoridade episcopal, com a chegada de bispos brasileiros. A alteridade no gênero memorialístico, assim como as transcrições, retiram-no da base que o define enquanto narrativa subjetiva, imersa na individualidade do memorando, para mostrá-lo como conjunto de vozes que se presentificam no enunciado. A pureza dos gêneros é contestada pela crítica que tem se empenhado em mostrar a composição múltipla da obra literária. Emil Staiger contribuiu para o estudo dos gêneros, fundamentandose nas formas de vivência temporal do ser humano. Com base na 130


divisão tradicional, clássica, Staiger pensa nos conceitos estilísticos que ordenam o que deve expressar o sentido do lírico, do épico e do dramático na vida emocional. Assim, cada gênero possui uma característica própria da experiência temporal humana que o singulariza. O estilo lírico é tido como um despertar do homem para o passado, levando-o à recordação de modo emotivo. Na épica, o sujeito apresenta os fatos, com a postura de um observador que se faz presente. Enquanto no drama, a tensão toma conta do sujeito, mergulhando-o na expectativa do futuro. A narrativa das memórias compartilha a experiência do memorando de modo presente, na medida em que nos solicita participação política; de modo dramático, evocando a tensão que nos causa sentimentos de revolta e expectativa diante das denúncias expostas, formadas de casos sem solução e muita injustiça social. Ao mesmo tempo, as experiências são compartilhadas de modo lírico por um enunciador que busca a identificação com o sujeito que vivenciou o fato narrado: Daqueles dias, trago a imagem de uma árvore que queimamos involuntariamente, como quem carrega o remorso de um homicídio. Digo isso para explicar como me doíam, à minha chegada ao Mato Grosso, os infinitos tocos das queimadas do latifúndio (1978, p.20).

O relato de momentos de infância vem à tona para o memorando no tempo presente de sua narração, interferindo em seu modo de sentir. Não há distanciamento do sujeito adulto presente que enuncia e o menino que vivenciou o passado. Os momentos líricos integram a narrativa das memórias nas imagens feitas de aromas, impressões visuais, sensoriais ─ revividas na recordação de emoções passadas: 131


Era uma tarde de outono e chuviscava sem retóricas. Detrás dos vidros, na varanda, havia alguns gerânios como testemunhas e, no horizonte, sobre o Llobregat, a ermida da Mare de déu Castell. Minha mãe limpava seu quarto e eu arrumava na cozinha uma gaveta da cômoda. Era sábado, dia da rosca e daquele chocolate diferente do costumeiro “Arumi”. Era uma boa hora para a confidência.(1978, p. 21)

É neste momento singular que o menino confidencia o desejo de ser padre. O espaço da confidência é marcado pelo lirismo do autor e pelos sentimentos envolvidos em sua recordação, valendo-se da linguagem poética para enunciar um momento decisivo na vida do memorando. Como lembra Emil Staiger (1993), recordar é sempre um regresso que abole a distância entre sujeito e objeto, o chamado umno-outro lírico, o que explica a sensação de um sentimento revivido no momento da recordação. As recordações do seminário trazem a evocação da família e seu ambiente doméstico. No primeiro ano de estudos, no seminário de Vic, onde também havia estudado o tio, a vocação sacerdotal encontra-se com a do poeta. O seminarista lança os primeiros versos em uma discussão política, em que defendia sua comarca. As iniciativas culturais, artísticas e recreativas acompanhavam o cotidiano do seminário. Desse modo, as funções do poeta e do clérigo (personalidades que já habitavam o homem Casaldáliga) foram marcadas pelo conflito ideológico que cerceava a condição clerical. Os limites nas duas atividades tenderam a radicalizar os pontos de vista. Somente mais tarde, o aspecto engajado, tanto social quanto religioso, que está na base de suas ações, tanto literárias quanto missionárias, poderia manifestar-se livremente. No trabalho como missionário, Casaldáliga mostra convívio 132


plurilíngue (do catalão, do castelhano, do português e da língua dos índios das aldeias). A interculturalidade orientou sua trajetória de homem religioso. Em seu primeiro destino como sacerdote, em Sabadell, onde ficou conhecido como “padre dos malandros”, a convivência cultural se fez com as novas amizades propulsoras de novos ideais: o desejo de reformar a Igreja. De Sabadell, o seminarista foi transferido para Barcelona, uma comunidade bastante heterogênea, onde descobriu o povo nos metrôs, nas fábricas e nas ruas. Descoberta essa que o levou a escrever para programas de rádio, participando com poemas e romance vocacional. De Barcelona, Casaldáliga parte para a África, Guiné espanhola, onde realizava cursilhos mistos para brancos e negros, deparando-se com a incompreensão e preconceito dos colonizadores. Será justamente como fruto dessa convivência cultural que o missionário sente o chamado do Terceiro Mundo. Ao regressar a Madri, sentiu no coração que trazia, “confusamente como um feto, a África, o Terceiro Mundo, os Pobres da Terra e essa nova Igreja, a igreja dos pobres”, assim denominada no Concílio de Medellín (1978, p. 26). A interculturalidade que marca a narrativa das memórias está presente tanto nas recordações do período do seminário na pátria espanhola, quanto nas ações em Mato Grosso, onde o missionário claretiano necessitou seguir alguns ritos vivenciados pelos moradores da região, como as visitas de preceito pascal nos sertões do Norte e do Centro-Oeste. No convívio com as diferenças, o memorando participa dos costumes, da fé e da educação do povo. A permanência em um espaço fronteiriço trouxe-lhe a possibilidade de vivenciar transformações históricas e presenciar o encontro com o novo. Na Nicarágua, as viagens do memorando pelos povoados limites, 133


pelas fronteiras que lutam repelindo as incursões da Contra, permitelhe o convívio com diferentes culturas. A viagem pelo rio San Juan é descrita poéticamente: “com bordado verde ao longo de suas margens, balizado de fazendas em suas colinas suaves, nos vales intermediários” (1986, p. 60). As garças brancas de San Juan são comparadas às garças brancas do Araguaia, salpicando “sonhos de paz”. Nas comparações enunciadas, o memorando deixa entrever seu trânsito pela língua do país: “na Nicarágua chamam de lapa a arara brasileira, o guacamayo continental” (1986, p. 93). O olhar do poeta vê a beleza da paisagem e compreende o significado de seus mistérios naturais; enquanto o olhar do missionário engajado revela-nos a miséria, a tragédia humana da pequena Nicarágua, ou a “Nicaraguita”, assim denominada com a ternura dos que olham para os menores da História e do reino: os povos massacrados da América Central (1986, p. 9). O olhar do transculturador não abandona a visão piedosa do homem religioso; sobressaindo na visão das fronteiras, aproximando-as, contrastandoas. Somente na representação que testemunha o Outro, o autor poderia dar ao seu relato a posição política e mirar a seta revolucionária que dá o sentido da transgressão. O alvo da luta de Casaldáliga e que está testemunhado ao longo das narrativas memorialísticas são as instituições: Igreja e Governo. A denúncia narrada opera à nível dramático, exigindo uma dissolução futura do problema da exploração, na medida em que participa momentos de revolta do memorando: “área de Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) onde a bosta do boi equivale a um carimbo de ‘integração nacional’ e de desumana desintegração de índios, posseiros e peões” (CASALDÁLIGA, 1978, 134


p. 34). Desse sentimento de revolta, nasce em setembro de 1970, o informe-denúncia, Escravidão e Feudalismo no Norte do Mato Grosso, encaminhado às altas autoridades do país, à presidência da conferência nacional dos bispos, embora não tivesse o apoio da nunciatura na luta pelo combate à exploração. O fio da narrativa memorialística não perde o enfoque realista dessa denúncia, ainda que realize digressões e ainda que reflita sobre o futuro, o sujeito enuncia a história sem ficcionalizá-la, deixando romper a consciência crítica estendida, sobretudo, à própria Igreja da qual participa. Para ele, a Igreja não se deu bem com nenhuma revolução porque em grande parte a Igreja, como instituição, conviveu de modo cúmplice com o poder dos privilegiados. Se a literatura colonial é atravessada pela voz do colonizador e do clero romanizado, a literatura pós-colonial, por sua vez, pretende a resposta questionadora ao poder instituído. Os escritores pós-colonialistas buscaram subverter, na temática e também formalmente, os discursos que sustentaram a expansão colonial (SANTOS, 2005, p. 343). Naturalmente, o relato contra a Igreja institucionalizada constituise no discurso a favor da nova teologia, na medida em que mostra a defesa de uma religião que não se desliga de questões políticas e sociais e que está atenta aos problemas da população pobre das Américas. Por outro lado, se pensarmos que a escolha do gênero tem a denúncia por objetivo maior, o gênero memorialístico se apresenta formalmente como uma solução que se apresenta a uma crise sociocultural. Em afinidade com os estudos sociológicos e culturais, as memórias são lidas como representações simbólicas que enformam um espaço e tempo históricos, formas submergidas de uma constante política e 135


social da qual resulta o homem. Tendo a figura do memorialista como um ser que existe e atua no espaço e no tempo, sua leitura só poderá conduzir à peculiaridade poética de sua escrita que se vale do exercício da linguagem literária, não enquanto auto-referente, mas voltada à realização de seu sentido histórico. Justamente por trazer ao texto a história de um povo posto à margem, as narrativas memorialísticas alcançam um grau de subjetividade, de dramaticidade e de realismo que as constituem enquanto representação performativa da consciência crítica e humana de seu enunciador. As memórias respondem à ação repressora da chamada ideologia dominante que impõe posições enclausuradas na permanência da ordem, racionalmente refletida. O enunciado do discurso memorialístico articula uma textualidade livre da pureza do gênero, descompromissada com as normas da Igreja romanizada e compromissada com a denúncia da violência ao pobre. Portanto, representa nessa dinâmica um espaço intermediário, um “entrelugar” em que a cultura do Outro se mostra e atua na atividade religiosa e cultural de nosso escritor. Seu enunciado em processo coincide com as atividades missionárias. O autor que escreve se identifica, em ação performativa, ao missionário relatado. Ambos participam da experiência, enquanto vivência sentida e traduzida, que transforma o espaço da produção memorialística no lugar do encontro do homem com seu Outro, do memorando com seu leitor, lugar que se faz presença da possibilidade real de transformação. Referências bibliográficas BHABHA, H. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. 136


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MALINCHE: UM MITO MEXICANO REVISTO Roxana Guadalupe HERRERA ALVAREZ (IBILCE/UNESP) roxana@ibilce.unesp.br RESUMO: Quando Hernán Cortés chegou ao México em 1519, recebeu como presente de um cacique um grupo de jovens indígenas entre as quais se encontrava Malintzín ou Malinali. Essa jovem indígena seria batizada com o nome cristão de Marina, mas passou a ser conhecida como Malinche. Marina ou Malinche, graças a sua inteligência e conhecimento de línguas indígenas, transformou-se na companheira, intérprete e conselheira de Cortés. Com a colaboração dela, Cortés teve sucesso na conquista do México. Por esse motivo, a história oficial foi construindo a figura da Malinche como o epítome da traição. Atualmente, o romance Malinche, da escritora mexicana Laura Esquivel tenta, por meio da humanização da personagem histórica, resgatar uma feição mais complexa da Malinche para além do mito da indígena traiçoeira. PALAVRAS-CHAVE: conquista do México; Malinche; romance histórico

O povo asteca se estabeleceu no Vale do México no século XIV. Chegaram como andarilhos, levados pelo presságio de seus deuses: construir um grande império no local onde encontrassem uma águia pousada num cacto devorando uma serpente. Esse local foi encontrado no meio de uma ilha do lago Texcoco e ali fundaram a grande cidade de Tenochtitlán. Com o passar do tempo, os astecas 139


expandiram seus domínios e escravizaram diversos grupos indígenas da região. Cobravam altos tributos e mantinham esses grupos sob seu férreo domínio. Muitos eram sacrificados aos deuses numa cerimônia que incluía a extração do coração do sacrificado. Com a chegada de Hernán Cortés (1485-1547) à ilha que hoje compreende a República Dominicana e o Haiti, chamada nessa época La Española, em 1504, inicia-se um longo processo que culminará na conquista do império asteca. Cortés ganha a confiança das altas autoridades da ilha La Española e participa da expedição a Cuba, em1511, desempenhando cargos burocráticos. Alguns anos depois, em 1519, é enviado numa missão que tem como objetivo explorar o território mexicano para avaliar a possibilidade de mandar tropas para a conquista dessa terra. Mas Cortés desobedeceu às ordens e empreendeu a conquista do México e a fundação de cidades. Como foi observado, Cortés chega ao Golfo do México em 1519 e empreende uma longa viagem até o Vale do México, na região central. Nesse percurso, Cortés chega a Tabasco e recebe do cacique maia da cidade um grupo de vinte mulheres jovens, como presente. Entre elas se encontrava Malinali ou Malintzín (1504?-1527). Essa jovem indígena seria posteriormente batizada com o nome cristão de Marina e passou a ser conhecida na história mexicana como Malinche. Marina ou Malinche, graças a sua inteligência e conhecimento de línguas indígenas, nauatle e maia, transformou-se, aos poucos, na companheira, intérprete e conselheira de Cortés em terras mexicanas. Sem a colaboração decisiva de Malinche, Cortés provavelmente teria enfrentado grande número de obstáculos que retardariam o processo da conquista do México. Por esse motivo, a história oficial foi construindo a figura de Malinche como o epítome 140


da traição: alguém que é capaz de abandonar os valores de sua raça para entregar tudo ao estrangeiro invasor, como explica Octavio Paz em seu ensaio “Los hijos de la Malinche” [Os filhos da Malinche]. Na verdade, o nome Malinche significa “o senhor de Malinalli” e era dado a Cortés, segundo relata Bernal Díaz del Castillo, um cronista da época da conquista. Posteriormente o qualificativo passou a designar a figura de Malinali ou Marina. Octavio Paz observa em seu ensaio “Os filhos da Malinche”, incluído na obra O labirinto da solidão, que cada grupo social possui um repertório de expressões que dão vazão à ira ou à alegria. Para o mexicano uma dessas expressões é “¡hijos de la Chingada!”. O termo “la chingada” se refere à mãe, como figura mítica. Para o imaginário mexicano, descrito por Octavio Paz, é a representação da mãe que sofreu passivamente todos os significados possíveis do verbo “chingar”. Esse verbo pode significar restos de algo, idéia de fracasso, agredir. O verbo denota violência e, nesse sentido, significa também ferir, rasgar, destruir, violentar. Esse último significado adquire, segundo Paz, uma dimensão profunda no imaginário mexicano porque, de algum modo, o mexicano sabe que existe a possibilidade de “chingar” ou “ser chingado”, isto é, humilhar, castigar, ofender ou ser humilhado, castigado, ofendido. Vê-se a sociedade como uma arena na qual combatem os fortes (los chingones) e os fracos (los chingados). Mas, em seu sentido profundo, “la chingada” é a mãe violentada ou seduzida por meio de enganos. “Hijo de la chingada” é o produto da violência sexual ou do engano. Reside nisso a força ofensiva de seu significado: segundo Paz, para o espanhol, a ofensa contida na expressão “hijo de puta” está em ser filho de uma mulher que se entrega voluntariamente a qualquer um. Para o mexicano, a ofensa contida na expressão “hijo de la chingada” 141


é a de ser fruto de um estupro. Isso se relaciona estreitamente com a noção das origens dos mexicanos: a conquista foi uma violenta entrada do mundo espanhol no mundo mexicano, que foi destruído. Muitas índias foram violentadas pelos conquistadores espanhóis, mas o símbolo da entrega passiva e inerte à violência do conquistador é Malinche. Segundo Octavio Paz, Malinche se oferece voluntariamente a Cortés, no entanto ele a esquece quando Malinche deixa de ser útil. Ela se transformou na imagem que representa as mulheres indígenas fascinadas, violentadas ou seduzidas pelos espanhóis. E, segundo Paz, da mesma forma que o filho não perdoa a mãe que o abandona para ir procurar o homem que ela ama, assim o mexicano não perdoa a traição da Malinche. Ela encarna a submissão ao estrangeiro. Por isso o termo “malinchista” se aplica ao mexicano que deseja que o México se abra completamente ao elemento estrangeiro. Segundo Octavio Paz, a expressão “hijo de la chingada” é, para o mexicano, o grito que condena sua origem híbrida. A permanência das figuras históricas de Cortés e Malinche entre os mexicanos denota a presença de um conflito secreto, ainda não resolvido pelos mexicanos. Ao repudiar a figura de Malinche, o mexicano rompe com seu passado, renega de suas origens e penetra sozinho na vida histórica. O mexicano não deseja ser nem índio nem espanhol, também não deseja ser descendente deles. Não deseja se ver como mestiço, prefere ser filho do nada, começar em si mesmo, segundo Octavio Paz. Essa perspectiva da figura de Malinche, do modo como Paz a constrói, permite entrever que na cultura mexicana, durante muitos anos, o processo da conquista espanhola foi visto como essencialmente destrutivo. Já havia grandes culturas no México tomado por Cortés. Havia, entre os astecas, uma organização social 142


complexa, um sistema político e econômico baseado na escravidão de outros grupos indígenas, havia uma religião que explicava a origem do mundo e seu funcionamento a partir de um panteão no qual existia um deus para cada fenômeno natural, para cada atividade humana. Mas os astecas eram uma cultura predatória e foi precisamente essa característica a que motivou a vitória de Cortés sobre eles. O conquistador espanhol explorou ao máximo as desavenças existentes entre o império asteca e os demais grupos indígenas subjugados e escravizados por esse império. Com alianças importantes feitas por meio da comunicação mediada por Malinche, e um número expressivo de guerreiros dispostos a aderir à causa de Cortés, os espanhóis tomaram Tenochtitlán em 1521. No entanto, outro fator determinante para a queda dos astecas foi o fato de o imperador Montezuma ter acreditado em presságios que prometiam a volta do deus Quetzalcoált. Cortés explorou essa lenda e mascarou suas verdadeiras intenções, confundindo Montezuma, o qual abdicou do seu reino e o entregou a Cortés, fato que surpreendeu seus súditos e o levou a uma morte misteriosa, até hoje não se sabe ao certo se Montezuma morreu apedrejado pelos seus súditos ou se foi assassinado pelos espanhóis. A grande questão que se coloca é a importância do papel de Malinche na intermediação entre Cortés, os grupos subjugados pelos astecas, e o próprio Montezuma. A tarefa tradutória de Malinche permitiu uma comunicação que redundaria na queda do império asteca. Pouco se sabe sobre os motivos que levaram essa figura controversa a agir como o fez. Para tentar descobrir essas motivações e recriar uma complexa vida interior, a escritora mexicana Laura Esquivel (1950-) retoma o mito de Malinche, no romance homônimo, publicado em 2004, e o reconstrói a partir da criação de uma 143


personagem complexa. Ao longo dos oito capítulos do romance, há um percurso da personagem Malinali, da sua infância com a avó, passando pela experiência de ter sido vendida como escrava pela mãe dela, quando contava somente cinco anos, até a adolescência, quando conhece Cortés e começa a servi-lo, tornando-se sua amante e mãe do seu filho Martín. O destino final de Malinche será o casamento com outro espanhol, chamado Jaramillo, por ordens de Cortés; a vida familiar feliz, o nascimento da filha María e a morte prematura, ocorrida no jardim da casa de Malinche, segundo o capítulo final do romance. Na verdade, supõe-se que a morte de Malinche se deu por causa da varíola, doença que também matou milhares de indígenas mexicanos. Esquivel consegue dotar a personagem literária de uma complexidade que permite entrever as possíveis motivações que levaram Malinche a desempenhar um papel tão importante na conquista do império asteca. Suas origens estavam estreitamente vinculadas aos grupos indígenas subjugados pelos astecas. Ela era escrava quando os espanhóis chegaram, foi dada como presente a Cortés, junto com outras jovens. Sob o domínio de Cortés, que logo percebera sua inteligência e habilidade de se expressar nas línguas maia e nauatle, foi alçada à categoria de tradutora e intérprete, ocupando um lugar importante e preservando sua vida e integridade física precisamente porque desempenhava um papel fundamental. São da personagem as palavras esclarecedoras sobre seu próprio destino: “Nunca antes experimentara a sensação gerada por estar no comando. Logo aprendeu: quem controla a informação, os significados, adquire poder. Ao traduzir, dominava a situação, e não apenas isso: a palavra podia ser uma arma. A melhor das armas.” (ESQUIVEL, 2004, p. 70) Se Malinche não tivesse demonstrado suas habilidades, 144


provavelmente teria vivenciado um destino muito pior. Ser subjugada por Cortés, de quem teve um filho, o primeiro mestiço, o primeiro mexicano, como já se propalou entre os habitantes do México atual, foi uma experiência que, segundo Esquivel, se relaciona estreitamente com a visão que naquela época se tinha das mulheres em geral. Tanto entre os astecas quanto entre os espanhóis do século XVI, esperava-se que a mulher desenvolvesse uma série de tarefas que a colocavam ao serviço da família e do homem, seja na figura do pai ou do marido. Servir sempre foi o destino das mulheres e Esquivel acrescenta no desenvolvimento do seu romance uma perspectiva clara do papel que essa tarefa essencialmente feminina significou no cenário da conquista do México. Malinche, ao desenvolver seu papel servil, encontrava-se presa e submetida, sem condições de compreender claramente as conseqüências de seu trabalho como tradutora e intérprete de Cortés. Em várias passagens do romance, é possível apreciar como a personagem se debate presa numa situação incomum: aparentemente sua tarefa de tradutora a faz ter muitos privilégios (conserva a vida e sua integridade física), mas, ao mesmo tempo, é subjugada por Cortés, tomada por ele como concubina, e levada a participar dos eventos que eclodiram na queda do império asteca. Na personagem criada por Esquivel, é possível apreciar um dilema moral, o mesmo que alimenta o mito de Malinche no contexto histórico mexicano: Malinche sente que com sua tarefa de tradutora está traindo o mundo indígena e entregando-o a Cortés. No entanto, a personagem de Malinche também sente que está vindicando os direitos de seu grupo indígena, escravizado pelos astecas durante muito tempo, e essa vindicação consiste em impor aos astecas a experiência de serem subjugados e aniquilados. Esquivel deixa claro 145


que a condição submissa da mulher, personificada na personagem da Malinche, é um destino do qual não se podia nem se pode, em muitas circunstâncias atuais, fugir. Malinche cumpriu seu destino natural de submissão e ao fazê-lo participou da queda do império asteca. Seria possível responsabilizá-la pelas conseqüências do seu ato de submissão a Cortés? Essa parece ser a pergunta oculta no romance. O mito da Malinche se vê, assim, renovado pelo romance de Esquivel: a Malinche não traiu seu povo mexicano, porque nem havia a noção de unidade entre as diversas etnias do México pré-colombiano, por isso não se pode falar de uma nação única que pudesse ser traída, como reconhecem alguns historiadores mexicanos atuais. Malinche reproduziu, com seu papel de tradutora e intérprete, um destino de submissão já imposto às mulheres em sua cultura e na cultura espanhola, trazendo como conseqüência a queda do império asteca. Nesse sentido, é possível estabelecer uma correlação entre Malinche e Eva. As duas são responsabilizadas por quedas espetaculares: a dos astecas e ao do homem. Malinche também pode ser vista, pela caracterização da personagem no romance de Esquivel, como a depositária do destino asteca já previsto pelos presságios religiosos: a volta de Quetzalcoátl significava a destruição do império asteca. Cortés era esse deus, Malinche era uma espécie de sacerdotisa ao serviço do destino.

Referências bibliográficas ESQUIVEL, L. Malinche. Trad. Léo Schlafman. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007. 146


PAZ, O. Los hijos de la Malinche. In:___. El laberinto de la soledad y otras obras. New York: Penguin Books, 1997.

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O FACTUAL TRANSFORMADO EM LITERÁRIO Sílvia C. R. Damacena de OLIVEIRA (UNILAGO) silcena@terra.com.br RESUMO: Desde que começou a escrever, Roberto Drummond criou para suas primeiras obras o Ciclo da Coca-Cola, cujo enfoque era um novo fazer literário: a literatura pop. Valendo-se de uma série de procedimentos emprestados da Pop Art, o escritor criou um estilo singular de escrita, sobretudo porque toma como matéria básica para suas criações o chamado “lixo cultural”, muitas vezes idenficado com matérias publicadas pela imprensa com grande repercussão entre a população. Neste trabalho, buscamos mostrar como se dá esse processo no conto “Por falar na caça às mulheres”, que abre a segunda parte do livro Quando fui morto em Cuba (1982), em que um crime passional – amplamente divulgado pela mídia da época – alicerçou a criação do texto literário. PALAVRAS-CHAVE: Mídia; Literatura Pop; Arte Pop; Roberto Drummond. 1. Ciclo da Coca-Coca Desejoso de inovar em literatura, o escritor Roberto Drummond cria o Ciclo da Coca-Cola cujo enfoque é a presença da cultura de massa na sociedade. Para isso, escolhe a coca-cola como uma forma de representação do domínio cultural dos Estados Unidos e também de suas multinacionais. O universo pop conquista um espaço na literatura que até então não tinha. Maria Lúcia Guelfi esclarece que: 149


Tendo migrado das clássicas interpretações sobre a realidade do Brasil, a palavra ciclo entrou na história da literatura brasileira para designar as seqüências de romances que narram transformações econômicas e sociais, ocorridas em longos períodos, descrevendo as diferentes etapas de uma determinada fase de produção. O modelo básico, que inspirou RD, vem do romance neonaturalista dos anos trinta, que consagrou o ciclo da cana-de-açúcar, de José Lins do Rego, e o ciclo do cacau, de Jorge Amado (GUELFI, 1994, p. 245)

Inseridas no contexto social da segunda metade do século XX, no Brasil, as personagens de Roberto Drummond encarnam o espírito das massas unificadas pela urbanização acelerada e suas consequências. Para fazer frente a este cenário, o escritor criou uma literatura contestadora, embora não parecesse, cujo intuito era escrever “uma literatura sem cerimônia, sem intelectualismo, uma literatura sem nenhum vínculo com a literatura tradicional” (DRUMMOND, 1975, p. 3). Os livros que compõem esse Ciclo se pautam por um experimentalismo que os diferencia da literatura dita de denúncia, mas também não coloca o leitor numa encruzilhada, impossibilitando que ele compreenda o que se conta, apesar de não serem leituras simples mesmo que, num primeiro momento, pareçam ser. Não podemos perder de vista que Roberto Drummond nunca esperou uma posição passiva do leitor; nas quatro obras que compõem o Ciclo, há, sempre, uma espécie de exigência, talvez coubesse melhor a palavra “convite”, para que o leitor participe e interfira, ora como investigador, ora como “personagem coadjuvante”, ora como simples leitor curioso do destino das personagens, naquilo que está sendo narrado. No entanto, por mais atraente que possa parecer participar deste jogo, desta performance, para muitos leitores, sobretudo os acomodados, é tarefa além das expectativas para uma obra literária. 150


Na verdade, como explicou o crítico Wilson Martins (apud Cremilda Medina), Roberto Drummond fracassou no seu projeto de produção de uma literatura popular no Ciclo da Coca-Cola. Ao contrário, o que ele produziu foi uma literatura sofisticada em termos de construção formal; parafraseando o crítico, podemos dizer que, apesar de o escritor ter um comportamento rebelde diante da literatura convencional, o que se viu foi uma prática bastante diferente de construção textual. 2. A literatura pop Como já dissemos, desde que começou a escrever, Roberto Drummond buscou inovar, sobretudo ao criar o chamado Ciclo da Coca-Cola, cujo projeto era ousado: criar uma literatura pop. Alicerçada na Arte Pop, a literatura pop emprestou deste movimento artístico vários de seus fundamentos. Entretanto, foi além e criou para si algumas particularidades que não vemos na Pop. Como a primeira, sofreu, ou melhor, ainda sofre preconceitos por parte de quem resiste às mudanças, sobretudo quando estas propõem à realização de um trabalho a partir de uma matéria-prima desqualificada, vista como o lixo cultural. Lawrence Alloway diz: A Arte Pop é por vezes relacionada tanto de maneira jocosa como com argumentos sérios com a comunicação de massas: as referências aos mass media na Arte Pop têm servido de pretexto para identificar completamente a origem com a adaptação. Pretende-se que se conclua que os artistas pop são idênticos às suas fontes. Uma tal concepção é duplamente falsa: na Arte Pop, a imagem encontra-se num contexto completamente novo e esta é uma diferença crucial: além disso, os mass media são mais complexos e menos inertes do que esta maneira de ver pressupõe. A rápida celebridade de alguns artistas tem sido maliciosamente comparada com a 151


súbita ascensão e queda de alguns nomes do espetáculo – por exemplo, os cançonetistas que gravam discos de 45 rotações ou as mais inexpressivas das starlets. (LIPPARD, 1976, p. 28; 30).

Alloway toca em dois pontos fundamentais para compreendermos a Arte Pop e que servem, também, para a literatura pop: o primeiro é a questão da apropriação do deslocamento da imagem ou referência para um contexto diferente do habitual e o segundo que a produção dos mass media não é linear e redutoramente simples como usualmente se imagina. Surge, então, um impasse: o que fazer com um “novo” que difere em sua constituição, do novo definido pela tradição moderna? No caso da Arte e da literatura pop deve ser acrescentada que esse “novo” é, nos anos 60-70, estranho ao universo artístico, pois diz respeito àquilo que nunca antes estivera ali. Música popular, artistas de cinema, televisão e rádio, histórias em quadrinhos, fotonovelas, romances “cor-de-rosa” convivem, lado a lado, com referências canônicas da alta cultura. As referências da cultura de massa invadem a arte e esta passa a conviver com dados e procedimentos impensados até então. Esse novo contexto é assumido pela literatura pop de Roberto Drummond e acrescido de elementos específicos da cultura brasileira: o futebol, a religiosidade, a História e a política. Estes temas não são inéditos na literatura, mas a forma como o escritor os abordou é. Colagem, procedimento serigráfico, apropriação e mistura de referências díspares são procedimentos que alicerçam a abordagem temática dos textos, dando-lhes uma certa complexidade que a distancia do que se considera como lixo cultural, revelando que há, nestes textos, uma função crítica vinculada ao estranhamento que eles produzem. 152


Clichês, marcas e produtos delineiam as personagens que não têm profundidade psicológica e, portanto, têm como traço característico a valorização do externo, da pura aparência que se mostra como metáfora delas mesmas. Não só o exterior, mas também os valores são construídos a partir dos estereótipos da cultura de massa, condizentes com o imaginário das personagens, cujas vidas são vazadas por clichês publicitários, que lhes direcionam a vida. Ao privilegiar a matéria do cotidiano ordinário, o escritor corre o risco de reduzir a sua literatura num “flagrante da vida real” – emprestamos, aqui, a expressão de Luís Costa Lima (1981) em sua análise dos textos de Rubem Fonseca. Entretanto, não é isso o que percebemos nos textos de Roberto Drummond. Ao contrário, é a sua habilidade em lidar com essa matéria tão diversa e não familiar ao contexto literário que surpreende.

3. O factual transformado em literário O conto “Por falar na caça às mulheres” faz parte do livro Quando fui morto em Cuba, publicado em 1982, – obra que encerra o chamado Ciclo da Coca-Cola da literatura pop de Roberto Drummond. O texto divide-se em oito partes: 1ª. - narra-se, em textos que simulam paredes pichadas, como Sérgio convenceu Juliana a namorá-lo. 2ª. – Em 1973, numa coluna social, um colunista conta como foi o casamento de Ju e Serjão, jovens de famílias tradicionais da cidade. 3ª. – Novamente, a narrativa é feita com frases pichadas em muros. São frases que retomam traços do cotidiano, misturadas a outras que se abrem em protesto ao regime militar e à ditadura. 4ª. – Numa página policial, narra-se que Serjão havia assassinado Ju com três 153


tiros à queima-roupa. 5ª. – O texto simula uma página de jornal em que se conta que a empregada dizia que ultimamente o casal brigava muito. 6ª. – Ainda nas páginas de jornal, é relatado pela doméstica que o empresário costumava torturar a filha para que esta contasse se a mãe estivera com algum homem. 7ª. - Os jornais contam como foi que Sérgio se entregou. 8ª. – o narrador conta, nesta parte, como se sentia Juliana enquanto morria. Um dos problemas que surgem quando o escritor trabalha com fatos datados é a vulnerabilidade dos mesmos. Até em que momento da história, um fato qualquer, ainda que com grande repercussão popular, se mantém vivo na memória das pessoas? E outro problema: como um leitor de uma geração posterior conseguirá identificar traços no texto literário que o levem ao caso matriz se não há, via de regra, nenhuma pista clara que permita a ligação entre a literatura e o jornalismo? Diante disso, o trabalho do estudioso se mostra fundamental, pois o mesmo fará a mediação entre o fato cotidiano e o texto literário. Sem este trabalho, cremos, haverá um apagamento das referências factuais e o texto literário adquirirá independência. Surge então, outro questionamento: até que ponto essa independência enriquece o texto? É certo que o texto artístico sobrevive independentemente de qualquer ligação referencial com a história, entretanto se o mesmo nasceu a partir de referências datadas, sua leitura será enriquecida ainda mais se o leitor dispuser do fato matriz. Sendo assim, retomemos o crime e o julgamento que originaram o conto “Por falar na caça às mulheres”.

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3.1. O fato Em 30/12/1976, a sociedade brasileira testemunhava um assassinato que entraria para a história das lutas feministas. Raul Fernando do Amaral Street – conhecido como Doca Street – mata com quatro tiros à queima-roupa, Ângela Diniz, com quem mantinha um relacionamento amoroso. Em primeiro julgamento, amplamente divulgado pela mídia, o acusado foi inocentado sob o argumento de “defesa da honra”, pois teria sido traído. Entretanto, devido à reação popular, o julgamento foi cancelado. Numa segunda ocasião, em um novo julgamento, Doca Street foi condenado por homicídio. Os autos do Crime da Praia dos Ossos descrevem Ângela Diniz da seguinte forma: ‘‘Uma vênus lasciva, dada a amores anormais. Escarlate de que fala o Apocalipse. Prostituta de alto luxo da Babilônia que pisava corações e com suas garras de pantera arranhou os homens que passaram por sua vida.’’ Além desta descrição, Ângela é apontada como lésbica, consumidora de cocaína, fumante de maconha e cúmplice de um assassinato. Diante disso, a ‘‘ficha’’ da socialite apresenta motivos — segundo o Tribunal do Júri de Cabo Frio, no Rio de Janeiro —, mais do que suficientes para ela ser morta por seu namorado. Durante o primeiro julgamento, que durou 21 horas, em outubro de 1979, Doca Street permaneceu de cabeça baixa. Apontado pelo advogado Evaristo de Moraes Filho como um ‘‘mancebo bonito e trabalhador’’, saiu vitorioso da acusação de assassinato e teve o apoio de muitas mulheres que permaneceram em frente ao fórum de Cabo Frio segurando cartazes onde se lia: “Doca, estamos com você”. Pelo que se lê nos autos do crime, não se julgou o assassinato, mas a conduta de vida de Ângela, demasiadamente liberal para a época. 155


A reputação da vítima foi a carta de absolvição do criminoso que matou em ‘‘legítima defesa da honra depois de ter sofrido violenta agressão moral’’, na tese cunhada pelo outro advogado, Evandro Lins e Silva. A decisão, de 5 votos a 2, revelava que, na visão dos jurados, ele havia apenas se excedido ao reagir à agressão moral que recebera e deveria, por isso, ficar em liberdade, apenas com um pena simbólica. Transformado em programa de auditório, com direito a vaias, gritos e aplausos de uma plateia de mais de 300 pessoas, o julgamento se tornou um debate sobre o estilo de vida de Ângela Diniz. 3.2. Do factual ao literário Primeiramente, há neste conto um entrecruzamento de gêneros textuais que estruturam a narrativa: pichações em muro, textos jornalísticos de coluna social e de página policial, depoimentos e o delírio de Juliana na hora da morte. A primeira fase do romance é toda anunciada por frases apaixonadas pichadas nos muros próximos à mansão onde morava Juliana quando solteira. Como numa colagem Pop, o texto é uma composição repleta de frases-clichê que vão descrevendo: 1) o desenrolar da conquista – “Juliana, Sérgio te ama” (13/12/70); 2) a conquista – “Sérgio e Ju estão in love” (24/04/71) -; 3) a jura de amor eterno – “Serjão fará Ju feliz por toda a vida!” (15/05/71). O romance perfeito, alicerçado pelo ideal dos contos de fadas, é selado com o casamento de ambos – Juliana Montenegro e Sérgio Avelar. A cerimônia obedece rigidamente aos padrões chiques e elegantes dos casamentos entre os entes das famílias tradicionais da sociedade, no caso, mineira. Deste ponto em diante, podemos dizer 156


que a narrativa se revela decalcada de uma narrativa da vida real. Roberto Drummond toma uma matriz – o caso Ângela Diniz e Doca Street – e cria uma nova narrativa. São muitos os pontos coincidentes entre o caso e o conto em questão: 1) Doca Street e Ângela Diniz, ambos ricos e de famílias tradicionais; Serjão e Juliana, no conto, também são assim descritos; 2) Juliana foi eleita “Glamour Girl” numa promoção de um colunista social e, ainda, escolhida pelo colunista Ibrahim Sued como o rosto mais belo de todo o Brasil; Ângela Diniz era conhecida como a “A Pantera de Minas”, epíteto que ganhou do mesmo colunista social. As personagens do conto, após o casamento, vivem uma história de amor relativamente curta, assim como o romance entre Doca e Ângela. Este momento não é descrito pelo narrador que, num processo semelhante ao da colagem na Arte Pop, informa ao leitor sobre o que acontecia no Brasil, de 1973 até quando Juliana fora assassinada pelo marido, num dia qualquer da década de 80. Esta parte foi construída com frases que revelam desde protestos políticos acalorados – “Abaixo a ditadura!”, “Fora Médici!”, “O ABC é o Brasil!” -; passam pela exaltação à contracultura – “Voltem os Beatles!”, “Viva Chico Buarque”, “LSD” -; e chegam aos aspectos mais banais e cotidianos da vida – “Liquidação é nas Casas Pernambucanas!”, “Julieta está dando!”, “Maurinho é bicha”. Essa mistura de temas e de referências remete o leitor a inúmeros aspectos e vertentes da vida, numa tentativa de abarcar, por meio de fragmentos, a realidade; é uma tentativa de ilustrar a simultaneidade da vida diária marcada pelo excesso de fatos e informações. O procedimento de construção textual baseado na colagem Pop é bastante comum na literatura pop de Roberto Drummond. É 157


por meio dele que o autor, muitas vezes, transita do referencial ao literário, transformando referências factuais em texto artístico. Tal como na Arte Pop, na literatura pop o procedimento da colagem se dá a partir da junção de referenciais retirados dos mais diversos campos sociais. Colocadas lado a lado, essas referências obrigam o leitor ao contato com elas, mesmo que de maneira superficial, uma vez que nem todos os leitores têm conhecimento daquilo que está sendo citado. (OLIVEIRA, 2008, p. 166-7)

Após valer-se da colagem, Roberto Drummond retorna à sua matriz a fim de serigrafá-la. Nesse processo, os artistas copiam uma imagem para depois fazerem alterações na mesma conforme seu objetivo. À semelhança do conhecido artista Pop, Andy Warhol, em cujas serigrafias, muitas vezes, enxergavam-se, na imagem-matriz, os traços originais em preto e branco antes de serem modificados e pintados, neste conto o leitor, se conhecedor da história do assassinato cometido por Doca Street, é capaz de enxergar a fonte de onde nasceu a história das personagens Juliana e Sérgio. No caso desta “serigrafia”, o processo é um pouco diferente, uma vez que ela não parte de um produto ou da imagem de alguém famoso, mas sim de uma “história real”. No conto “Por falar na caça às mulheres”, Roberto Drummond colhe na mídia as informações sobre o caso e as documenta sob a forma de um arranjo estético que ilustra a condição desigual da mulher, numa sociedade conservadora e machista. Klaus Honnef (2005, p. 46) explica que, “na era dos mass media, toda a percepção da realidade é produto de uma comunicação.” Podemos dizer que para Roberto Drummond também. A percepção da realidade nos é mostrada pela escolha que o escritor faz dos fatos 158


noticiados no dia-a-dia. Eis, aqui, um ponto singular na obra do escritor. Muitos de seus textos dialogam, num processo intertextual, com textos cotidianos, mas que por algum motivo foram amplamente divulgados pela imprensa. Entretanto, estes textos têm registros factuais, muitas vezes, passageiros, que exigem do leitor um conhecimento que, não raro, desfez-se com o fato cotidiano. Neste sentido, por exemplo, questionamo-nos como um leitor nascido na década de 80 poderia supor que o conto “Por falar na caça às mulheres” dialoga com um fato que, um pouco antes de sua publicação, havia sido sistematicamente noticiado pela imprensa, uma vez que não há nenhuma referência no conto que diz isso? Para um escritor que criou o que ele chamou de literatura pop, esse talvez se mostrasse um problema, pois se a intenção é pontuar aspectos e fatos da sociedade, de alguma forma, eles precisam estar acessíveis ao público de algum modo. Registrar e/ ou resgatar esses fatos, cremos, seria uma das funções do estudioso da literatura pop de Roberto Drummond. Juliana, a protagonista do conto, é assassinada porque o marido tem uma forte crise de ciúme desencadeada pelo amor que a mesma nutria pelos personagens representados pelo ator Reginaldo Faria nas novelas Água Viva (1980) e Baila Comigo (1981) da Rede Globo. Na época em que as novelas estavam no ar, segundo o depoimento de Sérgio Avelar, Juliana chegava mais cedo em casa, tomava banho de piscina e posicionava-se em frente à tevê em atitudes provocantes. Alertada pelo marido, ela não se importa e mantém o mesmo comportamento. Sérgio sente-se traído e atira na tevê quando aparece o ator Reginaldo Faria. Em nome da honra, o marido dispara contra ela três tiros e a mata. Com certo humor, revela-se, aí, o poder da televisão sobre as pessoas. Juliana e Sérgio figurativizam plenamente 159


este estado de alienação. Vivem um problema transposto ou causado por uma ilusão, mas cujo desfecho é trágico e real. Na “história real”, na história-matriz, Doca Street não matou Ângela por um amor virtual, mas a causa foi a mesma: ciúme. Em ambos, texto-matriz e conto, o desenrolar dos fatos é semelhante, como num processo fotográfico ou serigráfico. Num primeiro julgamento, Doca Street é inocentado sob o argumento de “legítima defesa da honra” defendido pelo advogado Evandro Lins e Silva, e sai do tribunal sob aplausos de mulheres que seguravam cartazes onde se lia: “Doca, estamos com você”. No conto em questão, Sérgio, após cometer o crime, desaparece por um tempo. Quando retorna e se apresenta na delegacia, ao lado de seu advogado – Lins Bernardes (parte do sobrenome de ambos os advogados é o mesmo), Ele foi recebido na porta da delegacia aos gritos de “lindo!lindo” por moças que portavam cartazes com os dizeres “Viva Serjão!”, enquanto as feministas carregavam cartazes onde estava escrito “Quem ama não mata! E ficavam em silêncio. (DRUMMOND, 1982, p. 78)

Roberto Drummond engloba neste trecho as duas posições tomadas pelas mulheres na época do crime: as primeiras, apoiaramno; não o enxergavam como assassino, mas sim como um galã traído. Doca criou essa imagem; Sérgio a retomou pelas mãos do escritor. No entanto, houve também quem protestasse. Nesse grupo estão as feministas que encabeçavam o movimento “Quem ama não mata”. Neste ponto, texto-matriz e conto coincidem: a frase e a campanha são as mesmas. Também coincide a justificativa do crime – “legítima defesa da honra”. Desse modo, podemos dizer que Roberto Drummond, à semelhança da construção artística de Wharol, serigrafa 160


um fato divulgado pela mídia e por ela levado à plena discussão pela sociedade e o transpõe para o universo literário. Ao emprestar um procedimento de criação específico da Arte Pop – a serigrafia –, o escritor refaz a matriz – o crime - e o transforma em literatura. Se neste ponto a transformação é clara, não podemos dizer o mesmo em relação ao desfecho da história dos assassinos: em novo julgamento, Doca Street, é condenado a 15 anos de prisão; quanto a Sérgio, o texto nada explica. Ângela é morta com quatro tiros; Juliana, com três. A partir daí, o narrador vai relatar o delírio de Juliana enquanto recebia cada um dos tiros – denúncias explícitas da condição de opressão vivenciada pelas mulheres em diferentes situações da vida cotidiana. Na narração dos três tiros, há uma espécie de colagem irônica de um rock que mistura em sua letra, denúncias escritas em português com frases de agradecimento escritas em inglês. Em todas, o foco é a exploração da mulher. Há, também, a narração do delírio de Juliana no quarto tiro, que não houve. Este tiro faz parte da história de Ângela Diniz, mas é recuperado, no conto, para ressaltar a condição de submissão imposta às mulheres. Neste tiro, que não houve, Juliana ouvia a voz de Amélia, a do samba, falando: - Pior, Ju, não é a morte no gatilho, pior é quando nos matam e nos deixam com a sensação de que estamos vivas e que somos vacas parideiras, pior, Ju, é essa morte com tiros silenciosos e que transforma nosso coração num pássaro empalhado que já não canta... (DRUMMOND, 1982, p. 83)

Como Ângela Diniz, Juliana é bela e independente. Entretanto, o relacionamento com Sérgio fora tornando-a um “pássaro empalhado que já não cantava...”, como disse Amélia no final do conto. Quando Ju resolve viver, é morta definitivamente, ou melhor, realmente. 161


Finalmente, devemos ressaltar que toda a narrativa é permeada por elementos da cultura de massa e por referências à realidade política das décadas de 70/80 – dois pontos estruturantes da literatura pop de Roberto Drummond.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DRUMMOND, R. Quando fui morto em Cuba. São Paulo: Atual, 1982. GUELFI, M. L. F. Narciso na sala de espelhos: Roberto Drummond e as perspectivas pós-modernas da ficção. 394 f. 1994. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1994. HONNEF, K. Warhol. Singapura: Paisagem, 2005. LIMA, L. C. “O cão pop e a alegoria cobradora” In: ___. Dispersa demanda – Ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, p. 144-158. LIPPARD, L. R. (Org.) et al. A arte pop. São Paulo: Verbo/ Edusp, 1976. MEDINA, Cremilda. Escritor brasileiro hoje – 26 – Roberto Drummond: de radical “pop” à serenidade realista. Minas Gerais. Belo Horizonte. 20 abr. 1985. Suplemento literário. p. 8.

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OLIVEIRA, S. C. R. D. A literatura pop de Roberto Drummnond: arte pop, referencialidade e ficção. 496 f. 2008. Tese (Doutorado) – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, São José do Rio Preto, 2008.

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