Edição João Paulo Vani MTB 60.596/SP
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Wimmer, Norma Trânsitos entre representações discursivas na literatura contemporânea / Norma Wimmer. - 1. ed. São José do Rio Preto, SP: HN, 2014. 210p. ISBN 978-85-60521-60-9 1. Teoria Literária. I. Título.
CDD: 869.93 CDU: 821.0
SUMÁRIO INTRODUÇÃO
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1. Entrançados romanescos, autobiográficos e históricos em Die Stadt der Engel oder the overcoat of Dr. Freud, de Christa Wolf - Celeste Ribeiro de sousa
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3. ROGER CASEMENT SOB O OLHAR POLIÉDRICO DE VARGAS LLOSA EM EL SUEÑO DEL CELTA Sigrid Renaux
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5. Passado Contínuo, mobilidade e dialogia - Berta Waldman
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7. AGIR (OU NÃO) COM PALAVRAS: A PARÓDIA DOS TRIBUNAIS EM DESONRA, DE J.M. COETZEE - Gracia Gonçalves
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2. LOS GIRASOLES CIEGOS. SEGUNDA DERROTA: 1940 - Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento
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4. Le nouveau Candide: uma crítica à modernidade - Norma Wimmer
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6. NO LUGAR DAS VITIMAS, OS PERPETRADORES - Nancy Rozenchan
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8. A complexa dinâmica da arte em movimento: Banville e a ordem no caos - Laura P. Z. Izarra
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9. A TRANSPOSIÇÃO DE BIOGRAFIAS PARA O PALCO EM ANDERSEN’S ENGLISH, DE SEBASTIAN BARRY - Munira H. Mutran 10. SUISHI (AFOGAMENTO, 2009) DE KENZABURŌ ŌE – ATUALIZAÇÕES E AUTO-REFERENCIAÇÕES ENTRE FICÇÃO E REALIDADE - Neide Hissae Nagae
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INTRODUÇÃO Trânsitos entre representações discursivas na literatura contemporânea é uma coletânea de textos elaborados por professores pesquisadores de diversas universidades brasileiras, integrantes do Grupo de Trabalho “Literaturas Estrangeiras” da ANPOLL (Assossiação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Linguística ) durante o biênio 2010-2012, e tem por objetivo oferecer visibilidade da pesquisa por eles desenvolvida, bem como contribuir com o estudo e com a divulgação de produções das literaturas estrangeiras modernas. A publicação acolhe análises de obras de autores de língua alemã, espanhola, francesa, hebraica, inglesa e japonesa – algumas produzidas ainda no final do século XX, outras, já no século XXI – cuja problemática aponta para a questão da representação da contemporaneidade abordada como percepção privilegiada do momento presente, ou ainda como revisão do passado, no presente. Sustentam teoricamente os textos da coletânea algumas das ideias de Linda Hutcheon, Fredric Jameson, Jane Flax, Jean François Lyotard; o elo de ligação entre as reflexões desenvolvidas parece apontar para os pensamentos de Giorgio Agamben acerca do contemporâneo – ou seja, para a concepção da contemporaneidade apreendida como uma relação singular com o próprio tempo e constituída por um processo de adesão e de distanciamento. Segundo o filósofo italiano, a contemporaneidade compreende um olhar fixo sobre o presente, não uma busca de suas luzes, mas a percepção de sua sombra, de sua íntima escuridão. Contemporâneo seria, portanto, aquele que interpreta a sombra de seu tempo, aquele que vislumbra sua luz inalcançável, assim como aquele que, relacionando sua contemporaneidade com outros tempos, é capaz de rever a história e a criação artística. Questões referentes à problemática da contemporaneidade são abordadas por Celeste Ribeiro de Sousa em seu texto intitulado 7
Entrançados romanescos, autobiográficos e históricos em Die Stadt der Engel oder the overcoat of Dr. Freud, de Christa Wolf. Em seu texto, a pesquisadora reflete sobre os três fios fragmentados que conduzem a narrativa de Christa Wolf por gêneros não definidos: a vida cotidiana da protagonista em Los Angeles, no Getty-Center, o resgate da história da personagem L. e a escrita de uma narrativa secundária que vai surgindo de modo espontâneo em pequenos fragmentos. Assim, a obra analisada permite a observação de inovações formais, bem como de reflexões que abandonam qualquer possibilidade de interpretação simplista em decorrência da multiplicidade e da plurivalência de fatores subjetivos imponderáveis. Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento apresenta uma análise do segundo conto de Los girasoles ciegos de Alberto Méndez, Segunda derrota: 1940 intitulada, justamente, Los girasoles ciegos. Segunda derrota: 1940, na qual propõe, sob a perspectiva de Agamben, a revisão do sentido que teve, para representantes dos vários segmentos da sociedade espanhola, a Guerra Civil. A autora enfatiza também o diálogo promovido por Méndez entre o conto e outras obras expressivas da literatura e das artes plásticas e que parece corresponder, ao lado da revisão crítica da história, a uma das características comuns à produção literária da atualidade. Também referente ao contexto da literatura em língua espanhola, Sigrid Renaux apresenta o estudo Roger Casement sob o olhar poliédrico de Vargas Llosa em El Sueño del Celta (relato da vida heroica e trágica do irlandês e cônsul britânico Sir Roger Casement). Em sua análise, a professora verifica o constante trânsito entre história e ficção e a meticulosa pesquisa realizada por Vargas Llosa acerca da trajetória de vida e dos escritos de Casement – sua filiação, em certo sentido, ao romance de formação e, principalmente, sua contemporaneidade representada sob a perspectiva de Agamben. Com relação à literatura em língua francesa, Norma Wimmer apresenta Le nouveau Candide: uma crítica à modernidade, no qual retoma a questão do uso de procedimentos intertextuais nas produções literárias da atualidade. Dialogando com o Candide de 8
Voltaire, quer no que diz respeito ao conteúdo, quer no que diz respeito à forma, Dominique Jamet, o autor da paródia Le nouveau Candide faz seu personagem constatar que os males que afligem a contemporaneidade já eram conhecidos no século XVIII: apenas a maneira de constatá-los teria mudado pois, em nossos dias, eles e suas consequências são imediatamente midiatizados. Berta Waldman, pesquisadora de literatura hebraica analisa, em trabalho intitulado Passado Contínuo, mobilidade e dialogia a mobilidade e a ideologia do romance em que Yaakov Shabtai reconstroi, em um longo parágrafo representando a curta temporalidade de nove meses, uma fração da história de Israel nos anos 1970, em uma espécie de metanarrativa que acompanha três gerações: a dos protagonistas, que construiram o país, a de seus filhos e a de seus descendentes. A estudiosa aponta também o trabalho intertextual o qual filia, em certo sentido, o texto de Shabtai a Somnium, de Johannes Kepler ou ao Ulysses, de Joyce. Ainda no contexto da literatura hebraica, a professora Nancy Rozenchan apresenta estudo intitulado No lugar das vítimas, os perpetradores, uma análise da obra Anashim tovim (“Boas almas”), de Nir Baram, cujo tema fundamental gira em torno dos acontecimentos históricos que antecederam a Segunda Guerra na Europa: a Noite dos Cristais, na Alemanha, os pogroms de 9 de novembro de 1938, em decorrência ao atentado contra o diplomata Ernst Eduard von Rath, a ocupação da Polonia e a abertura da frente de guerra contra a União Soviética. A estudiosa considera que o romance tem início em 1938, antes da assinatura do acordo Ribbentrop-Molotov e antes da invasão da Rússia. Neste sentido, em sua opinião, Anashim tovim pode ser definido como metaficção historiográfica, em conformidade com as teorias de Linda Hutcheon acerca das obras de ficção pós-modernas, cuja composição se fundamenta na ficcionalização e na interpretação crítica da História. Ainda a Linda Hutcheon a professora retoma, em sua análise, o conceito pós-moderno de paródia caracterizada não apenas por seu potencial de subverter e de ridicularizar – mas, principalmente, por sua função crítica. Neste sentido, o texto de Nir Baram constitui uma paródia de todos os grandes fatos históricos ocorridos no 9
período abordado, o que é corroborado pela ilustração da capa do romance ( a reprodução da pintura Eclipse do sol, de George Grosz) e pelas características do primeiro parágrafo do romance cujos protagonistas, as “boas almas” são seres desgastados pelos regimes em que viveram e que se tornaram parte da grande máquina aniquiladora dos regimes nazista e do comunismo de Stalin. No contexto das literaturas em língua inglesa, em Agir (ou não) com palavras: a paródia dos tribunais em Desonra, de J.M.Coetzee, de Gracia Gonçalves, novamente, conforme anuncia o título, o procedimento parodístico é recolocado. Em sua análise do romance Desonra, a professora propõe uma investigação acerca do tratamento dedicado à questão do formato “tribunal” e do estatuto da verdade implícita ao mesmo, tendo em vista os limites do sistema de perdão adotado pelo “Programa da Comissão de Reconciliação e Verdade”, da àfrica do Sul pós apartheid, os quais levam a pensar em um jogo envolvendo arrependimento e performance, o que leva ao questionamento do conceito de verdade vista sob a perspectiva de Hutcheon e de Flax. Laura P.Z. Izarra apresenta o texto A complexa dinâmica da arte em movimento: Banville e a ordem no caos. Fundamentada na proposta de David Bohm que explora a forma através da qual o pensamento molda nossas percepções, significações e ações diárias, o trabalho da estudiosa é o de verificar como o conhecimento é mediado pela forma nas duas primeiras décadas em que o escritor irlandês John Banville se reafirma como escritor proeminente. O trabalho consiste no enfoque da maneira como o autor transita entre diversas representações discursivas (literatura, ciência, história, filosofia, psicologia, arte) para analisar suas transformações, identificar as novas experiências estéticas e buscar novas sínteses. Para tanto, são analisados alguns textos de Banville, entre eles: Kepler, The book of evidence, Athena e The untouchable. Em A transposição de biografias para o palco em Andersen’s English, de Sebastian Barry, Munira H. Mutran informa que o irlandês Barry escreve peças de caráter histórico com o objetivo de preencher os vazios deixados pela História e de apontar ambiguidades, contradições e elos perdidos. A autora examina o 10
conceito e o processo da criação da “bioplay” Andersen’s English, peça em dois atos redigida, possivelmente, a partir da biografia de Dickens da autoria de Michael Slater ( entre outras tantas biografias) e analisa os recursos estéticos e estilísticos desenvolvidos por Barry na criação da peça. Finalmente, no texto que encerra a coletânea, Neide Hissae Nagae apresenta um estudo das formas literárias da obra Suishi (Afogamento) de Kenzaburo Oe, intitulado Suishi (Afogamento, 2009) de Kenzaburo Oe – Atualizações e auto-referenciações entre ficção e realidade. O romance, cujo tema é o afogamento do pai do narrador protagonista ocorrido em clima de ultranacionalismo em 16 de agosto de 1945, possui uma constituição palimpséstica, de sobreposição e amálgama retomando assuntos abordados em obras anteriores e utilizando recursos que transitam entre ficção, realidade, memória e História, enigma e revelação. Os textos que compõem a coletânea, portanto, examinam diversos aspectos discursivos e estéticos de várias produções contemporâneas e constituem uma efetiva contribuição dos pesquisadores para os atuais estudos de literatura em línguas estrangeiras. Norma Wimmer
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Entrançados romanescos, autobiográficos e históricos em Die Stadt der Engel oder the overcoat of Dr. Freud, de Christa Wolf Celeste Ribeiro de sousa1*
Christa Wolf2
1. Contextualização Christa Wolf (1929-2011), colaboradora, depois dissente e vítima da Stasi3, foi a estrela da literatura da ex-RDA (República
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Universidade de São Paulo - USP.
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“Staatssicherheit”, Polícia Secreta na ex-República Democrática Alemã.
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Christa_Wolf 13
Democrática Alemã). Por ocasião de sua morte em 1 de dezembro de 2011, a revista Der Spiegel4 a ela se refere como a escritora que vivenciou as esperanças e as derrotas de toda uma geração. Foi, por isso, amada pelo público, que a transformou num “monumento literário”, coisa que muito poucos conseguiram, depois da “Virada”5. De fato, Christa Wolf foi agraciada ao longo de sua carreira literária com muitos prêmios. Alguns deles: o “Kunstpreis” da cidade de Halle, em 1961; o Prêmio “Heinrich-Mann”, em 1963; o “Nationalpreis 3. Klasse” da RFA (República Federal Alemã), em 1964; o Prêmio “Theodor Fontane” de Potsdam, em 1972; o Prêmio de Literatura da cidade de Bremen, em 1978; o Prêmio “Georg Büchner”, em 1980; o Prêmio “Franz Nabl”, em 1983; o Prêmio “Schiller”, também em 1983; o Prêmio do Estado Austríaco para Literatura Europeia, em 1985; o Prêmio Vinícola para Literatura, em 1987; o Prêmio Nacional de 1ª classe da RFA, também em 1987; o Prêmio “Irmãos Scholl”, igualmente em 1987; o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Hildesheim, em 1990; a medalha “Rahel Varnhagen von Ense” da cidade de Berlim, em 1994; o Prêmio “Elisabeth Langgässer” de Literatura, em 1999; o Prêmio “Samuel Bogumil Linde”, também em 1999, o Prêmio “Nelly Sachs”, igualmente em 1999; a Placa da “Academia Livre das Artes”, de Hamburgo, em 2001; o Prêmio “Büchner”, em 2002; o Prêmio “Hermann Sinsheim”, em 2005; o Prêmio “Thomas Mann”, em 2010; o Prêmio “Uwe Johnson”,também em 2010 e o Prêmio “Hörkules”, em 2011. Dois dos livros de Christa Wolf já se encontram traduzidos para o português do Brasil: Nachdenken über Christa T., de 1968 (Em busca “Stasi-Mittäterin und Stasi-Opfer, DDR-Literaturstar und Dissidentin: Christa Wolf lebte die politischen Hoffnungen und Niederlagen einer ganzen Generation. Dafür wurde die Autorin vom Publikum geliebt und blieb als eine der ganz wenigen Ost-Künstlerinnen auch nach der Wende eine Institution”. In: http://www. spiegel.de/kultur/literatur/0,1518,801074,00.html. Acesso em: 01.12.2011. 4
“Virada” (Wende): nome atribuído ao movimento de reunificação das duas Alemanhas que ocorreu a partir de 9 de novembro de 1989, quando o muro começou a ser derrubado, até o reconhecimento oficial da reunificação, em 3 de outubro de 1990. Na República Federal Alemã, o termo foi usado pela primeira vez publicamente numa capa da revista Der Spiegel de 16 de outubro de 1989. Na República Democrática Alemã, o terminus foi empregado pela primeira vez em 18 de Outubro de 1989, num discurso de Egon Kreuz, líder interino do país. 5
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de Christa T., de 1975); Kassandra, de 1983 (Cassandra, de 1990). Para o português de Portugal encontram-se vertidos os seguintes textos: Störfall. Nachrichten eines Tages, de 1987 (Acidente: notícias de um dia, de 1990 ); Medea: Stimmen, de 1996 (Medeia: vozes, de 1996); Unter den Linden. 3 unwahrscheinliche Geschichten, de 1974 (Unter den Linden – três histórias inverossímeis, de 1991). Christa Wolf, nascida Ihlenfeld, viveu na ex-República Democrática Alemã e pertenceu ao SED, ao Partido Único, durante 40 anos, de 1949 a 1989. Nasceu em 18 de março de 1929, em Landsberg an der Warthe, hoje território da Polônia. Depois de 1945, acompanhou a fuga dos pais para a República Democrática da Alemanha. De 1949 a 1953, estudou Germanística em Jena e em Leipzig sob a orientação de Hans Mayer, o mais famoso germanista do país, tendo-se filiado logo de início ao Partido. Em março de 1959, participou de um encontro político em Berlim Oriental, onde foi cooptada como “informante secreta” da Polícia de Segurança Nacional, conhecida pela sigla “Stasi”, com o codinome “Margarete”. Passou, então, a fornecer ao regime informações sobre intelectuais e escritores. Mas as relações entre Christa Wolf e a “Stasi” logo se modificarão, quando ela, em 1965, numa reunião do Partido, se posiciona contra a censura e contra a camisa de força aplicada a toda e qualquer criação literária, através das normas do Realismo Socialista, o estilo artístico oficial da União Soviética entre as décadas de 1930 e 1960, aproximadamente6. Quando ela, depois de algum esforço, consegue publicar Em busca de Christa T. (1969) por uma pequena editora, já era ela mesma vigiada. Em 1976, o poeta Wolf Biermann é expatriado e Christa Wolf assina a carta de protesto, o que lhe vale uma ainda maior marginalização por parte do regime. 6 Resumidamente, trata-se de um estilo normativo, destinado a tornar também a obra literária em ferramenta de transformação da sociedade, segundo os ideais socialistas. Assim, todos os textos literários deverão obrigatoriamente apresentar personagens laboriosas exemplares, emancipadas, de comportamento ilibado, dedicadas a tarefas em prol da comunidade, tendo sempre como estrela-guia os ideais da revolução, sem lugar para emoções ou para o amor, em espaços de trabalho.
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Em 3 de outubro de 1990, é oficialmente selada a reunificação das duas Alemanhas, mas o muro já caíra no ano anterior, em 9 de novembro de 1989, e o movimento público para o acesso irrestrito às pastas da Polícia Secreta (Die Eröffnung der Gauckbehörde) derrubou entre dezembro de 1989 e janeiro de 1990, todos os obstáculos para tal. As revelações, naturalmente, causaram um escândalo gigantesco, semelhante àquele provocado pela confissão de Günter Grass, também neste mesmo ano, de que tinha pertencido às SS de Hitler. Ainda em 1990, Christa Wolf publica Was bleibt (O que resta), uma obra um tanto autobiográfica, escrita a partir de 1979, conforme sugerem as 2 datas ao final da narrativa. Nesta obra, o eunarrador feminino descreve o vigiar diário de uma escritora, que a certa altura se sobrepõe à própria autora, através das seguintes palavras, ao final da obra: Ela mesma viu com clareza, descreveu, analisou e criticou o que a impedia de ir mais adiante, de selar menos compromissos, de ultrapassar os limites desse aparelho de poder ainda conveniente, em sua oposição literária e política, em sua “leve dissidência” contra o regime do SED [Partido Socialista Unificado da Alemanha].7 (Trad. da autora.)
O aparecimento deste livro no mercado desencadeia na Alemanha um amplo debate sobre a cumplicidade dos escritores com o regime em que vivem. Há inúmeras críticas ácidas que crucificam a autora. Também há quem a defenda, como Günter Grass. O fato é que a pergunta: Como ela pode ter esquecido o episódio e nunca se ter pronunciado sobre o assunto? não se cala. Em maio de 1992, conforme resenha de Uwe Wittstock8, Christa
“Was sie daran hinderte, in ihrer literarischen und politischen Opposition, ihrer ‘leisen Dissidenz’ gegenüber dem SED-Regime [Sozialistische Einheitspartei Deutschlands] noch weiter zu gehen, weniger Kompromisse zu schließen und die Grenzen des für diesen Machtapparat noch Zumutbaren zu überschreiten, hat sie selbst genau gesehen, beschrieben, analysiert und kritisiert.” WOLF 2007. 7
8 “Im Mai 1992 hatte Christa Wolf in der Gauck-Behörde 42 Ordner eingesehen, die von der Stasi angelegt worden waren über die Versuche, sie auszuspionieren - ihre Opfer-Akten. Danach legte ihr die zuständige Mitarbeiterin, entgegen den Regeln
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Wolf tem acesso aos dossiês secretos que a Stasi (polícia secreta) produzira sobre ela mesma, e também àqueles em que havia informações dadas por ela mesma, quando atuava como informante sob o codinome Margarete, o que, segundo consta, foi para ela um choque, apesar de só conterem banalidades. Segundo a própria Christa Wolf, estas foram as semanas mais difíceis de sua vida.
Dossiês da Stasi. Foto encontrada na internet
Talvez por isso, aceite em setembro de 1992 um convite para uma estadia de nove meses no Getty-Center em Los Angeles, onde fica até maio de 1993. É de Los Angeles que torna pública sua atuação dentro da Stasi, num artigo do jornal Berliner Zeitung. Em 25 de janeiro do mesmo ano, o Spiegel traz a público que Christa Wolf, na semana anterior, havia declarado no Berliner
der Behörde, einen schmalen Hefter mit Unterlagen vor, in der sie dreißig Jahre zuvor unter dem Decknamen ‚Margarete‘ geführt worden war - ihre Täter-Akte. Eine Verpflichtungserklärung gab es nicht, die Berichte enthielten Banalitäten. [...] Im Januar 1993, also lange nachdem man ihr die alten Spitzelberichte vertraulich vorgelegt hatte, machte sie von Kalifornien aus in einem Zeitungsartikel ihre Stasi-Episode öffentlich. http://uwe-wittstock.de/blog/?p=316. Acesso em 15.12.2011. 17
Zeitung que, em 1959, fora cooptada pela polícia de segurança como “informante secreta” (GI-Geheime Informatorin) e como colaboradora não oficial (IM-Inoffizieller Mitarbeiterin), “funções” que exerceu até 1962. Mas o artigo vai além e revela também o que a escritora havia omitido: que ela tinha um codinome e havia passado à polícia informações sobre colegas. Ainda em 1993, para acalmar especulações em torno do assunto, Christa Wolf faz publicar todo o conteúdo dos dossiês a seu respeito, sob o título de Akteneinsicht Christa Wolf. Zerrspiegel und Dialog. Eine Dokumentation (Dossiês de Christa Wolf. Espelho deformador e diálogo. Uma documentação)9. Em 2010, publica sua última obra Die Stadt der Engel oder the overcoat of Dr. Freud, pela Suhrkamp, uma narrativa que dá conta da vida de uma narradora anônima na cidade de Los Angeles e de seu envolvimento com a Stasi, uma espécie de resposta a todo tumulto levantado em 1993, em torno da autora. E também uma espécie de continuação de outra sua obra, intitulada Kindheitsmuster, de 1976, em que ela reelabora através do trabalho com a memória a sua infância e a sua adolescência, esta vivida sob o regime nazista. Já aqui tenta penetrar no amplo e intrincado processo de formação, que a tornou a mulher que ela é, e questionar as deformações perpetradas pela memória na configuração da realidade, quer interior, quer exterior. Die Stadt der Engel oder the overcoat of Dr. Freud é uma narrativa de 415 páginas, que começa com a seguinte advertência: Todas as personagens neste livro, com exceção daquelas personalidades históricas que se encontram citadas pelos nomes, são invenções da narradora. Nenhuma se assemelha a uma pessoa viva ou morta. Da mesma forma, os episódios descritos não cobrem acontecimentos fatuais.10 (Trad. da autora)
9 In: http://rezensionen.literaturwelt.de/content/buch/v/t_vinke_hermann_akteneinsicht_christa_wolf_zerrspiegel_un_jusc_14230.html. Acesso : 22.09. 2011.
10 “Alle Figuren in diesem Buch, mit Ausnahme der namentlich angeführten historischen Persönlichkeiten, sind Erfindungen der Erzählerin. Keine ist identisch mit einer lebenden oder toten Person. Ebensowenig decken sich beschriebene Ep-
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Todavia, Die Stadt der Engel é, como se disse atrás, narrada por uma protagonista sem nome, que em muitos momentos do texto se confunde com a própria escritora! A narrativa não tem gênero definido e é, nas palavras de Christa Wolf, um “tecido” urdido de modo a se aproximar o mais possível da realidade. São da escritora as seguintes explicações:
Eu quis criar um tecido, que se aproximasse o mais possível da realidade. Acredito que isso se passa com quase todos os escritores, que é desconfortável não se poder escrever como se pensa. O que vivencio num dado momento, num minuto. O que penso, o que eu vejo. Tudo isso de uma só vez. Quando escrevo, preciso colocar uma coisa depois da outra.11 (Tradução da autora).
A narrativa apoia-se num entrelaçado, eu diria, de 3 fios fragmentados principais: a vida cotidiana da protagonista no Getty-Center em Los Angeles; o resgate da história da personagem L.; a escritura de uma narrativa secundária, que vai surgindo de modo espontâneo em pequenos fragmentos anotados na máquina de escrever em letras maiúsculas, que sobressaem na obra, e de uma infinidade de fragmentos de outros fios menores urdidos e enredados no emaranhamento principal, que passo a expor, tentando colocar alguma ordem na minha leitura. isoden mit tatsächlichen Vorgängen.” WOLF 2010: 6.
11 Ich wollte ein Gewebe schaffen, das der Wirklichkeit möglichst nahekommt. Ich glaube, es geht fast jedem Schreiber so, dass man unglücklich ist, weil man nicht so schreiben kann, wie man denkt. Was ich in einem Moment erlebe, was in einer Minute. Was ich denke, was ich sehe. Alles auf einmal. Wenn ich schreibe, muss ich eins nach dem anderen aufschreiben, also linear. Man ist sich bewusst: Man kann die Wirklichkeit nicht so fassen, wie sie ist. Um ihr näher zu kommen, stelle ich mir ein Geflecht als Idealform vor. Ich versuche die unterschiedlichsten Erfahrungen, Erlebnisse, Erinnerungen gleichrangig nebeneinanderzustellen, das Ich der Gegenwart, das Du der Erinnerung und dazu noch vieles Mögliche und den Alltag: Also ein in sich verschlungenes Muster, aus dem bestimmte Fäden hervorstreben. In: Zeit on line 30.06.2010. http://www.zeit.de/2010/27/Christa-Wolf. Acesso: 21.10.2011.
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2. Vida cotidiana no Getty-Center em Los Angeles No emaranhado textual, o fio mais consistente é, sem dúvida, o que dá conta do cotidiano da protagonista na cidade de LA, chamada de Weimar unter Palmen, considerada a colônia dos emigrantes alemães à época do Nazismo. Não é por outro motivo que consta do título, “A cidade dos anjos ou o sobretudo do Dr. Freud”. A tradução literal do nome da cidade para o alemão e o acréscimo de um, por assim dizer, subtítulo ou segundo título, que à primeira vista nada tem a ver com o primeiro, dissolve quaisquer limites de um possível horizonte de expectativas do leitor. Tudo fica em aberto. De fato, LA é a cidade, onde a protagonista se encontra com um sobretudo, que pertencera a Freud (p.155). O nome “a cidade dos anjos”, que são seres protetores par excellence, encerra uma generosa dose de ironia, pois a miséria e a violência que a protagonista encontra pelas ruas a deixam espantada. O sobretudo, que não só abriga e protege o indivíduo das asperezas gélidas do mundo exterior, mas também do mundo interior, porque é freudiano, acaba, embora de modo figurativo, por protegê-la do alvoroço psicológico doído, desencadeado em torno de seu nome, pois tal como a autora, também a protagonista fora colaboradora da Stasi. É essa proteção tripla, de um lado, dos anjos, de outro lado, do sobretudo em 2 níveis – físico e psicológico -, que permite à protagonista pensar com mais calma sobre o seu passado, tentar reconstituí-lo, interpretá-lo e avaliálo, transformando-se a cidade americana em lugar de epifania, de desnudamento. A vida cotidiana da protagonista no Getty-Center em Los Angeles é um fio tecido de microhistórias engendradas na cidade, de permeio a memórias da protagonista e a registros de acontecimentos históricos. Christa Wolf tenta neste livro resgatar todo o processo subjetivo de como a) Se tornou marxista, b) O que para ela isso significou e c) o que a levou a ser vista como dissidente, portanto, importantes aspectos autobiográficos. Tudo isto de mistura com as suas impressões da paisagem da própria cidade, dos seus monumentos, da localização das residências, outrora habitadas por famosos exilados alemães, como Thomas Mann, Brecht, Alfred Döblin, 20
Heinrich Mann e outros, do american way of life, que, muitas vezes, a surpreende. Entram neste caso, o embate entre ricos e pobres; o fast food e a sociedade de consumo; o encontro com o livro da monja budista Pema Chödrön, cujo livro The Wisdom of No Escape, a ela dado por Sally, amiga de Los Angeles, ela vai lendo; o encontro com os negros; as esmolas; as notícias sobre espiritismo; sobre Ovnis; a comunidade indígena que visita. Também as discussões políticas entre ela e outros hóspedes do Center, por exemplo, sobre as vantagens do Capitalismo sobre o Socialismo, ou vice-versa. Surpreendida também fica com a incompreensibilidade mostrada pelas pessoas na América ao pensarem, sem sombra de dúvidas, que o seu jeito de viver deva vigorar como norma para o mundo inteiro, que se tenha de viver para o lucro e para o sucesso. Espanto também lhe causa ser o presidente eleito democraticamente apenas por 1/3 do eleitorado. Também se surpreende com o fato de os imigrantes alemães ainda se envergonharem de serem alemães. Além das surpresas, vai pintalgando o texto com outras informações sobre a América, como por exemplo o julgamento de Rodney King, a eleição de Clinton e Bush, o lançamento do livro The secret life of Mr. Hoover by Anthony Summers, de 1993, e a perseguição aos comunistas. A autora já começa o texto com uma declaração, digamos, assombrosa: ao chegar ao aeroporto de LA e passar pelo controle alfandegário mostra o seu antigo passaporte da Ex-DDR, pois àquela altura em 1993 o país não existe mais, e o funcionário pergunta: Germany? Ao que ela responde: Yes. East Germany, obrigando o funcionário a consultar seus superiores, que não criam problema. Mas o funcionário não resiste e volta perguntar: Are you sure this country does exist? E ela não titubeia: Yes, I AM. Mas em seu interior, esta resposta espontânea chega a espantá-la. Em outra ocasião, relata que durante a queda do muro estava no cinema e, ao regressar a casa, depois de saber do acontecido, quando a fila dos carros se movia no sentido oposto ela sentiu medo, vergonha, opressão, resignação. Tinha acontecido; ele entendera. E a comparação com os sentimentos hipotéticos do pai, quando Hitler subira ao poder e o prendeu, sobrevêm-lhe à mente. Vivên21
cias de outros por ocasião da “Virada”, que se sentiam colonizados pela BRD, são trocados em conversas. Conversas sobre o contato com familiares há tempo emudecidos. E, de novo, o paralelo com os judeus deixando a Alemanha em 1939 volta à tona. A constituição deste fio, porém, não obedece à lei da tensão e da solidez. É um fio grosso, volumoso, mas frouxo, sem uma ação definida, feito de matérias-primas diversas que se sobrepõem e se sucedem numa cadeia quase infinita de associações de ideias, que intentam reproduzir a memória em funcionamento e, assim, se aproximar da verdade, da verdade da autora. Então, os fragmentos, as mininarrativas estão constantemente mudando de foco, movendo-se do presente, aqui, para o presente lá, do passado aqui para o passado lá, chegando a exigir o desdobramento da protagonista num eu e num tu, que em determinadas circunstâncias dialogam entre si. É uma arqueologia difícil, uma coleta de minúsculos fragmentos dispersos. Christa Wolf faz lembrar o subjetivismo e a dialética de Hegel, para quem a realidade não aparece como ela realmente é, mas sim como nós a vemos, i.e. a realidade é uma construção constante do espírito e é apreendida de infinitas perspectivas. Neste emaranhado de fios, há também um fiapo a agregar suas reflexões sobre o próprio ato de escrever, desde as limitações da percepção na aquisição do conhecimento às limitações de sua tradução para o papel. O resultado é a criação de algo novo, que não corresponde mais ao passado, apesar do esforço. Declara a protagonista: A maneira como vi e vejo a realidade não bate com a história. Ao longo do livro, portanto, a protagonista usa qualquer gancho para desenterrar do seu passado as circunstâncias em que nasceu, em que cresceu, em que foi educada: o nazismo, a emigração dos pais para a DDR, os ideais utópicos do comunismo que sempre a encantaram, nos quais acreditou e ainda acredita. Não poupa nos argumentos de autoridade para defender suas posições: cita desde Goethe a Brecht passando por Thomas Mann, Adorno, Benjamin, KuBa e outros. Veja-se um dos exemplos retirados de Bertolt Brecht. Os versos “Os exploradores dizem que ele é um crime./ Mas nós 22
sabemos: Ele é o fim dos crimes.”12 foram retirados do poema “Lob des Kommunismus”. A tradução do poema poderia ser: Louvor ao Comunismo
Ele é racional, todos o entendem. Ele é fácil. Você não é nenhum explorador, você pode percebê-lo. Ele é bom para você, informe-se sobre ele. Os estúpidos o acham estúpido e os sujos dizem que ele é sujo. Ele é contra a sujeira e contra a estupidez. Os exploradores dizem que ele é um crime. Mas nós sabemos: Ele é o fim dos crimes. Ele não é uma loucura, mas O fim das loucuras. Ele não é o caos Mas a ordem. Ele é a simplicidade Que é difícil de executar. (Trad. da autora)
Há também várias outras citações do poeta alemão barroco Paul Fleming (1609-1640), em cujos poemas a protagonista anônima busca apoio psicológico. Veja-se a seguinte citação recortada do soneto “An sich”, de 1641: O que te anuvia e te alivia, considera pré-destinado, Aceita teu fado, não te arrependas de nada, Faz o que tem de ser feito e antes que te obriguem. O que ainda podes esperar, sempre haverá de nascer. (Trad. da autora)13
“Die Ausbeuter nennen ihn ein Verbrechen./Aber wir wissen:/Er ist das Ende der Verbrechen.“ WOLF 2010: 82. Poema de Brecht „Lob des Kommunismus“: „Er ist vernünftig, jeder versteht ihn. Er ist leicht./Du bist doch kein Ausbeuter, du kannst ihn begreifen./Er ist gut für dich, erkundige dich nach ihm./Die Dummköpfe nennen ihn dumm, und die Schmutzigen nennen ihn schmutzig./Er ist gegen den Schmutz und gegen die Dummheit./Die Ausbeuter nennen ihn ein Verbrechen./Aber wir wissen:/Er ist das Ende der Verbrechen./Er ist keine Tollheit, sondern/Das Ende der Tollheit./Er ist nicht das Chaos/Sondern die Ordnung./Er ist das Einfache/Das schwer zu machen ist.” Disponível em: http://erinnerungsort. de/lob-des-kommunismus-_124.html. Acesso: 24/5/12. 12
13 Was dich betrübt und labt, halt alles für erkoren,/Nimm dein Verhängnis an, laß alles unbereut,/Tu, was getan muß sein, und eh man dir´s gebeut./Was du noch hoffen 23
A tradução do poema poderia ser: Em si
Ainda assim, sê corajoso, não te dês por vencido, Não cedas a ninguém a sorte, mantém-te acima da inveja, Deleita-se em ti mesmo e não atentes para o sofrimento, Conspiraram contra ti a sorte, o espaço e o tempo. O que te anuvia e te alivia, considera pré-destinado, Aceita teu fado, não te arrependas de nada, Faz o que tem de ser feito e antes que te obriguem. O que ainda podes esperar, sempre haverá de nascer.
Onde as queixas, onde os elogios? Infelicidade e felicidade São uma mesma coisa. Observa todas as coisas: Tudo isso está em ti. Abandona tuas vãs ilusões, E se mais avançares, recua também em ti mesmo. Quem é mestre de si próprio e se pode dominar, Tem a seus pés o vasto mundo e tudo o que nele há. (Trad. da autora)
De todos os fiapos constitutivos deste filamento, sem dúvida, o que carrega as informações relativas à relação da protagonista com a Stasi, é o que mais açula a curiosidade do leitor e gera expectativas na leitura. Mas, não há nenhuma declaração que preencha as expectativas do Ocidente, algo como arrependimento, algo como “mea culpa”. Embora não seja uma fundamentalista, uma revolucionária, continua fiel ao seu modo socialista/comunista de ver o
kannst, das wird noch stets geboren.//“ WOLF 2010: 156. Soneto de Paul Fleming „An sich“: „Sei dennoch unverzagt, gib dennoch unverloren,/Weich keinem Glücke nicht, steh höher als der Neid,/Vergnüge dich an dir und acht es für kein Leid,/ Hat sich gleich wider dich Glück, Ort und Zeit verschworen.//Was dich betrübt und labt, halt alles für erkoren,/Nimm dein Verhängnis an, laß alles unbereut,/Tu, was getan muß sein, und eh man dir´s gebeut./Was du noch hoffen kannst, das wird noch stets geboren.//Was klagt, was lob man doch? Sein Unglück und sein Glücke/Ist ihm ein jeder selbst. Schau alle Sachen an:/Dies alles ist in dir. Laß deinen eitlen Wahn,// Und eh du förder gehst, so geh in dich zurücke./Wer sein selbst Meister ist und sich beherrschen kann,/Dem ist die weite Welt und alles untertan.” Disponível em: http:// www.text-raum.de/zweiraum/sei-dennoch-unverzagt. Acesso: 24/5/12. 24
mundo, pena que não tenha se concretizado. A protagonista foge do modelo da heroína do realismo socialista: A verdade não lhe aparece de forma absoluta. Ela tem amor pelos filhos e pelo marido. Lê cartas de tarô, ainda que por brincadeira. Acredita num anjo da guarda que a protege. Porém, o embate entre sua visão de mundo e a visão dos ocidentais marca a fase mais dura, mais sofrida da sua vida e a leva ao consultório do Dr. Kim, psicólogo. 3. O resgate da história da personagem L. L. é a inicial do nome que assina um molho de cartas dirigidas a Emma, uma amiga da protagonista da obra em pauta, cartas transcritas, anunciadas por aspas e por uma margem menor do texto. Ao morrer, Emma deixa à protagonista, além de alguns pertences, de um livro antiqüíssimo do Partido dos anos 20, cópias de sentenças dos anos 50, de quando fora presa durante 2 anos na DDR por comportamento inadequado, esse molho de cartas. Sobre L., a protagonista quase nada sabe. Apenas que a pessoa vivera nos USA, fora amiga e companheira de Emma, a Emma que ela julgara ser a sua maior e mais próxima amiga. Descobrir e alcançar um perfil para esta figura tornara-se um objeto de pesquisa a justificar a aceitação do convite feito pelo Getty Center em Los Angeles.
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Os dados sobre esta história aparecem de modo fragmentário e não linear nas páginas 19, 21, 56, 62, 64-67, 93-94, 119, 132, 133, 165-167, 212, 243-244, 296-298. Começam pela dificuldade do ponto de partida da pesquisa: um “L.”, hipoteticamente pertencente ao nome próprio. Passam pela busca infrutífera através do programa computacional “Orion”. Mudando-se a busca para - Emma e um livro 26
- é encontrada seguinte informação: Linke Presse in der Weimarer Republik (Imprensa de esquerda na República de Weimar), livro editado por Emma Schulze em Frankfurt a. M. em 1932. Embora a protagonista já houvesse anteriormente localizado este livro na biblioteca da universidade, sua amiga nunca lhe havia falado dele. Mais páginas adiante, a busca prossegue em um dos computadores da biblioteca da universidade, mas agora pelas seguintes palavraschave “Emigração feminina nos USA”. Procurado, o livro de Emma havia sido recentemente emprestado. A memória é colocada em funcionamento e os seguintes dados emergem: quando a protagonista nascera, Emma já pertencia ao Partido Comunista e, provavelmente, já era amiga de L. Resgatar L. passa a ser, então, uma maneira de fazer ouvir a voz de Emma, de quem a protagonista planeja escrever uma biografia. Várias páginas adiante, a protagonista da obra já tem um perfil físico de L.: traços faciais destemidos, cabelos grisalhos penteados para trás, estatura média, nem magra nem gorda, sempre em movimento. Sobriamente vestida com roupas de qualidade, (ao contrário de Emma que não ligava para sua aparência, que considerava um resquício burguês). A protagonista tenta ver nas entrelinhas das cartas o cuidado, a abnegação, a renúncia constante exigidas pelo amor de L. a um homem casado. E imaginava as conversas entre os amantes. Constata, todavia a protagonista, que para ela, desde sempre, era a revolução o único meio para salvar a humanidade, não o amor. Quarenta e cinco páginas adiante, a leitura de várias cartas possibilita à protagonista pesquisadora tornar mais nítido o perfil imaginado de L.: a figura, o rosto, o penteado, a voz. E mais 31 páginas adiante, uma penúltima carta é transcrita. Nela L. pede desculpas pelo longo intervalo sem dar notícias, pois o amado morrera e a tristeza ainda não cedera. Esta carta já encontra Emma hospitalizada, com câncer na tiróide. A última carta traz a data de maio de 1979 e não é de L.,mas de uma estranha de nome Ruth, comunicando a sua morte. Oito páginas adiante, surge a figura de Ruth, aquela que enviara a última carta de L. e que, portanto, a conhecia. Voltara a enviar 27
outra carta, desta vez à protagonista no Center. Convidava-a para uma discussão num grupo judeu. Mas o seguimento deste entrecho só aparece 44 páginas depois. Na p. 296 sabe-se que Ruth teve uma amiga chamada Lily, psicanalista de Berlim, não judia, mas sob o nazismo sem espaço para exercer a psicanálise, com um amante judeu. Tivera de fugir. Todavia, tudo o que Ruth conta de Lily a protagonista já sabia das cartas. 4. A escritura de uma narrativa secundária que vai surgindo de modo espontâneo em pequenos fragmentos anotados na máquina de escrever em letras maiúsculas Em meio a todos os fios e fiapos narrativos anteriormente mencionados, um outro fio narrativo bastante fragmentado, tornado visível através do emprego de maísculas, revela uma voz mais profunda, mais reflexiva, que se manifesta em solilóquio, como que trazendo questionamentos (não respostas) trabalhados no inconsciente vindos inesperadamente à tona da consciência e logo registrados, para não perderem a naturalidade, a veracidade, para não serem submetidos ao filtro da razão. As duas primeiras frases deste fio narrativo insólito surgem na página 9 e 28, respectivamente, e merecem ser comentadas. São elas: “Despencar de todos céus “AUS ALLEN HIMMELN STÜRZEN” e “Contar a partir do fim” “VOM ENDE HER ERZÄHLEN”.
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A primeira frase inicia a obra, logo depois da epígrafe, e encontra paralelo na expressão idiomática “aus allen Himmeln fallen”, que significa “cair das nuvens”. A narradora, entretanto, substitui o verbo “cair” por outro mais violento “stürzen”, que significa “desabar”, “despencar”. Mas se traduzida à letra, a expressão quer dizer “desabar de todos os céus”. Há, portanto, uma alusão direta à aterrissagem do avião em Los Angeles, mas também há outros planos significativos aí embutidos. A palavra “céus”, associada a anjos, aponta para mundos superiores, insondáveis, quase sempre associados a utopias religiosas. No caso presente, em que a protagonista é comunista, a utopia evocada poderá ser a do perfeito mundo comunista, em que acreditava. Portanto, uma interpretação possível poderia indicar que a mesma protagonista vivencia no momento no movimento do avião a experiência da queda da DDR e da utopia comunista. E o desgarramento da frase assim no meio do tecido narrativo reforça ainda mais a perplexidade inerente a seu significado, uma perplexidade ainda não racionalizada. A segunda frase aponta o fim de uma história, o fim da história da DDR, o fim da própria história da protagonista e da própria escritora, afinal este é o seu último livro, bem como a intenção de narrar essa história do fim para o começo. Portanto, de refletir sobre o passado através do filtro do distanciamento, tentando entender a gênese, o encadeamento, o desenrolar de convicções que lhe formam o intelecto e o mundo das emoções e dos sentimentos, uma busca da verdade, da sua verdade. É uma tentativa louvável, mas à partida já frustrada, porque, por mais que traga o passado ao presente, todo este mecanismo da memória funciona de maneira associativa e, sobretudo, seletiva, tornando impossível colocar o passado nos mesmos parâmetros que lhe deram forma. E desta limitação, a protagonista está bem ciente, pois à página 40, num outro fragmento deste mesmo fio narrativo, declara: E se todas as minhas atividades que devem passar a imagem de zelo, de dedicação não fossem mais do que a tentativa de silenciar a fita dentro da minha cabeça. Mas eu ainda não posso saber que baixios em mim devem ser 31
lavrados ou, ao contrário, tapados.“14 (Trad. da autora).
Outros fragmentos aprofundam este mesmo questionamento. Num deles fica patente a influência das declarações contidas no livro da monja budista Pema Chödrön The wisdom of no escape. Reflete a protagonista comunista em Los Angeles: A oportunidade é favorável. Por que não descobrir quem eu sou realmente, se a monja me afirma na cara que eu posso a pouco e pouco conhecer-me e ainda ficar amiga de mim mesma. Ela chama a isso “loving kindness” e embaraça-me, pois não consigo traduzir isso para o alemão. Aparentemente nós não temos essa cordialidade para conosco mesmos. Há ódio a nós mesmos e egoísmo e vaidade e, do outro lado da medalha, este lancinante sentimento de inferioridade.15 (Trad. da autora).
Pergunta-se a protagonista com frequência se teria sido outra pessoa se tivesse sido educada em outras circunstâncias. Esta é uma pergunta que dá azo a profunda reflexão. Pode alguém, educado dentro de um regime ditatorial, em que o mundo ao derredor é formatado segundo leis próprias, irredutíveis com a diversidade, em que não há como saber do senso comum que rege a diferença entre o certo e o errado, vir a desenvolver ideias divergentes desse universo? E, ainda que consiga desenvolvê-las, tem condições de pagar o preço da rebeldia que é sempre altíssimo? Assim como também é altíssimo o preço do silêncio, quando a ditadura cai,
“Und wenn all meine Geschäftigkeit, die verdammt nach Fleiss aussehen soll, nichts weiter ware als der Versuch, das Tonband in meinem Kopf zum Schweigen zu bringen. Aber ich kann ja noch nicht wissen, welche untiefen in mir hier umgepflügt oder im Gegenteil zugedeckt werden soll.” WOLF 2010: 40. 14
15 “Die Gelegenheit ist günstig. Warum nicht herausfinden, wie ich wirklich bin, wenn diese Nonne mir ins Gesicht hinein behauptet, dass ich mich durch und durch kennen und doch mit mir befreundet sein könnte. Sie nennt das “Loving kindness” und bringt mich in Verlegenheit, weil ich das nicht ind Deutsche übersetzen kann. Anscheinend haben wir nicht diese Freundlichkeit uns selbst gegenüber. Es gibt Selbsthass und Eigenliebe und Eitelkeit, und auf der anderen Seite der Medaille dieses bohrende Minderwertigkeitsgefühl. Das ist doch merkwürdig.” WOLF 2010: 55.
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como no caso da DDR. Parece que Christa Wolf, por detrás da sua protagonista, mostra, com estas suas reflexões em letras maiúsculas, que a vida não é simples, não pode ser confinada em modelos exclusivos, exigidos em determinadas fases da História. São dela as seguintes palavras: “Cada linha que agora ainda escrevo, será usada contra mim”. Trad. da autora.16 E a respeito das decepções dos leitores tanto na Europa, quanto nos USA, acerca das explicações da escritora alemã do Leste que colaborou com a Stasi, declara: Na cidade dos anjos arrancam-me a pele. Querem saber o que há por debaixo e encontram, como em qualquer ser normal, músculos, tendões, ossos, artérias, sangue, coração, estômago, fígado, baço. Ficam desapontadas, esperavam ver as vísceras de um monstro. Trad. da autora17
De fato, a protagonista deste tecido narrativo tem dificuldade em entender os comportamentos do chamado mundo capitalista, que sem escrúpulos invadem a privacidade de qualquer um. Lamenta ela: “Gostaria de estar onde ainda há segredos. Onde não se arrancam à força os segredos a qualquer um, apenas porque só assim o mundo pode ser mais limpo.”18 (Trad. da autora). E o fim deste fio narrativo aponta para uma utopia, para o outro lado da realidade, para a preservação da privacidade, do subjetivismo, paradoxalmente não encontrado nem no comunismo da ex-DDR, nem no liberalismo americano. Uma utopia, assim, anunciada: “Jede Zeile, die ich jetzt noch schreibe, wird gegen mich verwendet werden.” WOLF 2010: 232. 16
17 “In der Stadt der Engel wird mir die Haut abgezogen. Siewollen wissen, was darunter ist, und finden wie bei einem gewöhnlichen Menschen Muskeln Sehnen Knochen Adern Blut Herz Magen Leber Milz. Sie sind enttäuscht, sie hatten auf die Innereien eines Monsters gehofft.” WOLF 2010: 140-141.
18 “Ich möchte sein, wo es noch Geheimnisse gibt. Wo nicht einem jeden jedes Geheimnis mit Gewalt entrissen wird, weil nur so die Welt sauber sein kann.” WOLF 2010: 381.
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De há muito já sei que os reais fracassos são aqueles que acontecem no silêncio e não aqueles que se fazem visíveis em público. São aqueles fracassos silenciosos que renegamos e silenciamos em nós mesmos por muito tempo, aqueles a que nunca damos expressão. Protegemos tenaz e constantemente esse segredo intimíssimo.19 (Trad. da autora).
E esta outra face da realidade constituiria “um mundo maravilhoso paradisíaco”.20 (Trad. da autora). Ao final, embora as diferenciações gráficas entre os vários discursos, que se superpõem, permaneçam, e o sobretudo do Dr. Freud desapareça de cena, todos os fios passam a fazer sentido na grande tessitura do texto, o leitor passa a compreender sua função no todo, que dá forma a uma identidade resgatada, que intervém na memória coletiva alemã, mas um todo, que não se fecha, já que o livro termina com as seguintes duas linhas: Para onde vamos? Não sei.21 (Tradução da autora).
5. Conclusões A primeira conclusão que se pode tirar depois da leitura do romance é que Christa Wolf ou a protagonista deste seu livro, mesmo tendo experimentado realidades tão diversas, ou justamente por causa disso, continua a acreditar na utopia de um mundo em que o ser humano possa se realizar em plenitude. A segunda conclusão aponta para a real frustração da crítica ocidental diante da falta de maiores e mais bombásticas confissões ou explicações sobre a intimidade da escritora/protagonista com a
“Das weiss ich doch schon lange, dass die eigentlichen Verfehlungen die jenigen sind, die im stillen geschehen, und nicht die öffentlich sichtbaren. Und dass man diese stillen Verfehlungen sehr lange vor sich selbst verleugnet und verschweigt und dass man sie niemals ausspricht. Zäh und dauerhaft hüten wir dieses innerste Geheimnis.” WOLF 2010: 406. 19
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“eine paradiesische Wunderwelt.” WOLF 2010: 407.
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“Wohin sind wir unterwegs?/Das weiß ich nicht.” WOLF 2010: 415. 34
polícia secreta alemã. Esta questão mal é tocada no livro. A terceira conclusão revela que Christa Wolf acompanha as inovações formais desenvolvidas no campo da literatura, ao conceber uma narrativa extremamente fragmentada, talvez além do conhecido, a que ela simplesmente dá o nome de tecido narrativo. Dentro dos conhecimentos literários que possuo, o livro Die Stadt der Engel apresenta uma urdidura textual um tanto original, porque emaranhada em grau elevado, e uma reflexão, que apaga qualquer binarismo ideológico com uma multiplicidade e plurivalência de fatores subjetivos imponderáveis. Referências bibliográficas Wolf, Christa. Stadt der Engel oder the overcoat of dr. Freud. Frankfurt a. M., Suhrkamp, 2010. Wolf, Christa. Was bleibt. Frankfurt a. M., Suhrkamp, 2007.
Wolf, Christa. Kindheitsmuster. Frankfurt a. M., Suhrkamp, 2007.
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Gueffroy, Günter. Eine Frau mit einem hochanständigen Charakter. In: http://www.zeit.de/kultur/literatur/2011-12/ christa-wolf-stimmen
Hammelehle, Sebastian. Zum Tode Christa Wolfs. Genossin einer ganzen Generation. In: http://www.spiegel.de/kultur/ literatur/0,1518,801074,00.html
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Kämmerlings, Richard. Ein merkwürdiges, ein bemerkenswertes Buch, eine Rettung. In: Frankfurter Allgemeine Zeitung. In: http://www.complete-review.com/ reviews/ddr/wolfc3.htm
Löffler, Sigrid. Gespräch über die Schriftstellerin, die im Alter von 82 Jahren gestorben ist. In: http://www.swr.de/swr2/ christa-wolf/-/id=7576/nid=7576/did=8956516/1u56zk5/ index.html
Magenau, Jörg. Ans Selbstgespräch gefesselt. In: Die Tageszeitung von heute. http://www.taz.de/1/archiv/ digitaz/artikel/?ressort=ku&dig=2010/06/26/ a0028&cHash=acfdddb3a4 S.a.Die ängstliche Margarete In: http://www.spiegel.de/spiegel/ print/d-13680284.html
S.a. Geständnis. Wolf von IM-Akte geschockt. In:http://www. bz-berlin.de/kultur/literatur/wolf-von-im-akte-geschocktarticle385328.html Hage, Volker; Beyer, Susanne.Wir haben dieses Land geliebt. In: http://www.spiegel.de/spiegel/print/d-70940417.html Entrevista: Christa Wolf Was war der Geschmack Ihrer Kindheit, Frau Wolf? In: Zeit on line. http://www.zeit.de/2010/27/Christa-Wolf
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LOS GIRASOLES CIEGOS. SEGUNDA DERROTA: 1940
Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento1
El miedo que tienes, - dijo don Quijote – te hace, Sancho, que ni veas ni oigas a derechas, porque uno de los efectos del miedo es perturbar los sentidos. CERVANTES, Miguel de. El Quijote, Parte I, Capítulo XVIII
La mitad de los españoles, los que apoyaron a la República, viven en continua zozobra, angustiados cada vez que escuchan el frenazo de un coche, cada vez que perciben pasos en la escalera, cada vez que unos nudillos golpean la puerta. “El miedo a la denuncia, resultó, en muchos casos, obsesivo2” . ESLAVA GALÁN, Juan. El año del miedo. La nueva España (1939-1952), p. 11
Primeiro movimento: Apresentação Com esta comunicação, dou sequência a uma pesquisa sobre questões relativas à Guerra Civil Espanhola e ao pós-guerra, na tentativa de trazer à luz fatos desconhecidos pelo isolamento que se impôs à Espanha e, principalmente, pelo silêncio tácito que se alastrou pelo país tal qual a sarna, o piolho e a tuberculose! Importa oferecer ao olhar leitor fios que, atados, recuperam a intrincada trama de um sombrio período político da História recente da Espanha, quando se impunha, ironicamente, o silêncio por parte do governo ditatorial, como meio de “economizar as forças” para reerguer uma Espanha devastada pela guerra. Pelo caráter sufocante de um momento histórico em que o poder tinha mil olhos
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Universidade Federal Fluminense - UFF
REIG TAPIA, Alberto. Franco, el césar superlativo, p. 276. 37
para exercer o controle total sobre a nação, optava-se pelo silêncio pelo medo de contar ou de permitir que alguém desconfiasse, ainda que levemente, que se sabia demais. Já no final do século XX, percebemos que escritores nascidos no pós-guerra, ou que sequer viveram aquele tempo escuro, situam seus relatos nesse período ou mesmo durante a guerra civil, na tentativa de manter viva a memória de maneira a impedir que a Guerra Civil Espanhola e Francisco Franco se convertam, em um futuro não muito distante, apenas em um verbete dos dicionários enciclopédicos virtuais que, obrigados ao resumo pela objetividade histórica, reduzam os fatos a “cuatro imágenes, cuatro gestos, cuatro situaciones y una voz en off” (VÁZQUEZ MONTALBÁN, 1996, p.662). Em artigo recente, ao comentar um fragmento da sexta tese de Walter Benjamin sobre o conceito de história, em que o filósofo alemão afirma que a articulação histórica do passado não significa conhecê-lo “como ele foi”, mas apropriar-se de uma lembrança, “tal como ela relampeja no momento de um perigo” (BENJAMIN, 1985, p. 224), Antonio R. Esteves, afirma que uma das funções da literatura em geral, e em particular do romance histórico, tem sido fazer luzir essas centelhas de esperança para se ter a certeza de que nem os mortos estão seguros se o inimigo vencer. Evitar que esses inimigos sigam vencendo é uma das funções da literatura, essa luz que sempre brilhará na noite escura da desesperança. (2012, p.).
Por tudo isso, e também por sua arquitetura, optamos por trazer à cena a obra de um autor que não viveu a guerra civil: Alberto Méndez (1941-2004), nascido em Madri, dois anos depois de terminada a guerra. Em Los girasoles ciegos, publicado em 2004, Méndez situa as quatro narrativas que integram sua obra no final da guerra civil, 1939 e no imediato pós-guerra (1940, 1941, 1942 são as datas em que planta os três outros contos). Os personagens das quatro histórias são seres anônimos, perdidos, desorientados como os girassóis cegos do título, como sugere Fernando Valls (El País, 2005) e a eles se lhes proporciona voz. Assim, contam as histórias de horror e desolação, 38
relatos para manter viva a memória, para que o esquecimento não as apague. São casos como a inesperada rendição de um militar do bando nacionalista que se entrega aos republicanos aos gritos de: “¡Soy un rendido!” (MENDEZ, 2004, p.13), no mesmo dia em que soube que eles baixariam as armas; as vicissitudes vividas por um quase menino, soldado e poeta que tenta fugir para a França com a jovem namorada, grávida de oito meses e é surpreendido, em uma gruta das montanhas asturianas, pela morte da jovem, durante o parto. Ele registra, em uma espécie de diário, a solidão, o medo e a luta inútil contra a morte, a do filho e a sua, durante o breve espaço de uns meses. Segue-se a história de Juan Serra, soldado republicano que adia sua condenação à morte com uma mentira que logo o enoja e o faz contar a verdade que o levará à morte. A sequência se encerra com o relato sobre um republicano que vive escondido dentro de um armário para escapar da vingança dos vencedores. Dali assiste, impotente, à perseguição sofrida pela esposa por parte de um professor de seu filho, um religioso que não contém sua lascívia e provoca um final trágico, com o derrame purificador do sangue do vencido. O primeiro conto tem a data de 1939 e se inicia, justamente, no dia do rendimento das tropas republicanas aos nacionais, o que marca, temporalmente, o final da guerra e o início de um período histórico que, para muitos, foi tão cruel quanto os três anos de guerra, como nos fazem crer, literariamente, os três contos seguintes. O genocídio que se sucedeu e a fome que se instalou no imediato pós-guerra estão confirmados em um fragmento do capítulo I, de Los años del miedo, de Juan Eslava Galán:
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Jaén, 22 de mayo de 1939: Los retortijones del hambre despiertan a Teófilo González […]. Está amaneciendo. La campana de San Ildefonso da las seis. A esta hora hay en la ciudad muchos oídos atentos en espera de la primera descarga del pelotón que cumple las sentencias en las tapias del cementerio. Algunos días resuenan dos o tres descargas; otros, hasta media docena, con intervalos de unos minutos.[…]. Los vencedores pasan factura a los vencidos. (ESLAVA GALÁN, 2009, p.13-14)3
Alberto Méndez que, como o mexicano Juan Rulfo, é autor de
Jaén, 22 de maio de 1939:
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um único livro consagrador, não quis abraçar a perspectiva mais esperada de contar fragmentos do grande painel desenhado pela multiplicidade de desastres individuais ocasionados pela guerra. Méndez optou por recriar alguns personagens, republicanos e nacionalistas, naqueles momentos decisivos em que se encontram frente a frente com a morte, ou a percebem muito de perto, e os distribui pelas quatro narrativas, na verdade as quatro derrotas que dão forma a Los Girasoles Ciegos. Com essa obra, Méndez conquistou o primeiro prêmio Setenil para o melhor livro de contos. Em 2005, já falecido, recebeu o Premio de la Crítica e o Nacional de Narrativa, reconhecimento que o transformou em um clássico contemporâneo. Os quatro relatos, embora mantenham seu valor independente, estão enlaçados de modo sutil, através de personagens que escorregam de um deles e vão esclarecer, ainda que sem muito ruído, sua relação com alguma outra personagem ou algum fato de uma das demais narrativas, o que leva Valls a afirmar que essa modalidade, esse ciclo de contos, gera “otra unidad de sentido distinta” (2005). Enlaça-os, basicamente, uma palavra que aparece no título das quatro narrativas, sempre acompanhada de uma data: trata-se de derrota, palavra que encerra, na verdade, a medula e osso dos quatro contos. A partir dela, Méndez constrói, uma dolorida reflexão sobre o ser humano, tomando para tema os perdedores, pois, como outros dois escritores espanhóis: Miguel Delibes (19202010) e Manuel Rivas (*1957), Méndez confirma o pensamento de que em uma guerra entre irmãos, não há vencidos nem vencedores: são todos perdedores. Na contra-capa da primeira edição, de 2004, aparece o esclarecimento de que a matéria relatada é, sim, verdadeira mas o que se conta ali não é certo já que a certeza necessita da aquiescência e esta da estatística que já está resolvida nos números oficiais. Wineruda, em sua página na internet, ressalta que Alberto Méndez, ao elaborar sua obra, faz uma reflexão sobre el ser humano como individuo, como pieza única del engranaje de la historia, protagonista de la suya propia, mínima gran epopeya. La belleza de lo sobrecogedor, una 40
vez más, aparece en este libro, tanto en las formas en las que está escrito, como en la inteligencia de lo que cuenta y cómo lo cuenta4.
O autor faz memória porque é fundamental que se recorde e conte, para que todo aquele horror não se dissolva com o tempo; mas Méndez acalenta um desejo, como revela em entrevista: que os nacionalistas lhes peçam perdão, como faz o Capitán Alegría que abandona seu bando no dia da Vitória e pede perdão por tanto sangue derramado inutilmente. Na obra em tela, percebe-se intensamente o poder da palavra, de que nos fala Agamben ( 2008 ). Se não é a vida de Méndez que se coloca em jogo pela palavra, (afirma Agamben: “dedicando-se ao ‘logos’, o homem decide colocar em jogo sua vida e seu destino”), por meio dela o escritor oferece à reflexão alguns fatos reais, ficcionalizando-os, expondo assim a verdade e a mentira, a crueldade e a insanidade de um momento em que muitas vidas sofreram uma interrupção, foram postas entre parênteses e o destino de tantos seres humanos mudou seu rumo. O autor, quando do lançamento do livro, declarou que narrava “historias oídas a sus protagonistas derrotados, que las narraron siempre con sordina y sin poder vencer jamás sus miedos”. E acrescentou: nuestra generación ha vivido en la memoria de nuestros padres, quienes vivieron en el silencio. Yo sé ahora que mis hijos sabrán mejor quién soy, quiénes somos. He escrito este libro con el ruido de la memoria, sin que me importaran tanto las historias como su olor o su calor. (Apud Emilio Hidalgo)5.
http://wineruda.blogsome.com/2008/03/19/los-girasoles-ciegos-de-albertomendez/ (Consulta em 23 março 2012). 4
5 HIDALGO, Emilio. http://www.latertuliadelagranja.com/antigua/paginas/caja_ acta8.htm (Consulta em 23 março 2012)
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“Segunda derrota: 1940” o Manuscrito encontrado en el olvido Optamos por ler o segundo conto, a “Segunda Derrota: 1940’, subtitulado: “Manuscrito encontrado en el olvido”, movida, talvez, pelo título, que nos remete a outras obras. Ou terá sido a força expressiva da palavra “olvido”, justamente o que não queremos privilegiar. Ela cresce em significado na feliz construção: “encontrado en el olvido”, reveladora de um escritor que tem o domínio da palavra, o pulso da linguagem e a trabalha para torná-la precisa e rica, livre de artifícios desnecessários. É assim em todo o conto: nada sobra! E o leitor permanece debruçado sobre palavras que, enquanto desenham um mundo absurdo e transitam por um momento impensável, deixam escorrer uma poesia pungente nascida da dor, do medo e de uma desvairada solidão! Nas 26 páginas quadriculadas de um caderno, “con una caligrafía meliflua y ordenada” ( MENDEZ, 2004, p.39), um jovem perdedor elabora um manuscrito no qual faz memória de um momento traumático onde ganha relevo o registro do medo, aquele sentimento insidioso que corrói as entranhas do ser humano e o impede de atuar livremente. É muito forte e significativa a força do medo nesta S e g u n d a Derrota, uma fração do medo que se instalou depois da vitória dos nacionalistas não só entre os perdedores, mas por toda a Espanha, o medo que acabou de desestabilizar a vida do jovem casal de namorados, perdedor da Guerra Civil, que preferiu “emprender un viaje tan interminable, estando ella de ocho meses” (MENDEZ, p.42) a deixar-se prender pelos fascistas. Ironicamente, o lugar onde o manuscrito foi encontrado, nas montanhas “donde se enfrentan Asturias y León” (2004, p.39), chama-se Somiedo, nome cuja sonoridade nos traz de volta à questão do medo. Tal como na obra de Miguel Delibes: Las guerras de nuestros antepasados (1975), em que o relato é uma transcrição (naquele caso, da conversa gravada entre o transcritor e o detentor dos fatos, o Manuscrito encontrado no olvido é entregue ao leitor graças a um intermediário, um pesquisador anônimo que, em 1952, “buscando otros documentos en el Archivo General de la Guardia Civil” (MENDEZ, 2004, p. 39), encontrou, dentro de um “sobre amarillo 42
clasificado como DD (difunto desconocido)” (p. 39), o caderno de que faz a transcrição, depois de uma explicação inicial da qual fazem parte os esclarecimentos acima. Nessa apresentação é dado a conhecer não só o encontro do caderno de páginas quadriculadas, mas a percepção que o transcritor tem do estado de ânimo de quem fez aqueles registros, através das pistas deixadas pela caligrafia ora desigual ora cuidada, aqui em letras maiores, outras vezes tão reduzidas como si el autor hubiera tenido más cosas que contar de las que cabían en el cuaderno. A veces los márgenes aparecen ribeteados por signos incomprensibles o comentarios escritos en otro momento posterior. Esto se deduce en primer lugar por la caligrafía (que como digo se va haciendo cada vez más pequeña y minuciosa) y en segundo lugar porque refleja claramente estados de ánimo distintos. (2004, p. 39-40).
Esclarecedora é a observação de que o manuscrito foi encontrado por um pastor “sobre un taburete bajo una pesada piedra que nadie hubiera podido dejar allí descuidadamente” (p. 40), além da enumeração dos objetos que compunham o cenário inventariado e da indicação de que o atestado fora feito por um guarda civil. (p.40). Completa, lugubremente, os sinais de vida (ou de morte), a referência: “Del techo colgaba un sencillo vestido negro de mujer”. O pesquisador/transcritor, ao encerrar a nota com que, a modo de um simples informe, apresenta o texto, acrescenta, de passagem, um registro lido por ele no informe do guarda civil, e esclarece: “eso es lo que me indujo a leer el manuscrito” (p. 40). Na parede, havia uma frase que dizia: “Infame turba de nocturnas aves6”, conhecido verso gongórico que nos remete a um famoso poema do Siglo de Oro espanhol, a Fábula de Polifemo y Galatea (1613), recriação de um tema clássico que, segundo os especialistas, Góngora tomou das Metamorfoses, de Ovídio. A fábula conta a história do feroz gigante de um só olho que se enamorou da ninfa Galatea, por sua Sétimo verso da quinta oitava da Fábula de Polifemo y Galatea, na qual o poeta barroco Luis de Góngora descreve a gruta onde vive o gigante Polifemo, “horror de aquella sierra”, segundo afirma o poeta em estrofe posterior.
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vez enamorada do pastor Acis. A ação se desenvolve em uma gruta, “misterioso bostezo de la tierra”, povoada de morcegos, a “infame turba de nocturnas aves”, segundo Góngora, e o desenlace é trágico: a morte destrói tudo e todos. Este conhecido verso no qual a aliteração reforça o aspecto sombrio, escuro, soturno do ambiente dá início a um instigante diálogo entre autores e obras, que não será o único: ao contrário, Méndez em seu conto nos remete a outros textos, a outros autores, quase todos com sua história interrompida ou destruída pela guerra. Importa registrar que em 1997, Vázquez Montalbán já se valera do mesmo verso de Góngora no poema “Ciudad7”: “infame turba de nocturnas aves / de crespones rojinegras sibilas sobrevuelan/ el quehacer de las palabras [...]”, aludindo, no verso seguinte, às cores rubro negras simbólicas da Falange. Méndez, como Vázquez Montalbán, lançam mão da literatura canônica para reforçar ainda que metaforicamente, o que não pode ser esquecido. Dessa maneira ao oferecem elementos que contribuem para contar sem precisar dizer, uma vez que o verso de Góngora nos remete imediatamente às noturnas aves que voam tristes e gemem graves, do verso seguinte e a toda a carga negativa disseminada pelo poema de que faz parte e pelo conto de Méndez e o poema de Vázquez Montalbán. Se a palavra literária permite a seu criador reinventar o mundo, o soldado/poeta se vale do verso de Góngora para expor-nos um mundo fraturado, sem sentido, sem luz, onde não há lugar para a esperança. Há alguns momentos, em “Segunda Derrota”, em que o desconhecido pesquisador/transcritor vem em auxílio do leitor e oferece-lhe esclarecimentos paralelos, como o fato de haver, na página 2, um poema riscado do qual se lêem algumas palavras: “ ‘sin luz’ o ‘mi luz’, no está claro y ‘olvidar el estruendo’ ” além de alguma frase escrita à margem, que ele transcreve, como por exemplo: “¿Es este niño la causa de su muerte o es su fruto?”(2004, p.41) . A matéria prima da narrativa de Alberto Méndez, tal como a do galego Manuel Rivas, é o que Rivas chama de histórias escritas no ar, histórias reais entreouvidas na memória dos sussurros que 7
Publicado pela Visor, em 1997.
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quebravam o silêncio noturno, eco da necessidade de desabafar ou explodir, a vencer timidamente o medo de falar dos amigos, de ausências irremediáveis, registradas trágica, mas poeticamente por diferentes narradores, que, com seu compromisso perante a humanidade, fazem um registro poético. Confirmam, assim, um pensamento de João Cabral de Melo Neto expressado em uma das muitas entrevistas que concedeu e que retive na memória, embora não tenha conseguido recuperar onde e quando fez essa afirmação. Para João Cabral, a primeira coisa que o poeta como o prosador deve fazer é não mentir: devem dizer a verdade. E a verdade, segundo A. Beevor, “foi realmente a primeira baixa da Guerra Civil Espanhola” (BEEVOR, 2007, p. 29). A leitura de “Segunda Derrota” nos mostra quão dolorosa é a verdade, especialmente em uma situação de anomia, quando o caráter sufocante de um momento histórico se multiplicava e adquiria mil olhos e ouvidos para o controle dos derrotados. Na obra de Méndez, os verdadeiros protagonistas são a derrota e o medo gerado por ela. Um dos cineastas que levou à tela Los girasoles ciegos, Rafael Azcona, considera que
“la guerra es una miseria, es una cosa horrible. Y hay una cosa peor, en mi memoria, que es la posguerra. En este libro están los datos que ya avisan de lo que va a ser la victoria, que va a ser una venganza repetida, reiterada, que no van soltar de los dientes los ganadores hasta que acaben con lo que pueda quedar de una España que había antes”.8 (2007)
No conto, o narrador insiste, de maneira obstinada, em registrar detalhes daquelas vidas: a de Elena morta e a do menino recémnascido, sobre as quais, parecia não ter mais nenhum alcance. Ele toma a palavra, embora mergulhado na perplexidade diante daquela realidade absurda em que se encontram nas montanhas de Somiedo, levado justamente pelo medo que o fez fugir, arrastando com ele a namorada grávida, na esperança de escapar às perseguições e justiçamentos de um pós-guerra que se desenhava mais cruel que a
8 Foro Complutense. Escritores en la Biblioteca. http://www.ucm.es/info/fgu/ descargas/forocomplutense/mesa_girasolesciegos_220207.pdf
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própria guerra. E o jovem soldado/poeta que se sabe presa fácil das “noturnas aves”, senhoras do poder conquistado a ferro e fogo, no caderno quadriculado que levava com ele e com o toco de lápis de que dispõe, em 26 páginas, se vale do “sacramento da linguagem”, e registra, relata, se assombra, lamenta, quase uiva como os lobos de por ali e se coloca “em jogo na sua palavra” (AGAMBEN, “O poder da palavra”). Porque, como afirma, “[...] nadie me enseñó a hablar estando solo, ni nadie me enseñó a proteger la vida de la muerte. Escribo porque no quiero recordar cómo se reza ni cómo se maldice” (2004, p. 41). O jovem não jura ou perjura, como poderia fazer, mas o leitor percebe que ele lamenta a decisão de sair em direção à França para não deixar-se prender “por los fascistas”, o que, para ele, “ sería lo mismo que regalarles otra vez la Victoria” (2004). Ele assume sua culpa pela morte de Elena e de seu filho ao decidir fugir, decisão que Elena abraça em curto e poético diálogo: “Qué te quedes, no te harán daño, le dije. Qué te sigo. Qué me matan. Qué me muero” (2004, p. 42). O narrador, no diálogo que estabelece com seu possível leitor, registra, pondera, interroga, expõe suas dúvidas com relação ao que está ocorrendo e sobre o que deve fazer. E afirma, de maneira algo hesitante: “Pienso que Ella no hubiera querido un hijo derrotado. Yo no quiero un hijo nacido de la huida. Mi hijo no quiere una vida nacida de la muerte. ¿ O sí?” (2004, p. 43). A força poética da palavra registrada no caderno quadriculado dialoga com elementos contraditórios como a raiva e a compaixão e acentua a intensa humanidade que escorre daquele registro feito “para explicar” a quem os encontre “que él tb es culpable, a no ser que sea otra víctima” e pedir a quem leia o que ele escreve que “por favor, que esparza nuestros restos por el monte. Elena no pudo llegar más lejos y el niño y yo queremos permanecer a su lado” (2004, p. 41). Morte e vida travam uma batalha desigual e, por momentos, o leitor acredita que a morte calará com facilidade o débil pranto do recém-nascido, além de interromper a sequência do registro já que ao narrador também começam a faltar “las fuerzas al cabo de tres dias sin comer nada” (2004, p.43). Mas o instinto de sobrevivência ou o desespero adiaram este momento: “impensadamente, me he encontrado dándole a chupar 46
un trapo mojado en leche desleída en agua” (2004, p. 44), referência indireta à existência de algumas vacas perto da cabana onde buscaram abrigo. Na sequência, a frase: “La vida se le imponía a toda costa” (p. 44), aprofunda aquela tragédia familiar, com palavras intensas, mas leves que expressam a crueza dos fatos e nos envolvem, ao mesmo tempo, em uma espécie de terno encantamento pelo sortilégio da poesia de que estão revestidas. Parece-nos oportuno recordar Todorov, que em uma entrevista a Miguel Conde, publicada no caderno “Prosa e Verso”, de O Globo (24/01/2009), afirma que a literatura fala da vida e ela tem coisas importantes a dizer. Vinte e nove anos depois de terminada a Guerra Civil Espanhola, Alberto Méndez retoma literariamente as histórias reais da vida na Espanha no “tiempo de silencio”, narradas em sussurro no pósguerra, e faz, a partir da literatura, um ajuste de contas com sua memória (2004, contra capa). A memória, como afirma Le Goff (2003, p. 471), “na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro”. Desse modo, o conto de Alberto Méndez também contribui para que a memória coletiva “sirva para a libertação e não para a servidão dos homens” (LE GOFF, 2003, p. 471). Na única entrevista disponível sobre o autor, concedida a César Rendueles e intitulada “Alberto Méndez. La vida en el cementerio”, a uma observação do entrevistador relativa ao fato de que três dos relatos que compõem o livro estão escritos em forma historiográfica, como se fossem fragmentos de uma memória perdida, responde Alberto Méndez que, à parte de ser um truque literário, trata-se de um método que lhe permite ser ambíguo, já que pode incluir fatos e personagens reais sem a necessidade de fazer uma pesquisa exaustiva sobre os acontecimentos. E sobre o conto que tratamos aqui, a “Segunda Derrota”, revela: Lo del poeta escondido en las brañas también es cierto. Yo hablé con el pastor que encontró los esqueletos en 1940, en los altos de Somiedo. Me contó que en la cabaña había una bandera republicana pero yo lo eliminé. He quitado todo lo que fueran grandes gestos, he intentado no hacer ninguna proclama. 47
Talvez esse procedimento tenha sido a chave do sucesso da obra de Méndez, a garantia de sua indiscutível qualidade literária: a ausência de grandes gestos, do que pudesse parecer panfletário.
O diálogo silencioso Reservamos uma parte deste ensaio para comentar o diálogo que o conto estabelece com obras expressivas da literatura e também das artes plásticas, outro “truque” usado pelo autor para dizer muito com pouquíssimas palavras. As pistas estão disseminadas pelo conto e as primeiras já estão no próprio título, pois a palavra manuscrito nos remete à intensa circulação de manuscritos entre os séculos XVI e XVII. O próprio Quixote circulou como “libro de mano”, antes da edição impressa de 1605 e, na obra, Cervantes faz numerosas referências a outros manuscritos, como, por exemplo, no episódio da primeira parte em que o vendeiro mostra os “ochos pliegos escritos de mano” da Novela del Curioso impertinente, manuscrito que já fora lido por outros hóspedes, que o padre se dispõe a ler em voz alta a seus acompanhantes, dizendo ao vendero que, se gostar, “me la habéis de dejar trasladar [‘copiar’]” (Quijote, I, 32, 250). Importa dizer que alguns manuscritos caíram no esquecimento ou se perderam, o que teria acontecido com o Manuscrito escrito en el olvido, caso o pesquisador não tivesse a atenção despertada para a indicação de que, na parede da cabana, havia a inscrição: “Infame turba de nocturnas aves”, verso que remete o leitor à quinta estrofe da Fábula de Polifemo y Galatea (1613), de Luis de Góngora y Argote. Não figura ali o verso final da estrofe: “volando tristes y gimiendo graves”. Nesse poema, o medo ancestral disseminado na fábula mítica, resgatado e legitimado por Góngora em seu poema, é recuperado por quem gravou o verso na parede, provavelmente o jovem fugitivo. O diálogo tão dramático quão silencioso começa pela expressão: Infame turba, seguida pelo determinante: de nocturnas aves. O leitor estabelece uma e muitas pontes entre o medo espalhado pelo gigante Polifemo, “el terror de aquellas sierras” e o medo do soldado fugitivo: 48
Tengo miedo de que el niño enferme, tengo miedo de que muera la vaca a la que apenas logro alimentar desenterrando raíces y la poca hierba que la nieve sorprendió aún viva. Tengo miedo de enfermar. Tengo miedo de que alguien descubra que estamos aquí arriba en la montaña, Tengo miedo de tanto miedo. Pero el niño no lo sabe. ¡Elena! (2004, p. 49)
Um momento de intensa emoção e ternura está definido no sepultamento de Elena, desde a escolha do lugar: sob uma faia, árvore que ele considera mais frágil do que o carvalho, conhecido por ser robusto e forte. Na visão poética do autor daquelas páginas, a faia está mais de acordo com Elena. Uma pedra branca sela seu túmulo e os seis versos finais do Soneto XXV, do lírico Garcilaso de la Vega (1501-1536), poeta e soldado do Siglo de Oro, escritos pela morte da amada, são recuperados pelo jovem do que lhe resta de memória para transformá-los em sua oração por Elena: Las lágrimas que en esta sepultura Se vierten hoy en día y se vertieron Recibe, aunque sin fruto allá te sean,
Hasta que aquella eterna noche oscura Me cierre aquestos ojos que te vieron, Dejándome con otros que te vean.
O jovem fugitivo, quando vivia em sua aldeia, conhecera os poetas espanhóis graças a Don Servando, seu professor, morto pelos soldados nacionalistas que também queimaram todos os seus livros (como em outros episódios tristemente conhecidos em que os livros são queimados para apagar inutilmente a memória do que ali estava escrito), e, “desterraron para siempre a todos los poetas que él conocía de memoria” (2004, p. 52), como Góngora e Antonio Machado. Não há outra referência a Machado, mas essa já traz à cena o poeta que divide com García Lorca a honra de serem os mais lidos de Espanha. Mais que isso, com esse comentário, fazse uma homenagem a Machado, o poeta que abraçou inteiramente a causa republicana e foi obrigado a fugir, arrastando-se com a mãe 49
doente pelas estradas das montanhas que levavam à França, para vê-la morrer ali, em terra alheia e onde ele mesmo morreria pouco depois9, em fevereiro de 1939. No manuscrito, à página 20, o poeta/soldado registra que o filho está doente, quase não se move, queima em febre. Com a criança nos braços, deixa fluir seu amor ao dizer: “¡Cuanto le quiero!” e lhe canta “una canción triste de Federico” que diz: Llanto de una calavera que espera un beso de oro. (Fuera viento sombrio y estrellas turbias).
fragmento de “Sibila”, de Federico García Lorca, que revela algumas falhas de memória. O jovem lamenta o fato de que “con el hambre lo primero que se muere es la memoria” (2004, p. 54) o que o impede de escrever poemas. Mas em sua cabeça giram mil canções de ninar e “todas tienen la misma letra: ¡Elena!”( 2004, p.54). Observamos no fragmento cantado que a quase totalidade de semas está ligada à morte, à ameaça, às sombras, ao obscuro em contraposição ao esperado beijo de ouro que nunca virá. Curiosamente, Sibila que integrava o Poema del Cante Jondo, em uma das edições das Obras Completas, García Lorca o retirou, informação que obtivemos graças a uma consulta à Fundación Casa de Federico García Lorca, pois não o encontrávamos em nenhum lugar, salvo em uma versão que aparece solta, na Internet. O diálogo que se estabelece com mais frequência, e intensidade, pelo que percebemos, é com Miguel Hernández (1910-1942), o poeta amado, com o qual há momentos em que também dialoga como que em delírio. Quando oferece ao filho o sangue da vaca que precisou matar, faz subliminarmente o cruzamento de sangue e leite, que nos remete a “Nanas de la cebolla” (1937), escrito no cárcere, por Miguel Hernández quando recebe a carta de sua
9 Antes de partir para o exílio, Machado deixara escrito: “Esto es el final; cualquier día caerá Barcelona. Para los estrategas, para los políticos, para los historiadores, todo está claro: hemos perdido la guerra. Pero humanamente, no estoy tan seguro… Quizá la hemos ganado” (CERCAS, 2007, p.24).
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mulher contando-lhe que alimentava o filho apenas com seu leite e havia dias em que ela não tinha para comer senão pão e cebolas: En la cuna del hambre mi niño estaba. Con sangre de cebolla se amamantaba.
O autor do Manuscrito encontrado en el olvido, um profundo conhecedor da palavra e de como usá-la, não mergulha seu leitor apenas nas atrocidades resultantes de uma luta insana: de sua palavra brotam momentos de extrema ternura enquanto se misturam o sangue escorrido da guerra e o sangue e o leite de uma faminta vaca daquela região que se tornara mais uma boca a ser alimentada nas paragens geladas da “braña” em que o jovem buscara guarida com a namorada, grávida do filho que não chegaria a conhecer. Cresce no conto a lembrança de Miguel Hernández, o pastor que se tornara poeta e soldado. A ele se dirige o jovem fugitivo, que, como Hernández um dia também se foi para Madrid, aquele em busca dos poetas, este para participar da guerra, “um rapsoda entre las balas” (2004, p. 52). E perguntava: “Dónde estarás ahora, Miguel, que no puedes consolarme”? (2004.p. 43). Na verdade, antes de dirigir-se a Miguel Hernández, de fazer-lhe perguntas que sabe sem respostas, nosso joven poeta e soldado afirmara: “El niño no vivirá y yo me dejaré caer en los pastos que cubrirá la nieve para que de las cuencas de mis ojos nazcan flores que irriten a quienes prefirieron la muerte a la poesía.” (2004, p.43). Impossível não recordar, ao ler essa frase terna e intensamente dolorida, o grito de “¡Viva la muerte!”, um dos chavões falangistas que nos remete a outros momentos em que a anulação da vida em favor da morte era questionada pelas perseguidas forças da resistência cultural. Impossível não reencontrar-nos com o poema “El herido”, possivelmente o poema a que se refere indiretamente o autor do Manuscrito quando afirma: “¡Miguel, se cumplirá tu profecía!” ( 2004, p. 43). Pensamos nos versos em que Miguel Hernández 51
valoriza a liberdade enquanto explicita tudo o que faria por ela, para concluir com os versos: Porque donde unas cuencas vacías amanezcan, ella (a liberdade) pondrá dos piedras de futura mirada y hará que nuevos brazos y nuevas piernas crezcan en la carne talada. Retoñarán aladas de savia sin otoño reliquias de mi cuerpo que pierdo en cada herida. Porque soy como el árbol talado, que retoño: porque aún tengo la vida.(1937-1939)
Não cessa aí o diálogo com outras obras de autores quase sempre envolvidos com a Guerra Civil, diálogo sutilmente proposto por Alberto Méndez, a seu leitor, até mesmo pela utilização de desenhos, como o que pretende representar uma cabeça estilizada de vaca. Depois de comentar que encontrara uma vaca comida pela metade pelos lobos e de referir-se aos restos nos quais buscava, penosamente, salvar algo para alimentar-se e ao filho e da revelação do desenho da cabeça estilizada de uma vaca, é-nos impossível não pensar em Guernica, de Picasso (1937), nos corpos destroçados de seres humanos e animais que uivam silenciosamente seu protesto contra os horrores de uma guerra, ali pintados! Outro diálogo é o que se estabelece a partir do toco de lápis com que o jovem faz seus registros nas 26 folhas quadriculadas do caderno: ele nos remete a outro lápis também envolvido com as questões trágicas do pós-guerra civil, O lapis do carpinteiro (1998), de Manuel Ribas, que dá conta daquelas histórias escritas no ar, entreouvidas por Ribas e por ele recriadas em uma de suas obras de maior sucesso, como sempre escrita originalmente em galego. O transcritor do manuscrito, na página 22, copia uma frase sobre o toco de lápis: “Mi lápiz también debió de perder la guerra y probablemente la última palabra que escribirá será “melancolía” (2004, p. 56). Mas não é o que ocorre. A página 23 contém um breve comentário sobre a morte silenciosa da criança e sua decisão de chamá-la de Rafael, nome que repete cuidadosamente sessenta e três vezes, outras 62 à página 24 e, em letras muito menores, 119 52
vezes na página 25. O resto de lápis provavelmente acaba, o que leva o comentarista a revelar que a página 26 já não está escrita com ele, mas provavelmente com um carvão. E o que está registrado custa a ser lido, porque o autor parece ter passado a mão por cima, na tentativa de apagá-lo. As últimas palavras lidas a custo nos levam de volta ao começo do relato, quando o transcritor esclarece a razão de seu interesse por ler aquelas páginas: ali está, uma vez mais, a confirmar o medo gravado na parede, o medo registrado no caderno, gerado pela perseguição aos republicanos qual novo Polifemo a assombrar aquelas brenhas reconduzido à cena pelo verso: “Infame turba de nocturnas aves10”. Estas sim, são as últimas palavras do manuscrito. Para encerrar... Na articulação da História com a Literatura, o resultado é uma obra de ficção na qual o fato histórico é tão inacreditável que o leitor crê tratar-se de ficção. Em entrevista, Alberto Méndez revela que três dos contos têm sua base em fatos reais e que o jovem poeta e soldado existiu, realmente, pois Méndez conseguiu conversar com o pastor que descobriu os despojos dentro da choça onde também se encontrava o manuscrito. Essa declaração coincide com uma nota do editor, ao final do conto, em que registra o fato de ter ido, em 1954 a uma aldeia da província de Santander, chamada Caviedes, onde soube que o “maestro Don Servando”, tal como o professor de La lengua de las mariposas, de Manuel Rivas, foi justiçado por ser republicano e seu melhor aluno, que tinha uma inclinação para a poesia, com 16 anos fugira para a zona republicana para unir-se ao exército que perdeu a guerra, Nem seus pais, que se chamavam Rafael e Feliza e morreram ao final da guerra nem ninguém jamais voltou a ter notícias dele. Chamava-se Eulalio Ceballos Suárez e tinha fama de louco porque escrevia e recitava poesias. O jovem soldado e poeta não soube nunca que um dia, um filósofo chamado Agamben escreveria algo que se enquadraria com justeza na situação que lhe tocara viver e continuou a mover-se nas
10 O sétimo verso da quinta estrofe da Fábula de Polifemo y Galatea, de Luis de Góngora tem a concluí-lo e a encerrar a estrofe o verso: “Gimiendo tristes y volando graves”.
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sombras que seu tempo lhe oferecia. Seu lápis estava umedecido nas trevas de seu presente: lápis, embora, identificava a sombra e sobre ela escrevia na escuridão que se abatera sobre ele durante a fuga insana com Elena, grávida de 8 meses. Era movido pelo medo e percebeu, intuitivamente, a sombra em que estavam mergulhados. O verso: “Infame turba de nocturnas aves”, gravado na parede da choça onde buscara abrigo, conta parte de sua história, embora tenha sido escrito por Góngora, no século XVII. As trevas do passado se encontram com as trevas do presente. Teriam a capacidade de dar uma resposta às trevas de agora? No verso de Góngora, que permanece vivo na parede ao longo de todas as vicissitudes ocorridas naquela choça e depois delas, lemos ou pensamos ler o diálogo permanente e silencioso ( mas não menos contundente), que se estabeleceu, nas alturas de Somiedo, entre o jovem poeta, o medo e a derrota. Este verso será o último registro feito no caderno quadriculado, já não mais com o lápis, mas com os restos de vidas apagadas, a do carvão frio e a do soldado/poeta vencido, para que, quem os encontre na primavera, “sepa qué muertos ha encontrado”. (MÈNDEZ, 2004, p.47). Tudo no “Manuscrito encontrado en el olvido” leva o leitor a refletir no que o Quixote diz a Sancho sobre o medo que ensurdece e cega as pessoas, perturbando-lhes os sentidos como lemos na primeira epígrafe. O leitor percebe que o conto vai muito além das palavras com que está escrito e o lança em uma vertigem de reflexões sobre o ser humano como indivíduo, “como pieza única del engranaje de la historia” (Valls, 2005). Em todos os diálogos paralelos propostos pela “Segunda Derrota”, no entrelaçamento de história e ficção, percebemos que é fundamental manter viva a memória dessas infames sombras para que não se percam nos silêncios e, logo, no apagamento do que Valls classificou como uma “imprudente indiferença.” (Valls, 2005).
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ROGER CASEMENT SOB O OLHAR POLIÉDRICO DE VARGAS LLOSA EM EL SUEÑO DEL CELTA Sigrid Renaux1 Ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, Mario Vargas Llosa, no discurso “Elogio de la lectura y la ficción”, afirma que
La buena literatura tiende puentes entre gentes distintas y, haciéndonos gozar, sufrir o sorprendernos, nos une por debajo de las lenguas, creencias, usos, costumbres y prejuicios que nos separan. Cuando la gran ballena blanca sepulta al capitán Ahab en el mar, se encoge el corazón de los lectores idénticamente en Tokio, Lima o Tombuctú. Cuando Emma Bovary se traga el arsénico, Anna Karenina se arroja al tren y Julien Sorel sube al patíbulo(...), el estremecimiento es semejante en el lector que adora a Buda, Confucio, Cristo, Alá o es un agnóstico, vista saco y corbata, chilaba, kimono o bombachas. La literatura crea una fraternidad dentro de la diversidad humana y eclipsa las fronteras que erigen entre hombres y mujeres la ignorancia, las ideologías, las religiones, los idiomas y la estupidez. (2010)
Estas palavras emblemáticas, pronunciadas em dezembro de 2010, um mês após o lançamento do romance histórico El sueño del Celta, confirmam o que a obra irá revelar: o relato da vida heróica e trágica do irlandês e cônsul britânico Sir Roger Casement (18641916). A narrativa nos faz não apenas nos “surpreendermos”
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Centro Universitário Campos de Andrade - Uniandrade 59
ao compartilharmos das aventuras de Casement pelo Congo Belga e pela Amazônia peruana, ao ele presenciar e delatar os horrores do colonialismo belga e britânico nos dois continentes, e “sofrermos” com ele, ao servir de intermediário entre o governo alemão e os “Easter Rebels” durante a Primeira Guerra Mundial ao ver derrocados seus planos de libertar a Irlanda do jugo inglês, ser preso, julgado e condenado à morte. Faz-nos, igualmente, compreender o lado obscuro de sua personalidade, na qual transparece o homosexualismo, como revelado nos Black Diaries.
Num trânsito constante entre história e ficção, a extensa e meticulosa pesquisa feita por Llosa sobre a trajetória de vida e os escritos de Casement, registrada nos Reconocimientos, bem demonstra o cuidado e persistência que teve ao mergulhar seu talento nessa personagem da história da Irlanda, da Inglaterra e, também, “cidadão do mundo”, como será chamado por Yeats. Como Llosa comenta no Epílogo, “tardó buen tiempo (...) hasta ser aceptado como lo que fue: uno de los grandes luchadores anticolonialistas y defensores de los derechos humanos de las culturas indígenas de su tiempo y un sacrificado combatiente por la emancipación de Irlanda” (2010, p. 448-449).2 E é a leitura do romance que faz nos unirmos “por debajo de las lenguas, creencias, usos, costumbres y prejuicios que nos separan”, para rendermos nosso tributo a esse herói – simultaneamente “muchos hombres” (apud epígrafe de José Enrique Rodó), no qual “angeles y demonios se mezclan en su personalidad de manera inextricable” (SC, p. 449).
Esta visão poliédrica que Llosa lança sobre Casement como ser humano, em toda sua complexidade, é que pretendemos explorar – por um lado o herói idealista, o libertador, o mártir e, por outro, o vilão “traidor” e homosexual abjeto – a fim de ressaltar como essas diferentes facetas irão revelar um personagem contemporâneo, ao se transformar gradualmente não só de defensor do colonialismo europeu em lutador anti-colonialista, mas também ao chegar à percepção de que o Império Britânico coagia de maneira idêntica os nativos da Amazônia e os habitantes da Irlanda. Este salto é que As referências seguintes à obra serão apresentadas como SC, seguidas do número das páginas citadas.
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o torna nosso “contemporâneo”, ao Casement estabelecer relações entre acontecimentos e situações que poucos em sua época ousaram ver. Como destaca Giorgio Agamben,
contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo para nele perceber não as luzes, mas o escuro. (...) O contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo. (2009, p. 62-64)
Em função desses “princípios estruturais da imagem do herói”, irão juntar-se nesta obra, igualmente, as diferentes variantes da tipologia histórica do romance – de viagem, de provas, biográfico e de educação/formação (BAKHTIN, 1992, p. 235) –, com destaque para a última variante. Como argumenta Bakhtin, se a maioria dos romances de educação conhece apenas “a imagem pré-estabelecida do herói”, postulando-o como uma “grandeza constante” (p. 237), os romances de formação apresentam “a imagem do homem em devir”: o herói já não é uma unidade estática, mas uma unidade dinâmica, no qual ele e seu caráter se tornam uma grandeza variável pelas mudanças ocorridas em sua trajetória e temporalidade cíclica. Teríamos assim em El Sueño del Celta um romance de formação que absorve não apenas o romance de aventuras, de viagem e de provas, com a transformação do “adolescente idealista e sonhador”, através da experiência, num lutador incansável pelos direitos humanos dos povos oprimidos; não apenas o romance biográfico, no qual “a transformação é o resultado de um conjunto de circunstâncias e empreendimentos que modificam a vida”, visto que, na prisão, Casement se transformara num homem derrotado pelas circunstâncias, desiludido com a contradição entre história e realidade, porém resignado com a morte, pela fé; mas, principalmente, um romance de formação, que se efetua num tempo histórico real, profundamente cronotópico, no qual 61
O homem já não se situa no interior de uma época, mas na fronteira de duas épocas (...). Essa passagem efetua-se nele e através dele. Ele é obrigado a tornar-se um novo tipo de homem, ainda inédito. (...) A força organizadora do futuro desempenha portanto um importante papel, na mesma medida em que o futuro não é relativo à biografia privada, mas concernente ao futuro histórico. São os fundamentos da vida que estão mudando e compete ao homem mudar junto com eles. Não é de surpreender que, nesse tipo de romance de formação, os problemas sejam expostos em toda a sua envergadura (...). A imagem do homem em devir perde seu caráter privado (...) e desemboca numa esfera totalmente diferente, na esfera espaçosa da existência histórica. (BAKHTIN, 1992, p. 238-40)
Essas teorizações, que antecipam e englobam a argumentação de Agamben sobre o contemporâneo, permanecerão como pano de fundo para a apresentação e discussão das múltiplas facetas que Llosa revela da persona de Roger Casement. O DESPERTAR DO HERÓI
Os múltiplos aspectos da personalidade complexa de Casement – idealista, aventureiro, poeta, tímido, sensível e intuitivo – já estão presentes no relato de sua infância e adolescência, antecipando assim os traços que se tornarão marcantes quando adulto e que, em decorrência dos acontecimentos e das aventuras pelas quais irá passar, serão responsáveis pela sua conversão política – ao passar do idealismo e timidez à coragem e combatividade contra a opressão colonialista e imperialista sobre os indígenas no Congo e na Amazônia; à ousadia e militância pela causa irlandesa; e, na prisão, à sua reincorporação à igreja católica.
Apesar de Roger Casement ter nascido em Dublin, seu pai, o capitão Roger Casement, inculcou-lhe “que su verdadera cuna era el condado de Antrim, en el corazón del Ulster, la Irlanda protestante y probritánica, donde el linaje de los Casement estaba establecido desde el siglo XVIII” (SC, p.18). Esta bifurcação quanto ao seu pertencimento à República da Irlanda, onde nascera, ou à Irlanda do Norte, de onde descendiam 62
os familiares do pai, será retomada ao longo da narrativa, culminando com sua conscientização da força opressora do imperialismo britânico em relação à Irlanda do Norte, que o levará a trair a Inglaterra e, em consequência, a ser julgado e enforcado.
A mesma ambivalência irá ocorrer quanto a seu credo: mesmo sendo educado, com os três irmãos mais velhos, na Church of Ireland, “desde antes de tener uso de razón, intuyó que em matéria de religión no todo em su família era tan armonioso como en lo demás” (p.18): percebia que sua mãe, Anne Jephson, parecia esconder algo quando estava com os parentes na Escócia e, já adolescente, descobriu que ela havia se convertido ao protestantismo para casar-se com seu pai, mas continuava sendo católica às ocultas; descobriu também que ele próprio havia sido batizado católico aos quatro anos no País de Gales, onde moravam os tios maternos. Esta ambivalência irá igualmente atravessar a narrativa, culminando com sua recondução ao catolicismo, antes de morrer.
Também antecipando as viagens que faria e as situações extraordinárias e aventuras pelas quais iria passar quando adulto, como um herói menipeano à procura da verdade (BAKHTIN, 1997, p. 114), o narrador comenta o interesse que o menino demonstrava pelas histórias do pai sobre as batalhas das quais havia participado na India e no Afganistão, nessas “remotas fronteras del Imperio”, complementadas pelas próprias leituras das façanhas dos grandes navegantes que haviam “surcado los mares del planeta”.O que mais atiçava sua imaginação, entretanto, não eram os feitos de armas, “sino los viajes, abrir caminos por paisajes nunca hollados por el hombre blanco, las proezas físicas de resistencia, vencer los obstáculos de la naturaleza” (SC, p.19-20), preparando o leitor a avaliar melhor o idealismo que estava desenvolvendo em relação aos países distantes que viria a conhecer. Esta admiração pelo pai, todavia, contrastava com sua extrema severidade, pois “no vacilaba en azotar a sus hijos cuando se portaban mal (...), pues así se castigaban as faltas em el ejército y el había comprobado que solo esa forma de castigo era eficaz”, episódios que irão se repetir, de forma muito mais cruel, ao Casement presenciar os castigos que os exploradores brancos 63
aplicavam aos nativos na África e na Amazônia, estabelecendo um novo paralelo entre fatos da infância e o que está por vir.
Entretanto, quem Roger amava de verdade era a mãe – “esa mujer esbelta que parecia flotar em vez de andar, de ojos y cabellos claros y cuyas manos, tan suaves, cuando se enredaban em sus rizos o acariciaban su cuerpo a la hora del baño lo colmaban de felicidad” (CS, p.20) –, fato que irá prenunciar sua presença constante nas rememorações de Casement, bem como a sugestão de uma sensibilidade e carência por parte do menino pelo carinho materno que sempre vêm à tona em momentos culminantes da narrativa. A morte da mãe quando Roger tinha nove anos o abalou muitíssimo: em nova prolepse, o narrador afirma não só que “desde entonces y por el resto de su vida, de tanto em tanto, en sus sueños, la figura de Anne Jephson vendría a vistarlo com aquella sonrisa invitadora, abriéndole los brazos, en los que el iba a encogerse, sintiéndose protegido y feliz (...), una sensación que parecia defenderlo contra las maldades del mundo”; destaca também que, já na prisão, “en sus desvelos, presentía en la oscuridad, mirándolo com tristeza, el semblante de la infortunada Anne Jephson” (SC, p. 21), confirmando assim a presença materna até o último instante de sua vida.
O fato de seu pai, após a morte da mãe, ter deixado Dublin e entregue os filhos aos tios-avós em Ulster, afastou Roger do convívio paterno. Com a morte do pai três anos após a mãe, Roger continuou com os tios até os quinze anos. Entretanto, “solo muchos años más tarde aprenderia a sentirse cómodo em Magherintemple House, la casa solar de los Casement”, pois “siempre se sintó algo extraniero en esa imponente mansión de piedras grises” (SC, p. 2223), revelando sua inadequação ao que se referia ao solar familiar paterno, em contraste com a natureza à sua volta – as colinas, o mar, as aldeias antigas e os glens. Sua “diversión preferida eran las excursiones por aquella tierra áspera, de campesinos tan añosos como el paisaje”, cuja recordação “lo acompañaría toda la vida”. Esse “rincón del paraíso” (SC, p.23) de sua infância e adolescência, que será contrastado com o cenário inexorável de extermínio e crueldade humanos que irá presenciar no Congo e Amazônia, servirá, igualmente, de estímulo para sonhar com uma Irlanda livre. 64
As atividades que realizava na escola – “escribía poesía, parecía siempre ensimismado y devoraba libros de viajes por el África y el Extremo oriente. Practicaba deportes, sobre todo natación” (SC, p.22) – também serão retomadas ao longo de suas viagens, pois continuará a escrever poemas, as leituras de livros de viagem serão concretizadas nas experiências no Congo e na Amazônia – com consequências terríveis para sua sensibilidade – e o prazer que a natação e a água fria lhe proporcionariam reaparecem em diversas ocasiões, sempre relacionadas com momentos prazerosos, tanto em suas experiências homosexuais como para aliviar sua sensação de esgotamento moral, já na prisão. Nesta época escolar, quando convidado nos finais de semana ao castelo dos Young, teve igualmente contato com as epopéias da mitologia irlandesa, tema que será retomado ao se iniciar sua reaproximação com a história da Irlanda. Roger, no entanto, gostava ainda mais das férias que passava em Liverpool, com a tia Grace, “em cuya casa se sentia querido y acogido” (SC, p.23) e cujos filhos “fueron mejores compañeros de juegos de Roger que sus propios hermanos”, confirmando a intimidade que gozava com os familiares da mãe, em contraste com a “estranheza” que sentia no solar paterno. É por intermédio de seu tio Edward Bannister que Roger ouve falar pela primeira vez de David Livingstone, que havia se convertido no herói mais popular do Império britânico: “Roger soñaba com él, leía los folletos que describían sus proezas y ansiaba formar parte de sus expediciones, enfrentar a su lado los peligros, ayudarlo en llevar la religión cristiana a esos paganos que no habían salido de La Edad de Piedra”(SC, p.24). Lembrando as aventuras que o pai lhe contava, Roger, “de grande, también sería explorador, como esos titanes, Livingstone e Stanley, que estaban extendiendo las fronteras de Occidente y viviendo unas vidas tan extraordinárias” (SC, p.25). Temos aqui exposto, mais uma vez, o idealismo crescente do menino, que o levará à Africa sonhada, apenas para descobrir, aos poucos, a realidade que se ocultava hipocritamente por trás do colonialismo europeu e ponto de partida para suas lutas contra as forças da agressão imperialista. Por conselho do tio-avô John Casement, Roger aos quinze 65
anos foi trabalhar em Liverpool, morando com os tios Bannister. Continuava lendo e estudando sobre a África e
repetia convencido, las ideas que impregnaban esos textos. Llevar al África los productos europeos e importar las matérias primas que el suelo africano producía, era, más que uma operación mercantil, una empresa a favor del progreso de pueblos detenidos en la prehistoria, sumidos en el canibalismo y la trata de esclavos. El comercio llevaba allá la religión, la moral, la ley, los valores de la Europa moderna, culta, libre y democrática, um progreso que acabaria por transformar a los desdichados de las tribus en hombres y mujeres de nuestro tiempo. En esta empresa, el Imperio británico estaba a la vanguardia de Europa y había que sentirse orgullosos de ser parte de él y del trabajo que cumplían en la Elder Dempster Line. (SC, p.26.)
Esses motivos idealistas já serão, entretanto, questionados pela reação de seus companheiros de repartição, “preguntándose si (...) creia em esas tonterías o las proclamaba para hacer méritos ante sus jefes” (SC, p.26), numa nova prolepse, pois essas “tonterías” serão também escarnecidas pelos exploradores e capatazes que irá encontrar nas selvas africanas e amazônicas, confirmando a ganância e a crueldade de todo o pretenso projeto colonialista.
Durante esses quatro anos Roger estabeleceu uma relação fraternal com a prima Gee, “La primera persona a la que mostró los poemas que escribía em secreto”, demonstrando mais uma vez a sensibilidade e timidez que caracterizam sua personalidade e o afeto pela prima – extensão do amor que dedicara à mãe –, como ele irá lhe revelar, na prisão: eles eram “más que enamorados (...). Hermanos, cúmplices. (...) Tú fuiste muchas cosas para mi. La madre que perdi a los nueve años. Los amigos que nunca tuve. (...) Me dabas confianza, seguridad en la vida, alegria. (...) tus cartas eran mi único puente com el resto del mundo” (SC, p.26-31). Llosa nos adianta, deste modo, as principais facetas que a personalidade híbrida do herói irá desenvolver: mesmo que por um lado fosse idealista em relação à sua missão e extremamente 66
sensível pelo amor dedicado à figura materna, tão cedo perdida, por outro já conhecia a ambivalência de seu pertencimento nacional e religioso e de sua admiração e afeto pelo pai apesar dos castigos infligidos; e, também, ao se defrontar com a realidade brutal das regiões que irá percorrer – quando sua sensibilidade, exacerbada ao testemunhar o sofrimento, tortura e mutilação dos nativos no Congo e no Putumayo, leva-o às raias da loucura –, à conscientização de sua homossexualidade e da coprolalia em seus diários, quase que como uma válvula de escape diante de tanto barbarismo e horror. AS AVENTURAS DO HERÓI NO CONGO
As três primeiras viagens de Casement ao Congo são motivadas pelo desejo de ajudar os africanos a sair de sua condição “subhumana” e, assim,
en un arranque de idealismo y sueño aventurero, decidió em 1884 dejar Europa y venir al África a trabajar para, mediante el comercio, el cristianismo y las instituciones sociales y políticas de Occidente, emancipar a los africanos del atraso, la enfermedad y la ignorância. No eran meras palabras. Creía profundamente em todo aquello, cuando, con veinte años de edad, llegó al continente negro. (SC, p. 35)
Esta profunda convicção do função civilizadora do Imperialismo – já comentada por Edward Said ao afirmar que “Imperialism after all was a cooperative venture, and a salient trait of its modern form is that it was (or claimed to be) an educational movement; it set out quite consciously to modernize, develop, instruct, and civilize” (1994, p.223) – materializa-se ao receber a notícia de que faria parte da expedição de Stanley e, assim “Acababa de concretarse el anhelo de su vida: formar parte de una expedición encabezada por el más famoso aventurero em suelo africano: Henry Morton Stanley. (…)!Acompañar ao héroe que encontró al desaparecido doctor Livingstone!” (SC, p. 35). 67
A razão aparente da expedição de 1884 era preparar as comunidades do Congo para a chegada dos comerciantes e administradores europeus que a Associação Internacional do Congo iria trazer, uma vez que as potências ocidentais deram a concessão ao rei Leopoldo II da Bélgica. Stanley e seus acompanhantes deveriam explicar aos caciques as “intenções benévolas” dos europeus e Roger, a princípio, não queria dar-se conta de que os contratos de Stanely eram um embuste, pois os caciques não sabiam o que assinavam.
Em seu confronto com Stanley, ouve que virão missionários, médicos, companhias, escolas para, aos poucos, os nativos trocarem “sus costumbres bárbaras por las de seres modernos e instruídos” (SC, p.43). Mas o idealismo de Roger já começava a sofrer abalos:
Hasta entonces creia que el colonialismo se justificaba com ellas: cristianismo, civilización y comercio.(...) Era inevitable que se cometieran abusos. (...) aprendió también que el explorador era um mistério ambulante. Todas las cosas que se decían sobre el estaban siempre en contradición entre ellas mismas, de manera que era imposible saber cuáles eran ciertas y cuáles falsas y cuánto había en las ciertas de exageración y fantasía. (...) Lo único claro fue que la idea de um gran benefactor de los nativos no correspondía a la verdad. (SC, p.43-4)
Mesmo assim, seu espírito de aventura o leva a percorrer várias vezes a rota das caravanas e seu idealismo reaparece quando, encarregado de negociar com as comunidades indígenas a entrega de nativos, “Sus maneras suaves, su paciencia, su actitud respetuosa facilitaban los diálogos”, tornando-o conhecido como “amigo de los negros”. Por outro lado, saía dessas negociações “con un indefinible malestar, la sensación de estar jugando sucio com aquellos hombres de outro tiempo, que (...) nunca podrían entenderlo cabalmente y, por ello (...) con la mala conciencia de haber obrado en contra de sus convicciones, de la moral y de esse ‘principio primero’, como llamaba a Dios”.
Lamentou o resto de sua vida “haber dedicado sus primeros ocho años en África a trabajar, como peón en una partida de ajedrez, en la construcción del Estado Independiente del Congo, invirtiendo en ello su tiempo, su salud, sus esfuerzos, su idealismo y creyendo que, de este modo, obraba por um desígnio filantrópico” (SC, p. 49). Suas desilusões com o sistema colonialista, passados dezoito anos desde que participara da expedição de Stanley, fazem Casement chegar “a la conclusión de que su héroe de su infancia y juventud era uno de los pícaros mais inescrupulosos que había excretado el Occidente sobre el continente africano”, destruindo, deste modo, um dos ícones de sua infância. Numa segunda etapa, já como cônsul da Grã Bretanha em Boma, em 1900, recebe a autorização do Foreign Office para viajar a todos os lugares onde se fazia a extração da borracha no Congo, pois “debía verificar sobre el terreno qué había de cierto em las denuncias sobre iniqüidades cometidas contra los nativos en el Congo de su Majestad Leopoldo II” (SC, p.34).
Assim, a partir de 1903, converte-se de aventureiro em investigador oficial do Governo Britânico das atrocidades que estavam sendo cometidas no Congo Belga. Nesses três meses, “la impresión de despoblamiento y eclipse de la gente, de desaparición de aldeas y asentamientos donde el había estado (...) hacía quince o dieciséis años”, repetia-se em todas as regiões que visitava e as explicações eram sempre as mesmas: os negros morriam de doenças, pragas, má alimentação. Mas Roger sabia a resposta verdadeira: “La plaga que había volatilizado a buena parte de los congoleses (...) eran la codicia, la crueldad, el caucho, la inhumanidad de un sistema, la implacable explotación de los africanos por los colonos europeos”(SC, p.82).
A denúncia que faz ao capitão Marcel Junieux, responsável pela Força Pública da região, não surte efeito, pois além de o capitão reiterar que “nosotros somos los ejecutores de una política en la que no hemos intervenido para nada. Nunca nadie nos pidió nuestra opinión” eximindo-se assim da responsabilidade dos crimes, ainda faz troça do idealismo de Casement, como seus ex-companheiros de trabalho: “A qué hemos venido, pues? Ya lo sé: a traer la civilización, 69
el cristianismo y el comercio libre. Usted todavia cree eso, señor Casement?” E, se havia ainda alguma dúvida no espírito do herói, agora ele sabe de toda a verdade ao responder: “Lo creia antes, si. De todo corazón. Lo creí muchos años, com toda la ingenuidad del muchacho idealista que fui. Que Europa venia al África a salvar vidas y almas, a civilizar a los salvajes. Ahora sé que me equivoqué” (SC, p.101). A advertência do capitão de que “no hay fuerza humana que cambie este sistema. Es demasiado tarde para eso” (SC, p.102) não apenas confirma o poder e a desumanidade deste sistema colonial já intuída por Roger, mas também nos remete ao que Agamben denomina de “Dispositivo”:
qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas, etc., cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – por que não – a própria linguagem (...). (2009, p. 40-41)
Transpondo essas reflexões para o caso específico da investigação de Casement, poderíamos sugerir que
– o colonialismo europeu, como dispositivo, tinha capacidade de determinar, modelar, controlar e assegurar as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes – dos que executam as ordens como dos que padecem sob as mesmas; – este sistema foi responsável pela transformação do herói, pois, segundo Agamben, o sujeito, o que resulta da relação de subjugação dos seres viventes aos dispositivos, “pode ser o lugar dos múltiplos processos de subjetivação” (p. 42). Como Roger perceberá, “en esse período cambió su manera de ser y se convirtió en otro hombre, 70
más lúcido y realista de lo que había sido antes, sobre el Congo, el Africa, los seres humanos, el colonialismo, Irlanda y la vida. Pero aquella experiencia hizo de él, también, um ser más propenso a la infelicidad” (SC, p. 80-81).
Assim, este sujeito no qual ocorreram múltiplos processos de subjetivação – condizente com as teorizações de Bakhtin sobre o herói no romance de formação e com as de Agamben sobre o que é ser contemporâneo –, esta transformação do herói num outro homem leva-nos ao âmago da visão poliédrica de Llosa sobre Casement. Simultaneamente, servirá de parâmetro não só para sua próxima incumbência de averiguação de atrocidades no interior da Amazônia, pois Casement, ao lá chegar, já era esse “outro homem”; servirá, igualmente, para descobrir sua afinidade com a Irlanda, como a correspondência que mantém com a prima Gee revela: se a carta confirma sua preocupação de estar à beira da loucura, pois “ Un ser humano normal no puede sumergirse por tantos meses en este infierno sin perder la sanidad. (...) Vivo con una angustia constante”, a carta versa mais ainda sobre o impacto que as experiências no Congo haviam causado nele: Así es, Gee querida, te parecerá otro sintoma de locura pero este viaje a las profundidades del Congo me há servido para descubrir a mi próprio país. (...) En estas selvas no solo he encontrado la verdadera cara de Leopoldo II. También he encontrado mi verdadero yo: el incorregible irlandês. (...)Tengo la impresión de haber mudado de piel, como ciertos ofídios, de mentalidad y acaso hasta del alma. (SC, p.109)
É a primeira menção da descoberta de uma nova verdade: a de seu nacionalismo nascente, juntamente com a de seu “verdadeiro eu”, percepção essa que continua a revolver em seus pensamentos sobre o país de sua infância e juventude para afastar as imagens de horror que o destruíam: 71
No era también Irlanda una colonia, como el Congo? Aunque el se hubiera empefiado tantos años em no aceptar esa verdad que su padre y tantos irlandeses del Ulster, como él, rechazaban com ciega indignación ? por qué lo que estaba mal para el Congo estaria bien para Irlanda? No habían invadido los ingleses a Eire? No la habían incorporado el Imperio mediante la fuerza, sin consultar a los invadidos y ocupados, tal como los belgas a los congoleses? Con el tiempo, aquella violencia se había mitigado, pero Irlanda seguia siendo uma colonia, cuya soberania desapareció por obra de um vecino más fuerte. (SC, p.110).
É chamado de volta Londres, para redigir seu Relato sobre o Congo, o que faz “con la mayor precisión y sobriedad” pois queria “describir com objetividad solo lo que había podido comprobar.” (SC, p.115). O Congo estava no centro da atualidade londrina, com as denúncias da Igreja Batista e da campanha de Edmund Morel, que Roger considerava “el único europeo que parecia haber tomado conciencia cabal de la responsabilidad que tenia el Viejo Continente en la conversión del Congo en un infierno”, e, portanto, um “contemporâneo” como ele. O encontro com Morel se tornará o mais importante de suas vidas: criaram a Congo Reform Association para a qual quase todos os políticos, jornalistas, escritores, religiosos e figuras de destaque deram auxílio, como a historiadora Alice Stopford Green e Joseph Conrad, que Casement havia conhecido no Congo. Para Roger, significativamente, o mais importante não foi a popularidade que alcançou com a publicação do Relato, mas conhecer Alice, de quem seria amigo e discípulo, demonstrando mais uma vez sua abnegação e idealismo. É ela, irlandesa e protestante como ele, a quem Roger abriu o coração:
(...) allá, em el Congo, conviviendo com la injusticia y la violência, había descubierto la gran mentira que era el colonialismo y había empezado a sentirse um “irlandés”, es decir, ciudadano de um país 72
ocupado y explotado por um Imperio que había desangrado y dealmado a Irlanda. Se avergonzaba de tantas cosas que había dicho y creído, repitiendo las enseñanzas paternas. (...) Ahora que, gracias al Congo, había descubierto a Irlanda, queria ser um irlandês de verdad, conocer su país, apropiarse de su tradición, de su historia y su cultura. (SC, p.119-120)
É o início do salto de Casement – ao descobrir, através da mentira do colonialismo, a verdade de que era irlandês e, portanto, também cidadão de um país “desangrado y dealmado” como o Congo – salto que o levará, após a experiência da Amazonia, a lutar pela libertação da Irlanda.
Foi Alice, em 1904, que o introduziu ao passado antiquíssimo da Irlanda, “en el que historia, mito y leyenda – la realidad, la religión y la ficción – se confundían para construir la tradición de un pueblo que seguía conservando, (...) su lengua, su manera de ser, sus costumbres”. É também ela que o faz dar-se conta de que se convertera em uma “celebridade”, pois a repercussão do Relato e os ataques que recebia na Bélgica apenas robusteciam “su imagen de gran luchador humanitário y justiciero” (SC, p. 120-121).
Incomodado com esta súbita fama, Roger partiu para a Irlanda. Mas, apesar de os parentes o receberem com muito carinho, “él sentia que uma distancia invisible había surgido entre el y su família paterna que seguia siendo firmemente anglófila”, ou seja, sua aproximação a uma Irlanda que desejava livre o afastava inconscientemente dos parentes (SC, p.120). Simultaneamente, “sus nuevas ideas y sentimientos sobre su país hicieron que esta estáncia, (...) se convirtiera en otra gran aventura para él. Una aventura, a diferencia de su viaje al Alto Congo, grata, estimulante y que le daria la sensación, al vivirla, de estar mudando de piel.” É novamente o herói em constante transformação, no qual as facetas de sua personalidade vão adquirindo novas nuanças devido às experiências pelas quais passou e que o fazem reavaliar não só sua trajetória de vida, mas também sua trajetória existencial. Começou a encontrar-se com pessoas que desejavam 73
preservar “la personalidad de la antigua Irlanda, luchaban contra la anglización del país, defendían la vuelta al viejo irlandés (...) y soñaban com una Irlanda aislada (...) emancipada del Império británico. É “o sonho do celta” (título do poema que escreverá) que começa a emergir desses encontros (SC, p. 122). Vinculouse à Gaelic League, começou a assistir a eventos promovidos pelo Sinn Fein como também a escrever artigos políticos defendendo a cultura irlandesa, sob pseudônimo. Numa discussão com seu tio Roger, afirma, exaltado “Como irlandés que soy, ódio al Imperio británico” (SC, p.123.) e, ao receber a notícia de que fora distinguido com a condecoração Companion of St. Michael and St. George do governo de Sua Majestade, Roger se desculpa de não assistir à cerimônia, alegando uma infecção no joelho, o que o impediria de se ajoelhar diante do rei. Confirma, destarte, sua integridade intelectual em não aceitar uma condecoração do país que dominava sua terra natal. Deste modo, as aventuras de Casement, durante os vinte anos que passou no Congo e sua volta à Inglaterra, onde se tornou um herói, demonstram como o aprendizado pelo qual passou não apenas ressalta suas facetas de aventureiro e idealista reveladas na infância e adolescência, mas como aos poucos sua experiência o havia transformado num outro homem, realista, corajoso e atuante: ao denunciar as atrocidades que investigara – fato já mencionado por Edward Said, ao comentar, que, em contraste com os grandes retóricos da justificação teórica do império após 1880, já havia, “in colonies like the Congo and Egypt people such as Conrad, Roger Casement, and Wilfrid Scawen Blunt, [who] record the abuses and the almost mindlessly unchecked tyrannies of the white man” (1994, p.107); e, concomitantemente, ao iniciar uma trajetória nacionalista que o levaria, já naquela ocasião, a dizer que “odiava o Império britânico” e a se recusar a receber a condecoração real. Essas facetas, entre outras, serão projetadas e acentuadas uma vez mais nas novas aventuras pelas quais irá passar, até desembocarem nas ações a favor da independência da Irlanda e à “traição” ao Império Britânico, que o levarão ao desenlace fatal. 74
AS AVENTURAS DO HEROI NA AMAZÔNIA Durante seus anos de serviço consular em Santos, Belém do Pará e Rio de Janeiro, Casement participou de uma missão oficial à Amazônia, em 1910, para averiguar as denúncias de crimes perpetrados contra os nativos pela Peruvian Amazon Company, em Putumayo. Ele aceitou esta missão não só porque “por su labor en el Congo tenia la obligación moral de aceptar” mas também por haver doado seu patrimônio em prol da Irlanda, demonstrando assim sua generosidade e despojamento. Como comenta Angus Mitchell, “a viagem viria a aprofundar as suas preocupações sobre a forma destrutiva dos impérios e do poder da modernização não inspecionada” (2011, p.15), confirmando a transformação que sua faceta sonhadora havia sofrido – pois será com um olhar conhecedor que irá avaliar as atrocidades que virá a presenciar –, como também a revelação de novas facetas: seu “carácter estoico” (SC, p. 141), pois nunca deixou transparecer a seus companheiros de viagem que seu estado geral de saúde, já abalado pela estadia no Congo, havia piorado; e o aguçamento da percepção de seu nacionalismo: sonha com o ano e meio que passou na Irlanda, entre 1904 e 1905, e como “aquellos meses significaron el redescubrimiento de su país, la inmersión en una Irlanda que sólo había conocido por conversaciones, fantasias y lecturas, muy distinta de aquella en que habia vivido de niño (...) o de adolescente(...), una Irlanda que no era cola y sombra del Império británico, que luchaba por recobrar su lengua, sus tradiciones y costumbres”. Como escreveu sua prima Gee, “Roger querido: te hás vuelto um patriota irlandês” (SC, p. 143). Esta revelação será complementada com a recordação, em sonho, de que em 1906 escrevera El sueño del celta, um longo poema épico sobre o passado mítico da Irlanda e também um panfleto político, Los irlandeses y El ejército inglês, rechaçando que os irlandeses fossem recrutados para o exército britânico (SC, p. 145). Este crescente nacionalismo dá uma nova luminosidade à sua faceta idealista e nos prepara para a grande mudança que irá ocorrer nele, ao voltar da Amazônia.
A realidade começa a surgir já ao primeiro dia, quando o cônsul inglês, Mr.Stiers, prenuncia a Roger o que o aguarda, na visita ao 75
prefeito Rey Lama: metade de Iquitos vive das empresas do senhor Julio C. Arana e, portanto, suspeitam das intenções da Comissão da qual Casement faz parte. Após ter lido os documentos e artigos denunciando as atrocidades cometidas na Amazônia e os diversos tipos de castigo aos índios pelas faltas que cometiam, a primeira reação de Roger foi de incredulidade, mas lembrou que essa fora a reação de muitos ingleses e europeus quando ele e Edmund Morel publicaram artigos sobre as inquidades do Congo, pois “Así se defendia el ser humano contra todo aquello que mostraba las indescriptibles crueldades a las que podia llegar azuzado por la codicia y sus malos instintos en un mundo sin ley. Si esos horrores habían ocurrido en el Congo, por qué no podían haber ocurido em la Amazonía?”(SC, p.155).
Apesar de ainda não haver iniciado sua investigação, Roger já percebia as semelhanças entre os dois continentes, unidos pelo flagelo do “dispositivo” colonialista: se por um lado Eponim T.Campbell, o antigo capataz de Arana, depõe que teve de matar muita gente cumprindo ordens, por outro, o interrogatório de Zumaeta, da Peruvian Amazon Company, revelou a Roger que ele jamais diria a verdade. O fato de que foram inúteis os requerimentos do governo britânico para que o presidente Leguia iniciasse investigação sobre as denúncias no Putumayo, faz Roger concluir que nenhum juiz de Iquitos se atreveria a enfrentar a Compania de Arana. E Roger se sentia transportado, em el espacio y en el tiempo al Congo. Los mismos horrores. El mismo desprecio de la verdad. (...)La diferencia, que Zumaeta hablaba en español y los funcionários belgas en francés. Negaban lo evidente com la misma desenvoltura porque ambos creían que recolecter caucho y ganar dinero era um ideal de los cristianos que justificaba las peores fechorías contra esos paganos que, por supuesto, eran siempre antropófagos y asesinos de sus propios hijos. (SC,p.174)
Esta viagem, que será “un descenso a los infiernos” (SC, p.165), será também uma descida ao aspecto de sua personalidade que 76
Roger mais tentou “mascarar”, na acepção agambeniana – sua inclinação homosexual: ela já fora sugerida no Congo e agora, ao sonhar com o jovem que havia fotografado naquela manhã em Iquitos, ela reaparece, mais forte, o que o deixa envergonhado e inseguro, pois naquela época o homosexualismo ainda era considerado crime pelo governo, pela sociedade e pela igreja, como “sistemas”.
Também o encontro com o Padre Urrutia, confirmando as acusações de Roca e Hardenburg sobre o Putumayo e ainda lhe revelando detalhes das “correrias”, esses assaltos às aldeias indígenas para capturar coletadores de borracha e venderem os filhos em Manaus, o fazem verificar que era esta a “historia de siempre. La historia de nunca acabar”. O próprio consul Stiers explica que “entre mis obligaciones no figura combatir la esclavitud o los abusos que cometen los mestizos y los blancos del Peru con los índios del Amazonas” (SC, p.204), reiterando a resposta que Roger recebia dos administradores no Congo. A retidão moral e o idealismo de Roger vêm novamente à tona ao recordar a discussão que teve com o seringueiro Israel, pois o contraste entre os conceitos de civilização de ambos revela bem a distância que os separa: para Israel e para a maioria de peruanos e estrangeiros em Iquitos, “los indígenas amazonicos no eran, propiamente hablando, seres humanos, sino uma forma inferior y despreciable de la existência, más cerca de lós animales que de lós civilizados. Por eso era legítimo explotarlos, azotarlos, secuestrarlos, llevárselos a las caucherías, o, si se resistían, matarlos como a um perro que contrae la rabia” (SC, p.209); para Roger, era o de “una sociedad donde se respeta la propiedad privada y la libertad individual”; portanto era justo o Peru aproveitar as riquezas da Amazônia, “pero sin abusar de los nativos, sin cazarlos como animales y sin trabajo esclavo. Más bien, incorporándolos a la civilizacion mediante escuelas, hospitales, Iglesias.”
As novas atrocidades que a Comissão descobre em La Chorrera – os indígenas “marcados como animales” (SC, p.219) e o cepo de torturas – faz Roger perceber o contraste entre a Peruvian – com escritórios luxuosos em Londres – e, do outro lado do mundo, os 77
índios “extinguiéndose poco a poco sín que nadie moviera um dedo para cambiar esse estado de cosas” (SC, p. 220). Percebe, outrossim, a similaridade entre os indígenas da Amazônia e os da África, que não se rebelavam pelas mesmas razões, remetendo-nos, novamente, às relações de subjugação das classes dos “seres viventes” aos “dispositivos” (AGAMBEN, 2009, p.40): “Porque, cuando el sistema de explotación era tan extremo, destruía los espíritos antes todavia que los cuerpos. La violencia de que eran víctimas aniquilaba la voluntad de resistencia, el instinto por sobrevivir, convertia a los indígenas em autómatas paralizados por la confusión y el terror” (SC, p.221).
A descoberta desta nova verdade leva Roger não só à certeza de que, no relatório, “Debía describir com claridad. El sistema de explotación del caucho basado en el trabajo esclavo y en el maltrato de los indígenas atizado por la codicia de los jefes que, como trabajaban a porcentaje del caucho recogido, se valían de los castigos físicos, mutilaciones y asesinatos para aumentar la recolección” (SC, p.235-6 ). Leva-o a igualmente uma nova descoberta que irá redirecionar seu idealismo ao engajamento político, pois, como anotou em seu diário, “He llegado a la convicción absoluta de que la única manera como los indígenas del Putumayo pueden salir de la miserable condición a que han sido reducidos es alzandose em armas contra sus amos.”; e, adiante, “Los irlandeses somos como los huitotos (...) del Putumayo. Colonizados, explotados y condenados a serlo siempre si seguimos confiando en las leyes, las instituiciones y los goviernos de Inglaterra, para alcanzar la libertad. Nunca nos la darán. (...) Esa presión solo puede venir de las armas”. Esta ideia irá retornar e se intensificar de agora diante, ao chegar à conclusão de que “No debemos permitir que la colonización llegue a castrar el espíritu de los irlandeses como há castrado el de los indígenas de la Amazonia. Hay que actuar ahora, de uma vez, antes que se atarde y nos volvamos automatas”. É assim que, após exigir medidas dos “caucheros” responsáveis para melhorar a situação dos indígenas, Roger retorna à Europa em fins de 1910. Em Londres, apesar da piora de seu estado de saúde, redige o Informe sobre o Putumayo, elogiado pelo ministro Sir Edward Grey. 78
E, a fim de evitar o assédio de políticos, pede autorização ao Foreign Office para viajar em férias a Dublin. É lá que recebe a notícia de que George V quer enobrecê-lo por mérito aos serviços ao Reino Unido, Congo e Amazônia. As dúvidas de Roger entre aceitar ou não esta honraria refletem, novamente, a situação do herói em formação como uma unidade dinâmica, em constante variação, pois
Cómo aceptar este título otorgado por um régimen del que, em el fondo de su corazón, se sentia adversário, el mismo régimen que colonizaba a su país? Por outra parte, no servía el mismo como diplomático a este Rey y a este Gobierno? Nunca como em esos dias sintió tanto la recondita duplicidad em la que vivia hacía años, trabajando por uma parte com disciplina y eficiencia al servicio del Imperio britânico, y, por outra, entregado a la causa de la emancipación de Irlanda y vinculándose cada vez más (...) a los más radicales como el IRB, (...), cuya meta era la independencia a través de la acción armada. Corroído por estas vacilaciones, optó por agradecer a sir Edward Grey (...).(SC, p. 290)
Na mesma época, o Foreign Office decide que Roger volte a Putumayo para comprovar que algo fora feito pelas autoridades peruanas, antes de publicar seu Relato.
Nesta segunda viagem à Amazônia, em 1911, o resultado foi igualmente decepcionante: descobre que a prisão e julgamento dos responsáveis pelas atrocidades não ocorreu e o juiz que relatou as acusações sobre o que ocorria no Putumayo está foragido. Roger queria voltar a Putumayo, mas é aconselhado a ir embora, pois pode ser morto e desiste da viagem após descobrir que nada havia sido feito pela Peruvian para melhorar condições dos índios. Prepara então seu novo Relato ao Foreign Office, revelando que nada fora feito nem pela Peruvian nem pelo governo do Peru: o poder de Arana era tal que todas as instituições da cidade trabalhavam para permitir a continuação da exploração dos índios. Roger recordaria essas oito semanas em Iquitos como um “lento naufrágio”, onde ninguém dizia a verdade, porque viviam num 79
sistema corrupto, como o que conheceu no Congo, no qual não se distinguia o falso do certo. Durante essas semanas sua inclinação homosexual vem novamente à tona, abordando jovens nas ruas e banhos públicos, como revelado em seus diários. Entretanto, depois desses encontros, caía em depressão, pois amargurava-o não ter conhecido o verdadeiro amor, nem tido esposa e filhos, além do fato de que teria uma velhice solitária e pobre, pois doara seus ganhos a entidades humanitárias (SC, p. 302). Essas dimensões de sua personalidade ressaltam sua sensibilidade e carência pelo afeto materno que sempre o marcaram, como também sua generosidade para com os menos favorecidos. A pedido das autoridades inglesas embarcou para os Estados Unidos. Tem audiência com o Presidente Taft para persuadi-lo a ajudar os ingleses a exigir do Peru que acabem com a ignomínia na Amazônia. É uma época em que se enchia também de preocupações religiosas, latentes desde a infância, e que irão de agora em diante aumentar até culminarem com sua reintegração à Igreja Católica, já na prisão. Com a publicação do Relato sobre o Putumayo em 1912, há uma grande comoção em Londres, Europa e Estados Unidos e Casement é reconhecido como o grande humanitário lutando contra o extermínio dos indígenas, atingindo destarte o auge de sua ascensão como herói: Sir Edward Grey informou-lhe que o governo em Lima iria tomar medidas contra a Peruvian e que o projeto de uma Missão católica no Putumayo fora aprovado, o que demonstra como o relato de Casement causou amplo efeito.
Em novembro de 1912 a Peruvian Amazon é levada a julgamento e, no interrogatório, o testemunho mais esperado foi o de Roger, que descreveu tudo “con precisión y sobriedad”, traço marcante de seu caráter: a tortura nos cepos, cicatrizes das flagelações, as correrias, escravidão, exploração subhumana dos índios. Exibiu os objetos que a Peruvian vendia aos índios por preços astronômicos, e as fotos tiradas em El Encanto: cicatrizes, cadáveres, sacos de borracha solidificada, “inapelable testimonio” (SC, p. 331) da condição desses seres quase sem alimento e maltratados por pessoas ávidas de lucro. O juiz declarou a responsabilidade de Arana em “não saber” o que ocorria, o que levou à ruína do império que havia feito: Arana 80
teve que vender suas propriedades para pagar dívidas aos bancos, a fuga dos capatazes pôs os índios em anarquia e Iquitos desmorona, voltando a ser um povo perdido na Amazonia.
A ida de Casement a Berlim, também motivada para escapar ao acossamento dos jornalistas, serviu-lhe para que uma idéia se convertesse “en uno de los vértices de su acción política”: como a possibilidade de o Parlamento inglês conceder Home Rule à Irlanda mobilizou os unionistas de Ulster a favor da Inglaterra, Roger pensou em buscar solidariedade na Alemanha, pois se a Inglaterra fosse derrotada na guerra iminente isto levaria à emancipação da Irlanda. Será o seu erro trágico e fatal: estar dividido entre uma Inglaterra que o cobria de glórias e uma Irlanda que desejava livre (SC, p. 328). A FALHA TRÁGICA DO HERÓI
O novo projeto de Casement, agora, era “ocuparse de otros indígenas, los de Irlanda. También ellos necesitaban librarse de los ‘aranas’ que los exploraban, aunque com armas más refinadas e hipócritas que las de los caucheros peruanos, colombianos y brasileños”. Entregou pedido de renúncia ao Foreign Office por motivos de saúde, pois não queria “volver a vivir em la duplicidad, ejercer de diplomático al servicio de um Imperio que condenaba com sus sentimientos y princípios”.
O homem de ação se fortalece: publica “El Putumayo irlandês” e começa a escrever na imprensa nacionalista. Vai a Paris visitar o casal Ward. Já numa antecipação do que seu idealismo viria a expôlo, Ward acusou R de “abrazar la idea nacionalista de uma manera demasiado exaltada, poco racional, casi fanática”, argumentando que, “entre el Congo e Irlanda hay uma distancia sideral”. Seu idealismo exacerbado o faz perder controle da realidade: vivia com uma intensidade desconhecida e, por outro lado, sentia a perda de tempo em discussões com os nacionalistas e unionistas. Como ele reflete, demonstrando sua maturidade em relação aos seres humanos e a si próprio, 81
Había oído e leído que la política, como todo ló que se vincula al poder, saca a vezes a la luz lo mejor del ser humano – el idealismo, el heroísmo, el sacrifício, la generosidad –, pero, también, lo peor, la crueldad, la envidia, el resentimiento, la soberbia. Comprobó que era cierto. El carecia de ambiciones políticas, el poder no lo tentaba. Talvez por eso, además del prestigio que arrastraba como gran luchador internacional contra los abusos de los indígenas del Africa y de America del Sur, no tenia enemigos en el movimiento nacionalista. Eso creia, al menos (...) (SC, p. 391-2)
Em 1913 percorre a Irlanda fazendo discursos políticos e colabora com os planos estratégicos dos voluntários, empenhados em dotar o movimento com armas para lutar pela soberania. Em 1914, Roger reafirma ao jornalista Oskar Schweriner a ideia que tivera em Berlim “de vincular la lucha por la emancipación de Irlanda a Alemania si estallaba um conflicto bélico entre este país y Gran Bretaña”, iniciando destarte o que será sua falha trágica: confiar numa aliança com a Alemanha. Roger sai clandestinamente para os EUA a fim de se encontrar com líderes revolucionários irlandeses no exílio para tratar da emancipação da Irlanda. Quando a Grã-Bretanha declarou guerra à Alemanha, Roger e os dirigentes do Clan na Gael decidiram que ele iria a este país representando os independentistas para estabelecer uma aliança estratégica, na qual o Kaiser ajudaria política e militarmente os voluntários e estes fariam campanha contra o alistamento de irlandeses no exército britânico.
Roger se entregou à ação com enorme energia: confirmando sua faceta antibritânica (SC, p.405), publica Irlanda, Alemania y la libertad de los mares: un posible resultado de la guerra de 1914. Seus pronunciamentos a favor da Alemanha impressionaram os diplomatas do Reich nos EUA e Roger expôs ao embaixador alemão o pedido dos nacionalistas: fusis e munições para um levantamento militar irlandês anticolonialista que imobilizaria as forças militares inglesas no litoral irlandês. Os alemães aprovam as conversações. 82
Entretanto, ao viajar para Christiania em outubro de 1914, juntamente com Eivind Christensen – o belo rapaz que conheceu “casualmente” em Nova York, mas que estava a serviço da espionagem britânica – já começava a etapa mais amarga de sua vida: seu erro trágico se amplia, ao acreditar em Eivind. Sua decepção com a Alemanha, que admirava como exemplo de eficiência, disciplina, cultura e modernidade, começou aos poucos: na viagem a Berlim, estava ainda cheio de ilusões, como em sua primeira viagem ao Congo. Entretanto, mesmo com a notícia que iria se reunir com os prisioneiros de guerra irlandeses, Roger pressentia que “la realidad no se iba a plegar a sus planes, que, más bien, se empeñaría em hacerlos fracasar”. A desaprovação de Alice, por fazer causa comum com a Alemanha, deixa-o ainda mais aturdido e ele se pergunta, num sinal de mau agouro:”Y si Alice tiene razón y yo me he equivocado?” (SC, p. 409-410). Nas conversas que mantém com os sacerdotes que chegaram para o campo dos prisioneiros irlandeses, freis O´Gorman e Crotty, Roger expôs “su desconcierto espiritual” e suas dúvidas sobre a nova missão, pois, ao se dirigir aos prisioneiros explicando a razão da uma brigada irlandesa, foi recebido com hostilidade, uma experiência da qual nunca se recuperou. A resposta que Crotty dá à sua pergunta “Devo renunciar a esto?” mostra novamente como seu idealismo se tornará simultaneamente sua falha trágica: “Debe hacer ló que crea que es lo mejor para Irlanda, Roger. Sus ideales son puros. La impopularidad no es siempre um buen indicio para decidir la justicia de uma causa” (SC, p.413). Vivia numa duplicidade angustiante, pois houve poucas adesões por parte dos prisioneiros e, ademais, o comando militar alemão o avisou que havia indícios de que Eivind estaria informando a inteligência britânica. A chegada em 1915 a Berlim de Joseph Plunkett, delegado dos Voluntarios e da IRB, com notícias da Irlanda que uma minoria leal aos voluntários contava com militantes decididos a lutar, faz com que Roger insista na ofensiva alemã como condição para o Levante. Ambos trabalharam dia e noite preparando os planos. Entretanto, Roger sente-se um fracassado, ao ser aconselhado pelo conde Blücher a descartar a invasão num futuro próximo, pois a 83
Irlanda representava pouco em termos geopolíticos. Suas doenças recrudesceram: artrite, febres, fraqueza e insônia. Entre tantos revezes e tensões, sentiu que perdia o equilíbro mental.
A vinda do capitão Robert Monteith foi uma bênção para Roger, pois este militar e frei Crotty – encarnando dois protótipos irlandeses: o guerreiro e o santo – impediram que um desânimo levasse Roger à loucura. Mesmo com tratamento médico, os últimos meses de Roger na Alemanha foram de constantes discussões e tensão com as autoridades. Sentiu que havia sido enganado pelo Reich, que não tinha interesse na libertação da Irlanda, servindo-se de sua ingenuidade e boa fé. É a verdade final, que descobre: “su anhelo de que la Brigada se convirtiera em uma pequeña fuerza simbólica de la lucha de los irlandeses contra el colonialismo se había hecho humo” (SC, p. 430).
Começou a sentir pela Alemanha um ódio semelhante ao que lhe inspirava a Inglaterra, como comenta em carta a John Quinn, numa intuição fatídica: “Así es, mi amigo: He llegado a odiar tanto a los alemanes que, antes de morir aquí, prefiero la horca británica”. Seu estado de irritação e malestar físico o obrigaram a se internar novamente, para não perder a razão.
Monteith o tirou desta letargia em inícios de março de 1916, ao avisar que o comitê irlandês havia decidido que o Levante teria lugar no dia 23 de abril. A mensagem também trazia instruções para que Roger permaneça na Alemanha como “embajador de la nueva republica de Irlanda”. Ele percebeu que não fora avisado pelos companheiros dos planos antes do governo alemão. Como estavam cientes de sua oposição a um levante sem invasão conjunta alemã, pensavam que na Irlanda ele seria um estorvo (SC, p.432). Roger tem sua linha de conduta clara: partir à Irlanda com o carregamento de armas e impedir que os 53 inscritos na brigada irlandesa partissem, pois como traidores seriam executados se capturados pela marinha real. Esta decisão de Roger, em querer evitar que os inscritos fossem executados sem ter tido oportunidade de morrer lutando, reflete mais uma vez sua abnegação e altruísmo. Ao despedir-se do padre Crotty, este o alerta sobre o suicídio deste levante, condenado ao fracasso, prenunciando a Roger seu 84
próprio final: “El que ahora me preocupa es usted. Si es capturado, no tendrá ocasión de luchar. Será juzgado por alta traición”. Roger está ciente disso, mas mesmo assim quer impedir esse sacrifício inútil, pois “mi obligación es ser consecuente e ir hasta el final”, demostrando a costumeira coragem e determinação em enfrentar sua última luta. O DESENLACE
O final desta aventura vem narrada nos capítulos em que Roger se encontra na prisão de Pentonville: durante estes três meses, ele recebe informações sobre o andamento do processo, as visitas da prima Gee, da amiga Alice Green e dos padres Carey e MacCarroll, e, principalmente, reavalia, sua trajetória de vida: reflete sobre os erros que cometeu, que culminaram no seu julgamento como traidor do Império Britânico, como também sobre sua conversão religiosa, que o leva à reintegração ao catolicismo da mãe, antes de ser enforcado. As facetas de sua personalidade híbrida são deste modo reiluminadas, em analepse, através de suas memórias e da percepção que os outros têm dele. Durante essas visitas, Roger expressa a gratidão e carinho que tem por Gee e por Alice, que “Lo había educado y hecho descubrir y amar el pasado de Irlanda” e a primeira a chamá-lo de “el celta”, confirmando assim a razão de seu profundo idealismo que o levara ao sonho de uma Irlanda independente. Externa a ela, igualmente a decepção que lhe causou a informação de que Conrad não assinara a petição de clemência. Mas é a resposta que Alice dá à pergunta se ela crê ser justa a visão do ser humano em Heart of Darkness – Supongo que no lo es (...)Esa novela es uma parábola según la cual África vuelve bárbaros a los civilizados europeos que van allá. Tu Informe sobre el Congo mostro lo contrario, más bien. Que fuimos los europeos los que llevamos allá las peores barbáries. Además, tú estuviste veinte años em el África sin volverte um salvaje. Incluso, volviste más civilizado pelo que eras cuando 85
saliste de aqui creyendo em las virtudes del colonialismo y del Imperio. (SC, p.76-7)
– que retrata bem a diferença entre os europeus que se transformaram em selvagens no Congo, como no romance de Conrad, e ele próprio, voltando mais civilizado do que quando saira, crendo nas virtudes do colonialismo e do império. Uma faceta determinante da personalidade de Roger, que revela sua retidão de caráter, idealismo e coragem em delatar a verdade no Informe sobre el Congo. Por outro lado, ao recordar que no Congo e na Amazônia, diante das atrocidades, também havia sentido que as forças o abandonavam e, “quien siente una desmoralización tan profunda puede cometer distracciones tan graves como las que el cometió”, são ponderações que poderiam explicar parcialmente esse lado obscuro de sua personalidade, seu homosexualismo, como revelado nos Black Diaries.
Ao receber a visita de Father Carey e este lhe confirmar que “No necesita ser recibido de nuevo en la Iglesia católica. Siempre estuvo en ella”, Roger, em nova descoberta da verdade sobre si mesmo,
se alegró por la complicidad que esse secreto establecía entre él e Anne Jephson. Y porque de este modo se sentia más em consonancia consigo mismo, com su madre, com Irlanda. Como si su acercamiento al catolicismo fuera uma consecuencia natural de todo lo que había hecho e intentado em estos últimos años, incluidos sus equivocaciones y fracasos.(SC, p.125)
Demonstra, destarte, a profunda conexão existente entre o amor pela mãe, a reintegração ao catolicismo e o amor pela Irlanda, três facetas que se iniciaram na infância e que o acompanham até o final.
Entretanto, ao pedir a Carey que “Quisiera ser aceptado por la Inglesia de manera formal. Recibir los sacramentos. Confesarme. Comungar”, sua única dúvida é se sua conversão não parece inspirada pelo medo. E a resposta de Carey – “Todos tenemos miedo, 86
está en nuestra condición. Basta um poco de sensibilidad para que nos sintamos a veces impotentes y atemorizados” – revela a Roger uma nova dimensão de si próprio: não teve medo no Congo, nem na Amazônia, nem quando deixou o submarino em Banna Strand, ao chegar à costa da Irlanda. Mas agora, tem medo. (SC, p. 128).
Através de Carey Roger também descobre a verdade paradoxal de que havia sido julgado e condenado por trazer armas para uma secessão violenta da Irlanda, quando, na realidade, havia feito essa viagem arriscada da Alemanha à Irlanda para evitar esse Levante, fadado ao fracasso. Como ele diz, ironicamente, “Es probable que yo pase a la Historia como uno de los responsables del Alzamiento de Semana Santa” (SC, p. 130), demonstrando a grande decepção a que seu idealismo aventureiro o levara. E, ao sentir que Carey está rezando por ele, o que o faz lembrar mais uma vez do Congo e do Putumayo, pergunta: “Cómo puede permitir Dios que ocurran cosas así?”, “Qué clase de Dios es este que tolera que tantos miles de hombres, de mujeres, de niños sufran semejantes horrores?” (...) “Muchos dias creí que me iba a volver loco” (SC, p. 131-2). A resposta de Carey – “Es difícil comprender ciertas cosas, desde luego. Nuestra capacidad de comprensión es limitada. Somosfalibles, imperfectos. Pero algo le puedo decir. Muchas veces há errado como todos los seres humanos. Pero, respecto as Congo, a la Amazônia, no puede reprocharse nada. Su labor fue generosa y valiente. Hizo que mucha gente abriera lós ojos, ayudó a corregir grandes injusticias. Pero, respecto al Congo, a la Amazônia, no puede reprocharse nada. Su labor fue generosa y valiente. Hizo que mucha gente abriera lós ojos, ayudó a corregir grandes injusticias.” (SC, p.132)
– em sua avaliação do ser humano, e, em especial, de Casement, comprova novamente o lado heroico e abnegado deste herói, defensor dos direitos humanos dos povos indígenas, o que o redime das outras falhas. Por esta razão, dá-lhe o perdão. 87
Roger reflete também sobre a vida que teria levado, se a mãe não tivesse morrido: talvez não teria empreendido a aventura africana e ficado na Irlanda, casado, seguindo uma carreira burocrática. Mas percebe que a vida que levara, com todos seus percalços, era preferível, pois “Había visto mundo, su horizonte se amplio enormemente, entendió mejor la vida, la realidad humana, la entraña del colonialismo, la tragédia de tantos pueblos por culpa de esa aberración” (SC, p. 135) demonstrando assim, mais uma vez, sua contemporaneidade na acepção agambeniana.
Por outro lado, neste recapitular de sua vida antes da execução, permanece a dúvida: “Estaban justificados los sacrifícios de esos veinte años africanos, los siete años em América del Sur, el año y pico em el corazón de las selvas amazônicas, el año y médio de soledad, enfermedad y frustraciones em Alemania?”. Sempre ajudara os outros, vivendo com grande austeridade e, ao pensar “Nadie recordaria esos donativos, regalos, ayudas, ahora que había fracasado. Sólo se recordaría su derrota final” (SC, p. 136), antecipa que até sua generosidade e altruismo seriam esquecidos.
Destarte, além das visitas de Alice e de Carey, iluminando as múltiplas facetas de Roger, a autoavaliação de sua vida o faz descobrir verdades sobre o ser humano e sobre si mesmo. Como ele reconhece, após o julgamento, ao recordar os 53 voluntários da brigada irlandesa que ficaram na Alemanha sem saber da ida de Roger e Monteith à Irlanda, “Una vez más se dijo que su vida había sido uma contradición permanente, uma sucessión de confusiones y enredos truculentos, donde la verdad de sus intenciones y comportamientos quedaba siempre, por obra del azar o de su propia torpeza, oscurecida, distorsionada, trastrocada en mentira” (SC, p265). Como conclui, “!Así se escribía La Historia! El, que vino a tratar de atajar el alzamiento, convertido en su líder por obra del despiste británico. (...) Eso era la historia, uma rama de la fabulación que pretendia ser ciencia.”(SC, p. 274). É a grande contradição entre história e realidade, verdade que Roger descobre, através de suas próprias ações, e , simultaneamente a complementação entre história e ficção. Roger escreveu duas cartas de despedida, uma para Gee e outra 88
aos amigos, revelando sua generosidade em perdoar a todos: “Mi último mensaje para todos es un sursum corda. Deseo lo mejor a quienes me van a arrebatar la vida y a los que han tratado de salvarla. Todos son ahora mis hermanos”(SC,p. 438).
Como Llosa comenta, no Epílogo, a história de Casement se projeta, apaga e renasce após sua morte como fogos de artifício. Levou tempo a ser admitido no panteón dos heróis da independencia da Irlanda. Nem agora se dissipou de todo a campanha que a inteligência britânica lançara, sobre homosexualismo e pedofilia. Sua figura incomodava em seu país, porque a Irlanda mantinha uma severíssima moral. Com a revolução dos costumes, aos poucos, o nome de Casement foi abrindo caminho, até ser aceito como o que foi:
uno de los grandes luchadores anticolonialistas y defensores de los derechos humanos y de las culturas indígenas de su tiempo y um sacrificado combatiente por la emancipación de Irlanda.Lentamente sus compatriotas se fueron resignando a aceptar que un herói y um mártir no es un protótipo abstracto ni u n dechado de perfecciones sino um ser humano, hecho de contradicciones y contrastes, debilidades y grandezas, ya que un hombre, como escribió José Enrique Rodó, “es muchos hombres”, lo que quiere decir que ángeles y demonios se mezclan em su personalidad de manera inextricable. (SC, p.448-9)
É o olhar poliédrico de Llosa que lhe permitiu ver “muchos hombres” em Casement, tornando-o não apenas um herói de grandeza variável num romance de formação, um herói que se situa na fronteira de duas épocas, na argumentação bakhtiniana, mas também nosso contemporâneo, que não se deixou cegar pelas luzes de seu século e recebeu em pleno rosto o facho de trevas do seu tempo, de acordo com Agamben. É esta imagem do homem em devir que o faz desembocar “na esfera espaçosa da existência histórica”. A discussão continua em aberto, conforme demonstra 89
o romance. A palavra final, em função de uma atitude dialógica e plurissignificativa, cabe ao leitor.
De acordo com Llosa, no ensaio “La verdad de las mentiras” (1996, p.15-32), também cabe ao leitor, em seu regresso à realidade, aplacar a insatisfação que a realidade imperfeita causa. As mentiras da ficção nunca são gratuitas: devem preencher as insuficiências da vida. A ficção deve superar a insatisfação que a realidade causa; deve enriquecer e completar a existência; compensar o ser humano de sua trágica condição, a de desejar e sonhar com o que não pode realmente atingir. Assim, os romances não são escritos para contar a vida, mas para transformá-la após o processo de leitura. Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad: Vinicius Nicastro Honesto. Chapecó: Argos, 2009. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. CARLOS, Ana Maria e ESTEVES, Antonio R., orgs. Ficção e História: leituras de romances contemporâneos. Assis: Faculdade de Ciências e Letras de Assis, 2007. CASEMENT, Roger. The Amazon Journal of Roger Casement. Ed.MITCHELL, Angus. London: Anaconda Editions, 1997.
MITCHELL, Angus. Roger Casement no Brasil: a Borracha, a Amazônia e o Mundo do Atlântico. Org. Laura P.Z.Izarra. São Paulo: W.B.Yeats Chair of Irish Studies; Humanitas, 2011. 90
SAID, Edward W. Culture and Imperialism. New York: Vintage Books, 1994.
VARGAS LLOSA, Mario. “Elogio de la lectura y la ficción”. Discurso de Mario Vargas Llosa al recibir el premio Nobel de Literatura 2010. Copyright Fundación Nobel 2010, p. 3. www.nobelprize.org/nobel.../vargas_llosa-lecture. PDF/Adobe Acrobat. acessado em 20/12/2010 VARGAS LLOSA, Mario. El sueño del celta. Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 2010.
VARGAS LLOSA, Mario. “La verdad de las mentiras”. IN: La verdad de las mentiras. (1996). www.puntodelectura.com. Acessado em 23/10/2011.
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Le nouveau Candide: uma crítica à modernidade Norma Wimmer1
Em 1759, Voltaire publica o conto filosófico Candide ou l’optimisme; o subtítulo indica o objetivo do autor: reavaliar ou questionar sua convicção na filosofia do Otimismo e nos desígnios da providência, de que Zadig ou la Providence (1747) constituíam a demonstração. Cabe a Candide retomar, parodicamente, os princípios da filosofia otimista de Leibniz e de Wolff os quais, no final do século XVII afirmavam que este mundo, criado por um Deus perfeito, não poderia ser senão perfeito, “o melhor dos mundos possíveis”. Se, em Zadig o autor punha ênfase no alcance da Divina providência e em seus desígnios sobre a boa ordem dos acontecimentos do mundo e sobre o aperfeiçoamento da humanidade, em Candide, impressionado entre outros desastres pelo terremoto que, em 1755 destruiu Lisboa, ele propõe uma revisão de seus conceitos, ironizando e desconstruindo, através do burlesco Professor Pangloss, o pseudo-filósofo, mestre de “metafísico-teólogo-cosmolonigologia”, os princípios dos pensadores alemães. Assim Pangloss, mentor espiritual do jovem Candide, insistia junto a seu discípulo sobre o fato de os eventos deste nosso mundo refletirem a perfeição do plano divino, sobre a inquestionável relação causa/conseqüência e sobre a certeza de que tudo, no universo, se encaminha para o bem e para a ordem. A Candide, ao contrário, evidenciava-se, constantemente, a falta de lógica das teorias de seu mestre: em sua perspectiva, este nosso mundo mostrava-se o mais ilógico e o pior dos mundos possíveis
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IBILCE/UNESP (C.S.J.Rio Preto)
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e a mais inofensiva das causas, passível de desencadear os mais desastrosos efeitos.
As aventuras de Candide remetem também aos romances de aprendizagem, que consistem na transcrição de uma experiência singular de formação; este gênero literário, nascido na Alemanha do século XVIII tem origem no romance de Goethe Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister (1795-1796); como nos romances de aprendizagem, cujo tema é o encaminhar evolutivo de um jovem heroi até o ideal do adulto realizado e culto, Candide constroi sua vida e uma ideologia, a da tolerância e a da ação positiva no mundo através do trabalho, a partir de suas sucessivas experiências positivas e negativas (mais negativas do que positivas) e da descoberta dos grandes acontecimentos da vida: amor, morte ódio, intolerância, guerra, injustiça, escravidão, desastres naturais (a própria experiência do terremoto de Lisboa). Mas trata-se de uma retomada paródica em que, muitas vezes, a terminologia e as idéias de Leibniz e de Wolff são reelaboradas, deslocadas, usadas para demonstrar justamente seu contrário. Na verdade, Candide, cândido e ingênuo, é expulso do castelo de Thunder-ten-tronckh em decorrência da mais sentimental das causas (sua paixão, correspondida, pela então bela Cunégonde) e vê-se obrigado, para sobreviver e poder tornar-se “sábio”, a enfrentar os piores males e os maiores sofrimentos do mundo... Candide retoma, parodicamente também, a forma dos relatos de viagem, cuja época áurea se estende do século XVII ao século XIX e que, no século XVIII foi empregada pelos espíritos esclarecidos para sondar suas próprias sociedades, como é o caso, por exemplo, das Cartas persas (1721) de Montesquieu, em que a reflexão porta sobre os hábitos e costumes franceses. O relato de viagem será igualmente usado por pensadores que, como Voltaire, dele lançam mão como modo de expressão privilegiada de seu pensamento crítico. Candide é uma aventura desencadeada a partir de várias viagens, através de um bizarro e ilógico itinerário o qual, iniciado na Vestfália, estendese pela Holanda, por Portugal, Espanha, Argentina, Paraguai, pelo utópico país do Eldorado, pelo Suriname, França, Inglaterra, Itália, sucessivamente, finalizando na Turquia, nas proximidades do Mar de Mármara. A cada etapa do périplo corresponde uma observação, 94
uma “lição”, uma consideração sobre a absoluta falta de sentido do mundo e das instituições dos homens. E não apenas Candide viaja: viajam também outros personagens, provocando, assim, um veloz e desencontrado vai-e-vem. No último capítulo, o de número XXX, Candide, Pangloss e seus amigos – Cunégonde, Martin, Cacambo e a velha – decidem exercer seus talentos trabalhando em uma pequena propriedade agrícola, abandonando toda e qualquer preocupação filosófica ou metafísica, concentrados, apenas, no “cultivo de seu jardim” na Propontida e, a partir de então, felizes.
Em 1994, Dominique Jamet2 publica, em Paris, Le nouveau Candide ou les beautés du progrès.3 O título, bem como o subtítulo, retomando ambos a forma estilística de Voltaire traduzem, evidentemente, a filiação do texto e a intenção do autor: denunciar, em um romance redigido no estilo dos contos filosóficos de Voltaire, os males que afligem a modernidade e o homem que vive em nossos dias. O volume é dedicado ao filósofo do século XVIII e, das quatro epígrafes de sua abertura, três são tomadas ao pensador francês: destas, a primeira remete a Zadig (à constatação da insignificância do ser humano); as duas outras, tomadas a Candide retomam os questionamentos e a descrença do personagem com relação à viabilidade do mundo e da humanidade. A quarta epígrafe, uma alusão de Mike Tyson a Voltaire, reporta a admiração do boxeador norte-americano pela coragem do filósofo de expor sempre seu real pensamento, não importando em qual situação.
Evidencia-se também, nesta obra de Dominique Jamet, além de um efeito paródico (talvez fosse possível considerá-la uma paródia em segundo grau, por apresentar-se como paródia de uma paródia a textos filosóficos e à literatura de viagem) – trabalho intertextual: a introdução do Nouveau Candide é constituída pelo capítulo XXX, o da conclusão, do Candide de Voltaire, integralmente retomada e destacada, tipograficamente, pela impressão em itálico. O objetivo deste procedimento parece ser o de assegurar a filiação do novo texto
2 Dominique Jamet nasceu na França em 1936. Foi jornalista, diretor da Biblioteca Nacional da França, autor de vários ensaios e de alguns romances, entre eles, Le nouveau Candide (1994). 3
O novo Candide ou as belezas do progresso. Paris: Flammarion, 1994. 95
ao antigo e o de estabelecer uma sequência entre os eventos e as vivências dos personagens do século XVIII e os do final do século XX. Seguem-se os demais capítulos, todos eles com títulos representados à maneira de Voltaire: Como Candide, Cunégonde, Pangloss, etc., deixaram as margens afortunadas do Bósforo; ou Como Pangloss e Martin foram salvos pela literatura4, etc. Também o jargão pseudofilosófico, constantemente proferido por Pangloss em Candide ou l’Optimisme, é mantido no texto de Jamet e, por vezes, ainda acentuado; isto ocorre, por exemplo, quando o “sábio professor” é apresentado ao escritor Groumart como “ famoso filósofo alemão, autor de O ser e o neon, ensaio que opõe a permanência ontológica à superficialidade de um mundo extremamente midiatizado” (p.70)5. Também contribui para a produção do efeito cômico a inclusão, no romance, das “atrapalhadas” interpretações das fórmulas filosóficas dos pensadores do Otimismo bem como a manutenção de certo “estilo Candide e século XVIII”, quando o autor representa, em discurso direto, as falas das personagens, as quais, é claro, acabam causando uma certa dissonância em relação à atualidade do novo texto em que estão inseridas. Consciente dessa característica, Jamet a explicita, por exemplo, na exemplar resposta do agente de polícia à fala de Candide: “_ Ah, senhor, disse o policial admirado, perdoeme, mas eu ignorava que o senhor falava o francês antigo...” (p.73)6
Neste sentido, M. Hannoosh considera que a modernidade, longe de procurar recusar as obras do passado tende a delas apropriar-se e a adaptá-las em conformidade com as preocupações do presente; a estudiosa julga ainda que as formas modernas não teriam sido
4 Comment Candide, Cunégonde, Pangloss, etc., quittèrent les bords affortunés du Bosphore...; Comment Pangloss et Martin furent sauvés par la littérature. Le nouveau Candide. Paris: Flammarion, 1994. p. 19 et p. 57.
«Le fameux philosophe allemand, auteur de L’être et le néon, essai qui oppose la permanence ontologique de l’être et la superficialité d’un monde médiatisé à l’extrême». Le nouveau Candide. Paris: Flammarion, 1994. p. 70. A alusão ao tratado filosófico L’être et le néant, de Sartre, fica mais evidente na versão em francês, em decorrência da semelhança do som das palavras néant e néon e da absoluta diferença de seu sentido. O cômico também se situa na escolha da palavra néon associada às práticas de midiatização a que, em nossos dias, o homem está exposto. 5
«-Ah, monsieur, dit le policier étonné, pardonnez-moi, mais j’ignorais que vous parlassiez le français ancien...» 6
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possíveis sem aquelas que as precederam, e que a originalidade pode ter origem na transformação do passado. Assim, a paródia é por ela definida como transformação cômica de um texto através da distorção de seus traços característicos. Ela também a formula como imitação e distorção, ou transformação, de uma obra bastante conhecida com efeito cômico e certo tipo de intenções críticas ainda que sejam apenas autocríticas.7 Como vemos, consideradas essas idéias, a classificação do Nouveau Candide não é das mais óbvias: trata-se da retomada paródica de uma bastante conhecida e reconhecida paródia redigida no século XVIII, na qual se mantem e se atualiza o efeito cômico do primeiro texto. Com referência a este procedimento, talvez valha ainda a pena mencionar a prática dos exercícios de escrita “à maneira de” tal ou tal autor realizada por escritores e, durante algum tempo, também por estudiosos da literatura, na França – um pouco como, na arte musical, se procede com as variações compostas a partir de temas de dado compositor. Sob a perspectiva da recepção, é fundamental que o leitor reconheça a presença, no texto objeto de sua leitura, do texto parodiado e que ele se dê conta das transformações ocorridas. Caso isto não ocorra, a técnica acaba deixando de ter sentido.
Dominique Jamet retoma, portanto, Candide, com o objetivo de evidenciar, à maneira de Voltaire que – depois de mais de dois séculos - a humanidade pouco se transformou. Para justificar a partida para a França, ele sugere que, em decorrência do integrismo, da alta dos impostos, das mudanças dos hábitos de consumo ocorridas na sociedade turca (na qual, aos poucos, a cidra em calda, o doce de casca de laranja e o lokum foram substituídos pelo Big Mac e pelo pop-corn, assim como a limonada ou aguardente de uvas ou de ameixas pela Coca Cola e pela cerveja), das dificuldades impostas pelo mercado ao plantio, à confecção e à comercialização dos produtos, dos obstáculos enfrentados para liquidar os empréstimos contraídos, da profusão de tributos e contribuições - a vida na
«...l’imitattion et la distorsion, ou transformation, d’une oeuvre bien connue avec un effet comique et des intentions critiques d’un certain type, même si elles sont seulement autocritiques» in Parody and Decadence. Laforgue’s Moralités légendaires (Columbus: The Ohio Sate Press, 1989. p.13 apud SANGSUE, D. La parodie. Paris: Hachette, 1994. p. 57). 7
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Turquia acabou tonando-se impossível. Além disso, a instituição de uma taxa obrigatória a ser recolhida pelos não-muçulmanos que insistiam em continuar a sê-lo, bem como a imposição, às mulheres, do uso do véu pareceram, aos personagens, sinais óbvios – afinal, eles já tinham sofrido as práticas da Inquisição - do retorno ao obscurantismo e à intolerância. Portanto, Candide e seus amigos tomam a decisão, após demoradas confabulações, de vender a propriedade e de trocar os poucos bens que ainda lhes restavam das antigas viagens e dos proventos de seu trabalho, de mudar de país. Considerados seus conhecimentos sobre as mudanças ocorridas através do mundo no decorrer de mais de dois séculos, considerada sua “familiaridade com a língua francesa”, acabaram optando pela vida na França pós-moderna. Apesar da idade superior a duzentos anos, eles julgavam que a adaptação no país dos direitos do homem e do cidadão não seria difícil pois, em sua percepção, “os séculos haviam passado como dias e os anos tinham parecido horas”8. Seguindo a esteira do primeiro Candide, várias peripécias, encontros e desencontros, desencadeiam-se; já na chegada a Paris, o grupo se dispersa: Cacambo é preso no aeroporto de Roissy por porte de drogas assim como por não poder oferecer garantias sobre sua situação financeira, e ainda, na condição de não pertencente à Comunidade Europeia, por não poder apresentar endereço fixo na França. Alguns dias depois, ele é deportado. Quanto a Candide, este é encarcerado na Prisão da Santé por desacato à autoridade, pouco depois de ter desembarcado; após ter redigido uma carta solicitando a intervenção da Justiça, ele é absolvido e levado ao Hotel Matignon, residência do Primeiro Ministro, para quem passa a trabalhar. Cunégonde e a velha, já no aeroporto abandonadas à própria sorte, são deixadas por um taxista cambojano em um hotel, enquanto Pangloss e Martin, roubados por outro taxista se vêem abandonados, largados na rua, ao relento e ao frio; conseguem refazer sua vida porque decidem adular um conhecido escritor, para o qual trabalham, sob pseudônimo, como críticos, chegando até mesmo a participar de grandes emissões da TV francesa dedicadas
«Les siècles passaient comme des journées. Les années semblaient des heures». Le nouveau Candide. Paris: Flammarion, 1994. p. 19. 8
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à literatura, novidades e variedades, como Le Masque et la Plume, Sacrée Soirée, Le Cercle de minuit, Coucou, c’est nous. Por esta razão ambos acabam sendo “salvos pela literatura”, como nos informa o título do capítulo VI do romance.
Através do relato das peripécias iniciais vivenciadas por Candide e por seus amigos, o texto de Jamet retoma uma prática comum aos escritores de relatos de viagem: a de interpretar, através do olhar do outro, a própria cultura. Assim, o taxista desonesto revela-se também xenófobo e muito menos comprometido com o bem-estar dos cidadãos do que ele julga estarem os imigrantes do terceiro mundo que chegam a seu país; o taxista-príncipecambojano, sobrevivente do Kmehr Vermelho acolhido em Paris, revela-se filósofo; os oficiais da alfândega comportam-se de modo autoritário, discriminatório e desonesto. No país dos direitos dos homens e do cidadão, os direitos mais elementares são ignorados: não se compreendem as diferenças.
Também como no Candide de Voltaire, as personagens se perdem, viajam, desaparecem, ressurgem quando menos o esperamos, vivendo as mais variadas e insólitas aventuras. Naturalmente, a missão atribuída pelo Primeiro Ministro a Candide – observar e estudar o que via na França e pelo mundo e redigir suas impressões em um relatório – garante ao novo texto a permanência do tema da viagem e favorece a possibilidade do encontro e do desencontro entre as personagens. Assim Candide percorre não apenas a França do tempo do presidente Chirac, mas visita a Itália de Berlusconi, a Espanha, aproxima-se de Clinton, em Washington, encontra-se em Moscou com Boris Ielstin e com Soljenitsin, “a alma do mundo”... Esses encontros, é claro, servem de pretexto para o desenvolvimento de pensamentos acerca de questões relativas à política bem como para apresentar, sob uma perspectiva bastante irônica, as várias personalidades. Assim, por exemplo, Clinton, “o dono do mundo”, aparece fazendo jogging ao redor da casa Branca, usando short preto e camiseta branca, “precedido, escoltado, cercado por seus guarda-costas, por seus ministros mais bem treinados (...) por membros de seu gabinete, por seu médico, por seu massagista, pelo encarregado de sua dieta, por sua manicure cambojana, por 99
seu pedicuro chinês, por seu analista, por pessoas admitidas para audiência, por diplomatas a serviço em Washington, por jornalistas, por Arnold Schwarzenegger, por sua mulher Hillary, por sua filha Chelsea e por seu gato Chaussettes,”(p. 197)9 - falando ao telefone celular e dando opiniões absurdas sobre os eventos mundiais. Ielstin está interessado apenas em dinheiro, pouco se importando com os negócios escusos realizados na Russia pós-comunismo. Mas Candide tem também a experiência da guerra: em Sarajevo, na Bósnia onde, na condição de observador, ele reencontra Martin ferido e o faz levar a Paris; em Ruanda onde reaparece Cacambo, lutando ao lado dos tutsis. Pagloss contrai Aids . A bela Cunégonde, após várias cirurgias plásticas, transforma-se em Cunnie Thunderbolt, famosa vedete do cinema pornográfico e animadora do talk-show erótico Coquins coquine.
Terminada a missão de Candide, os amigos decidem que o ideal seria viver na Toscana ou no Périgord. Quanto ao mundo e ao progresso, Candide os compreendeu muito rapidamente : “Por toda parte a política, a raça, a religião jogavam os homens uns contra os outros (...). Por toda parte, como em todos os tempos, homens sofriam, erguiam ao céu mãos implorantes, morriam por causa de outros homens. A diferença é que morriam diante de câmeras. ...”10 e mais depressa.
Le nouveau Candide retoma o Candide de Voltaire destituindo-o, entretanto, de seu sentido filosófico. O romance focaliza tendências, personalidades e fatos ocorridos no final do século XX, pautandose na idéia de que, essencialmente, o mundo não mudou - razão pela qual se tornou possível a retomada e a continuação do texto do século XVIII.
«…précédé, entouré, escorté de ses gardes du corps, de ses ministres les mieux entraînés (...) des membres de son cabinet, de son médecin, de son masseur, de son diététicien, de sa manucure cambodgienne, de son pédicure chinois, de son analyste, de personnes admises à son audience, de diplomates en poste à Washington, de journalistes, d›Arnold Schwarzenegger, de sa femme Hillary,de sa fille Chelsea e de son chat chaussettes». 9
«Partout la politique, la race, la religion, jetaient les hommes les uns contre les autres (...) Partout, comme en tout temps, des hommes souffraient, levaient au ciel des mais implorantes, mouraient du fait d’autres hommes. Une différence était qu’ils mouraient devant des caméras...» 10
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Finalmente, por remeter a acontecimentos ocorridos muito proximamente ao momento da escrita, o texto de Jamet pode ser lido não apenas como uma paródia do texto de Voltaire, mas também como uma obra crítica, como uma sátira de importantes acontecimentos de nossa época. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS JAMET, D. Le nouveau Candide. Paris: Flammrion, 1994. VOLTAIRE Candide. Paris: Larousse, 1939
GENETTE, G. Palimpsestes. La littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982. SANGSUE, D. La parodie. Paris: Hachette, 1994.
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Passado Contínuo1, mobilidade e dialogia Berta Waldman2 Só a palavra nos põe em contato com as coisas mudas. A natureza e os animais são desde logo prisioneiros de uma língua, falam e respondem a signos, mesmo quando se calam; só o homem consegue interromper, na palavra, a língua infinita da natureza e colocar-se por um instante diante das coisas mudas. A rosa informulada, a ideia da rosa, só existe para o homem.3
Passado Contínuo foi publicado em 1977 e escrito originalmente em hebraico por Yaakov Shabtai (1934-1981) com o título Zikhron Devarim (em português: uma forma de contrato, memorando, mas também poderia ser traduzido literalmente como “Lembrança de coisas”). A ação do romance gira em torno de três amigos, Goldman, César e Israel, na cidade de Tel Aviv4, que passa por um processo 1 Yaakov Shabtai, Passado Contínuo (trad. Nancy Rozenchan). Rio de Janeiro: Imago, 1996. Em hebraico, há duas edições do livro Zikhron Devarim Zikhron Devarim. Tel Aviv: Siman Kriah, 1977. Tel Aviv: Kriah Siman, 1977. Reprinted 1994. Reproduzido 1994. Há ainda a [ ] Film adaptationadaptação do romance para o cinema: In 1995 Director adapted the book into a film (released as Devarim in , L’Inventario in and Things in English-speaking markets), starring , Amos Shub, Lea König, and Gitaiem 1995, o diretor Amós Gitai adaptou o livro para um filme Zihron Devarim (lançado como Devarim na França , L’Inventario em Itália e As coisas em mercados de língua inglesa), estrelado por Assi Dayan , Amos Shub, Lea König e Gitai ele mesmo. 2
Universidade de São Paulo - USP.
AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução, prefácio e notas de João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p.112. 3
4 Em julho de 2003, Tel Aviv foi declarada pela UNESCO “patrimônio da humanidade”, graças aos esforços governamentais em restaurar os prédios inspirados no estilo da Bauhaus, escola alemã de Arquitetura, de onde se destaca o nome de Walter Gropius. Tel Aviv é considerada a primeira cidade hebraica, foi fundada em 1905 e conta hoje com 350 mil habitantes.
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de intensa transformação, constituindo-se como o cenário móvel em que se desdobram o dia a dia dos personagens, seu trabalho profissional, interesses amorosos e familiares, numa intrincada crônica da vida israelense em meados dos anos 1970. A história começa com a morte do pai de Goldman em 01 de abril e termina um pouco depois do suicídio de Goldman em 01 de janeiro, recobrindo o período simbólico de nove meses. Escrito num único parágrafo, em que frases intermináveis expõem o entrelaçamento das vidas de um grupo de amigos e parentes, a narrativa avança por meio de associações entre personagens, acompanha cada um em várias páginas, passando depois a seguir outro com quem o primeiro se relaciona, até encontrar um terceiro e passar a apresentá-lo; e após várias voltas o leitor se vê novamente frente ao primeiro onde tudo recomeça e prossegue ao mesmo tempo. Assim, o tempo é tecido, flui e é presentificado no curto período de nove meses, através de um fluxo complexo de associações. Os três protagonistas, cada um à sua maneira, sustentam uma carga intransponível, como uma doença, diante da qual se sentem perdidos, porque sua existência sem sentido e o mundo absurdo em que vivem sem terem feito uma escolha, às vezes tem um peso de traição. Segundo a crítica israelense, Shabtai é provavelmente o único romancista que alcançou um entendimento profundo do significado da metanarrativa sionista protagonizada por seus heróis positivos que são paulatinamente substituídos por antiheróis. Assim, o romance poderia ser visto como uma elegia que acompanha três gerações. A primeira, remanescente da Ilustração judaica na Europa, a geração dos pais dos protagonistas compõe-se por trabalhadores braçais que construíram o país e que, apesar de seus êxitos econômicos, tornam-se decadentes devido a um desvio ideológico. A marca da decadência, correspondente ao presente do romance, é vivenciada pelos três protagonistas, projetando-se nos filhos, a terceira geração. O sionismo e o socialismo sofrem um desgaste e os efeitos deletérios desse desvio promovem um forte deslocamento da geração mais jovem, assim jovens e velhos estão condenados desde a primeira frase do romance: 104
O pai de Goldman morreu no dia primeiro de abril e Goldman, por sua vez, suicidou-se em primeiro de janeiro, justamente numa hora que lhe pareceu, pela força do rompimento e da convergência que, finalmente, uma nova era se abria para ele e havia encontrado para si um início de reabilitação através do Bullworker e um modo de vida disciplinado, principalmente através da astronomia e da tradução do Somnium5. Os três amigos, ao perderem de vista a sustentação ideológica, seguem um percurso pendular que vai do sentimento de culpa à depressão; vivem um cotidiano ralo, aventuras sexuais inócuas, inquietações periféricas, e suas trajetórias são sempre rebaixadas quando comparadas com as de seus antepassados. Estes têm convicções e sempre podem se manter firmes em sua posição de adesão ao socialismo, de construção da nação, de repúdio aos judeus religiosos, etc. Os mais jovens, em contrapartida, vivem no vazio do pessimismo e na aflição das incertezas. Veja-se, a propósito, como o narrador apresenta Goldman pai:
“...pois ele era sionista e socialista e defendia a simplicidade, a diligência, a moralidade e a cultura em seu sentido mais elementar, e odiava os revisionistas, pessoas que enriqueciam ou que esbanjavam dinheiro em supérfluos e pessoas que falavam mal de Israel. Tudo isso como parte do sistema total de princípios claros e fixos que abrangiam todos os âmbitos de vida e os atos não dados a transigências e que, apesar das mudanças e dificuldades, jamais duvidou deles e não via lugar para se desviar dos mesmos nem na menor parcela. Sabia o que era certo e o que era bom, não apenas para si próprio, mas também para o próximo, e não poderia suportar um engano ou um pecado/.../ no final das contas todos transgrediam a ordem correta, todos, exceto ele, pois ele representava a ordem.” (pp. 18/19)
Ou, ainda, quando, entre os irmãos Zvi e Erwin, começam a aparecer as fraturas do arcabouço da ideologia sionista: 5
Cf. p.5.
“...Zvi era resoluto e intransigente em suas concepções e 105
atos e, quanto a Erwin, este estava ocupado com os seus assuntos e também era inteligente e irônico para forçar as coisas e pelo mesmo motivo as relações entre ambos continuaram a ser boas também após o estabelecimento do Estado, cujo caráter foi se tornando cada vez menos ao gosto de Zvi. Ele assumiu posições de oposição que foram ficando mais extremas, principalmente após a Guerra dos Seis Dias. Costumava ficar calado mas, quando dava expressão a suas opiniões, fazia-o diretamente e com rispidez e furor e apesar de não ter concepções de esquerda e ser um homem de centro, dizia que o governo permitia um enriquecimento fácil de toda a espécie de parasitas e apropriação de bens públicos e incentivava a ampliação da brecha social; também dizia que a política que ele conduzia ocorria por arrogância e cegueira absoluta que nos haveriam de conduzir a uma catástrofe e que o país estava afundando num lodaçal de nacionalismo idiota e de grosseria e estava imerso num processo de fascismo e crescimento da violência sob o patrocínio religioso ou de outras teorias irracionais.” (pp.129-130)
Fazendo par com as transformações político-ideológicas e com a sensação de deslocamento que invade as personagens, há as mudanças do espaço físico da cidade de Tel Aviv em processo de reconstrução, infiltrado na própria perspectiva narrativa. Em poucos anos, a cidade vai rápida e inexoravelmente se transformando, e Goldman-filho, vinculado ao mapa das antigas casas e ruas que juntamente com as dunas e campos virgens formavam a paisagem do local onde tinha nascido e crescido, sabia que esse processo de transformação e destruição era tão inevitável quanto a mudança da população da cidade, que, no decorrer de alguns anos, havia aumentado muito devido à imigração crescente de judeus de diferentes partes do mundo, invadindo o seu espaço e convertendo-o num estranho em sua própria casa. Mas essa percepção é impotente para amenizar o ódio que ele sente por essa nova população, ou a raiva de assistir à praga destruidora de seu mundo da infância. Assim, as mudança do espaço urbano, vão concretizando as mudanças subjetivas e políticas. Já o parágrafo prolongado com que se escreve o romance replica a intimidade 106
inextricável de uma sociedade cujos membros estão unidos por laços fortes que passam pela micro unidade familiar, mas a ultrapassam. Esse algo maior é o vínculo com o país em transformação não só em sua composição urbanística, mas também no plano político6. Assim, dificilmente cada personagem pode visitar seus pais, caminhar pela praia, passear de carro ou ir a um funeral sem lembrar onde e quando vivia num determinado lugar, quando ou o que tinha feito, onde e como conviveu com quem. A rememoração incontrolável evocada pelo espaço físico e também pelos objetos e monumentos que cercam as personagens as insere num terreno movediço que sinaliza para um mundo passado que elas nunca poderiam alcançar. A geração anterior considerou necessário extirpar o exílio da alma judaica e encarar o sionismo como uma rebelião contra dois mil anos de dispersão e humilhação. A geração seguinte retoma o exílio, porque vai tentar a vida fora de Israel, invertendo o rumo das migrações. Este tema da mudança torna-se visível, por exemplo, nas ocupações profissionais dos três protagonistas, que não se dedicam mais ao plantio, à construção de uma determinada sociedade, de um país: Israel é pianista, Goldman é tradutor e César, fotógrafo, atividades que exigem acuidade, mas não alcançam criar objetos concretos, novos, de benefício coletivo. A força física empreendida pelos construtores da nação é buscada
6 Concomitante com a data de publicação do livro há uma transformação política em Israel, que precisa ser conhecida porque está implícita no relato do romance. O Likud (que significa “unidade” em hebraico) é o principal partido da direita israelense. Nasceu em 1973 para fazer face à hegemonia do Partido Trabalhista, tendo sido criado a partir da associação do Partido Liberal e do Herut, além de outros partidos menores. O Herut, que era de fato o partido dominante na coligação, identificava-se como anti-socialista e liberal. O Likud chegou pela primeira vez ao poder em 1977, sob a liderança de Menachem Begin (líder do Herut e partidário de um Grande Israel). A partir daí, opôs-se ao Partido Trabalhista num sistema essencialmente bipartidário, dependendo, no entanto, de coligações com pequenos partidos, sobretudo ultra-conservadores religiosos e nacionalistas. Enquanto chefe de Governo (1977-1983), Begin assinou um tratado de paz com o Egito e, influenciado pelo seu ministro da Defesa, Ariel Sharon, invadiu o Líbano. Em 1983, Yitzhak Shamir sucedeu-o na liderança do Likud e na chefia do Executivo, integrando um Governo de coligação com o Partido Trabalhista de 1984 a 1990. Como o Likud se opunha ao processo de paz com os palestinos - defendendo a construção de mais colônias nos territórios ocupados e a manutenção do controle sobre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza - e o Partido Trabalhista defendia precisamente o contrário, este retirou-se da coligação.
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agora artificialmente por Goldman no uso do Bullworker, aparelho de eletroestimulação para fortalecimento dos músculos.
“Quando Tehila telefonar, diga a ela que fui para Jerusalém e que volto amanhã”. Israel disse “Está bem” e olhou pela janela empoeirada do ônibus para as lojas e os transeuntes e o prédio do cinema que, em sua época, quando era garoto e o lugar era um campo arenoso, tinha visto naquele lugar o pai de Goldman, de casquete na cabeça e roupa suada de operário, empurrando um carrinho de mão e junto com outros operários colocava as fundações do prédio.” (p.13)
O fio narrativo mistura passado e presente, pensamentos e eventos, para criar um fluxo de consciência que se move da mente de uma personagem para outra, muitas vezes através de objetos, encontros e experiências. Este fluxo produz também ironia. Por exemplo, quando o narrador apresenta a morte de Ariê, um dos parentes de César, único filho de uma família enriquecida cujo comando ele deveria assumir, mas não o faz. Os pequenos detalhes criados para contar o trágico acontecimento resvalam para a construção do tom irônico:
“[Ariê] deu um tiro de revólver na boca e foi encontrado após dois dias no carro, numa estrada de terra no meio dos laranjais, não longe do mar, vestido num terno de couro e uma camisa florida com uma gravata amarela, Ervin e César , que havia pego da mãe a máscara de madeira da divindade africana e a colocado em uma das prateleiras da estante, o identificaram no necrotério, porque Yafa e Tikva e também Zina, que observava a máscara de madeira distraída e dissera “Muito bonita”, não podiam enfrentar isto e ambos, junto com Besh, deram a notícia a Yafa e, ainda antes que dissessem a palavra nitidamente, ela desmaiou na sala de visitas, assim como desmaiou quando soube que o engenheiro húngaro de Tikva não era engenheiro, e derrubou a xícara de café que espirrou em volta. César se apressou em jogar água nela, que caiu também em Besh e em Zina, que tentava apoiá-la com o rosto pálido e assustado e ao mesmo tempo encheu-se de 108
raiva contra ela e contra todos por causa das manchas de café que se espalharam pela parede e também pelo tapete. Quando Yafa se recuperou um pouco, Zina apressouse em pegar um pano úmido e tentou apagá-las sem sucesso. Aquelas manchas continuaram a aborrecê-la até que pintaram toda a sala e isto já foi depois do enterro de Ariê; a sua morte, e tudo o que a ela estava vinculado, aquebrantou o espírito de Yafa e, de ano para ano, a deprimiu mais, sem cessar; com uma dor petrificada, ela repetia “Se ao menos ele tivesse sido morto no exército, e Zina, que tentava consolá-la tanto quanto podia, continuou a olhar para a máscara de madeira enquanto dizia repetidamente “Muito bonita”. (p.127)
O fato central - o suicídio de Ariê – torna-se menos importante do que a focalização dos valores da nova sociedade israelense revelada através de incidentes menores que circundam o acontecimento. Por exemplo, as reações idênticas de Yafa (o desmaio) em relação às notícias ruins de diferentes dimensões e importância que se abateram sobre seus filhos Ariê e Tikva; a preocupação maior de Zina com as manchas de café do que com o suicídio de Ariê. A consideração da mãe (Yafa) de que era preferível que o filho tivesse morrido no exército a ter se tornado um suicida, quando era de se esperar que ela dissesse que era preferível têlo vivo a vê-lo morto. A máscara africana de madeira várias vezes mencionada funciona como um ponto que aglutina a atenção de diferentes personagens desviando o foco do que interessa: o jovem suicida. Em síntese, pessoas, gestos, ditos, estão fora de lugar, o que determina o tom irônico. Este episódio é um exemplo, entre tantos, de deslocamentos que marcam o impedimento de olhar direto para um ponto, obrigando as personagens a apoiar-se no subterfúgio de desviar o olhar para outro lugar, evitando encarar o que ocorre. A ambiguidade essencial do discurso irônico está em aceitar simultaneamente seus sentidos cruzados que confundem o leitor, a quem cabe fazer a ponte para alcançar a significação irônica pretendida. A frustração do suicida Ariê, incapaz de se colocar no lugar do pai na condução da empresa familiar, representa as tentativas 109
fracassadas das gerações mais jovens de substituir os ideais do passado. Para a geração presente sobra a pura negatividade. A única força positiva que existe no romance é o uso habilidoso da linguagem. A morte dos ideais sionistas engendra curiosamente o nascimento de uma linguagem peculiar, de grande vigor simbólico, para descrever, paradoxalmente, uma existência desintegradora. Em Passado Contínuo, um funeral no início e um suicídio seguido de um nascimento no final, não sugere o triunfo da vida sobre a morte, e o livro termina com uma imagem do mundo como uma caricatura grotesca, habitado por pessoas mortas, ainda que vivas:
... mas Ella ignorou o bebê, cuja cabeça estava coberta com uma plumagem de cabelos pretos e os pedidos suaves da enfermeira que o segurava sem saber o que fazer; novamente lhe pediu, desta vez impaciente, para que o pegasse, o amamentasse como todas as outras mães, mas Ella continuou a ignorá-lo, como continuou ignorando Israel, que permaneceu obstinadamente parado no lugar e não tirava os olhos dela. Viu como ela se desmanchava e era absorvida lentamente nos lençóis brancos, e por trás ouviam-se novamente as palmas da enfermeira responsável, e por fim a enfermeira se dirigiu a ele e lhe pediu que saisse pois todos os outros visitantes já tinham saído e Israel recuou dois ou três passos, deu meia volta e saiu. (p.359)
1. Um dos mais enigmáticos aspectos do romance Passado Contínuo é o uso que ele faz de Somnium, de Johannes Kepler7. O leitor é informado sobre essa obra logo no início do romance. Depois a referência é silenciada, até que se torna o centro da narrativa, quando o final do romance se anuncia. 2. O texto de Shabtai tanto se refere à vida de Kepler como ao sumário de Somnium, trazidos à tona enquanto Goldman trabalha em sua tradução. Assim Somnium emoldura o romance e se articula fortemente com a construção do
7 Cf. Diamond, James S. “The Intertextual Function of Kepler’s Somnium. In Yaakov Shabtai’s Past Continuous. In Prooftexts, 14:3 (1994:Sept.) p.249.
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tradutor do livro enquanto personagem. Mas por que a escolha de Somnium? Como se justifica a presença tão marcante desse livro no romance de Shabtai? Talvez o autor considerasse que fosse sabido de todos que Somnium é um texto ficcional que conta uma viagem sonhada à lua, publicado postumamente em 1634. Ou talvez Somnium fosse simplesmente um dos múltiplos interesses de Goldman. Curiosamente, a abertura do romance cria um paralelo entre o treino físico do personagem com o Bullworker e o desejo de traduzir Somnium. As duas atividades expressam seu empenho em preencher o vazio da morte de seu pai, apontando para uma dupla referência: física e intelectual. É curioso notar, ainda, que a indicação do Bullworker constitui uma quebra do fluxo da memória e o mesmo se diga em relação a Somnium; ambos exercem uma função disjuntiva no romance, o que permite pensar que nele se inserem como uma espécie de citação externa, e a ficção de Kepler talvez exerça mesmo uma função intertextual. Sabe-se que a astronomia fazia parte dos interesses de Shabtai, que costumava, em suas conversas, relacionar as peregrinações da vida espiritual com as leis da natureza (em particular da astrofísica). Sabe-se também que Shabtai não poderia ter lido Somnium no original, porque desconhecia o latim. Alguns críticos consideram provável que sua fonte tenha sido a história da cosmologia de Arthur Koestler, The Sleepwalker8, e que as passagens citadas de Somnium tenham sido feitas a partir desse livro. Temos aqui a mobilidade de uma relação intertextual, talvez uma dialogia.
O livro de Kepler é conhecido principalmente por especialistas. Trata-se do primeiro relato de uma viagem sonhada à lua, o que o torna o precursor do gênero science fiction. Kepler concebeu seu livro como a descrição da vida na terra, vista a partir da lua, no
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Arthur Koestler, The Sleepwalker. New York, Mac Millan, 1959. 111
ano de 1593, durante seus estudos universitários em Tübingen. Somnium foi escrito por razões que se tornarão claras em 1609, 1610. Em 1620, Kepler resolveu publicar esse livro e, durante sua última década de vida, escreveu não menos que 223 notas que justapos ao seu breve texto. Paralelamente escreveu os livros sobre astronomia como Mysterium Cosmographicum (1596) e Harmonice Mundi (1618), entre outros. Somnium, ao contrário dos demais textos, é essencialmente um produto da imaginação. Como um romancista moderno, Kepler utiliza seu conhecimento científico na composição de uma narrativa ficcional. Um narrador em primeira pessoa conta como adormeceu enquanto olhava o céu, as estrelas e a lua. Em seu sono parecia-lhe que estava lendo um livro adquirido em Frankfurt. Esse estranho livro contava as aventuras e viagens de um menino chamado Duracotus que relata os detalhes de sua última viagem, uma viagem imaginária para a lua realizada com sua mãe. É ela que entra em contato com Daemon que, no sonho, os leva à lua. A paisagem lunar é descrita. Abruptamente o sonho se interrompe e o menino acorda em sua cama. Assim, Somnium é um livro que conta um sonho. Mas também o sonho que reconta um livro, numa simétrica inversão de relações: do livro ao sonho, do sonho ao livro. O próprio Kepler nos informa em uma nota de Somnium que a tese do livro é um argumento em favor do movimento da terra, ou antes, a refutação do argumento contra esse movimento. Em outras palavras, Kepler escreve o livro para apoiar a teoria de Copérnico segundo a qual a terra gira ao redor do sol e não vice-versa, a um mundo que não queria ouvir essa verdade. O estímulo que parece ter levado Kepler a escrever esse livro foi o surgimento, em 1610, de Siderius Nuncius (A mensagem sideral) de Galileu, em que o italiano descreve o que viu através do recém inventado telescópio- as montanhas da lua. A paisagem lunar passa a ser empiricamente observável. A lua girando ao redor da terra e a figura da terra girando ao redor do sol são elaborações analógicas que permitem-lhe articular a tese heliocêntrica que o trabalho quer promover. Vista da lua, a teoria da constante rotação da terra torna-se 112
mais facilmente discernível a Kepler, fato que a moderna fotografia espacial tornou um lugar comum. A lua reflete de modo exagerado não apenas o que Kepler quer dizer ou mostrar sobre a terra em Somnium- isto é, que ela gira em torno do sol, mas também o que Shabtai apresenta em Passado Contínuo como a verdade essencial inerente à vida humana nesse planeta: que o tempo aqui passa num fluxo interminável, e a realidade daquele que vive na terra é absurda, imprevisível. Assim, Somnium funciona no romance como uma espécie de hipertexto, unidade interconectada que forma uma rede de estrutura não linear com o romance de Shabtai. O relato feito por uma voz em off, que permanece fora da narrativa, por outro lado, situa essa voz autoral apenas como uma função, uma construção retórica e não um elemento que detém uma autoridade privilegiada. Já a memória em Passado Contínuo é mais do que uma construção retórica, é, de fato, uma autoridade privilegiada, que funciona como um registro, um documento da transição pela qual está passando o país e seus habitantes. Neste sentido, ela conjuga a onipotência à onisciência, tornando-se um verdadeiro substituto laico de Deus. A relação de Shabtai com Kepler pode ter também a ver com o fato de o segundo anunciar uma nova época e tentar mediar uma nova compreensão do mundo. Esse intento, em outras proporções, é similar ao de Shabtai que presentifica as mudanças pelas quais o Estado de Israel está passando, transformações no comportamento individual e social, mudanças de valores que ocorrem bem antes que a sociedade como um todo pudesse perceber, aceitar e assumir9. Além disso, é possível estabelecer uma homologia entre Duracotus e Goldman. Ambos embarcam em viagens visionárias, em áreas remotas de sua experiência imediata. Duracotus, na lua, e Goldman, na Europa do longínquo século XVII. Na verdade, é precisamente a vicariedade de ambas as viagens que revela a emblemática função de cada uma: Duracotus não foi realmente à lua, apenas sonhou com essa viagem, o que ele percebe quando ouve a voz do Daemon; 9 A crítica realizada no livro será central para os chamados historiadores pós sionistas que começam a publicar a partir de 1988, portanto 11 anos após o lançamento do livro de Yaakov Shabtai.
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Goldman, sem nunca ter saído de Tel Aviv, viaja para outras esferas através da tradução. Numa entrevista três dias antes de sua morte o próprio autor Yaacov Shabtai descreve sua ficção como “um vôo a lugares distantes.” A escrita de Shabtai sugere, ainda, que as grandes narrativas que organizaram e legitimaram a cultura humana em geral e a existência judaica em particular não são mais críveis. Como Kepler em seu tempo, ele sente que em fins do século XX o problema do conhecimento está necessitado de uma solução urgente. Em termos judaicos, o livro evidencia que a religião e o projeto sionista sofreram um colapso como fundamentos da vida judaica. Até mesmo a elementar estrutura familiar, que o romance situa como uma poderosa fonte de sentido e de autoridade, já está ultrapassada. O que sobrou? Para a sensibilidade pós-moderna, essa falta de fundamento é descrita como uma evidência dos novos tempos, mas no romance de Shabtai é motivo de grande abalo. Qualquer evolução só é possível depois de certa desintegração, de certo degelo das estruturas fixas, resultantes de um desenvolvimento isolado. Posto o objeto familiar sob uma nova luz, enxerga-se outra coisa. Arrancar um objeto ou um conceito do contexto associativo habitual constitui parte essencial do processo criador. Isso implica concomitantemente um ato de destruição e de criação, pois exige o aniquilamento de um hábito mental para que se verifique a nova fusão. Num gesto de coerência, Shabtai busca uma nova linguagem neste romance que se propõe a apresentar um novo foco de visão. Escrito num único parágrafo, alude ao Ulysses de James Joyce, projeção panorâmica da nostalgia do escritor. Tal qual a narração épica da qual toma emprestado o nome, o escritor compõe um retrato de vastas proporções, de exílio e viagens, de uma busca insana, entremeada de desespero e de uma resignação final. Os acontecimentos narrados ocorrem num dia comum (16 de junho de 1904) em Dublin, envolvendo Stephen Dedalus (Telêmaco), Leopold Bloom (Ulysses) e sua esposa Molly (uma Penélope infiel). Há muitas outras personagens secundárias, mas a narração tem como centro Bloom, que perdera um filho para o qual 114
procura substituto, e Dédalo, que repudiou a família, a religião e, desligado dos homens, procura um pai. Com significativos jogos de palavras, com alusões constantes à Música, à Mitologia, à Filosofia, a obras pouco conhecidas, com suas personagens estranhas, com seu ambiente pagão e seu ritual católico, a obra Ulysses é, incontestavelmente, das mais complexas e desconcertantes jamais escritas. James Joyce ampliou o solilóquio shakespeareano, desenvolvendo um monólogo interior de extensão, amplitude e riqueza sem precedentes. Foi o primeiro a empregar o fluxo de consciência como comentário fluido, como um desencadeador de associações livres. O labirinto de Ulysses é complexo, porque inclui um amontoado de temas, de línguas, de estilos, de alusões, de relações espaço-temporais, enfim, labirinto da linguagem do homem que é identificado com o cosmos. A cidade de Dublin é o símbolo desse cosmos no centro do qual está o homem comum, o judeu Leopold Bloom. O livro explora diversas áreas da vida dublinense, estendendo-se sobre sua degradação e monotonia. Ainda assim, como a Tel Aviv de Shabtai, Ulysses também é um estudo afeiçoadamente detalhado sobre a cidade, e Joyce afirmava que se Dublin fosse destruída por alguma catástrofe, poderia ser reconstruída tijolo por tijolo, usando como modelo sua obra. É, no entanto, de Zurich que o autor escreve grande parte do livro, para onde foge da guerra de 14, do exílio que escolheu para escapar de uma Irlanda degradada por sua submissão à coroa inglesa e da hipocrisia da Igreja Católica. Por outro lado, “a escrita de Joyce não é sobre alguma coisa: é a coisa em si,” escreve Beckett em 192910. Umberto Eco retoma esse dito de Beckett, em Obra Aberta, e distingue a obra pura de Mallarmé, que “tende a ser um aparato impessoal ou sugestivo, que remete para além de si mesmo”, daquela de Joyce, que “parece, ao contrário, um objeto concentrado sobre si mesmo, que se volta sobre si mesmo, mímese da vida, onde sinais e remissões são internos ao objeto estético.”11 Ulysses cria a ilusão de um organismo 10 11
Ver Riverrun Ensaios sobre James Joyce.org. A.Nestrowski, p.167.
Idem, ibidem, p.167.
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social vivo. Vemo-lo por apenas 24 horas, mas conhecemos-lhe o passado e o presente. Possuimos Dublin vista, ouvida, olfateada, sentida, ruminada, imaginada, lembrada.12 A Dublin do romance é uma cidade de vozes. Quem fará alguma idéia da aparência de Bloom ou de Molly? Todavia, suas vozes em eterno solilóquio se tornam nossas companheiras e nos perseguem por muito tempo. Amontoadas, sobrepostas, tornam-se um palimpsesto, agrupando sons, imagens e a escrita, em camadas. O fluxo de Passado Contínuo tem a ver com a escrita de Joyce. O autor trata os espaços como protagonistas e, assim, o entrecho desenvolve-se entre paredes, jardins, labirintos, objetos, todos participantes da ação. Enfim, o que Shabtai apresenta em seu romance como a verdade essencial a propósito da vida humana nesse planeta é que a realidade daquele que aqui vive, num fluxo interminável, é única, solitária e absurda. A história de Shabtai é a do desajuste e da solidão humana situados num determinado contexto13. Se, por um lado, ela procura ecos e vibrações imaginárias, por outro, permanece imersa em sua imanência social, em confronto com as leis da natureza. Se é na linguagem do romance que está construída uma fração da história de um período crítico do Estado de Israel, numa arquitetura complexa de relações dialógicas, de palavras interagindo com as palavras do outro14, é no modelo formal de Ulysses, de Joyce, que se matiza essa escolha. Quando entra o componente do desencanto em relação à ideologia da fundação do Estado, na literatura israelense, o autor utiliza um ícone do discurso que marcou a quebra do realismo no Ocidente, o romance Ulysses, de James Joyce. Por outro lado, a ambivalência da relação de James Joyce com a Irlanda, quase um eixo de sua obra, é associada por seus biógrafos à resposta que ele deu a alguém que lhe perguntou se um dia ele voltaria a viver em sua terra natal, ao que ele respondeu: “E algum dia eu saí de lá?” É essa mesma ambivalência que existe na obra de Shabtai, para 12
Cf. Riverrun Ensaios sobre James Joyce, op. cit.p. 312.
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Cf. Mikhail Bakhtin/Voloshinov, Marxismo e Filosofia da Linguagem
Ver, de Marcelo Gleiser, “ As quatro eras da astrobiologia”, In Jornal Folha de São Paulo, 18/dezembro/2011. Caderno Cotidiano, p.15.
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quem, apesar de tudo, Israel continua sendo a terra prometida, mas, ao mesmo tempo, um lugar para sempre perdido. Com a escolha de Ulysses como modelo, pode-se talvez afirmar que as distâncias entre Jerusalém e Grécia diminuem15, no amálgama que chamamos hoje de espaços transnacionais.
Cf. Erich Auerbach, Mimesis. 2ª.ed.revisada. São Paulo: Perspectiva, 1987, “A cicatriz de Ulisses”, pp 1-20.
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NO LUGAR DAS VITIMAS, OS PERPETRADORES Nancy Rozenchan1 Quem estuda e pesquisa as diversas gerações da literatura hebraica contemporânea sabe que além de suas qualidades estéticas esta literatura serve como uma espécie de livro coletivo de memórias dos judeus. E em particular a prosa narrativa porque, de todas as formas da literatura, a ficção é o modo de expressão mais atento e aberto à realidade histórica que se encarna nos universos ficcionais concretos. Ela se alimenta da experiência da vida do coletivo descrito, reflete-o e o critica; ela forma as suas imagens culturais básicas, mapeia o universo israelense através da construção de modelos críticos da realidade, revela as forças ocultas que orientam a vida pessoal e coletiva israelense, e concretiza as tensões e as reviravoltas dos enredos que envolvem os israelenses, em personagens e destinos individuais. Não se trata, naturalmente, de um reflexo mecânico e não seletivo da realidade como tal. Percebe-se que em cada período a literatura hebraica focou os holofotes nas cenas e objetos que representavam a experiência da vida judaica em suas formas mais intensas. Pode-se afirmar que não há quase nenhum aspecto ou dimensão da experiência judaica e israelense que não tenha encontrado alguma expressão na literatura hebraica, como tema central ou como pano de fundo, para expor enredos e tramas de relacionamentos interpessoais em seu âmbito restrito. E se existem áreas e temas que a literatura hebraica deixou de lado, esta atitude é também um fenômeno que se explica por si. Nesta ampla gama temática está reservado um lugar de destaque para obras vinculadas à Shoá, o evento trágico que eliminou um 1
Universidade de São Paulo - USP
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terço do povo judeu durante a II Guerra Mundial. No passar dos anos o assunto não desvaneceu ou se reduziu na ordem do dia da literatura hebraica; pelo contrário, a sua presença tornouse mais intensa, assim como a presença do assunto em si na experiência israelense em geral e nas diversas formas de expressão artística se torna cada vez mais significativa. Vai uma grande distância desde o momento inicial, na década de 40 do século passado, quando do surgimento deste campo na literatura hebraica, até os dias de hoje. Obras escritas durante a Segunda Guerra Mundial eram parte de biografias de seus autores e estão distantes da ficção escrita por pessoas de hoje, especialmente membros da segunda e da terceira gerações de escritores descendentes de sobreviventes, que nasceram depois da guerra, ou de autores que sequer descendem de pessoas que sofreram diretamente os horrores da shoá. Se tivessem vivido em outras épocas e circunstâncias, “boas almas” provavelmente deveriam realmente ser “boas almas” e “almas boas”. “Boas almas” é a tradução mais ou menos livre para o título do livro hebraico que vou abordar, Anashim tovim, de Nir Baram, de 20102. Como as circunstâncias em que os personagens centrais atuaram não lhe foram propícias, verifica-se que, denominá-las de “boas almas” como seu principal qualificativo, é fato eivado de ironia e que merece atenção. O tema central do livro não é a shoá propriamente dita, mas logo se percebe que o espectro que paira sobre tudo é o ato deliberado de extermínio de populações, como o que foi promovido pela matança da II Guerra. Baram selecionou para o seu livro o tema mais central do século XX como pano de fundo: os acontecimentos históricos que antecederam a II Guerra Mundial na Europa: na Alemanha, eventos da Noite dos Cristais - os pogroms de 9 de novembro de 1938, em reação ao atentado [7/11] e morte [9/11] do diplomata alemão Ernst Eduard Vom Rath, em Paris, pelo jovem judeu Herschel Grynszpan, originário da Polônia, até a ocupação da Polônia e da abertura da frente da guerra contra a União Soviética. O BARAM, Nir. Anashim tovim [tradução livre, “Boas almas”], Tel Aviv, Am Oved, 2010.
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romance começa no outono de 38, menos de um ano antes de ser assinado o acordo Ribbentrop - Molotov, quando Alemanha e Rússia estavam acionando com toda a potência os mecanismos de opressão interiores deles e se preparavam para um confronto entre si e surpreenderam o mundo assinando um acordo militar e depois a Alemanha invadiu a Rússia. O cinismo e a conta obscura que acompanharam este acordo se estendem como uma nuvem sobre todo o romance. O cinismo que se encontrava no ar penetrou nos ossos de pessoas que quiseram muito ser ‘boas pessoas’, ‘boas almas’, mas que se adaptaram à escuridão que havia ao seu redor. Para montar a sua posição em relação a esta sequência, Nir Baram utilizou dois personagens, Thomas, na Alemanha, e Alexandra, na Rússia, que atuam em quatro grandes cidades, Berlim e Leningrado, no início, Lublin e Brest depois. A escolha de actantes nesta obra recaiu sobre perpetradores e não sobre vítimas, ainda que também considerá-las como “vítimas” é uma opção que não pode ser, de todo, desprezada. Grosseiramente poderíamos dizer, no final, que se tratou de oportunistas que procuraram salvar a própria pele. Interessam-nos aqui os “comos” e “por quês” da reescritura da história promovidos por Baram em sua percepção de sociedade e moral e a manipulação das emoções do leitor a partir da perspectiva da qual abordou a história. O poder do romance é incrível na formação da mentalidade cultural de uma nação. Em seu ensaio “Challenges of the Struggle for Sovereignty: Changing the World versus Writing Stories”3, Merle Hodge explora quanto poder possuem os romances. Para a autora caribenha, “o papel adequado da ficção nas sociedades humanas inclui permitir que um povo ‘se leia’ para decifrar a sua própria realidade”, principalmente diante da história. História é uma questão de perspectiva, porém, mais do que isto, é uma questão dos indivíduos reconhecerem sua relevância pessoal dentro dela. Um romance entretece passado e presente assim como o ficcional e o histórico, e de certa forma realiza uma reescrita da história; combina 3 HODGE, Merle. “Challenges of the Struggle for Sovereignty: Changing the World Versus Writing Stories,” in Caribbean Women Writers: Essays from the First International Conference. Wellesley, MA: Calaloux Publications, 1990.
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verdade com ficção a fim de obter desejados efeitos específicos. O propósito é recuperar a história e a cultura de alguém, redefinir a própria história e a história de sua cultura, buscar uma melhor compreensão da história destacando aí a dinâmica das relações de poder, dominação, opressão, além de outros embates vividos pelas personagens da narrativa que dão vida às interconexões entre a obra e o contexto histórico-social que lhe deram origem. Baram não se fixou nos elementos comuns ao romance histórico básico; sua obra pode melhor ser avaliada sob uma definição de metaficção historiográfica, conforme estabelecida por Linda Hutcheon4 que se refere às obras de ficção pós-modernas que partem de um fato histórico para a sua ficcionalização e re-interpretação. O conceito de real e o modo como contar histórias, isto é, o próprio fazer literário, são re-pensados em textos que se baseiam na história, com o objetivo de revisitá-la de maneira crítica. Isto é a “metaficção historiográfica”. Toda metaficção historiográfica tem por característica ser auto-reflexiva e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, ela se apropria de acontecimentos e personagens históricos. Há que considerar, no entanto, que a autoreflexividade na metaficção historiográfica, segundo Linda Hutcheon, dáse de maneiras diversas. Sendo o gênero estritamente ligado a uma estética pós-moderna, que Hutcheon alega distanciar-se de todas as forças que levam à construção de um paradigma, seria complexo tentar estabelecer um padrão para a manifestação dessa autoreflexividade. A literatura, hebraica ou em outras línguas, e culturas [judaicas e não-judaicas] aparentemente já exploraram todas as temáticas e pontos de vista possíveis em relação à shoá. Mas só aparentemente, pois é óbvio que as perguntas, respostas e reações a assunto tão complexo que engloba guerras, genocídios, regimes totalitários e o caráter dos envolvidos jamais darão conta de explicar, entender ou justificá-los. A inclusão na obra de Baram dos horrores do regime soviético, ao lado dos eventos da Alemanha, proporciona um paralelismo entre as duas catástrofes e uma dimensão muito HUTCHEON, L.. Poética do Pós-Modernismo: História, Teoria, Ficção. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991. 4
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maior àquilo que o autor definiu como central no livro e serve para decifrar a vida sob o totalitarismo. À medida que se tornam consagrados, os modelos literários passam a ser substituídos por outros e somos expostos a um dos sinais mais notórios e expressivos de mudanças profundas e intrigantes no modo de o homem conceber a sua existência e a sua relação com os demais. Quando o coletivo passa a ser substituído pelo individual e o ideal pelo mais real e palpável, o homem demonstra uma atitude de questionamento de valores que o leva a mudanças na própria estrutura na qual estes se desenvolveram, ocasionando, na maioria das vezes, uma alteração ou inversão de papéis ou funções do homem e de suas entidades. A escolha de Baram por pequenos perpetradores [considero que nunca há pequenos perpetradores e também milhares ou milhões de pequenos perpetradores são extremamente perigosos], mais do que a tentativa de entendê-los, expõe o papel que minúsculas criaturas, como que ao sabor de grandes vagas, preencheram nas grandes engrenagens destruidoras e permitiram que elas funcionassem. Uma série de leituras sobre o papel criativo e transformador proporcionado pelo conceito posmoderno da paródia, conforme definido por Linda Hutcheon5 e comentado por diversos autores, conduziu parte desta leitura da obra de Baram. A paródia não se caracterizaria apenas pelo seu potencial de subverter e de ridicularizar. Na modernidade, a paródia tornou-se a própria via predominante da criação artística. A inversão irônica é o seu modus operandi, mas a sua essência está na “autoreflexividade”, na busca do distanciamento crítico e do diálogo independente com a obra de arte, seja na literatura ou em qualquer outra forma de expressão artística. Hutcheon e outros abrangem diversas formas de intertextualidade sob o título de paródia. Negam suas funções cômicas e implicitamente ampliam as suas funções críticas e ridicularizantes ao atribuir-lhe poderes políticos novos e frequentemente não-realistas. Uma vez eleito o texto fundador da paródia, é importante 5
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Lisboa: Edições 70, 1989. 123
precisar a natureza da relação entre ele e o resultado da construção paródica. Linda Hutcheon enfatiza a duplo potencial da paródia para a subversão e para a homenagem. Deve haver uma inversão irônica dos valores do texto fundador, mas sem uma disposição necessariamente iconoclasta. O contraste só é obtido graças à força e à riqueza da linguagem e das figuras do texto original, fortemente entranhadas no imaginário e na cultura dos leitores. Hutcheon (1989, p. 48) aponta para essa possibilidade com as seguintes palavras: “O prazer da paródia não provém do humor em particular, mas do grau de empenho do leitor no ‘vai-vém’ intertextual”. Em outras palavras, poderíamos afirmar que a paródia só alcança o seu objetivo na medida em que o leitor é capaz de identificar a inversão irônica no diálogo intertextual. Não se pode afirmar que o livro de Baram se refere ou aponta indícios a algum texto fundador específico. Considero que a paródia se sustenta no próprio pano de fundo em que são percebidos [mas não necessariamente nomeados] todos os grandes fatos históricos pertinentes ao período, enriquecidos com detalhes fruto de uma intensa pesquisa. Além disto, a ilustração da capa e um parágrafo do início do texto contrapõem-se aos dois personagens que, afinal, não são “boas almas” e nem têm gabarito para subsistir ao menos emocionalmente, apesar de se considerarem realizadores e promotores de eventos com os quais não compactuavam como princípio. Começando pela capa, por si, impressionante.
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Trata-se do quadro Eclipse do sol, de 1926, do pintor e caricaturista dadaísta alemão/norte-americano George Grosz6 [Silésia, 1893 Alemanha, 1959], que, com a ascensão do nazismo, refugiou-se nos Estados Unidos. Mais de duzentas de suas obras, consideradas “arte degenerada”, foram destruídas pelo governo alemão. O quadro se encontra no Heckscher Museum of Art, em Huntington, perto de Nova York. No quadro Eclipse do Sol há dois homens, que são as figuras principais, com muitas insígnias e medalhas, - um deles, um militar, tem uma coroa de louros na cabeça, simbolizando uma
6 GROSZ, George. Eclipse of the Sun [Eclipse do sol]. Heckscher Museum of Art, Huntington. 1926. Disponível em http://www.heckscher.org/pages.php?which_ page=collection_george_grosz. Acesso em 07/05/2011.
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posição elevada e louvável na sociedade; elas também parecem fisicamente maiores do que os demais personagens. Além destas, neste quadro há quatro personagens que parecem relativamente menores e não têm cabeça, usam ternos comuns da época, têm aparência muito sóbria, e anotam o que os dois personagens principais lhes ditam; se não têm cabeças, não formulam perguntas e não pensam em absoluto no que os dois personagens lhes ditam. No quadro há objetos como o símbolo do dólar no sol [eclipse do sol], uma espada ensanguentada, uma cruz e armas simbolizando os grandes temas e objetivos da vida social alemã entre as duas guerras mundiais, de onde provém o pintor. No canto direito inferior, ainda, uma caveira, e um rosto indicando susto ou temor, atrás do que parece ser a grade de um calabouço. Há uma expressão de sentimento, mas quem se incomoda com o povo que se encontra preso aos pés dos poderosos? O asno, no centro, com grandes viseiras quadradas, que não lhe permitem olhar para os lados, simboliza o tema da caminhada como a de um rebanho; diante dele, na mangedoura, ao invés da comida, papeis. Seria o dinheiro que a cada momento se desvalorizava e com o qual o povo não podia se manter? As identidades aí estão expressas de duas formas: as duas figuras centrais, que representam em posição de destaque autoridades na sociedade, parecem desprovidas de sentimentos; as demais figuras que servem de metáfora para as pessoas comuns indicam impossibilidade de pensar, de se expressar. Retrato contundente da Alemanha do período pós-Primeira Guerra, o quadro é uma acusação do complexo militar-industrial e do materialismo, com um industrial, um general, e os quatro membros sem cabeça da burguesia, tudo sob um sol que se oculta por um cifrão; para o povo, a masmorra. Agora, abrindo o livro de Nir Baram: eis a tradução das primeiras linhas da obra:
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Primeira parte PREPARATIVOS PARA UM GRANDE FEITO Berlim, outono de 1938
Pessoas encontram pessoas. A maior parte das histórias é assim. E enquanto não se exala o último suspiro, a sentença da solidão não é definitiva. Vê-se o mundo rebentando de gente, e se é tentado a crer que facilmente será possível aliviar a solidão. Quanto isto é difícil? Uma pessoa se aproxima de outra, ambas se maravilharam com O crepúsculo dos deuses e com a última peça de Hauptmann, ambas compraram ações de Thompson Broken-Heart Solutions [O coração é a praga do século XX], e já se estabeleceu um pacto. Eis uma ilusão que é benéfica para o estado, para a sociedade, para o mercado. Graças a ela, também os solitários compram roupas, ações, carros, ataviam-se para o baile. (BARAM, 2010, p. 7)7
Tanto o que se tem na capa, como o que se segue neste primeiro parágrafo, parece totalmente desvinculado das mais de 500 páginas que se seguem deste romance, mas o inverso é o verdadeiro. Multidões, solidão, povo, anseios de grandeza de uma população, ilusões de ser, existir, crescer. Todos são ludibriados, não passam de matéria para a grande máquina dominadora. Um dos detalhes da derrocada é insinuado pela ópera que maravilhou a todos. Logo de início há menção ao O crepúsculo dos deuses [Götterdämerung], a ópera de Wagner que encerra o conjunto de quatro obras, as quatro noites do tema do O anel dos Nibelungos8, baseadas em diversas mitologias. A ópera é uma fala pervasiva do fim terrível de quem volta as costas à moral e à ética. Uma pequena explicação sobre o prólogo desta ópera. Nesta quarta noite consuma-se a urdidura dos destinos dos deuses e dos homens. Não é por acaso que a ópera se inicia com as predições das Nornas, ou fiandeiras do Destino na mitologia escandinava,
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BARAM, Nir. Anashim tovim. P. 7. Todas as traduções são de minha autoria. [N.R.]
As quatro óperas que compõem o ciclo O anel dos Nibelungos são: O ouro do Reno, A Valquíria, Siegfried e O crepúsculo dos deuses. 8
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que representam passado, presente e futuro. Isto porque o Destino domina toda esta última noite do ciclo do Anel. Os fios se embaraçam na ponta de uma rocha, rompem-se. E nisto compreende-se que a jornada do deus Wotan em busca do poder, representado pelo Anel, o levará à própria destruição e à destruição do Walhalla com todos os deuses e heróis. O fogo os eliminará. O personagem alemão do romance é o berlinense Thomas Heiselberg, publicitário talentoso, que pode manipular lealdades e máscaras diferentes, determinado a alcançar a grandeza. Para chegar a isto, tendo perdido o emprego em uma empresa norteamericana onde desenvolvera o conceito da “Psicologia alemã de compras”, no fundo, um Modelo do Homem Alemão, está disposto a colaborar com o regime nazista que ele não preza. Adapta o seu talento para as necessidades da máquina de guerra nazista porque obedece às exigências do momento. Entretanto nunca chegamos a saber o que é o Modelo do Homem Alemão ou como é constituída a “Psicologia alemã de compras” ou sequer o que exatamente é o seu trabalho. Um leitor bem informado ou mais interessado não terá dificuldade em notar do que se trata. A segunda história, a contraparte soviética, é da personagem Alexandra “Sacha” Vaisberg, circunstancialmente mencionada como filha de pai judeu soviético, cujos pais e círculo de amigos pertencem ao “grupo de Leningrado”, conjunto de poetas e intelectuais considerado subversivo que se opõe ao regime de Stalin. O destino do grupo está selado, eles serão alvo de expurgos. A conduta de vida de ambos apresenta alguma simetria. O mundo de Thomas e Sasha é destruído. No caso dele, é por causa da saída da Alemanha dos americanos seus empregadores, da morte da mãe por velhice e doença ou pelo horror do ataque na “Kristallnacht”, por não mais poder contar com o apoio da analista judia; no caso de Sacha, devido à prisão de seus pais “traidores”, por eles serem enviados para a Sibéria e pela separação dos irmãos gêmeos adolescentes, transferidos para reeducação pelo governo soviético, e também a frustração de não se sobressair como poetisa, modelo de artistas que se opunham ao regime. Thomas e Sasha ficam desnudos dos personagens que os protegiam, ambos estão 128
perdidos e irão se apegar à primeira tábua de salvação que surgir em seu espaço. Cada um deles tentará abrir o caminho de volta para o topo, ligando-se aos novos governantes. Thomas necessita disto para salvar o seu ego, e Sacha anseia por uma boia que interromperá o seu declínio para as profundezas da depressão. Thomas é convocado pelo Ministério das Relações Exteriores nazista, onde adapta modelos de pesquisa de mercado para decodificar nações estrangeiras – em primeiro lugar os poloneses - para as necessidades do regime. O que antes era bom para identificar o potencial de vendas, agora serve como um meio de controlar nações, povos e grupos étnicos subjugados aos nazistas. Muito pouco é explícito. Poloneses são a meta, os judeus é que serão afetados de forma negativa. Algumas poucas cenas, de grande grau de violência, espalhadas pelo livro, são suficientes para indicar ao leitor que, por trás das duas tramas, desenrola-se a história do extermínio dos judeus na Alemanha, Polônia e Rússia. Enquanto servia em Varsóvia, para onde ele se transfere, brota em Thomas uma sensação de grandeza que vai cegá-lo ao longo do tempo. A autocegueira pavimenta o seu caminho para o abismo e, daqui, o reconhecimento do dano causado por seu plano. O remorso deteriora a sua lucidez. Sasha, solitária após a fragmentação e afastamento da família pelas autoridades, é recolhida pelo amado da juventude que acumula poder no mecanismo soviético. Ele insta com ela para que se torne uma “nova pessoa”, única chance de sobreviver, como foi também o caso do seu contraponto alemão. Com a ajuda do inimigo amargo de seus pais, ela escapa de destino siberiano e caminha para um futuro ainda mais terrível. Recrutada pela NKVD9, ela age para punir o círculo social da família. Torna-se uma investigadora obstinada em obter dos seus investigados – eles próprios membros do grupo de Leningrado – a história dos seus pretensos crimes. Na sequência das atividades dela, muitas pessoas são enviadas para Sigla de “Comissariado do povo para assuntos internos”. Entre as funções do NKVD estava proteger a segurança do Estado soviético. Esta função foi realizada com sucesso através da intensa repressão política. O Comissariado também executava operações em massa, que tinham como alvo grupos religiosos ou grupos étnicos inteiros, os judeus as diversas igrejas russas. 9
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gulags ou a morte. Como Thomas, que quer salvar ao menos a sua analista judia, ela ansiava por salvar almas - os irmãos gêmeos. Mas, como Thomas, ela entende muito pouco e muito tarde a magnitude dos desastres dos quais ambos são agentes diretos. O suplício de O Crepúsculo dos Deuses será o seu destino.10 Depois que ambos começam a perder a sua grandeza, o destino os leva a se encontrar, promovendo uma reunião entre as duas potências, Alemanha e Rússia, voltada a escalões menores, para organizar uma pretensa parada militar conjunta, que ambos consideram ser capaz de afastar o perigo iminente da invasão da Rússia pela Alemanha. A ironia chega ao máximo ao se atribuir, a estas figuras quase insignificantes ante a imensa máquina de guerra, uma tarefa por si só quase ridícula; tão ridículos são os actantes como a missão. Segundo Hutcheon, a ironia cumpre duas funções: uma semântica e outra pragmática. A função semântica marca o contraste entre o que o texto “diz” e o que ele significa. Com isto, o uso da ironia pela paródia possibilita ao leitor não só uma interpretação mais ampla como também uma postura avaliadora sobre os textos. Thomas e Alexandra parecem crescer ao tentar organizar o desfile. Para o leitor, contudo, saiba ele ou não que ao invés de um acerto entre Avishai Margalit, filósofo israelense, das Universidades de Jerusalém e de Princeton, ao abordar em um dos seus livros dilemas morais no entorno da II Guerra Mundial, a partir dos acordos políticos da época, se detém no assunto do mal radical que, de acordo com ele, significa “não só praticar o mal, mas tentar erradicar a própria ideia de moralidade, ao rejeitar de forma ativa a premissa de que a moralidade está baseada em nossa humanidade compartilhada”. O pior de Stalin não chegaria aos pés do pior de Hitler, porque o mal de Hitler era radical, e minou a própria moralidade. Mencione-se que até junho de 41, o regime de Stalin tinha torturado e matado muito mais gente do que o de Hitler. A fome por causas políticas de 32-33 na Rússia tinha só ela causado a morte de cerca de seis milhões de pessoas. Os grandes expurgos stalinistas de 37-38 liquidaram cerca de 700 mil pessoas. Margalit cita que, até o início da guerra, a Gestapo tinha cerca de 8 mil torturadores enquanto a NKVD, o instrumento de opressão russa, tinha cerca de 350 mil torturadores. Margalit frisa que mesmo o regime stalinista sendo baseado em crueldade e humilhação, ele teve por trás de si a ideologia leninista que continha elementos morais que faltavam ao nazismo. Este estabeleceu as máquinas de morte em massa dos judeus, e jamais houve crime maior contra a humanidade. MARGALIT, Avishai. On Compromise and Rotten Compromises. Princeton University Press, Princeton & Oxford. 2009.
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Alemanha e Rússia o que iria ocorrer era a invasão da Rússia pelos alemães, a estruturação de um desfile como ato pacificador é absolutamente inverossímil. Para Hutcheon, se o texto tem uma determinada intenção, irônica, aqui, quando os dois personagens, na maior parte das páginas que abordam os preparativos para a realização do desfile conjunto, estão agindo, ele expõe o que pressupõe também ser um ou mais codificadores que constroem seus significados e impregnam o leitor. De acordo com Hutcheon11, para compreender a paródia: “nós devemos levar em conta todo o ato enunciativo: o texto e as posições dependentes do codificador e decodificador, além dos vários contextos (histórico, social, ideológico) que mediam esse ato comunicativo.” Assim, também devemos considerar como texto fundador da paródia a capa e o primeiro parágrafo ou o contexto histórico constante no livro. Movidos por ponto de vista de autoengano que lhes é característico, os dois actantes, em alguns de seus momentos de entusiasmo, se consideram capazes de serem os promotores da paz. Mas, aos poucos, os dois passam a demonstrar a pouca esperança de poder realizar o desfile e até duvidam de sua eficácia. Todavia, esta reunião os confronta com questões de que tinham tentado escapar até então. Thomas, superficial, interessa-se pelos resultados e ascensão em sua posição de poder. Sua estrutura não lhe basta; no extremo de cada situação, perde-se no pânico que não consegue dominar, para cujas crises, anteriormente, tivera à disposição a analista judia agora deportada para um campo de concentração. Alexandra, por sua vez, está convencida de não ter um desejo genuíno de viver. Por outro lado, ela julga, sem pestanejar, o destino de muitas pessoas. A última cena do livro transcorre quando do início da operação Barbarossa, em 22 de junho de 1941, quando a Alemanha invade a Rússia. O fogo domina a cena, concretiza-se a imagem do prólogo da ópera O crepúsculo dos deuses. Thomas e Sacha seriam pessoas razoáveis que foram desgastadas nas rodas dentadas do regime; ambos tiveram pontos de partida
HUTCHEON, Linda. Teoria e Política da Ironia. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2000. 11
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semelhantes. Ambos, que seriam pessoas comuns, tornaram-se parte da grande máquina. Em algum outro período poder-se-ia dizer que a vida os conduziu para cá e para lá. Aqui não foi a vida que os conduziu, mas os que direcionam a vida dos outros. As mesmas rodas dentadas governamentais é que estabeleceram a vida deles, e no final até os fez se encontrarem. Ainda assim, dentro desta máquina condutora, aceitaram ser acionados ou colaboraram com isto. Eram duas pessoas solitárias que precisaram dar respostas para si mesmas. Que precisaram dar um grau de importância para as pequenas funções de que foram encarregados, acreditar que os seus atos tinham importância. A justificativa para as crueldades que causaram, de forma direta e indireta, foi insuflar em si próprios alguns momentos de sentimentos de grandeza. Não se pode aprender a história com o livro de Baram. Mas se pode claramente entender como milhões de pessoas perfeitamente comuns agiram sob o caráter predatório de regimes autoritários. Também podemos aprender com ele algo sobre a natureza humana e sua capacidade de distinguir entre o bem e o mal, e pior ainda – sobre o atraso no discernimento entre a senda da destruição e o modo de escapar dela. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARAM, Nir. Anashim tovim [tradução livre, “Boas almas”], Tel Aviv, Am Oved, 2010.
HODGE, Merle. “Challenges of the Struggle for Sovereignty: Changing the World Versus Writing Stories,” in Caribbean Women Writers: Essays from the First International Conference. Wellesley, MA: Calaloux Publications, 1990. HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Lisboa: Edições 70, 1989. 132
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: História, Teoria, Ficção. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991. HUTCHEON, Linda. Teoria e Política da Ironia. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2000.
MARGALIT, Avishai. On Compromise and Rotten Compromises. Princeton University Press, Princeton & Oxford. 2009.
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AGIR (OU NÃO) COM PALAVRAS: A PARÓDIA DOS TRIBUNAIS EM DESONRA, DE J.M. COETZEE Gracia Gonçalves1 Quando a filosofia chega com a sua luz crepuscular a um mundo já a anoitecer é no momento em que uma manifestação de vida está prestes a terminar. A filosofia não vem para rejuvenescer, mas apenas para reconhecê-la. Quando as sombras da noite começam a cair, é que levanta o vôo a coruja de Minerva. (C.W.F. Hegel, prefácio de Princípios da filosofia do direito)
INTRODUÇÃO A epígrafe, roubada a Jane Flax, de seu famoso artigo “Pósmodernismo e as relações de gênero na teoria feminista” (1992), vem a contemplar a intenção da autora de encetar uma das mais lúcidas discussões sobre a pertinência do pós-modernismo com as relações de gênero, forçando, via o descrédito das grandes narrativas, a quebra de vários paradigmas da ótica iluminista. Desta postura, que ela própria denomina “meta-teoria”, ou seja, o ato de se “pensar sobre o pensar”, derivam diversos questionamentos dos parâmetros balizadores desta visão de mundo de caráter humanista. Tomando esta direção, e sentido, pretende-se proceder aqui, mais especificamente, a uma des-leitura de um episódio da história sulafricana, referente aos denominados tribunais “de reconciliação” do regime pós-Apartheid, através da análise do romance Desonra, de J.M. Coetzee. Acredito que esta obra dialogue, parodicamente, par e passo, com a crítica dos pressupostos disseminados desde a
1
Universidade Federal de Viçosa – UFV
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era da razão e enraizados, segundo Flax, até hoje, em especial na cultura americana (FLAX, 1992, p. 217). Estes, que autora identifica como focos principais do crivo da teoria pós-moderna, ligamse invariavelmente, de uma forma ou de outra, à falibilidade do conceito de verdade. Numa época de tantos “pós”, pode parecer ter já ficado longe a procedência deste ataque, mas, como bem o afirma Heloisa Buarque de Hollanda, nem todos os caminhos parecem ter sido esgotados nesta discussão. (HOLLANDA, 1992, p. 14) Assim sendo, por diversos aspectos, este polêmico romance de Coetzee mostrará que, para além, ou mais propriamente falando, para aquém da proposta brilhantemente elaborada por Flax, da convergência das noções pós-modernas com o gênero, pode-se proceder a uma re-identificação do nascedouro das idéias que regem o pensamento ocidental e de sua valoração, bem como a uma re-avaliação de contextos ligados à arte de narrar. Ver-se-á, assim, todo um envolvimento da ética com a história, tornadas ambas, face às indagações que se lhes são apresentadas pela teoria, conceitos frágeis e voláteis. A questão a ser aqui desenvolvida trata, primeiramente, de se demonstrar como o romance de Coetzee, dialoga com certas crenças do cânone iluminista, exatamente para subvertê-lo. Para isto, identifica-se nesta abordagem um processo de retomada destes temas, segundo Jane Flax (1992), os quais se colocam em contraponto com elementos da trama, a partir mesmo da concepção do homem pleno, senhor de si, e de sua própria consciência, configurando-o não meramente como um tipo ao avesso do herói, ou um anti-herói, mas como um ser inviável, totalmente despojado de futuro, desafiando os limites do humano, ou não-humano, e colocando-se abaixo mesmo dessa linha de entendimento. (FLAX, 1992, p. 220-222) Em função do proposto, uma sucinta visão da evolução da história recente da África do Sul, bem como do autor, tornam-se necessárias, abrangendo do período do regime de alta repressão (1948-1990) até a penosa e gradativa conquista da liberdade pela população oprimida, chegando subsequentemente ao estado pleno de direito (1994) via a anistia dos infratores de tais direitos como 136
moeda de troca. Os episódios descritos por Antjie Krog, em seu livro Country of my skull: guilt, sorrow, and the limits of forgiveness in the new South Africa (2000) servirão como base para a elucidação do fenômeno; além disto, sou grata pela minha iniciação neste aspecto da cultura sul-africana à Marília Fátima Bandeira (2008), cuja dissertação de mestrado sobre J.M. Coetzee me abriu caminhos para uma melhor compreensão do autor, bem como da constituição dos aspectos sócio-históricos do romance. No que tange à segunda parte desta empreitada crítica, uma vez delineados os pressupostos teóricos relativos à desconstrução do cânone cartesiano empreendida pelo pós-modernismo, e fundamentadas as condições de produção do romance, i.e. autoria e contextualização histórica, sugere-se uma exploração do texto de Coetzee no que tange aos episódios envolvendo as cenas de julgamento, ou reprovação, formais ou informais, a que o protagonista se submete. Para tal análise, o conceito de apropriação dos atos de fala de John Austin (1962) se prestará como mecanismo de esclarecimento, como veremos. I. A GUINADA PÓS-MODERNISTA: NA BALANÇA, O PENSAR Como uma primeira abordagem, trazemos à tona a falácia da representação no campo do saber. Para tanto vale elencar alguns aspectos criticados e apontados por Flax (1992), que se tornaram alvo predileto dos filósofos do pós-modernismo. Dentre estes, ela arrola: § Acreditar em um eu estável e coerente, senhor de si e de uma razão privilegiada, controladora e nunca controlada por leis naturais; § Aliar a esta razão uma filosofia com base na fundamentação universal, objetiva e confiável do conhecimento; § Entender o conhecimento como expressão da verdade, como um valor fixo e duradouro; § Conceber uma razão sem nenhuma outra influência externa, quer histórica ou social; 137
§ Assumir conexões intrínsecas entre verdade e autoridade, derivadas destas leis tidas como infalíveis e universais; § Crer numa trans-historicidade, tentando escapar da contingência de pertencer a um referencial qualquer, local, momento, e circunstâncias; § Postular a aceitação de que o conhecimento é neutro, e a verdade, sempre de interesse geral, nunca passível de distorção; § Tomar a ciência como paradigmática do verdadeiro conhecimento bem como sua eficácia como inquestionável para o bem de todos; § Crer na linguagem como um meio transparente e não constitutiva do objeto a que se refere, ignorando seu aspecto de construto linguístico.
Sendo assim, resume-se, primeiramente, a questão da subjetividade plena e transcendental, auto-fundante e autocontroladora, que se ligaria a uma crença literalmente cega na razão universal e no conhecimento, o qual, por sua vez, seria neutro e, portanto, alheio às quaisquer interferências externas. Decorrente disto se fundamentaria um sistema de autoridade baseado em leis que seriam infalíveis e que dariam respaldo aos aparatos de poder sem possibilidade de distorção. E finalmente, para costurar todas estas verdades já estabelecidas haveria uma linguagem aparentemente neutra, servil e transparente, que “espelhasse” o pensamento de forma fidedigna à expectativa de quem o emitisse. Todas estas crenças vão se chocar vez por outra, esbarrando em novos paradigmas, tal qual aponta Linda Hutcheon (1990) no quesito da história, a partir da orientação de Foucault sobre o caráter benéfico da heterogeneidade dos discursos. Diz ela: Ao invés de procurar denominadores comuns e redes homogêneas de causalidade e analogia, os historiadores têm se soltado, argumenta Foucault, para atentar para o jogo livre dos diversos, heterogêneos discursos que não reconhecem o a indefinição em si tanto no passado como 138
no nosso conhecimento do passado. (HUTCHEON, 1990, p. 66, tradução minha)2
A subjetividade fluida de que também nos fala Stuart Hall (2006), mostra–se, aos poucos, dominando o cenário do eu fixo, estável, o qual dá lugar à indeterminação. Desta forma, nota-se que a representação se ressente da idéia de transparência e a ficção pós-moderna explora e, simultaneamente, se recusa a consolidar qualquer atitude de fechamento, totalização, e universalidade que constituem as narrativas que, hoje, segundo Lyotard (1989), seriam denominadas pejorativamente, como “grandes”, e das quais este decretou, ou percebeu, o fim: o homem, a filosofia, a história. Esta última, segundo Linda Hutcheon (1990), assume um caráter eminentemente consciente, borrando-se as barreiras entre o ficcional e o pretensamente real. Cada manifestação deve ser filtrada, uma vez que para que se tenha acesso a ela, implicou-se um ato de representar; e a partir disto estabelece-se um jogo cíclico de cópias, que nada mais são do que novas criações, como o fluir de uma cornucópia paródica. Antes, porém, de ver o uso e abuso paródico como um signo de decadência ou “causa de desespero”, seria possível postular uma interpretação menos negativa que permitiria um potencial para possibilidades críticas radicais. Seria necessário, para tanto, segundo a teórica, “repensar as representações o nível social e o político (tanto quanto o literário e o histórico) através das quais compreendemos nosso mundo.” (HUTCHEON, 1990, p. 70, tradução minha)3 No texto que ora se vai analisar, é neste nível que tais questões epistemológicas da narrativa pós-moderna são colocadas. Trata-se de, tal qual ela provoca, postular “como pode o presente conhecer
2 Instead of seeking common denominators and homogeneous networks of causality and analogy, historians have been freed, Foucault argues, to note the dispersing interplay of different, heterogeneous discourses that acknowledge the undecidable in both the past and our knowledge of the past. These are among the issues raised by postmodern fiction in its paradoxical confrontation of self-consciously fictive and resolutely historical representation. (HUTCHEON, 1990, p. 66)
3 Perhaps we need a rethinking of the social and political (as well as the literary and historical) representations by which we understand our world. (HUTCHEON, 1990, p. 70)
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o passado do qual fala? Constantemente narramos o passado, mas quais são as condições de conhecimento implícitas ao ato totalizante da narração? Deve um relato histórico reconhecer onde não está seguro ou seja permitido adivinhar? Só sabemos do passado através do presente? Ou é só uma questão de se entender o presente através do passado?” 4 (HUTCHEON, 1990, p. 72, tradução minha) É esta dubiedade de significados que o texto de Coetzee fará a reverberar. Neste diapasão, será interessante se atentar para como, neste exemplo, a função da paródia, utilizada com o intuito de desestabilizar um sentido e resgatar um outro sentido histórico, ocorre, disseminando, por outro lado, tantos outros sentidos. Aqui já não se trata, como diz Hutcheon, de uma tentativa de uma ridicularização pura como numa farsa no século XIX. Para ela, a paródia “projeta a política da representação”, uma vez que “é uma forma altamente problematizante e des-naturalizadora de reconhecimento da história, e através da ironia, das representações. (HUTCHEON, 1990, p.94) Decorrente desta desconstrução de valores, passa-se a se questionar também a história oficial, o que abre caminho para o principal motivo desta discussão: a apropriação irônica dos meandros do poder e dos aparatos de veiculação da justiça representados pela experiência ímpar de pacificação, via negociação, entre brancos e negros na África do Sul, visando o fim da política do Apartheid. Neste aspecto é, portanto, mais do nunca, oportuna, a contribuição de Hutcheon no que tange à identificação de uma atitude de-historicizante a que certos textos narrativos, “autoconscientes”, e, ao mesmo tempo “auto-pejorativos” se propõem. (HUTCHEON, 1990). Embora se reconheça aqui que não se trata de um texto pós-moderno tout-cout em termos de sua estruturação, mais linear, podem-se selecionar nele elementos interessantes suficientes para justificar a assertiva de que, através dele se logre
4 How can the present know the past it tells? We constantly narrate the past, but what are the conditions of the knowledge implied by that totalizing act of narration? Must a historical account acknowledge where it does not know for sure or is it allowed to guess? Do we know the past only through the present? Or is it a matter of only being able to understand the present through the past? (HUTCHEON, 1990, p. 72)
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enfocar, expor e desafiar o fenômeno histórico a ser focalizado a seguir, ou seja, a atuação e a eficácia da Comissão Nacional de Reconciliação e Verdade. II. UMA GUINADA NA ÁFRICA: O PAPEL DOS TRIBUNAIS O regime conhecido como Apartheid oprimiu a África do Sul durante quase seis longas décadas, compreendidas entre os anos de 1948 e 1994. Nesse período, uma política segregacionista privou os negros do país de uma série de direitos, dentre estes o de morar, trabalhar e até mesmo circular em ambientes que ultrapassassem os limites impostos pela divisão de classes e de etnia. No entanto, a eleição de Nelson Mandela para presidente da república, em 1994, fruto de uma trajetória de dissidências e vozes contrárias a esse panorama de injustiça, implanta uma política de ruptura e reparação. Foi nesse momento que, com grande suporte do recém presidente, a Comissão de Verdade e Reconciliação começou a funcionar, em dezembro de 1995, sob a chefia do prêmio Nobel da paz Arcebispo Desmond Tutu. Sua missão era a de produzir um relatório para o Parlamento e para Mandela que delineava uma completa descrição de abusos ocorridos durante o período de segregação racial. A comissão foi organizada em três comitês: “Violações dos Direitos Humanos”, “Reparações e Reabilitação” e “Anistia”. Ao todo, os comissários levaram mais de vinte mil declarações de sobreviventes e familiares de violência política. Na introdução que faz para o livro Country of my skull: guilt, sorrow, and the limits of forgiveness in the new South Africa (2000), Charlayne Hunter-Gault define o conceito de comissão de verdade. Diz ela: O primeiro órgão independente estabelecido na era pósApartheid foi a comissão de Verdade e Reconciliação. Criada pelo Ato do Parlamento conhecido como o Ato Nacional da Unidade e da Reconciliação, o TRC, como veio a ser conhecido foi designado para ajudar na facilitação do processo de recuperação da verdade”. Este foi ímpar 141
na história de tais comissões em todo o mundo pois clamou por testemunho antes de ser levado a público. (HUNTER-GAULT in KROG, 2000, p. vi)5
Se a comissão foi um caso impar, por outro lado, é lugar comum que não houve consenso quanto à sua eficácia. Seu maior legado estaria, segundo Krog (2000), no importante valor histórico, uma vez que os documentos produzidos nesse período são essenciais para a preservação da memória cultural da África do Sul, assim como pela possibilidade de se trazer à tona uma série de vozes silenciadas durante o apartheid. A esse respeito, Krog (2000) questiona: Quão bem sucedida foi a Comissão de Verdade e Reconciliação? é a pergunta mais feita. A resposta é igualmente complexa e simples: se alguém encara TRC como um mero veículo para conceder anistia, este foi razoavelmente bem sucedido. Um grande número de aplicações de anistia foram realizadas [...] também deixou o país um grande número de generais brancos [...] como alguns políticos do ANC, sem anistia. Isso significa que o Estado e o ANC são vulneráveis às reivindicações das vítimas. 6 (KROG, 2000, p. 384)
Sobre tais considerações, o debate levantado acerca da Comissão e de sua relevância para o contexto sócio-histórico e político da África pós-apartheid nos conduz a um aspecto ainda mais amplo, colocando em xeque os próprios conceitos de verdade e de justiça enquanto fluidos. Ou seja, se, de um lado, problematiza-se a eficácia
The first independent body established in the post-apartheid era was the Truth and Reconciliation Commission. Created by an Act of Parliament known as the National Unity and Reconciliation act, the TRC, as it came to be known, was designed to help facilitate a “truth recovery process”. It was unique in the history of such commissions around the world in that it called for testimony before it to be held in public. (HUNTER-GAULT, in KROG, 2000, p. vi) 5
6 How successful was Truth and Reconciliation Commission? is the question more asked . The answer is both complex and simple, If one regards TRC as a mere vehicle to grant amnesty , it succeeded reasonably. A lot of amnesty applications were dealt with […] It has also left the country with a large number of white generals […] as some as ANC politicians, without amnesty. This means that the state and the ANC are vulnerable to claims from victims. (KROG, 2000, p. 384)
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dos julgamentos, por outro, verifica-se que esta depende de uma relativização de noções estanques e da compreensão da própria realidade histórica como algo situado a partir de determinado ponto de vista. Sobre isso, Krog (2000) argumenta: Se o seu interesse na verdade está ligado apenas à anistia e a indenização, então ele não vai ter escolhido a verdade, mas a justiça. Se ele vê a verdade como a compilação mais ampla possível das percepções das pessoas, suas histórias, mitos e experiências, terá escolhido restaurar a memória e promover uma nova humanidade que, talvez, seja a justiça em seu sentido mais profundo.7 (KROG, 2000, p. 21-2)
A polêmica em torno da comissão pode assim ser entendida quando duas opiniões das mais abalizadas, Tutu e Mandela, os quais se mostraram um tanto divergentes. Se o presidente era bastante otimista ao “aceitar o relatório como ele está, com suas imperfeições, como uma ajuda que o TRC deu-nos para ajudar a reconciliar e construir a nossa nação”, Tutu se colocava mais receoso, prevendo que “muitos serão chateados por este relatório. Alguns têm pensado em desacreditá-lo preventivamente”, sem deixar, porém, de creditar os méritos de seu trabalho. (KROG, 2000, p. 371) Os dois posicionamentos, no entanto, são prova de que o relatório da Comissão trata de um documento importante para preservação de uma reminiscência oprimida pelo silêncio, agora, vista de forma panorâmica e com outras possibilidades reflexivas. Assim, tanto no aspecto das anistias concedidas, quanto na leitura dos registros verbais, prevalece a possibilidade de se lançar novos olhares àquilo que outrora fora esquecido ou marginalizado. Krog (2000) conclui sua análise do desempenho desses tribunais colocando-os na balança e verificando que, afinal, seus objetivos teriam sido parcialmente alcançados. Assim, mesmo
7 If its interest in truth is linked only to amnesty and compensation, then it will have chosen no truth, but justice. If it sees truth as the widest possible compilation of people’s perceptions, stories, myths, and experiences, it will have chosen to restore memory and foster a new humanity, and perhaps that is justice in its deepest sense. (KROG, 2000, p. 21-2)
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falho em determinados aspectos, o relatório final se tornou uma conquista por “trazer alguma forma de equilíbrio para o ideal político da anistia”, algo que “a comissão conseguiu de uma maneira mais notável”, uma vez que “as experiências das vítimas, de fato, tornaram-se parte da psique nacional e parte da história”. Embora, conforme nos aponta o autor, “em termos de reparação e cura do trauma das vítimas, o TRC foi o primeiro a declarar que este foi, isoladamente, o seu maior fracasso”. (KROG, 2000, p.385)8 A partir de tais considerações, verifica-se a impossibilidade de se reparar os horrores cometidos contra o povo negro durante o Apartheid. Igualmente, torna-se questionável o próprio conceito do que é verdade ou justiça. É nesse cenário de questionamentos e de desestabilização de definições totalizadoras que emerge a obra de Coetzee, conforme discutiremos nas próximas linhas. III. TRIBUNAIS DE PAPEL: REPARAÇÃO E DESEJO As marcas do corpo de uma África do Sul costurada na mesa de operações da Comissão de Reconciliação e Verdade vão ressurgir por entre as linhas de uma escrita prenha de ironias como Desonra. Nesta seção discutiremos como e, possivelmente, por que motivo, o autor retoma os episódios traumáticos da exposição, reconhecimento dos abusos infligidos e a correspondente humilhação dos culpados, em se reconhecerem como tais, penalidade imposta como reparação aos infratores, a despeito da aversão tácita que poderia ainda vigorar em qualquer dos lados antagônicos envolvidos. A vivência do autor de tais casos nos convida assim, antes da análise propriamente dita, a uma revisão de sua vida, bem como a uma reflexão sobre a recepção tumultuada de sua produção tida, ora como alienante, ora como preconceituosa, ou, no mínimo tendenciosa, mas na maioria dos casos, reconhecida no sentido estrito e lato. O escritor John M. Coet zee nasceu na Cidade do Cabo, em
8 If the TRC is regarded as an effort to create a forum for victims to bring some form of balance to the political ideal of amnesty, then the commission succeeded in a most remarkable way. The experiences of victims did indeed become part of national psyche and part of our country’s acknowledged history for the first time. But in terms of repairing and healing the trauma of the victims, the TRC itself was the first to declare that this was, singularly, its biggest failure. (KROG, 2000, p.385)
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fevereiro de 1940, à beira do caos que se formaria daí a oito anos com a oficialização do regime segregacionista do Apartheid. Historicamente esta era uma sociedade que já vivenciava a desarmonia entre os diversos grupos étnicos formados a partir de sua colonização, em que holandeses e ingleses disputaram palmo a palmo as riquezas daquele solo, e ignoraram os direitos da população nativa, de origem negra, chegando oficialmente às raias da crueldade. O menino Coetzee, de origem africânder, nome dado aos brancos nascidos dos holandeses (Cf. BANDEIRA, 2008) assistiu de perto a episódios de abuso e preconceito que incorporaria à sua obra no futuro, desenvolvendo uma trilogia em ordem cronológica sobre sua infância, juventude e maturidade. Esta é formada por Infância (1997), Juventude (2002) e Verão (2010), todas entrelaçando memórias a momentos históricos. Na primeira, para se ter um exemplo, ver-se-á que a lâmina do ódio e do ressentimento passava inclusive dentro de sua própria casa, pois de uma hora para outra, tornou-se-lhe atitude arriscada expressar-se em inglês, língua que dominara desde cedo, quando a Inglaterra se viu privilegiada na ocupação do território. (Cf. BANDEIRA, 2008) Outros episódios também narrados por ele e, considerados talvez mais pertinentes, tais como açoitamentos de serviçais negros com a total negligência dos membros de sua família poderiam ser aqui identificados como ilustração desta vivência de crueldade. O recorte escolhido, contudo, quer reforçar um ponto de vista que se tornou constitutivo da obra do autor em geral, e não menos em Desonra: a importância da linguagem em si, e a visão de que o sujeito e sua subjetividade vêm a se constituir nela. Assim sendo, em muito contribuiu para o olhar perspicaz de Coetzee ter estudado na Inglaterra de 1962 a 1965, conseguido após três anos seu doutorado na Universidade do Texas, em Austin, e, por um período, ter atuado também como professor de inglês na Universidade do Estado de Nova Iorque, em Buffalo, experiência que teve seu final com a melancólica negação de seu visto de permanência. De volta à África do Sul, onde lecionou na Universidade da Cidade do Cabo, até 2000,.ele se projeta enquanto 145
o escritor polêmico que é, até que em 2002, torna-se mais revestida de hostilidade a incompreensão em torno de Desonra e ele se autoexila na Austrália, de novo, enquanto professor universitário, desta vez, na Universidade de Adelaide. (Cf. BANDEIRA, 2008) Discreto e recluso, Coetzee é um escritor não muito dado a entrevistas, ou a se conhecer; por esta reserva, tem recebido severas críticas de seus contemporâneos, como a de ter-se mantido à margem da luta políticas e ideológicas travadas durante o Apartheid. Como assuntos polêmicos, além de Desonra (1999) no qual retrata a violência dos negros contra os brancos remanescentes num território então dominado novamente por eles, acrescenta inclusive uma cena de estupro de uma branca; já em A Vida dos Animais (1999); como vegetariano ferrenho que é, ele usa uma comparação entre a prática dos abatedouros e a do morticínio de judeus no holocausto, a qual soou inaceitável a muitos judeus. Como reconhecimento de sua obra, Coetzee recebeu duas vezes o prêmio Booker e também foi laureado com o prêmio Nobel de Literatura, em 2003, o que o tornou um dos autores vivos mais premiados da atualidade. Dentre seus romances mais conhecidos, traduzidos em português, além dos acima mencionados, destacamse, entre outros, Vida e obra de Michael K (1983) e O Homem Lento (2005), sempre em torno de personagens sombrias e trajetórias obscuras. A violência se faz presente, mas a marca registrada de sua obra reside em tocar no cerne da segregação e problemas sociais do país, de forma menos direta, com sutileza, mas com efeito contundente, muito embora não seja marcante o suficiente para certas vozes ressentidas da escolha do autor sempre projetar protagonistas caucasianos, de classe média, o que não contemplaria a causa pós-colonialista. 9 A polêmica de Desonra giraria também muito em torno desse protagonista herege, que elegeu o sexo como parâmetro balizador de sua satisfação pessoal. Trata-se da história de um professor, David Lurie, da Universidade da África do Sul na Cidade do Cabo, branco, uma vez sedutor, divorciado, o qual se envolve cínica e metodicamente com prostitutas como forma de não se comprometer
9
Cf. PARRY, 1998.
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e manter as rédeas da relação. Surpreso, ao se ver rejeitado pela mais recente, com quem abre a história, por razões que ele não consegue entender, e, nem faz por onde, pois tenta impor a ela o reatamento do caso, até que ela o proíbe de procurá-la, ele cai numa armadilha “do destino” (COETZEE, 2000, p. 15), segundo ele próprio, ao se envolver com uma aluna, ao que tudo sugere, de cor mestiça, que encontra no campus, leva para casa e termina por manter relações com ela, num ato que reconhece ter sido, por parte da mesma, “profundamente indesejado”. (COETZEE, 2000, p. 33) . Esta fraqueza determinará todas as demais que desfilarão aos seus olhos até o final do romance, numa vertiginosa trajetória para baixo, definindo o seu declínio em todos os níveis: social, moral, econômico, pessoal, etc. Processado pela jovem, ele acaba perdendo seu cargo e sua reputação, e assim decide deixar a vida urbana da capital e tentar viver com a filha, Lucy, lésbica e, no momento, separada, a qual, ao invés de optar por morar em Amsterdã com a mãe, ou se engajar na sociedade de forma convencional, como ele, havia se tornado uma proprietária rural no interior do país. Lá, ele busca a companhia de Byron, o poeta, que se torna personagem de uma peça musical que decide escrever. Como vida social, ele teria a feira, onde ela vende produtos; Petrus; o capataz negro, e proprietário da terra ao lado; um casal de brancos, cuja feia mulher Bev, mantém uma clínica de exterminação de animais abandonados, e com quem ele acaba por desenvolver, apesar do preconceito inicial uma relação de cumplicidade, até de sexo quando esta, assim, tal lhe propõe; e ele aceita. Fraqueza por fraqueza, o enredo vai se delineando em repetidas frustrações até que culmina no episódio do estupro de Lucy, por três rapazes negros, um dos quais David descobre ser parente de Petrus, e a subsequente rendição dela a esse último, aceitando tornar-se sua esposa em troca da terra, como forma de garantir para o filho e para sua casa, proteção. O golpe de misericórdia do texto mostra David contemplando-a na fazenda, ela, segura, ele, conformado em vê-la com os pés na terra de onde nunca mais sairá. Com este quadro, entende-se quanto clamor tal obra não deve ter levantado. Nadine Gordimer, dentre outras vozes, lamentou a 147
visão preconceituosa de Coetzee.10 Seus pares haviam sido atingidos pela sua pena. Entre brancos e negros, todos se feriram. Contudo, indaga-se aqui em que consistiria a força deste romance que tem fascinado e indignado tantos, e, de volta à linguagem como veneno e remédio, pensamos achar uma resposta. No que tange ao proposto, passemos às considerações dos episódios de julgamento ou retratação na trama, a nosso ver, baseados neste fenômeno social da atuação das comissões supracitadas. A partir deles, tentaremos um resgate de Coetzee enquanto um autor crítico de si mesmo e do papel nocivo dos brancos na cultura sul-africana. Se estes não o eximem por ter mostrado também um recorte da violência negra (verossímil o suficiente para ter ferido a tantos), por silogismo, ao esvaziarem de confiabilidade, quer a personagem, quer a Academia, representante uma supremacia detentora da verdade, pelo menos estes abrem caminho para se repensar nas condições de possibilidade que fizeram gerar esta violência, bem como para a relativização da mesma. Atentando, contudo, para o desmascaramento de linguagem da hegemonia branca via fenômenos da pragmática em si, tornase válido, elucidar basicamente o conceito de atos de fala e sua constituição, o que se mostrará relevante para nossa análise posterior. Segundo sua teoria, Austin opõe princípios básicos do ato de enunciar, ao discernir atos constativos (os que afirmam ou negam algo) dos performativos (que realizam um ato). A possibilidade de interpenetração ou imbricação dos mesmos que fugiria aqui ao nosso escopo. Basta-nos, sua distinção primeira: Proponho denominar frase performativa ou enunciação performativa, ou, performativo (...) indicando (...) que produzir uma enunciação é realizar uma ação, acrescentando que normalmente não se considera que essa produção seja apenas dizer alguma coisa. (AUSTIN, 1962, p. 6).
Pode-se inferir desta proposição que tais atos conseguem de per se intervir no mundo, sob diversas formas, tendo capacidade
10
Cf. DONADIO, 2007.
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de alterar o estado ou propriedade das coisas, pessoas, ações ou demais circunstâncias que envolvem o sujeito falante. O cerne da questão residiria na aferição dos resultados de tais atos performativos, ou seja, se um enunciado levaria a efetivamente ordenar, prometer, apostar ou nomear, constituindo-se assim como um ato válido. Austin desenvolverá por isso uma análise dos possíveis riscos que ameaçariam estas intenções, listando certas condições de validade destes enunciados, projetando o contexto social e sua relação com um certo ritual previamente estabelecido como parâmetros. A conclusão é de que o ato performativo é, pois, indissociável das relações interlocutivas de diversa ordem que os falantes estabelecem entre si, o que envolveria todo um processo de contextualização da enunciação. Dentro de outra perspectiva, a teoria contempla também a outro fenômeno da expressão e comunicação diretamente ligado a nossa leitura. Os performativos podem, muitas vezes, ser totalmente substituídos por gestos, como cumprimentar, despachar, ou escorraçar a alguém, o que nos remete para as cenas de perdão do romance em sua dimensão comportamental e simbólica. Dando um salto na extensa averiguação do autor, pinçamos mais um aspecto da teoria que se aplicaria ao romance: performativos podem ser locutórios (referentes à enunciação como a pronúncia), ilocutórios (correspondendo a uma intencionalidade); ou ainda, mais especificamente, perlocutórios (pertinentes a um efeito causado a outrem). No caso, são relevantes os dois últimos, em especial os ilocutórios que se ramificam em cinco classes com valores específicos, a saber: primeiramente, os “veridictivos”, relacionados com os atos judiciais (condenar, absolver, sustentar); os “exercitivos”, que reenviam ao exercício de poderes ou influências (designar, ordenar, dirigir, demitir) e os “expositivos”, a partir dos quais realizamos uma exposição (afirmar, negar, relatar); em segundo lugar, os que nos são mais oportunos, os “promissivos”, que realizam promessas ou compromissos (prometer, estar decidido a, projectar, pretender, jurar) e os “comportamentativos”, que 149
dizem respeito a atitudes e comportamentos sociais (agradecer, felicitar, deplorar, cumprimentar). (AUSTIN, 1962, tradução minha.) Em resumo, segundo o autor, a enunciação performativa comporta a execução correta e completa de um procedimento convencional, reconhecido por todos os participantes e que implique a enunciação de determinadas palavras (o enunciado performativo propriamente dito), por determinadas pessoas em determinadas circunstâncias apropriadas, com sinceridade e implicando um comportamento conforme no futuro. A não observância de qualquer destas regras implica o insucesso do ato pretendido. (AUSTIN, 1962, tradução minha.) O que podemos perceber é que, em Desonra, é que ocorre uma falha nos casos identificados por Austin de não cumprimento “por abuso” dos procedimentos, ou seja, quando é colocada em questão a sinceridade dos pensamentos, sentimentos e intenções do locutor no ato de dizer.(AUSTIN, 1962). Tais condições não interferem na realização do ato (na sua consumação), o ato é legítimo para todos os efeitos, mas não chega a resultados efetivos porque o locutor não tem qualquer intenção de levar adiante o comprometimento que realiza através da enunciação. E é justamente para simular esse comprometimento que ele a realiza. Prometer sem ter a intenção firme, aconselhar algo que penso não ser o melhor para o meu interlocutor, ou desejar felicidades sem sentir o que digo, são exemplos de falsas intenções, pensamentos e sentimentos. Todo esse aparato teórico mostra a sua pertinência na leitura dos seguintes episódios, que se ligam em torno da insinceridade que invalida um ato de fala. Em primeiro lugar, são performativos porque implicam uma declaração de culpa, porém, em níveis diferentes de interlocução tornam-se esvaziados de sentido, pela falta de comprometimento de um lado, ou de outro, quando não de ambos. O esquema da farsa pode ser sentido na seguinte passagem do julgamento: Hakim se junta a ele, com facilidade. “Queríamos ajudar você, David, a achar uma saída para esse pesadelo.” 150
São seus amigos. Querem salvá-lo da própria fraqueza, despertá-lo do pesadelo. Não querem vê-lo mendigando nas ruas. Querem que volte para a sala de aula. “Nesse coro de boa vontade’, ele diz, “não ouço nenhuma voz feminina.” (COETZEE, 2000, p.63)
A cumplicidade masculina denuncia a hipocrisia reinante no meio acadêmico. Ao perceber que seria punido por seus pares, não porque o considerem culpado, mas antes para cumprir um ritual (tal qual ocorrera em muitas comissões), para manter as regras do jogo do poder, retratando-se publicamente a compactuar com uma paródia do terror, ele prefere dar as costas àquela “justiça”. A atitude de David problematiza também a questão historiográfica, pois o relato em si está sempre sob a possibilidade de borramento. Coetzee brincará com essa pretensão do(s) discurso(s), projetando a inautenticidade do horizonte de expectativas que cerca o protagonista, que se revela, então, um cínico. As artimanhas do jogo do poder podem ser sentidas na reflexão de Foucault, abaixo: O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder. [...] Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade [...] as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 1979)
O exercício, ou gosto do poder que troca de mãos é exposto no quadro seguinte, quando já ocorrera a derrocada de David, e seu algoz se torna o pai de Melanie. Procurado por ele, este se mostra extremamente diplomático e, num ato performativo convencional, convida-o a jantar com sua família. O convite, contudo, revela-se como um instrumento refinado de tortura, pois ao colocá-lo em confronto com a irmã e a mãe da jovem, isto faz renascer neste cínico, ora já focalizado, o mesmo desejo que o fez tornar-se réu confesso: A senhora Isaacs é uma mulher baixa, que está atarracando com a idade, de pernas arqueadas que lhe dão um andar 151
ligeiramente oscilante. Mas dá pra ver de onde as irmãs tiraram a beleza. Deve ter sido uma verdadeira beldade em sua época. Ela mantém os braços duros, evita os olhos dele, mas faz um minúsculo gesto com a cabeça. Obediente; a boa esposa e companheira. E serão uma só carne. Será que as filhas vão puxar a ela? (COETZEE, 2000, p. 192)
Neste encontro, ambas as partes transgridem seu ato de fala. Se David não merece perdão, o pai da moça, ao convidá-lo, esperavase que o perdoasse. Na seguinte a passagem, nota-se que uma certa insinceridade permeia o ar: Atravessa depressa a sala de jantar vazia e vai para o corredor. Por trás de uma porta encostada, ouve vozes baixas. Abre a porta. Sentadas na cama estão Desirée e a mãe, fazendo alguma coisa com uma meada de lã. Perplexas com a aparição dele, ficam em silêncio. Com cuidadosa cerimônia ele se ajoelha e toca o chão com a testa. Será que basta?, pensa. Será que isso basta? Se não, o que mais? Levanta a cabeça. As duas ainda estão sentadas, congeladas. Ele encontra os olhos da mãe, depois os da filha, e outra vez é tomado pela corrente, a corrente do desejo. (COETZEE, 2000, p. 196)
O fato é que, mesmo David se humilhando, não há uma redenção para ele. Nenhuma referência textual evidencia a desconfiança do senhor Isaacs sobre o arrependimento do mesmo, o qual não se deixa comover. Sendo assim, ele transfere para a filha ausente o possível ato de perdoar. David, por outro lado, ao comportar-se de forma tão maquinalmente artificial, outra vez remetendo-se ao ressentimento tácito que pode ter permeado situações análogas, inviabiliza o perdão que (aparentemente) solicita. Em vários outros pontos, seu discurso se trai, esvaziando-se continuamente: “Só mais uma palavra, e não digo mais nada. Podia ter sido diferente, acho, entre nós dois, apesar da diferença de idade. Mas não fui capaz de suprir alguma coisa, alguma 152
coisa...”, ele procura a palavra, “lírica. Eu não tenho lirismo. Sei amar bem. Mas mesmo quando estou apaixonado não canto, se o senhor me entende. E lamento por isso. Lamento o que fiz sua filha passar. O senhor tem uma família maravilhosa. Peço desculpas pelo sofrimento que causei ao senhor e a sua esposa. Peço que me desculpe.” Maravilhosa não está certo. Teria sido melhor exemplar. (COETZEE, 2000, p. 194)
Ao colocar-se em posição hegemônica, o pai de Melanie imbui-se da mesma falsa pretensão de dono da palavra. Seu discurso assume um tom religioso que lhe asseguraria maior respeitabilidade: “o caminho em que o senhor está foi Deus que lhe ordenou. Não cabe a nós interferir” (COETZEE, 2000, p. 197). Contudo, no contexto de perdão, sua insinceridade se torna tanto maior ao se mostrar como cristão: caberia a ele, sim, perdoar. O que se verifica, portanto, a partir da leitura que ora realizamos sobre a obra de Coetzee, em sua interlocução com o contexto histórico das comissões, é a constatação de que o conceito de verdade é algo transitório, entrelaçado a posicionamentos individuais, e às amarras do poder, ou seja, outra vez segundo Austin (1982, p. 57) não é nem uma simples qualidade nem uma relação, nem uma coisa qualquer, mas antes toda uma dimensão de crítica.” Trata-se assim de um conceito de subjetividade fluida, de ponto de vista, de um modo de se posicionar face às convenções sociais, ou seja, de um código, que elege como primordial a representação, não a essência.
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A complexa dinâmica da arte em movimento: Banville e a ordem no caos Laura P. Z. Izarra1 Nos anos oitenta, o escritor irlandês John Banville concluía a tetralogia que focalizava a vida dos cientistas que provocaram as revoluções científicas – Doctor Copernicus (1976), Kepler (1981), The Newton Letter (1982) e Mefisto (1986). Segundo Banville, a imaginação científica tece “ficções supremas” para salvar as aparências/o fenômeno, e esse processo criativo do cientista se assemelha ao da imaginação do artista. As fronteiras entre os diversos campos do conhecimento se apagam transformando os fatos reais em realidades aparentes devido à relatividade da percepção do real. O artista, assim como o cientista tenta dar ordem ao caos enfrentando o desafio imposto pela linguagem e a impossibilidade de expressar a experiência do real. Esse conceito da ordem dentro do caos (Hayles 1990, 1991; Prigogine 1984, 1996; Bohm 1996) é retomado nos romances dos anos noventa com outra tetralogia em que Banville transita pelas fronteiras da Literatura e da Pintura – The Book of Evidence (1989), Ghosts (1993), Athena (1995) e The Untouchable (1997); e na primeira década do século XXI, em que dialoga com outros campos do conhecimento– Eclipse (2000), Shroud (2002), The Sea (2005), The Infinities (2009) – e outros gêneros, escrevendo uma trilogia com o pseudônimo de Benjamin Black – Christine Falls (2006), The Silver Swan (2007) e The Lemur (2008) – em que desconstrói o gênero do romance policial. Em sua incursão pelo teatro, ele reescreve The Broken Jug (1994), uma tradução da peça de Heinrich Von Kleist, e God’s Gift (2000), uma versão do Amphitryon, de Von Kleist. Baseada na proposta de David Bohm (1992) que explora a forma 1
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em que o pensamento molda nossas percepções, significações e ações diárias, o objetivo deste trabalho será verificar como o conhecimento é mediado pela forma, nas duas primeiras décadas em que John Banville se reafirma como escritor proeminente. Partindo da hipótese que o movimento (o caos) é parte da forma e a modela, focalizaremos como o escritor transita entre diversas representações discursivas para analisar suas transformações e identificar as novas formas estéticas que vão além da experiência da “modernidade líquida” (Bauman), em que a identidade se configura dentro de uma dinâmica do transitório, questionando a linguagem, o contexto, o tempo e o próprio ser humano. A primeira tetralogia foi escrita segundo os princípios da tetralogia grega, três tragédias e uma sátira, sendo The Newton Letter a sátira. Banville questiona os processos das sínteses criadas pelas revoluções científicas para encontrar outros caminhos na procura de uma visão epistemológica da arte literária. Elas provocaram novas concepções de mundo, a formação de novos significados no campo do conhecimento, influenciando outros campos e originando novas vertentes no reino da ficção. O escritor desconstrói o antagonismo ilusório que vê na ciência e na literatura práticas discursivas opostas: uma objetiva-descritiva, a outra, subjetiva-poética. Afirma que a natureza dos dois processos criativos se encontram: signos e imagens aparecem na mente do cientista e do artista, formando estruturas de significação que a linguagem traduzirá, ordenada e inteligivelmente num contexto que espelha o caos da origem. Percebe-se que ambos os campos constroem um paradigma da realidade; ambos tem por objetivo representar, controlar a natureza no sentido de descrever o universo (o físico e o humano) para formar e gravar o conhecimento do mundo. Ele é uma construção da mente, seja do cientista ou do artista. Se só se pode conhecer as leis dos fenômenos, e não sua essência, o escritor está interessado na ideia, na ordem dos atos, e não em definir como eles realmente são, já que sua essência não pode ser apreendida. A “verdade” científica e ficcional é demonstrada com um discurso metafórico nos dois primeiros romances e se questiona tanto o que Umberto Eco chama de metáforas epistemológicas – o Sol nasce, o Sol se põe, 156
afirmações falsas que descrevem os fenômenos naturais – quanto o significado da ficção. Essas verdades, defendidas pelos diferentes campos do saber deixam seu estado de probabilidade para se tornarem predizíveis com a concepção mecanicista de Newton. Mas em The Newton Letter, essas verdades absolutas, nas quais o cientista baseia sua teoria, entram em conflito quando influenciadas pelo contexto social, para logo se relativizarem em Mefisto. As sínteses científicas são transferidas, analogicamente, para o universo da ficção, ocorrendo um mapeamento dos discursos por meio da forma, o que revelará a relação entre linguagem, experiência e a impossibilidade daquela ser cópia fiel da realidade: a essência será revelada apenas por um “flash” intuitivo e transformada em conhecimento “relativo”, “mediado” pela forma. Segundo Banville, no sentido Heideggeriano, a forma “intuitiva” de uma obra de arte está antes e depois do livro ser escrito, tornando-se uma condição “sinequa-non” de trabalho do artista. Kepler será o livro por excelência que exalta a forma, o princípio determinante de toda verdadeira obra de arte. O autor apropria-se do lema de Kepler cientista, “In the beginning is the shape”, para indagar, especialmente no último livro da tetralogia, Mefisto, se o caos surge da forma ou o caos é parte da forma. Apresentaremos como exemplo a construção do segundo romance da tetralogia que está baseada na própria teoria de Kepler cientista (1571-1630). Ele afirmava que, entre os seis planetas do sistema solar conhecidos na época, poderiam ser inseridos os cinco polígonos geométricos regulares. Esta forma se reflete na estrutura do romance e é justificada na carta ficcional escrita por Kepler personagem a Von Hohenburg em que revela que antes de ter conhecimento claro do conteúdo de seu livro, ele já tem concebida a forma. Em entrevista, Banville afirma essa síntese na arte de escrever, uma síntese entre o misticismo, a intuição e o ato empírico de escrever, que se assemelha, por analogia, à nova síntese pitagoriana proposta por Kepler cientista: o misticismo e a ciência; a imaginação e o raciocínio. Kepler, em seu livro Harmonice Mundi foi o primeiro e último a tentar explicar o segredo do universo numa síntese geral que abarcava a geometria, música, 157
astrologia, astronomia e epistemologia. Segundo Koestler, depois dele, há uma fragmentação da experiência “a ciência se divorcia da religião, a religião da arte, a substância da forma, a matéria da mente”. (Koestler The Sleepwalkers, 389). Banville reinterpreta aquela síntese no mundo da ficção e segue, como Kepler, o instinctus divinus na construção de sua obra de arte. Ele constrói o romance em cinco partes. Cada uma representa um dos cinco corpos geométricos e leva o título dos livros publicados pelo cientista: “Mysterium Cosmographicum” (1596), “Astronomia Nova” (1609), “Dioptrice” (1614), “Harmonice Mundi” (1619) e “Somnium” (1634). O espaço e tempo textuais de cada capítulo possuem a mesma duração e são simétricos, e o número de capítulos de cada parte corresponde ao número de lados de cada um dos cinco polígonos: Na parte I há seis capítulos representando o cubo inserido entre as esferas de Saturno e Júpiter; a parte II apresenta quatro capítulos, o tetracaedro ou pirâmide, entre as esferas de Júpiter e Marte; na parte III há doze capítulos, o dodecaedro, ntre as esferas de Marte e Terra, na parte IV há vinte capítulos, o icosaedro, entre Terra e Vênus; na parte V há oito capítulos, o octaedro, entre Vênus e Mercúrio. Esta divisão que parece tão técnica e oposta a determinado conceito de beleza tem um significado semiótico. A obra, construída a partir da forma, mostra a passagem da ciência tradicional para o início da ciência moderna; a transição de uma ciência que mostrava o produto da observação da Natureza para outra que abria o caminho para sua explicação. Assim como em Harmonici Mundi, o jovem Kepler defende uma verdade unificadora, entre a mente de Deus e a mente humana; é a geometria “divina”, a qual existe antes da Criação, que revela as verdades últimas e eternas. O eco desse misticismo é recriado por Banville na voz de Kepler aluno e depois de adulto; ele desenha paralela e cuidadosamente sua narrativa tomando como ponto de partida as três leis de Kepler que se referem à orbita elíptica traçada pelos planetas, a sua velocidade irregular quando se acercam ao sol, e a relação entre o tempo que o planeta demora em dar a volta ao sol e a sua distância deste. A narrativa da primeira parte do romance é circular, refletindo a teoria coperniciana de que os astros giravam 158
em torno do sol em círculos perfeitos. O centro é o questionamento do fato de ser a verdade incidental enquanto a harmonia é o todo. Esse avanço, retrocesso e catalização do tempo é logrado por meio de flashbacks e foreshadowings, ou também por prolongações do presente da narrativa. A desordem política e familiar é parte do caos que atiça sua mente tal como as mortes de seus filhos recémnascidos, o relacionamento com sua primeira esposa, as mudanças políticas, causando perseguições religiosas e seu exílio. Na segunda parte, “Astronomia Nova” retrata a descoberta de que a velocidade dos astros não é uniforme e Banville reproduz suas acelerações e desacelerações; a narrativa deixa de ser circular e o questionamento de uma verdade inquestionável é o centro deslocado, reflexo da nova teoria científica. Esse centro deslocado que questiona a vida e a morte na terceira parte intitulada “Dioptrice” é um retrocesso/introjeção ao passado, deformado ou engrandecido pela refração da luz da memória, dando novos significados ao presente do Kepler fictício. A vida pessoal é vista através de diversas lentes, que ora a deforma, ora a sublima, mostrando o relacionamento caótico com sua primeira esposa, a sublimação de Regina, filha do primeiro matrimônio de sua esposa, e de Freidrich, seu filho predileto que morre aos seis anos de idade. Os flashbacks são como reflexos das estrelas, com diferentes graus de luminosidade, inconstantes, aparecendo e desaparecendo com rapidez entre as nuvens do olvido e do passado. Porém, são as memórias ligadas às atividades esotéricas de sua mãe que exercem efeitos “tran-aparentes,” aumentando ou diminuindo a importância deles com respeito ao caos que está sempre presente na sua vida. Na quarta parte, Harmonici Mundi, o escritor revisita o vazio entre o significante e o significado e faz uma mudança radical do ponto de vista e do discurso. A narrativa é epistolar. São vinte cartas que ocupam o mesmo espaço textual sendo as dez últimas o reflexo de uma imagem no espelho, sua re-apresentação. O tempo avança de 1605 até 1612, para logo retroceder linearmente até 1605. As pessoas a quem estão endereçadas são as mesmas e o centro continua deslocado aparecendo nas cartas a Röslin (na quarta e décimo-sétima). Ali se reconhece a presença de um instinctus 159
divinus, uma iluminação especial, na interpretação dos fenômenos celestes, onde o ritmo, a harmonia e também a desordem são válidos. É o último livro de Kepler Somnium que serve de modelo para Banville mergulhar numa narrativa, como se fosse de ciência ficção, onde a realidade se mistura com o imaginário improvável, descrições científicas com fatos históricos desconexos, como se estivessem acontecendo num sonho. É nesse final que o Kepler fictício, como Copérnico, vivencia a revelação final: percebe antes da morte o segredo da vida, o significado dos sonhos, para nunca morrer. Kepler cientista escreveu esse livro uns vinte anos antes de sua morte e permanecia como fragmento, com notas científicas acrescentadas esporadicamente. O livro, publicado postumamente, começa com alusões autobiográficas e narra as aventuras de um menino, chamado Duracotus, que morava com sua mãe Fiolxhilda na Islândia. Esta possuía poderes mágicos e após a volta do filho que esteve estudando cinco anos com Tycho Brahe numa ilha, conjurou os demônios de Lavânia para que os levasse numa viagem à lua. Kepler cientista manipula a fantasia e a realidade, descrevendo a superfície do planeta, seus habitantes, as formas de vida, e explicando simultaneamente as leis físicas e as dificuldades de respiração pela propulsão da nave. Ele postula o choque da aceleração, o conceito de zonas de gravidade zero e se aproxima ao conceito de gravidade universal. Segundo Koestler foi o primeiro trabalho de ciênciaficção no sentido moderno. “Somnium” se configura como a própria síntese estética de Banville em que justapõe o mundo interno da fantasia criativa do cientista a um mundo externo de contingências diárias (Kearney 1985). A análise deste romance revela como o escritor, espelhado na teoria de Kepler, estuda o poder da forma na arte de escrever. Ele sublima a forma, ao mesmo tempo que a desconstrói internamente, permanecendo o arcabouço da forma geométrica fictícia para revelar sua questionabilidade. Produz a colagem arqueológica dos conceitos científicos numa obra de arte em que o leitor, observando a forma, questiona e problematiza o conteúdo. Banville vai além dos limites do não representável, para superar a estética pós-moderna 160
e subvertê-la, numa busca constante de “novas sínteses” que deem sentido mais amplo ao não representável. A síntese do misticismo e o empirismo presentes na obra de Kepler cientista, transformam-se numa síntese estética, onde a forma intuitiva de uma obra de arte como Kepler, “imposta de fora” e inviolável, se funde com o tema e outras formas de narrar. Banville retrata na sua arte os grandes dilemas do escritor por meio da narrativa ficcional da vida dos cientistas: Copérnico e seu dilema entre a aparência e a realidade, Kepler e sua intuição instintiva, Newton e sua crise dos valores absolutos, os cientistas contemporâneos encabeçados por Einstein e seus sucessores, com as teorias da relatividade do tempo e do espaço, do caos e da ordem provocada pelo acaso, refletem a necessidade do questionamento da realidade como construção. Só podemos conhecer as leis dos fenômenos e não sua essência; da mesma forma acontece no campo da teoria do romance. Na seguinte tetralogia, Banville entra nas “sombras” do inconsciente e no mundo interno do sujeito para revelar os vórtices do pensamento e questionar os eus múltiplos, as diversas possibilidades e a presença do caos dentro da ordem aparente do ser humano, partindo da subversão dos pressupostos do autêntico e do real. Quadros de pintores, reconhecidos ou imaginados, apresentam o leitmotiv desses romances e se tornam um meio para revelar o processo de percepção de uma obra de arte e os efeitos de sua sublimação. Analisarei o primeiro livro, The Book of Evidence, como exemplo. Banville escreve sobre Freddie Montgomery, ex-universitário que abandona seus estudos em ciência (reminiscência da tetralogia anterior) e se torna um assassino ao roubar um quadro de autoria contestada, “Portrait of a Woman with Gloves,” o qual é abandonado numa vala após ter matado a mulher a golpes de martelo. O escritor usa o recurso literário de um quadro primeiramente atribuído a Rembrandt e a Frans Hals, e que na época da escrita do romance afirmava-se ser de Vermeer (recentemente descobriu-se ser de Gerrit Dou, 1613-1675), para que o narrador explique a autoria do crime cometido ao ter consciência dos múltiplos eus que o 161
compõem. Sua vida é observada de vários ângulos, como se fosse um holograma do universo humano, uma imagem criada pela mente, contendo tanto a matéria quanto a consciência, como se elas estivessem fundidas num único campo. A personagem escreve uma auto-defesa revertida que dirige ao juiz e ao júri, narrando detalhes do dia-a-dia porque mesmo não sendo evidenciais tornarse-ão evidência condenatória: a essência de seu ato criminal foi a falta de imaginação – não imaginou com vida a empregada que flagra o roubo, assim como o retrato tinha adquirido vida na sua imaginação no ato sublime do olhar. Freddie se detém nesse efeito do olhar quando descreve o retrato e dá vida ao invisível. Há distanciamento e desfamiliarização nesse ato de sublimação da obra de arte. O observador é arrastado pelo olhar e vive o processo de incorporação e reconciliação com a obra por meio da percepção. Banville destaca a interação entre observador e observado: o olhar de um interage com o olhar do outro para revalidar a presença de ambos no mundo visível. A experiência de Freddie que demonstra um estado alterado de consciência representa uma experiência transpessoal no despertar da consciência estética. Se The Book of Evidence trata do mundo tal como é percebido pela imaginação artística, e Ghosts trata-o tal como é criado pela imaginação artística, Athena e The Untouchable trazem uma variável das explicações estéticas e políticas na transitoriedade do mundo. O autor cruza as fronteiras da literatura e da arte pictórica, além dos gêneros discursivos oferecendo histórias não lineares e semelhantes ao romance policial, que lembram ao leitor suas primeiras publicações, Nightspawn e Birchwood. Ele revela, além da interação entre as diferenças das artes (a expressão verbal que se utiliza de signos arbitrários e convencionais e a expressão pictórea que usa imagens de signos naturais), uma interação de discursos representativos de práticas sociais. Por exemplo, em The Book of Evidence, existe a reversão do discurso da lei, sendo a justiça e a verdade objetos de análise. Em Ghosts, predomina discurso e tom surrealistas onde os limites entre o sonho e a realidade são superados, transformando-se numa realidade absoluta, a surrealidade. As personagens que naufragam na costa da ilha 162
onde se encontra Freddie Montgomery após ter cumprido pena na prisão, parecem ser retiradas propositalmente do quadro “Gilles” de Antoine Watteau (Jean Vaublin na ficção). A técnica de Watteau em que apresenta um número infinito de pontos de vista do mesmo objeto observado, a sua recepção, o retrato das ausências, os estudos fragmentados das partes como desenhos preparatórios para quadros posteriores de temas mitológicos ou históricos, o rico vocabulário visual típico do rococó, a instantaneidade capturada e transformada em durabilidade, tudo isso será reproduzido no campo das palavras, não só na temática, mas também no nível discursivo. Ghosts é um retrato do estático em movimento – o passado acabado, irreversível, tomando vida no presente – e, vice-versa, a vivência capturada e congelada pelo olhar. Banville segue o princípio da perspectiva, onde tudo está centralizado no olhar do observador e no ponto evanescente do infinito. O observador perde sua substancialidade e assemelha-se aos fantasmas de seus múltiplos eus. Os diferentes enfoques do objeto retratado – a sobreposição da obra de Vaublin com a recriação fictícia do crime e da vítima – são estudos fragmentados do real que formarão parte dos quadros que representam os mitos em Athena, quadros de autoria inventada – os nomes de pintores fictícios são formados pelas múltiplas reordenações das letras do nome do escritor John Banville. Em The Untouchable, o duplo espião da guerra fria que era curador das obras de arte da rainha representará as tensões e múltiplas identidades (algumas delas escondidas, como sua homossexualidade) não para dar soluções às ambiguidades das narrativas, mas para oferecer possíveis alternativas de percepção, que explicariam a falta de limites entre a loucura e a não loucura, a vida e a morte, o real e o imaginário, as aparências de identidades às avessas, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável sem cair nos opostos do estruturalismo. Banville representa a experiência da “modernidade líquida” (Bauman), em que a identidade se configura dentro de uma dinâmica do transitório, questionando a linguagem, o contexto, o tempo e o próprio ser humano nas suas camadas mais profundas.
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Conclusão A arte da escrita contemporânea se encontra num ponto de mutação em que interroga as representações de sistemas cristalizados, indaga como as relações intersubjetivas alteram as identidades e subjetividades, e reestrutura o imaginário dos homens. Banville, ao propor a interação entre literatura, ciência, história, filosofia, psicologia e arte mostra a necessidade de romper com a estagnação compartimentalizada do pensamento humano. Essa proposta obriga a criação de um sistema conceitual, de estratégias argumentativas que utilizam figuras de linguagem que adquirem novos significados no campo literário. Partindo do princípio atual de que os processos do pensamento humano são altamente metafóricos, independentes do campo em que se atua, e que a linguagem é um meio de comunicação do conhecimento, percebe-se que tanto o escritor como o leitor são agentes de um novo diálogo entre o ser humano e a natureza, provocando uma mutação na visão de mundo. Banville propõe uma visão sistêmica da realidade respeitando a sabedoria da natureza, as ilusões que ela gera, o fluxo do tempo e a existência do caos, aliados a uma dinâmica de auto-organização do pensamento. No último livro da tetralogia das revoluções científicas ele mostra a vitória temporária do caos sobre a aparência da ordem, mas ela é temporária porque esse estado é mais uma construção da mente humana, carregada de responsabilidade ética. As ideias de instabilidade, flutuação, irreversibilidade mostram o poder de escolha do ser humano nas bifurcações da vida; o indivíduo pode alterar o determinismo de um sistema globalizador configurando-se no espaço do transitório. Portanto, os discursos da ciência e da ficção se encontram no campo conceitual, na primazia da imaginação e da intuição, durante o processo criativo, no uso do poder da persuasão, na presença do componente subjetivo, na auto-referencialidade, no poder da metáfora, nas pressões exercidas pelo contexto social, econômico e ideológico, e na formação do conhecimento. A literatura nascente que transita pelas fronteiras da ciência e interage com outros campos do conhecimento, cruzar-se-á com outras formas de narrar, 164
e o ponto de intersecção será um “ponto de mutação” (Capra 1982) regido pela necessidade do contexto, do tempo e do acaso. Essa mutação revelará a nova síntese no campo da arte, a transformação da pedra bruta, numa obra (uma escultura), que captará o temporal e o eterno, o movimento e o estático, a ordem e o caos, como propõem Prigogine e Stengers na sua nova síntese científica. As imagens das aparências refletidas no espelho de Copérnico e o caos por trás dele, produzirão não somente a multiplicidade da realidade como também a fragmentação da psique do observador. Para negociar novos significados nesse plano, Banville usa como modelo o sistema da arte pictórica e comprova que a percepção é o único elo entre o real e sua representação. Ele focaliza a síntese interativa entre observador e observado onde a matéria e a consciência se fundem revelando o todo, mesmo que ele esteja fragmentado. A presença dos fantasmas é o terceiro grau de representação referindo-se à tarefa do escritor que se encontra dividido entre ser criador e ser censurador, o eu intuitivo que experimenta a escrita como criação subjetiva e o eu analítico que se distancia do que escreveu para revisá-lo dando nova forma ao material. Essa fase de representação vem contrariar a primeira fase, a da experiência que tem como modelo o sistema natural, e a segunda fase, a da abstração matemática. Usando vários discursos que tem como alvo o verdadeiro e o falso, Banville mergulha na face escura do ser humano, revelando a existência do eu múltiplo que questiona a realidade nos vórtices do pensamento e no fluxo da vida. A proposta de Banville de uma síntese estética nessa fase do processo de sua carreira de escritor, não é uma união dos opostos. É transformá-los em não-locais, atemporais e ao mesmo tempo transitórios para que se articulem simultaneamente no espaço da criação, sendo a escrita o espaço mediador. Essa síntese estética analisa os limites da representação e apresenta a junção entre “tempo acorrentado” próprio do fazer filosófico e o “tempo passando” próprio da experiência. Ele apresenta a função da arte aberta que reflete a descontinuidade dos fenômenos num mundo que não consegue encerrar sua imagem unitária enquanto percorre as fronteiras da imaginação e da percepção. 165
Referências bibliográficas Bauman, Zygmunt. Vida em fragmentos. Sobre a ética pósmoderna. 1995. Trad. Alexandre Wernek. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. Bohm, David. On Creativity. London & New York: Routledge, 1996. Capra, Fritjof. The Turning Point. Science, Society and the Rising Culture. NY: Bantam Books, 1983.
Hayles, N. Katherine. The Cosmic Web. Scientific Field Models & Literary Strategies in the 20th Century. Ithaca & London: Cornell University Press, 1984.
Kearney, Richard. Transitions. Narratives in Modern Irish Culture. Manchester: MUP, 1988. Koestler, Arthur. The Sleepwalkers. A History of Man’s Changing Vision of the Universe. London: Hutchinson, 1959.
Praz, Mario. Mnemosyne. The Parallel between Literature and the Visual Arts. USA: Princeton University Press, 1970.
Prigogine, Ilya; Stengers, Isabelle. Order Out of Chaos. Man’s New Dialogue with Nature. London: Flamingo, 1984.
Steiner, Wendy. Pictures of Romance. Form against Context in Painting and Literature. Chicago & London: The University of Chicago Press, 1988.
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A TRANSPOSIÇÃO DE BIOGRAFIAS PARA O PALCO EM ANDERSEN’S ENGLISH, DE SEBASTIAN BARRY
Munira H. Mutran1 Introdução Em sua obra ficcional e dramatúrgica, o escritor irlandês Sebastian Barry emprega elementos autobiográficos ao mesmo tempo que faz uma releitura da História, unindo memórias do passado de sua família em acontecimentos ocorridos na Irlanda, na Inglaterra e nos Estados Unidos, a fim de compreender o seu presente. O empenho de Barry em dar forma à História é uma das características de sua obra; a esse respeito Roy Foster, historiador e crítico, autor da biografia de W.B. Yeats em dois volumes (1997 e 2003) observa que “Barry escreve peças históricas de uma maneira especial: ele visa resgatar as figuras incomuns de uma família irlandesa ampliada ao costurar suas vidas no tecido esgarçado da história do país (1998, 1). Por outro lado, Fintan O’Toole percebe que o objetivo do dramaturgo, no ato de revisitar a História, é fazer conhecer “as ambiguidades , contradições e elos perdidos de histórias não contadas” (1997, X). Algumas peças e romances de Barry expõem épocas significativas para o autor num movimento facilmente perceptível que parte da segunda metade do século XX em direção a passados mais longínquos. Assim, Our Lady of Sligo, de 1998 acontece em 1953; The Steward of Christendom, de 1995, em 1932; The White Woman Street, de 1992, em 1916; The Only True History of Lizzie Finn, de 1995, em 1900; Prayers of Sherkin, de 1990, na década de 1890. O dramaturgo seleciona as épocas e lugares por razões específicas. Por exemplo, a atmosfera de colapso de um mundo utópico de Prayers of Sherkin poderia, segundo Fintan
1
Universidade de São Paulo - USP.
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O’Toole, ser uma alusão “à queda do comunismo e ao fim da Guerra Fria” (1997, X). Em romances recentes, como em A Long Long Way (2005), além de tomar de empréstimo vários elementos de sua própria obra (poesia, drama e ficção) que registra relatos da história de sua família bem como da história da Irlanda, numa teia que sugere o passado presentificado e, no entanto, fragmentado em sua cronologia, o escritor examina o período que vai do fim do século XIX até a guerra de 1914 – 1918. Barry frequentemente retorna ao século XIX. Quais seriam os motivos de sua atração por aquela época? Em uma carta onde sua referência a Dickens é significativa para a interpretação de Andersen’s English, ele explica:
Não sei exatamente porque pousei como um pássaro nestas rochas vitorianas [...] Tem algo a ver com a ideia do meio do século de que a concepção do herói britânico estava se diluindo devido ao simples conhecimento da história real, mas também devido ao esforço de um homem como Dickens que, embora tentando manter vivo o heroico, deve ter pressentido no fundo de seu coração que era uma ideia perdida. Assim, ele abandonou a ideia do Selvagem Amável pelo Selvagem Assassino. 2
Em sua ânsia de compreender o mundo a sua volta Barry considera a biografia, que certamente tem íntimas ligações com a História, um meio essencial para se entender o passado. Whistling Psyche (2004) mostra no palco o extraordinário encontro entre Florence Nightingale e o Dr. James Barry (um parente distante do autor) em uma sala de espera de uma estação de trens. Como a peça se baseia em pessoas reais, ela pode ser chamadas de “bioplay” ou “drama biográfico”; tanto isso é verdade que Barry insere na peça publicada os créditos devidos às biografias que contribuíram para a criação das duas personagens, e de seu papel na história do Império Britânico: The Perfect Gentleman: The Remarkable Life of Dr. James Miranda Barry (1977) de June Rose; Florence Nightingale: 1820 – 1910 (1950) de Cecil Woodham-Smith; Eminent Victorians (1966) de Lytton Strachey. Tais fontes são relevantes na medida em que
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Trechos traduzidos do inglês e do francês pela autora deste artigo. 168
servem para indicar como ocorreu o processo de transposição das biografias para o palco. Quando Barry deseja discutir o presente, como em Hinterland (2002), sobre a biografia do Primeiro Ministro irlandês Charles Haughey, a abordagem consiste na prática do que Barry descreve como “sombra de outras obras”; por este motivo é possível discordar daqueles que vêem apenas um “drama doméstico” em Hinterland; parece-me que a peça denuncia eternos conflitos trágicos em uma família, em sutis alusões ao mito, ignoradas quase sempre pela crítica, escandalizada com a ideia de se discutir a vida de Haughey no palco, enquanto todos os envolvidos estavam vivos, vendo em Hinterland apenas as características biográficas mais óbvias. A Biografia Para examinar o processo de transposição das biografias de Dickens e Andersen para a peça (um dos objetivos deste artigo) são necessárias algumas considerações sobre o gênero biográfico. Em “Limites da Biografia” e “Perenidade da Biografia” Antonio Candido menciona suas várias funções. Uma delas é mostrar o valor psicológico fundamental como via de acesso à personalidade de outro homem, dando no espaço de poucas páginas o vário curso de uma vida em que a nossa se projeta, como aspiração ou nostalgia (1999, 63). Outra função seria a educativa, isto é, a biografia como “paradigma de valores encarnados em uma determinada existência, servindo de modelo e estímulo (1999, 63). Em terceiro lugar, ainda de acordo com Candido, a biografia tem o “caráter de método de interpretação histórica” (1999, 63), que pode ser perigoso visto que contém o risco de simplificação”. Lembra o crítico, porém, um perigo mais sutil que consiste na relação que se estabelece entre biógrafo e biografado com a consequente “deformação subjetiva (1999, 64). Barry, como vemos, consegue desvencilhar-se das funções de valor psicológico e educativa, e não incorre nos perigos da simplificação ou da deformação subjetiva. Volta-se para a biografia como método de interpretação histórica mas não cai na armadilha de “dissolver o indivíduo no tempo”, outro perigo apontado por Candido que nos 169
informa que “o biógrafo de inclinação literária inclina-se por recriálo como personagem fictícia” (1999, 64). Barry possui as duas vocações: embora com aparente pendor para a biografia literária, a vida retratada insere-se definitivamente em seu tempo e, como resultado, surge a história do indivíduo e de sua época por meio de inegáveis recursos literários. Alguns pontos frequentemente levantados a respeito da biografia incluem a questão da “fidelidade” aos fatos e suas relações com a História e a ficção. Até o século XIX a biografia não era considerada uma forma de arte. Foi Virginia Woolf que trouxe para a discussão a ideia de arte: “Um livro de Trevelyan ou de Lockhardt [...] é sobretudo um documento; um livro do Sr. Strachey é acima de tudo, uma obra de arte (cit. Shelston, 1977, 62). A própria Virginia Woolf explorou esta nova arte em ensaios biográficos, em sua biografia de Roger Fry, e em Flush, biografia do cãozinho de Elizabeth Barrett Browning, trabalhos que lhe deram a oportunidade para refletir sobre os problemas de contar uma vida (mesmo que seja de um animal). Afirmou, então, que para Strachey, “ao recriar as figuras vitorianas de Eminent Victorians a fim de mostrar como tinham sido realmente, era uma tarefa que exigia dons semelhantes aos do poeta ou do romancista e, no entanto, não exigia dele o poder criativo que lhe faltava” (Woolf, 1942, 190). Assim, ao descrever como Strachey criou a Rainha Vitória, Woolf fornece pistas para as dificuldades que podem ser enfrentadas e vencidas pelos biógrafos: Sobre a Rainha Vitória tudo se conhecia. Tudo que ela fazia, quase tudo o que pensava era do conhecimento público. Ninguém nunca foi de tão perto e tão exatamente examinada, e autenticada quanto a Rainha Vitória. O biógrafo não podia inventá-la porque algum tipo de documento estaria sempre disponível para contestar a invenção. [...] Mas no futuro, a Rainha Vitória de Lytton Strachey será a Rainha Vitória, assim como o Johnson de Boswell é hoje o Dr. Johnson. As outras versões vão desvanecer-se e desaparecer (1942, 191).
Seria esta Rainha de Strachey verdadeira? Ele próprio pensou 170
muitas vezes nesta questão da verdade ao escrever inúmeras resenhas de biografias para o “Spectator”:
A verdade não interpretada é tão inútil quanto o ouro enterrado; e a arte é a grande intérprete. Somente ela é capaz de dar unidade a uma vasta multidão de fatos, esclarecendo, suprimindo, dando ênfase e iluminando os lugares escuros com a tocha da imaginação. Mais do que tudo, é capaz de lançar sobre o material histórico o fascínio de uma revelação pessoal [...] Na verdade, toda a história digna deste nome é, de certa maneira, tão pessoal quanto a poesia, e seu valor, afinal, depende da força e da qualidade da personalidade detrás dela. (cit. Holroyd, 1968, 262).
Ainda tentando entender a biografia, Strachey lembra em seu famoso Prefácio a Eminent Victorians que os dois deveres do biógrafo, “excluir tudo que é redundante e nada do que é significativo” e “manter sua liberdade – não é seu dever elogiar” (1966, 8); cita também, para concluir suas reflexões as palavras do mestre (que ele não informa quem é): “Je n’impose rien; je ne propose rien: J’expose”. Na muito extensa discussão sobre o gênero biográfico não se pode deixar de empreender esforços para defini-lo; escolhemos a definição de André Maurois, autor de Aspects de la Biographie e de vários estudos biográficos importantes: Um belo retrato é, ao mesmo tempo, um retrato fiel e uma transposição artística da realidade. É exato que a verdade tem a solidez da pedra e que a personalidade tem a leveza do arco-íris; mas Rodin, e antes dele os escultores gregos, algumas vezes conseguiram dar ao mármore as curvas fugidias e as luzes cambiantes da carne (1928, 42).
A peça sobre Dickens e Andersen Em Andersen’s English, o escritor escandinavo visita o romancista inglês Charles Dickens em sua casa em Gad’s Hill. Imagina-se, a 171
princípio, que a peça tratará deste encontro entre os dois gigantes literários cujas vidas foram de certa forma semelhantes: tanto Dickens, nascido em 1812, quanto Andersen, em 1805, tiveram infância e adolescência infeliz e de extrema pobreza; tornaram-se ambos internacionalmente famosos na idade adulta devido ao seu grande talento e imaginação criadora. Sobre o universo criado por eles, Barry pergunta: “Foi Dickens que criou o mundo à luz do dia? Foi Andersen que inventou o mundo das sombras?”, (Programa da peça), apontando para as diferenças entre seus temperamentos e visões. Dickens, homem de enorme vitalidade e de “vontade férrea” contrasta com o escritor dinamarquês que parece, talvez pelas dificuldades em expressar-se em inglês, ansioso, fraco, cheio de autocompaixão e muitas vezes ridículo. Por que Barry escolheu tais biografias como ponto de partida para sua peça de 2010? A par de sua já referida fascinação pelo século XIX, responsável, segundo ele, pelo que veio a acontecer no século XX, Barry deseja explorar as dificuldades do artista em enfrentar a realidade diária. Além disso, as questões mais polêmicas da sociedade vitoriana e do Império, que certamente tiveram desdobramentos na contemporaneidade, atraíram o dramaturgo. O encontro, porém, não é o ponto central da peça. Barry precisava de alguém como Andersen, um estrangeiro sem conhecimento do idioma inglês (fato já sugerido no título da peça), mas ao mesmo tempo um artista sensível cujo olhar treinado a observar a natureza humana pousaria em Dickens. O papel de observador na peça fica claro quando Andersen fala: “Não sou cego dos olhos. Eu não sei dizer em inglês, mas eu vejo, vejo. Mas não tudo. Acho haver problema em algum lugar” (81). É evidente que a complexidade das relações e dos comportamentos que Andersen testemunhou dificilmente serão elucidadas. Barry busca descobrir os “mistérios” da casa de Dickens através de Andersen: “Parecia um paraíso de corações. Suponho que percebi vagamente que havia mistérios”, diz ele em dinamarquês fluente, é claro, para Stefan, muito mais tarde. (10) 172
Usando o recurso do “concealed angle”, expressão usada por Sean O’Faolain para explicar um efeito literário que ocorre quando o foco de interesse está escondido e a atenção do leitor/expectador é desviada, Barry explora os temas das relações familiares e da incomunicabilidade entre os seres humanos através das memórias acumuladas pelo observador estrangeiro nas cinco semanas que passou em Gad’s Hill, memórias que se transmutaram em vida no palco. Uma das convenções do gênero biográfico, a de contar uma vida do nascimento até a morte é ignorada por Barry que elege apenas alguns momentos das vidas representadas e preenche as lacunas principalmente por meio dos diálogos em que se vislumbram o passado ou até algumas prefigurações do futuro. Richard Ellmann, autor das biografias de James Joyce, W. B. Yeats e Oscar Wilde, percebeu que a moderna biografia tende a retratar um momento importante na vida de um homem: “a sensação de que pode existir na vida de um escritor, ou de outros homens, um momento em que tudo é questionado e em que tudo é decidido” (1977, 7). Foi esse momento de decisões na vida de Dickens que atraiu Barry. A estrutura de Andersen’s English (peça em dois atos) baseiase em duas datas, 1870 e 1857; a primeira cena mostra o escritor dinamarquês aos 65 anos, em sua casa em Copenhagen em junho de 1870. Ao ler o jornal ele se depara, desolado, com a notícia da morte de Dickens, e conta a seu jovem amigo Stefan como gostava do amigo e de sua obra. As memórias de sua visita de doze anos atrás ainda o atormentam. Enquanto os dois lamentam a grande perda, as luzes lentamente se apagam, anunciando o fim da cena inicial. Ouve-se uma canção de Thomas Moore, poeta e músico irlandês e nos encontramos em uma sala vitoriana bem iluminada em junho de 1857. Através do ágil diálogo a peça revela-se inteira com alusões às casas, às grandes famílias, sua maneira de vestir e de comer, de falar; os tópicos de suas conversas revelam eventos políticos, como a Guerra na Crimeia, as rebeliões na Índia e a Grande Fome na Irlanda; fala-se nos livros, nas peças de teatro, nas figuras literárias da época – Thackeray, Wilkie Collins, Longfellow... tudo isso é pano de fundo para os conflitos dentro do lar, onde a 173
ilusão da família vitoriana numerosa e feliz é destruída aos poucos. Na verdade, o “paraíso” vislumbrado por Andersen é, de fato, um verdadeiro inferno. Na casa de Gad’s Hill pai, mãe, cunhada, filhos e serviçais passam por um período crucial em suas vidas. Os diversos enredos secundários, provavelmente uma espécie de homenagem ao romance de Dickens, tão recheado de histórias que se interpenetram, podem ser assim resumidos: a filha mais velha, Kate, de 19 anos, quer se casar mas Dickens proíbe a união; Walter, de 16 anos, apaixonou-se por `Aggie, a empregada irlandesa, da mesma idade, que está grávida; Dickens aos 46 anos, cheio de vida, mas com medo de envelhecer, não suporta Catherine, sua esposa de 42 anos, esgotada mental e fisicamente pelo nascimento de dez filhos e vários abortos. Queixa-se ela em um diálogo com Dickens: “Se Georgie tem me ajudado é porque eu venho me arrastando de um parto para outro” (31) E para si mesma: “Não é que alguma coisa terrível tenha acontecido, além de palavras duras, além de ser acusada de letargia. Eu própria me critico pela obesidade, por certa forma de meu corpo que causa aversão, devido ao nascimento de tantos filhos ano após ano” (39) Devido a sua “letargia” (Dickens a acusa de loucura) Georgie, a irmã, cuida de todos os assuntos da família, despertando o ciúme de Catherine. Nesta época, ao conhecer Ellen Ternan, uma atriz irlandesa de 18 anos, Dickens por ela se apaixona e seu casamento se desfaz. Não há dúvida de que Dickens é aquela “personalidade” incoerente e imprevisível ou ainda, para usar as palavras de Virginia Woolf, “de intangibilidade semelhante ao arco-íris” (cit. Shelston, 1977, 64). Dickens, o artista em luta consigo mesmo e com o mundo, ora é compreensivo e bondoso para com os amigos, ora é carinhoso com Kate e Georgie, mas muito cruel com a mulher e os filhos. Ao insistir em enviar Walter para a Índia (onde ele morreria cinco anos depois) apesar das súplicas de Catherine, ele exclama: “Não posso sustentar meu exército de sete meninos para sempre” (11). Fica evidente que seus sentimentos de justiça e solidariedade para com crianças pobres e desamparadas, mulheres decaídas, pessoas solitárias e infelizes de seus romances não se manifestam na vida real com seus próprios filhos. Barry explora bem a relação entre vida 174
e criação estética. Não reconhecemos o sensível romancista cheio de empatia por David Copperfield, Oliver Twist, Pip, Little Emily e outras personagens no homem desesperado que tenta alcançar uma integração entre tantos sentimentos. Sofrendo terrivelmente em suas relações com Catherine, muito semelhante à Dora, a esposa jovem e desastrada de David Copperfield, Dickens quer apagá-la de sua vida, como fizera com Dora, que morre logo (no romance) para dar ao protagonista a oportunidade de um novo casamento. Mas na vida real isso não é possível – os conflitos são muitos: a mudança para o quarto de vestir; sua impaciência grosseira ao lhe dirigir a palavra, as críticas injustas; a indiferença. Diante de tais cenas, Andersen percebe que as palavras e os silêncios têm um misterioso significado. Percebe também que a linguagem pode estabelecer pontes entre os seres humanos mas frequentemente é fonte de interpretações equivocadas, levando à falta de comunicação e, por consequência, aos conflitos. A rubrica que descreve o jantar da família ilustra o transbordamento de palavras que, afinal, não transmitem os sentimentos das pessoas: Dickens junta-se ao burburinho que parece música de vozes, soando cada vez mais alto, as luzes brilhando intensamente, como se a existência da família engolisse tudo, a tristeza, o tempo, as coisas reais (19).
O som discordante das vozes resulta em uma espécie de Babel onde a linguagem pode ser entendida ou não. Para ilustrar por meio das artes visuais esta confusão de sons podemos recorrer ao seguinte quadro de René Magritte, artista belga, intitulado “A arte da conversação”, de 1959.
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A incomunicabilidade resulta de um dilúvio de palavras sem significado, como no jantar, ou pior ainda, da impossibilidade de encontrar as palavras adequadas que levem à compreensão. Dickens, por exemplo, diz tristemente: “Se eu achasse palavras para lhe dizer, eu as diria” (60). E Catherine afirma para a irmã “Você me magoou tão profundamente que não consigo encontrar uma frase em inglês ou qualquer outra língua para expressar essa mágoa” (60). Por sua vez, Kate, pensando na mãe, lastima que “não consegue achar palavras para confortá-la” (57). Entretanto, para Andersen, o desconhecimento do idioma não é obstáculo para tentar expressar-se e, na maioria das vezes, não prejudica sua comunicação com a família. Por exemplo, ao chegar a Gad’s Hill, ao abraçar Dickens, ele diz: “Você – foi – estou – tão” (13). Mas ao mesmo tempo chora, emocionado, mostrando seus sentimentos. Um gesto indicando o estômago significa que não está bem, que precisa, como diz, “de um dia de simplicidade” (29). O 176
sucesso de Andersen em comunicar-se é surpreendente quando Plorn, o caçula de seis anos que o evitava, amedrontado, muda seu comportamento ao ver Andersen recortando moinhos, palhaços e outras figuras de papel. O velho e o menino, o rosto denotando imenso prazer, não precisam de palavras para desfrutar da companhia um do outro. O silêncio, como se vê, pode resultar muitas vezes em comunhão – Catherine e Andersen no Crystal Palace, “ouvindo o ‘Messiah’ de Handel, milhares de vozes cantando, a música derramando-se sobre eles, têm os rostos enlevados”; olham para “uma figura indistinta que leva uma vela acesa cuja chama a ilumina” (41). Andersen murmura: “É a Beleza, beleza, beleza” (42). A experiência da música, “linguagem” cheia de harmonia, é bem diferente dos ruídos discordantes (“humming and thrumming) do jantar. Por outro lado, o silêncio pode ser uma forma de agressão e de crueldade que assinala irritação, o desejo de ser deixado em paz, de não querer falar. Ironicamente, ainda que os habitantes do “lar feliz” falem a mesma língua, não se entendem. Walter não compreende a determinação do pai em enviá-lo para a Índia, Kate pergunta a Dickens porque maltrata Catherine tão brutalmente; Catherine repete sem cessar “não estou entendendo” nas discussões com o marido. Para Georgie ela diz: “Você não entende. Ou melhor, sou eu que não estou entendendo. Não estou entendendo” (26). Talvez para destacar a incomunicabilidade entre eles, a linguagem verbal é substituída, com mais sucesso, pela não-verbal através de um piscar de olhos, de um sorriso, olhares, um beijo, um toque no braço ou no ombro, um levantar de sobrancelhas. ‘Aggie usa frequentemente os gestos para se aproximar de Andersen e estabelecer uma relação carinhosa: ajuda-o a vestir-se, a colocar os sapatos, sorri quando não entende o que ele quer. Apesar disso, as palavras causam dor e tristeza que resultam em um duelo de palavras que ferem ainda mais: Dickens – Você vai morar em Londres e eu vou morar aqui. Catherine – Mas como seu amor por mim ainda pode existir se você planeja uma coisa destas? 177
Dickens – É possível que uma coisa como o amor não seja levada em conta em acontecimentos como este. Uma pessoa, para viver convincentemente, tem que respirar e eu não consigo respirar. Catherine – Você não consegue respirar em minha companhia? Não posso concordar com tal plano. Os meninos vão voltar da escola em poucos dias e me preocupo com a sua chegada. Há muito o que fazer. Dickens – Não precisa se preocupar. Você não os verá mais, Catherine. Você não verá nenhum deles, compreendeu? Já decidi. Seja feliz, dentro de suas possibilidades, na sua casa [não “lar”]. Catherine – E absolutamente sozinha. (78-79).
Quais as causas de tantos conflitos nas histórias que se desenrolam na peça? O foco do interesse de Barry, o artista torturado por sua infância, seus temores de envelhecimento e morte, sua vontade de viver plenamente é a causa de tanto sofrimento? Dickens descobre várias identidades que nele coexistem: “Escrevi como um demônio o dia todo, e agora estou pronto para voltar a ser humano”, confessa. (12). A multiplicidade da personagem é representada numa rubrica: “De pé, sozinho, envolto em uma tempestade de cores e de marrons e cinzentos. Música. Escuridão, música. A coruja do brejo chamando, um estranho som de sinal Morse”. Nessa citação acima o Código Morse é um emblema das dificuldades intransponíveis nas relações humanas. Um código é entendido por alguém que o conhece; a mensagem não terá nenhum sentido para aqueles que o ignoram. Dickens, o grande romancista, senhor das palavras, recusa-se a usá-las, ou a ouvi-las, ou as usa mal na vida cotidiana. Não causa nenhuma surpresa, pois, o desabafo de Kate: “Não quero que você seja o autor da minha vida” (50), isto é, não quero ser uma das suas personagens. A ambígua natureza do artista está na sarcástica pergunta de Georgie para Andersen mas que poderia ser endereçada a Dickens: “Como é possível, senhor, que a pessoa que demonstra a maior sensibilidade em seus livros venha a ser uma pessoa tão maravilhosamente grosseira?” (36). Se o romancista 178
matou Dora, jovem e linda, mas um grande fardo para David, na vida real deve ter sido muito triste para Dickens e sua família eliminar Catherine das páginas de suas vidas. A dificuldade de Dickens para lidar com seus “demônios” parece ter causado a infelicidade de todos. A escolha do observador estrangeiro, um artista, nos dá a visão do problema: “O mundo fica deslumbrado conosco mas nós absolutamente não estamos contentes com o que somos”, lamentase Andersen. (84).
A Transposição Se em Whistling Psyche Barry nos informa quais suas fontes biográficas para levar as vidas de Florence Nightingale e Dr. Barry para a peça, isso não acontece com Andersen’s English. Apesar de reconhecer que muito se escreveu sobre Dickens, ele não especifica qual fonte foi mais influente; mas falou em entrevista: “Li tudo o que podia sobre Dickens e sua família. Existe pelo menos um livro para cada um deles, livros maravilhosos. O próprio Dickens, é claro, fascinou grandes biógrafos desde seu amigo John Foster a Peter Ackroyd e Michael Slater. (Entrevista no Programa da produção de Max Stafford-Clark). Suponho que Slater teve papel relevante não só porque sua biografia de Dickens é tão fascinante e completa, mas porque também assessorou o diretor e o autor durante os ensaios da peça (créditos para ele no Programa). Slater também entrevistou Barry sobre a gênese e desenvolvimento do texto, entrevista que esclarece muitos pontos relativos à transposição. A esse respeito a pergunta que se coloca é como Barry trabalhou tantos dados sobre as pessoas reais e como as levou para a peça. Ele dá a resposta: leu tudo que conseguiu encontrar mas tentou esquecer em seguida e usou o material como se fosse seu, tomando-o como pedaços de madeira que, friccionados um contra o outro, acendem uma chama. Embora sua biografia no palco (“bioplay”) demonstre ser uma fiel reconstrução dos fatos, é evidente que na apropriação deles muitas escolhas em sua seleção, organização e coerência foram necessárias; além disso, o emprego de estratégias próprias da ficção conferiulhes novos aspectos. Interrogado sobre fato e ficção em sua peça, Barry, por sua vez, perguntou: “O fato é realmente confiável? Não 179
é a ficção uma espécie de quadro factual de um estado emocional? Não se duvida que Andersen hospedou-se na casa de Dickens; que ele sentiu grande admiração por Catherine; que Dickens se cansou do hóspede; que Walter foi para a Índia, etc, tudo isso aconteceu, de verdade. Mas minha pequena ‘Aggie foi inventada. Quase tudo é verdade, ou não inverdade, como diria Larkin. Mas é ainda mais ou menos essencial lembrar que peças de teatro são consideradas ficção” (Programa). Em “Biography in Contemporary Drama” Werner Huber observa que é comum chamar a atenção para as estratégias ficcionais da biografia:
Entretanto, não há razão para afirmar que no fluxo dos discursos fato e ficção se tornem totalmente indistintos. Apesar do fato de que um biógrafo possa empregar imaginativamente o material em suas mãos, os princípios organizadores das biografias ficcionais e não-ficcionais são claramente perceptíveis (1995, 135).
Huber explica que “escrever uma peça sobre uma vida obviamente acontece dentro das convenções formais do drama, consequentemente permitindo apenas uma ‘representação pictórica’. Além disso, os fatos biográficos são usados primeiramente como sinais, símbolos ou metonímias representando sua realidade (1995, 135). Huber conclui que “os duros fatos reais da vida em questão operam, portanto, como partes construtivas de uma estrutura estética” (1995, 135). Além da estrutura estética, a “verdade poética” (poetic truth) é muito valorizada nas peças e romances que têm como ponto de partida uma biografia. Este aspecto é examinado por Martin Middeke em sua Introdução ao livro Biofictions: “Assim, o fato que as bioficções consideram a verdade poética mais valiosa do que os relatos factuais é um eco da visão Romântica da imaginação. O que a Imaginação elege como Beleza deve ser verdade, diz Keats” ( 1999, 20). Andersen’s English baseia-se em vidas documentadas cuja história é conhecida. Ao escrever seu texto, Barry mantem-se fiel aos fatos, como ele próprio afirmou, mas aos fatos que ele escolheu 180
daquelas vidas, com o intuito de inseri-los na referida “estrutura estética” onde um dos elementos que mais denota as inevitáveis lacunas de uma biografia é o diálogo, um dos principais suportes do drama. Na maioria dos casos, as falas das personagens são reconstruídas pela imaginação do autor através de recursos dramatúrgicos próprios. A paixão de Dickens pela atriz irlandesa de dezoito anos está fartamente documentada; o diálogo dos dois, ou o diálogo entre Dickens e Catherine sobre esse assunto, só pode ser, entretanto, especulativo. As personagens de Andersen’s English são todas históricas, com exceção de ‘Aggie, criada por Barry talvez para inserir no contexto vitoriano as questões políticas, sociais e culturais irlandesas. Na construção das personagens, o mais desafiante desvio da vida não se encontra no texto, mas na produção da peça, com a escolha de um ator negro para representar Andersen. O desafio parece ter sido de confrontar o imaginário do público, cujas expectativas seriam de um Andersen loiro, de olhos azuis. Teria o diretor optado por este desvio com o objetivo de acentuar o grau de “estrangeiro” do dinamarquês? De todas as personagens, é Dickens que instiga mais intensamente a imaginação de Barry naquele momento de “cataclisma” de sua vida que Slater descreve como “no coração da peça existe um drama familiar doloroso e brutal”(Programa). Barry concorda que “existe crueldade na peça” mas diz ele, “parece-me parte da condição de estar vivo, de ser humano. E algumas vezes somos nós a infringi-la e às vezes a sofrê-la. No casamento, isso pode ocorrer em apenas uma conversa” (Programa). O dramaturgo explica como trabalhou e transpôs a vida do romancista para a peça: O Dickens de Ackroyd e Slater é um homem heroico no sentido de ter alcançado a vitória em sua vida apesar de todas as dificuldades enfrentadas [...] e seu impulso compassivo pelas reformas sociais foi em sua vida costurado como um segundo sistema de veias. Mas nesta peça, neste minúsculo parêntese, [...] ele me parece um homem possuído por uma ideia da qual não consegue se livrar, que o mataria se a abandonasse. (Programa) 181
No palco, as convenções e os recursos técnicos próprios do teatro dão corpo às pessoas históricas por meio dos atores e das luzes e cores; os objetos, texturas e sons têm papel importante na criação de atmosferas. Cenas de humor misturam-se com cenas trágicas. Ironia e símbolos são usados frequentemente no característico recurso poético do teatro de Barry. O tema do desespero perante a inexorável passagem do tempo (simbolizado pelo som dos relógios da casa) é tão importante como os da incomunicabilidade e da decadência da família como instituição tradicional. E, acima de tudo, o lado obscuro do ser humano, sua dualidade, e todas estas questões nos levam a pensar no “hoje”. A imagem mais poética, a da jovem carregando uma vela acesa (em Crystal Palace ou em Gad’s Hill) e o simbolismo do fogo na lareira, da luz do sol, das velas, em contraste com “as imensidões geladas” (frozen deeps) da peça dentro da peça, “junho gelado”, “camas geladas” e a escuridão sempre presente, reproduzem as diferentes naturezas de Dickens: calorosa, jovial, generosa e ao mesmo tempo dura, fria, misteriosa, sombria e impenetrável. Referências bibliográficas Ackroyd, Peter. Dickens. London: Vintage, 2002.
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SUISHI (AFOGAMENTO, 2009) DE KENZABURŌ ŌE – ATUALIZAÇÕES E AUTOREFERENCIAÇÕES ENTRE FICÇÃO E REALIDADE Neide Hissae Nagae1 INTRODUÇÃO Existe uma estrutura complexa em Suishi (Afogamento) que é a de se percorrer um longo período da vida de um escritor chamado Kogito Chōkō, narrada por ele mesmo, e que vai desde a sua infância até o presente da narrativa em que conta pouco mais de 70 anos de idade, em final de carreira. Comparativamente, o romance tem um tempo de narrativa curto, instaurado no verão de um único ano, ou seja, cerca de três meses, nos quais o enredo transita entre as fronteiras tênues da memória e da história, da realidade e da ficção. O narrador-protagonista é uma espécie de alter-ego do autor, Kenzaburō Ōe, agraciado com o Prêmio Nobel de 1994. A trajetória da vida de Kogito narrada no romance apresenta muitas semelhanças com a do autor: a passagem pelo curso de Letras em francês na Universidade de Tóquio junto ao francófono Kazuo Watanabe e que no romance aparece como Professor Rokusumi, nome pelo qual o seu mestre também era conhecido. Personagens como a mãe já falecida, a irmã, a esposa e os filhos são protótipos recorrentes em outras obras, assim como o próprio Kogito nas chamadas obras tardias de Ōe. Recorrente também é o cenário da floresta da vila do vale na Província de Ehime, Ilha de Shikoku, local de seu nascimento, e a residência em Tóquio. 1
Universidade de São Paulo - USP.
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No romance, percebe-se uma linha do tempo que vai desde o instante em que seu destino como escritor parece ter sido traçado por uma visão profética da mãe numa reunião familiar relatada no início da obra até o seu final em que esta termina com um desfecho inusitado. Essa linha vai sendo preenchida com fatos que seguem a narrativa cronologicamente, remetendo a tempos passados por meio de resgates de memória, citações de outras obras de autores estrangeiros e japoneses e do próprio narrador-protagonista, obras estas que coincidem com as criadas na vida real pelo autor, além de inserções de personagens e fatos históricos. O autor, desse modo, brinca com o conhecimento de seu próprio leitor, como se soubesse que ele faz parte de seu público fiel, ou fazendo com que ele também volte no tempo para preencher as lacunas de seu conhecimento, atualizando informações.
A marcação de tempo é precisa, mas diluída em função da densidade de seu conteúdo que mistura várias tramas: o mistério que envolve o romance sobre o afogamento do pai de Kogito e a mala vermelha de couro; os fatos relacionados à companhia de teatro que encena as peças do narrador-protagonista e os problemas pessoais e familiares, alinhavados pelo poema epígrafe de T.S Eliot. A trama, em maior ou menor grau, deságua na contestação à figura de poder e dominação que é o Estado. O AUTOR – Kenzaburō Ōe (31/jan/1935-)
Natural de Uchiko-chō, antiga vila Oze, Kita-gun, Província de Ehime, Kenzaburō Ōe descende de uma família de samurais que tinha por ofício o beneficiamento de mitsumata (Edgeworthia papyrifera; paper bush), matéria-prima do papel moeda. É nessa vila afastada na ilha de Shikoku que ele passou a infância e a juventude como 3º filho homem de sete irmãos. No final da Segunda Guerra Mundial, aos nove anos de idade, era o homem mais velho da família, pois perdera o pai, e os irmãos mais velhos estavam fora de casa. A irmã mais velha morava na Manchúria com um tio comerciante de antiguidades; o irmão mais velho, aos 18 anos, estava sendo treinado para integrar o corpo de pilotos aéreos da Marinha, e o 186
segundo irmão mais velho estudava em um Colégio Comercial fora da cidade. Em sua casa restaram com a mãe, ele, a segunda irmã mais velha, a irmã mais nova e o irmão mais novo.
Sua juventude foi vivida no período de ocupação americana. Com 10 anos, ingressa no Ginásio, (Chūgakkō) já regido pelo novo sistema de ensino do pós-guerra. Ele prossegue com os estudos no Colégio Kenritsu Naishi Kōkō, na cidade vizinha e, a partir do 2º ano, foi transferido para o Colégio Higashi Kōkō, em Matsuyama, capital da Província de Ehime. Nela conheceu Jūzō Itami, amigo que se tornou seu cunhado, e famoso cineasta japonês. Na época do colegial conheceu as ideias relativas à tolerância e intolerância do francólogo Kazuo Watanabe2 e decidiu estudar em Tóquio para tê-lo como mestre para a vida inteira.
Em 1954 ingressou no Curso de Letras Francesas da Universidade de Tóquio, que concluiu em 1959, e logo começou a dedicar-se à dramaturgia. No mesmo ano, sua peça recebe um prêmio da Faculdade e no ano seguinte também. Em 1955 publicou Kazan (Vulcão) na revista Gakuen N. 9 e, em 1957, atraiu a atenção do crítico Ken Hirano com a obra Kimyō na Shigoto, (Tarefa Insólita) 3 publicada no jornal da Universidade de Tóquio (Tōkyō Daigaku Shinbun).
Ainda em 1957 publicou A Arrogância dos Mortos4 (Shisha no Ogori) e em 1959 recebeu o Prêmio Revelação Akutagawa com Animal de Cria5 (Shiiku), dedicando-se à carreira literária desde então. Kenzaburô Ōe é inserido na Literatura dos anos 1950 juntamente com Shintarō Ishihara (1932-) e Takeshi Kaikō (19302 Furansu Runessansu Danshô, Excertos sobre o Renascimento Francês, é o título do livro de Kazuo Watanabe que conquistou a simpatia de Oe. 3 Publicado em português na tradução de Luiza Nana Yoshida, em: Contos de Oe Kenzaburo, organização Geny Wakisaka e prefácio de Haquira Osakabe. Centro de Estudos Japones/USP, 1995, pp.21-36.
Publicado em português na tradução de Geny Wakisaka, em: Contos de Oe Kenzaburo, organização Geny Wakisaka e prefácio de Haquira Osakabe. Centro de Estudos Japones/USP, 1995, pp.37-71. 4
5 Publicado em português na tradução de Tae Suzuki, em: Contos de Oe Kenzaburo, organização Geny Wakisaka e prefácio de Haquira Osakabe. Centro de Estudos Japones/USP, 1995, pp.73-121.
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1989). É autor de vários contos como os já mencionados; de romances como O Grito Silencioso (Man’en Gannen no Futtobōru de 1967)6; Jovens de um novo tempo, despertai!7 (Atarashii hito yo mezameyo, 1983) e também de obras ensaísticas, como Hiroshima nōto (Anotações de Hiroshima); Okinawa nōto (Anotações de Okinawa) e Aimaina Nihon no Watashi (Eu, de um Japão Ambíguo), seu discurso da premiação do Nobel.
Em 1960 casou-se com Yukari Itami e após o nascimento de seu primogênito Hikari, em junho de 1963, esse filho com anomalia cerebral passou a ser a inspiração literária em muitas de suas criações. Dentre elas, podem ser citadas Uma questão pessoal (Kojintekina Taiken, 1964)8 e Aghwii, o monstro celeste (Sora no Kaibutsu Agui, 1964)9. Em 1976 Ōe foi Professor Visitante do Colégio del Mexico, esteve na Universidade de Chicago nos anos de 1980, em Princeton por um ano em 1999 e na Universidade Livre de Berlin por meio ano.
Ganhador de prêmios como Tanizaki Jun’ichirō, Noma Hiroshi, Jornal Yomiuri, Kawabata Yasunari, Osaragi Jirō, da Editora Shinchō, e Itō Sei, foi laureado com o Prêmio Nobel em 1994 e no ano seguinte declarou encerrada a sua carreira literária. Contudo, retomou as atividades como escritor em 1999, motivado pela vontade de oferecer uma obra em homenagem à memória de um amigo, o maestro e compositor Tōru Takemitsu, falecido em 1996, e publica Chūgaeri (Cambalhota no ar)10 em 2000. Em 2006 institui o prêmio Ōe promovido pela Editora Kōdansha em que os premiados 6 Publicado na tradução (indireta) de Sergio Ryff pela Livraria Francisco Alves Editora S/A em 1983. 7
Publicado pela Companhia das Letras na tradução de Leiko Gotoda em 2006.
Publicada em português em 2003 pela Companhia das Letras na tradução de Shintaro Hayashi. 8
Publicado em português no início de 2011 pela Companhia das Letras com mais 13 contos selecionados e traduzidos por Leiko Gotoda. 9
Nela descreve a reconstrução de uma instituição religiosa em meio a um assassinato e a uma situação conturbada de abandono do seu líder, Mestre Patoron, para evitar atos terroristas, introduzindo uma narrativa em 3ª pessoa. Esse romance tornou-se uma obra de transição em diversos sentidos. 10
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são agraciados com um debate com o escritor e a publicação da obra premiada em inglês ou francês.
Ele tem sido um dos grandes líderes de opinião no Japão, com um posicionamento político e social em prol da paz mundial e movimentos de conscientização e de mobilização em torno das questões ambientais e nucleares, da submissão ao poderio militar dos Estados Unidos e ao sistema imperial japonês. Um exemplo recente é o seu pronunciamento no New Yorker no dia seguinte ao terremoto seguido de tsunami de 11 de março de 2011 que devastou o nordeste japonês. Nesse artigo intitulado A história se repete, Ōe clamou pela dignidade humana e respeito à memória das vítimas de Hiroshima, manifestando uma vez mais a sua não aceitação de toda e qualquer calamidade humana como é o caso dos reatores nucleares. Em 1994, o autor recusou a Medalha da Ordem Cultural outorgada pelo Imperador tornando-se o único a fazê-lo até o presente. Em contrapartida, aceitou a L’ordre National de la Légion d’Honneur, em 2002 na França. O LIVRO – OBRA OBJETO DESTE ESTUDO
Suishi (Afogamento) foi publicado no Japão em 2009. É a última obra11 de Ōe até o momento12. O romance possui uma constituição palimpséstica, de sobreposição e amálgama, retomando e atualizando assuntos abordados pelo autor em obras anteriores, de modo labiríntico e utilizando recursos também recorrentes de seu estilo que transita entre a ficção e a realidade, a memória e a
Constituiria uma pentalogia com as quatro últimas, entre as quais está a trilogia: Torigaeko [Changering] (Criança trocada) de 2000; Ureigao no Ko (A criança com cara de preocupação) de 2002 e Waga hon yo sayônara (Adeus, meu livro!) de 2005 e Anaberu rī sōkedachitsu mimakaritsu (Anabelle Lee arrepiou-se toda e expirou) de 2007 (mudado depois para Anabelle Lee). Todas elas foram publicadas após a retomada da carreira literária que ele dera por encerrada após o prêmio Nobel de 1994 e a conclusão de Moeagaru Midori no Ki (As árvores verdes flamejantes) em 1995, iniciada em 1993. Entre essas obras mais recentes consta um livro infantil publicado em 2003, o único, intitulado Nihyakunen no kodomo (Criança de duzentos anos) e uma obra escrita com sua esposa Yukari intitulada Shizukana Seikatsu (Uma vida na quietude). 11
Julho de 2012, data da apresentação desta obra no XXVII ENANPOLL, realizado na Universidade Federal Fluminense em Niterói, Rio de Janeiro. 12
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história. Essa riqueza é espantosa: revela os saberes múltiplos e vastos do autor bem como a sua técnica apurada em utilizá-la de modo consciente, com os quais denuncia e protesta numa busca incessante de salvação que tece reflexões sobre o próprio fazer literário.
Afogamento é escrito em primeira pessoa por Kogito Chōkō, um romancista que persegue o afã de escrever uma biografia de seu pai relativa às circunstâncias de sua morte, mas da qual não guarda lembranças claras e suficientes para compor e concluir a obra. Disso decorre uma busca já antiga por informações que supostamente estariam de posse de sua mãe, em forma de conhecimento dos fatos e de documentos escritos que teriam pertencido ao falecido, e também de anotações que o próprio Kogito fizera na tentativa de escrita do romance e que teriam sido roubadas por ela. Tais documentos estariam guardados na mala vermelha de couro que ela teria comprado em Xangai.
Uma tensão familiar envolve três gerações: o pai, ele mesmo e o filho em torno à questão do desvario, que vai desde a demência, a insanidade e a loucura, até ao delírio e ao devaneio. O pai teria vivido o final de sua vida em clausura voluntária até o momento da morte, e o narrador-protagonista vê-se às voltas com o enigma sobre o fim trágico do pai e com uma solução para a sua vida e a de seu filho com anomalia cerebral. Por outro lado, a mãe, com sua insistência e empenho que beiram à loucura em enterrar o passado e concentrarse no presente, tentou evitar, em vida e mesmo depois de morta, que Kogito conhecesse os pormenores sobre as circunstâncias de morte do marido e cobrava dele uma solução para a sua vida e a de seu filho. No entanto, para ele, os conhecimentos sobre o passado e os fatos são as condições sine quibus non para solucionar o que o atormenta, e é justamente nessa busca que ele encontra a sua libertação. Essa tensão familiar estende-se as demais personagens envolvidas na trama de Afogamento que apresenta a postura de conscientização e de contestação do escritor. A narrativa ocorre principalmente em Tóquio, residência do protagonista, e na vila do vale em Shikoku, sua terra natal. O bairro Musashinodai em Tóquio é onde ele vive com a família, sua esposa 190
Chikashi, o primogênito Akari e a filha Maki. A vila do vale é onde a irmã mais nova Asa sempre viveu na casa da mãe, já falecida. O cenário principal é a Casa da Mata, construída como retiro para a família do narrador-protagonista e que é mantida na vila sob os cuidados da irmã. Envolvendo-se com os líderes do grupo teatral The Cave Man, ela cede o espaço para ensaios e exibições de seus integrantes que criam peças baseadas nas obras de autoria de Kogito, que por sua vez, acompanha o trabalho deles de modo cooperativo e acaba indo ao local para passar uma temporada.
Kogito já conhecia o trabalho do grupo, mas a motivação maior para ir à vila do vale é receber a mala vermelha de couro contendo os documentos do pai e resgatar algumas páginas que ele teria escrito no passado, tentando elucidar a sua morte e que estavam de posse de sua mãe. Essa informação chega por meio do telefonema de sua irmã, avisando-o de que chegara o dia da entrega determinada pela mãe, ou seja, dez anos após a morte dela, ocorrida aos 95 anos de idade em 5 de dezembro sem ano.
O tempo da narrativa é do começo do verão em que Asa liga para o irmão propondo que troque suas costumeiras férias de verão (junho, julho, agosto) em Kita Karuizawa pela Floresta de Shikoku, onde ela mora. Trata-se de uma ironia do destino, pois a mãe previa que Kogito não estaria vivo depois de tanto tempo, uma vez que os homens da família não gozavam de longevidade. Ou de uma providência de Asa que, no decorrer do livro, revela-se articuladora de muitas situações indo além da filha fiel aos desejos da mãe e da irmã zelosa dos bens familiares. Isso assume relevância na escolha do autor em inserir, nessa narração em primeira pessoa, as cartas de Asa que relatam a Kogito, os acontecimentos que se passam na vila do vale em relação ao grupo teatral, em forma de um monólogo com o irmão.
As cartas começam num capítulo e terminam no seguinte, somando mais de 40 páginas (171-225) 13 e seriam contínuas,
A carta começa na 5ª linha da p. 171 e vai até a 1ª linha da p. 218, o que corresponde do 3 ao 6 e último item do Capítulo VI; continua do 1 ao 3 do capítulo VII; é interrompida pelo 4 com menos de duas páginas (218-219); reiniciada no 5 e concluída no 6 que é o último do capítulo VII (penúltima linha da p.219-225). 13
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não fossem duas páginas (218-219) incompletas que funcionam como uma nota informativa sobre a situação de Akari para que a narração da carta seguinte possa ser acompanhada pelo leitor. Ela continua com uma explicação de que se trata de uma nova carta complementar e depois da interrupção, finaliza com o assunto sobre a desavença ocorrida com Kogito e o filho. RETOMADAS E ATUALIZAÇÕES
A lembrança da morte do pai por afogamento decorria de experiências com sonhos e reminiscências que vinham desde os 10 anos de idade do narrador-protagonista. Esta ganhara contornos de um projeto de romance por volta de seus 20 anos, quando ele deparou-se com a palavra suishi, afogamento, num poema inglês com versão em francês. Esse poema de T. S. Eliot intitulado The Waste Land aparece na epígrafe do livro, na tradução em japonês e no original em inglês. Por esses dados, deduz-se que seria na época da Faculdade. A obra, contudo, era protelada. A única tentativa de escrever o romance do afogamento teria sido antes dos seus 35 anos de idade e para imprimir veracidade são citadas duas referências: a primeira, a escrita de Man’engan’nen’nofuttobōru, O Grito Silencioso, citado à página16, que é uma obra do próprio Ōe, publicada em 1967; a segunda, a idade de 60 e poucos anos da mãe, à época em que ele teria escrito o primeiro capítulo e que teria sido enviado a ela pedindo-lhe para ver a tal mala de couro vermelha.
Sem obter respostas e sem os documentos, ele desistira de escrever o romance do afogamento e no ano seguinte, publicou Mizukara waga namida o nugui tamō hi, também de Ōe, de 1971 (O dia em que voluntariamente enxugareis minhas lágrimas). A obra foi escrita no contexto do dia 16 de agosto, como se tivesse acontecido um levante, mas historicamente sem registro, de modo que no romance o fato é narrado por um doente mental que está internado. Há explanações sobre o aproveitamento de declarações verídicas da mãe no romance e a preocupação em que outros assuntos o sejam. O método foi criticado por ser baseado no espírito da escrita do eu e ficar na dependência da mala vermelha. Quando o livro saiu publicado, Kogito recebeu um postal de Asa, que morava com a mãe 192
com o seguinte relato: “Mamãe te critica com palavras piores dos que você emprega para paparicá-la no final do livro. Diz que só lhe resta cortar os laços com Kogī (meu apelido)” (p.17). As relações um pouco abaladas com a mãe desde a escrita do primeiro capítulo e os cartões sobre o romance do afogamento haviam sido restabelecidas por meio de Chikashi, sua esposa, depois que o primogênito com anomalia cerebral havia nascido. O romance do afogamento, desse modo, revela-se, conforme consta textualmente, um projeto idealizado a vida inteira com base num sonho sobre a cena do afogamento numa época em que o narrador-protagonista ainda nem havia lido um romance propriamente dito.
Convém lembrar, ainda, que os documentos tão desejados por longo tempo para escrever uma autobiografia do pai aparecem desde o conto intitulado Oh, pai! Aonde que você vai? (Chichi yo, anata wa doko e ikuno ka?) publicado pela primeira vez na Revista Bungakukai em outubro de 1968 e que tem um narrador masculino em primeira pessoa (boku). A menção sobre os mesmos documentos aparecem também na obra Ensine-nos o meio para superar a nossa loucura (Warera no kyōki o ikinobiru michi o oshieyo de 1969) 14 narrado em terceira pessoa e que tem por protagonista o homem gordo. No entanto, essas obras não mencionam onde estavam guardados os documentos e nem que eles seriam utilizados para escrever o romance do afogamento. A situação, sim, é a mesma, a questão da clausura do pai, o seu suposto envolvimento com jovens oficiais que vinham ouvi-lo e que pareciam programar um levante que não foi levado a termo. As informações que essas obras traziam eram sobre a morte súbita do pai, que estava extremamente gordo, depois de soltar um grito. Parecia suicídio, inicialmente imaginado como por uma arma de fogo. Neste livro de 2009, por sua vez, o próprio narrador encarregase de dizer que estaria retomando a questão já com mais de 60 anos de idade.
14 Publicado em português na tradução de Neide Hissae Nagae em: Contos de Oe Kenzaburo organização Geny Wakisaka e prefácio de Haquira Osakabe. Centro de Estudos Japones/USP, 1995, pp.191-236.
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É trazendo o assunto dessa mala, agora especificada com uma cor e um material específico, que a introdução intitulada “Uma Piada” (Jōdan) relata o episódio sobre como o narrador teria seguido a carreira de escritor. Quando Kogito ingressa na Universidade de Tóquio, um parente, cujo genro cursava Direito na mesma Universidade, pergunta que curso ele havia escolhido. Ao responder que optara pela carreira de Letras Francesas, seguido do comentário maldoso de que ele teria dificuldade em se sustentar, a mãe antecipa-se afirmando que se isso viesse a acontecer ele tornar-se-ia um escritor, pois na mala vermelha de couro havia material suficiente para seus romances. o riso suscitado na ocasião foi vingado três anos mais tarde quando ele, que queria apenas ser um pesquisador de literatura francesa começou a escrever algumas obras e obteve reconhecimento com a que foi publicada no jornal da Universidade. A partir de então, ele se torna um escritor de sucesso.
assim, a fronteira tênue entre ficção e realidade já aparece nas primeiras linhas de afogamento: no uso da primeira pessoa, na menção sobre o curso de Letras Francesas que o autor cursou; sobre o início de sua carreira reconhecida ainda na Universidade e, obviamente, na ironia por ele ser um Nobel de Literatura e que usou ou está usando o pretexto da mala vermelha de couro. Nesta obra, o romance do afogamento apenas iniciado e adiado ad infinitum é conhecido por todos os personagens, de modo que assim como o narrador-protagonista, Masao Anai, o líder do grupo de teatro, Unaiko, a atriz principal, e os demais integrantes também alimentam esperanças na finalização do livro.
Logo que Kogito chega à vila do vale, Asa leva-o até o monumento erigido em homenagem à premiação que ele teria recebido, e que estava para ser removido para dar lugar à ampliação de estradas locais. A pedra redonda que ali fora colocada tinha a inscrição de um poema com os dois primeiros versos composto por sua mãe e os três últimos por ele, mas era a primeira vez que estava diante dela: Kogī o mori ni noboraseru shitaku mo sezu 194
Kawanagare no yō ni kaette konai. ame no furanai kisetsu no tōkyō de, rōnen kara yōnenji made
(p.30)
Sakasama ni omoidashiteiru.
sem preparar Kogī para torná-lo capaz de subir a mata, Não retorna como se tivesse sido levado pelo rio. Na estação sem chuvas de Tóquio,
Vou, dos anos senis para a infância, Relembrando inversamente.15
Esse poema dialoga com a epígrafe do romance que, como mencionado, é uma parte do poema de T.S. Eliot16.
15
Tradução nossa.
16 Poema na íntegra de T. S. Eliot (1888-1965): The Waste Land, IV. Death by Water Phlebas the Phoenician, a fortnight dead, Forgot the cry of gulls, and the deep seas swell and the profit and loss. A current under sea Picked is bones in whispers. As he rose and fell He passed the stages of his age and youth Entering que shirlpool. Genti or Jew O you who turn the wheel and look to windward, Consider Phlebas, who was once handsome and tall as you.
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A current under sea
Piched his bones in whispers. As he rose and fell He passed the stages of his age and youth Entering the whirlpool. - T. S.
tradução de Motohiro Fukase
Curiosamente, há um comentário de Kogito sobre as traduções do poema de Eliot em inglês traduzido para o francês e para o japonês por serem um pouco diferentes: a palavra age de Elliot é “idade, o tempo de vida desde traduzida por Fukase como yowai o nascimento até a morte”. E por Junsaburō nishiwaki como oi no “a velhice, a senilidade” (p. 123). Com isso, explora-se a hi questão de que um escritor jovem teria dificuldade em falar sobre as fases da vida de seu pai, e a necessidade de um tempo que fosse suficiente para o amadurecimento do escritor.
o significado da inscrição na pedra e a elucidação em torno de seus mistérios são dados no decorrer da própria narrativa. Kogī, apelido do narrador quando criança, é o seu desdobramento com o filho que possui anomalia cerebral. Mori ni noboraseru significa “louvar os mortos”, segundo pesquisas da tradição local. Pela visão da mãe, contudo, é “a responsabilidade de cada pessoa em relação ao tempo de vida até o momento de sua própria morte e com a qual não precisamos nos preocupar, pois vem cedo ou tarde”. Kawanagare é “a denominação dada às pessoas que se afogaram no rio e também àquelas que partiram sem ter se afogado”. Outra interpretação sobre o kawanagare seria “o pai que retorna morto”, e “o filho, o narrador-progonista, que não retorna mais para casa apesar de estar vivo”, e ela estaria acompanhada da crítica de que “nada teria providenciado para o filho”, deixando-o numa situação 196
semelhante a um kawanagare no meio da noite escura. No entanto, os versos compostos por Kogito são um reconhecimento dessa situação.
Anai e Unaiko, por sua vez, planejam criar uma nova peça que seja o balanço geral de Chōkō e aproveitam para elaborar as entrevistas com ele para inseri-las no roteiro. O narrador fica de atendê-los nos intervalos em que irá examinar a mala. A primeira entrevista acontece como um ensaio, e a temática gira em torno da explicação sobre a inscrição da pedra. No final, Chōkō lhe dá um desdobramento, revelando que o seu conteúdo está na obra M/T to fushigi no mori (Matriarcal/Trickstar e a floresta misteriosa). Nela, a criança perdida vai em direção ao alto da mata e não do rio como deveria ser mais natural. E a mãe da criança intui isso ao pedir que a procurassem na mata. Essa passagem no romance funciona como um prenúncio do que teria acontecido com o próprio Kogito no dia da morte do pai, mas naquele momento, a informação fica apenas como um dado a mais a ser constatado pelo leitor após a revelação sobre as circunstâncias do afogamento.
A mala acaba sendo aberta sem nenhum clima de ansiedade, muito pelo contrário, numa situação de tranquilidade que chega a causar estranhamento. Ele analisa calmamente o conteúdo da mala, organiza os documentos e constata que eram anotações, alguns cadernos e 3 volumes de O Ramo de Ouro17, único elemento que poderia ser inusitado, mas que também não o parece ser. Os escritos eram sobre os fatos de 1945. Kogī entrando na água do rio, indo atrás do pai que estava sentado na parte de trás de um bote. Essa lembrança, incerta para o narrador-protagonista se era fato ou não, transforma-se em sonho que tem algumas variações de acordo com o seu estado de espírito. Nas entrevistas, Kogito tenta esclarecer também para si mesmo o que teria acontecido. Apesar de reparar que os documentos de 40 anos atrás lhe pareciam bem menos volumosos do que se recordava, não parece haver decepção, nem por parte de Kogito, nem por parte dos demais personagens. A atitude de Asa já prenunciava que a mala nada conteria de tão excepcional e revelador ao protelar a sua entrega, levando-o a ver o 17
The Golden Bough – a study in magic religion de Sir James Frazer de 1890. 197
monumento e pedindo para tirar cópias do conteúdo da mala para guardar de recordação.
Dessa maneira, o tão ansiado “romance do afogamento” não se concretiza na ficção, na narrativa do livro cuja leitura acompanhamos desde as primeiras páginas, mas na vida real sim, na forma do livro intitulado Afogamento publicado em 2009 de capa de papel vermelha, simulando a mala de couro vermelha, comprada pela mãe de Kogito em uma viagem a Xangai. Mas, diferentemente dessa mala, traz a revelação do mistério envolvendo a morte do pai de Kogito em 16 de agosto de 1945, revelado por Daiō, antigo amigo do pai e que fora testemunha ocular no dia trágico. Descobre-se também uma gravação da mãe falando sobre o dia da morte do pai: a felicidade que ela sentiu ao ver o filho voltar nadando e deixando o pai partir no bote. A mala vermelha contendo as correspondências sobre o levante, em caso de naufrágio, deveria boiar para ser encontrada por alguém que a levaria à polícia. Seria um desejo do pai, que parecia estar abandonando o levante, arrependido que alguém encontrasse a mala e soubesse do intento? Ele estaria fugindo, se suicidando? Isso continua uma incógnita na fala da mãe, que também acha que o pai não teria tido tempo para planejar melhor o que estava fazendo, mas o fato é que ele temia algo ou alguém e queria sair da vila do vale. O aguaceiro ajudou-o a pensar numa fuga pelo rio e não pelas estradas que estariam sendo vigiadas. Mas enfim, a guerra acabara. Kogito é o sobrevivente do afogamento e o aspecto pessoal alcança o status do universal, como diz Seligman-Silva (2003: 51) falando sobre o Shoah (traumas) e Auschwitz. A obra de Ōe, assim, assume facetas muito semelhantes aos de outros povos que sofreram grandes traumas, sufocados pela opressão. Também parece dialogar com Primo Levi de Os afogados e os sobreviventes do outro lado do mundo, mas isso é objeto de outros estudos que estão além de nossas reflexões para este trabalho. Diante da constatação pacífica de que a mala não seria a solução para a continuidade do romance do afogamento, o desenvolvimento da obra segue outros rumos centrados na vida familiar do narrador e nas atividades do grupo de teatro. 198
O questionamento do pai de Kogito sobre a submissão à figura do Imperador, contudo, é retomada com a encenação teatral do romance Kokoro (Coração) , publicada em 1914 pelo escritor Sōseki Natsume. A leitura conduzida por Unaiko no teatro de arena diante de estudantes é nos dada a conhecer na íntegra pelas cartas de Asa enviada a Kogito. Em termos de conteúdo, há uma primeira carta seguida de outra que começa com o agradecimento dela pelo irmão ter aceitado o seu pedido, e continua com o relato sobre a repercussão do grupo de teatro Jogar o cachorro morto18 formado por Asa e Unaiko.
A leitura da obra de Sōseki em Afogamento concentra-se em alguns trechos extraídos da Parte III intitulada “O Professor e o Testamento”, com indagações feitas por Unaiko aos expectadores. Os trechos são citações fiéis do original, e o que está em foco é a figura do professor descrente dos homens que são submissos ao poder do dinheiro e que se isolou do mundo. O testamento, que revela a experiência de vida do professor a um jovem cheio de vida e anseios e que passa a admirá-lo, é uma lição de vida que mostra a podridão do ser humano quando a questão em foco é o dinheiro ou a disputa pelo poder ou pelo amor. Revela, ainda, o absurdo da mentalidade Meiji de submissão ao Imperador, com resquícios até os dias atuais, brincando com a expressão “mentalidade Heisei”, nome da atual era japonesa iniciada em 1989. Como exemplo, é mencionado o fato histórico sobre o suicídio do General Nogi e sua esposa em respeito à mudança de Era que se deu com a morte do Imperador Meiji (1867-1911), e a submissão impossível a outro superior que subia ao trono da chamada Era Taishō (1912-1925). O acontecimento servira de inspiração para o suicídio do professor em Coração, e o
18 Nas peças, eram utilizados saquinhos plásticos contendo um material que simularia fezes de cachorro, e também bichinhos de pelúcia de cachorros para que fossem arremessados em sinal de contestação ao que era apresentado, mas Unaiko não achava adequado, pois o público tendia a gostar das pelúcias, gerando um efeito contrário. O nome do grupo de teatro remete à menção do útero da cadela que é retirado para a vingança que ocorre em Gargantua e Pantagruel de Rabelais, mas também às vivências sinistras com cães que Ōe teve quando criança no final da guerra, e de quando era universitário e se candidatou ao serviço temporário de matar 1504 cães que eram utilizados para experiências no Hospital Universitário e que serviu de base para o conto Tarefa Insólita.
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testamento é uma confissão pessoal sobre o seu egoísmo que levara o amigo ao suicídio e sobre o peso de consciência que ele sofria. Toda essa narração traz à tona a questão que seria discutida no suposto romance do afogamento, para levantar o questionamento sobre o sistema Imperial, o poder do capitalismo e do Estado.
Nesse teatro de arena, Unaiko questiona os ouvintes sobre o caráter educativo da obra, se o professor de fato ensinava algo ao rapaz que o admirava, pois aparentemente, ele não deixa nenhum ensinamento. Em Coração, de 1914, contudo, a submissão à figura do Imperador, que foi utilizada para a modernização do Japão, é vista como causa das catástrofes do longo histórico de guerras com a China entre 1894-5; com a Rússia entre 1904-5 e que preocupavam Sōseki quanto ao futuro do país. Esse mesmo questionamento é herdado por Afogamento na medida em que o autor enxerga a continuidade dessa mentalidade em sua época. Trata-se do espírito yamato já questionado por Sōseki na obra Eu sou um gato de 1905, ou seja, o espírito japonês, de verdadeira inteligência e talento, que se acredita existir em essência no âmago de todo o povo nipônico e que em cada época vestiu uma roupagem diferente. O espírito yamato teria servido de base para receber os conhecimentos chineses importados a partir do século VII, ou para importar a cultura ocidental a partir do final do século XIX. No entanto, esse mesmo espírito serviu para impulsionar o Japão, na ânsia em se distanciar do atraso asiático e alcançar o desenvolvimento dos europeus e americanos e em superálos. Por fim, seguindo a mesma linha das guerras com a China e a Rússia, resultou na criação de um Império Títere na Manchúria e na dominação de vários países do Pacífico Sul durante a Segunda Guerra Mundial. Catástrofes essas que culminaram com as consequências incomensuráveis sofridas pelas bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki, e com as atrocidades irremediáveis cometidas pelos soldados japoneses em terras estrangeiras. Tal espírito revelase inalterado no que ele denomina de mentalidade Heisei com um Japão dependente dos Estados Unidos em suas defesas militares e que se mantém praticamente no mesmo estado de ocupação do pósguerra, com uma base militar americana na Ilha de Okinawa e de apoio irrestrito às decisões americanas. 200
A importância da escrita literária que retoma a questão da escrita do eu, no aproveitamento dos fatos da vida real, reproduzidas em romances, e a importância de retratar a vida como ela é, assumem, assim, uma dimensão maior de conhecer os fatos e de tomada de consciência.
É nesse sentido que o grupo de teatro mostra-se atuante ao encenar as obras de Kogito, e que, com o apoio de Asa, Unaiko inicia o projeto de encenar uma peça baseada em sua experiência de estupro, e que não está desvinculada das propostas de denúncia que as obras de Kogito possuem. A peça, no entanto, não chega a ser realizada, pela clara oposição dos educadores com visão conservadora da região, mas, de maneira inesperada pelo autor do abuso que é o tio de Unaiko e político importante no âmbito do Ministério da Educação. No dia da estreia, Unaiko é raptada por seus subordinados que mantém Kogito, o filho, Asa e outros confinados no ginásio de Daiō. O tema da violência sexual, já tratada em outras obras de Ōe é retomado com a história de Meisukehaha, uma mulher da vila que também fora violentada e recebeu o apoio das demais mulheres que saíram em marcha para protestar. No romance, menciona-se que esse caso teria virado filme 30 anos depois, graças ao interesse de uma atriz famosa chamada Sakura, protagonista da já mencionada obra Annabele Lee de Ōe. Meisukehaha vira uma espécie de lenda na qual haveria reencarnações dela ou que o seu espírito poderia se apossar de alguém, e essa superstição, de certa maneira, é concretizada por Unaiko que diz ter incorporado o seu espírito. Lendas e superstições à parte, a questão da violência sexual é ampliada para o abuso da nação para com o povo. Pois, sendo o aborto um homicídio, e tendo sido ele imposto a Unaiko no passado, ela teria sido violentada pelo Estado (p.389). Outro fio da trama do romance vem da preocupação de Ōe em relação à paz mundial e à segurança daqueles que são incapazes de começar uma guerra, os mais frágeis perante essa ameaça, por não poderem se defender e nem de lutar contra as imposições, como é o caso de Akari/Hikaru. A esposa que permanecera em Tóquio quando Kogito vai para a vila do vale, precisa passar por uma internação e pede a Asa, ex-enfermeira da Cruz Vermelha Japonesa, 201
para auxiliá-la nesse período fazendo companhia para Maki, e Akari vai para a Casa da Mata na Floresta de Shikoku junto com o pai.
É nesse ínterim que Kogito descobre que Akari pode ser ajudado por outras pessoas como Unaiko, sua amiga Ritchan, Tamakichi, filho de assa e daiō e não apenas por ele, a mãe ou a irmã. nesse sentido, Kogito atende ao desejo de sua mãe inscrita na lápide de pedra: voltar para a terra natal e preparar o seu filho para conviver com outras pessoas, sem o seu acompanhamento, quebrando a dependência mútua que ele pensa existir, questão essa também recorrente em outras obras. A libertação acontece não apenas para Kogito em relação aos fantasmas que o assolavam, mas também para o próprio filho na interação com outras pessoas e igualmente para asa, da figura de sua mãe e do irmão. contudo, a solução definitiva não aparece para nenhum dos casos. Unaiko é violentada novamente por seu tio naquela noite de cativeiro e paira a suspeita de que ela tenha engravidado. O aborto para ela seria impensável, de modo que o projeto do teatro fica adiado. Apesar da libertação de Kogito em relação à história de seu pai e à dependência de Akari, ainda resta a dúvida de como será o futuro desse filho e de todas as pessoas sem condições de protestar e de se proteger e que seriam incapazes, também, de serem os causadores de uma guerra nuclear, por exemplo. o que fica é tão somente a lição de uma busca incansável. O ArrANJO dOS ANTrOPÔNimOS
Os nomes dos personagens de afogamento são carregados de significados, dada a característica dos ideogramas japoneses que favorecem a combinação de sentidos de acordo com a escolha das letras, e também da quantidade de palavras homófonas. Essas combinações tornam-se interessantes na medida em que há um lado sonoro e outro visual e que podem ter seus usos ampliados para a esfera dos fonogramas katakana que imprimem um tom moderno aos nomes. No primeiro caso, da combinação de sentidos pela escolha dos ideogramas, temos o nome do narrador-protagonista 202
Kogito chōkō. chōkō, o sobrenome, que significa “rio longo”, visualmente, pelo uso do ideograma, remete ao Rio Chang Jiang ou e teria sentido semelhante ao sobrenome do autor Yangtze que significa “rio grande”. Pelo recurso de homofonia e Ōe do uso do fonograma katakana o nome Kogito é grafado com os que significa “pessoa com significados antigos”, ideogramas mas alude também ao francê cogito de Descartes. Sendo o apelido observaKogī, que vem grafado com os fonogramas katakana se um recurso de ampliação de sentidos, utilizando as propriedades japonesas de homofonia, tão comum nos poemas japoneses waka, mas com uma mistura de possíveis grafias não só japonesa como francesa, compondo um jogo cifrado. Homófono de kogi que significa “dúvida”, “suspeita”, mas que em sua combinação juntam a palavra “raposa e dúvida”, pelo fato de a raposa ser muito desconfiada. na obra, kogī seria um dos dois filhotes de raposa que subiu ao céu e desapareceu, segundo a lenda local. Assim, o nome do narrador-protagonista está intimamente relacionado ao conteúdo da obra que conta a história de uma pessoa que resgata significados antigos, mas que permanece na mente do leitor transitando entre a dúvida da veracidade e do verossímil. Kogito seria, ainda, uma identidade oculta do escritor Ōe que já era alguém do passado com toda a sua bagagem de significação, o que seria condizente com a escolha desse nome para os protagonistas de suas últimas obras reiniciadas após a declaração de ter encerrado a carreira literária em 1995. , da esposa, seria “mil avelãs” Outros nomes como Chikashi escrito em ideogramas mas que pode significar “proximidade” ou a filha do narrador, significa “árvore “familiaridade”. Maki a irmã mais nova, por estar escrito verdadeira, autêntica”, e Asa em fonogramas não apresenta um sentido definido, mas poderia ser “manhã, linho”, o mesmo que aparece no nome do filho tamakichi que significa “muitos linhos da sorte”. observa-se que nesse grupo familiar, todos eles são nomes de plantas, elementos ligados a terra em consonância com a floresta da vila do vale. a única . Escrito exceção seria o nome do filho com deficiência: akari em fonogramas katakana, significa “claridade”, muito semelhante, 203
tanto visual quanto semanticamente, a Hikari , nome do filho também deficiente de Ōe, que significa “luz”. Por ele ter ainda o apelido de Kogī, o mesmo do pai, é como se ele fosse a outra raposa e um desdobramento ou continuidade do pai.
cujo nome verdadeiro Mitsuko E por fim, a atriz unaiko só é revelado quase ao final da obra. Poderia significar “filha da luz ou uma bela enseada” e possui uma forte carga semântica na cantiga que começa com a palavra unaiko mencionada na p.36 e que a mãe de Asa teria lhe ensinado quando criança: Leitura: hototogisu ochikaeri nake unaiko ga uchi taregami no samidare no sora.
Sentido: O cuco foi cantando para bem longe, unaiko está com seus cabelos soltos ao céu chuvoso de maio.
um poema famoso identificável pelo início que contém a apelido da moça é do monge e poeta saigyō (1118-1190): Leitura: unaiko ga susami narasu mugibue no koe ni odoroku natsu no hirubushi.
Sentido: Foi um momento de sobressalto que desperto da sesta ao som de um apito de trigo soprado por consolo por uma criança pequena.
Constante em sua coletânea intitulada Kikigakishī, como poema 165, ele faz alusão ao romance anterior de Ōe, escrito em 2007: annabele lee de cêra arrepiou-se toda e expirou. ) inspirado no poema ( de Edgar Allan Poe, de 1849, prenunciando a história de Unaiko que irá se confirmar no final da obra com a sua experiência de ter sofrido abusos sexuais. 204
inserções de nomes de pessoas ligadas a ele como o de Jūzō itami, irmão de sua esposa e famoso cineasta que se suicidou, Takemitsu tōru, renomado músico japonês que foi seu amigo, o orientalista Edward Said que foi seu amigo pessoal, e outros nomes que precisam ser decifrados como o do Professor Kyoroku Rokusumi o pseudônimo de Kazuo Watanabe, mestre de Kenzaburō Ōe na universidade de tóquio trazem outra dimensão, que vai além da histórica, para o romance, como é o caso da discussão sobre a mentalidade Meiji e Heisei, citando o próprio Imperador e o tão conhecido suicídio de submissão do General Nogi e sua esposa. CONSidErAçõES fiNAiS
nessa obra, temos chōkō Kogito, o narrador-protagonista, escrevendo sobre três gerações que compreendem o seu pai, ele mesmo e seu filho. Passados 60 anos após a primeira tentativa, e quando sua mãe lhe deixa a mala vermelha contendo documentos de seu pai, resolve finalmente escrever sobre as circunstâncias da morte do pai que ele imagina ter sido por afogamento. O que se busca é a verdade sobre a sua morte durante a Segunda Guerra Mundial, mas o resultado é a descrição da mentalidade da época, e que no cerne, aparece inalterada ainda hoje para o escritor, desde a abertura do Japão ao Ocidente, como podemos obervar por meio das críticas de sōseki natsume na voz de seu gato-narrador sobre o espírito yamato, nas insatisfações do protagonista Daisuke em relação à situação de submissão do povo japonês às novidades ocidentais e às dívidas externas do Japão presentes na obra e depois de 1909, ou na apatia do anti-herói de coração. Ōe, como ocorre desde as suas primeiras criações, utiliza uma técnica de composição em que aproveita dados da realidade de sua própria vida. O curioso é que nesta obra aparecem expressões ditas por ele mesmo como sendo “uma imitação invariável de si mesmo de um escritor idoso”, na qual outros literatos, japoneses e estrangeiros, são presença marcante. Suas personagens, quando não possuem um protótipo na vida real, habitam a contemporaneidade japonesa, e os espaços inspiradores são carregados de energia e vida como a vila do vale nas florestas de shikoku, recorrentes em 205
obras anteriores do próprio autor Kenzaburō Ōe como se fossem as do narrador protagonista de Afogamento. O resgate da memória sobre as circunstâncias da morte do pai de Kogito é um resgate desse protagonista enquanto sobrevivente daquele dia crucial. O levante contra o sistema vigente que não foi executado pelo pai, é, pelo poder da palavra, continuada por ele e por outros, como os integrantes do grupo teatral.
A diferença entre as duas gerações, a da mãe e a de Kogito, aparecem nitidamente. A mãe, representando características da cultura japonesa, que dá preferência à ênfase no presente, conforme mostra o estudioso Shūichi Katō (2007). Ela luta por enterrar o passado, deixando a verdade sobre as circunstâncias da morte do marido. Por outro lado, o filho, como alguém moderno, internacional, tenta a todo custo resgatar o passado para conhecê-lo e discuti-lo, num esforço de conscientização sobre a vida contemporânea e os problemas que envolvem a sobrevivência do ser humano. Mesmo assim, na elaboração de suas obras Ōe manifesta outra natureza da cultura japonesa que é a de sobreposição, de uma cultura de edição, historicamente demonstrada por Seigō Matsuoka (2004). Nesse aspecto, o desenvolvimento do Japão no contato com outras culturas também tem a sua face positiva. As citações de obras e títulos de obras não chegam a ser um fato inusitado na literatura, pois muitos romances fazem uso desse tipo de intertextualidade. No entanto, esse fenômeno em Afogamento é curioso na medida em que, se por um lado, várias passagens do romance lembram outras obras da autoria de Ōe, por outro, as obras produzidas na vida real de Kenzaburo Ōe, são mencionadas como criações do narrador-protagonista Kogito Chōkō.
Por isso, é compreensível que Kogito Chōkō não tenha escrito Afogamento, apesar de ser o sonho perseguido a vida inteira por ele, e esperado por todos os personagens e que apareça apenas a história sobre o afogamento do pai. Teríamos que esperar por uma próxima obra para ver se essa forma de construção do romance utilizado por Ōe se mantém, e se Afogamento apareceria como a mais nova autorreferenciação, nesse vai e vem entre ficção e realidade que brinca com a memória do leitor. 206
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