Giséle Manganelli Fernandes (Org.)
Anais do II Congresso Internacional de Pesquisa em Literatura e XIV Seminário de Estudos Literários
Literatura e Interfaces
Giséle Manganelli Fernandes (Org.)
Anais do II Congresso Internacional de Pesquisa em Literatura e XIV Seminário de Estudos Literários
Literatura e Interfaces
1ª edição 2014
Edição João Paulo Vani MTB 60.596/SP Produção gráfica e diagramação HN Editora & Publieditorial
Conselho Editorial Acadêmico Prof. Dr. Alexandre Rocha da Silva UFRGS - Humanas Profa. Dra. Carla Alexandra Ferreira UFSCar - Humanas Prof. Dr. Creso Machado Lopes UFAC – Saúde Prof. Dr. Ivan Nunes Silva USP - Exatas Prof. Dr. João Carlos da Rocha Medrado UFG – Exatas Prof. Dr. Kazuo Kawano Nagamine FAMERP - Saúde Profa. Dra. Maria Tercília Vilela de A. Oliveira UNESP - Biológicas Profa. Dra. Romélia Pinheiro Gonçalves UFC – Biológicas
Direitos reservados a: HN Editora Rua Cap. José Maria, 164, Jd. Europa São José do Rio Preto (SP) – CEP 15014-460 www.editorahn.com.br 1ª edição - 2014 ISBN: 978-85-60521-59-3
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Unesp - Câmpus de São José do Rio Preto Reitor: Prof. Dr. Júlio Cezar Durigan Vice-Reitora: Profa. Dra. Marilza Vieira Cunha Rudge Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibilce) Diretor: Prof. Dr. José Roberto Ruggiero Vice-Diretora: Profa. Dra. Maria Tercília Vilela de Azeredo Oliveira Chefe do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários Profa. Dra. Anna Flora Brunelli Chefe do Departamento de Letras Modernas Profa. Dra. Marieli Amadeu Sabino Programa de Pós-Graduação em Letras Coordenadora: Profa. Dra. Giséle Manganelli Fernandes Vice-Coordenadora: Profa. Dra. Diana Junkes Bueno Martha Comissão Científica Prof. Dr. Álvaro Luiz Hattnher Profa. Dra. Cláudia Maria Ceneviva Nigro Profa. Dra. Diana Junkes Bueno Martha Profa. Dra. Giséle Manganelli Fernandes Profa. Dra. Lúcia Granja Profa. Dra. Maria Celeste Tommasello Ramos Profa. Dra. Maria Cláudia Rodrigues Alves Prof. Dr. Nelson Luis Ramos Profa. Dra. Norma Wimmer Comissão Organizadora Prof. Dr. Álvaro Luiz Hattnher Profa. Dra. Diana Junkes Bueno Martha Profa. Dra. Giséle Manganelli Fernandes Profa. Dra. Lúcia Granja Profa. Dra. Maria Celeste Tommasello Ramos Profa. Dra. Maria Cláudia Rodrigues Alves Profa. Dra. Norma Wimmer Andréa Moraes da Costa Clara Carolyne Fachini Zanirato Fernando Poiana Karina Espúrio Márcia Corrêa de Oliveira Mariano Marco Aurélio Barsanelli de Almeida Regiane Rafaela Roda
SUMÁRIO O Congresso
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O SEL
11
Paratextos literários: a influência de capas na recepção de obras traduzidas - Andréa Moraes da COSTA
29
Literatura e Cinema: algumas teorias e o caso Joaquim Pedro - Douglas de Magalhães Ferreira
55
A Crítica Literária ao romance Marajó na imprensa carioca - Alex Santos MOREIRA
13
Itália e Cecília Meireles - Delvanir LOPES
39
Machado de Assis: Leitor e escritor de folhetim Ederson Murback Escobar
71
Hoffmann e Balzac: Fantástico e Loucura - Elaine Cristina dos Santos SILVA
87
Figuras femininas e a tragicidade em Balada das duas mocinhas de Botafogo - Erica Roberta DOURADO
103
Contos sobre os desencontros amorosos em Famílias Terrivelmente Felizes de Marçal Aquino - Fábio Marques MENDES
133
Lima Barreto: entre o sanatório, a sociedade e a resignação - Fabiano da Silva costa
117
A perspectiva judaica na obra de Moacyr Scliar Fernanda Medeiros de FIGUEIRÊDO
145
A retomada intertextual da mitologia clássica em O poço, de Alberto Moravia - Gisele de Oliveira BOSQUESI
175
O desejo do “eu” nos poemas Narciso (Jogos) e Memória, de Orides Fontela - Jaqueline de Carvalho Valverde BATISTA
199
Borges e o caminho à tradição. aproximação a Pierre Menard, autor del Quijote - Jorgelina Rivera
227
As intermitências proustianas adaptadas para o balé: um estudo da transposição midiática do romance Em busca do tempo perdido ao drama - Karina ESPURIO
253
Canção, crônica e imagens socioculturais - Marcelo PESSOA
281
Tempo Memória em Krapp’s Last Tape - Fernando Aparecido POIANA
163
Do romance ao filme: a abreviação da paisagem em A cor púrpura - Helena Bonito Couto PEREIRA; Luciana Duenha DIMITROV
187
O desafio da última expedição e o fortalecimento emocional: uma análise de Extremely Loud & Incredibly Close, de Jonathan Safran Foer - João Paulo Vani
211
Das camadas da memória: a construção narrativa de Memórias de Lázaro (1952), de Adonias Filho Juliana S. DIAS
241
Nueba Yol: Leaving the Dream Behind - Manuel Medina
265
Uma análise das figuras do gato e dos ratos em Coraline e o mundo secreto - Marco Aurélio Barsaneli
295
Reminiscão: reminiscência de invenção - Maryllu de Oliveira CAIXETA
317
A subversão dos retratos: vertigens espaciais em Mar Paraguayo, de Wilson Bueno - Nádia Nelziza Lovera de Florentino
351
Max Martins: O caminho do diário perfeito - Paulo Roberto Vieira
375
Por trás da história: Gênero Policial e Intertextualidade na obra de Rubem Fonseca - Priscila Costa Domingues; Daniela Mantarro Callipo
401
A obra de arte entre o real e o irreal - Thiago Henrique de Camargo ABRAHÃO
431
A captura do olhar ou uma poética intersemiótica na obra clariceana - Marta Francisco OLIVEIRA
303
História de Pontes: as madrugadas recifenses e seus espaços assombrados - Milena Karine de Souza Wanderley
331
Os costumes do nordeste impressos nas crônicas de Graciliano Ramos - Patricia Aparecida Gonçalves de faria
363
Never Let Me Go: The film adaptation, or Where is the drama to be found in ‘Who’ you are and ‘What’ you are? - Peter James HARRIS; Silvia Mara TELLINI
389
Da pintura de Cerezo Barredo à poesia de Dom Pedro Casaldáliga - Rosana Rodrigues da SILVA
417
Literatura e Cinema: uma adaptação cinematográfica do romance Jardín de Dulce María Loynaz - Yoanky Cordero GÓMEZ
439
O CONGRESSO INTERNACIONAL DO PPGLETRAS O II CONGRESSO INTERNACIONAL DO PPGLETRAS é promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Câmpus de São José do Rio Preto (SP). Essa edição agregou pesquisadores de literatura, mestres, doutores, pós-graduandos e graduandos. A temática do congresso de 2013 “Literatura e Interfaces” aborda as relações da literatura com outros sistemas semióticos, notadamente o cinema, e discutiu os desafios de pesquisa em áreas que intrigam a crítica, tais como quadrinhos, a cultura Yorubá, entre outros. O congresso reuniu especialistas do Brasil e do exterior para três dias de debates acerca de formas mais amplas de análise de manifestações literárias contemporâneas e suas diversas conexões. Este congresso propõe, por fim, uma discussão entre a universidade e seu papel nas fronteiras, sua internacionalização e sua função de mediadora e questionadora das zonas culturais de modo a fomentar o diálogo e problematizar as dimensões temporais e espaciais, ciente de que todo olhar para a literatura, a arte e a cultura corre um risco.
ISBN 978-85-60521-59-3 • 9
THE II INTERNATIONAL CONFERENCE OF THE GRADUATE STUDIES PROGRAM IN LITERATURE The II INTERNATIONAL CONFERENCE OF THE GRADUATE PROGRAMME IN LITERATURE is promoted by the Graduate Studies Programme in Literary Theory and Criticism of the São Paulo State University (UNESP), campus of São José do Rio Preto (SP). This edition of the conference brought together literature scholars and Ph.D. holders, as well as graduate and undergraduate students. The theme of the 2013 conference was “Literature and Interfaces”, and tackled the relationship between literature and other semiotic systems, notably the cinema, and discussed the challenges of research in areas that have intrigued critics, such as graphic novels and literature, the Yorubá culture, and suchlike. The conference drew together experts from Brazil and worldwide for three days of debates on more comprehensive ways to analyze contemporary literary manifestations and their manifold interrelations.
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XIV SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS O XIV SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS é parte das atividades do Programa de Pós-Graduação em Letras do IBILCE. Assim como nas suas edições anteriores, o colóquio teve como objetivo promover o debate dos projetos desenvolvidos em nível de Mestrado e Doutorado, visando à melhoria no trabalho de pesquisa dos alunos como um todo por meio da crítica acadêmica detalhada. Além disso, essa foi uma oportunidade importante para que o pósgraduando participasse de um embate crítico sobre sua pesquisa. As bancas de avaliação dos projetos foram compostas por professores do Programa e por docentes convidados especialmente para esse fim, o que contribuiu para discussões importantes a respeito das questões investigadas nos trabalhos.
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XIV LITERARY STUDIES COLLOQUIUM The XIV LITERARY STUDIES COLLOQUIUM is part of the activities held by the Graduate Studies Programme in Literary Theory and Criticism of IBILCE. As it was the case in its past editions, the colloquium aimed to promote discussions on the projects being researched at M.A. and Ph.D. levels with a view to improving the work of students through scholarly criticism. Besides, it also provided graduate students with the opportunity to engage in a critical debate of their research. Project-evaluating committees were composed of both graduate faculty and professors especially invited for the event, which allowed for thoughtful discussions on the matters looked into by these studies.
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A CRÍTICA LITERÁRIA AO ROMANCE MARAJÓ NA IMPRENSA CARIOCA Alex Santos MOREIRA 1
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Resumo Marajó, segundo romance do ciclo Extremo Norte, escrito pelo romancista paraense Dalcídio Jurandir (1909-1979), narra as agruras de um povo derruído diante do isolamento da ilha homônima à obra e das crueldades dos mandatários locais. A obra começou a ser escrita no Pará durante a década de 1930, entretanto, só foi publicada em 1947, no Rio de Janeiro, pela editora José Olympio. Dividido em cinquenta e três capítulos não titulados, a obra deixa transparecer uma consciência social e uma certa consciência de classe. Destaca-se que esses elementos postos no romance (ora sugestivamente ora explicitamente), além de auxiliarem na construção do discurso ficcional, são marcas inerentes ao romancista; pois, Dalcídio Jurandir fez campanha e apoiou a causa comunista durante quase toda a sua vida. Além disso, foi um romancista premiado, entretanto, os prêmios não foram suficientes para impedir que o prosador fosse praticamente esquecido da história literária nacional. Apesar de a crítica literária ter relegado o paraense a uma espécie de ostracismo literário, a crítica “impressionista” circulante em jornais e revistas em meados do século XX proporcionou a Dalcídio Jurandir uma considerável receptividade. Diante disso, o trabalho expõe como o romance Marajó foi recebido pelos críticos da imprensa periódica do Rio de Janeiro, uma vez que se encontravam nas redações dos órgãos de imprensa verdadeiros formadores de opinião, responsáveis pelo sucesso ou pelo fracasso de obras e autores, além disso, esses críticos foram também responsáveis por uma
UFPA/Belém – PA
contínua atualização e ampliação do quadro de leituras dos brasileiros. Palavras-chave: Marajó; Dalcídio Jurandir; crítica literária; imprensa periódica.
Introdução Marajó, segundo romance do ciclo Extremo Norte2, escrito pelo paraense Dalcídio Jurandir, narra a vida de um povo marcado por tragédias passadas e que vive na iminência de tragédias futuras. A obra começou a ser escrita no Pará durante a década de 1930, entretanto, foi publicada em 1947, no Rio de Janeiro, pela editora José Olympio. Atualmente, o romance está na sua 4ª edição. Dividido em cinquenta e três capítulos não titulados, a obra deixa transparecer uma consciência social e uma certa consciência de classe (embora não sejam esses o seu foco). Vê-se que esses elementos postos no romance (ora sugestivamente ora explicitamente), além de auxiliarem na construção do discurso ficcional, são marcas inerentes ao romancista; pois, Dalcídio Jurandir fez campanha e apoiou a causa comunista durante quase toda a sua vida. Na década de 1930, ainda quando residia no Pará, ele defendeu a luta da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e ao longo dos anos 40, 50 e 60, já residindo no Rio de Janeiro, militou no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Além de militante político, Dalcídio Jurandir foi jornalista, e nos diversos periódicos (principalmente os comunistas) com os quais colaborou com variados textos, manifestou sua consciência social e a sua consciência político-partidária. Destaca-se que na maioria
2 O universo romanesco do ciclo Extremo Norte é composto por dez romances, a citar: Chove nos Campos de Cachoeira (1941), Marajó (1947), Três casas e um rio (1958), Belém do Grão-Pará (1960), Passagem do inocentes (1963), Primeira manhã (1967), Ponte do galo (1971), Os habitantes (1976), Chão de Lobos (1976) e Ribanceira (1978). Há também a obra Linha do Parque (1959), único romance fora do ciclo Extremo Norte, pois fora encomendado na década de 50 pelo Partido Comunista.
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dos artigos, contos, crônicas e reportagens sobressai a opção pelos pobres e desvalidos.
Destaca-se também a participação do romancista no meio intelectual da época. Nas primeiras décadas do século XX, Dalcídio Jurandir estava ligado a grandes grupos de artistas e a outras personalidades de relevo do momento. Entre os grupos têm-se o ligado ao editor José Olympio (composto por vários romancistas, poetas e outros artistas), o grupo ligado ao PCB (cujos membros mais notáveis estavam Graciliano Ramos, Jorge Amado, Nelson Werneck Sodré e Candido Portinari) e o grupo da Associação Brasileira de Escritores (ABDE), que aglutinava um considerável numero de escritores, entre eles, Carlos Drummond de Andrade e os dois nordestinos acima citados. Além da participação nos círculos intelectuais, Dalcídio Jurandir foi um escritor premiado. O primeiro prêmio foi concedido pelo jornal carioca Dom Casmurro e pela editora Vecchi ao romance Chove nos Campos de Cachoeira (1941); o segundo pela Biblioteca do Estado da Guanabara e o terceiro pelo Pen Clube do Brasil, ambos concedidos, à Belém do GrãoPará (1960). E o último conferido pela Academia Brasileira de Letras ao conjunto da obra. Entretanto, os prêmios não foram suficientes para permitirem ao autor uma boa receptividade da crítica literária, como afirma Marlí Furtado (2010, p. 12): “a Dalcídio sempre restou o ‘peixe frito’, quer por ter sobrevivido em parcas condições financeiras, quer por ter sido praticamente esquecido no panorama literário”. A pesquisadora ainda aponta que as Histórias Literárias Brasileiras despenderam pouco espaço ao autor, salvo exceções3 como Temístocles Linhares e Renan Perez.
Além desses, são citadas as considerações de Afrânio Coutinho, Alfredo Bosi, Massaud Moisés, sobre Dalcídio Jurandir, e os trabalhos oriundos das academias, que se multiplicaram nos finais dos anos 90 do século passado. A maioria desses estudos toma, entre os romances do ciclo Extremo Norte, Marajó como principal objeto de estudo, fazendo com que a obra goze de uma pequena fortuna crítica. 3
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E nas poucas vezes que foi agraciado pela crítica, era taxado como um autor representante do regionalismo, ora do “grupo do norte”, ora do “amazônico”, ora do “paraense” e até representante de um “regionalismo menor”. Apenas a crítica de seu conterrâneo, Benedito Nunes, o distancia “consideravelmente das experiências regionalistas” (FURTADO, 2010, p. 174). Pois, segundo Benedito Nunes, os romances são ficções que apresentam um processo de interiorização muito grande, são aventuras de uma experiência interior que cada vez mais se adensa. (NUNES apud FURTADO, 2010, p. 174).
Apesar de a crítica literária ter relegado o romancista à margem do cânone, são comuns as menções aos romances de Dalcídio Jurandir na imprensa periódica. São vários os jornais, revistas e suplementos literários que trazem leituras de suas obras. Por exemplo, Alexandre Rodrigues, ao traçar o perfil da “revista de tendência marxista” Estudos Sociais (periódico que circulou a partir de 1958 e foi dirigida por Astrojildo Pereira), afirmar que: A temática da literatura não esteve ausente. Encontramse artigos, ensaios e resenhas de ou sobre escritores tanto da literatura internacional quanto de representantes das letras nacionais. No primeiro caso, cabe citar, por exemplo, os nomes de Balzac, Bertold Brecht, Dostoiévski, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, Louis Aragon, Maiacovski [sic] e Tolstoi. No segundo caso, é possível encontrar referências de ou sobre os seguintes autores: Dalcídio Jurandir, Euclides da Cunha, Ferreira Gullar, Guimarães Rosa, Jorge Amado e, como não poderia faltar, Machado de Assis. Além das seções de crítica de livros e revistas nacionais e internacionais, que se encontram em quase todos os números da revista, convém destacar os textos marxistas que abordam temas como a psicanálise, o existencialismo, o realismo socialista, o cristianismo, a dialética, a
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polêmica sobre Hegel, uma polêmica científica na URSS etc. (RODRIGUES, 2006, p. 08).
Tânia Regina De Luca (2005) indica que as revistas culturais e literárias interessavam mais diretamente a livreiros e editores, que tinham nas suas páginas um veículo de divulgação de autores e obras. Esses periódicos eram um importante espaço para a manifestação e divulgação de ideias e um espaço no qual os escritores tinham a oportunidade para se legitimarem. Além disso, a imprensa juntamente com os cafés, os salões e as editoras funcionavam como uma rede de sociabilidade para muitos escritores e intelectuais, o que possibilitou a estruturação de um campo intelectual brasileiro.
Outro periódico no qual se aponta a publicação de resenhas e críticas ao romancista Dalcídio Jurandir é a revista Leitura (embora não se auto-rotulasse como comunista, o seu corpo editorial composto por comunistas imprimia em suas páginas os ideais do Partido). Segundo Cláudia Rio Doce (2008), a revista, teve uma vida longa se comparada a outros periódicos da mesma linha editorial, circulou entre 1942 e 1965, no Rio de Janeiro, e passou por várias direções. A revista tinha como objetivos: fazer propaganda dos livros que estavam nas livrarias, promover a aproximação de artistas do povo como forma de democratização da arte e popularizar a literatura. Para Cláudia Rio Doce, Leitura sintetiza a política cultural daquele momento e a partir dela pode-se compreender como se deu o processo de esquecimento de Dalcídio Jurandir da história literária brasileira. [...] o conjunto de material que encontramos nas páginas da revista requer que pensemos a produção cultural de difusão massiva não como um conjunto inerte e definitivamente situado, mas como um campo instável, cheio de tensões. Talvez estas tensões se estabeleçam desde o momento em que folheamos a revista, pois MOREIRA, A. S. | p. 13-27 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 17
uma das características que podemos salientar em Leitura, embora não seja uma particularidade, mas uma característica comum a muitas revistas literárias de outras épocas é o convívio de nomes que se tornaram referências na literatura, como Graciliano Ramos, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Raquel de Queiroz, Jorge Amado, com outros que nos são, hoje em dia, completa ou praticamente desconhecidos: Eloi Pontes, José Maria Belo, Dias da Costa, Galeão Coutinho, Lia Correa Dutra, etc. Longe de recorrer à justificativa de costume ― que parece ser óbvia mas que é também muitas vezes leviana ― e dizer que os grandes escritores, aqueles que realmente tinham talento, permaneceram, enquanto os outros foram esquecidos, devemos tentar compreender as relações aí encontradas e ponderar que houve um tempo em que Oswald de Andrade também se tornou um nome esquecido que precisou ser “resgatado” para uma reavaliação mais justa de seu valor literário. Da mesma forma, o Instituto Dalcídio Jurandir juntamente com a Fundação Casa de Rui Barbosa tem o projeto de reeditar toda a obra de Dalcídio, reivindicando para ela e seu autor uma atenção que julgam jamais terem recebido. Será? Este nome, hoje familiar a pouquíssimas pessoas, está estampado em muitas páginas de Leitura. (DOCE, 2008, p. 04-05).
Como apontou Cláudia Rio Doce, é leviano dizer que o apagamento de Dalcídio Jurandir do cânone brasileiro deveuse à falta de qualidade estética nos seus romances, fato que por si só é negado pelos prêmios que o romancista recebeu. Apesar de a crítica literária ter relegado o paraense a uma espécie de ostracismo literário, a crítica “impressionista” circulante em jornais e revistas em meados do século XX proporcionou a Dalcídio Jurandir uma considerável receptividade; cita-se como exemplo os textos críticos de Josué Montello, Paulo Fleming, Machado Coelho, Francisco Ayres e Omer Mont’Alegre ao romance Chove nos Campos de Cachoeira (1941) publicados no jornal carioca Dom Casmurro.
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Marajó nas páginas da imprensa carioca Diante dessas informações, procurou-se observar como o romance Marajó foi recebido pela imprensa carioca (principalmente na imprensa comunista). É importante assinalar que embora a linha editorial principal dos veículos de imprensa do Partido Comunista fosse as questões políticopartidárias e a defesa do comunismo, as letras e as artes não ficaram de fora de suas páginas. Pois, alguns escritores como Jorge Amado, Graciliano Ramos, Eneida de Moraes e Carlos Drummond de Andrade ou foram colaboradores ou integraram a direção de alguns periódicos. Por exemplo, em meados de 1940, Dalcídio Jurandir compôs a direção do jornal diário Tribuna Popular ao lado de Pedro Mota Lima, Álvaro Moreira, Aidano do Couto Ferraz e Carlos Drummond de Andrade.
Com a concentração de muitos intelectuais na redação dos órgãos de imprensa comunista, alguns desses periódicos ganharam cadernos especiais, seções específicas e suplementos nos quais a literatura e as artes eram discutidas. Sobre a concentração desses intelectuais nas redações dos órgãos de imprensa, Silviano Santiago (1993, p. 15) assevera que lá encontrava-se “verdadeiros formadores de opinião, responsáveis pelo sucesso ou o fracasso de obras e autores, esses críticos foram responsáveis ainda por uma contínua atualização e ampliação internacional do quadro de leituras do brasileiro”. Um dos periódicos que se dedicaram inteiramente a discussão da cultura e das artes e ajudaram na ampliação das referências de leitura dos brasileiros foi a revista Literatura. O periódico foi lançado em 1946 por Astrojildo Pereira, tinha como objetivos declarados aproximar cultura e povo, bem como reunir setores amplos da intelectualidade. A revista não estava diretamente subordinada ao Partido Comunista MOREIRA, A. S. | p. 13-27 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 19
e congregava, realmente, diversos intelectuais de esquerda. O conselho de redação era composto por Graciliano Ramos, Álvaro Moreira, Aníbal Machado, Artur Ramos, Manuel Bandeira e Orígenes Lessa.
Na edição da revista de março, de 1948, aparece o texto “Marajó” escrito por Floriano4 Gonçalves (membro do PCB). Neste artigo, o romance Marajó é lido a partir da ótica do realismo socialista5, enfatizando-se a luta do povo “contra a sociedade de velhos senhores latifundiários e criadores de gado”. Veja-se o que Gonçalves afirma sobre a obra: Esta etapa da evolução da arte de Dalcídio Jurandir, corresponderia, então, a uma mais geral porque o romance brasileiro de vanguarda terá de passar. O realismo não será fotográfico e esquemático, nem puramente crítico. Seria um realismo criador, algo romântico na construção das linhas do novo herói do povo, das lutas de massa por sua emancipação e independência política e econômica. Neste sentido, passaria a estudar e valorizar as próprias virtudes e qualidade populares, a analisar e criticar suas debilidades, a exaltar romanticamente seu sentido de luta pela construção de um mundo novo. Exatamente nisto estaria o processo de elaboração do novo herói positivo, síntese das energias e qualidades populares, encarnação consequente e politicamente justa das que o povo oferece às suas relações de vida coletiva. À medida que este herói for sendo elaborado, o povo irá encontrando nele o eco de suas mesmas aspirações e, por isso, unindo-se a ele, refortalecendo-o, impulsionando-o, tornando-o sua vanguarda de luta. (GONÇALVES, 1948, P. 42).
O texto de Floriano Gonçalves em vários momentos
Floriano Gonçalves foi membro do PCB, ensaísta, jornalista e romancista. Publicou pela José Olympio o desconhecido romance “Lixo”. 5 De maneira bastante geral, pode-se dizer que o realismo socialista foi concebido como um esforço do Partido Comunista soviético para promover uma “cultura proletária” que pudesse servir de contraponto e fazer à “cultura burguesa” e, deste modo, servir como um instrumento propagador do comunismo. 4
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explicita a oposição entre patrão e empregado, entre vaqueiros e fazendeiros e entre o “povo de pé no chão” e os latifundiários. Entretanto, é visível a sintonia da crítica do texto de Literatura às diretrizes programáticas propostas para a literatura e as artes, pelo comissário de cultura do Partido Comunista soviético, Andrei Zdhanov. De acordo com as teses apresentadas por Zdhanov, no I Congresso de Escritores Soviéticos, na Rússia, em 1934, a arte deveria ter uma função educativa, ajudando a formar uma consciência proletária. Para este propósito, a forma deveria se submeter a um conteúdo de exaltação do socialismo e do herói proletário. Apesar de tentar fugir dos paradigmas que colocam Marajó como uma obra puramente regionalista, Floriano Gonçalves não desatrela da leitura do romance sua posição políticoideológica e o seu contexto político imediato (momento de acirramento entre as políticas de esquerda e às de direita). As considerações, do comunista diante do romance dalcidiano, indicam que Gonçalves tomou a obra como um documento histórico, não como uma obra literária. Também o povo, no livro, não parece haver forjado uma consciência que agisse dificultando a reprodução de tipos de latifundiários. Talvez a menor procura e o menor lucro para o gado em pé abrandasse as razões do egoísmo e da dureza que leva a intensificar a exploração do trabalhador e a ampliar o latifúndio para campos de criação. Por outro lado, a luta política anulára-se, uma vez que o coronel Coutinho era a única autoridade a disputar a primazia feudal da região. (GONÇALVES, 1948, p. 44).
É explícita também, na crítica de Floriano Gonçalves, a aproximação de Marajó aos postulados do romance naturalista, orientados pela tríade de Hippolyte Taine (na qual o homem estaria fadado ao meio, a raça e ao momento). MOREIRA, A. S. | p. 13-27 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 21
É o ambiente indomado, agreste, selvagem, a terra sob um regime de relações que a impõe ao homem, mais como elemento de aniquilamento que de progresso. E sobe, penetra no homem, deprime-o, embora ele lute tenazmente. Dentro do quadro de relações miseráveis que o latifúndio impõe, frequentemente, o homem tem de descer à condição de bicho ou árvore para não sucumbir. Exatamente por atribuído a esta unidade constituída do homem do povo lutando contra o meio, através das relações sociais que a posse latifundiária do solo impõe, uma categoria de primeiro plano, o livro de Dalcídio Jurandir apresenta um conteúdo novo que somente raros outros livros nos mostram. (GONÇALVES, 1948, p. 40).
O crítico não consegue ver que o aniquilamento do humano em Marajó não é causado pelo “ambiente indomado”, mas pelos latifundiários que reduzem homens, mulheres e crianças a condição de bichos e árvores. Esse equívoco na leitura não o permite ver que o “ambiente indomado” ao invés de derruir o homem, torna-se uma forma de resistência aos desmandos coronéis. As declarações de Floriano Gonçalves incluemse entre as de outros críticos que queriam tão somente considerar Dalcídio Jurandir como autor regionalista. Contra essa postura da crítica, Marlí Furtado afirma que a técnica usada pelo romancista: [...] quebra em sua obra o tom naturalista a que se associa muito do que foi produzido no Brasil dentro dessa linha. O jogo com o tempo, a mistura de vozes, os monólogos interiores, tudo o que ajuda no traço da simultaneidade presente em suas narrativas, as distancia do naturalismo. (FURTADO, 2010, p. 177).
Entretanto, e apesar de raros, o jornalista comunista, Floriano Gonçalves, consegue vislumbrar os processos de criação estética em Marajó:
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A faculdade de associar a ação presente, relacionando-a ao passado, de juncá-la aos seus elementos estéticos e formadores, é uma das qualidades do romancista [...] dá-lhe o caráter original, não descritivo, mas substancial que faz a arte revolucionar para uma categoria universal. (GONÇALVES, 1948, p. 41).
Observa-se que a crítica de Floriano Gonçalves centra-se nas representações sociais existentes no romance, entretanto, outras questões como liminaridade da existência e vida e morte não são levadas em consideração na leitura do jornalista comunista. Diante da crítica de Gonçalves, pode-se considerar que as tragédias narradas em Marajó são entendidas apenas como algo fatídico (sem relação a com tessitura da obra), que distancia homens pobres de homens ricos, fazendeiros donos de gado e miseráveis despossuídos de lar. É visível que Floriano Gonçalves desenvolve uma leitura centrada no imediato discurso político provocado por Marajó, isto auxiliado pelo reflexo direto da posição político-ideológica do crítico e do autor do romance, pois, não se pode perder de vista que ambos eram militantes do Partido Comunista Brasileiro. Em Marajó reside uma forte oposição entre a liberdade e a necessidade de lutar contra um destino implacável. Esta luta fica muito bem marcada em todos os personagens da obra6, entretanto, torna-se mais explícita em Missunga, Alaíde, Guíta e Orminda, pois, a maioria da ação do romance gira em torno dos quatro.
Missunga, personagem que já deu título à primeira versão do livro, ocupa uma posição limiar na obra, filho do fazendeiro
Marlí Furtado (2010) chama a atenção para a distinção entre ricos e miseráveis no romance que divide a protagonização da obra em dois grupos: um por mulheres pobres (Alaíde, Guita e Orminda) e outro pelos barões marajoaras (cujo representante maior é o Coronel Coutinho). Missunga é o único personagem que transita livremente entre os dois grupos. 6
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Coronel Coutinho, dono de rios, de grandes pedaços terra e de animais de Marajó, vive no embate entre a desobediência às vontades do pai e uma ligeira simpatia à população miserável da ilha. Ao lado de Alaíde, Guita e Orminda, Missunga prefigura como um herói trágico, pois, todos lutam contra um destino implacável, todavia, por mais que lutem contra o destino, acabam sucumbindo diante dele.
Destaca-se que apesar da obra focalizar a oposição entre ricos e miseráveis, não prevalece, ou melhor, inexiste um tom maniqueísta no romance. Entende-se que a narrativa de Marajó é tecida a partir da oposição entre ricos e pobres. As ações do personagem Missunga também marcam esse jogo de oposições.
Pertencia, afinal, perguntava, por fatalidade aos insultos de Adelaide, às crônicas de Manfredo, às elegantes partidas de tênis no Pará Clube, entre ingleses, norteamericanos e os melhores cavalheiros de Belém? Lera, com tão íntimo prazer, a nota esportiva da “Folha” a respeito de “seus dotes magníficos de discípulo digno de Suzanne Lenglen” e o cronista destacava os recursos técnicos, os golpes, o “arremesso agressivo do exímio raquetista da dupla Missunga-Abelardo, campeã no Pará Clube”. Queria era aprender golfe de verdade. E isto valia uma viagem à América do Noite, pensava. No tênis estava sem competidor em Belém, o que o enfastiava um pouco. Já não contemplava com o mesmo entusiasmo e alguma inveja o retrato de Suzanne Lenglen na moldura em seu quarto de S. Jerônimo. Nem mesmo entre os turistas ingleses apareciam bons competidores. O mal da fartura, o sucesso no tênis e o desengano nos estudos, o namoro de Hilda — como este objeto o queria prender, entregarse, engatar na sua herança! — o empurravam para aqueles matos, fazendas, aquela Alaíde que fedia a peixe, a lama da várzea na vazante. (MARAJÓ, 2008, p. 57).
Missunga ao longo da obra manifesta o seu caráter dual,
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dominado pela paixão que nutre por Orminda, Guita e Alaíde, ele é capaz de enfrentar o pai para ter seus anseios satisfeitos, entretanto, diante da miséria que assola as terras do Coronel Coutinho, Missunga sempre recua quando tem de enfrentar a realidade miserável do povo marajoara. Considerações finais
Até o presente momento, considerando o corpus coletado na imprensa carioca para a pesquisa, pode-se separar em dois eixos as críticas ao romance Marajó: o primeiro, enfatizando-o como representação do meio social com seus problemas; o segundo, considerando-o como uma obra regionalista (isto dito ora explicitamente, ora apenas sugerido pela ênfase do crítico nos aspectos naturais da ilha). Destaca-se que ao segundo eixo, geralmente, esta associado à ideia de que o livro pertence à escola do naturalismo brasileiro. A crítica de Roger Bastide, publicada no suplemento literário “Letras e Artes”, do jornal A manhã, em agosto de 1948, explicita com precisão esse discurso recorrente sobre o romance de Dalcídio Jurandir. Veja-se: Eu dizia que “Marajó” pertence à escola naturalista brasileira; o que a caracteriza é, não apenas uma pintura fiel do homem, indo até ao biológico, mas também uma descrição exata do meio social; e porque se resume em poesia. Ora, esta fusão da poesia e da realidade talvez seja caráter comum a todas as literaturas da América do Sul. (BASTIDE, 1948, p. 13).
Apesar de algumas críticas serem consensuais quanto à interpretação de Marajó, considera-se que elas são extremamente relevantes, pois, na contemporaneidade, a literatura e outras artes são mercadorias que estão MOREIRA, A. S. | p. 13-27 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 25
relacionadas a determinadas práticas e finalidades. E não fugindo a esta regra a crítica literária (principalmente a que circula nas páginas da imprensa) está inserida em um complexo sistema de divulgação, legitimação e negação de gostos. De modo diverso e em níveis diferentes, participam desse sistema, os críticos, os editores, o sistema educacional, as academias e, neste caso, principalmente, a imprensa com as críticas literárias consolidadoras de sentido. (JOBIM, 2012, p. 15 e 18). Outro fator que torna relevante a recuperação das críticas literárias publicadas na imprensa carioca a Marajó é a possibilidade de serem levantas hipóteses novas, auxiliando as novas leituras de Dalcídio Jurandir a irem além das propostas “que o sistema em que a crítica se insere pode compreender, trazendo elementos que não são visíveis ou não foram tematizados pelo sistema que está posto...”. (JOBIM, 2012, p. 11-12). Referências bibliográficas
BASTIDE, Roger. Romance daqui e dalhures. In: Letras e Artes: suplemento literário de A manhã. Rio de Janeiro. Domingo, 15 de agosto de 1948; p. 13.
DOCE, Cláudia Rio. Leitura: entre a política cultural e a cultura política. XI Congresso Internacional da ABRALIC – Tessituras, Interações, Convergências. 13 a 17 de julho de 2008. São Paulo.
FURTADO, Marlí Tereza. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir. Campinas: Mercado das Letras, 2010.
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GONÇALVES, Floriano. Marajó. In: Literatura [periódico]. Rio de Janeiro, 1948. p. 40-47. JOBIM, José Luís. A crítica literária e os críticos criadores no Brasil. Rio de Janeiro: Caetés: EDUERJ, 2012.
JURANDIR, Dalcídio. Marajó. 4ª ed. Belém: EDUFPA; Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2008. LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, C. B. (org.) Fontes Históricas. São Paulo; Contexto, 2005.
RODRIGUES, Alexandre M. E. Revista Estudos Sociais: engajamento na renovação comunista. Atas do Colóquio Intelectuais, Cultura e Política no mundo Iberoamericano. 17 a 18 de maio de 2006. Rio de Janeiro. Ano 05, Vol. II. SANTIAGO, Silviano. Crítica literária e jornal na pósmodernidade. In: Revista Estudos Literários. Belo Horizonte, v.1, n.1, p. 11-17, out. 1993.
MOREIRA, A. S. | p. 13-27 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 27
PARATEXTOS LITERÁRIOS: A INFLUÊNCIA DE CAPAS NA RECEPÇÃO DE OBRAS TRADUZIDAS Andréa Moraes da COSTA1
RESUMO: O artigo pretende discutir sobre a importância dos elementos paratextuais para a recepção e a compreensão de obras literárias, conferindo atenção especial às capas dessas obras. Para tanto, durante as discussões, serão apresentadas algumas análises de capas de edições brasileiras da obra Animal Farm (1945) de George Orwell, cotejando-as com sua respectiva capa produzida na língua fonte. O estudo aqui proposto é apoiado na concepção de paratexto do texto literário orientada por Gérard Genette (2009). PALAVRAS-CHAVE: Paratextos literários. Tradução. Recepção.
Introdução Um texto quando publicado e tornado público não é apresentado de forma crua. Uma série de elementos compõe o conjunto da obra, tais como capa, folha de rosto, orelha, ilustrações, anexos, página de rosto, etc. De certo que a responsabilidade pela apresentação desses elementos, na maioria das vezes, é atribuída às editoras. Quando uma obra é reescrita e reeditada em outro idioma passa por reelaborações destes elementos e, em muitos casos, tais reelaborações podem conduzir ou estimular públicos distintos daqueles aos quais seu texto fonte tenha pretendido atingir. Assim, considera-se que os elementos citados acima
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UNIR e UNESP, São José do Rio Preto – E-mail: pfaandrea@ibest.com.br
constituem parte significativa do texto global e que eles atuam de forma direta no processo de compreensão da obra traduzida. Uma vez que os paratextos são também responsáveis pela circulação de uma determinada obra em um determinado contexto de recepção, infere-se que eles podem direcionar o público leitor da obra. Neste sentido, o estudo aqui proposto – apoiado na concepção de paratexto do texto literário orientada por Gérard Genette (2009) – pretende discutir sobre a importância dos elementos paratextuais para a recepção e a compreensão de obras literárias, conferindo atenção especial às capas de obras literárias. Para tanto, durante as discussões, serão apresentadas algumas análises de capas de obras reescritas, cotejando-as com suas respectivas capas produzidas na língua fonte. Definindo Paratextos Cada vez mais parece atribuir-se atenção especial aos elementos informativos que acompanham obras literárias, pois, com a diversidade de livros disponíveis nas livrarias, atentar para além-conteúdo tem se mostrado uma atividade fundamental para as editoras. Assim, informações como as contidas nas orelhas, nos prefácios, nas capas, nas folhas de rosto, por exemplo, podem ser decisivas na comercialização de livros. Em função disto, capistas têm se esmerado na criação de elementos informativos compostos de cores, traços, imagens, etc. que possam instigar a leitura de obras literárias. É a preocupação com o todo que compõe a obra literária, a qual, conforme Gérard Genette (2009, p.9), [...] CONSISTE, EXAUSTIVA OU essencialmente, num texto, isto é (definição mínima), numa sequência mais ou menos
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longa de enunciados verbais mais ou menos cheios de significação. Contudo, esse texto raramente se apresenta em estado nu, sem o reforço e o acompanhamento de certo número de produções, verbais ou não, como um nome de autor, um título, um prefácio, ilustrações, que nunca sabemos se devemos ou não considerar parte dele, mas que em todo caso o cercam e o prolongam, exatamente para apresentá-lo, no sentido habitual do verbo, mas também em seu sentido mais forte para torná-lo presente, para garantir sua presença no mundo, sua ‘recepção’ e seu consumo, sob a forma, pelo menos hoje, de um livro.
Portanto, a compreensão de uma obra literária, para Genette, não se limita ao conteúdo impresso e expresso exclusivamente pelo autor da obra, abrange o todo textual – que está no interior e no exterior da obra –, ou seja, o paratexto. Na sequência, Genette (2009, p.9) conclui, então, que paratexto é “[...] tudo aquilo por meio de que um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores e de maneira mais geral ao público [...]”. Tendo em vista esta orientação, dedicaremos a discussão aqui apresentada à análise de algumas capas produzidas para ilustrar traduções da obra Animal Farm (1945) de George Orwell. Analisando alguns paratextos Animal Farm (1945) de George Orwell – uma obra referência da literatura do século XX – escrita originalmente em língua inglesa e traduzida para diversos idiomas –, pode ser tomada como exemplo para ilustrar a variedade de trabalhos propostos para apresentação e análises de paratextos que acompanham suas traduções, especificamente capas, e que nem sempre expressam relação com a proposta do enredo apresentado pelo escritor no texto fonte. COSTA, A. M. | p. 29-37 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 31
Vale lembrar, brevemente, que a narrativa de Orwell, traduzida no Brasil com o título A Revolução dos Bichos, concentra-se em uma forma satírica, envolta de muita criatividade e criticidade para representar o regime Stalinista – comunismo – que ocorreu na antiga União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Para isso, o escritor recorre à alegoria, utilizando em sua narrativa personagens do reino animal, tais como porcos, cavalos, gansos, vacas, coelhos, gatos, cães e galinhas, os quais, contra um governo totalitário, participam de uma revolução no interior de uma fazenda. O texto de Orwell, portanto, traz um relato baseado em um fato real da época, em que se é possível perceber uma acentuada crítica ao governo soviético, assim como ao capitalismo inglês daquele momento. A imagem adiante diz respeito à capa que acompanhou o texto da primeira edição da referida narrativa de Orwell, em 1945:
Fonte: www.wikipedia.com.br 32 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
Como podemos ver, a arte da capa é notavelmente simples, com poucos elementos passíveis de análise, o que, contudo, não se revela incomum, a julgar pela época em que foi editado o livro. No entanto, devemos atentar para um pequeno detalhe que posteriormente foi deixado de lado em grande parte das traduções de Animal Farm: o subtítulo da obra. Veremos que o complemento “a fairy story” foi omitido das edições brasileiras. Tal omissão é, sem dúvida, compreensível, uma vez que os próprios editores devem ter considerado a possibilidade de enganos por parte do público leitor, que poderia se desinteressar por uma obra aparentemente destinada a crianças – afinal, é a este público que geralmente se destinam os contos de fadas. As ilustrações a seguir mostram algumas das diversas capas produzidas em distintas épocas para apresentar a obra em países como Brasil e Itália. Tradutor: Heitor Ferreira Editora: Círculo do Livro Edição: 1 Nº de páginas: 148 Ano: 1974 País: Brasil
Tradutor: Heitor Ferreira Editora: Edibolso Edição: 1 Nº de páginas: 96 Ano: 1975 País: Brasil
COSTA, A. M. | p. 29-37 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 33
Tradutor: Bruno Tasso
Editora: Arnoldo Mondadori Edição: 1 Nº de páginas: 141 Ano: 1986 País: Itália
Tradutor: Madalena Esteves Editora: Europa-América Edição: 4 Nº de páginas: 128 Ano: 1990 País: Portugal
Tradutor: Heitor Ferreira Editora: Editora Globo Edição: 2 Nº de páginas: 124 Ano: 2001 País: Brasil
Fonte: Página de “A Revolução dos Bichos” e “La Fattoria degli Animali” no Skoob2.
Disponível em: http://www.skoob.com.br/livro/edicoes/3074 e http://www. skoob.com.br/livro/264308-la-fattoria-degli-animali. Acesso em: set. 2013. 2
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Ao analizarmos as capas das edições italiana e portuguesa, percebemos que ambas parecem remeter a um público infantil, com o desenho de porquinhos com aparência amigável, como se a narrativa fosse uma fábula para crianças. A despeito do teor político da narrativa elaborada por Orwell, o próprio título do livro – seja na versão brasileira, seja nas versões europeias – pode induzir a este erro, possibilitando, inclusive, um engano por parte dos capistas desavisados. Já na versão brasileira de 1974, por exemplo, é notável a preocupação do editor em direcionar o público, talvez com a finalidade de atrair a atenção de leitores mais maduros. Foram escolhidas cores sóbrias para compôr a capa e a ingenuidade das figuras suínas, manifesta nas edições europeias, não se faz presente. Evidencia-se, agora, a malícia no olhar do porco; ele tem atitudes humanas, como nos dois outros casos - a exemplo de estar em pé, sobre duas patas. Contudo, há uma informação a mais, crucial: a taça nas mãos do porco – também elemento humano, mas que sugere, novamente, que foi transposta a barreira entre a inocência infantil e aquele ambiente adulto e político onde estão situadas as personagens da obra. A taça sugere a ingestão de uma bebida alcoólica, um hábito dos adultos, e que, portanto, restringe claramente o público leitor a que se destina o livro. É, talvez, este o ponto que mais concretamente diferencia uma arte apta a ser destinada à narrativa em comento de uma arte produzida para ilustrar uma história infantil dos irmãos Grimm, por exemplo. Quanto à edição de 2001, observamos que ela traz em sua proposta de capa a imagem de uma coruja, a qual não designa nenhum vínculo com a obra. Apesar do universo alegórico de Orwell, nesta obra, contemplar o reino animal, não há menção a corujas na narrativa. Observamos, ainda, que o título adotado nestas três edições COSTA, A. M. | p. 29-37 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 35
brasileiras – A Revolução dos Bichos – não lembra em nada o título adotado por Orwell. Entretanto, parece evidenciar com maior clareza a temática da história a ser lida. Para corroborar com a análise exposta, a qual relaciona a manipulação dos elementos paratextuais – nesse contexto, especificamente as capas – a questões politicas, é interessante destacarmos as informações, apontadas por Christian H. Carvalho (2002, p. 72), a respeito do tradutor responsável pelas três edições brasileiras de Animal Farm, mencionadas no quadro anterior:
O tradutor da obra foi o Tenente Heitor Ferreira de Aquino que a assinou apenas como Heitor Ferreira. O tenente era homem de confiança do chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva, que, nos idos de 1964, havia sido o criador do SNI (Sistema Nacional de Informação), além de ter sido um dos membros do Ipês3. Tal fato demonstra que o mesmo tinha intenções políticas ao traduzir a obra de Orwell, explicitado em um trecho de uma carta que ele enviou à Sônia Seganfredo, em 25 de outubro de 1962, e que se encontra reproduzida no apêndice ‘O’ do livro de Dreifuss (ANEXO A), na qual o mesmo informa que o Ipês estava imprimindo e encaminhando para editores amigos várias obras de grande valor como propaganda anticomunista, sendo uma delas Animal Farm. O notável é que Heitor Ferreira funcionava como tradutor e ao mesmo tempo como patrocinador da tradução, pois sendo um membro do Ipês, era, conseqüentemente, um dos idealizadores da empreitada de traduzir tal obra, como apontado pela carta acima mencionada.
Portanto, a soma dessas informações com o conteúdo expresso no interior de uma obra reescrita e com as informações expressas em sua capa poderão orientar nossa leitura e compreensão da obra como um todo textual.
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Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais.
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Considerações finaiS Assim como o ato da reescritura traz consigo marcas ideológicas que envolvem questões culturais, políticas, econômicas, etc., o ato de produção de paratextos como capas de livros também é envolvido por tais questões. Isto ocorre devido ao fato do texto ser composto por um conjunto de elementos paratextuais, tais como a capa, à qual dirigimos atenção específica em nosso trabalho. Podemos, então, a partir de algumas análises paratextuais demonstradas nesta breve discussão, observar a incidência de fatos históricos que possivelmente orientaram a manipulação da atividade dos capistas por parte de editoras. Esse fato possibilita-nos a compreensão de quão relevante e necessário é atentarmos para as informações dispostas nas capas de obras reescritas, assim como possibilita-nos aferir que a forma como os elementos paratextuais são tratados interferem na recepção de obras reescritas. Referências bibliográfica
ORWELL, George. 1984. Trad. Wilson Velloso. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
CARVALHO. Christian Hygino. A Revolução dos Bichos, de George Orwell: tradução e manipulação durante a Ditadura militar no Brasil. Juiz de Fora: UFJF, 2002. Monografia (Bacharelado em Letras: ênfase em Tradução), Universidade Federal de Fora, 2002. GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. COSTA, A. M. | p. 29-37 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 37
ITÁLIA E CECÍLIA MEIRELES Delvanir LOPES 1
RESUMO: A escritora carioca Cecília Meireles (19011964), como se sabe, sempre se mostrou impressionada com as viagens, não apenas pelo conhecimento que isso lhe proporcionava, mas pelo fato de poder ultrapassar suas próprias fronteiras, provocando, assim, além de entendimento do mundo, entendimento de si própria. Foram muitas as suas viagens pelo mundo, seja buscando raízes ou lecionando, recebendo títulos ou a passeio. Ainda assim, frisa sempre que não se considerava uma turista comum, mas uma viajante. Desse modo, as imagens que captava, as pinturas que fazia da Itália, funcionam como pontes para outras viagens, mais profundas do que a mera descrição de pessoas e lugares. A sua curta estadia na Itália no ano de 1953, logo após a viagem à Índia, resultou em uma série de crônicas, cartas e poemas, estes reunidos em Poemas Italianos, apenas publicados em edição bilíngue em 1968 por Edoardo Bizzari. Assim, este artigo propõe-se a mostrar um dos “instantâneos” que a poetisa registrou quando em sua viagem na Itália e o modo como ficou isso registrado também em crônicas e poemas da autora. Suas sutis descrições não se prendem aos detalhes comuns e históricos, pessoas e coisas, mas exploram sentimentos, emoções e divagações que permitem ao leitor dar vazão à reflexões sobre a sua existência e o seu estar-no-mundo. PALAVRAS-CHAVE: viagem, Cecília Meireles, Itália, Poemas Italianos 1
(UNIESP-FACEP, Ibitinga (SP), rinavledsepol@gmail.com)
Viajar A arte de viajar é uma arte de admirar, uma arte de amar. É ir em peregrinação, participando intensamente das coisas, de fatos, de vidas com as quais nos corresponde os desde sempre e para sempre. (MEIRELES, 1999, p. 61)
A epígrafe deste artigo, extraída da crônica “Uma hora em San Gimignano”, nos diz muito do significado que tem, para Cecília, a viagem. Não é um ato simples, comum, corriqueiro, mas é arte, um modo de agir e ser, quase como um talento que o indivíduo precisa ter para que desfrute de sua viagem. Por isso a arte de viajar envolve a admiração, a contemplação e, além disso, o amor. Cecília Meireles não se interessa apenas em sinalizar diferenças ou descrever lugares. Assim é que nos lugares que visita, o sentimento da escritora não é a de ser turista, mas sim a de ser viajante, diferenciação já bem conhecida, como lemos na crônica “Roma, turistas e viajantes”. (MEIRELES, 1999, p. 101): Grande é a diferença entre o turista e o viajante. O primeiro é uma criatura feliz, que parte por este mundo com sua máquina fotográfica a tiracolo, o guia no bolso, um sucinto vocabulário entre os dentes: seu destino é caminhar na superfície das coisas, como do mundo [...]. O viajante é criatura menos feliz, de movimentos vagarosos, todo enredado em afetos, querendo morar em cada coisa, descer à origem de tudo, amar loucamente cada aspecto do caminho, desde as pedras mais toscas à mais sublimadas almas do passado, do presente e do futuro – um futuro que ele nem conhecerá.
O turista apenas quer disfrutar de coisas práticas, tirar muitas fotos dos lugares que visitou para mostrar aos amigos,
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como se fossem coisas estanques, sem vida, presas no tempo para fazerem apenas parte de uma história que não lhes interessa muito, a não ser aquilo que o cicerone diz. Já o viajante volta seu pensamento para a vida que lateja nos lugares, nos monumentos e estátuas, nas cidades e ruelas, nas pessoas e nas casas: “Dizer o quê – de Paris? Os turistas dirão muitas coisas: lugares, preços, estações de metrô. Os turistas sabem coisas práticas. Os outros [isto é, os viajantes] sabem que onde as informações acabam é que a vida começa. E a vida é que vale a pena.” (MEIRELES, 1998, p. 284).
Mas, para Cecília, a viagem vai além do simples deslocamento no espaço e no tempo porque envolve a dimensão da história que se acumula através dos anos nas pessoas e coisas, bem como da simplicidade dos acontecimentos do cotidiano, os pequenos detalhes ou o que, à primeira vista, não chamaria a atenção do turista. A autora, como percebemos, entende a viagem como ato de amor, que pode tanto ser direcionada ao que vivencia ou a si própria. São dela as seguintes palavras, da crônica “Ainda os museus”: [...] quanto a mim – escreve Cecília –, deixo-me ficar para trás, espero que a onda passe, que a voz do cicerone não pese mais nos meus ouvidos. Tudo quanto aprendi até hoje – se é que tenho aprendido – representa uma silenciosa conversa entre os meus olhos e os vários assuntos que se colocam diante deles, ou diante dos quais eles se colocam. Nessa atmosfera de confidência, tudo me parece penetrável e inteligível. Mais tarde, em silêncio maior, a conversa continua, e é simplesmente um profundo monólogo. O que resulta de tudo isso, é, para mim, a aprendizagem. (MEIRELES, 1998, p. 291-292)
Por isso viajar é mais que descobrir lugares e pessoas, uma vez que possibilita o conhecimento e entendimento de si. AsLOPES, D.| p. 39-53 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 41
sim, como nos diz Ianni, “toda viagem destina-se a ultrapassar fronteiras, tanto dissolvendo-as como recriando-as,” (1996, p. 4) sejam elas reais ou sentimentais. Desse modo, os instantes que passa em suas viagens permitem que o que vivencia seja sempre reelaborado, uma vez que a materialidade é apenas ponte para sua imaginação, sua ascese e transcendência. Lemos em “Caminhante”, de Poemas Italianos: Ando atrás de ti, Roma de altos ciprestes e largas águas, como atrás de mim mesma, algum dia, depois da minha morte. (MEIRELES, 1968, p. 99)
O fato é que Cecília esteve sempre envolvida com viagens, fossem elas reais ou permeadas pela imaginação, mas nem por isso menos reais. A viagem é um tema extremamente fértil para Cecília Meireles. Não sem razão o nome de sua primeira obra de grande expressão é Viagem, publicada em 1939. Tal título já apontava para uma espécie de itinerário poético e espiritual que a escritora traçaria, unindo ainda vida e arte. Nas viagens de pensamento vai longe, busca entender a existência e a essência humana, nas viagens físicas em que se desloca de um lugar a outro, faz viagens dentro das viagens, quando seu olhar atento estabelece uma relação e amor com o que vê. Por isso percebemos que ela perpassa os lugares e as pessoas sem pressa, captando instantâneos que ao simples turista passariam despercebidos.
Claro que entende que o tempo passa rapidamente. Daí sua pergunta, ao visitar monumentos em Castela, na Espanha: “que restará destas pressas de hoje, deste breve existir despedaçado em coisas sem nenhuma importância? Este século será uma vertigem, um vazio, na paisagem inexorável do tempo.” (MEIRELES, 1999, p. 20) Ou quando está em Siena, na
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Itália, em 1953: “Ai, não fosse a vida esta urgência! Pudéssemos nós ir sempre subindo e descendo estas ruas, estas escadas, sem fome, sem cansaço, sem hora certa, puramente em alma!...” (MEIRELES, 1999, p. 58).
O tempo que engole tudo, vorazmente, impede a viagem e os retornos aos lugares para que se possa apreciá-los com vagar, nos detalhes sempre esquecidos, na história que comportam consigo. Daí que junto ao sentimento de alegria e amor, a melancolia sempre estará presente. Assim lemos na crônica “Entre o relógio e o mapa”:
Não há pior coisa, para uma pessoa imaginativa e andarilha, que viajar com hora marcada. [...] Poderíamos agora mudar de estrada, e procurar este caminho em ziguezague onde se lê no mapa “Barbadillo del Mercado”. Pois não saberemos quem é esse “Barbadillo” nem que “Mercado” é o seu, porque hoje temos que chegar a Salamanca. [...] Mas não há tempo. Adeuses, adeuses. Há muitos meses estou vivendo de adeuses e de crescentes saudades.” (MEIRELES, 1999, p. 11)
Neste artigo trataremos, especialmente, da viagem que Cecília fez à Itália no ano de 1953, e que rendeu, além das inúmeras crônicas e cartas aos amigos com quem mantinha correspondência, uma série de poemas que foram intitulados Poemas italianos. A viagem à Itália Cecília, ao viajar, não abandonava seu ofício de escritora. Assim é que, como frutos das estadias em diversos países, publica muitas crônicas e poemas, envia cartas e postais aos amigos para partilhar suas experiências. Citamos os Poemas escritos na Índia, compostos em 1953, mas somente publicados LOPES, D.| p. 39-53 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 43
em 1962; os Doze Noturnos de Holanda compostos em 1951 e publicados no ano seguinte e os Poemas Italianos, escritos parte em 1953 durante a viagem e parte no Rio de Janeiro, entre 1954 e 1956, e publicados na íntegra em 1968, em edição bilíngue com Edoardo Bizzarri (1910-1975). Há ainda os chamados Poemas de Viagens, coleção de poemas que abarcam as viagens de 1940 a 1960, referentes a viagens pelos Estados Unidos, México e outros países. Segundo os pesquisadores, o livro Giroflê, Giroflá, publicado em 1956, também teria inspiração nas viagens realizadas à Índia e à Itália. Composto de um poema inicial em forma de cantiga de roda e de mais sete textos em prosa, trata-se de uma mescla de contos/crônicas e foi publicada na Obra Poética de 1958. Neste artigo interessa-nos, sobretudo, a viagem feita pela escritora à Itália, por dois meses, no ano de 1953. De todo o material produzido por Cecília a respeito desta viagem nos deteremos em alguns poemas do livro Poemas italianos e também no diálogo que eles mantêm com as crônicas publicadas em jornais cariocas. O interesse central voltar-se-á para os poemas, pela densidade das palavras, cuja análise se torna muito mais rica e cheia de significado quando iluminadas pelas crônicas da autora.
Os textos das viagens foram escritos durante a estadia na Itália ou tempos depois, rememorando-as e publicando-as em jornais cariocas e paulistas. Tais crônicas foram reunidas e publicadas há pouco mais de uma década (Crônicas de Viagem, 1999) por Leodegário de Azevedo Filho, o que facilitou muito o trabalho dos pesquisadores. Referente ao período italiano, as crônicas estão quase todas agrupadas no volume 2 das Crônicas, embora haja outras no volume 3 e outras, ainda, referenciadas na edição bilíngue de 1968 e que, ao que parece, ainda não foram publicadas. Há ainda que se lembrar que as datas indicadas nas crônicas elencadas por Azevedo 44 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
Filho possuem alguns equívocos com relação às datas em que foram publicadas por Cecília Meireles no Diário de Notícias, jornal do Rio de Janeiro, o que pediria uma revisão.
Das obras que tratam de viagens de Cecília, Poemas Italianos talvez seja a menos conhecida da autora, o que pode ser verificado nos parcos estudos acerca da obra encontrados. Na verdade, passados mais de 40 anos da publicação do livro em edição bilíngue com Bizzarri (se tomarmos como base a época da produção dos poemas entre 1953 e 1956, seriam mais de 50 anos!), não há trabalhos significativos publicados. Acrescenta Cleusa Passos, em um dos artigos sobre a obra: O conjunto do qual fazem parte, Poemas Italianos, é ainda pouco tratado pela crítica, mas comporta recorrências que percorrem os livros anteriores de Cecília. Desde Viagem (1939), ela rastreia veios temáticos que, numa espécie de ritornelo, voltam e re(criam) ressonâncias de temas, paralelismos, metáforas e paradoxos intrigantes. (2007, p. 84)
A viagem à Itália deu-se no ano de 1953, logo após a viagem à Índia. Cecília, acompanhada de seu marido Heitor Vinícius da Silveira Grillo (1902-1971), e ciceroneados, ao que tudo indica, pela amiga Mercedes La Valle, chegou a Roma em março e permaneceu por cerca de dois meses naquele país, itinerário evidenciado por Bizzarri. Foram 12 lugares visitados neste espaço de tempo – Roma (2 vezes), Nápoles, Pompéia, Sorrento, Salerno, Florença, Pistóia, San Gimignano, Siena, Pisa, Veneza e Milão –, percurso feito, boa parte dele, com amigos e de automóvel.
Na edição de 1968 a maior parte dos poemas reunidos tem data e lugar em que foram escritos, bem como Bizzarri dispõe LOPES, D.| p. 39-53 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 45
as crônicas que poderiam referir-se aos poemas com as datas de publicação no Diário de Notícias do Rio de Janeiro. Os poemas não necessitam, sem dúvida, do auxílio das crônicas. Os caminhos percorridos pela poetisa nos poemas permitem uma viagem lírica completa, onde coisas e lugares deixam a dimensão circunscrita e passam à dimensão universal. Contudo, ao ler os poemas atentamente e depois as crônicas (ou vice-versa), não podemos ficar indiferentes ao diálogo que acontece entre os gêneros. As crônicas concernentes àquele período da viagem à Europa esclarecem ou acrescentam sentidos que, talvez, pudessem ficar obscurecidos pelas palavras condensadas dos poemas. Vejamos um dos instantâneos ou da breve “foto” tirada pela viajante Cecília durante sua estadia na Itália e que ficou impressa em poesia e crônicas. Pedras de Florença
Ó pedras de Florença, onde os dias são mansos como pombos dormentes, e as vozes se desmancham com doce antiguidade…
Viva é sempre a memória dos poetas, entre estátuas, e na sombra das pontes, há uma cinza de encontros… Ó pedras de Florença que o tempo eternamente contorna, alisa, brune, torres, loggias, fachadas…
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E não falo das lajes ondes os vivos resvalam, nem dos muros perfeitos onde os perfis despertam a sua eternidade. Falo das pedras simples dos frios cemitérios, esses marmóreos livros de tão polidas páginas, dessas letras de adeuses, de eloquente saudade, tão comovida e terna gentileza das lágrimas.
Ó pedras de Florença, mãos de lírio pousadas no horizonte do mundo, junto à praia das almas… . (MEIRELES, 1968, p. 119-120)
A poesia “Pedras de Florença” é interessante para percebermos a importância que a escritora dava aos pormenores. Com relação à métrica, Cecília faz uso de hexassílabos, muito utilizados na poesia portuguesa. As pedras de Florença estão presentes na cidade de várias maneiras, enumeradas pela poetisa: nas estátuas, nas casas, nas pontes, nas fachadas, nas galerias e pórticos (loggias), nos muros e nas lápides frias de mármore dos cemitérios. É como se a cidade de Florença fosse feita de pedra, já que esse elemento estaria em todos os ambientes, desde os que indicassem vida ou morte. Pedra também é o elemento que traz à memória a história Florença, cidade berço do Renascimento italiano, por isso LOPES, D.| p. 39-53 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 47
uma das mais belas do mundo. Lá é onde estão as obras de Michelângelo, Leonardo da Vinci, Giotto, Botticelli, Rafael Sanzio, Donatello, só para citar alguns. Assim é praticamente impossível não respirar arte e memória quando se está em Florença: Viva é sempre a memória dos poetas, entre estátuas, e na sombra das pontes, há uma cinza de encontros…
Na crônica “Voz em Florença” ficamos sabendo que a igreja Santa Maria Novella é o que primeiro chama a atenção de Cecília em Florença: igreja dominicana repleta de história, de pinturas e afrescos do período gótico e do Renascimento: uma reserva de tesouros artísticos e monumentos funerários. Cecília escreve: “À sombra de suas paredes cobertas de pinturas célebres, de seus altares, de suas capelas, de seu claustro, pode-se ficar longamente evocando essa eclosão de arte que marcou o destino de Florença desde o seu nascimento.” (MEIRELES, 1999, p. 75) É uma espécie de cidade de pedra, nos diz a escritora: “Seus palácios de pedra se equilibram com uma exatidão de jogo geométrico, sem superfluidades ou divagações arquitetônicas. [...] Dentro dela, não se avisam jardins nem árvores, mas fachadas, colunas, torres, escadas, arcos, nichos com santos, estátuas, galerias. Tudo parece cristalizar-se em mineral.” (MEIRELES, 1999 p. 75) A mesma ideia se transpõe nos versos da terceira estrofe de “Pedras de Florença”, indicando a pedra como elemento de duração, relacionada à eternidade, justamente pela sua dureza, contraposta à deterioração do biológico: 48 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
Ó pedras de Florença que o tempo eternamente contorna, alisa, brune, torres, loggias, fachadas…
Tudo é pedra em Florença: não somente as colunas, estátuas e monumentos perfeitamente moldados: “Essa elegância de Florença é uma das suas forças de deslumbramento. Sua arquitetura possui um potencial de silêncio que conduz ao êxtase.” (MEIRELLES, 1999, p. 76). Paradoxalmente o silêncio de pedra muito diz, ou a pedra, mesmo sem o recurso da palavra, é repleta de história. Na crônica “Voz em Florença” a viajante Cecília passa pela Catedral Santa Maria del Fiore, impressionando-se com seu duomo, suas inúmeras obras de arte, como o famoso campanile de Giotto, ou nos baixos relevos de Pisano e della Robbia. Cecília diz que o passeio por Florença, ainda que lembre constantemente do elemento pedra, torna-se mais lírico. É bom lembrarmos que o nome da Igreja, Santa Maria da Flor, pode referir-se ao lírio, símbolo de Florença (“Ó pedras de Florença,/ mãos de lírio pousadas/ no horizonte do mundo,/ junto à praia das almas…”) ou ainda a Cristo, que chegou a ser considerado o rei da cidade, uma vez que as leis cristãs deveriam ser tomadas como base para a vida política e social dos cidadãos. Assim o discurso muda: “O Campanile de Giotto sobe em suas cornijas sucessivas [...], a inquietação da altura das torres, com suas pedras tão longe, tão acima da tranquilidade primitiva do chão.” (MEIRELES, 1999, p.76) Tudo isso é extremamente belo e admirado por Cecília. Na crônica Cecília enumera uma série de estátuas que estão presentes na praça della Signoria, sempre violentas e agressivas, como se nos oferecendo uma imagem panorâmica do cenário que contempla: o chão em que foi enforcado e queimado Savonarola em 1498, religioso dominicano que prega contra as reformas conservadoras da Igreja. Também LOPES, D.| p. 39-53 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 49
Cosmo I, do alto de seu belíssimo cavalo, contempla o espetáculo: Perseu, com a espada na mão direita, suspende, na esquerda, a cabeça de Medusa, que acaba de cortar e de cujos cabelos quase se sente o sangue ainda escorrer. De um lado, as Sabinas são raptadas, do outro, Hércules abate o Centauro; Judite corta a cabeça de Holofernes, Ajax segura o cadáver de Pátroclo. É um espetáculo de violências ... (MEIRELES, 1999, p. 77)
Além disso, há o Davi de Miguel Ângelo, os palácios, como a Galleria degli Uffizzi, repletos de obras de arte, nos quais poder-se-ía passar dias admirando as belíssimas obras de arte. Mas Cecília parece em busca de um detalhe, um a minúcia para seu instantâneo que parece não ter encontrado nas inúmeras estátuas e palácios da Florença de pedra. E não falo das lajes ondes os vivos resvalam, nem dos muros perfeitos onde os perfis despertam a sua eternidade.
Busca pedras de cemitérios, esquecidas, simples, distantes destas pedras eu serviram de base para famosas personalidades e prédios, que estão longe das belas avenidas e dos turistas que sobre elas caminham. Mesmo estas pedras têm sua história e interessam à escritora carioca. Assim faz questão de mostrar, tanto no poema quanto na crônica, que além da Galleria delle Uffizi, mesmo às margens do rio Arno, cerca sete séculos antes, as pedras das pontes eram também muito importantes, como se metaforicamente indicassem os construtores daquela cidade. Para corroborar esse pensamento recorre à Dante, florentino do Duecento, considerado o maior poeta da língua italiana: “E nada me lembra tão vivamente Dante como estas torres de pedra, que vencem o seu próprio
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peso e se empurram a si mesmas para o céu, conhecendo as profundidades dos abismo inferiores por onde passaram.” (MEIRELES, 1999, p. 78)
No poema “Pedras de Florença”, Cecília refaz o convite de Dante em um Sonetto della Vita Nuova (XXXII 5-6), em que diz “Venite a intender li sospiri miei”, como um convite dessas pedras ao viajante para que compreenda os seus lamentos, melancolia e amor, tão presentes em Florença: Falo das pedras simples dos frios cemitérios, esses marmóreos livros de tão polidas páginas, dessas letras de adeuses, de eloquente saudade, tão comovida e terna gentileza das lágrimas.
As histórias passam, as pessoas passam, o que resta é a saudade e a história que permanece impregnada nas pedras de Florença e que acabam sendo renovadas a cada dia. “Em alguma esquina, algum alfarrabista pode estar vendendo livros quase tão antigos quanto essa porta do século XV.” (MEIRELES, 1999, p. 76) Daí a importância, também, das inúmeras pontes de Florença, lembradas por Cecília, para indicar o elemento que permite passar de uma margem à outra ou do estado de contingência à eternidade, próprio das “Pedras de Florença”. Considerações finais
A poesia de Cecília Meireles aqui apresentada mostra o quão ricas são as referências nela encontradas, funcionando LOPES, D.| p. 39-53 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 51
como imagens panorâmicas, se estendendo além dos seus limites. Como poetisa-viajante, a minúcia é que faz a diferença, permeada, claro, com as referências históricas e artísticas dos lugares que visita. No poema “Pedras de Florença” a escritora carioca anuncia a perenidade da memória dos poetas (“Viva é sempre a memória/ dos poetas, entre estátuas,/ e na sombra das pontes,/ há uma cinza de encontros…”) e, por conseguinte, da poesia.
Fica patente também que as poesias de Poemas Italianos quando lidas nas suas relações com as crônicas da autora, produzidas por ocasião da visita à Itália, ganham em profundidade e em clareza, tornando a viagem que Cecília nos convida a fazer com ela, muito mais interessante, já que nos permite ser menos turista. Referências bibliográficas
IANNI, Otávio. A metáfora da viagem. Revista de Cultura Vozes, n. 2, p. 4-19, Petrópolis (RJ), Mar./ Abr. 1996.
MEIRELES, Cecília. Poemas italianos. Trad. Edoardo Bizzarri. São Paulo: Instituto Italo-Cultural Ítalo Brasileiro, 1968.
______. Crônicas de viagem. Org. Leodegário de A. Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. (v. 2) ______. Crônicas de viagem. Org. Leodegário de A. Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. (v. 1)
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PASSOS, Cleusa Rios Pinheiro. Lembranças de Cecília Meireles em Poemas Italianos. In: GOUVÊA, Leila c. Vilas Boas. (org.) Ensaios sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas/ Fapesp, 2007, p. 81-85.
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LITERATURA E CINEMA: ALGUMAS TEORIAS E O CASO JOAQUIM PEDRO Douglas de Magalhães Ferreira 1
Resumo: Este trabalho tem como primeiro objetivo abordar, ainda que de modo esquemático, alguns dos estudos teóricos sobre as intricadas relações entre literatura e cinema. Adicionalmente, intentar-se-á demonstrar como a obra de Joaquim Pedro de Andrade constitui um dos mais complexos exemplos de tradução intersemiótica2 na cinematografia brasileira, por meio de apontamentos sumários de cinco de seus principais filmes: O Padre e a moça, Macunaíma, Os Inconfidentes, Guerra conjugal e O Homem do pau-brasil. Palavras-chave: Literatura, cinema, adaptação, Joaquim Pedro de Andrade.
Introdução Num movimento comum às manifestações artísticas em florescimento – que, no desejo de se firmarem perante os desconfiados olhos do público e da crítica, apoiam-se nas artes já consagradas –, o cinema foi buscar na literatura algumas de suas primeiras inspirações. Mesmo as realizações ditas de “ruptura” (as diversas vanguardas do final do século XIX, por exemplo) veem-se obrigadas a assumir um posicionamento em relação ao passado que desejam negar, promovendo assim
(Mestrando em Estudos Literários – FCLAr) Roman Jakobson teria sido o primeiro a distinguir três possíveis tipos de tradução: a interlingual, a intralingual e a intersemiótica (ou transmutação), termo este que aparece aqui. 1 2
um diálogo, ainda que dissidente, com as manifestações predecessoras.
Com efeito, a tendência do cinema de erguer seus próprios alicerces sobre a literatura, o teatro e/ou a pintura antecedentes não significa uma autodeclaração de inferioridade. Pouco a pouco, a linguagem cinematográfica descobre-se a si mesma, em direção à consciência mais elaborada de suas próprias especificidades. E se nossa argumentação (o processo de amadurecimento da linguagem) é válida, ela não explica, por outro lado, a insistência do cinema em buscar na literatura temas e formas de narrar, nem a influência que os filmes exerceriam sobre os livros posteriormente. Pode-se entrever, portanto, através desses parcos apontamentos iniciais, a grande complexidade que permeia as relações entre os dois meios em questão.
O vínculo entre literatura e cinema remonta às origens do segundo. Georges Mèliés, mestre precursor em seus mais de quinhentos curtas, inspirou sua Viagem à lua (1902) em Júlio Verne e H. G. Well. Outro pioneiro no estabelecimento da linguagem cinematográfica, D. H. Griffith, voltou-se igualmente para a literatura no controverso O Nascimento de uma nação (1915), baseado no romance/peça teatral The Clansman (1905). Do mesmo modo que a ficção científica inspirou a Méliès, o gênero rendeu nas mãos, ou melhor, nas imagens de Stanley Kubrick, ao menos duas obras-primas: 2001: Uma Odisseia no espaço (1968) e Laranja mecânica (1971), filmes elaborados, respectivamente, a partir de um conto de Arthur C. Clarke3 e um romance de Anthony Burgess. Além do diretor de Dr. Fantástico, foram muitos os grandes cineastas – alguns, inclusive, dos mais inventivos em seus roteiros originais – que
3 Na verdade, o próprio Arthur C. Clarke é coautor do roteiro de 2001, redigido enquanto também escrevia o romance de mesmo nome, a partir da ampliação de um conto de sua autoria.
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levaram obras literárias às telas, como, por exemplo: Orson Welles (O Processo, 1962); Godard (O Desprezo, 1963); Buñuel (A Bela da tarde, 1967); Copolla (a trilogia O Poderoso Chefão, iniciada em 1972); William Friedkin (O Exorcista, 1973); Werner Herzog (Nosferatu: O vampiro da noite, 1979); Akira Kurosawa (Ran, 1985). Nem mencionemos aqui fenômenos contemporâneos, tais como a franquia Harry Potter ou os filmes baseados nos romances de Nicholas Sparks.
No caso do cinema nacional, embora as adaptações datem também de seus primórdios4, parecem ter sido os cinemanovistas os que mais foram buscar inspiração na literatura. Surgiram então grandes obras, como, por exemplo: Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos; Menino de engenho (1965), de Walter Lima Jr.; Capitu (1968), de Paulo Cesar Saraceni; São Bernardo (1972), de Leon Hirszman; Lição de amor (1976), de Eduardo Escorel; além dos filmes do próprio Joaquim Pedro. Aliás, nossa única Palma de Ouro em Cannes (até o momento) foi obtida pelo filme de Anselmo Duarte, O Pagador de Promessas (1962), cujo roteiro foi baseado na peça teatral homônima de Dias Gomes. Após as experiências do Cinema Novo, foram diversos os autores brasileiros que tiveram suas obras recriadas pelo cinema: Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Fernando Sabino, Rubem Fonseca, Moacyr Scliar e Machado de Assis. Após a retomada, Walter Salles, Beto Brant, Luiz Fernando Carvalho e Fernando Meirelles são alguns dos diretores que se debruçaram mais intensamente sobre a literatura na realização de seus filmes. O apenas ilustrativo porém diverso quadro acima evidencia a duradoura e profícua relação entre literatura e cinema e inspira este breve artigo a discutir algumas das teorias sobre o exercício da adaptação. Para tal empreitada, partiremos dos
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Ainda em 1914, Luiz de Barros adaptou o romance A Viuvinha, de José de Alencar. FERREIRA, D. M. | p. 55-69 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 57
seminais trabalhos sobre tradução entre línguas. Em seguida, sempre em linhas gerais, abordaremos estudos específicos acerca dos intercâmbios entre literatura e cinema. Como objetivo segundo, pretende-se identificar as fontes das quais Joaquim Pedro de Andrade se serviu para a realização de seus principais filmes, todos pautados na literatura nacional: O Padre e a moça, Macunaíma, Os Inconfidentes, Guerra conjugal e O Homem do pau-brasil. Acreditamos que a obra do cineasta, um dos expoentes do Cinema Novo, constitua um esforço exemplar de recriação literária dentro da cinematografia brasileira, sendo terreno fértil para os estudos das relações entre literatura e cinema. O tradutor e sua árdua tarefa
No ensaio “A Tarefa do tradutor”, publicado pela primeira vez em 1923, a tradução é entendida como “forma”, sendo “preciso retornar ao original”, no qual “reside a lei dessa forma, enquanto encerrada em sua traduzibilidade” (BENJAMIN, 2010, p. 205). É, portanto, através da “traduzibilidade”, já presente na origem, que se estabelece a ligação entre o texto primeiro e o segundo. A finalidade do empenho tradutório passa, por conseguinte, do ato de se comunicar para a expressão do “mais íntimo relacionamento das línguas entre si” (BENJAMIN, 2010, p. 209). Nesses termos, a tradução literal jamais poderia reproduzir o sentido do original em sua plenitude. Valendose da metáfora do vaso estilhaçado, em cujo processo de reconstrução os pedaços devem ser recolocados com especial atenção aos ínfimos detalhes, de modo que se chegará a uma peça-resultado semelhante ao original e preservadora de sua essência, mas jamais idêntica, o autor conclui: 58 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
[...] a tradução deve, ao invés de procurar assemelhar-se ao sentido do original, conformar-se cuidadosamente, e nos mínimos detalhes, em sua própria língua, ao modo de visar do original, fazendo com que ambos sejam reconhecidos como fragmentos de uma língua maior, como cacos são fragmentos de um vaso (BENJAMIN, 2010, p. 221).
A tradução como crítica Haroldo de Campos, poeta e pensador que “transcriou” (para usar um termo cunhado por ele) em língua portuguesa trabalhos de grandes nomes da literatura mundial (Homero, Mallarmé, Mayakovski, Pound), defende o trabalho de tradução como “recriação” e “crítica”, num ensaio apresentado pela primeira vez na Universidade da Paraíba em 1962.
Sendo a “informação estética” dotada de grande fragilidade, a retirada ou a inserção de uma pequena partícula num poema pronto, comprometeria por completo a sua realização. Assume-se então a impossibilidade de tradução dos textos poéticos (sejam em versos ou em prosa) e se postula a liberdade de recriação. Assim, “teremos [...] em outra língua, [...] outra informação estética, autônoma, mas ambas estarão ligadas entre si por uma relação de isomorfia: serão diferentes enquanto linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentre de um mesmo sistema” (HAROLDO, 2006, p. 32-34). Conclui o poeta que a tradução é sempre uma leitura crítica, uma vez que penetra na “fragílima beleza aparentemente intangível” da elaboração poética original, deglutindo-a e revivificando-a, “para trazê-la novamente à luz num corpo linguístico diverso” (HAROLDO, 2006, p. 43).
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Um diferente conceito de fidelidade No ensaio “Por um cinema impuro”, André Bazin, cofundador da revista Cahiers du cinéma, ciente da capacidade do cinema de penetração na sociedade, argumenta que as supostas “degradações sofridas pelas obras-primas na tela” não devem causar indignação, porque, “[...] por mais aproximativas que sejam as adaptações, elas não podem causar danos ao original junto à maioria que o conhece e o aprecia” (BAZIN, 1991, p. 93). Desse modo, a literatura não terá nada a perder, uma vez que os telespectadores ou hão de se satisfazer pela versão fílmica ou buscarão o original. Um dos pontos mais interessantes de sua teoria é a questão da fidelidade. Mas, nos atentemos, o termo aqui não significa reproduzir fielmente ou com exatidão. Ao contrário, “a boa adaptação deve conseguir restituir o essencial do texto e do espírito” (BAZIN, 1991, p.96). Distante da preguiça criativa, ela “exige um talento criador para reconstruir de acordo com um novo equilíbrio, de modo algum idêntico, mas equivalente ao antigo”. A obra fílmica que parte da literária “pode, enfim, almejar a fidelidade – não uma fidelidade ilusória de decalcomania – pela inteligência íntima de suas próprias estruturas estéticas, condição prévia e necessária para o respeito das obras que ele investe” (BAZIN, 1991, p. 98).
Do livro ao filme do filme ao livro do livro ao filme...
Trabalhos como os de Randal Johnson e José Carlos Avellar percorrem promissoras trilhas no tocante ao deslindamento do intercâmbio entre sistemas semióticos distintos. Em ensaio sobre o caso de Vidas secas, livro e filme, Randal
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Johnson (2003, p. 42) vê a fidelidade, enquanto exigência de reprodução fiel ao original, como “um falso problema porque ignora diferenças essenciais entre os meios, e porque geralmente ignora a dinâmica dos campos de produção cultural nos quais os meios estão inseridos”. Dedica também relativa porção de seu ensaio à discussão do amplo escopo das inter-relações entre cinema e literatura. Para além da realização de filmes a partir de livros, existem, por exemplo: produções documentais e ficcionais sobre escritores; referências e alusões literárias implícitas ou óbvias, orais ou visuais em filmes; a participação de escritores na elaboração de roteiros; a discussão sobre o status literário (limitado) de alguns roteiros quando publicados; o impacto da linguagem cinematográfica sobre a literatura; as produções fílmicas mistas, que se nutrem de diversas fontes (JOHNSON, 2003). Um dos trabalhos mais perspicazes no sentido de averiguar e explicitar o intercâmbio entre os dois meios parece ser o de José Carlos Avellar, um dos grandes pensadores e divulgadores de nossa cinematografia. Valendo-se de exemplificações e depoimentos de escritores e cineastas, o estudioso demonstra, em O Chão da palavra, o complexo enredamento entre literatura e cinema, de um modo tal que se torna tarefa ingrata e insensata tentar estabelecer uma primazia de um meio de expressão sobre o outro. Assim, o movimento de influência não é entendido como unilateral, do livro para o filme, mas sim como um fluxo contínuo de permuta. As proposições de seu trabalho se assemelham a uma tautologia teórica, porém, no caso, necessária e reveladora. Para as relações entre literatura e cinema, melhor seria pensar num: [...] processo (cujo ponto de partida é difícil de localizar com precisão) em que os filmes buscam nos livros temas e modos de narrar que os livros apanharam em filmes; em que os escritores apanham nos filmes o que os FERREIRA, D. M. | p. 55-69 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 61
cineastas foram buscar nos livros; em que os filmes tiram da literatura o que ela tirou do cinema; em que os livros voltam aos filmes e os filmes aos livros numa conversa jamais interrompida (AVELLAR, 2007, p. 8).
E Avellar (2007, p. 86) avança e propõe questionamentos da seguinte ordem: “Um romance se desenrola como um filme aos olhos do escritor antes de se transformar em escrita?” Ou ainda, em outro trecho: “A literatura teria inventado o cinema sem se dar conta disso? E depois, conscientemente, teria se voltado para o que inventou para se reinventar (escrevendo adaptações literárias de filmes)?” (AVELLAR, 2007, p. 105)5. Após a abordagem teórica, passemos agora ao segundo objetivo deste trabalho: um breve estudo de caso em torno da obra parcial do cineasta Joaquim Pedro de Andrade. A transcriação cinemanovista de Joaquim Pedro de Andrade
Joaquim Pedro parece ter sido um dos cineastas brasileiros que mais se dedicou ao estudo do intercâmbio entre literatura e cinema por meio de suas obras. Nascido no Rio de Janeiro em 1932, filho do meio de tradicional família mineira6, conviveu desde sua infância com escritores e artistas amigos de seu pai, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, num “ambiente que conspirava em favor de uma formação crítica e consciente” do futuro cineasta (BENTES, 1996, p. 10).
5 De modo análogo a Randal Johnson e José Avellar, Antonio Candido já havia demonstrado em “Estouro e libertação” (1992 [1945]), primeiro ensaio sobre o conjunto da produção de Oswald de Andrade, o caminho da literatura em direção ao cinema, ao destacar a incorporação de alguns processos técnicos difundidos pela narrativa cinematográfica na obra do escritor paulista. 6 Família formada por Graciema de Prates de Sá e Rodrigo Melo e Franco de Andrade, fundador e primeiro presidente do SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual IPHAN).
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Além da experiência de dimensão pessoal, há também um motivo de caráter estético-ideológico que explica a recorrência da literatura brasileira modernista como lastro de seu método de criação: a orientação antropofágica herdada pelo Cinema Novo. “[...] empenhado em buscar uma nova linguagem e identidade, empenhado em repensar a forma do filme e repensar o país através de filmes”, o Cinema Novo tomou “a literatura modernista como um dos seus interlocutores” (AVELLAR, 2007, p. 17). Se essa é a abordagem óbvia para o estudo da produção do diretor, pode-se objetar que é também uma das mais promissoras. Afinal, quase a totalidade de sua filmografia teve como estofo a literatura nacional7.
Em seu primeiro longa-metragem de ficção, O Padre e a moça (1965), inspirado em Carlos Drummond de Andrade, o distanciamento em relação ao poema já se evidencia no título da versão fílmica, na substituição da vírgula do original (“O Padre, a moça”) pela conjunção e. A escolha não é gratuita, pois, a partir dela, sucedem outras mudanças. Com efeito, o texto poético, que retratava um amor impossível, entre personagens “descarnadas” num espaço ilimitado e tempo eterno, vai se transformando num texto fílmico que fixa a narrativa numa pequena cidade descrita em minúcias8. Sentimentos, antes representados abstratamente, são materializados, enquanto
7 Além dos filmes aqui explorados, Joaquim Pedro realizou, entre outros, os documentários O Poeta do Castelo (1959), O Mestre de Apipucos (1959) e O Tempo e a glória (1981), que tratam, respectivamente, de Manuel Bandeira, Gilberto Freyre e Pedro Nava. Para Vereda tropical, seguimento do longa-metragem coletivo Contos eróticos (1977), o diretor se inspirou em conto homônimo de Pedro Maia Soares. Os projetos interrompidos com sua morte – o roteiro não filmado Casa-Grande, Senzala & Cia e o desejo de trabalhar com os livros-memória de Pedro Nava – indicam que o cineasta continuaria trilhando o mesmo método criativo. Seu único roteiro original (não filmado), O Imponderável Bento contra o crioulo voador, com sua fluidez, também evidencia a contaminação literária de seu cinema. 8 O filme foi captado em São Gonçalo do Rio das Pedras, “vilarejo esquecido [e carente de qualquer infraestrutura] na Serra do Espinhaço, no interior de Minas Gerais” (BENTES, 1996, p. 55).
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personagens e “intrigas suplementares” são inseridas. Operase, portanto, uma substituição do “plano ontológico pelo plano social” (SOUZA, 1980, p. 196). O roteiro delimita então claramente o espaço em que se engendra (ou se tolhe) o “negro amor de rendas brancas”. Como não interpretar então as imagens inermes e mortiças dos figurantes e de parte dos personagens coadjuvantes de O Padre e a moça como uma denúncia dos efeitos da marginalização e exclusão social de habitantes de uma região afetada pelo esgotamento de seus atrativos econômicos?
Em sua empreitada posterior, realiza Macunaíma (1969), um dos poucos sucessos comerciais do Cinema Novo. Novamente, a leitura de Joaquim Pedro preserva as linhas gerais do original, ao mesmo tempo em que não se submete à obra-prima de Mario de Andrade. Desse modo, se, por um lado, conserva a orientação antropofágica, o desproporcional, o grotesco e o humor, por outro, quase elimina o aspecto mágico do livro. Ignorando a capacidade da montagem de se aproximar “do relato mítico e organizar as tomadas em condições de ordem e de tempo diversas das normais”, o diretor nos oferece “um Macunaíma quase sem selva, urbanizado, mais ou menos sujeito ao tempo cronológico, esquecido das tropelias do herói pelo Brasil, conservando de todas as metamorfoses apenas aquela, inesquecível, de Grande Otelo virando o Príncipe Lindo” (SOUZA, 1980, p. 197). Ao final do filme, resta a significativa imagem do casaco verde – metonimicamente, a bandeira do Brasil? – manchado de sangue nas águas do rio em que nosso herói sem caráter é morto.
O projeto seguinte é o complexo Os Inconfidentes (1972), cujo híbrido roteiro, de coautoria de Eduardo Escorel, baseiase em fontes diversas: nos relatos processuais dos Autos da Devassa, nos versos dos poetas inconfidentes e na longa 64 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
composição de Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência. O foco do filme não recai sobre a reconstituição linear dos fatos do malogrado levante, tampouco sobre a figura de Tiradentes. Antes, reflete acerca do papel dos intelectuais diante das políticas revolucionárias e problematiza a heroificação do alfares Joaquim José da Silva Xavier, mostrado mais como um falastrão, a quem o povo ignora, e ligado às classes dominantes, do que como um herói propriamente dito. Ao apresentar uma Inconfidência inapta à ação, incapaz de transpor os restritos ambientes de sua confabulação, entre homens mais inclinados à covardia e à satisfação dos interesses pessoais do que ao heroísmo, o diretor contesta a versão oficial sobre a Conjuração Mineira acalentada ao longo dos tempos tanto pela arte quanto pela história, lançando luz simultaneamente sobre o passado e o presente (Brasil sob o jugo do AI-5)9.
Guerra conjugal surge em 1975. O filme é composto por três episódios paralelos – Nelsinho, Dr. Osíris e o casal de idosos –, porém, ligados pela temática: a violência, física e verbal, das relações amorosas. O roteiro foi elaborado a partir de dezesseis contos de seis livros diferentes de Dalton Trevisan. A mesma operação de concisão do escritor e sua obsessiva insistência temática parecem ter sido reproduzidas por Joaquim Pedro na composição de Guerra conjugal, filme que flerta com o kitsch (a abertura, as cores berrantes) e a pornochanchada, sem abrir mão da visada crítica de seu cinema. Assim é que ouvimos uma das personagens exclamar, enquanto, pela sacada, em profundidade, avistamos uma inconfundível imagem da cidade do Rio de Janeiro: “Toda fêmea é uma flor podre: sob o perfume, a catinga da cadela molhada de chuva”. A fala remete apenas à situação diegética ou vai além dela? 9
Conferir Ramos (2002)
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O seu último longa-metragem é O Homem do pau-brasil (1981), radical leitura do espírito da obra/vida de Oswald de Andrade. Na tentativa de por em cena todo o furor criativo e a complexidade do modernista, sua figura é representada no filme por um homem e uma mulher (os atores Flávio Galvão e Ítala Nandi). O longa “não procura colocar na tela as memórias de Oswald, nem contar qualquer das histórias que estão nos textos dele. Procura, isto sim, colocar-se na tela como os textos de Oswald” (AVELLAR, 2007, p. 172). Mais do que transpor suas obras, portanto, o filme quer se comportar como elas, emprestando-lhes os o comportamento entusiasmado, telegráfico, ácido, impetuoso. Diante das observações teóricas e exemplificativas acima expostas, talvez possamos arriscar agora algumas palavras conclusivas. Considerações finais
Como vimos, o estudo das relações entre literatura e cinema nos conduz aos primórdios da arte cinematográfica. Na verdade, se os filmes fossem tão antigos quanto os livros, seríamos conduzidos também às origens da literatura, caso se suponha que a operação do escritor/poeta é primeiramente traduzir em palavras as imagens de sua mente. O movimento de influxos não é, portanto, unilateral, exclusivamente de um meio (a literatura) para outro (o cinema), ou vice-versa, uma vez que a literatura sofreu igualmente o impacto da imagem das telas nas palavras de suas páginas. Mais apropriado seria pensar num intercâmbio, um fluxo contínuo de influências entre as diversas artes, ligadas umas às outras por similitudes em seus diferentes meios de expressão, assim como pela origem comum, o anseio em compreender a jornada humana. Falamos em semelhanças, porém, nunca em correspondências
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exatas, porque cada arte lança mão dos códigos de seu próprio sistema. Por isso, e por estar cada expressão artística inserida numa dado contexto social, a exigência de fidelidade na transposição de um meio para outro é um despropósito. A crítica literária e a cinematográfica podem trabalhar para alertar o senso comum de tal desatino. A discussão acerca das relações intersemióticas entre professores e estudantes na educação básica pode igualmente ser bastante promissora no tocante ao (falso) problema da fidelidade e à geração de interesse por este ou aquele livro a partir de um filme, por este ou aquele quadro a partir de um livro, etc. Como vimos, as predecessoras investigações de Walter Benjamim e de Haroldo de Campos foram seminais. A partir delas, a impossibilidade e as desvantagens de uma tradução exata, palavra a palavra, tornaram-se evidentes. Estava aberto o caminho para se chegar a maduros trabalhos contemporâneos sobre a pluralidade dos imbricamentos entre literatura e cinema. Em vez de uma leitura meramente conteudística e submissa ao texto, outra, mais arrojada, preservadora da orientação estética original, porém, rearranjada e acomodada agora no novo sistema que lhe dá forma. O exercício tradutório como uma operação crítica.
Nesse sentido, a obra do cinemanovista Joaquim Pedro de Andrade, quase toda ela estofada na literatura nacional, mostra-se como um dos grandes exemplos de leitura aguda, questionadora do texto em que se inspirou e da sociedade que a engendrou. Mesmo aprisionado pela tradição – o cânone literário ou a experiência no seio familiar (vida entre intelectuais e escritores amigos de seu pai) –, o diretor não se submeteu às obras originais em que baseou sua filmografia, promovendo a um só tempo uma reflexão sobre a opacidade da linguagem e sobre seu país. FERREIRA, D. M. | p. 55-69 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 67
Referências bibliográficas AVELLAR, José Carlos. O Chão da palavra. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. BAZIN, André. Por um cinema impuro: defesa da adaptação. In: _____. O Cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.
BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. In: HEIDERMANN, Werner (Org.). Clássicos da teoria da tradução. Florianópolis: UFSC, 2010, p. 203-231. (Antologia bilíngue). BENTES, Ivana. Joaquim Pedro de Andrade: a revolução intimista. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996. (Coleção Perfis do Rio, XI).
CAMPOS, Haroldo de. Da tradução como criação e como crítica. In: _____. Metalinguagem e outras metas. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. CANDIDO, Antonio. Estouro e libertação. In: _____. Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo: UNESP, 1992. JOHNSON, John Randal. Literatura e cinema, diálogo e recriação: o caso de Vidas Secas. In: PELLEGRINI, Tania et al. Literatura, cinema, televisão. São Paulo: SENAC, 2003, p. 37-59.
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RAMOS, Alcides Freire. Canibalismo dos fracos: cinema e história do Brasil. Bauru: Edusc, 2002. SOUZA, Gilda de Mello e. Os Inconfidentes. In: _____. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980, p. 195-210.
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MACHADO DE ASSIS: LEITOR E ESCRITOR DE FOLHETIM Ederson Murback ESCOBAR 1
Resumo: O trabalho que segue tenta entender o folhetim (e sua hibridez) em seu princípio, sua evolução, e o romance como um importante gênero que ocupa este espaço folhetinesco. Através do romance Helena, de Machado de Assis, obra publicada inicialmente em folhetim, será feito aqui um estudo sobre esta parte dos periódicos que, disfarçada sob a alcunha de “gênero destinado à distração do leitor”, esconde narrativas que dizem muito sobre as contemporâneas histórias assim como dizem muito sobre quem as lia e escrevia. Além disso, utilizando o romance Helena, tentaremos discutir algumas características folhetinescas nesta obra, pensando também na sua edição em romance. Palavras-Chave: Machado de Assis; Folhetim; Helena.
Helena é uma obra publicada inicialmente em forma de folhetim, no jornal O Globo do Rio de Janeiro, entre seis de agosto e 11 de setembro de 18762, e, no mesmo ano, editada
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(UNESP – ASSIS. Bolsista CAPES)
A data de publicação da última parte da obra não consta no original encontrado no acervo da Hemeroteca Digital Brasileira devido à destruição da parte superior do jornal, onde se encontrava essa informação. No entanto, observando a segunda página do exemplar, pode-se notar, através de anúncios diversos, que se trata de 11 de setembro. Este detalhe já causou equívocos quanto à data final de publicação de Helena. Mesmo Regina Zilberman cita a publicação do último capítulo da obra para o mês de Novembro, em seu livro Estética da recepção e história da literatura (1989). 2
em livro. De acordo com a ordem de publicação da narrativa em questão, trataremos aqui principalmente da sua primeira forma, em folhetim, talvez por esta questão significar mais do que a “forma” na qual a obra foi publicada, mas por que esta forma folhetinesca pode ter incidido diretamente sobre o teor da obra, o que veremos adiante. Antes de começarmos de fato a entender o folhetim, faz-se necessário um esclarecimento sobre o folhetim e o romancefolhetim, sendo que o segundo é o que mais interessa aqui. Inicialmente o folhetim era um espaço “livre”, destinado à utilidade pública e à diversão. Segundo Marlyse Meyer:
Aquele espaço vale-tudo suscita todas as formas e modalidades de diversão escrita: nele se contam piadas, se fala de crimes e de monstros, se propõem charadas, se oferecem receitas de cozinha ou de beleza; aberto às novidades, nele se criticam as últimas peças, os livros recém-saídos (...). (MEYER, 1996, p.57-58.)
Ou seja, o folhetim começa como um espaço vazio, onde tudo se publicava, não havia uma definição quanto ao seu conteúdo, o que fez dele um lugar de experimentação. Esse espaço, mais do que divulgador de recreação e noticias de interesse público, também foi destinado a pequenas narrativas, além de reclamações, pequenos protestos e críticas sociais, o que deu lugar a outros gêneros textuais, entre os quais, a crônica: Assim, ele (o gênero crônica) parte do real, das circunstâncias ocorridas diante dos seus olhos e busca registrá -las para que se tornem concretas. Acrescenta ao relato um “toque de lirismo reflexivo”, certa coloquialidade, e desses elementos surge a crônica. No século XIX, ela passa a fazer parte do jornal, quando esse veículo se torna cotidiano e de tiragem elevada,
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mas recebe outro nome: folhetim. Importado da França, o feuilleton ocupa o rodapé da primeira página e tem a finalidade específica de entreter. (CALLIPO, 2010, p.17)
E Marlyse Meyer também inteira essa não-distinção dizendo: “Quem sabe se traçar a crônica do folhetim não é um pouco fazer o folhetim da crônica” (MEYER, 1996, p.57).
E essa indefinição do folhetim vai muito além, e, como dito anteriormente, vem da sua gênese: (...) Havia já, desde o começo do século, o feuilleton, ou rodapé, tradicionalmente de tom e assuntos mais leves que o resto do jornal, muito cercado pela censura. Podia ser dramático, crítico, tornando-se cada vez mais recreativo. O folhetim vai ser completado com a rubrica “variedade”, que é a cunha por onde penetra a ficção, na forma de contos e novelas curtas. (MEYER, 1996, p.30-31).
Foi dessa forma que o folhetim começou a ser sinônimo de narrativa ficcional, já que, depois desse começo com contos e novelas curtas, o espaço do folhetim foi largamente ocupado por romances (geralmente divididos em capítulos), gênero que vinha em pleno crescimento desde antes do começo do século XIX, acompanhando a aumento do público leitor. (WATT, 2010, p.7) Romance e folhetim têm uma ligação em via de mão dupla, onde o êxito de um, de certa forma, dependeu do outro. O sucesso do folhetim teve grande relação com o romance, já que, a maior parte do que se publicava nos rodapés dos jornais, revistas e periódicos, ou pelo menos a maioria dos textos mais aclamados entre os publicados, eram romances adaptados para o “esquema” folhetinesco. Já o romance, gênero que alcançava seu apogeu no século XIX, também deve algo ao foESCOBAR, E. M. | p. 71-86 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 73
lhetim, já que este “gênero menor” foi uma espécie de início de uma democratização da leitura e, consequentemente, da leitura de romances. Segundo Marlyse Meyer,
(...) inventado pelo jornal, e para o jornal, o feuilleton-roman, como era chamado a princípio, acabou sendo fator condicionante da vida do mesmo. Nasceu na França, na década de 1830, concebido por Émile de Girardin, que percebeu, na época de consolidação da burguesia, o interesse em democratizar o jornal, a chamada grande presse, e não mais privilegiar só os que podiam pagar por caras assinaturas. Para aumentar o público leitor havia, pois, que barateá-lo – o que se conseguiu também mediante a utilização da publicidade, de origem inglesa – e arejar-lhe a matéria, tornando-o mais acessível. (...) O passo decisivo é dado quando Girardin, utilizando o que já vinha sendo feito para os periódicos, decide publicar ficção em pedaços. Está criado o mágico chamariz “continua no próximo número” e o feuilleton-roman.” (MEYER, 1996, p.30-31).
Essa relação também trouxe pequenos “prejuízos” tanto para o romance quanto para o folhetim. No caso do romance, este gênero teve uma grande perda em termos de conteúdo, ou melhor, teve de passar por grandes restrições de conteúdo (não só o romance, já que os contos, novelas, crônicas, etc., também tiveram que restringir seus assuntos). Sendo, em sua maioria, iniciativas privadas - que, por vezes, temiam represálias dos órgãos de governo -, os jornais, revistas e periódicos em geral acabavam por ter direcionamentos políticos que os limitavam nas questões abordadas. Para exemplificar este fato, podemos citar uma passagem que também sai do livro de Marlyse Meyer, tratando da censura napoleônica: (...) “Se eu soltasse as rédeas à imprensa”, explicava Bonaparte ao célebre Fouché, seu chefe de polícia, “não ficaria três meses no poder” (...) (MEYER, 1996, p. 57). A autora também cita o
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exemplo de Madame Bovary, que, sendo vítima da autocensura do diretor da Revue de Paris, sofre vários cortes, mesmo contra a vontade de Flaubert. Além disso, o direcionamento desses periódicos era muito bem delimitado, sendo que, em sua maioria, as regras de moral e bons costumes acabavam por limitar os conteúdos das narrativas publicadas. O próprio Machado de Assis é grande exemplo deste caso. Após evidenciar o público-alvo do Jornal das Famílias, periódico onde o autor foi dos mais importantes colaboradores, Sílvia Maria Azevedo (2008) nota também a carga ideológica deste jornal, além de reforçar as aparentes rupturas de Machado de Assis: (...) e a imprensa periódica recreativa, voltada para o âmbito doméstico e feminino, a exemplo do Jornal das Famílias (1863-1878), vieram colaborar, com igual empenho, na missão civilizadora de que se incumbiu a “nova geração” da qual Machado de Assis fazia questão de participar com indisfarçável orgulho.
Se a atividade crítica de Machado nos anos de 1860 se deixa ler, como já foi sustentado, como projeto de reforma do gosto literário dominante, reforma que passava pela educação estética do público leitor, e da qual o escritor vai se incumbir de levar a efeito quando se põe a escrever contos no Jornal das Famílias, é curioso pensar que esse projeto vinha pôr em xeque um tipo de literatura que encontrou larga acolhida no periódico de Garnier: o conto moral. (AZEVEDO, 2008, p.169)
Jaison Crestani, em sua dissertação intitulada Machado de Assis colaborador do Jornal das Famílias (2007), também questiona a subversão ou não de Machado em relação à ideologia moralizante do impresso:
Se a moralidade era “indispensável” para atender as exigências da publicação do texto no Jornal das Famílias, ESCOBAR, E. M. | p. 71-86 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 75
resta saber, no entanto, se as narrativas machadianas atendem efetivamente aos critérios morais e aos padrões ideológicos impostos pela direção do periódico, ou se Machado de Assis teria assumido, por outro lado, uma postura subversiva em relação a esse aspecto. (CRESTANI, 2007, p. 136)
Jaison Crestani observa que, no prefácio de Contos sem datas, Raimundo Magalhães Junior nota transformações importantes em obras de Machado de Assis das quais, saindo do Jornal das Famílias para o livro, teriam sido retiradas pelo autor certas passagens onde se faziam as ‘moralidades’, para adequarem-se aos padrões do jornal. Utilizando esta constatação, Jaison procura entender a forma pela qual Machado de Assis lidou com a moralidade do jornal em questão às vezes de forma irônica, conforme a constatação de Silvia Azevedo, ou às vezes artificializando a moralidade que encerra o conto. No caso do folhetim, um dos possíveis “prejuízos” resultantes da relação entre este e o romance talvez seja a forma pela qual o romance “ocupou” este lugar nos periódicos, praticamente não permitindo que este espaço fosse utilizado por outros textos, fazendo com que o folhetim perdesse um pouco de suas múltiplas facetas e se tornasse algo muito mais próximo do romance do que de outros gêneros.
E o escritor que inicia essa aventura por este espaço romance-folhetinesco é Balzac, “o primeiro a tentar o modelo, com La vieille fille em outubro de 1836” (MEYER, 1996, p.60), obra encomendada por Émile Girardin, citado acima. Mas é na década de 1840 que o romance-folhetim assume sua forma mais definitiva, o que chega a confundir o termo “folhetim” com esta nova forma de publicação do romance: A década de 1840 marca a definitiva constituição do
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romance-folhetim como gênero específico de romance. Eugène Sue publica no Journal des Débats entre 1842 e 1843 Os mistérios de Paris. Em 1844 sai, do mesmo Sue, O judeu errante; de Dumas, Os três mosqueteiros e O conde de Monte Cristo; de Balzac, a continuação folhetinesca de As ilusões perdidas, ou seja, Esplendores e mistérios das cortesãs. A invenção de Dumas e Sue vai se transformar numa receita de cozinha reproduzida por centenas de autores. A fórmula tem outra conseqüência: uma nova conceituação do termo folhetim, que passa então a designar também o que se torna o novo modo de publicação de romance. Praticamente toda a ficção em prosa da época passa a ser publicada em folhetim, para então depois, conforme o sucesso obtido, sair em volume. (MEYER, 1996, p.63)
Em relação à estrutura do romance-folhetim, esta também se confunde com outros gêneros textuais, e Marlyse Meyer nota que as próprias condições de publicação influenciaram na forma desse folhetim que nascia, o que vai “acabar suscitando uma forma novelesca específica, aquela precisamente com que o termo folhetim vai acabar se confundindo” (MEYER, 1996, p.31).
Portanto, o folhetim, de uma forma geral, tinha seus limites com a crônica pouco traçados no início (e mesmo com outros tipos de texto como notícias de jornal, pequenas propagandas, receitas, e o que mais se publicasse naquele espaço), além de que, o próprio termo “folhetim” acabou sendo tratado como sinônimo de romance folhetinesco, conforme visto acima. O romance-folhetim e a narrativa novelesca também se confundiam, até porque a necessidade de publicação conduzia as obras folhetinescas a terem certo suspense e dramaticidade, para que leitor comprasse o próximo número do periódico, e estas características sempre são encontradas nas tradicionais novelas. O melodramático entra no folhetim junto com o ESCOBAR, E. M. | p. 71-86 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 77
romance romântico, carro-chefe das obras que entraram no esquema do folhetim no século XIX. E, Marlyse Meyer, ao destacar a forma com que Dumas lidava com esse novo espaço para seu texto, apresenta mais um gênero com o qual o folhetim divide características:
Dumas descobre o essencial da técnica do folhetim, mergulha o leitor in media res, diálogos vivos, personagens tipificados, e tem senso de corte de capítulo. Não é de se espantar que a boa forma folhetinesca tenha nascido das mãos de um homem de teatro. (MEYER, 1996, p.60)
Além de podermos notar alguns aspectos que o folhetim dividia com outros gêneros, literários ou não, no que se refere ao que define um romance-folhetim, podemos enumerar diversas características, entre elas o suspense (contido principalmente no “continua no próximo numero”), sua localização no rodapé, sua finalidade de entreter e sua aparência descompromissada, o retorno do já dito, entre outras. Podemos tentar entender como uma destas características do romance-folhetim se apresenta diretamente em Helena, de Machado de Assis. Comecemos pelo “retorno do já dito”, e as múltiplas interpretações que esse aspecto pode suscitar se levarmos em consideração uma obra publicada em folhetim e, depois, em romance.
Em seu livro Estética da recepção e história da literatura (1989), no capítulo sobre o romance Helena, Regina Zilberman destaca a ciclicidade do romance de Machado, pensando primeiramente nas mortes que iniciam e terminam a narrativa. A autora aponta a importância da morte do Conselheiro no começo da narrativa como ponto fundamental para o início e desenvolvimento dos conflitos na trama, e a morte
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de Helena como o ponto que encerra a problemática da obra. No sub-capítulo retrospecto, a autora trata da necessidade de revisão e reinterpretação, por parte do leitor, dos acontecimentos do romance machadiano em questão. Zilberman também fala sobre os pequenos “enigmas” que são implantados na obra e que a “ação não avança desconsiderando o que foi apresentado antes, pelo contrário, as pistas dispostas durante o percurso são retomadas e explicadas, deixados em aberto apenas pequenos detalhes” (p.76-77). Nesse sentido, a autora ressalta que esses enigmas seriam postos no texto com a intenção de que o leitor retorne ao texto após lê-lo inicialmente, para, numa segunda leitura, poder rever os mistérios e fazer as ligações necessárias para uma maior significação dos personagens e, consequentemente, da obra. Para a autora, estes enigmas e o retrospecto que eles incitam, além do “esquema definido e organizado” da narrativa, são símbolos de que o romance teria sido composto por completo, mesmo que tenha sido publicado inicialmente em folhetim.
Certamente a obra parece ter sido composta de forma única, não só pelos enigmas que a autora cita, mas pela concatenação perfeita dos fatos. Entretanto, é bem possível que o que Regina Zilberman caracteriza como “retrospecto”, e que ela diz ser usado para que o leitor retorne ao romance e entenda certos “enigmas” implantados pelo narrador, possa ser sim, além disso, um artifício do romance que é publicado em folhetim. Ou seja, assim como diz Marlyse Meyer, esses retrospectos das narrativas em folhetim eram “as necessárias redundâncias para reativar memórias ou esclarecer o leitor que pegou o bonde andando”. (MEYER, 1996, p.59) Regina Zilberman diz o seguinte:
Este fato (dos enigmas que precisam ser reexaminados), determinante do vai e vem da leitura, tem, de imediato, ESCOBAR, E. M. | p. 71-86 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 79
certa importância, na medida em que Helena foi publicada inicialmente sob a forma de folhetim no jornal O Globo, saindo com regularidade entre agosto e novembro de 1876, só depois, mas no mesmo ano, sendo editada em livro, pela Garnier. Apesar da destinação primeira, é possível pensar que Machado de Assis programou o texto desde o início para aquela última forma: não só porque, quando começou a lançá-la em capítulos em O Globo, já estava com o contrato assinado com a editora, mas também porque a narrativa parece apresentar um esquema definido e organizado desde a página de abertura. (ZILBERMAN, 1989, p.76)
O fato de Machado de Assis já ter contrato assinado com o a editora não responde necessariamente à pergunta: Helena foi primeiro romance ou romance-folhetim? Entretanto, a autora encontra algumas características que caracterizam esta obra mais como romance do que como um romance adaptado para o folhetim. Além da unidade da obra e dos enigmas plantados, pontos em que Regina Zilberman se apóia para caracterizar Helena como obra composta por completo, dois pontos mais podemos destacar nesse sentido. Primeiro podemos lembrar que os inícios dos capítulos de Helena não são recapitulativos. Nenhum capítulo começa com expressões que tenham a aparente intenção de “renovar” a memória do leitor, muito menos por em contexto o leitor que “pegou o bonde andando”, para usar a expressão de Marlyse Meyer. Além disso, em relação à questão pensada anteriormente sobre a adesão ou não de Machado à moralidade inerente do jornal, não vemos mudanças essenciais na obra na sua reconfiguração em romance, como se constatou existir na mesma condição com os contos citados acima.
Sendo assim, fica difícil definir se Helena foi primeiro romance ou romance-folhetim, já que, mesmo tendo importantes características que poderiam englobá-lo mais como ro80 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
mance do que folhetim, o enredo deste romance também é muito compatível aos moldes folhetinescos.
Podemos destacar algumas características folhetinescas em Helena: assuntos polêmicos que não ferem o código de moral e bons costumes da época; capítulos que estimulam a curiosidade e prendem o leitor; linearidade dos fatos; herói (no caso heroína) que se vê em problemas não causados por ele, mas, mesmo assim, que precisa resolvê-los; morte causada por sofrimento; amores impossíveis e amores por interesse; entre outras. Falando das características do romance nacional que têm suas origens no folhetim, José Ramos Tinhorão parece descrever Helena:
De fato, e embora a maioria dos historiadores da literatura brasileira não chegue a mencionar essa circunstância, é do romance de folhetim que se originam as principais características da técnica do romance no Brasil: a constante intervenção do autor no desenrolar das histórias (inclusive dirigindo-se aos leitores em tom de conversa); a extrema complicação dos enredos, num desdobramento linear de quadros sem preocupação com a verossimilhança; a finalização de cada capítulo em clima de suspense; e a surpresa da retomada de personagens e situações anteriores em conexões inesperadas com as ações atuais (chegou a ser lugar-comum nas histórias românticas os casos de amor impossível, por descobrirem os amantes – sempre no último capítulo – que eram irmãos). (TINHORÃO, 1994)
Certamente Helena não tem um desdobramento “sem preocupação com verossimilhança”, conforme o que Zilberman (1989) fala sobre a linearidade da obra, e, obviamente Tinhorão não falava desta obra em específico, nem mesmo de qualquer obra de Machado de Assis, no entanto, na mesma descrição, o crítico parece também descrever o narrador maESCOBAR, E. M. | p. 71-86 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 81
chadiano de alguns dos romances mais bem recebidos pela crítica.
Antes de escrever folhetins Machado de Assis lia os exemplares de obras francesas publicadas nesse espaço dos periódicos, e isso pode ser comprovado pelas inúmeras citações, alusões ou diálogos com obras de autores como Vitor Hugo, Alexandre Dumas, Feuillet, entre outros. Mesmo alguns periódicos franceses eram citados como leitura de suas personagens (Sofia, personagem do romance Quincas Borba, lia Feuillet e a Revue des Deux Mondes, periódico francês de extrema importância no século XIX). E este diálogo entre algumas obras e autores franceses e as narrativas de Machado de Assis teria qual finalidade?
Esta questão do local e do universal na literatura brasileira já foi muito discutida em nosso país, passou pelo século XIX, no século XX supostamente encontrou o que Mario de Andrade chamaria de “estabilização de uma consciência criadora nacional” e, mesmo no século XXI, ainda não sabemos o limite entre o que é “nosso” e o que veio de “fora”, talvez porque isso envolva questões sócio-históricas profundas, algumas delas abordadas por Antonio Candido em seu trabalho Literatura e subdesenvolvimento (1989). E, mesmo Machado de Assis já falou muito sobre o assunto. Bem antes de escrever suas mais importantes obras, o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas deu sua opinião sobre o que se escrevia nos folhetins da época, mostrando preocupação com a força que as narrativas do velho mundo tinham aqui: Na apreciação do folhetinista pelo lado local, temo talvez cair em desagrado negando a afirmativa. Confesso apenas exceções. Em geral o folhetinista aqui é todo parisiense; torce-se um estilo estranho, e esquece-se nas suas divagações sobre o boulevard e Café Tortoni, de que estão so-
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bre mac-adam lamacento e com uma grossa tenda lírica no meio de um deserto. Alguns vão até Paris estudar a parte fisiológica dos colegas de lá; é inútil dizer que degeneram no físico como no moral. Força é dizê-lo: a cor nacional, em raríssimas exceções tem tomado o folhetinista entre nós. Escrever folhetim e ficar brasileiro é na verdade difícil. Entretanto como todas as dificuldades se aplanam, ele podia bem tomar mais cor local, mais feição americana. Faria assim menos mal à independência do espírito nacional, tão preso a essas imitações, a esses arremedos, a esse suicídio de originalidade e iniciativa. (AZEVEDO; DUSILEK; CALLIPO, 2013, p. 86).
Quatorze anos depois, a opinião de Machado muda significativamente, talvez pela resistência do autor ao que Antônio Candido chamaria de “regionalismo pitoresco” 3: Sente-se aquele instinto até nas manifestações da opinião, aliás mal formada ainda, restrita em extremo, pouco solícita, e ainda menos apaixonada nestas questões de poesia e literatura. Há nela um instinto que leva a aplaudir principalmente as obras que trazem os toques nacionais. A juventude literária, sobretudo, faz deste ponto uma questão de legítimo amor-próprio. (ASSIS, Instinto de nacionalidade, ver p.)
Em seguida completa:
3
Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento
(CANDIDO, 1989, pg.159)
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íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. (ASSIS,...)
O que podemos entender da apreciação dessa questão da cor nacional ou da universalidade da literatura por Machado, é que sua opinião passou por uma evolução crítica e estética relativamente natural, assim como foi natural que o regionalismo surgisse como uma negação do colonizador pelo colonizado. Entretanto, a aparentemente conclusão a que Machado chega dessa discussão pode ser vista nas suas obras melhor realizadas, ou seja, narrativas que foram construídas tendo como base os preceitos por ele mesmo instituídos.
Pensando que Machado de Assis escreveu o Instinto de nacionalidade três anos antes de escrever Helena, fica difícil não pensar que este romance teria sido construído levando em consideração as qualidades estéticas que o autor tanto prezava naquela época. Ou seja, nesse contexto, fica difícil não entender Helena, romance criado sem as características exageradamente nacionais dos romances da época, como uma obra que se posiciona num cenário mundial, através do diálogo com obras de autores franceses como Feuillet, Abade Prévost, Bernardin de Saint-Pierre, entre outros, sem, entretanto, deixar de lado a “cor local”, fundamental também para a identificação dos leitores daqui4.
“(...) Considerando o público com que Machado contaria em qualquer das versões da novela, o leitor pertenceria ao grupo social elevado (como o de Estácio) ou a um setor intermediário, ainda ralo, composto da classe média ou de brancos livres que sabiam ler e trabalhavam como dependentes ou agregados da alta burguesia. O espectro social dos leitores era bastante reduzido e Machado, de certa maneira, o reproduz na obra. (...)” (ZILBERMAN, 1989, p.84) 4
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HOFFMANN E BALZAC: FANTÁSTICO E LOUCURA Elaine Cristina dos Santos SILVA1
Resumo: Neste trabalho serão apresentados os resultados parciais de uma pesquisa em curso a respeito da relação intertextual entre os contos fantásticos do alemão E. T. A. Hoffmann (1776–1822) e do francês Honoré de Balzac (1779–1850) a partir dos contos “La cour d’Artus” (1816) e “La leçon de violon” (1819), de Hoffmann, e “Le chef d’œuvre inconnu” (1831), de Balzac. Observamos, nos três contos, a presença de personagens artistas geniais e mentalmente transtornadas, a partir das quais o “fantástico” é desencadeado. A visão distorcida da realidade que essas personagens apresentam, em virtude da condição conturbada de suas mentes, também é uma questão cara à literatura fantástica, na medida em que propõe uma reflexão acerca dos limites entre realidade e imaginação. Tomando como base os estudos de Todorov (1970), Castex (1974), Vax (1974) e Schneider (1985), explicitar-se-á como a literatura fantástica era desenvolvida no século XIX, para que se evidencie como os autores do corpus contribuem nesse contexto, visto que seus contos distanciam-se do conto fantástico tradicional. Por meio de trabalhos como os de Bessière (1974) e Batalha (2003), mostrar-se-á a relação do fantástico com os debates relativos ao sujeito do século XIX, momento histórico no qual a humanidade experimentava grandes mudanças, impulsionadas pelo Iluminismo. Por se tratar de um estudo que remete à área da literatura comparada, a noção de intertextualidade, de acordo com Kristeva (1974), que considera todo texto como um “mosaico de citações”, será útil, assim como as reflexões de
1 (IBILCE/UNESP – São José do Rio Preto; elaine.cs_silva@yahoo.com.br)
Samoyault (2008), que pensa a intertextualidade como a manifestação da memória da literatura.
Palavras-chave: Literatura comparada; conto fantástico; E. T. A. Hoffmann; Honoré de Balzac; artista; loucura.
O fantástico Como resultado do espaço que o fantástico vem ganhando entre os estudiosos de literatura, há hoje uma grande variedade de definições para este termo, o que tem servido para esclarecer diversos aspectos sobre suas múltiplas facetas. Embora nem sempre haja consenso entre todas as correntes críticas e teóricas quando o assunto é a definição do que seria o fantástico, a maior parte dos estudiosos assume a presença do sobrenatural como condição necessária à produção da literatura fantástica.
Tzvetan Todorov, em seu em Introduction à la littérature fantastique (1970), um dos livros nos quais apoiamos nossa pesquisa, define a literatura fantástica como a hesitação que o leitor experimentaria ao se deparar com um acontecimento sobrenatural na narrativa, sem saber se crê no fenômeno que se apresenta como algo sobre-humano ou se busca justificativa naturais para o acontecimento. Notamos nessa passagem a necessidade do sobrenatural, ainda que sugerido, para a definição do fantástico.
Se tomarmos ainda os trabalhos de Luis Vax — para quem o fantástico é “a irrupção de um elemento sobrenatural em 2 um mundo submetido à razão” (VAX, 1974, p. 10-11) — e Pierre Castex — a considerar que “o fantástico se caracteriza3 por uma intrusão brutal do mistério no quadro da vida real
2 “l’irruption d’un élément surnaturel dans un monde soumis à la raison”. (Traduções nossas) 3 “le fantastique se caractérise par une intrusion brutale de mystère dans le cadre de la vie réelle”.
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(CASTEX, 1974, p. 8) — perceberemos que apenas a presença do misterioso não basta para que possamos classificar um texto como fantástico. Na literatura fantástica, a apresentação do elemento estranho à realidade é tão importante quanto ele próprio.
No fantástico tradicional é importante que haja um fundo de realidade familiar, em que seres e interferências de outros planos não são admitidos, para que o componente estranho à realidade cotidiana possa causar uma perturbação na 4 verossimilhança e, assim, evidenciar-se. Podemos afirmar, então, nesse sentido, que o fantástico se define por uma “técnica ficcional” cuja característica principal é a manutenção da ambiguidade, o que contribuirá para a inquietação que o fantástico suscita no leitor. Partindo para uma visão menos estruturalista do fantástico, Irène Bessière (1974) chama a atenção para a inexistência de uma linguagem fantástica em si mesma. De acordo com a época, o fantástico se lê como o reverso do discurso teológico, iluminista, espiritualista ou psicopatológico, e não existe senão graças a esse discurso que ele desfaz desde o interior. Bessière ainda ressalta que as referências teológicas, esotéricas, filosóficas ou psicopatológicas presentes nos textos fantásticos não devem ser entendidas apenas como simples artifícios narrativos cujo objetivo é colocar o herói em situações paradoxais. Os textos fantásticos utilizam marcos socioculturais e formas de 4 A possibilidade de se explicar o fenômeno extraordinário segundo as leis naturais é presente nos textos fantásticos, mas essa explicação entra em conflito com a verossimilhança interna da narrativa, pois, para ser explicado segundo as leis naturais, o elemento extraordinário dependeria de uma série de coincidências muito improváveis. Dessa forma, a explicação mais racional passa a soar como absurda, e a que mais desafia a sensatez parece ser a mais plausível. Nas palavras de Todorov: “a narrativa fantástica comporta também duas soluções, uma verossimilhante e sobrenatural, outra, inverossimilhante e racional” [le récit fantastique comporte aussi deux solutions, l’une vraisemblable et surnaturelle, l’autre, invraisemblable et rationnelle] (TODOROV, 1970, p. 54).
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compreensão de maneira a organizar confrontos que expõem as concepções de cada época.
Embora narrativas do sobrenatural tenham acompanhado o homem desde os mais remotos tempos, a literatura fantástica, como uma combinatória de elementos próprios da literatura maravilhosa (BATALHA, 2003), visando um efeito particular sobre o leitor, nasce no final do século XVIII. Este contexto histórico parecia o menos acolhedor a uma literatura que não apenas admitia o “inexplicável”, como dependia dele para existir, pois o século XVIII havia trazido, com o Iluminismo, um pensamento racionalista que repelia tudo o que não pudesse ser explicado à luz da razão. Todavia, talvez esse fosse o melhor momento para que a literatura fantástica se desenvolvesse, pois, junto ao esclarecimento, o Século das Luzes trouxe uma dose de frustração à humanidade que pode ajudar a explicar a propagação e a consolidação do fantástico. O progresso científico e técnico que a humanidade experimenta no Iluminismo “não dá ao homem a sensação de plenitude e realização; cada vez mais ele se sente parte das máquinas que cria e, fora deste esquema, não tem apoio e não sabe o que fazer de si mesmo” (MARTINHO, 2010, p. 2246). Assim, o homem do Iluminismo vai encontrar, no fantástico, uma maneira de tratar das questões deixadas de lado pelo pensamento racionalista, penetrando no mais profundo das percepções e dos sentimentos humanos.
Quando a literatura fantástica começou a ser difundida na França, a possibilidade que a máscara do irreal trazia de tratar temas que não se ousaria tratar às claras chamou a atenção de grande parte dos escritores, inclusive dos mais consagrados. Ainda que considerada uma “literatura marginal”, a literatura fantástica conseguiu conquistar respeitáveis autores e público, justamente por se responsabilizar por uma gama 90 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
de assuntos proibidos ou, no mínimo, vergonhosos, mas que ainda intrigavam o homem. Por meio de vampiros, bruxas e fantasmas, temas ligados à necrofilia, à necromancia, ao incesto e a outras aberrações morais começaram a ocupar lugar de destaque nas discussões literárias.
Com a chegada dos contos de Hoffmann à França, a literatura fantástica ganha novo fôlego, com nova perspectiva de visão do mundo e do indivíduo. As raízes na literatura gótica inglesa começam a ser deixadas de lado e os castelos escuros, vampiros, fantasmas e monstros passam a ceder lugar às alucinações provocadas por drogas e por distúrbios mentais. Como observa Schneider (1985), o fantástico de Hoffmann está contido no interior do indivíduo, no mundo dos sonhos, dos delírios e dos medos. A tendência de trazer o fantástico à tona por meio da mente das personagens fez o sobrenatural sugerido afastar-se cada vez mais do fantástico, dando lugar para os delírios, os medos, os pesadelos e a loucura. A perturbação da realidade ainda continuava presente no fantástico por meio da percepção comprometida das personagens, mas já não se ligava mais apenas à questão do sobrenatural. O fenômeno fantástico já não era mais apenas percebido pelas personagens, mas fazia parte delas, o que equivale a dizer que, com Hoffmann, o fantástico tornou-se mais humano.
Nesse sentido, os textos de Balzac aproximam-se dos de Hoffmann, pois Balzac também vai explorar o universo da mente humana para enfatizar o poder destruidor da mente sobre o corpo. Não podemos mais falar em sobrenatural como elemento característico do fantástico, mas ainda podemos falar em literatura fantástica, pois outros elementos desta literatura permaneceram presentes, e até foram potencializados, como o isolamento social da personagem principal, suas obsessões, seu caos interior, sua visão distorcida da realidade e sua SILVA, C. S. | p. 87-102 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 91
autodestruição (materializada na sua loucura e/ou na sua morte), conforme ressalta Malrieu (1992).
A inserção da loucura na literatura fantástica vai retomar o tema da inadequação do indivíduo, que se liga diretamente ao contexto iluminista em que nasce a literatura fantástica, uma vez que a razão e a ciência provavam-se insuficientes para dar conta de todos os questionamentos humanos, e já não se dava mais crédito às explicações místicas ou religiosas. Este universo do homem que se vê sozinho, abandonado a sua própria sorte e sem ter em que acreditar, é o universo que a literatura fantástica assume e passa a explorar. Literatura comparada
Embora seja possível encontrar trabalhos anteriores, para retomar os estudos clássicos da literatura comparada, precisamos voltar até a década de 1920, com a Revue de Littérature Comparée. Em seu início, esta abordagem limitavase à mera comparação entre literaturas de diferentes países, buscando apenas descobrir as influências por trás de cada texto e seus pesquisadores liam tudo quanto pudessem, a fim de conseguir reconhecer semelhanças entre diferentes obras. Esse método resumia-se a um objetivo muito simples com um resultado muito perigoso, pois levava a uma escala de valores em que as literaturas das metrópoles eram consideradas mais originais e, por isso, sempre melhores que as literaturas de suas colônias. A visão dos comparatistas mudou muito desde então. Tânia Carvalhal (2007, p. 7) define esta abordagem, atualmente, não mais pela simples comparação que a definia no seu início. A comparação, hoje, já não é mais utilizada como um fim em si mesma, mas como um meio sistematicamente utilizado por esta abordagem como recurso interpretativo. 92 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
As teorias mais recentes, diferentemente das abordagens mais tradicionais, que se limitavam ao reconhecimento de alguns procedimentos comuns a alguns autores, enfatizam os “processos dinâmicos de produção e de recepção” (PERRONEMOISÉS, 1990, p. 96) da literatura. É com essa visão mais moderna da literatura comparada que procuramos abordar nosso corpus. Interessa-nos não apenas apontar elementos que aproximem um conto de outro, embora isto constitua uma etapa de nossa análise, mas também mostrar como esses elementos corroboram com os debates suscitados pela literatura fantástica. Dessa forma, a ideia de diálogo, no sentido dialógico da conversação que, como observou Bakhtin, não representa uma relação autoritária entre as literaturas, mas de integração entre elas, parece-nos esclarecedora. Foram, aliás, os estudos acerca do dialogismo bakhtiniano que levaram a semioticista Júlia Kristeva (1974, p. 64) a cunhar o termo “intertextualidade”, definindo todo texto como a absorção e a transformação de textos anteriores.
Tiphaine Samoyault, em A intertextualidade (2008), procura melhor delimitar este termo de acepção teórica por vezes imprecisa. Em um diálogo com diversos autores que pensaram a respeito da intertextualidade, Samoyault chama a atenção para o fato de que a literatura nutre-se de si mesma. Para a autora, a intertextualidade é o resultado técnico, objetivo, do trabalho constante da memória da escritura. Nesse sentido, escrever, na verdade, seria sempre re-escrever. Percebemos, então, uma relativização da noção de originalidade, o que nos lembra as palavras de Valéry, ao indicar que o autor atinge sua identidade servindo-se dos exemplos alheios: “Nada mais original, nada mais próprio do que nutrir-se dos outros. Mas é preciso digeri-los. O leão é feito de carneiro assimilado” (VALÉRY apud NITRINI, 2000, p. 130). SILVA, C. S. | p. 87-102 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 93
Em relação ao nosso corpus, entendemos que Balzac exemplifica a “digestão” sugerida pela imagem do leão, feito de carneiro assimilado, por aproveitar elementos que remetem a Hoffmann, mas de maneira a criar suas próprias reflexões a respeito do artista e da loucura, manuseando, a seu modo, os instrumentos oferecidos pela literatura fantástica.
“La cour d’Artus”, “La leçon de violon” e “Le chef d’oeuvre inconnu”
Nota-se na obra hoffmanniana grande compremetimento com as relações entre a literatura e outras artes. Hoffmann, que além de escritor fora músico, trouxe para seus contos muitas personagens ligadas à música e também a outras artes, tendo preferência por pelos artistas mentalmente perturbados e colocando loucura e genialidade lado a lado. A exemplo de Hoffmann, Balzac insere em sua obra muitas personagens em condição semelhante: pessoas brilhantes (grande parte das vezes artistas) em péssimas condições de saúde mental. Os elementos fantásticos de seus contos costumam estar justamente ligados a essas personagens que, percebendo o mundo de outra maneira, trazem para o universo do texto questionamentos sobre a realidade e a imaginação. Entretanto, isso é feito de maneiras distintas. Enquanto notamos em Balzac uma preocupação maior em proporcionar para o leitor uma reflexão acerca de determinados assuntos, Hoffmann pretende aproximar-se mais da alma do artista e da verdadeira arte. Partindo para a análise do nosso corpus: “Le chef d’œuvre inconnu”, “La leçon de violon” e “La cour d’Artus”, podemos melhor evidenciar da relação intertextual entre os contos fantásticos de Balzac e de Hoffmann. “Le chef d’œuvre inconnu” narra a história do jovem
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Nicolas Poussin, um pintor inexperiente, mas talentoso, que começa a aprender sobre a pintura com o grande mestre Frenhofer. O talento de Frenhofer impressiona tanto quanto seu temperamento instável e violento. Para o mestre pintor, nenhuma obra é mais bela que a sua Belle noiseuse, pintura a qual dedicou os últimos dez anos de sua vida. Apaixonado por sua obra como se ela fosse uma mulher real, Frenhofer a defende dos olhares curiosos, não permitindo que ninguém a veja. Após conhecer Gillette, amante de Nicolas, Frenhofer vê nela a beleza que procurou em todas as partes do mundo e aceita a condição de Nicolas (mostrar sua obra-prima tão cuidadosamente escondida) em troca de ter Gillette como modelo. Quando enfim revela seu quadro a Nicolas e Porbus (também discípulo do Fenhofer), esses não veem nada além de uma confusão de cores, uma parede de tinta que não tinha forma alguma. Os dois discípulos deixam seu mestre entregue ao próprio delírio e, no dia seguinte, encontram-no morto, após ter ateado fogo a sua casa, com sua Belle noiseuse e ele mesmo dentro.
“La leçon de violon”, igualmente, coloca-nos em contato com um jovem e talentoso discípulo, dessa vez de música, Carl, que está curioso por conhecer um grande mestre violinista: o barão de B***. O mestre de Carl, Haak, apresenta-o ao barão, que realmente impressiona com tanto conhecimento sobre violino. Carl nunca ouvira o barão tocar, mas seu desapreço e duras críticas a grandes músicos só aumentava a admiração que o jovem aprendiz começava a nutrir pelo barão. Carl começa a tomar aulas com o barão, que tem métodos estranhos mas eficientes de ensinar. Embora esteja aprendendo muito durante suas aulas, o jovem começa a ficar intrigado com os risos abafados e os comentários maldosos, feitos pelas costas do barão e compartilhados por todos, inclusive por seu mestre Haak. Em uma das aulas, quando Carl não conseguia tocar uma passagem como o barão havia SILVA, C. S. | p. 87-102 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 95
ensinado, este lhe tira o violino das mãos e começa a tocar. Tudo o que Carl ouvia era um som estridente e irritante, enquanto o barão, entusiasmado, deleitava-se com os sons que tirava do violino como se escutasse anjos. Ao relatar este acontecimento a seu mestre, Carl é surpreendido pela naturalidade com que Haak recebeu a notícia. Este diz já saber que o barão tocava assim, da mesma maneira que todos os frequentadores da casa do barão, que iam em busca de aulas e depois riam pelas suas costas. Haak aconselha, por fim, seu discípulo a continuar com aulas, pois fazem bem ao ego do barão e podem ser muito úteis, uma vez que o barão conhecia o violino como nenhum outro.
É preciso admitir que os dois contos são muito semelhantes. Embora o conto de Balzac trate de pintores e o conto de Hoffmann, de músicos, temos em ambos o fantastique intérieur ligado aos protagonistas, que, em ambos também, são artistas mentalmente perturbados. A tensão dos contos é criada de maneira parecida em torno da expectativa pelo anúncio de uma obra que se pretende perfeita, e temos, também nos dois contos, um anticlímax quando essas obras são apresentadas. O modo como cada autor trata suas personagens, no entanto, é distinta. Retomando Kawano (2008), quando dissemos que Balzac pretende-se mais professor, enquanto Hoffmann pretende-se mais artista, percebemos que Balzac preocupa-se em trazer várias lições sobre pintura, enquanto não notamos a mesma preocupação no conto de Hoffmann em relação à música. Embora nos deparemos com dois monumentais fracassos nos dois contos, cada artista também vai enfrentar a frustração de maneira diferente. Enquanto Balzac traz um final trágico para seu pintor, cuja mente foi consumida por um desejo inatingível da perfeição que acabou por levá-lo ao suicídio, o artista de Hoffmann não apenas permanece vivo, como 96 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
mantém uma ambiguidade que pode ser associada ao próprio fantástico. Enquanto todos riem do barão de B***, este não se abala, acreditando ainda ser o melhor de todos os violinistas, e Carl permanece intrigado com aquele artista. Diferentemente dos discípulos de Frenhofer, que sentiram compaixão por um artista destruído na busca de um ideal, Carl e Haak permanecem nutrindo certo respeito pelo barão.
Por fim, consideramos ainda “La cour d’Artus”, conto sobre o artista dilacerado por um ideal inatingível, ao qual “Le chef d’œuvre inconnu” também se relaciona intertextualmente. Em “La cour d’Artus”, assim como em “Le chef d’œuvre inconnu”, este artista é um velho pintor: Berklinger. Traugott, um jovem que trabalha para o futuro sogro como escrevente, conhece, durante o trabalho, o velho pintor Berklinger e seu filho, duas figuras bastante intrigantes. Traugott interessavase muito pelas artes e vivia desenhando nos documentos que devia redigir, o que causava a fúria de seu patrão. Um desses desenhos chamou a atenção de Berklinger, que passou a conversar sobre arte com o rapaz e o convidava várias vezes para ver suas pinturas, convites sempre aceitos. Mesmo estando noivo, Traugott passa a se preocupar cada vez menos com sua noiva e a se interessar cada vez mais pelo velho pintor e por suas obras, verdadeiramente admiráveis. Berklinger promete, então, mostrar ao rapaz sua grande obra: Le paradis perdu. Assim como ocorre em “Le chef d’œuvre inconnu”, a expectativa do jovem Traugott vem abaixo, pois a tela em que Berklinger acreditava ter pintado sua obra-prima estava em branco. A semelhança na quebra da expectativa das personagens em torno de uma obra que se anunciava perfeita, presente nos dois contos, chama a atenção. Podemos, entretanto, atentar individualmente para a fracassada obra de Frenhofer e a de Berklinger. No caos de tinta produzido pelo pintor de SILVA, C. S. | p. 87-102 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 97
“Le chef d’œuvre inconnu” conseguimos enxergar a metáfora do excesso e da desordem dos pensamentos do artista que a pintou, questão sobre a qual Kawano (2008) reflete, lembrando que este tema liga-se à proposta de Balzac: demonstrar o poder destruidor da mente obcecada. Por outro lado, a tela de Berklinger, em branco, abre espaço para a possibilidade, ou seja, há esperança para a tela de Berklinger, mas não há para a de Frenhofer. Pensando dessa forma, a visão do artista no conto de Balzac é muito mais trágica.
Além de semelhanças quanto ao enredo, podemos evidenciar, ainda, a atmosfera sombria e, por isso, mais propícia a abrigar mistérios, que envolve a casa de Berklinger, atmosfera que lembra muito a criada em torno da casa de Frenhofer. A personagem Berklinger também se assemelha ao velho pintor de “Le chef d’œuvre inconnu”, especialmente no talento e no estado degenerado de sua mente. O mistério, entretanto, é colocado de outra forma no conto de Hoffmann. Se em “Le chef d’œuvre inconnu” o grande mistério fica por conta da obra inacabada de Frenhofer, em “La cour d’Artus”, o quadro de Berklinger, já “terminado”, chama a atenção não pelo mistério que se faz em torno dele, mas sobre o próprio pintor, que se apresenta como um artista falecido há muitos anos. “La cour d’Artus” mobiliza o tema do artista perturbado pela busca de um ideal inatingível na figura de Berklinger, o que o aproxima dos outros contos que constituem nosso corpus. Além disso, podemos citar a elevada exigência artística do velho Berklinger, semelhante à de Frenhofer e à do barão de B***, para quem obra alguma parecia fazer frente a sua obra-prima. A relação de exagerado apreço pela própria obra e absurdo desprezo por todas as demais é um elemento que aproxima estes artistas. 98 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
A idealização de uma obra que parece perfeita aos olhos do seu criador, mas que não diz nada aos outros observadores, é uma constante nos três contos, que nos ajuda a entender a relação intertextual entre eles. Embora tenhamos ressaltado semelhanças que nos permitiram estabelecer uma relação entre os textos do nosso corpus, especialmente no que tange ao fantastique intérieur, como é o caso da personagem artista perturbada e que fracassa, notamos que Hoffmann e Balzac deram rumos distintos à situação de frustração de suas personagens artistas. A diferença de tratamento conferida a cada uma dessas personagens não muda a visão caótica de três mentes perturbadas, mas traz visões diferentes acerca do artista: cômica, embora respeitosa, em “La leçon de violon”; misteriosa, em “La cour d’Artus”; e trágica, em “Le chef d’oeuvre inconnu”. Considerações Finais
A loucura, ocupando um lugar antes exclusivo do sobrenatural, leva à reflexão acerca dos limites entre os desejos e as obsessões humanas, questão também cara ao fantástico, que, mesmo tendo mudado de perspectiva com Hoffmann, não abandona seu caráter questionador da realidade. O tratamento conferido às personagens mentalmente perturbadas contribui para a afirmação do posicionamento sobre as artes e o artista que, embora diferentes em cada autor, demonstram o poder destruidor que a mente obcecada exerce sobre a vida do indivíduo.
Por meio da análise do corpus, pudemos confirmar o movimento próprio da literatura de retomada de seus próprios modelos como parte do processo de criação. Por esta perspectiva, percebemos que a relação entre os contos que nos ocuparam neste trabalho não é de mera aceitação
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passiva de modelos, mas refletem um diálogo produtor de novos sentidos. Evidenciando a relação intertextual entre as obras que constituem nosso corpus, temos que o fantástico hoffmanniano permite à literatura fantástica novos horizontes, aproximando-a ainda mais do indivíduo, posição que Balzac aproveita em seus contos. Referências bibliográficas
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FIGURAS FEMININAS E A TRAGICIDADE EM BALADA DAS DUAS MOCINHAS DE BOTAFOGO Erica Roberta DOURADO1
Resumo: O estudo sobre o poema “Balada das duas mocinhas de Botafogo” visa analisar outra vertente dos poemas do poeta Vinicius de Moraes, conhecido, principalmente, por enaltecer a beleza feminina no cenário carioca. Nesse sentido, busca-se refletir sobre a temática abordada, e os recursos utilizados pelo autor na construção do poema. Reflexões sobre o gênero, recursos estilísticos e tema nortearão a discussão sobre a degradação social e moral no período em que o texto foi escrito. O feminino, abordado de forma trágica, é o cerne dessa reflexão. Palavras-chave: espaço; personagem feminina; Vinicius de Moraes.
Introdução Escritor da geração pós Semana de Arte Moderna, Vinicius de Moraes (1913-1980) é um dos poetas que retratou a sociedade de sua época, enfocando, principalmente, as relações amorosas e o feminino.
A convivência com grandes nomes do modernismo, como Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Oswald de Andrade fez com que Vinicius de Moraes, assim como esses autores, servissem-se do cotidiano como temática em suas obras. Diferentemente dos poetas do seu tempo, que prezavam
Acadêmica do curso Mestrado em Letras – Estudos Literários, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. (PG – UFMS) 1
pelo verso livre, Vinicius recorria às formas clássicas como o soneto e a balada. Seus versos registram as transformações sociais de um período: a cidade crescendo, a violenta modernização urbana que expulsou para a periferia homens, mulheres e crianças. A proximidade com o popular era registrada em sua poesia, que descrevia o cotidiano na cidade, principalmente o Rio de Janeiro, local pelo qual o autor nutria grande paixão. Observar a cidade, registrar seus acontecimentos, exaltar ou criticá-los, tornando a realidade exterior e concreta a matéria viva de sua poesia era o que fazia Vinicius de Moraes. Para o autor, a cidade não era apenas espaço físico e social, representava o próprio ser, seu passado e futuro. É na cidade que se observam a convivência, os amores, os encontros, a violência, a miséria humana, a morte. Neste trabalho, analisaremos o poema “Balada das duas mocinhas de Botafogo”, publicado originalmente em Novos poemas (II), 1959, cuja indicação em numeral romana remete ao livro Novos poemas, 1938. A data que aparece abaixo do título (1949-1956), refere-se ao período em que os poemas foram escritos. O objetivo é tratar de dois temas recorrentes na escrita viniciana: a cidade e a mulher. Para isso, observaremos o gênero literário adotado e sua relação com a temática da poesia, bem como a construção semântica e estrutural do poema. A poesia viniciana - o uso da Balada
O que marca a poesia viniciana é a valorização humana, o engajamento social, a paixão, o erotismo e a sensualidade. A obra poética de Vinicius de Moraes, segundo o próprio autor, pode ser dividida em duas fases, como consta em seu livro Antologia Poética, na parte intitulada “Advertência”: 104 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
Poderia este livro ser dividido em duas partes, correspondentes a dois períodos distintos na poesia do A. A primeira, transcendental, freqüentemente mística, resultante de sua fase cristã, termina com o poema “Ariana, a mulher”, editado em 1936. Salvo, aqui e ali, umas pequenas emendas, a única alteração digna de nota nesta parte foi reduzir-se o poema “O cemitério da madrugada” às quatro estrofes iniciais, no que atendeu o A. a uma velha idéia de seu amigo Rodrigo M.F. de Andrade. À segunda parte, que abre com o poema “O falso mendigo”, o primeiro, ao que se lembra o A., escrito em oposição ao transcendentalismo anterior, pertencem algumas poesias do livro Novos poemas, também representado na outra fase, e os demais versos publicados posteriormente em livros, revistas e jornais. Nela estão nitidamente marcados os movimentos de aproximação do mundo material, com a difícil mas consistente repulsa ao idealismo dos primeiros anos. (MORAES, 1960, p. 5-6).
Embora a nota não tenha sido assinada por Vinicius de Moraes, como ressalta Rubem Braga, na orelha do livro, atribui-se ao próprio poeta a autoria do texto de abertura. Assim, nota-se que em sua primeira fase, privilegiou-se o misticismo, devido à experiência que mantinha com o cristianismo. A segunda fase reflete sobre o mundo material.
A primeira fase, espiritualista, compõe-se de três livros: O caminho para a distância (1933), Forma e exegese (1935) e Ariana, a mulher (1936). A segunda, como exposto, iniciase com alguns poemas publicados em Novos poemas (1938). Notemos, assim, que o poema em estudo pertence à segunda fase de escrita do autor. Em “Balada das duas mocinhas de Botafogo”, desde o título, o autor classifica o gênero do poema. No entanto, embora denominada de “balada”, é necessário entender porque a adoção de tal gênero e as mudanças inseridas pelo autor em sua construção. DOURADO, E. R. | p. 103-116 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 105
Ao adotar a balada, forma clássica, o autor dialoga com a tradição, sem manter, por sua vez, o rigor de sua estrutura, mas obedecendo a sua temática. De acordo com o Dicionário de termos literários, de Massaud Moisés (2004), a “universalidade da balada permite considerá-la uma das mais primitivas manifestações poética.” A balada surgiu na Idade Média, e segundo Moisés (2004), “de feição narrativa, girava ao redor de um único episódio, de assunto melancólico, histórico, fantástico ou sobrenatural. Na verdade, trata-se de uma forma literária mista, pois reúne elementos da poesia dramática e lírica bem como de narrativa”.
Destoando da forma fixa da balada, composta por três oitavas e uma quadra, em versos octossílabos, Vinicius de Moraes compôs sua “Balada das duas mocinhas de Botafogo” aproveitando a musicalidade do gênero, mas concedendolhe um caráter próprio: sua poesia foi escrita em redondilhas maior e estrofes variadas quanto ao número de versos. Na literatura brasileira, outros autores também adotaram a forma livre de balada: Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, por exemplo. A dramaticidade contida no poema “Balada das duas mocinhas de Botafogo” não remete a um exagero de sentimentalismo, mas a própria constituição das personagens, que evocam personalidades descritas de modo contrastante. Exemplo são os paradoxos utilizados ao descrever as personagens Marília e Marina, abordadas posteriormente. Marília e Marina – a construção do feminino
A figura feminina sempre esteve presente na obra de Vinicius de Moraes. Tanto na primeira, quanto na segunda fase do escritor muitas personagens femininas foram retratadas pelo autor. No período de sua escrita “espiritualista”, as
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mulheres são apresentadas sob dois aspectos distintos: ora passível e sublime, ora transgressora e pecadora.
Em sua segunda fase, cujo poema analisado está inserido, a figura feminina aparece como ser real, o qual desperta desejos e participa das ações, deixa de ser apenas representada para desempenhar, ela mesma, espaço na voz do “eu” que as descreve. Surgem, nesse período, mulheres representando o cotidiano carioca, que passam a ser denominadas pelos seus próprios nomes, desconstruindo, assim, uma visão edificada da mulher. A figura feminina toma o lugar central da poesia e, em torno dela, o poema se concretiza. Marília e Marina são as personagens principais do poema “Balada das duas mocinhas de Botafogo”, cuja temática é a degradação social, econômica e moral. A construção das personagens vai se desenvolvendo ao longo do poema, de modo que a caracterização de ambas surja gradativamente.
No poema, nota-se, desde o título, a referência as personagens como “mocinhas”. Antes de atentarmos para a descrição de cada uma delas, refletiremos sobre os nomes de ambas. Seria a escolha do autor aleatória ou a recorrência da consoante “M”, em ambos, uma estratégia de Vinicius para dar ao texto a musicalidade exigida pelo gênero escolhido - a balada? Iniciaremos refletindo sobre o nome Marília, que na literatura surgiu nas liras de Tomás Antônio Gonzaga como “Marília de Dirceu”. Na lira do autor, Marília (nome de pastora, na mitologia clássica), é também a “estrela”, a “senhora”, a quem o poeta se rende de forma amorosa ao mesmo tempo que demonstra todas as suas qualidades perante a mulher amada. Marília é, também, uma variação poética de Maria. Marina, por sua vez, tem origem latina e deriva-se de mar. Nos dois primeiros versos do poema “eram duas DOURADO, E. R. | p. 103-116 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 107
menininhas / filhas de boa família” faz-se a apresentação das personagens, sem denominá-las ainda. É nos versos seguintes “uma chamada Marina / a outra chamada Marília” que se identificam as personagens que serão retratadas. Marina é descrita como uma garota de dezoito anos, atrevida, olhos “brejeiros” e delicada “finos”. A irmã, Marília, possuía vinte anos e era mulher e menina “pequenina”. Ambas eram “meninas-moças” que “sem terem nada de feias / não chegavam a ser bonitas”. Filhas de pais separados, só lhe restaram o nome de “tempos mais bem vividos”.
Outra figura importante na constituição do poema é a mãe das meninas, embora não receba um nome, é apresentada como pertencente “à classe das largadas de marido”, crítica à estigmatização feminina, uma vez que mesmo em meados do século XX, período no qual o poema foi escrito, a mulher ainda sofria com os preconceitos morais quando se tratava de separação conjugal. A descrição da “mãe”, diferentemente da de Marília e Marina, retrata uma mulher sofrida pela ação do tempo e das desilusões: “seus oito lustros de vida / davam a impressão de mais cinco”. Além de sofrer com a asma, sofria com a “desgraça das filhas”.
No decorrer do poema, Marília e Marina são descritas como meninas: Que nada tendo a ofertar Em troca de uma saída Dão tudo o que tem aos homens: A mão, o sexo, o ouvido E até mesmo, quando instadas Outras flores do organismo.
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O eu lírico não deixa explícito que as garotas são prostitutas, uma vez que em outra passagem afirma que os rapazes na “caça de mulher grátis” lembravam-se “de Marília e de Marina”. O que fica explícito, no poema, é que Marina e Marília foram abusadas sexualmente: Marília perdera o seu Nos dedos de um caixeirinho Que o que dava em coca-cola Cobrava em rude carinho. Com catorze apenas feito Marina não era mais virgem Abrira os prados do ventre A um treinador pervertido.
A marca visível do abuso surge nos versos seguintes: Embora as lutas do sexo Não deixem marcas visíveis Tirante as flores lilases Do sadismo e da sevícia Às vezes deixam no amplexo Uma grande náusea íntima E transformam o que é de gosto Num desgosto incoercível.
Expressões como “lutas do sexo”, “sadismo”, “sevícia” e “desgosto incoercível” reforçam a ideia apresentada anteriormente. No entanto, “flores lilases” é a melhor metáfora para os hematomas deixados nos corpos das meninas, que mesmo com “náusea” rendem ao abraço, que deveria satisfazer, mas que nesse caso representa um “desgosto incoercível”. DOURADO, E. R. | p. 103-116 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 109
Retomando a descrição da mãe, nota-se que “a loba materna uivava / suas torpes profecias.” A imagem da loba/lobo pode ter várias associações: desde representação da “selvageria” e “libertinagem”, ou de “fertilidade”, como consta no Dicionário de termos literários (MOISÉS, 2004). Nesse sentido, os uivos são uma referência à impotência da mãe diante do abandono das filhas e do seu abandono por elas também; sinônimo de fraqueza e uma forma de comunicar sua angústia. A angústia da mãe é reflexo, também, do abandono do marido, de “tempos mais bem vividos”. Entregue a sua própria solidão, abandonou as filhas que como forma de refúgio buscavam, nas ruas, proteção. Os versos “casa de porta e janela / era a sua moradia” demonstram que o local onde moravam era bastante exposto; metaforicamente, os versos representam, também, a vida exposta das meninas, a forma como estavam suscetíveis aos perigos que a noite escondia.
Quando observamos os versos “foi assim que se espalhou / a fama das menininhas / através do que esse disse / e do que aquele diria”, notamos que a imagem das meninas vai sendo construída gradativamente. Primeiro, mostra-se a visão que a mãe tem das filhas: “eram tão desprotegidas / e por tal abandono / davam mais do que galinhas”; em seguida, a visão da sociedade, como exposto nos versos em que as meninas recebem um telefonema, de “um grupo de rapazes”, que na “caça de mulher grátis” lembravam “de Marília e de Marina”. A ação de uivar não se prende apenas à mãe das personagens principais. Marília e Marina, “quando sozinhas em casa”, sentiam o “desconsolo” ao “ouvirem a asma materna / silvar no quarto vizinho! / os monstros da solidão / uivavam no seu vazio”. A partir desses versos, seguem se outros que descrevem a relação amorosa entre as meninas. 110 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
E elas então se abraçavam Se beijavam e se mordiam Imitando coisas vistas e vividas Enchendo as frondes da noite De pipilares tardio.
Verifica-se não um amor fraterno, de irmãs, mas um amor sensual, carnal, reproduzindo, em casa, o que viam e viviam nas ruas.
Como já mencionado, Marina e Marília são personagens construídas de forma paradoxal: meninas-moças; bonitasfeias. Outras figurações ao longo do poema permitem verificar que as personagens vagueiam entre a infância e a vida adulta: as brincadeiras de criança “brincavam de amarelinha” contrasta com a vida de mulher “dão tudo que têm aos homens / a mão, o sexo, o ouvido”.
Realizadas as considerações sobre as personagens, observaremos como se construiu imagem da cidade e os recursos semânticos e estilísticos utilizados pelo poeta para aperfeiçoar forma e tema, de modo que um seja necessário para a concretização do outro. “Balada das duas mocinhas de Botafogo” – a construção do poema
Na construção de textos, os espaços geralmente servem como moldura para o desenrolar do enredo. A produção de um poema, principalmente de um poema narrativo longo, requer a localização das personagens em determinado espaço, onde as ações ocorram e ganhem significados. Desse modo, em “Balada das duas mocinhas de Botafogo”, o espaço apresentado pelo poeta é o bairro carioca de Botafogo. DOURADO, E. R. | p. 103-116 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 111
Luiz Guilherme Sodré Teixeira, em seu texto História breve do bairro de Botafogo, descreve que:
Na primeira metade do século XX ocorre uma transformação no perfil de seu morador típico: de bairro nobre, até então reduto privilegiado da aristocracia, Botafogo passa a receber uma população diferenciada de funcionários públicos, militares, operários, artesãos, comerciantes e bancários. É quando surgem os primeiros cortiços e as primeiras vilas, produzidas em grande número, para atender a essa nova população. Botafogo torna-se então um bairro de ligação entre o centro e os novos bairros que vão sendo urbanizados e integrados à malha urbana da cidade. (TEIXEIRA)
A reflexão sobre o que foi exposto pelo autor permite verificar que o bairro descrito no poema faz parte dessa nova configuração de Botafogo: a de bairro popular, que surgiu “para atender a essa nova população”. Nota-se que a casa é descrita como de fácil acesso “casa de porta e janela”, sem proteção, contrariando a ideia dos grandes casarões, que o bairro de Botafogo abrigava anteriormente à expansão urbana do Rio de Janeiro. Outra marca do espaço é a rua, descrita na sexta estrofe do poema: “deram-se as mãos foram indo / pela rua transversal / cheia de negros baldios”. Nesses versos, percebemos que a rua é habitada por aqueles que não têm moradia, como metaforizado por “negros baldios”, ressaltando a ideia de que a cidade já sofre com problemas de infraestrutura.
Após a demarcação do espaço, observaremos a composição do poema. Vinicius de Moraes construiu a “Balada das duas mocinhas de Botafogo” dividindo o poema em sete estrofes irregulares. A primeira possui 26 versos; a segunda, 16; a terceira, 24; a quarta, 16; a quinta, 32; a sexta, 27 e, a sétima,
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4; totalizando, assim, cento e quarenta e cinco versos escritos em redondilha maior.
As rimas do poema encontram-se misturadas ao longo de sua extensão. Percebe-se, quanto à terminação dos versos, que muitos são assonantes, verificando a ocorrência da vogal tônica “i” em muitas palavras: menininhas; família, Marina, Marília, primeira, finos, cabiam, bonitas, macia, vividos, marido, vida, cinco, filhas, meninas, desprotegidas, galinhas, moradia, melancolia, profecias, triste, saída, ouvido, organismo, disse, além de tantas outras que aparecerão até ao final do poema. A presença de assonância, por meio da vogal grifada, concede ao poema uma sonoridade melódica.
O uso de aliterações aparece em diversos momentos, mas a maior ocorrência é com a repetição da vogal “m”, verificada na extensão do poema com as palavras: menininhas, Marília, Marina, moças, mulher, mãe, mais, muito, melancolia, materna, mão, fama, moradia, madrinha, maninha, mesquinha, comida, amor, média, dormido, moços, marcas, mistério, malignas, máscara, entre outras. Essa repetição associada à assonância, já apresentada, dão ao poema o ritmo do balanço do mar, como o movimento de vai e vem das ondas. No poema de Vinicius, verifica-se uma “linguagem direta e ardente” como ressaltado por Alfredo Bosi (1994). A utilização de diversas metáforas revela um texto repleto de sentidos múltiplos. Assim, quando o eu lírico descreve que as meninas davam tudo o que tinham aos homens, até mesmo “outras flores do organismo”, destaca-se que flor aparece como uma representação da genitália feminina. Em outra aparição, o vocábulo “flor” designa os hematomas deixados pela violência sexual, como observado no verso “tirante as flores lilases”, em que flor é o machucado e lilás (roxo) a cor que eles deixam na pele. DOURADO, E. R. | p. 103-116 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 113
Metáfora recorrente, também, é a destacada no verso “vida de porta e janela” demonstrando que a vida das garotas resumia-se ao espaço da pequena casa, sem muitos afazeres e com poucos recursos para a sobrevivência: Vida de porta e janela Sem amor e sem comida Vida de arroz requentado E média com pão dormido Vida de sola furada E cotovelo puído
As expressões dos versos seguintes ressaltam a vida difícil que levavam: “sem amor e sem comida”, “arroz requentado”, “pão dormido” e “sola furada”. Importante destacar que o poeta tece um retrato da vida familiar, desprovida da figura paterna, em que mãe, sob os olhos da sociedade, surge como figura estigmatizada, e as filhas pelo abandono do pai e a ausência (ainda que presente) da mãe entregam-se aos “perigos” da rua.
A tensão do poema, que foi sendo construída progressivamente, atinge seu ápice nos últimos sete versos da sexta estrofe: Já nada mais se diziam. Vinha um bonde a nove-pontos... Marina puxou Marília E diante do semovente Crescendo em luzes aflitas Num desesperado abraço Postaram-se as menininhas.
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Nesse momento, a leitura que seguia fluída, seguindo o ritmo do mar, torna-se mais densa, como se uma explosão tivesse pronta a ocorrer. A angústia de Marina e de Marília, seguida da calma com que os fatos sucedem, deixa o leitor atônito.
A estrofe final, por sua vez, é curta e rápida como o fato ocorrido e nela observa-se o fim da angústia das personagens, mas não de quem leu o poema. Breves considerações
O poema trata da degradação social e moral, mas amplia a reflexão sobre a visão que se tinha/tem da mulher. O poeta que sempre exaltou a beleza feminina, nos versos de “Balada das duas mocinhas de Botafogo” traz uma reflexão sobre as transformações que ocorriam no período em que o poema foi escrito: as transformações sociais, culturais e econômicas e como essas mudanças afetavam a vida dos sujeitos envolvidos nesse processo. Por fim, a construção do poema e os recursos adotados pelo poeta corroboraram para o sentido do texto. Ao adotar uma forma clássica – a balada – Vinicius de Moraes retoma a tradição, indo contra a geração de sua época, mas concedendolhe novos atributos como forma de modernismo em sua obra. A temática abordada associada ao gênero escolhido permitiu a construção de um poema que reuniu musicalidade, balanço e ritmo leve, símbolos da juventude apresentada, à tragicidade dos fatos que levaram ao suicídio de duas jovens.
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Referências bibliográficas BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 35 ed. São Paulo: Cultrix, 1994. LUCENA, Karine Braga de Queiroz. Considerações estéticas sobre a violência em Yacala, de Alberto da Cunha Melo. Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura. 2010. Disponível <http://200.17.141.110/ senalic/II_senalic/textos_completos/Karine_Braga_de_ Queiroz_Lucena.pdf> Acessado em 05 de outubro de 2013. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 2004.
MORAES, Vinicius de. Antologia poética. 12. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975. _____. Novos poemas (II). Rio de Janeiro. São José. 1959. Disponível em <http://www.viniciusdemoraes.com.br/ site/article.php3?id_article=204>
TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodré. História breve do bairro de Botafogo. Disponível em <http://www. casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/oz/FCRB_ LuizGuilhermeSodreTeixeira_Historia_breve_bairro_ Botafogo.pdf> Acessado em 05 de outubro de 2013. 116 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
LIMA BARRETO: ENTRE O SANATÓRIO, A SOCIEDADE E A RESIGNAÇÃO. Fabiano da Silva COSTA (IBILCE/UNESP)
Resumo: Nesse artigo pretendo demonstrar, utilizando um enfoque psicanalítico, a resignação barretiana para contrapor a visão de escritor crítico-social, inconformado e panfletário. Rotular um escritor, taxando-o com características pontuais de um determinado momento histórico e literário é simplificá-lo em demasia. Agindo assim não exploramos toda sua diversidade e seu progresso como escritor, natural no processo de amadurecimento por que passaram todos os notórios escritores que possuímos. Lima Barreto é um escritor múltiplo: se protestou, também se resignou; se foi militante, também foi literário. Lendo seus romances podemos notar que, com o passar do tempo, sua literatura fica mais irônica, suas críticas são mais indiretas e alegóricas. Esse amadurecimento foi bruscamente interrompido pela morte prematura, aos quarenta e dois anos de idade. Cemitério dos vivos (1953) mostra uma faceta menos explorada do escritor, nele enxergamos um Lima em processo de aceitação da realidade, sua preocupação em apontar as injustiças de forma direta diminui, temos um escritor mais ponderado. Uma explicação para essa mudança são as frustrações sofridas que o amadureceram como pessoa e escritor, seus personagens ficaram mais reflexivos e as certezas deram lugar às dúvidas do que fazer e de que caminho seguir. É assim a novela que irei analisar, repleta de diálogos internos, questionamentos e incertezas sobre que futuro está reservado ao protagonista, Vicente Mascarenhas. Utilizarei conceitos freudianos como a falta de amparo paterno, o medo da perda do amor da autoridade, a internalização da agressividade como fonte de resignação,
sempre reconhecendo a literatura como um sintoma que pode ser lido e escrito.
Palavras-Chave: Resignação; Amparo; Cemitério dos vivos; Lima Barreto; Freud; literatura sintomática.
Introdução Afonso Henriques de Lima Barreto (1881 – 1923) escreve Cemitério dos vivos (1953) durante sua internação no Hospital Nacional dos Alienados (RJ), entre 1919 e 1920. O motivo alegado pelo escritor para a internação foram as crises de alucinações causadas pelo uso constante de álcool. Antes de escrever a novela, Lima Barreto redigiu um diário, que vem anexado à novela; esses escritos serviram de base para, posteriormente, dar ao Cemitério dos vivos uma impressão de realismo. Devido à forte critica social que o escritor impõe em seus primeiros escritos, Lima ficou conhecido por parte dos críticos como um escritor que devido aos [...] desgostos domésticos, a revolta contra o preconceito de cor de que foi vítima, somados à vida economicamente difícil de funcionário da Secretaria da Guerra e colaborador da imprensa, às constantes crises de depressão e ao alcoolismo fizeram de Lima Barreto um crítico social severo, e, por vezes, panfletário. (ROMAO, 2012, p. 14).
Rotular um escritor, taxando-o com características pontuais de um determinado momento histórico e literário é simplificá-lo em demasia. Lima Barreto é um escritor múltiplo: se protestou, também se resignou; se foi militante, também foi literário. Nesse artigo pretendo demonstrar, por meio de um enfoque psicanalítico, a resignação barretiana para contrapor a idéia de um escritor dono de uma literatura
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puramente crítico-social, inconformista e panfletaria.
Cemitério dos vivos mostra uma faceta menos explorada do escritor: vemos um Lima Barreto em processo de aceitação da realidade, sua preocupação em apontar as injustiças de forma direta diminui, surgindo um escritor mais ponderado. Utilizarei conceitos freudianos como a falta de amparo paterno, o medo da perda do amor da autoridade, a internalização da agressividade como fonte de resignação (FREUD, 2006), para demonstrar o trajeto do protagonista, do inconformismo à aceitação, sempre reconhecendo a literatura como um sintoma que pode ser lido e escrito. Em busca do amparo do pai
O protagonista da novela, Vicente Mascarenhas, é internado depois de crises de alucinação causadas pelo uso de álcool após a morte da esposa. Sua ligação com o pai é demonstrada logo no início da novela: “O meu esforço em ‘formar-me’, como se diz por aí, era para atender a um capricho de meu pai, que, até o último momento de vida, desejou isso [...]” (BARRETO, 2001, p. 1428). A respeito da necessidade de agradar o pai, Freud (2006, p. 46), diz: “Não consigo pensar em nenhuma necessidade [...] tão intensa quanto a da proteção de um pai”. No caso de Vicente o desejo de amparo se desloca em duas situações: 1) o casamento; 2) e a literatura. Essas duas tentativas de busca de amparo falham, sua esposa morre de forma prematura, pedindo como último desejo que ele continue o projeto de escrever um romance, mas sua vida de escritor é um total fracasso. Vicente continua COSTA, F. S. | p. 117-132 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 119
sua busca por amparo, mas agora utilizando aquilo que Freud chama de fuga do desprazer por métodos extremados (FREUD, 2006, p. 49 – 50): 3) o uso de álcool, causando um grave vício e por fim; 4) o isolamento do hospício como forma de se apartar da sociedade. Vicente abandona a faculdade na certeza de que lá seria infeliz, mas acaba criando uma fonte social de sofrimento. Existem três fontes do sofrimento humano para Freud (2006, p. 55): [...] o poder superior da natureza, a fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade. Quanto às duas primeiras fontes, nosso julgamento não pode hesitar muito. Ele nos força a reconhecer essas fontes de sofrimento e a nos submeter ao inevitável. [...] Quanto à terceira fonte, a fonte social de sofrimento, nossa atitude é diferente. Não a admitimos de modo algum; não podemos perceber por que os regulamentos estabelecidos por nós mesmos não representam, ao contrário, proteção e benefício para cada um de nós.
A não submissão à Lei leva Vicente a ser, inicialmente, um inconformado social. O desprezo pelo estudo superior formal e a necessidade de um diploma é um exemplo deste não enquadramento (BARRETO, 2001, p 1431):
- Bem! Está direito! Mas você pode formar-se, pois uma coisa não impede outra. Impedia sim. Com o diploma, o “pergaminho” da superstição popular, não permitia a censura geral que havia de reagir sobre mim, que ficasse eu copiando ofícios numa repartição do governo. Tinha que obter um emprego adequado ao meu título, para isto era necessário dar passos que me repugnavam: arranjar pistolões, mendigá-los mesmo, para me colocar e, de
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acordo com a alta conta em que então tinha as minhas faculdades mentais, para não fazer feio, estudar, estar ao par das coisas da profissão de que o Estado me investira solenemente, num canudo de folhas-de-flandres, curtindo um papel encorpado e uma caixa de prata com selo de lacre.
Ao contrario de outros personagens de Lima Barreto, Vicente passa de um inconformado inicial para um resignado terminal: “Jamais pensei que tal coisa me viesse acontecer um dia; hoje, porém, acho uma tal aventura útil, pois temperou o meu caráter e certifiquei-me capaz de resignação” (BARRETO, 2001, p. 1445). Vicente queria recuperar o amparo paterno como uma maneira de atingir a felicidade que é “àquilo que os próprios homens, por seu comportamento, mostram ser o propósito e a intenção de suas vidas” conforme Freud (2006, p. 48) diz, “esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer”. Observei uma contradição interessante que vai permear quase toda a novela: uma mistura de combatividade e resignação. Vicente admite que “era necessário dar passos” que o “repugnavam”: arranjar favores para conseguir “um emprego adequado ao” seu “título” (BARRETO, 2001, p. 41 – 42).
Em Cemitério dos vivos há uma postura de recuo em Vicente Mascarenhas a partir do momento em que se arrepende de não estar integrado à sociedade e reconhece não poder satisfazer seu desejo de felicidade. Como exemplo, na passagem em que Vicente lembra-se de parte de sua rotina no hospício (BARRETO, 2001, p. 54): Feria-me também o meu amor-próprio ir ter ali pela mão da polícia, doía-me; e, mais me doeu, quando, nesse dia de Natal, eu tomei café num pátio, sem ser mesa, e, sem COSTA, F. S. | p. 117-132 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 121
ser em mesa, com prato sobre os joelhos, comi a refeição elementar que me deram, servida numa escudela de estanho e que eu levava à boca com uma colher de penitenciária.
Não vejo aqui o Lima Barreto anárquico, provocador e inconformado, mas alguém disposto a se enquadrar na sociedade e assumir seus valores. Este recuo, esta mudança na postura de seus personagens no modo como encaram as regras estabelecidas pela sociedade vai caracterizar Cemitério dos vivos mostrando-nos uma nova faceta de Lima Barreto. Freud (2006, p. 49) vislumbra o recuo, a resignação como algo normal em quem sofre diversas frustrações: Não admira que, sob a pressão de todas essas possibilidades de sofrimento, os homens se tenham acostumado a moderar suas reivindicações de felicidade – tal como, na verdade, o próprio princípio do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais modesto princípio da realidade –, que um homem pense ser ele próprio feliz, simplesmente porque escapou à infelicidade ou sobreviveu ao sofrimento, e que, em geral, a tarefa de evitar o sofrimento coloque a de obter prazer em segundo plano.
Vicente resigna-se, recua, e aceita que sua felicidade não é possível da maneira como quer, pois não pode mudar a estrutura da sociedade. A frustração e a infelicidade o obrigam a baixar as expectativas e “moderar suas reivindicações de felicidade”. Vicente fará duas tentativas de adaptação, deslocando o desejo de agradar ao pai (sociedade): pelo casamento e pela literatura. O amor é outra forma de fuga do sofrimento, Lima nunca se casou e até onde se sabe não teve grandes amores, talvez fugisse do “sofrimento do amor”, conforme Freud (2006, p. 52):
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E como se poderia esquecer, entre todas as outras, a técnica da arte de viver? Ela se faz visível por uma notável combinação de aspectos característicos. Naturalmente, visa também a tornar o indivíduo independente do Destino (como é melhor chamá-lo) e, para esse fim, localiza a satisfação em processos mentais internos, utilizando, ao proceder assim, a deslocabilidade da libido que já mencionamos.
Lima não era casado, mas Vicente seu personagem/alter ego casou-se com Efigênia, filha da dona da pensão onde o protagonista morava. Pouco tempo depois Efigênia morre e Vicente começa a se embriagar diariamente – de qualquer modo o sofrimento é inevitável, conforme diz Freud: “É que nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor”. (2006, p. 52). Após a morte da esposa Vicente tenta se dedicar à literatura para atender ao último pedido da esposa: Correram tempos e minha mulher, vendo-me uma vez ler o meu manuscrito, ao trazer-me café que lhe pedi, perguntou-me: — Você por que não publica isto?
— Não há quem o queira imprimir.
— Publique você mesmo. Custa caro? — Muito.
Ela convenceu-me que devia pedir emprestado o dinheiro necessário sobre os meus vencimentos. Assim fiz, e o livro ia em meio da composição, quando ela adoeceu gravemente. A sua moléstia foi dolorosa e duradoura. Mais de quatro meses, ela esteve acamada, morrendo aos bocados. No fim, só tinha de humano o olhar, aquele seu olhar vivo, penetrante, com expressões indefiníveis. Penou muito e muito me fez penar. No fim, parecia COSTA, F. S. | p. 117-132 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 123
estranha a tudo, até ao filho, até à mãe, e estava já quase assim, quando me fez aquela recomendação: — Você deve desenvolver aquela história da rapariga num livro... (BARRETO, 2001, p. 1456).
A publicação do livro foi infrutífera já que vendeu “toda a edição quase pelo preço de impressão, para pagar dívidas, e mal comprou um daqueles livreiros que me editara.” (BARRETO, 2001, p. 1457). A literatura era, para Vicente, uma forma de reconquistar o amparo do pai, agora na figura da sociedade, mas esse tipo de fuga do desprazer é complexo na medida em que tem efeito tênue e exige um dote para se dedicar a ela, segundo Freud (FREUD, 2006, p. 51): Outra técnica para afastar o sofrimento reside no emprego dos deslocamentos de libido que nosso aparelho mental possibilita e através dos quais sua função ganha tanta flexibilidade. A tarefa aqui consiste em reorientar os objetivos instintivos de maneira que iludam a frustração do mundo externo. Para isso, ela conta com a assistência da sublimação dos instintos. Obtém-se o máximo quando se consegue intensificar suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual. Quando isso acontece, o destino pouco pode fazer contra nós.
A literatura não foi suficiente para fazê-lo sentir-se incluído no plano do amparo paterno da sociedade: “As satisfações substitutivas, tal como as oferecidas pela arte, são ilusões, em contraste com a realidade; nem por isso, contudo, se revelam menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que a fantasia assumiu na vida mental.” (FREUD, 2006, p. 48). 124 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
Alcoolismo, loucura e isolamento como último recurso Com o fracasso da tentativa de se adaptar à sociedade pelo casamento e pela literatura Vicente segue sua tentativa de ser feliz, mas agora utilizando aquilo que Freud chama de fuga do desprazer por métodos extremados (FREUD, 2006, p. 4950): 3) o uso de álcool, causando um grave vicio e por fim; 4) o isolamento do hospício como forma de se apartar da sociedade. Para Freud (2006, p. 50):
[...] os métodos mais interessantes de evitar o sofrimento são os que procuram influenciar o nosso próprio organismo. Em última análise, todo sofrimento nada mais é do que sensação; só existe na medida em que o sentimos, e só o sentimos como conseqüência de certos modos pelos quais nosso organismo está regulado. O mais grosseiro, embora também o mais eficaz, desses métodos de influência é o químico: a intoxicação.
Embora fiquemos tentados a achar que o alcoolismo foi causado pela perda prematura da esposa, o fato é que há um deslocamento do desejo de amparo paterno, um motivo mais antigo. Sobre a importância dos paliativos, Freud (2006, p. 48) nos diz como eles colaboram para aguentar “as dores do mundo”. O álcool é um desses paliativos que nos dão a sensação ilusória de amparo paterno: A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas. ‘Não podemos passar sem construções auxiliares’, diz-nos Theodor Fontane. Existem talvez três medidas desse tipo: derivativos COSTA, F. S. | p. 117-132 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 125
poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela.
Com as alucinações causadas pelo uso constante de álcool Vicente foi internado pelo sobrinho. Ao contrário de Vicente, que queria receber alta e tentar uma nova vida, Lima Barreto escreveu, em seu diário, que “queria viver isolado, fora dessa paixão pela literatura, pelo estudo. Creio que ela me faz mal e lastimo não ter outra forma de talento em que minha inteligência pudesse trabalhar, absorver toda a minha atividade, sem comunhão com os meus semelhantes”. (BARRETO, 2001, p. 1403).
O isolamento é uma forma de romper relações com a realidade, negá-la ou negar sua existência, nessas condições o sujeito “[...] considera a realidade como a única inimiga e a fonte de todo sofrimento, com a qual é impossível viver, de maneira que, se quisermos ser felizes, temos de romper todas as relações com ela. O eremita rejeita o mundo e não quer saber de tratar com ele.” (FREUD, 2006, p. 52). Com o tempo Vicente passa a aceitar sua condição, é o que Freud chama de “princípio da realidade” em que o sujeito aceita a realidade e seu sofrimento como forma de diminuir esse sofrimento, ou seja, sua resignação, não mais lutando contra sua fonte de desprazer. É outra forma de fuga do desprazer, porém o que se quer é adequar-se à sociedade para evitar as punições causadas pela perda do amparo da autoridade. Mal estar na sociedade de Lima/Vicente
Freud (2006, p. 55) diz que existe um mal-estar na civilização: a mesma que protege é que a causa problemas e mais fontes de sofrimento:
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[...] deparamo-nos com um argumento tão espantoso, que temos de nos demorar nele. Esse argumento sustenta que o que chamamos de nossa civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e que seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas.
Se é verdade que a mesma civilização que é responsável pela proteção e pelo fim de certos sofrimentos, também parece ser responsável por novos sofrimentos, entendo que existem componentes dessa sociedade que desejam mudá-la por diversos motivos, mas isto é impossível, segundo Freud, e nosso desejo de mudança causa mais sofrimento. Vicente deseja inclusive que a sociedade seja aniquilada: Veio-me, repentinamente, um horror à sociedade e a vida; uma vontade de absoluto aniquilamento, mais do que aquele que a morte traz; um desejo de perecimento total da minha memória na terra; um desespero por ter sonhado e terem me acenado tanta grandeza, e ver agora, de uma hora para outra, sem ter perdido de fato a minha situação, cair tão, tão baixo, que quase me pus a chorar que nem uma criança. (BARRETO, 2001, p. 1448).
Porém depois da revolta nos resta desejar a ordem como forma de adaptação aos desejos coletivos da sociedade. Vicente, já no hospício, deseja a ordem como forma de resignar-se a uma nova situação, a um recomeço: É uma providência inútil e estúpida que, anteriormente, em parte, me aplicaram; contudo, posso garantir que iria para o hospício muito pacificamente, com qualquer agente, fardado ou não. Era o bastante que me ordenassem segui-lo, em nome do poderoso chefe de polícia, eu obedeceria incontinenti, porquanto estou disposto a COSTA, F. S. | p. 117-132 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 127
obedecer tanto ao de hoje como ao de amanhã, pois não quero, com a minha rebeldia, perturbar a felicidade que eles vêm trazendo à sociedade nacional, extinguindo aos poucos o vício e o crime, que diminuem a olhos vistos. (BARRETO, 2001, p. 1444).
Podemos fazer uma leitura dessa passagem como uma ironia de Lima, embora o contexto indique que Vicente estava com seu espírito desarmado e com uma sincera vontade de mudança. Vicente tinha antes o desejo de lutar contra a ordem estabelecida, porque representavam as forças que iam contra seus valores. Para completar sua resignação precisou adotar a ordem estabelecida As atividades humanas têm dois objetivos: utilidade e obtenção de prazer; mesmo a utilidade é para poupar e diminuir esforços, aumentando assim o prazer.
Se, de modo bastante geral, supusermos que a força motivadora de todas as atividades humanas é um esforço desenvolvido no sentido de duas metas confluentes, a de utilidade e a de obtenção de prazer, teremos de supor que isso também é verdadeiro quanto às manifestações da civilização que acabamos de examinar, embora só seja facilmente visível nas atividades científicas e estéticas. (FREUD, 2006, p. 60).
Vicente/Lima não luta contra o despotismo arbitrário de indivíduos mais fortes fisicamente, ele luta contra forças coletivas que estabeleceram normas/regras consideradas legais e até democráticas – dentro do padrão de democracia da época – que ele julga não serem corretas e às quais não consegue se adaptar e se submeter. A política – poder coletivo que suplantou a força bruta – legitimou uma forma de exercício do poder:
A vida humana em comum só se torna possível quando se
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reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados. O poder dessa comunidade é então estabelecido como ‘direito’, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como ‘força bruta’. A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização. (FREUD, 2006, p. 60)
O que se estabelece é um conflito entre a liberdade individual e a submissão à Lei: o protagonista, antes de sua resignação no sanatório, queria preservar sua liberdade de escolha e de opinião, mas o preço que pagou foi a frustração. O preço da frustração cultural é a resignação. Em terceiro lugar, finalmente – e isso parece o mais importante de tudo –, é impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a nãosatisfação (pela opressão, repressão, ou algum outro meio?) de instintos poderosos. Essa ‘frustração cultural’ domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos. (FREUD, 2006, p. 60).
A impossibilidade de mudança forçou Vicente a dirigir para si o sentimento de agressividade, transformando-o em culpa: “Senti muito a falta de minha mulher e toda a minha culpa, puramente moral e de consciência, subiu-me à mente”. (BARRETO, 2001, p. 1448).
Seria simples a explicação, se ele me conhecesse melhor. A minha consciência, a certeza em que eu estava de que o culpado de estar ali era eu, era a minha fraca vontade, que, entretanto, era forte em outros sentidos, obrigavam-me, para meu decoro moral, a nada pedir aos camaradas que me suavizassem a minha situação. (BARRETO, 2001, p. 1470). COSTA, F. S. | p. 117-132 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 129
Sobre o sentimento de auto-agressão e culpa, Freud (2006, p. 60) diz que é uma tentativa de inibir a agressividade que antes era dirigida à sociedade, pois, “Sua agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na realidade, enviada de volta para o lugar de onde proveio, isto é, dirigida no sentido de seu próprio ego”. Conclusão Como já foi escrito, Lima Barreto costuma ser rotulado pelos admiradores como crítico-social severo e a crítica lhe atribui uma literatura panfletária. Mas Lima é maior do que isso: é múltiplo em suas formas de escrita, seja no protesto, seja na resignação; nas críticas diretas ou nos diálogos mentais, com muitas reflexões sobre problemas da alma e comportamento humano, de interesse universal. Se por um determinado momento histórico ou pela pouca idade, sua narrativa era mais focada na denúncia social, vemos que esse movimento acusa mudança nas obras derradeiras do escritor. Esse é o caso de Cemitério dos vivos que foge quase que completamente das supostas características de Lima: não segue uma lógica cronológica, o protagonista vai e volta em suas lembranças; o entendimento de que a resignação é necessária para tentar alcançar a felicidade é a idéia central do texto, o que contradiz a idéia do escritor militante e panfletário. Ao encarnar esse sentimento de resignação, Vicente experimenta a trajetória do próprio criador, uma juventude de inconformidades e um amadurecimento voltado para a própria literatura, em uma tentativa de recomeçar e evitar mais sofrimento. Nessa situação a melhor forma de se defender do sofrimento é reduzir as expectativas, engrandecer as pequenas conquistas e a mais tênue fonte de felicidade; a resignação é o resultado desta tentativa de auto-preservação.
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Vicente está sempre buscando um modo de “fuga do desprazer” causada pela perda do amparo paterno e da sociedade. Essa busca passa pelo casamento, pela literatura, pelo alcoolismo e pelo isolamento no hospício. A universidade é vista como uma forma de desprazer, por isso fugir dela faz parte do processo em que se encontrava. Conforme Freud diz, é uma tentativa de reconstruir seu próprio mundo: [...] pode-se tentar recriar o mundo, em seu lugar construir um outro mundo, no qual os seus aspectos mais insuportáveis sejam eliminados e substituídos por outros mais adequados a nossos próprios desejos. Mas quem quer que, numa atitude de desafio desesperado, se lance por este caminho em busca da felicidade, geralmente não chega a nada. A realidade é demasiado forte para ele. Torna-se um louco; alguém que, a maioria das vezes, não encontra ninguém para ajudá-lo a tornar real o seu delírio. (FREUD, 2006, p. 52).
Vicente sentiu o peso da realidade que o cercava, mas não só ele: Lima também sentiu e a loucura de ambos foi o preço a ser pago pela audácia em tentar mudar o que já estava estabelecido. A resignação foi o caminho natural que o amadurecimento devido ao sofrimento por que passou poderia trazer.
O programa de tornar-se feliz, que o princípio do prazer nos impõe, não pode ser realizado; contudo, não devemos – na verdade, não podemos – abandonar nossos esforços de aproximá-lo da consecução, de uma maneira ou de outra. Caminhos muito diferentes podem ser tomados nessa direção, e podemos conceder prioridades quer ao aspecto positivo do objetivo, obter prazer, quer ao negativo, evitar o desprazer. Nenhum desses caminhos nos leva a tudo o que desejamos. A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia da libido do indivíduo. Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo COSTA, F. S. | p. 117-132 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 131
homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo. (FREUD, 2006, p. 53).
A resignação como forma de se adaptar à sociedade não pode ser entendida como covardia, mas sim uma tentativa de evitar o sofrimento e a infelicidade que é, segundo Freud, a busca de toda a humanidade, e cada um deve tentar seguir o caminho que mais lhe parece certo. As tentativas de Vicente de encontrar um melhor lugar na sociedade, e assim manter o amparo paternal desta, pode explicar a vida intensa que o personagem desenvolveu ao longo da novela que, não devemos esquecer, ficou inacabada. Não podemos saber qual seria o fim planejado por Lima ao protagonista, mas sabemos que ele representa uma parte da multiplicidade criativa que devemos buscar no escritor quando lemos suas obras. Referências bibliográficas
BARRETO, Lima. Cemitério dos vivos. In: _____. Lima Barreto: prosa seleta. VASCONCELLOS, Eliane. (Org.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001. FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos. In: _______. Sigmund Freud - Obras Completas, volume XXI (1927 – 1931). São Paulo: Imago, 2006.
ROMÃO, A. P. F. Os Bruzundangas: uma alegoria da 1ª República, 2012. 70f. Dissertação (Mestrado em Letras: Literaturas em Língua Portuguesa) – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, São José do Rio Preto, 2012.
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CONTOS SOBRE OS DESENCONTROS AMOROSOS EM FAMÍLIAS TERRIVELMENTE FELIZES DE MARÇAL AQUINO Fábio Marques MENDES1
RESUMO: propomos uma análise literária que percorra, resumidamente, o que classificamos como “contos sobre os desencontros amorosos”, incluídos na obra Famílias terrivelmente felizes (2003) de Marçal Aquino. Apontaremos algumas marcas destas narrativas de violência, considerando a articulação de seus temas e motivos, a constituição de seus narradores e focos narrativos, a caracterização das personagens e a materialidade dos textos. No que diz respeito ao conteúdo, estas narrativas articulam o tema do desajuste, seja nas relações conjugais e/ou familiares, encetando, por meio dessa via, uma releitura do projeto de Estado-nação brasileiro. Assim, os contos de Aquino atuam como desconstrução dos lugares-comuns do imaginário literário, social e cultural brasileiro, agindo sorrateiramente nas fissuras dos discursos solidamente construídos. PALAVRAS-CHAVES: Marçal Aquino; ficção contemporânea brasileira; desencontros amorosos.
Dentre os contos de Famílias terrivelmente felizes (2003) que evidenciam mecanismos de poder familiares, marcados UNESP/IBILCE, São José do Rio Preto/SP - E-mail: fabinmm@gmail.com Aluno do curso de Mestrado em Letras, área de pesquisa Perspectivas Teóricas no Estudo da Literatura (PTEL), pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP, campus de São José do Rio Preto/SP. Também é bacharel em Teologia e em Ciências Sociais.
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por desencontros amorosos e por fatores de desconcerto nas relações entre membros da mesma família, temos “Num dia de casamento” (1984), “A família no espelho da sala” (1988), “Miss Danúbio” (1989), “Jogos iniciais” (1992), “Cicatriz” (1992), “A casa” (1992) e “Sábado” (2002). Notase que nos contos “Sábado” e “A família no espelho da sala” estes desencontros acontecem diretamente no seio da família nuclear e tradicional brasileira. Nas outras narrativas a centralidade está nos casais envolvidos. Estas narrativas evidenciam o fato já asseverado por Richard Sennett (1988, p. 19, 318, 412), de que a erosão da vida pública deforma as relações íntimas, e promove, no seio dos grupos familiares, uma experiência fratricida, reproduzindo as esferas sociais do macropoder. “Jogos iniciais” representa bem esta série de contos por conter quatro sequências curtas de desencontros amorosos vividos em torno de quatro casais. A personagem masculina poderia ser a mesma: “O mesmo jogador, o mesmo adversário, em “jogos” ou campos diferentes, ou apenas em diferentes tempos do mesmo jogo” (MENESES, 2011, p. 78). Os espaços principais, considerando cada parte da narrativa, são e aparecem nesta ordem: quarto, bar, bar e quarto. Considerando a materialidade do texto, isso parece indicar a violência que ocorre nos espaços e nos ambientes privados estão influenciadas e cerceadas por aquelas que se passam nos espaços públicos. No primeiro capítulo do conto, narrado em 1ª pessoa do singular, e tendo o quarto como o espaço principal, um homem entediado finge observar atentamente uma mulher velha se despir, preparando-se para o ato sexual. A relação sexual não ocorre ou é ocultada no texto, depois que ambos olham para o retrato da filha falecida há alguns anos. O narradorpersonagem, deitado na penumbra, está encurralado por duas situações que o incomodam, pois a mulher não lhe 134 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
agradava mais fisicamente e a filha já estava morta. Não há como fugir, por isso, lamenta e reconhece o labirinto violento que a ironia da vida o destinou. O cigarro aceso no quarto e o “domingo enfumaçado no zoológico” (AQUINO, 2003, p. 49), este último como resquício da lembrança do homem ao visualizar a imagem da filha, servem como recursos estilísticos para o embaçamento da cena, mas também sinalizam a vertiginosidade do narrador diante de uma situação tediosa e melancólica. O desnudamento físico da mulher acompanha o desnudamento intimista do narrador ao longo do texto. O “par de seios tristes, igual ao da mãe, que está deitada aqui ao meu lado” (AQUINO, 2003, p. 49) refletem a condição triste das personagens. Este jogo irônico entre fato e retrato ou entre realidade e enquadramento aparece também no conto “Miss Danúbio” (1989). A história encontra-se na 1ª pessoa. O foco narrativo é o narrador protagonista, sendo que o mesmo recebe das mãos de Vinícius uma foto, salva de um incêndio no bar Danúbio. Essa foto retratava “uma mulher loira, meio sardenta, que não depilava as axilas e tinha passado há muito dos quarenta” (AQUINO, 2005, p.226). Há muitas lacunas não preenchidas na narrativa, como já notado por Ramos (2006, p.105). Não se sabe se Miss Danúbio era uma frequentadora do bar ou uma garota de programa, e mesmo se o protagonista era ou não apaixonado por ela, como teria afirmado: “Eu a chamava de Princesa. Acho que como chamaria qualquer mulher cuja nudez me comovesse. A chave era essa: eu não me apaixonava, eu me comovia” (AQUINO, 2003, p. 226). Mas, o grande ocultamento feito pelo narrador é se Miss Danúbio teria morrido ou não no incêndio do bar. Se sim, a lamentação da parte do narrador é por tê-la deixado naquele local e por ter reprimido seus sentimentos por ela, como expresso nas frases finais da narrativa: “Mas como explicar isso – de verdade? E, afinal, MENDES, F. M. | p. 133-144 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 135
a quem pedir perdão depois de tanto tempo? Ao guarda do quarteirão?” (AQUINO, 2003, p.226). Por isso, há um tom de perda e de remorso da parte do narrador.
Assim como no primeiro capítulo de “Jogos iniciais”, temos o enquadramento de uma realidade não acessível ao narrador: a foto de uma mulher que havia falecido. O efeito irônico que as duas histórias têm em comum está na contemplação dos narradores-personagens em direção a uma pessoa e a uma realidade que não podem ser mais experimentadas, pois, ambos estão deslocados do tempo e do espaço em que elas se encontram. A memória tenta recuperar o que foi perdido, mas sem sucesso, instalando um sentimento de degradação interior nos narradores. O real inacessível toca suas lembranças, trazendo um tom de melancolia e de tristeza aos ambientes. No segundo capítulo de “Jogos iniciais”, narrado em 3ª pessoa, um rapaz, possivelmente um motorista de caminhão, está sozinho em um bar de beira de estrada. Bêbado, entra no banheiro do bar e visualiza na parede “rabiscos, nomes e desenhos de órgãos masculinos e femininos” (AQUINO, 2003, p.50). A parede retrata um ambiente sexualizado e também os desejos depositados no inconsciente da personagem, expondo sua carência física e sexual. Motivado por uma intensa solidão relacional, topa experimentar o diferente, “era o par de pernas mais bonito que já tinha visto” (AQUINO, 2003, p.50), relacionando-se com uma travesti. Notamos aqui que o eu narcísico da personagem principal motiva suas atitudes e escolhas, ligado à satisfação imediata de suas necessidades íntimas. Isso também acontece no terceiro capítulo de “Jogos iniciais”. Nesta parte do conto, a narrativa volta à 1ª pessoa do discurso. O narrador-personagem descreve a impaciência de um rapaz em um bar ao dividir a mesa com uma moça 136 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
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que come um alimento de maneira sedutora. O rapaz, indiferente ao encanto dos gestos da garota, percebido pelo narrador, tem pressa de ir ao motel. Enquanto isso, o narrador observa os gestos da garota, recordando-se do seu passado afetivo com M.C., sua ex-mulher. Ambas as posturas são machistas e centralizadas no homem. O que as diferencia, no entanto, é que o comportamento sexual do narrador é melancólico e nostálgico, enquanto o rapaz age de maneira utilitarista, imediata e pragmática. Nos dois casos a violência é perceptível na concepção machista da mulher como objeto de prazer. O que muda é como essa violência é estruturada e praticada, considerando os aspectos cultural e geracional. As narrativas de Aquino sugerem que a violência simbólica e social brasileira apenas mudou de roupagem, perpetuando o desmantelamento das relações e da vida intimista, por meio da exploração e da ênfase nesta última. Os problemas políticos e públicos foram trocados por questões de foro íntimo: “Uma hora ela olha na direção da mesa em que estou, e eu mais que depressa disfarço, fingindo ler qualquer coisa no jornal à minha frente” (AQUINO, 2003, p. 52).
No quarto e último capítulo de “Jogos iniciais”, a violência contra a mulher aparece na forma de agressão física e psicológica. Um homem casado e com filho mantêm frequentes relações sexuais com uma amante, fingindo amá-la. Os atos sexuais são intercalados com momentos de agressões corporais, círculo vicioso já rotinizado na relação. Nesta última parte do conto, duas mulheres são agredidas: a amante e a “bruxa velha” (AQUINO, 2003, p.54), esposa do agressor, duas vítimas da infidelidade masculina; a primeira como personagem principal e a outra como secundária. Há também menção de um menino, filho do homem com sua esposa, sujeito deslocado nesse jogo de A palavra “comer”, na cultura brasileira, é usada no sentido figurado de “possuir sexualmente o(a) outro(a)”. 2
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interesses. Diferente da interpretação tradicional feminista que abriga um discurso de vitimização em relação à figura feminina construída nas narrativas de Aquino, como faz Meneses (2011, p.24), interpretação que reforça a dicotomia dominação-subordinação entre homem e mulher, notamos que a desintegração da família nuclear não recebe apenas a contribuição do homem, mas também o agenciamento da amante. Esta sabia da “bruxa velha” e do menino, tendo conhecimento de que estava se relacionando com um homem casado e pai de família. Mas, após a agressão, deixa-se seduzir pelas palavras do agressor. Ela demonstra estar acostumada ao ciclo da violência, não conseguindo se desvencilhar da relação doentia. O conto “Num dia de casamento” (1984) poderia ser a quinta parte de “Jogos iniciais”, pelo recurso estilístico utilizado, pelo tamanho do texto e pela temática abordada. A história é contada em 1ª pessoa, sendo o foco narrativo o narrador protagonista. O conflito dramático ocorre quando o narrador-personagem assiste ao casamento de um antigo ou atual amor, mulher que podia ou poderia ter sido a sua. Há aqui uma violência psicológica que assume nuances de masoquismo.
O estado do narrador-personagem não combinava nem um pouco com a celebração social: “Eu estava de sandálias e tinha cinco cigarros no maço. Estava um pouco magro também” (AQUINO, 2003, p.41), além da barba crescida. Junto à alegria que cercava os convidados na cerimônia de casamento, o sentimento do narrador destoava. Ele assiste o rito social do lado de fora da igreja, “encostado à sombra”. Diferente de todos ali, se posicionou no lugar das sombras, local simbólico da morte, ou seja, da negatividade, da rejeição da realidade, do desgosto e da auto-flagelação. A narrativa parece sugerir que nem a noiva tinha certeza de sua escolha: “Uma mecha 138 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
do cabelo soltara-se do arranjo na cabeça e pendia em sua testa. Como um ponto de interrogação de cabeça para baixo” (AQUINO, 2003, p. 42). Suspeita-se, então, da importância e da necessidade da instituição familiar e de sua contribuição positiva ao desenvolvimento da sociedade brasileira. Ironicamente, só aquele que está no “local da sombra”, do lado de fora da igreja e da festa, é que consegue decifrar a falência de um ritual que legal, religiosa e simbolicamente, valida a família burguesa. O ego narcisista do narrador consegue enxergar o esvaziamento e a perda de sentido dessa celebração pública. O conto descreve pessoas retocadas e maquiadas, a música que acompanha a cerimônia, a troca de cumprimentos e a documentação das cenas pelas lentes dos fotógrafos. No entanto, perscruta a intimidade ferida do narrador e revela a violência e a mutilação de relações sociais e de subjetividades humanas, provocadas por uma instituição mantida pelo Estado e pela família tradicional. Fazendo alusão à tríade mulher-nudez-morte, em consonância com o comportamento masoquista do narrador, recorremos ao conto chamado “A casa” (1992). O texto é rico em descrições, especialmente em referência ao estado deplorável de um imóvel, o espaço único e principal do conto, relegada ao descuido, ao apodrecimento, ao silêncio e à escuridão, mas também à reconstrução de uma morte mentalizada pelo narrador-personagem. Este homem faz uma visita a esta antiga moradia, cuja história aparentemente ele conhecia bem. Ele retorna ao lugar por intermédio de uma imobiliária, sendo acompanhada pela vendedora Sônia. A antiga dona da casa era uma “moça meio doida” que teria se suicidado em uma banheira branca e cortado seus pulsos, “depois de ter escrito uma carta para a família e outra para os amigos, aproveitando para citar Pavese, quando ele disse que tudo estava bem e era só não fazer muita intriga” (AQUINO, MENDES, F. M. | p. 133-144 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 139
2003, p. 77, 79). Um provável suicídio pode ter impedido a hipotética constituição de uma família, pois, pelo que parece, o narrador teria se envolvido emocionalmente com a moça que tinha se suicidado. A causa da morte não está relatada no conto, mas talvez tenha sido motivada pelo visitante.
Pelo fato do narrador tentar reconstituir os últimos passos e pensamentos da moça antes de sua morte, a violência psicológica é reforçada. Nota-se neste conto vestígios de masoquismo somados a uma investigação de fundo passional. A cena do crime é reconstruída mentalmente, sem que o narrador sequer estivesse presenciado o acontecido. No espaço vazio da casa abandonada há vestígios da morte física da antiga moradora, mas também, vestígios da morte simbólica do narrador-personagem. Dentre os dois tipos de morte, a mais cruel é a morte sutil e lenta que acomete o narrador. Nos contos de Famílias terrivelmente felizes as interpretações da realidade passam pelas memórias, lembranças e emoções, grandemente violentadas, dos narradores.
No conto “Cicatriz” (1992) um ex-marido demonstra inquietação pela presença de um novo homem na vida da sua ex-mulher. Direciona, então, perguntas indiretas para sua filha, uma “menina loira” e que usa muletas de metal, a fim de desvendar detalhes concernentes àquele que o substituiu. Descobre que o novo marido usa bigode e óculos, é gordo e tem uma barriga enorme com a marca de uma cicatriz, “E fica tentando imaginar um sujeito de cabelos e bigodes grisalhos, com uma barriga volumosa e que usa óculos para conferir a conta em restaurantes” (AQUINO, 2003, p.69). Visivelmente o título do conto faz referência à cicatriz deste sujeito, mas, nas entrelinhas, se refere à cicatriz do ex-marido, uma ferida que é interior, retocada diariamente e escondida no silêncio de sua alma. O conto “Sábado” pode ser interpretado à luz de “A casa”.
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Em ambas as narrativas a casa é o espaço principal. Neste último conto, o imóvel está abandonado e não pode comportar a presença de uma família devido à morte física de uma personagem feminina. A mente perturbada do narrador revivia essa morte enquanto andava pelos corredores da casa. Em “Sábado”, a moradia serve de abrigo para uma família nuclear, cujos membros são o pai, a mãe (Olga) e duas irmãs (a mais velha chamada Flávia; a mais nova, Helena). A morte também transita simbolicamente pela residência desta família, aludida indiretamente pelo sepulcro de um cachorro, localizado do lado de fora da casa, mas claramente sinalizada por comportamentos de cunho racista da parte dos membros da família, especialmente pelo pai. Fred é um rapaz mulato, que vai até a casa dessa família de classe média para ser apresentado como o namorado de Flávia. Ele era órfão de pai, que “havia morrido quando ele estava com a idade de Helena, e a mãe era chefe de enfermagem no hospital” (AQUINO, 2003, p. 90-91). Deste modo, a figura representativa tanto da ausência quanto do autoritarismo é a paterna; ausência do pai de Fred e autoritarismo do pai de Flávia.
Do mesmo modo, mas em outra perspectiva, a corrupção conjunta do país e da família tradicional é o tema de “A família no espelho da sala”. Esta narrativa deixa às claras o que temos argumentado até aqui: que o esvaziamento da esfera pública brasileira, sancionado pelo inchaço de sua esfera intimista, é resquício de um Brasil que, na transição do período militar para o período da redemocratização, deslocou a violência brutal das ruas para o interior de seus cidadãos e subcidadãos (o caso das personagens de Aquino), podendo contribuir, assim, para a produção de uma violência sutil na sociedade brasileira. É esse tipo de violência que é representado na estética de Aquino. O conto ressalta que há MENDES, F. M. | p. 133-144 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 141
um sentimento de decepção política embutido no interior dos brasileiros, “– Politicamente, o exemplo brasileiro é muito típico das condições do pós-moderno. Porque no Brasil há um sentimento de decepção, mas não uma grande decepção, uma decepção dramática – disse o professor Hans Gumbrecht” (AQUINO, 2003, p. 39), e isso reverbera drasticamente no ambiente opressor de uma família da classe média brasileira. As relações entre os membros dessa família são tensas e o ambiente é de opressão e repressão, repleto de “pequenas tragédias pessoais” (AQUINO, 2003, p.33), assistidos passivamente pelos pais.
O tempo cronológico da história é linear, mas sua estrutura é dividida em onze partes, mesclando o uso da 1ª e da 3ª pessoa. Nos casos em que o discurso narrativo encontra-se em 1ª pessoa, o ambiente é marcado por um narrador, filho mais velho da família e que trabalhava como repórter para um jornal da cidade. Ele vai desistindo aos poucos da mulher, da família e de um país ideal. Descontrói os mitos que circundam estas instituições: passa a noite com uma garota de programa, pensa na grande decepção que envolve a vida pública dos brasileiros e é cria de uma família desmantelada. Quando há o uso da 3ª pessoa, temos em primeiro plano a descrição de um pai que se recusa a perceber e a aceitar a decadência de sua própria família. O passado obscuro do pai e seu imaginário idealizado de família não fazem com que ele perceba o presente obscuro de seus filhos: o caçula é usuário de drogas; Marisa, a filha do meio, tinha relações sexuais com o namorado, até tentar o suicídio no banheiro – mais uma indeterminação nos contos de Aquino –, que ficava no andar de cima da casa da família. Foi, inclusive, surpreendido por um de seus filhos e encontrado nu com uma empregada. Helena, sua filha mais velha, havia se separado do marido, voltando a morar na casa dos pais e trazendo consigo o seu rebento. 142 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
Posteriormente, Helena faria um aborto, depois de engravidar de um dos homens com quem saía. Os filhos eram tratados pelos pais como se fossem parte de “um jogo de louças, somente usados quando havia visitas em casa e que, na hora de lavar, exige o dobro de cuidados para evitar riscos, aranhões e trincas. Para depois ser devolvido ao armário até a próxima visita ou data especial” (AQUINO, 2003, p.3-32). A família vivia de aparências e, apesar do excesso de cuidados, ela se corrompia com o tempo e com as circunstâncias. No plano real, a vida dos filhos eram mais parecidas com um “jogo de cartas”, sujos e dobráveis, destinados à sorte e ao azar, do que com um polido e brilhante “jogo de louças”. Famílias terrivelmente felizes é uma coleção de vinte e um contos que foram escritos em um período de transição, de 1981 a 2002, ou seja, em um hiato, evidenciado, de um lado, pela suspensão das liberdades democráticas e pela censura proposta pelo regime militar, e de outro, pelo fortalecimento da crítica à ditadura sugerida por movimentos de esquerda. Os contos sobre os desencontros amorosos deixam claro que as narrativas de Aquino entrelaçam as esferas de micropoder (famílias) e as esferas de macropoder (Estado), formando uma dialética violenta que estaria na base do funcionamento da sociedade autoritária brasileira. Assim, podemos pensar que o desmanche da célula familiar tem relação direta com a desorganização do Estado. A marginalidade urbana é o locus principal de explosão desse conflito, afetando drasticamente as personagens que ali habitam e transitam. A indistinção entre o público e o privado, um dos principais traços marcantes da sociedade autoritária brasileira, de acordo com Marilena Chauí (2000, p. 90-92), reforçaria a vida intimista dos brasileiros, contribuindo, de algum modo, para a produção e a leitura de históricas literárias marcadas por MENDES, F. M. | p. 133-144 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 143
uma violência que surge de dentro das famílias, que expõe a intimidade deturpada dos narradores, que projeta espaços opressivos e lutas de poder entre o masculino e o feminino, isso tudo através de textos fragmentados onde abundam períodos curtos em uma estrutura de narrativas breves. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AQUINO, Marçal. . Famílias terrivelmente felizes. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. ARENDT, Hannah. A condição humana. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. MENESES, Maria de Lurdes dos Santos Rodrigues. Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino. Dissertação apresentada à Universidade de Aveiro, 2011. Disponível em: ˂http://ria.ua.pt/ b i t s t re a m / 1 0 7 7 3 / 6 0 8 6 / 1 / F i c h e i ro % 2 0 2 % 2 0 Viol%C3%AAncia%20social%20 e%20familiar%20 nos%20contos%20de%20Mar%C3%A7al%20Aquino. pdf˃. Acesso em: 12 jan. 2012.
SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
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A PERSPECTIVA JUDAICA NA OBRA DE MOACYR SCLIAR Fernanda Medeiros de FIGUEIRÊDO1
Resumo: A partir da vasta obra do escritor gaúcho (e judeu) Moacyr Scliar, pretendemos abordar o universo judaico presente em três narrativas pré-selecionadas: O exército de um homem só, A mulher que escreveu a Bíblia e O centauro no jardim, colocando em cena um conjunto de elementos que remetem à Bíblia Hebraica (o Tanakh) no que diz respeito à intencionalidade comunicativa dos discursos estabelecidos pelos personagens, também judeus. Pensando por este viés e considerando o contexto judaico presente na obra em análise, ou seja, como parte do processo de criação literária de Scliar, devemos apreciar o contexto em que o autor se insere, uma vez entendido que o meio social disponibiliza um acervo de signos a serem utilizados nas enunciações e que este conduz a um “reflexo da inter-relação social” do locutor e sua “individualização estilística“. Desta forma, considerando as relações dialógicas entre a literatura e o universo religioso presentes na obra do referido autor, temos como objetivo fazer uma abordagem da intencionalidade dos discursos polifônicos construídos por um sujeito falante, que remetem à transcendência de vozes sociais ligadas a enunciados ideológicos. Diante do exposto, utilizaremos como pressupostos teóricos as colocações de Bakhtin, Genette, Miles, entre outros autores. Palavras-chave: Bíblia Hebraica, Judaísmo, Dialogia
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(PPGLI/UEPB. Campina Grande – PB. E-mail: nandavarzea@gmail.com)
Introdução A partir da vasta obra do escritor gaúcho (e judeu) Moacyr Scliar, abordamos neste trabalho o universo judaico presente em três narrativas pré-selecionadas: O exército de um homem só, A mulher que escreveu a Bíblia e O centauro no jardim, colocando em cena um conjunto de elementos que remetem à Bíblia Hebraica (o Tanakh) no que diz respeito à intencionalidade comunicativa dos discursos estabelecidos pelos personagens, também judeus.
Pensando por este viés e considerando o contexto judaico presente nas obras em análise, ou seja, como parte do processo de criação literária de Scliar, devemos apreciar o contexto em que o autor se insere, uma vez entendido que o meio social disponibiliza um acervo de signos a serem utilizados nas enunciações e que este conduz a um “reflexo da interrelação social” do locutor e sua “individualização estilística“, de acordo com o filósofo russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), que também desenvolve a ideia de dialogismo atrelada a esses recursos. Desta forma, considerando as relações dialógicas entre a literatura e o universo religioso presentes na obra de Moacyr Scliar, temos como objetivo fazer uma abordagem da intencionalidade dos discursos polifônicos construídos por um sujeito falante, que remetem à transcendência de vozes sociais ligadas a enunciados ideológicos. Neste caso o sujeito falante seria o próprio autor ou, em alguns momentos, os personagens a quem ele dá vida e constroem discursos muitas vezes polêmicos e perturbadores, como a própria narradora anônima em A mulher que escreveu a Bíblia, quando esta contesta os escritos bíblicos e a tradição santa do povo cristão na época salomônica, ou mesmo o centauro Guedali nascido em uma família judia que não sabe como lidar com sua raça e seus instintos animais e, por último, a crise de identidade do protagonista Mayer Guinzburg na obra Um exército de um homem só, considerando
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que em sua juventude os ensinamentos de seu pai a respeito do judaísmo não lhe interessam, pelo contrário, até contrariam suas vontades revolucionárias. A partir dos enunciados estabelecidos nos enredos, Scliar estrutura diálogos ou monólogos em que prima pela elucidação detalhada de características pertencentes ao contexto judaico, a exemplo de rituais como a circuncisão, livros sagrados como a Mishná, Guemará e o próprio Tanakh, expressões próprias do judaísmo e seu tratamento em relação a tradições alheias, acontecimentos históricos relativos aos seus condescendentes, a cultura iídiche, entre tantas outras peculiaridades que fazem parte da vida do autor e são repassadas ao interlocutor através de um imaginário povoado de sinagogas e conselhos proféticos, sempre quebrados por atitudes de contravenção e contestação feitas por seus personagens. Para que compreendamos melhor o discurso que envolve as obras, é relevante que entendamos o que é o ato enunciativo em si. De acordo com Koch (2012, p. 11) é
“o evento único e jamais repetido de produção do enunciado. Isso porque as condições de produção (tempo, lugar, papéis representados pelos interlocutores, imagens recíprocas, relações sociais, objetivos visados) são constitutivas do sentido do enunciado”.
Assim sendo, sobre a enunciação, podemos dizer que é o ato interativo entre indivíduos socialmente organizados e que dispõem de um mesmo sistema linguístico para que haja uma efetiva compreensão do produto final, o enunciado em si. A partir das considerações de Bakhtin, podemos intuir que esta enunciação, basicamente, é responsável pelas condições de produção e recepção dos enunciados e é pensada, a priori, FIGUEIRÊDO, F. M. 145-162 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 147
como um mecanismo intencional que tem como objetivo repassar uma informação repleta de significação para quem é direcionada.
Considerando a linguagem enquanto atividade social, e entendendo que, para Bakhtin (2010, p. 126), a palavra sempre é dirigida ao outro e surge como resposta ao discurso de outro, endossando a infinita cadeia de comunicação verbal ininterrupta, a qual nos leva também a correlacionar textos e esbarrarmos em conceitos posteriores relacionados à teoria de Bakhtin: a exemplo da intertextualidade, a hipertextualidade, transtextualidade e tantos outros que foram criados mais tarde com o intuito de pormenorizar a dialogia. “Qualquer enunciação, por mais significativa e complexa que seja, constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta.” (BAKHTIN, 2010, p. 126). Desta forma, verificamos que estamos ligados por uma corrente infinita de enunciados, um enorme diálogo empreendido por todos ao longo do tempo, e é graças a este pensamento que definimos que a obra de Scliar está ligada a essa tradição judaica exatamente quando a enxergamos através da ótica bakhtiniana dialógica. Nos baseando na ideia de Bakhtin que “toda interação verbal é apenas um elo de uma grande cadeia” e que, por conseguinte, um texto faz alusão explícita ou implícita a um outro texto, podemos então perceber que tanto A mulher que escreveu a Bíblia, quanto O centauro no jardim e O exército de um homem só, possuem profunda correlação com o Tanakh e toda a tradição judaica cristã destrinchada ao longo dessas obras. O meio social e seus signos
É necessário que se tenha em mente que o meio social disponibiliza um acervo de signos a serem utilizados nas 148 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
enunciações. Afinal, não é por acaso que o escritor gaúcho e judeu, Moacyr Scliar, se utiliza da Bíblia Hebraica para a construção de seu texto, como também não é à revelia que os editores desse conjunto de escritos bíblicos (o Tanakh) editaram a ordem de seus livros da maneira que hoje se vê, sabendo que a diferença entre o Antigo Testamento Cristão e a Bíblia Hebraica se resume à ordem sequencial de seus livros. Enquanto na Bíblia Hebraica, os textos proféticos estão no meio e os últimos livros são os que apresentam um Deus que cada vez menos fala e interfere na vida humana, no Antigo Testamento Cristão os livros proféticos, nos quais Deus é falante, ficam no final. Este arranjo literário e teológico tem um papel importante para a compreensão dos personagens. Na Bíblia hebraica, porém, depois que a ação cede terreno ao discurso, o discurso por sua vez dá lugar ao silêncio [...] Qual é o significado dessa longa penumbra da Bíblia hebraica, em seus últimos dez livros? A penumbra não é a seguida de trevas: Deus não morre. Mas ele nunca mais interfere nos assuntos humanos, e implicitamente fica cada vez mais claro que não se espera mais nenhuma intervenção dele. (MILES,1997, 22-3).
Nesse arranjo literário-teológico da Bíblia hebraica, que é o texto ao qual Scliar faz menção em todas as narrativas analisadas, há uma chave indispensável para a compreensão dos textos literários posteriores no estilo que Scliar usa, pois o Deus da Bíblia hebraica negocia constantemente com as personagens humanas, cede a elas certos direitos, especialmente os da co-criação e da capacidade inventiva de criar tramas e enredos nas suas muitas narrativas.
Por esse ponto de vista, o deslocamento das cenas presentes na obra A mulher que escreveu a Bíblia, por exemplo, poderia FIGUEIRÊDO, F. M. 145-162 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 149
ser então comparável com o arranjo teológico distinto entre a Bíblia hebraica e a Bíblia Cristã, ambos sendo editados para o melhor posicionamento da narrativa frente aos interesses de quem assim o dispõe, e no caso da obra mencionada, para melhor colocação ficcional dos fatos expostos pela narradora anônima, que conclui sua obra apresentando a queda de Salomão e o surgimento de uma outra religião formada, desta vez, por uma trindade: pai, filho e espírito santo. Ou seja, antecedendo os fatos que mais tarde aconteceriam e que, segundo ela, eram bastante previsíveis. [...] o nascimento de uma nova religião. Nela, o Jeová enigmático, autoritário, seria substituído por um Deus-Pai, todo-poderoso, sim, mas ao mesmo tempo misericordioso. E haveria um Filho, com quem as pessoas poderiam se identificar em sua aflição; esse Filho, sob forma humana, pregaria o amor e a justiça, realizaria milagres, curaria enfermos [...] Naturalmente seria sacrificado pelos representantes do Império e seus cúmplices locais, mas ressurgiria de entre os mortos e ascenderia aos céus. Ah, sim, este Filho teria uma Mãe, uma figura feminina muito diferente da Eva ou mesmo das matriarcas (ou da minha omissa genitora), uma Mãe que seria o símbolo da bondade, uma figura feminina mediante a qual os fiéis poderiam apelar ao Pai e ao Filho. A Trindade se completaria com um Espírito Santo, simbolizado por uma ave - não os corvos com quem Salomão gostava muitas vezes de conversar, mas por um puro e inocente pombo, muito diferente dos pombos do palácio, neles incluídos os portadores de almas penadas. (SCLIAR, 2007, p. 151)
Desta maneira, sabendo que a intencionalidade dos discursos polifônicos são construídas por um sujeito falante, vale corroborar a ideia de Fiorin (2006, p.58) quando este autor diz que “o mundo interior é a dialogização da heterogeneidade de vozes sociais”, ou seja, o eu pressupõe
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um outro, e sua enunciação é realizada a partir de enunciados ideológicos, discursos sociais. O que ele cria é “uma resposta ativa às vozes interiorizadas” (Pires, 2010, p.70). A língua, no seu uso prático, é inseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida. Para se separar abstratamente a língua de seu conteúdo ideológico ou vivencial, é preciso elaborar procedimentos particulares não condicionados pelas motivações da consciência do locutor. (BAkHTIN, 2006, p.89).
Se pensarmos em termos práticos, os mitos que tanto povoam a literatura encontram terreno fértil nessa tradição judaica que surge a partir do povo de Israel originado de muitas das tribos existentes na Mesopotâmia, herdando uma série de crenças e valores religiosos ligados à mitologia e à representatividade do bem e do mal na vida e nos destinos dessas pessoas. Assim sendo, torna-se necessário transpor os obstáculos impostos pela sociedade no que tange à compreensão da Bíblia enquanto literatura, valendo-se de pensamentos como o de Bloom (1992, p.22) quando este afirma que “todos os relatos da Bíblia são ficções eruditas ou fantasias religiosas, e geralmente servem a propósitos bastante tendenciosos”. Essa tendenciosidade, ligada à capacidade criativa e às intenções de cada autor, não pode ser vista como algo exterior ao cenário bíblico, o que geralmente acontece quando se pensa nesses escritos como objetos sacrosantos e incontestáveis. Na realidade, a Bíblia, e neste caso, o Tanakh, são avaliados aqui como obra literária e, como tal, possuem características pertinentes a esse plano, como trama, estilos, gêneros, personagens, ficcionalidade, contravenção, desrespeito, desobediência, crítica, inversão de papéis, etc. Sobre a intertextualidade tão presente nas narrativas de Scliar, sabemos que esta multiplica os sentidos dos textos, FIGUEIRÊDO, F. M. 145-162 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 151
literário e religioso (este que não deixa de ser literatura), colocando em cena um conjunto de elementos comparáveis entre si, mas com reformulações que fazem a diferença perante uma análise mais profunda sobre o diálogo da obra de Scliar com a própria Bíblia hebraica, levando sempre em consideração que a recriação paródica não está presente apenas em seus livros, mas também nos escritos bíblicos aos quais ele faz menção. Esse termo torna-se mais difundido a partir da autora Julia Kristeva (1974, p.72), com a clássica afirmação de que “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”, e que isto nos serve como premissa para compreensão do termo intertextualidade. Já o autor Gerárd Genette (2010) contesta que esta definição é por demasia restritiva, pois como a própria terminologia sugere, a (inter)(textualidade) sugere a presença efetiva de um texto em outro, uma co-presença demarcada, seja por citação, plágio ou alusão. Ao passo que a hipertextualidade configura uma relação que une um texto A (hipertexto) a um texto B (hipotexto), na qual o primeiro não cita necessariamente, por nenhum dos métodos citados na intertextualidade, o texto através do qual este se originou. Ou seja, o hipertexto não seria o mesmo sem a influência do hipotexto, que transforma o leitor/escritor através da interpretação que o mesmo faz de seu discurso, mesmo que um não precise necessariamente estar diretamente explícito no outro. O fato é que todos esses conceitos são criados a partir de estudos linguísticos feitos através da interpretação da obra de Bakhtin, embora muitos autores concordem que esta retomada conceitual empobrece o alcance filosófico original. A partir deste impasse, Gerárd Genette cria sua teoria da transtextualidade, na qual observa que o objeto da poética não é o texto em si, mas sim o arquitexto (referente à arquitextualidade), termo que ele usa para definir o conjunto das categorias gerais ou transcendentes do texto, “tudo 152 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
que coloca [um texto] em relação, manifesta ou secreta, com outros textos” (GENETTE, 2010, p. 13). Embora neste trabalho achemos que o mais ideal é seguir o percurso teórico engendrado a priori por Bakhtin. Das obras em análise
O romance A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar, foi escrito em 1999 e tem início com um ex-historiador, então terapeuta de vidas passadas, narrando a história de uma mulher contemporânea que descobre, através de uma terapia de vidas passadas, sua identidade ancestral: esta havia sido, no século X a.C. uma das setecentas esposas de Rei Salomão, a mais FEIA de todas, mas a única capaz de ler e escrever; e a quem, encantado com essa habilidade inusitada, “[...] mulher escrevendo? Mulher, mesmo feia, era para cuidar da casa, para casar, gerar filhos.” (SCLIAR, 1999, p.30), o sábio Rei encarregou de escrever a história do seu povo. História essa que a anônima narradora batiza com um nome grego: bíblion, BÍBLIA. A mulher, encantada com esta missão, mescla em seu texto, narrado na primeira pessoa, momentos de alta erudição com outros de uma linguagem repleta de palavrões e gírias, inclusive modernas. Desta forma ela narra sua própria existência, desde o período em que ela era apenas uma das três filhas do líder anônimo de uma tribo. A narradorapersonagem leva o leitor a uma jornada fascinante pelo reino de Salomão, por seu grupo de mulheres, pelas traições e insídias tramadas nos bastidores, por feitos extraordinários e paixões ardorosas.
O relato começa com a anônima descrevendo sua fealdade e o momento em que tragicamente a descobriu, através do descuido da irmã mais nova - a bela, amiga e confidente - que guardava consigo (escondido, uma vez que esse objeto era FIGUEIRÊDO, F. M. 145-162 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 153
proibido na casa) um espelho. A partir de então tudo passou a fazer sentido, as rejeições desde a infância, a forma como as pessoas a olhavam, a laboriosa conspiração da família em ocultar a triste realidade da filha, e principalmente, a revolta contra um Deus que teria permitido o acontecimento revelador. Mais tarde um velho [e também feio] escriba de seu pai resolve ensinar-lhe a leitura e a escrita. A partir de então ela passa a narrar de um tudo em suas escritas feitas sempre às escondidas: contos, versos, histórias. E então eis que o inesperado acontece, chega uma mensagem do rei Salomão levada por um emissário que também teria a função de levar a filha mais velha do chefe da tribo para casar com a realeza, mais uma esposa para o harém, localizado na cidade do templo – Jerusalém. Mais uma decepção: uma chegada sem grande cerimônia, uma recepção jocosa por parte das mulheres do harém e de olhares desconfiados por parte dos sacerdotes e cortesãos do rei. Risinhos, a princípio risinhos; logo, cacarejos, gargalhadas - deboche escarrado, total desrespeito; solidariedade, ça va sans-dire, nenhuma. Olhem só esse bagulho, essa aí não foi parida, foi cagada. (SCLIAR, 2007, p. 43)
Enquanto travava uma luta com as demais esposas e concubinas pela atenção e pelo amor do rei, ou no seu caso, ao menos por uma noite junto àquele homem, a mulher ia desmistificando todas as crendices que seu povo e os demais depositavam naquela figura divinizada – o grande Rei Salomão. Sobre as esculturas de leões que movimentavam suas cabeças ao pé do trono na ausência do rei ela descobre: Dizia-se que eram criaturas sobrenaturais, geradas pela mágica de Salomão. Mas não passavam, como
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vim a descobrir depois, de feras mecânicas. Para que se movessem, um servo, oculto no porão, acionava engrenagens, aliás boladas pelo próprio Salomão.” (SCLIAR, 2007, p.53)
Logo em seguida, entre tantas desavenças, o rei a encarrega de escrever a história do seu povo. A princípio suas narrativas são reescritas das histórias dos anciãos, mas com um toque feminino, animadas, realistas e cheias de irreverência. Indagando trechos e duvidando da tendenciosidade dos escritos, ela deixa bem claro seu posicionamento em relação a essa imagem divina que pintam desde os tempos mais remotos. Por que Deus e não Deusa? Por que Jeová e não Astarté, a divindade que outros povos da região veneravam? [...] Na minha cabeça, Deus seria apenas a energia geradora, não uma figura antropomórfica a reinar sobre a criação. Que Salomão e outros o imaginassem como homem, a mim não importava. Expressaria minha descrença, e meu protesto, abstendo-me de descrever a divindade. Que o imaginassem como um velho de barbas brancas e olhar severo, a mim não importava. (SCLIAR, 2007, p.96/7)
Melancólica pelas narrativas sem emoção que era obrigada a escrever e pela solidão de ficar trancafiada em um quarto somente exercendo aquele ofício, sem alegria ou recompensa, ainda tinha um agravante: ela era contra as divagações sem nexo que escrevia, a exemplo da mulher mostrada sempre como símbolo do mal e da perdição, submissa ao homem; a descendência de Adão e Eva a partir de dois homens, fato em que não se encontrava entendimento, nem por relação incestuosa haveria forma de descendência para os dois; a fúria de Deus contra inocentes; entre tantos outros percalços de um trabalho que não lhe oferecia nenhum prazer – e neste ponto FIGUEIRÊDO, F. M. 145-162 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 155
é importante percebermos como Scliar dá voz a esta mulher para descontruir toda uma mitologia em volta da religião e da incoerência dos escritos bíblicos, raramente contestados.
A narrativa culmina com toques de revelação, vingança, perdão, realização e fuga. Convidada por Salomão a julgar o pastor que destruiu seu manuscrito, ela o pôs em liberdade e o encarregou de guiar de volta à sua terra a Rainha de Sabá. Mais tarde recebera a tão sonhada recompensa, a noite com o homem que tanto esperou. Durante a madrugada e com seu objetivo realizado, ela pula o muro do palácio e vai em busca do sentido que ela não encontraria entre as paredes de um castelo e as piedades de um rei. “Corri pelas ruas da cidade adormecida, em direção ao sul, ao deserto. Ia atrás de um certo pastorzinho.” (SCLIAR, 2007, p.162). Dos escritos não se dá notícia do que foi ou não queimado, mas a partir da revelação do autor, logo antes da narrativa, de que a história tem início a partir de uma mulher pertencente à elite do Rei Salomão, citação esta tirada de O Livro de J, de Harold Bloom, conclui-se que os textos que formaram a consciência espiritual, sobretudo do Ocidente, foram aqueles que se acreditou estarem destruídos. Diante de toda a trama, analisamos que a narradora anônima, excluída por seu gênero e sua condição, formula todo um discurso que se poderia dizer baseado em sua subjetividade, uma enunciação repleta de sentido e que propõe uma reação por parte de seu interlocutor, formando assim o movimento dialógico que se baseia na dicotomia recepção/compreensão, o que, claro, nos remete à ideia de intencionalidade de todos esses discursos literários (considerando aqui a obra de Scliar, a de Bloom e a própria Bíblia Hebraica). Porém, sabemos que o jogo de significações que estruturam a enunciação, de acordo com Bakhtin (2009), não pode nunca ser entendida como produto subjetivo ou individual do interlocutor, já que depende de 156 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
todo o processo comunicativo, de toda a evolução do discurso. A estrutura da enunciação e da atividade mental a exprimir são de natureza social. A elaboração estilística da enunciação é de natureza sociológica e a própria cadeia verbal, à qual se reduz em última análise a realidade da língua, é social. Cada elo dessa cadeia é social, assim como toda a dinâmica da sua evolução. (BAKHTIN, 2009, p. 126)
Em nossa primeira obra o contexto judaico é mais sutil, não há referências diretas aos costumes e ao judaísmo em si, embora saibamos que Scliar se utiliza da Bíblia Hebraica para compor seu discurso dialógico, sendo ele judeu. Já nas outras duas obras, O centauro no jardim (2004) e O exército de um homem só (2012), Moacyr Scliar se utiliza de personagens judeus para tratar das tradições, preconceitos, acontecimentos históricos, angútias e outras nuances peculiares ao seu povo. No romance O centauro no jardim, Guedali, o personagem principal, nasce centauro em uma família de judeus, o que causa grande espanto e dificuldades, mas não os impedem de viver conforme os preceitos da “Lei”. A partir disso ele passa por grandes metamorfoses (físicas e psiquícas), em busca de sua identidade enquanto homem.
Meu pai atrela a égua à charrete – que só é usada nestas ocasiões especiais – e vai à cidade em busca do mohel, o homem que faz as circuncições.Diz que teve e, sem entrar em detalhes (sem dizer que o menino é um centauro), pede que o ritual seja realizado naquele dia mesmo: o prazo prescrito pela Lei já se esgotou. E a cerimônia terá de ser feita na fazenda, pois a mãe da criança, adoentada, não pode viajar. [...] Não é cavalo, berra meu pai, é um menino defeituoso, um menino judeu! (SCLIAR, 2004, p. 28-29).
Desta forma, Scliar cria uma alegoria judaica de um monstro, FIGUEIRÊDO, F. M. 145-162 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 157
o centauro – metade homem, metade cavalo, que remete a raízes israelistas e ao mundo ocidental em que se insere. A família Tratskovsky bem que tenta ter uma vida normal, seguindo as tradições judaicas: a páscoa e o ano vovo judaico, o jejum no Iom Kippur, o dia do perdão, a circuncição dos filhos homens, o bar mitzvah (cerimônia que marca a emancipação do menino judeu), mas sempre ocorrem dificuldades, visto que um centauro não faz parte do que seria “comum”. Na realide, a figura mitológica do centauro pertence à tradição grega. Essa particularidade também alude a como o mundo é visto com estranhenza pelos judeus, retratando “a ancestral desconfiança judaica em relação ao gentio”. Além disso, a lembrança que a família tem de cavalos não é nada boa, remontando aos „pogroms“, ataques russos contra as aldeias judaicas, durante os quais „cossacos bêbados invadiam a aldeias, lançavam os cavalos enlouquecidos contra velhos e crianças“. No decorrer da narrativa, Guedali vai aos poucos se transformando em um homem, primeiro lhe restam os cascos, depois surgem pés pequenos e frágeis. Há uma verdadeira transformação que nos remete a um discurso carnavalizado, irônico, que remonta à Idade Média, ao carnaval da praça pública abordado por Bakhtin em sua obra A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. Assim, podemos dizer que deriva daí essa ironia própria da carnavalização realizada por Scliar em suas narrativas. Os carnavais, ao contrário das festas oficiais daquela época, invertiam as posições hierárquicas, tudo isso sob um viés cômico e transformador, possibilitando, ao invés de segregações sociais demarcadas, a exemplo da que acontece com os judeus, uma segunda vida com relações verdadeiramente humanas. Em O exército de um homem só, Mayer Guinzburg faz parte de uma família de imigrantes judeus russos que moram no Bom Fim. Revolucionário, de início (quando jovem), Mayer bate de 158 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
frente a tudo, inclusive contra sua própria condição de judeu, embora aos poucos vá se tornando muito parecido com seu pai e adotando uma postura cristã que antes ele não possuía. As ideias marxistas do protagonista o transformam mais tarde no Capitão Birobidjan, que pretende construir uma nova sociedade, igualitária, a Nova Birobidjan no bairro Bom Fim, uma utopia socialista que leva o nome de uma colônia judaica na Rússia. As convicções ideológicas de Rosa Luxemburgo, uma revolucionária do Partido Comunista da Alemanha, orientam a rebeldia e o fervor de Mayer para acabar com a diferença de classes. O tom jocoso dessa história fica por conta da esquizofrenia de Mayer, que vê coisas que não existe, conversa com animais e os considera amigos revolucionários. Percebemos então que o humor irônico de Scliar permeia todas as obras em questão, seria o chamado humor judaico, nomeado assim pelo próprio Scliar em entrevista concedida ao colunista do Portal G1 Luciano Trigo. Nesse humor se evidencia a presença de um processo irônico que considera a formação discursiva do enunciador, ou seja, um sujeito que se mude de uma estratégia de produção para fazer com que a mensagem repassada no processo de interação atinja seu objetivo. Ainda de acordo com o autor, o judeu por si só possui uma tradição de rir de si próprio, transformando esse humor em uma reflexão acerca de suas condições enquanto povo ou raça perseguida durante muitas décadas. Consideração Finais
Diante da reflexão sobre o judaísmo presente nos romances de Scliar, podemos corroborar que, de fato, há uma transcedência de vozes sociais carregadas de discursos ideológicos a respeito da cultura judaica, suas contestações e inadequações, como também todo um preconceito arraigado FIGUEIRÊDO, F. M. 145-162 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 159
ao longo de muitas épocas e destrinchado através do humor característico de Moacyr Scliar.
Aliás, neste caso, o humor torna-se o elemento estruturador de um discurso literário que pretende provocar reflexões acerca da realidade do povo judeu e sua trajetória de luta e discriminação dentro de uma religião pautada pelas escrituras bíblicas. Portanto, através da voz dos personagens, conhecemos e nos colocamos no lugar desse outro, de suas dificuldades e possibilidades diante da abrangência diversa de pensamentos e ideologias que povoam a história e, claro, a literatura. Referências bibliográficas
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_______. Problemas da poética de Dostoiévski. 5ª. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. Bíblia de Jerusalém. Trad. Gilberto da Silva Gorgulho. São Paulo: Paulus, 2003.
BLOOM, Harold; ROSENBERG, David. O livro de J. Trad. Monique Balbuena. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
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MAGALHÃES, Antonio. Deus no espelho das palavras; Teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. 213 p. MAGALHÃES, Antonio C. M. (Org.) ; SILVA, E. B. DA (Org.); FERRAZ, S. (Org.) ; CONCEIÇÃO, Douglas Rodrigues da (Org.) . Deuses em Poéticas: Estudos de Literatura e Teologia. 1a.. ed. Belém: EDUEPA, 2008. 354 p.
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MILES, Jack. Deus. Uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. PIRES, Vera Lúcia; TAMANINI-ADAMES, Fátima Andréia. Desenvolvimento do conceito bakhtiniano de polifonia. Estudos Semióticos. [on-line] Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es i. Editores Responsáveis: Francisco E. S. Merçon e Mariana Luz P. de Barros. Volume 6, Número 2, São Paulo, novembro de 2010, p. 66–76. Acesso em 22 set 2013. RECHDAN, Maria Letícia de Almeida 2003. Dialogismo ou polifonia? Revista de Ciências Humanas, Volume 9, Número 1, p. 45-54. Taubaté, Unitau. SCLIAR, Moacyr. A mulher que escreveu a Bíblia. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. _______. O centauro no jardim. 10ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
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WALDMAN, Berta. Entre passos e rastros. São Paulo: Perspectiva; FAPESP; Associação Brasileira de Cultura Judaica, 2003. 162 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
TEMPO MEMÓRIA EM KRAPP’S LAST TAPE Fernando Aparecido POIANA 1
Resumo: Este trabalho discute como a passagem do tempo na peça Krapp’s Last Tape (1958), de Samuel Beckett (1906-1989), constitui um elemento de suspense capaz de manter a atenção e o interesse do público durante a encenação. Para tanto, utilizam-se os conceitos de drama e de teatro do absurdo propostos por Martin Esslin em An Anatomy of Drama (1976) e em The Theatre of the Absurd (1961), respectivamente. Investiga-se, a partir deles, como o efeito dramático gerado pela utilização do tempo como princípio estrutural e a utilização consciente de pausas e hesitações para ditar o ritmo da ação tende a levar o leitor ou expectador a experienciar essa passagem do tempo na sua forma mais insidiosa e intensa. Dito isso, o presente trabalho visa a tratar da maneira como Krapp’s Last Tape explora a cisão entre tempo e sentido e ela abre espaço para a caracterização de Krapp como um niilista no sentido nietzschiano do termo. Esse niilismo aparece justamente na tensão entre a memória e o esquecimento, e se revela como um desdobramento dela. Dessa maneira, defende-se a hipótese de que a tensão entre lembrar e esquecer, aliada ao potencial corrosivamente cômico que Krapp’s Last Tape encerra, proporciona ao leitor ou expectador a oportunidade de filosofar em termos concretos e existenciais. Palavras-chave: Drama; tempo; memória; niilismo.
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UNESP – São José do Rio Preto. E-mail: fernando_poiana@hotmail.com
(...) um costume com o qual podemos viver demonstrou ser salutar, proveitoso, ao contrário de todas as novas tentativas não comprovadas. O costume é, assim, a união do útil ao agradável, e, além disso, não pede reflexão. (...) o mais severo modo de vida pode se tornar um hábito e com isso um prazer. (Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado humano: Um livro para espíritos livres)
Diferentemente das duas peças que lhe antecederam – En attendant Godot (1948–1949) e Fin de partie (1955– 1957), escritas originalmente em francês e traduzidas para o inglês pelo próprio Samuel Beckett com os títulos Waiting for Godot e Endgame, respectivamente – Krapp’s Last Tape foi composta originalmente em inglês, em 1958. A peça foi publicada no mesmo ano, quando também foi encenada pela primeira vez no Royal Court Theatre, em Londres. No Brasil, A Última Gravação de Krapp foi montada com direção de Isabel Cavalcanti e teve Sergio Britto no papel principal. Entretanto, o texto original de Beckett ainda não recebeu uma tradução para o português que tenha sido publicada e comercializada por editoras brasileiras. Dada essa breve apresentação, este trabalho discute como em Krapp’s Last Tape a passagem do tempo é o motivo que gera e mantêm suspense ao longo de toda a leitura e/ou encenação. Como desdobramento, esse suspense conduz à incerteza e ao desespero que afligem Krapp. Diante disso, o tempo adquire contornos de categoria filosófica central para refletir sobre as escolhas do protagonista que, direta ou indiretamente, o levaram ao seu atual estado. Nesse sentido, o tempo engloba a memória e a rememoração, e com elas, a possibilidade de autoconhecimento. Desse modo, é ele que cria a moldura conceitual para que tanto a experiência individual quanto a 164 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
existência possam acontecer e adquirir sentido em vista de um olhar predominantemente retrospectivo.
Se a lembrança está condicionada à passagem do tempo, o mesmo ocorre com o esquecimento. Sob o signo da ausência, o esquecimento desperta a consciência do caráter evanescente das vivências humanas. Isso ocorre porque é com o distanciamento dos eventos inevitavelmente ocasionado pela passagem do tempo que as memórias pessoais e afetivas se esvaem. E é isso o que acontece com Krapp. Como resultado, o sentido de suas experiências individuais se perde parcial ou completamente à medida que elas se tornam distantes na sua lembrança. Em Krapp’s Last Tape, Samuel Beckett explora muito bem essa tensão entre lembrar e esquecer. De fato, é essa tensão que em grande parte acentua a comicidade ironicamente corrosiva da peça. A superposição dos eus passados de Krapp com o seu eu presente, que ocorre por meio das gravações que ele ouve ao longo da peça, constitui um procedimento estético que proporciona ao leitor ou espectador a chance de indagar-se, em última análise, sobre o caráter ontológico de sua própria presença no mundo. Ademais, é essa superposição que oferece ao interlocutor do texto beckettiano a oportunidade de examinar filosoficamente os dilemas de sua própria existência mais completa e profundamente.
“Krapp’s Last Tape lida com o fluxo do tempo e a instabilidade do eu” (ESSLIN, 2004, p. 76, tradução própria),2 e é diante dessa problemática que o fluxo temporal na peça confronta o leitor ou espectador “(...) com o problema básico do ser – o problema da natureza do eu, que, sujeitado à mudança constante no tempo, está (...) sempre além da nossa compreensão (...)” (ESSLIN, 2004, p. 50-51, tradução própria).3 O próprio título “Krapp’s Last Tape deals with the flow of time and the instability of the self.” (ESSLIN, 2004, p. 76). 2 3
“(...) with the basic problem of being – the problem of the nature of the self, which, POIANA, F. A. | p. 163-174 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 165
da peça já anuncia a impossibilidade de uma interpretação cerrada do seu conteúdo, dado o caráter ambíguo da expressão “last tape”. O desenrolar da ação dramática não permite ao leitor ou expectador dizer com certeza absoluta se a última fita ou gravação do título faz referência à derradeira gravação que Krapp fará, ou se a expressão diz respeito à gravação mais recente, que será feita no palco, em determinado momento da encenação. Essa incerteza acentua a tensão da ação dramática, que permanece cercada de ambiguidades mesmo depois do desfecho de Krapp’s Last Tape. Isso porque o gravador permanece ligado quando a peça termina, e embora a postura de Krapp possa sugerir que sua vida tenha chegado ao fim, há uma extensão metafórica que o leva a se fundir com a própria máquina. Isso, por sua vez, desautoriza qualquer afirmação definitiva ou categórica sobre o destino final desse protagonista fatigado e decrépito.
A caracterização de Krapp oferecida pelas rubricas milimétricas logo no começo do texto é um primeiro indício dos efeitos da passagem do tempo no aspecto físico do personagem. “Sentado à mesa, voltado para a plateia, ou seja, do outro lado das gavetas, um velho de aparência fatigada: KRAPP.” (BECKETT, 1986, p. 215, tradução própria).4 Essa fadiga, visível ao leitor ou espectador na figura do velho execrável se intensifica ao passo que Krapp se depara com os seus eus passados e com memórias e vivências esvaziadas de sentido pela passagem dos anos. O tempo, nesse sentido, se configura em uma obsessão para Krapp. A imagem do relógio na caracterização das rubricas deixa isso claro: “Pesado relógio de prata e corrente.” (BECKETT, 1986, p. 215, tradução própria).5 Metaforicamente, o tempo se converte em um fardo being subject to constant change in time, is (…) ever outside our grasp (…).” (ESSLIN, 2004, p. 50-51). 4 “Sitting at the table, facing front, i.e. across from the drawers, a wearish old man: KRAPP.” (BECKETT, 1986, p. 215). 5 “Heavy silver watch and chain.” (BECKETT, 1986, p. 215). 166 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
que acorrenta Krapp às suas vivências passadas, desprovidas no presente da peça do frescor do momento e também da significação que outrora tiveram. A aparência de fadiga, criada pela descrição inicial, no caso do texto, ou pela primeira impressão visual do espectador de teatro no momento em que a cortina se abre é reforçada pela imagem de decrepitude que a caracterização física de Krapp transmite.
Calças pretas apertadas e antiquadas, curtas demais para ele. Colete antiquado, preto e sem mangas, com quatro bolsos grandes. (...) Camisa branca encardida aberta no pescoço, sem colarinho. Surpreendente par de botas sujas, tamanho 42 pelo menos, muito estreitas e bicudas. Cara branca. Nariz roxo. Cabelo grisalho desarrumado. Barba por fazer. Bastante míope (mas sem óculos). Dificuldades para ouvir. Voz emocionalmente alterada. Entonação distintiva. Andar laborioso. (BECKETT, 1986, p. 215, tradução própria).6
Os limites físicos descritos no trecho servem, portanto, de metáfora para a própria ruína do corpo humano frente à passagem do tempo que o consome implacavelmente. À ruína física que o leitor encontra descrita nas rubricas ou que o espectador observa no palco correspondem os vestígios ou rastros de lembrança aos quais Krapp tem acesso por meio das fitas que tinha o hábito de gravar e arquivar. Revisitar as possibilidades daquilo que sua vida poderia ter sido faz, portanto, com que Krapp também tenha de encarar a vileza e a abjeção de uma vida cuja plenitude foi rejeitada sistematicamente.
“Rusty black narrow trousers too short for him. Rusty black sleeveless waistcoat, four capacious pockets. (…) Grimy white shirt open at neck, no collar. Surprising pair of dirty white boots, size ten at least, very narrow and pointed. White face. Purple nose. Disordered grey hair. Unshaven. Very near-sighted (but unspectacled). Hard of hearing. Cracked voice. Distinctive intonation. Laborious walk.” (BECKETT, 1986, p. 215). 6
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Como afirma Eugene Webb, “[Krapp] olha em retrospecto [para] a vida dos eus que ele criou.” (2012, p. 83). Esvaziadas de sentido afetivo pelo distanciamento temporal, as memórias que Krapp ouve repetidamente, como um hábito do qual não consegue se desvencilhar, servem somente para recordá-lo de que suas perdas são irremediáveis. Isso porque, “ainda que seus antigos eus estejam esquecidos, seus sucessivos padrões de hábitos são gerados uns pelos outros, tornando-o prisioneiro de homens que ele não consegue nem mais reconhecer” (WEBB, 2012, p. 83). Prisioneiro do tempo e do hábito, Krapp não consegue se desvencilhar de um passado que repele, mas pelo qual se sente atraído, ao mesmo tempo. Krapp é, nesse sentido, a soma dos eus que criou anteriormente. Dito de outro modo, seu olhar retrospectivo e tecnicamente distanciado desafia, em última análise, os próprios limites entre subjetividade e alteridade. Não há exagero, portanto, em pensar que diante desses elementos e procedimentos, Krapp expõe ao leitor ou espectador de teatro a dramaticidade tragicômica de uma existência feita de renúncias. De fato, Krapp’s Last Tape proporciona ao seu interlocutor não só uma vivência intelectual, mas também sensível – e não menos perturbadora – da experiência humana. É nesse sentido que essa peça leva o espectador a filosofar em termos concretos. O isolamento de Krapp, que num primeiro momento parece ser apenas físico, se revela, antes de tudo, uma forma de isolamento moral. Krapp “(...) transformou sua vida numa prisão [e] na velhice, acaba percebendo que está prestes a morrer sem jamais ter vivido de verdade” (WEBB, 2012, p. 81). Isso fica mais claro quando Krapp fala sobre seu aniversário em uma das fitas. GRAVAÇÃO: (…) Comemorei a terrível ocasião, como em anos recentes, silenciosamente no Winehouse. Nenhuma
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alma. Sentei diante da lareira com os olhos fechados, separando o grão da casca. Anotei algumas coisas rapidamente no verso de um envelope. Bom estar de volta no meu antro, em meus velhos trapos. (BECKETT, 1986, p. 217 tradução própria).7
O isolamento de Krapp nesse trecho e a sua caracterização física criam uma imagem bastante cáustica da miséria moral do protagonista. Miséria essa que já está implícita nas conotações de desprezo e de repulsa contidas em seu próprio nome. Além do mais, em vista do distanciamento temporal e do esquecimento próprios da memória involuntária que permeia toda a peça, Krapp tenta renegar seus antigos eus. Ele se esforça em apagar, de algum modo, as experiências e vivências frustrantes a eles direta ou indiretamente relacionadas. “KRAPP: Acabei de ouvir aquele babaca estúpido que eu me considerava trinta anos atrás, difícil de acreditar que eu já fui tão ruim daquele jeito. Graças a Deus aquilo tudo se foi de algum modo.” (BECKETT, 1986, p. 222, tradução própria).8 A derrisão de Krapp para com seus eus passados também aparece na maneira acentuadamente cáustica com que ele se refere à voz gravada nas fitas:
7 “Celebrated the awful occasion, as in recent years, quietly at the Winehouse. Not a soul. Sat before the fire with closed eyes, separating the grain from the husks. Jotted down a few notes, on the back of an envelope. Good to be back in my den, in my old rags.” (BECKETT, 1986, p. 217). 8 “KRAPP: Just been listening to that stupid bastard I took myself for thirty years ago, hard to believe I was ever as bad as that. Thank God that’s all done with anyway.” (BECKETT, 1986, p. 222).
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TAPE: (…) Difícil de acreditar que eu já fui aquele jovem insignificante. A voz! Jesus! E as aspirações! [Breve risada à qual KRAPP se junta.] E as resoluções! [Breve risada à qual KRAPP se junta.] Beber menos, em particular. [KRAPP ri brevemente e sozinho.] (BECKETT, 1986, p. 218, tradução própria).9
Essa passagem é marcada por uma ironia dramática mordaz. Nela há um elemento cômico profundamente corrosivo, capaz de revelar que, embora Krapp possa tentar se convencer to contrário ao vilipendiar seus eus passados, as mudanças que o seu discurso pode sugerir não foram tão drásticas ou significativas no fim das contas. Como Eugene Webb afirma, “a descrição dele de suas atividades atuais deixa ainda mais claro como houve pouca mudança fundamental, apesar de seu sentimento de perda de continuidade entre seus eus sucessivos” (2012, p. 86).
No contato com as memórias dos seus eus anteriores, Krapp se revela antes de qualquer coisa, um niilista, no sentido nietzschiano do termo. Para Nietzsche, o niilista é o indivíduo que rejeita os impulsos inerentes à vida e, portanto, ao desejo de vida, ou vontade de potência, em detrimento de alguma forma de ascetismo radical e fundado em princípios morais rígidos e, sobretudo, proibitivos. Diante disso, Platão, Sócrates e o cristão que, de fato, abraça a sua doutrina teriam, para Nietzsche, esse elo niilista em comum, de negação radical do mundo da vida em nome de uma existência metafísica ou de um mundo ideal. O niilista é, portanto, aquele que nega a realidade em virtude de algum tipo de promessa de ascese. No entanto, tamanha negação era inconcebível para o filósofo do martelo. Segundo Nietzsche,
9 “Hard to believe I was ever that young whelp. The voice! Jesus! And the aspirations! [Brief laugh in which KRAPP joins.] And the resolutions! [Brief laugh in which KRAPP joins.] To drink less, in particular. [Brief laugh of KRAPP alone.].” (BECKETT, 1986, p. 218).
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O que justifica o ser humano é sua realidade – ela o justifica eternamente. Quanto maior não é o valor do ser humano real, comparado a um apenas desejado, sonhado, mentirosamente inventado? A um ser humano ideal? ... E apenas o ser humano ideal ofende o gosto do filósofo. (NIETZSCHE, 2006, p. 81)
Dito de outro modo, o niilista é, portanto, aquele diz não ao que a vida tem a lhe oferecer. Nesse sentido, o conceito de niilismo nietzschiano difere fundamentalmente do niilismo enquanto negação do sentido das coisas. Embora Krapp não pareça em nenhum momento nutrir qualquer tipo de ambição asceta em suas escolhas, há, de fato, uma recusa por parte dele em viver a vida no seu sentido mais pleno de abraçar os seus impulsos mais contraditórios. Ao invés de um ideal asceta, Krapp parece ser, antes de tudo, motivado por uma insegurança muito grande em tomar o primeiro passo em relação às possibilidades de escolha que lhe são apresentadas. Isso fica bastante claro nos seus relacionamentos amorosos frustrados, como a sua relação com Bianca, brevemente descrita abaixo: TAPE: (...) Acabei de ouvir um ano passado, aleatoriamente. Não conferi no livro, mas deve ser pelo menos dez ou doze anos atrás. Naquele tempo acho que eu ainda vivia indo e voltando com Bianca na Rua Kedar. Sorte que acabou, Jesus, sim! Relação sem futuro. [Pausa.] Nada de bom nela, com a exceção dos seus olhos. Muito calorosos. De repente os vi outra vez. [Pausa.] Incomparáveis! [Pausa.] (BECKETT, 1986, p. 218, tradução própria).10
“Just been listening to an old year, passages at random. I did not check in the book, but it must be at least ten or twelve years ago. At that time I think I was still living on and off with Bianca in Kedar Street. Well out of that, Jesus yes! Hopeless business. [Pause.] Not much about her, apart from a tribute to her eyes. Very warm. I suddenly saw them again. [Pause.] Incomparable! [Pause.].” (BECKETT, 1986, p. 218). 10
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Em última análise, ao entrar em contato com suas memórias Krapp tem de lidar com a tomada de consciência de seu fracasso. E isso implica aceitar que chegou a um beco sem saída existencial. Como ele mesmo diz, “talvez meus melhores anos tenham ido embora. Quando havia uma chance de felicidade. Mas eu não iria querê-los de volta.” (BECKETT, 1986, p. 223, tradução própria).11 Ainda numa perspectiva nietzschiana, pode-se dizer que Krapp subverte a noção de eterno retorno, no sentido de que ao olhar para o seu passado, ele não seria capaz de revivê-lo ou de querê-lo de volta. Contudo, não há espaço aqui para uma análise mais exaustiva dessa relação que na peça é ligeiramente subvertida pela ação dramática. “(…) Seja outra vez, seja outra vez. [Pausa.] Toda aquela miséria passada. [Pausa.] Uma vez não foi suficiente para você. [Pausa.]” (BECKETT, 1986, p. 223, tradução própria),12 diz Krapp, ironicamente vivendo a miséria e a angústia da qual deseja se libertar. No limite da solidão, Krapp encapsula a complexidade da relação entre o indivíduo e a sua vida. Ao mesmo tempo, essa relação alude à delicada equação entre o ser e o tempo no qual ele existe. Em conclusão, se o “drama, em seus melhores exemplos, pela concretividade, pela realidade de sua natureza, tem a complexidade infinita do próprio mundo real.” (ESSLIN, 1978, p. 125), pode-se dizer que o apelo dramático de Krapp’s Last Tape reside na sua capacidade de provocar no leitor ou no espectador a angústia e o desespero que caracterizam o humano como tal. É nesse sentido que “a forma dramática [pode ser] o único método [de dar forma concreta a] algumas das implicações [do] pensamento filosófico abstrato” (ESSLIN, 1978, p. 25). Como desdobramento, o drama se constitui numa “(...) forma de pensamento, um processo cognitivo, um método
11 “Perhaps my best years are gone. When there was a chance of happiness. But I wouldn’t want them back.” (BECKETT, 1986, p. 223). 12 “Be again, be again. [Pause.] All that old misery. [Pause.] Once wasn’t enough for you. [Pause.].” (BECKETT, 1986, p. 223).
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por meio do qual podemos traduzir conceitos abstratos em termos humanos concretos ou pelo qual podemos armar uma situação e descobrir suas consequências.” (ESSLIN, 1978, p. 26). Diante desses elementos, parece adequado pensar a estética de Krapp’s Last Tape, bem como a produção dramática de Samuel Beckett como um todo, dentro de uma tradição filosófica mais ampla e sólida. Em sua técnica minimalista, e de efeitos perturbadores, Beckett deixa entrever um diálogo profícuo com os modelos de razão que trouxeram o homem moderno para o seu estágio atual de estranho em um universo ininteligível. Referências bibliográficas
BECKETT, S. Krapp’s Last Tape. In: ___. Samuel Beckett: The Complete Dramatic Works. London: Faber and Faber, 1986, p. 213-224.
ESSLIN, M. Uma anatomia do drama. (Trad. Bárbara Heliodora). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
___. Samuel Beckett: The Search for the Self. In: ___. The Theatre of the Absurd. New York: Vintage Books, 2004, p. 29-91. NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos, ou como se filosofa com o martelo. (Trad. Paulo César Lima de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2006. POIANA, F. A. | p. 163-174 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 173
NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. (Trad. Paulo César Lima de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. WEBB, E. As Peças de Samuel Beckett. (Trad. Pedro SetteCâmara). São Paulo: É Realizações Editora, 2012.
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A RETOMADA INTERTEXTUAL DA MITOLOGIA CLÁSSICA EM O POÇO, DE ALBERTO MORAVIA Gisele de Oliveira BOSQUESI1
Resumo: O presente trabalho analisará a relação intertextual entre o conto “O Poço”, escrito por Alberto Moravia no começo da década de 1940, e a Mitologia Clássica. Escritor consagrado por seu estilo neorrealista, Moravia rearticula sua crítica aos valores da pequena burguesia agora em chave surrealista, trazendo à sua obra, consequentemente, novos caminhos de leitura. No conto analisado, observaremos como as virtualidades semânticas das figuras mitológicas de Cupido (deus do amor), Mercúrio (deus da astúcia) e Diana (deusa da caça e da pureza) são retomadas para a composição da imagem da personagem principal, uma célebre atriz de cinema chamada Lauta. Partindo do princípio de que o olhar intertextual é sempre um olhar crítico, vemos que os princípios convencionalmente evocados pelos deuses estão subvertidos no diálogo com a sátira proposta pelo conto. Ao criticar os valores da vaidade, futilidade e consumismo, o conto transforma a imagem da celebridade moderna, antes descrita com os contornos do mármore clássico, em um obsoleto manequim de cera. Da mesma forma que a referência à mitologia modifica o texto, há também um movimento no sentido inverso, que reverbera o percurso interpretativo do mito na retomada intertextual, atualizando-o e relendo-o no novo contexto. Palavras-Chave:
Intertextualidade,
Mitologia Greco-romana 1
Alberto
Moravia,
UNESP-IBILCE São José do Rio Preto. E-mail: gbosquesi@gmail.com
No presente trabalho, nos propomos a analisar o conto “O Poço”, de Alberto Moravia, na relação intertextual com a Mitologia Clássica. Publicado na coletânea Racconti Surrealisti e Satirici (contos surrealistas e satíricos) em 1956, fazia parte da anteriormente publicada L’epidemia (1944), época em que o autor utilizava o pseudônimo de “Pseudo”. Além de sua ascendência hebraica, fato que o levou a viver refugiado por alguns meses nas montanhas de Fondi, no Lácio, a sua identificação com um projeto de escrita neorrealista, de contestação e denúncia de problemas sociais, o levou a escrever sob a vigilância da censura fascista. É nesta época que vemos, em sua obra, uma aproximação com a estética surrealista e um apelo ao fantástico, ao onírico e o recurso à chave metafórica e à alegoria.
O conto “O poço”, trata do encontro entre uma conhecida atriz de cinema e seu fã. A narrativa começa com o seguinte parágrafo: De que não é capaz a força de um Mito, quando apoiada por adequada obstinação? Albanese, jovem rico e provinciano, esforçou-se tanto com presentes, palavras e frequência assídua, que acabou por impor sua própria existência a Lauta, conhecida atriz de cinema. Albanese não pedia muito: queria apenas ser admitido na intimidade da atriz, nem que fosse por uma hora somente; depois, quando voltasse à sua cidade, trataria de dilatar aquela hora em meses ou anos e aquecer a frieza da visitamendigada e concedida como uma esmola até ao fogo de um encontro amoroso. Como se vê, Albanese era levado a visitar a mulher menos por paixão que por vaidade, aquela mesma vaidade provinciana que em outros tempos o levaria a longas esperas na casa das favorecidas reais. (MORAVIA, 1986, p.255)
Lauta, então, decide realizar o desejo de Albanese e
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permite que ele a assista durante a hora de toalete matinal e, se quisesse, poderia acompanhá-la em um pequeno passeio. Ao chegar, na manhã seguinte, à hora marcada, o fã encontra a atriz diante do espelho e “mais imóvel que uma estáua e mais inerte que um cadáver, deixava-se enfeitar por duas camareiras” (MORAVIA, 1986, p. 255). A descrição assim prossegue:
Lauta vestia apenas uma camisola transparente, e toda a situação havia deixado Albanese sem fôlego. Parecia Diana em sua túnica sucinta, não fossem todos aqueles bordados transparentes que mais mostravam que escondiam as apetitosas perfeições daquele corpo e faziam pensar nas galanterias de certas decotadas estampas libertinas. Aliás, Lauta não tinha nada da beleza clássica, assemelhando-se quando muito àquelas estátuas de cera colorida que ficam expostas nas vitrinas dos cabeleireiros” (MORAVIA, 1986, p. 255)
A atriz continuou a ser descrita: seu rosto era de um perfeito oval, o nariz fino e as bochechas rosadas. Sobre a boca, diz-se o seguinte: “a boca, enfim, era em tudo semelhante àquelas em torno das quais, como se dizia antigamente, Cupido brincava e esvoaçava: boca mimosa quanto inexpressiva, que a cada sorriso descobria com regularidade duas fileiras de dentes cerrados e iguais”(MORAVIA, 1986, p. 256).
Albanese empenhava-se em observar o máximo de detalhes a fim de contar às pessoas em sua cidade. Assim, pediu que Lauta não lhe desse atenção, pedido que já estava sendo atendido mesmo antes de ser feito, visto que a atriz não o havia sequer olhado. O homem então observa que todo o luxo que a circundava, desde as meias de seda e renda finíssimas até a requintada mobília, passando pelos frascos de cristal e os potinhos de pó de arroz e cremes que revelavam a assiduidade BOSQUESI, G. O. | p. 175-186 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 177
para com a beleza perfeita. Do alto de sua perfeição, Albanese achou justo que ela tivesse se mostrado dura e exigente: ao sentir-se descontente com o sapato que a camareira lhe calçara, a atriz deu-lhe um pontapé, fazendo-a cair de costas. À camareira culpada por não modelar direito os cachos, dispensou uma áspera repreensão, e, depois de se perfumar toda, queixou-se desoladamente de que não tinha um batom que combinasse com seus lábios, entre os vinte e cinco que possuía. Albanese, dando razão à atriz, pensava: “Esta sim que é uma atriz, uma mulher refinada” (MORAVIA, 1986, p.257). A mesma insatisfação ocorria quando as camareiras lhe propunham um vestido, e ela, sempre exigente, as repreendia com minuciosa exigência, e Albanese compreendia enfim a ocupada agenda da atriz. Subitamente, o homem notou que no canto do quarto havia um buraco quadrado no chão parecido com um poço, com grosseiras bordas de pedra que contrastavam com o estilo do quarto. Debruçando-se para ver melhor, há uns dois metros de profundidade, corria uma água preta e densa como a dos esgotos, e que parecia ser agitada por algum ser vivo. Aguçando a vista, constatou que havia um rapaz loiro e pálido se debatendo “com uma espécie de paciente e silencioso furor”(MORAVIA,1986, p.258) em meio a matérias mais sólidas e à água gordurosa e lamacenta: Albanese, bastante admirado, queria fazer a atriz notar essa singularidade e o perigo que o jovem aparentemente estava correndo; mas deteve-se porque pensou que a coisa não podia ter escapado a Lauta, e se ela não comentava nem lhe dava atenção era sinal de que tinha suas boas razões para isso (MORAVIA,1986, p. 258)
Albanese reparou que o rapaz, de lá de baixo, não tirava os olhos das pernas e das nádegas da atriz, que estava em pé à beira do poço, de costas para ele. Quando camareiras ofegantes
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entraram no quarto com os braços cheios de vestidos, Lauta jogou seu cigarro no poço, e nesse exato momento, um violento jato d’água jorrou da parede do poço em direção ao rapaz que se debatia, e levou-o para as profundezas, fazendo-o desaparecer. A atriz, a esta altura, já havia encontrado um vestido e, pela primeira vez notando a presença de Albanese, perguntou se lhe caía bem, ao que ele respondeu entusiasticamente que sim. Por fim, faltava o chapéu. Foi escolhido um chapeuzinho simples “vermelho, enfeitado com duas asinhas igualmente vermelhas que o tornavam muito parecido com o capacete de Mercúrio” (MORAVIA,1986, p. 259) Devidamente vestida e ornada, Lauta chamou Albanese para que saíssem, e, no momento em que estavam deixando o quarto, o poço deu um forte gorgolejo e fez jorrar por um instante, em direção ao papel de parede, um jato escuro com uma espuma amarelada. Já no corredor, Lauta queixou-se de que os estilistas não tinham imaginação e faltavam as revistas de moda.
Observamos, portanto, as referências a Diana, Cupido, e Mercúrio utilizadas no conto para a caracterização da atriz. É importante, antes de se pensar nas implicações do processo intertextual, fazer uma breve leitura da representação da mulher na obra moraviana. Conforme observa Paolo Milano (1985, p. 196) as mulheres moravianas apresentam uma espécie de bovarysmo. Milano também aponta a disponibilidade sexual como parte dessa identidade feminina, conferindo à mulher o status de produto a ser consumido. Tal aspecto já conduziu a várias discussões entre críticos a respeito da existência de uma misoginia moraviana. No caso das mulheres de Racconti surrealisti e satirici, a imagem do sexo é praticamente ausente, e dá lugar à futilidade feminina e ao que poderemos chamar então de ingenuidade alienada. BOSQUESI, G. O. | p. 175-186 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 179
Alguns elementos da sátira estão presentes, como a caricaturização, se considerarmos o senso do absurdo, assinalado anteriormente, como uma espécie de exagero cômico que resulta na caricatura. Vemos portanto que a personagem feminina em “O Poço” acompanha esta tendência da futilidade e do bovarysmo observada por Paolo Milano. Assim, pensando a intertextualidade segundo a concepção de Kristeva (1974) e Jenny (1979), que será melhor elucidada adiante, partimos da hipótese de que haverá uma ressignificação dos valores evocados pelos deuses mitológicos retomados. Diana, Cupido, e Mercúrio são imagens arquetípicas quando se trata de literatura ocidental, dada a imensa herança cultural grega, e simbolizam, respectivamente, a caça e a pureza, o amor, e a astúcia. No entanto, compartilham do imaginário do grandiloqüente e do sublime. Este último aspecto, a nosso ver, será subvertido na relação com a mulher representada. Para Julia Kristeva, o conceito de intertextualidade representa uma dinamização do estruturalismo, a qual só é possível a partir de uma concepção segundo a qual a “palavra literária” é não um ponto (um sentido fixo), mas um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de várias escritas. A definição de texto que se propõe a partir de então foi sintetizada por Kristeva nos seguintes termos: “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de outro texto. No lugar da noção de intersubjectividade instala-se a de intertextualidade, e a linguagem poética lê-se, pelo menos, como dupla.”(1974, p. 72) Na mesma linha segue Laurent Jenny (1979), que considera a intertextualidade “a irrupção transcendente dum texto noutro” (p.30), e levanta a questão do modo como o fragmento intertextual é inserido no texto. Ao dizer que há “nestas relações de texto para texto, relações de transformação” (p.30),
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Jenny fala sobre o trabalho de assimilação e transformação que acredita estar presente no trabalho intertextual. Nesse sentido, acredita que a intertextualidade funcione como “máquina perturbadora”, e explica: “Trata-se de não deixar o sentido em sossego – de evitar o triunfo do ‘clichê’ por um trabalho de transformação” (p.45), isto é, atuar como procedimento de reativação do sentido com a finalidade de prevenir a estagnação do material textual. Afirmando ser raro um texto ser recuperado da mesma forma em outro, Jenny reconhece que a retomada intertextual desenvolve o sentido do texto, atualizando-o e questionando-o. Enfim, para o teórico, “O olhar intertextual é então um olhar crítico: é isso que o define.” (1979, p.45) Pode-se ver, em “Il pozzo”, o mesmo senso do absurdo observado por Mascaretti (2007) a propósito de “L’Albergo Splendido”, outro conto da mesma coletânea. Existe, no comportamento da atriz Lauta, o mesmo tipo de contraste absurdo, ou seja, entre o ignorado e fatal destino do indivíduo dentro do poço (e o mal-estar implícito em tal visão) e as preocupações com a moda e a aparência. No comportamento de Albanese, o absurdo também é desencadeado, pois este ignora o misterioso indivíduo no poço a fim de manter a compostura perante a atriz a quem não só admira, mas, podemos dizer, venera.
Vejamos, então, de forma breve, o percurso literário dos mitos retomados: Neste conto, temos primeiramente uma referência à deusa Diana, ou, do grego, Ártemis, que é a irmã gêmea do deus Apolo, filha de Zeus e Leto. Considerada a versão feminina do irmão, recebeu de Hesído o epíteto de “verte-flechas. O material narrativo em que a deusa aparece não é extenso, e o traço mais guardado pelos poetas é o seu lado vingativo, demonstrado nos castigos que Ártemis incutiu em Òrion, Calisto e Ácteon. Este último fora punido por ter visto BOSQUESI, G. O. | p. 175-186 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 181
acidentalmente a deusa enquanto ela se banhava junto ao seu séquito de ninfas. No entanto, Ártemis também é a protetora dos bosques e das parturientes, e guardiã das estradas e dos portos. Sobretudo segundo Eurípedes, é colocada no mesmo patamar de Hécate e Selene. A associação à Selene, a deusa da lua, acontece provavelmente porque Apolo é o deus-sol, e a irmã formaria com ele a dupla de astros que regem o dia e a noite. A poetisa Safo atesta essa ligação com a história de Endímion, e sob tal ponto de vista a deusa adquire as virtualidades da figura da feiticeira. Na cultura romana, Ártemis recebe o nome de Diana e, além de Virgílio e outros poetas, é imortalizada por Catulo, que a evoca como deusa das montanhas, das florestas, das pastagens e dos rios. Segundo Paul Harvey, “As mulheres veneravam especialmente Diana, e talvez ela fosse originariamente um espírito dos bosques e da natureza selvagem, que participava amistosamente da vida dos campônios italianos e de suas famílias” (1987, p. 162-163).
Já a figura de Cupido, com a qual também dialoga o conto, segundo Harvey (1987), seria uma adaptação do grego Eros. “Na religião romana, o deus-menino do amor, filho de Vênus (...), pouco importante no Panteão romano. Na literatura sua aparição mais notável é no primeiro canto da Eneida, onde Vênus lhe dá ordens para disfarçar-se em Ascânio e provocar o amor de Dido por Enéas” (p. 146). Cupido, sendo fruto da união da deusa do amor com o deus da guerra, Marte, carrega sempre um arco e flechas, instrumentos utilizados para incutir o amor ou a paixão nos indivíduos que golpeia. Às vezes é representado com uma armadura, sugerindo um paralelo entre o amor e a guerra.
A passagem de seu amor com Psiquê foi contada por Apuleio. O deus apaixonou-se pela belíssima mortal ao ferirse acidentalmente com uma de suas flechas, e, antes que se 182 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
casassem e que a moça fosse admitida no Olimpo, tiveram que passar por muitas provações, a maioria delas provocada pela própria Vênus. Esta, muito vaidosa, antes mesmo que Cupido conhecesse Psiquê, já se sentia afrontada pela beleza da moça.
Também temos a referência a Mercúrio, pela nomenclatura romana, ou Hermes em grego, o mensageiro dos deuses, protetor dos viajantes, deus do comércio, dos ladrões e condutor das almas ao Hades. Por causa desta última função, aparece diversas vezes em Diálogo dos Mortos, de Luciano. Filho de Zeus e da ninfa Maia, desde recém nascido demonstrou sua astúcia ao sair do berço e roubar um rebanho que estava sob responsabilidade de Apolo. No caminho, encontrou um casco de tartaruga e fabricou a lira. Quando foi descoberto por Apolo, isentou-se de punição ao oferecer o instrumento como presente ao deus. Essa história pode ser encontrada em um dos hinos homéricos (coleção de trinta e três hinos gregos que são atribuídos a Homero) e nas Metamorfoses, de Ovídio. É frequentemente representado com capacete e sandálias aladas, e carrega o caduceu, um bastão que tem asas em sua extremidade superior e duas cobras entrelaçadas em sua extensão, ao qual são atribuídos poderes mágicos e curativos. Segundo Harvey (1987), “era também o deus das estradas, e nelas erigiam-se Hermas em seu louvor”. (p. 268) Tais hermas eram uma espécie de obelisco muito comum nas estradas, nas esquinas e em frente às casas de Atenas. A palavra hermenêutica deve sua etimologia às épocas tardias do culto ao deus, em que é considerado o intérprete dos desígnios de outros deuses e relacionado à magia. Faivre (1998) relaciona o papel da hermenêutica ao princípio simbólico dos astutos furtos realizados por Hermes. Ao lembrar que o deus rouba apenas para “repor em circulação” (p. 449) questiona o seguinte “Afinal, trazer à luz tesouros ocultos não é prório da hermenêutica?” (p. 449) BOSQUESI, G. O. | p. 175-186 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 183
Suas habilidades de enganador com as palavras e hábil comerciante relacionam-se com o poder do discurso, fazendo-o ser reverenciado por poetas e filósofos, como Horácio, que “coloca-se sob a proteção particular de Mercúrio” (FAIVRE, 1998, p. 449). Principalmente influenciada pelo Evemerismo, corrente que acreditava que os deuses um dia foram pessoas que se destacaram em meio a seu povo e com o passar do tempo foram divinizadas, a imagem de Hermes foi, segundo Faivre (1998), adquirindo um tom menos lúdico. A partir do século I e do contato cada vez maior do mundo clássico com o Egito, surge a figura do Hermes-Trismegisto, a quem são atribuídos vários escritos. Na época da renascença, a descoberta do Hermes-Trismegisto levou à elaboração de um conjunto doutrinário que resultaria no esoterismo.
A Alquimia praticada em Alexandria, até por volta do século VI e depois retomada pelos árabes, vê em Hermes-Mercúrio o seu fundador. Ele é citado em textos árabes ou latinos “não apenas como personagem, mas, também, como é o caso de Mercúrio, em expressões tais como spiritus mercurius para designar uma substância ou uma propriedade das coisas. Mercurius é ao mesmo tempo a prima materia, a ultima materia e o próprio processo alquímico” (FAIVRE, 1998, p. 452). Dada a sua competência de condutor de almas, é comparado ao Virgílio da Divina Comédia, de Dante. Ainda segundo Faivre, os princípios do Hermes-Mercúrio (ligado à imagem do mensageiro e condutor) e do Hermes-Trismegisto (ligado à razão e à inspiração) acompanharam a literatura e o saber até o século XX, recebendo atenção de escritores e pensadores de todas as épocas, inclusive a Idade Média. As figuras de Cupido, Mercúrio e Diana são retomadas no conto, a nosso ver, como elementos cuja função seria, a princípio, criar uma imagem divinizada da atriz Lauta.
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Como figuras do universo clássico, são citadas enquanto representantes do sublime, e tal fato nos leva a identificar o procedimento de retomada intertextual por amplificação, segundo a descrição de Laurent Jenny. Tal procedimento consiste na retomada intertextual de virtualidades semânticas que aproximem o objeto retomado ao novo contexto. Neste caso, porém, Moravia esvazia toda a herança simbólica dos deuses que, juntos, são retomados como parâmetros de beleza. Portanto, o “esquecimento” voluntário de toda a trajetória específica de cada deus clássico, já que a personagem da atriz parece não possuir os atributos divinos, contribui para a irônica caracterização da celebridade. Sabemos que os personagens que povoam as narrativas de Alberto Moravia geralmente são observados do ponto de vista da futilidade, da vaidade, da mesquinhez e de outros tantos vícios. Geralmente integrantes da camada correspondente à burguesia, personagens femininos e masculinos tendem a uma futilidade por vezes ingênua e sempre alienada. No caso das mulheres, com grande frequência prezam a moda acima de qualquer outro valor. Lauta é um exemplo deste tipo de personagem, e o conto mostra sua indiferença para com o inusitado elemento do poço e do misterioso rapaz que lá se debatia.
Dessa forma, a sobreposição do universo fútil da mulher ao sublime evocado pelos deuses gregos acentuaria, de forma humorística, o abismo entre ambos. Um detalhe que comprova tal relação é a descrição da atriz, exposta anteriormente, em que ela é comparada a manequins de cera, e não a estátuas de mármore. Enquanto estas são representações artísticas do mundo clássico, aqueles são instrumentos que servem aos interesses da moda, e, portanto, pertencem a outro universo, ou seja, estão de acordo com a imagem da futilidade relacionada à personagem. BOSQUESI, G. O. | p. 175-186 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 185
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JENNY, L. et alii. Intertextualidades. Coimbra: Almedina, 1979, p. 5-49. KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
MASCARETTI, V. Alberto Moravia scrittore di racconti. Analisi della narrazione breve Dell’opera moraviana. Dottorato di ricerca in italianistica. Università degli studi di Bologna, 2007. MILANO, P. Gli ultimi personaggi femminili. In: TESSARI, R. Alberto Moravia: Introduzione e guida allo studio dell’opera moraviana. Storia e Antologia della critica. Firenze: Le Monnier, 1985, p. 196-198. MORAVIA, A. Contos surrealistas e satíricos. Trad. Álvaro Lorencini e Letícia Zini. São Paulo: Difel, 1986.
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DO ROMANCE AO FILME: A ABREVIAÇÃO DA PAISAGEM EM A COR PÚRPURA Helena Bonito Couto PEREIRA1 Luciana Duenha DIMITROV2
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A cor púrpura (Spielberg, 1985) apresenta uma aura própria, uma presença no tempo e espaço, além de uma existência ímpar no local ao qual pertence (Benjamim, 1968). Ora, o roteiro permite que a história das irmãs negras Celie e Nettie, nascidas no sul norte-americano pós-escravista do início do último século, envolva plenamente qualquer espectador. Mesmo não se tratando de um roteiro original, por ter sido uma adaptação do romance homônimo de Alice Walker (1982) – não só um best seller, mas um vencedor do Prêmio Pulitzer –a maestria do cineasta não pode ser onerada, haja visto que, além de aclamado pelo público, o filme foi premiado pela crítica. Separadas pelo egoísmo de Sinhô, viúvo com quem Celie é obrigada a se casar ainda adolescente, leitor e espectador acompanham a trajetória de Celie, que (sobre)vive àquele sul machista, racista e cruel, sem saber o destino de Nettie. Tal destino somente é revelado quando, em um momento nevrálgico das narrativas, Celie descobre as cartas de Nettie que lhe foram ocultadas pelo marido desde a partida da irmã, décadas antes. É também nesse momento, porém, que as narrativas se distanciam. As cartas de Nettie apresentam, no romance, preciosismo e minúcia tamanhas que se é transportado para aquela paisagem africana como testemunha ocular daqueles costumes e culturas. Já na fílmica os caminhos percorridos por Nettie são representados com menor detalhamento, fazendo do espectador uma testemunha que, por ter parte de sua visão suprimida, só vivencia frações daquela jornada. Linda Hutcheon (2013) afirma que a
Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail: helena.pereira@mackenzie.br Universidade Presbiteriana Mackenzie, E-mail:luciana.dimitrov@mackenzie.br
elaboração de um roteiro baseado em um grande romance consiste principalmente em um trabalho de simplificação: é essa simplificação que se busca compreender neste estudo. Palavras-chave: A cor púrpura, Alice Walker, Steven Spielberg, adaptação, simplificação, violência
A cor púrpura se tornou um sinônimo de sucesso. Lançado em 1982, o terceiro romance da norte-americana Alice Walker, “que permaneceu cerca de vinte e cinco semanas na lista dos best sellers do New York Times” (LISTER, 2010, p.5), lhe rendeu o Prêmio Pulitzer e o National Book Award – pela primeira vez concedidos a uma mesma escritora negra – além de ser a obra que consolidaria de sua carreira. O romance epistolar traz cerca de quarenta anos de história das irmãs negras Celie e Nettie. Elaborado sob um tempo narrativo quase linear, a história se inicia nos primeiros anos do século passado, no interior da Georgia, onde as então adolescentes sobrevivem alheias ao seu desejo. Banida da escola ao engravidar daquele que julgava ser seu pai, os bebês são levados de Celie sem que ela ao menos pudesse vê-los. Após a morte da mãe, a adolescente – que ainda chorava a privação do convívio com os filhos – é impelida a se casar com um viúvo, pai de três filhos. O Sinhô, como era chamado por Celie, se encantou com a beleza de Nettie, mas acabou sendo convencido a se casar com a irmã mais velha. Nettie então permaneceu na casa do pai com os irmãos menores e a madrasta, mas, sofrendo com a nova ordem estabelecida, buscou a casa da irmã como refúgio, sendo expulsa quando ignora o constante aliciamento do cunhado. A protagonista, mesmo vivendo dentro de uma estrutura familiar (marido, enteados, “netos”), sentia-se uma estranha ao lar, uma unhomed (BHABHA, 2013, p.31), então alivia sua angústia nas cartas que endereçava a Deus, cartas estas que compõem o romance.
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É essa a narrativa que Steven Spielberg se aventura adaptar, apenas três anos após o lançamento best seller. Alice Walker, que é convidada a roteirizar o romance, pede ao diretor que jamais use sua versão do roteiro. É então que se escolhe Menno Meyjes para a árdua tarefa, a realizando com o aval da autora. O filme estreou em dezembro de 1985 arrecadando cerca de 94 milhões de dólares em sua primeira exibição (LISTER, 2010, p.24); o sucesso, porém, não abafou as críticas à Spielberg. Dentre elas, destaca-se a de McMullen e Solomon, em que afirmam que o cineasta “(...) remodela a história de Celie para que sua história se encaixe em mitos culturais, ao invés de destacar o caminho alternativo da protagonista rumo ao poder, considerando sua raça e opção sexual” (MCMULLEN; SOLOMON 1994 apud LISTER, 2010, p.24). Ao desempenharem seu papel, os críticos desconsideraram que “aquilo [que o cineasta] adapta é uma espécie de paráfrase do romance – o romance encarado como um material cru” (BLUESTONE, 2003, p.62). Ora, Spielberg – avalizado pela autora – fez escolhas ao imprimir maior ou menor ênfase a determinados trechos e temas do romance. Ainda para McMullen e Solomon, as escolhas para a adaptação do já consagrado cineasta – o filme sucede os blockbusters Tubarão (1975), Contatos imediatos do Terceiro Grau (1977), Os caçadores da arca perdida (1981), E.T. (1982) e Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984) – selecionam e refletem alguns elementos do romance, mas também desviam a atenção do expectador de outros aspectos e temas (MCMULLEN; SOLOMON 1994 apud LISTER, 2010, p.22). Críticas devidamente consideradas, é inegável que o trabalho realizado por Spielberg carrega a tal “aura” à qual Walter Benjamim se refere. O filme traz, indiscutivelmente, sua própria “presença no tempo e no espaço, sua existência única no local em que se situa” (BENJAMIM 2008). Assim PEREIRA, H. B. C.; DIMITROV, L. D. | p. 187-197 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 189
posto, poderia questionar-se o leitor desse estudo, o que então se busca investigar? Mesmo em se tratando de uma adaptação munida de aura, o filme comprova que a elaboração de um roteiro baseado em um grande romance consiste principalmente em um trabalho de simplificação (HUTCHEON, 2013, p.1): a questão que se propõe aqui concerne à simplificação, no filme, da representação da África descrita por Nettie. A narrativa epistolar é constituída de 90 cartas: 69 escritas por Celie e 21 escritas por Nettie. As cartas que Nettie escreveu à irmã lhe foram escondidas pelo Sinhô e achadas apenas muitas décadas mais tarde. Nessas cartas, Celie descobre que a irmã foi acolhida por uma família de missionários e se mudou para a África:
(...) eu não consigo achar emprego nesta cidade, e vou ter que ir embora. (... ) A Corine, o Samuel e as crianças fazem parte de um grupo de pessoas chamadas Missionários, da Sociedade Missionária Africana e Americana. (...) Tudo em preparação para o trabalho para o qual eles acreditam que nasceram, o de missionários na África. (WALKER, 2009, p.154-155)
Até esse momento, as narrativas caminham paralelamente. Porém, as cartas que seguem revelam décadas de uma África repleta de costumes e culturas bastante alheios ao mundo ocidental. São exposições que dimensionam Celie em um mundo com o qual jamais havia sonhado: Nettie vivendo na África junto aos filhos que lhe foram roubados. O filme tem a duração de aproximadamente duas horas e meia; a primeira carta de Nettie é exposta após a metade do filme (1h38min). Às 21 cartas recebidas por Celie são dedicados menos de vinte minutos de filme. Essa abreviação
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se justificaria uma vez que “(...) adaptações, especialmente de longos romances, implicam que o trabalho do cineasta é o de subtração ou contração” (ABBOT 2002, apud HUTCHEON, 2013, p.19). Contudo, a riqueza de detalhes com a qual se descreve a África e sua cultura são abreviados de tal forma que seu significado original acaba esvaecido no filme. Uma das primeiras reflexões que Nettie tece sobre a África data o período de sua chegada à Inglaterra, quando ela e sua família aportam e são instruídos antes de embarcar para a África:
“Tempos difíceis” é uma expressão que os ingleses adoram usar, quando falam da África. E é fácil eles esquecerem que os “tempos difíceis” da África ficaram mais difíceis ainda por causa deles mesmos. Milhões e milhões de africanos foram capturados e vendidos como escravos – você e eu, Celie! E cidades inteiras foram destruídas durante as guerras de caça aos escravos. Hoje o povo da África – tendo perdido na morte ou vendido como escravos seus membros mais fortes – é um povo enfraquecido por doenças e mergulhado na confusão espiritual e física. Esses acreditam no diabo e veneram os mortos. E não sabem ler nem escrever. (WALKER, 2009, p.165-166)
Reconhecendo-se como membro daquele povo enfraquecido, Nettie retoma uma questão históricocultural bastante importante: a colonização da África, suas consequências no ocidente e in loco. Outra implicação relatada por Nettie versa sobre a incompreensão ante aquela cultura religiosa daqueles que “acreditam no diabo e veneram os mortos” (ibidem) uma cultura à qual, em princípio, ela pertence. O fato desse trecho simplesmente inexistir na adaptação compromete um dos temas latentes no romance. No trecho PEREIRA, H. B. C.; DIMITROV, L. D. | p. 187-197 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 191
supracitado se inicia uma forte crítica ao “(...) resíduo discursivo comum aos discursos colonialista, imperialista e racista, (...) [à] forma de pensamento cujos vestígios permeiam e estruturam as práticas e representações contemporâneas mesmo após o fim formal do colonialismo” (STAM, 2011, p.295). Outra exclusão do tema executada pelo cineastas é da carta em que Nettie descreve a Monróvia. Ao visitar o palácio presidencial, a jovem constata que o negro presidente Tubman chama o seu povo de “nativos”, indagando: “eu não vi nenhum desses ‘nativos’ no seu gabinete.” (WALKER, 2009, p.168). Ademais, se deduz que os nativos cantam porque “(...) estão cansados demais para fazer qualquer outra coisa (...). Além do mais, eles não são donos das fazendas de cacau, (...) nem o presidente Tubman. Tudo pertence a um pessoal que mora num lugar chamado Holanda” (ibidem, p.169). No filme, a enunciação de Metz e Vernet (VANOYE; GOLIOT- LÉTÉ, 1994, p.42) “(...) dentro do texto (...) se encontram os indícios da enunciação desse texto” não se comprova, pois nenhum indício é esboçado na adaptação em questão. Destaque à Tashi, a menina Olinka que passa a integrar a família na África, desempenhando um papel importantíssimo na construção da cultura do povo africano. Descrita em várias cartas, na primeira delas, Nettie a apresenta conectada a uma questão cultural crucial na história narrada: “Os Olinka não acham que as meninas devam ser educadas. (...) Ela tem uma pequena filha, Tashi, que brinca com Olivia depois da escola. (...) tudo o que Olivia aprendeu ela ensina para Tashi. (WALKER, 2009, p.185-186) Ao se contextualizar o modo como a tribo com a qual os missionários convivem, é revelado o papel da mulher dentro daquela sociedade tribal. Esse trecho é representado quase fidedignamente no filme, na sequência que se inicia em 192 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
1h50min35seg e termina em 1h51min25seg, causando uma falsa expectativa de que a África será plenamente pintada pelo cineasta. Uma das passagens temporais mais significativas do romance acontece quando, em uma de suas cartas, Nettie pondera que “quase trinta anos já se passaram (...)” (ibidem, p.299), sendo esse dado de suma importância também ignorado na adaptação. Nettie descreve o nascimento do amor entre Adam e Tashi, agora adultos. Ainda versando sobre as distinções culturais testemunhadas por Nettie, o romance traz o ritual de passagem da tribo Olinka poeticamente descrito, metaforizando a relação amorosa entre Adam e Tashi. Mas [Adam] também está muito chateado com [Tashi], Olivia falou, porque quando partimos, ela estava planejando marcar o rosto. Eu [Nettie] não sabia disso. Uma das coisas que nós pensamos que tivéssemos ajudado a parar era a marcação ou corte tribal nas faces das jovens mulheres. Essa é a maneira como os Olinka podem mostrar que ainda conservam suas antigas tradições (...). Tashi não queria isso, mas para fazer seu povo se sentir melhor, estava resignada. Ela também vai passar pela cerimônia de iniciação feminina (...) Oh, não, eu [Nettie] falei. Isso é tão perigoso. E se ela se infectar? Eu sei, Olivia falou. Eu falei para ela que ninguém na Europa ou América corta pedaços do próprio corpo. E de todas as maneiras ela deveria ter feito isso quando tinha 11 anos, se fosse mesmo fazer. Ela já está muito velha para isso agora. (ibidem, p.277-278)
O recurso escolhido pelo cineasta para representar o ritual de passagem é a chamada sequência alternada, ou seja, se mostram alternadamente duas ações simultâneas (METZ PEREIRA, H. B. C.; DIMITROV, L. D. | p. 187-197 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 193
1968, apud VANOYE; GOLIOT- LÉTÉ, 1994, p.38) e acontece entre 1h55min10seg e 1h57min31seg. Na narrativa fílmica, a sequência tem início quando Celie lê uma das cartas de Nettie – aqui se subentende que a carta relata o rito de mutilação dos Olinka – sendo interrompida violentamente pelo Sinhô, que espera que a esposa – como de costume – o barbeie com uma navalha. À medida que Celie, visivelmente irada, afia sua navalha, as cenas do ritual são apresentadas como flashes, desde o chamado para a tribo testemunhar o ritual até a mutilação de fato. Entretanto, no filme há alguns detalhes que fogem do original. O primeiro deles é que no filme Tashi é uma garota – a mesma que foi apresentada algumas cenas antes, aprendendo a ler – e está sendo mutilada na companhia de um menino mais novo. Na narrativa Olivia é enfática ao dizer que Tashi deveria ter passado pelo processo aos 11 anos – “[Tashi] já está muito velha para isso agora” (WALKER, 2009, p.278) – deixando subentendido que idade de Tashi era avançada demais para o ritual. Além disso, Oliva não menciona se o ritual era feito na companhia de outros jovens ou adultos, o que é mostrado no filme. Isto está ligado a ouro aspecto que causa estranhamento, já que a cena mostra Samuel, Nettie e Olivia como testemunhas oculares da mutilação, o que tampouco ocorre na narrativa. Usando de closes nas afiadas ferramentas empregadas para talhar o rosto de Tashi e do garoto, Spielberg apenas mostra o corte no rosto do garoto, o sangue escorrendo, o repúdio de Olivia e Nettie e encerra o ritual da mutilação em sua narrativa. Essa escolha do cineasta não seria tão grave se este não houvesse se apropriado da redução inadequadamente ao ignorar o retorno de Tashi mutilada e suas consequências à narrativa: “(...) Tashi está, desgraçadamente, envergonhada 194 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
de suas cicatrizes na face, e agora mal consegue levantar sua cabeça. Elas devem ser doloridas também porque parecem irritadas e vermelhas (ibidem, p.281).” Tendo rosto e alma dilacerados, Tashi desencadeia uma crise familiar, o que será vivido e sofrido por Adam:
[Adam] pediu a Tashi para perdoar a primeira reação estúpida que ele teve em relação ao ritual das cicatrizes. (...) Ele assegurou Tashi que era ela que ele amava e que nos Estados Unidos ela teria um país, um povo, parentes, irmã, marido, irmão e amante, e que qualquer coisa que acontecesse com ela nos Estados Unidos seria também o destino e a escolha dele. (...) Então, no dia seguinte, nosso menino apareceu com cicatrizes idênticas a de Tashi no seu rosto. (ibidem, p.322-324)
A redução da sequência citada implica no abandono, por parte do cineasta, do choque cultural causado pelo ritual tribal. Novamente Spielberg opta por manter a cultura africana na “(...) sombra que é o restante do mundo” (STAM, 2011, p.295) ao excluir tais aspectos de sua narrativa. Vale ressaltar que a família africana só volta à cena em 2h25min10seg, já na sequência final do filme, quando Nettie finalmente reencontra a irmã. Ao serem apresentados à Celie, Tashi e Adam não apresentam marcas aparentes da mutilação que sofreram. Ora, citando Linda Hutcheon (2013, p.1), “o filme precisa transmitir sua mensagem por imagens e relativamente poucas palavras (...)”, mas há imagens e palavras que simplesmente não podem ser ignoradas. Ao propor este breve estudo, não se ignoraram as diferenças essenciais entre os dois meios, tampouco a dinâmica dos campos de produção cultural nos quais esses meios estão inseridos (JOHNSON apud PELLEGRINI, 2003, p.42); se PEREIRA, H. B. C.; DIMITROV, L. D. | p. 187-197 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 195
objetivou, sim, preencher as lacunas que não puderam ser preenchidas pelos olhos do espectador (BLUESTONE, 2003, p.16), especialmente daqueles que, antes de espectadores, são leitores de A cor púrpura. Referências Bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Illuminations. New York: Schocken Books, 2008.
BHABA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. BLUESTONE, George. Novels into film. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2003. HUTCHEON, Linda; O’FLYNN, Siobhan. Theory of adaptation. Second edition. New York: Routledge, 2013
LISTER, Rachel. Alice Walker: The Color Purple, a reader’s guide to essential criticism. Houndmills, Basingstoke, Hampshire, 2010. PELLEGRINI [et al.]. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac, 2003.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus Editora, 2011.
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The color purple (A cor púrpura). Director: Steven Spielberg. USA: Amblin Entertainment; Guber-Peters Company; the Warner Bros, 1985. 154 min. VANOYÉ, Francis; GOLIOT- LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus Editora, 1994. WALKER, Alice. A cor púrpura. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. WALKER, Alice. The color purple. New York: Harvest Book Harcourt Inc, 2003.
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O DESEJO DO “EU” NOS POEMAS “NARCISO (JOGOS)” E “MEMÓRIA”, DE ORIDES FONTELA Jaqueline de Carvalho Valverde BATISTA1
Resumo: Na tragédia grega Édipo Rei, de Sófocles, podemos observar que Édipo ao responder corretamente ao enigma da Esfinge passa a conhecer seu próprio destino, assim como podemos observar no mito da caverna de Platão (1990) em que o homem aprisionado na caverna e desconhecedor da realidade externa àquele local fechado sai da sua ignorância. Mas, Édipo, ao querer conhecer a verdade, é severamente punido; a punição dada a Édipo era a de que ele mataria seu pai e casar-se-ia com sua mãe. A partir dessas considerações observamos que o desejo do ser, de conhecer, de desvelar a sua própria origem é algo que foi estudado, em especial, pela psicanálise, sobretudo pelos estudos de Freud que foram retomados por Lacan quanto ao Complexo de Édipo, estudos que são trazidos por Moraes (2002) e que utilizaremos neste trabalho. O desejo além de estar presente na psicanálise fazse presente na literatura, como vemos em Édipo Rei e que veremos nos poemas “Narciso (Jogos)” (p. 333) e “Memória” (p. 306), ambos presentes em Poesia reunida [1969-1996] (2006), de Orides Fontela, dos quais propomos uma breve leitura intervalar como propõe João Alexandre Barbosa (1990), na que analisaremos o desejo do “eu”, de modo a confirmarmos se, de fato, o desejo do sujeito lírico, relacionado ao desejo do Outro, é interditado ou não e se, portanto, a não interdição do desejo marca a identidade do sujeito lírico a partir do eternizar da palavra. Por fim, investigaremos se o desejo de morte está presente no corpus e como ele se constrói na palavra poética. Palavras-Chave: poesia brasileira contemporânea; Complexo de Édipo; desejo; morte; transcendência; Orides Fontela.
1 (UNESP/São José do Rio Preto)
O desejo do “Eu” nos poemas “Narciso (Jogos)” e “Memória”, de Orides Fontela NARCISO (JOGOS) Tudo acontece no espelho. MEMÓRIA A cicatriz, talvez não indelével
o sangue agora estigma.
Ao lermos os poemas acima, logo de início, a começar pelo título dos dois, “Narciso (Jogos)” e “Memória” somos conduzidos à mitologia grega, na qual o mito de Narciso fazse presente. No mito, Narciso ao ver refletida a sua imagem na água, imagem que desconhece, apaixona-se por ela e ao aproximar-se dela acaba morrendo afogado. Além de Narciso, Memória remete à deusa Mnemosine da mitologia e significa também Memória.
Percorrendo a leitura do corpus em sua completude somos conduzidos novamente à mitologia grega, porém a construção que Orides Fontela tece é de digna maestria de artesã das palavras, tal maestria é identificada pela singularidade que se apresenta nesses poemas, pois Orides consegue subverter o sentido mitológico sem deixar de trazê-lo para a significação dos mesmos. Assim, para construirmos uma leitura da literatura precisamos enxergar a relação entre os poemas e a mitologia grega para estabelecermos uma leitura nova que se apresenta subvertida. Portanto, para construirmos essa leitura da literatura
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contamos com os estudos de João Alexandre Barbosa (1990) que propõe uma leitura considerando-se o “fora” e o “dentro” dos poemas em questão para podermos construir uma interpretação coerente. Segundo Barbosa,
Na obra que o leitor sente como realizada, a distância entre o mais e o menos é preenchida pela tensão que se instaura entre o que diz a obra e o que o leitor é capaz de dizer após a leitura. É precisamente esta tensão entre a obra e o leitor que cria múltiplos significados que levam a ler na literatura mais que apenas literatura. (BARBOSA, 1990, p. 15).
A partir dessa afirmação de Barbosa (1990) podemos notar que na leitura da literatura cria-se uma tensão entre o que diz a obra e o que o leitor é capaz de dizer após a leitura da mesma, tensão que leva o leitor a buscar no “dentro” e no “fora” da literatura relações significativas para a construção de sua nova interpretação. Tal afirmação é condizente com a leitura que fazemos do corpus apresentado, pois buscar somente no “dentro” dos poemas uma leitura interpretativa coerente torna-a restrita porque sua leitura conduz-nos, logo de início, à buscar no “fora”, na mitologia, significações que contribuem para a leitura dos poemas em questão.
Retornando ao poema “Narciso (Jogos)” podemos observar que o mito de Narciso é retomado, como podemos confirmar nas estrofes “Tudo/ acontece no/ espelho” (versos 1-3), pois assim como Narciso ao olhar-se nas águas e ao ver a sua imagem, a qual desconhecia, refletida, apaixona-se por ela e acaba morrendo afogado na aproximação que tem com a imagem, a mesma semelhança ocorre com o sujeito poético do poema. O sujeito poético ao olhar-se no espelho BATISTA, J. C. V. | p. 199-209 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 201
provavelmente vê a sua imagem refletida e, ao contrário de Narciso, reconhece-se como totalidade.
Esse reconhecimento do sujeito remete ao estádio do espelho que Lacan estudou e que é o momento em que a criança vê sua imagem refletida no espelho como totalidade e identifica-se com ela (imagem do Outro). É o momento de reconhecimento, pois antes de conhecer-se como totalidade, a criança via seu corpo esfacelado, por partes, e ao descobrirse passa a conhecer-se integralmente e a buscar semelhanças com o Outro (o pai ou a mãe). É no espelho que o sujeito poético pode estar buscando a sua identidade assim como a criança busca no estádio do espelho de Lacan. A busca pela totalidade pode ser confirmada pelo uso do pronome indefinido “tudo”, portanto, busca do conhecimento de uma verdade. O que podemos depreender da leitura dos dois poemas é que há um possível desejo do sujeito poético de conhecer a verdade, a qual pode ser sobre sua própria identidade. Para compreendermos mais detalhadamente o desejo, faz-se necessário trazer contribuições da mitologia como o mito de Édipo Rei e da psicanálise com Freud e o Complexo de Édipo e Lacan que retoma este. Para entendermos o pensamento desses contamos com as contribuições de Moraes (2002) que estuda os dois estudiosos da psicanálise. No mito de Édipo Rei, podemos perceber que Édipo por querer conhecer a verdade, assim como o homem do mito da caverna de Platão que desejou sair da ignorância a partir do conhecimento da verdade, responde corretamente à Esfinge, desvendando o enigma, e passa a conhecer o que era o seu próprio castigo: matar o pai e casar-se com a mãe. A partir do mito de Édipo Rei, a psicanálise de Freud traznos o Complexo de Édipo que, de acordo com Moraes (2002), é para Freud: 202 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
um conjunto ideativo de fantasias inconscientes. Uma situação que todos nós estamos condenados a experimentar entre os três e cinco anos de idade aproximadamente, e que resulta irremediavelmente da prolongada dependência infantil e da vida comum com os pais (MORAES, 2002, p. 56).
Nessa afirmação, podemos observar que se trata de um conjunto de fantasias inconscientes pelas quais o menino e a menina passam mesmo que de maneiras distintas, as quais não é nossa pretensão nos deter. Mas, o que é importante destacar é que o menino se identifica com o pai, mas o vê como ameaça na presença da mãe e por isso deseja ocupar o seu lugar. O que está em jogo, de fato, nesse comportamento que a criança tem, sobretudo o menino para com o seu pai é a prevalência do falo, pois o filho quer ser o objeto de desejo da mãe, porém percebe que não consegue ocupar esse lugar porque o desejo da mãe é o pai (o falo). Essa percepção pode ser vista no momento em que a mãe já não faz tudo o que o filho quer e dá, portanto, a autoridade ao pai. A falta do objeto de desejo da mãe, neste caso, com a vaga ideia que o menino tem de que é o pênis o objeto de desejo da mãe, faz com que ele caia no complexo de castração. Com medo proveniente da ameaça de castração e diante da descoberta de que a menina é castrada, o menino renuncia, segundo Moraes (2002), em alguma medida à posse da mãe. Concluise, então, que o menino teme a possibilidade de castração e a menina aceita e toma como ato consumado a sua castração, característica que os diferencia.
Esta experiência do sujeito com a sua imagem ou do “eu” com o “Outro” a partir do estádio do espelho leva-nos a perceber que há um desejo de conhecimento, desejo que, segundo Moraes (2002), faz parte do inconsciente, “o desejo BATISTA, J. C. V. | p. 199-209 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 203
do homem encontra seu sentido no desejo do Outro, porque o primeiro objeto do desejo do homem é ser reconhecido pelo Outro”. (MORAES, 2002, p. 71). Lacan conclui que a psicanálise só é possível se o inconsciente estiver estruturado como uma linguagem, pois quando há linguagem, há sujeito e, portanto, o Outro é o depositário da linguagem e o eu a partir do seu inconsciente deseja saber a verdade, ser interpretado e por isso busca no Outro essa verdade. Diante dessas informações, Lacan contribui para psicanálise, pois formaliza o conceito dos três registros que, de acordo com Moraes (2002), são: o real (da ordem do impossível); o simbólico (da ordem da linguagem) e o imaginário (da ordem da imagem) os quais estão entrelaçados, contribuição no sentido de uma compreensão mais bem esclarecida da questão do gênero no Complexo de Édipo e da distinção pênis/ falo. Lacan centra o Complexo no imaginário e no simbólico identificando o pai como o significante, diante dessa informação, o que importa é a relação da mãe com a palavra do pai.
Segundo Moutapha Safouan (1993), é “na linguagem que a psicanálise encontra o sujeito [...] a lei da palavra, na qual não escapará todavia: pois, mesmo sendo mentirosa, a palavra só se sustenta por referir-se à verdade, por propor-se como verdadeira”. (p. 34), ou seja, é na linguagem que encontramos o sujeito e sua relação com o Outro. Trazidas as considerações apontadas pela psicanálise para desenvolvermos uma leitura intervalar do corpus, retomemos, a partir dessas considerações, o poema “Narciso (Jogos)”. Nesse poema, há um possível desejo do sujeito poético, desejo que pode ser de identificação com o Outro (depositário da linguagem) para construir-se como sujeito. Vejamos os seguintes versos: “Tudo/ acontece no/ espelho”, versos que nos remetem ao estádio do espelho, ao Complexo de Édipo e 204 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
ao Mito de Narciso, pois o título confirma a afirmação “Narciso (Jogos)”. Ainda, observemos que a palavra “Jogos” está entre parênteses e jogos remetem à infância.
Como vemos, estabelece-se uma possível relação entre a psicanálise no poema em questão, assim como também veremos que há no poema “Memória”, porém a poética de Orides Fontela não somente retoma a mitologia e a psicanálise como também subverte o que elas trazem e constrói seus poemas, singularizando-os. Pensando nessa subversão, podemos depreender que possivelmente há uma experiência do objeto (palavra) pelo sujeito, como aponta Osakabe (2002). Essa experiência estabelece-se pela busca do sujeito pela origem da palavra, do sentido nu dessa, mas ao tentar encontrar esse sentido, ele é atraído e traído pela mesma, segundo Lopes (2008), pois a palavra joga com o sujeito e o mesmo não consegue encontrar a origem da palavra, a origem do Outro, da palavra do pai, em termos da psicanálise. Por não encontrar o sentido original da palavra, o sujeito frustra-se, pois seu desejo pode estar sendo interditado, assim como a criança frustra-se por não conseguir ocupar o lugar do desejo da mãe e, portanto, seu desejo passa a ser de morte. E a palavra pode estar morrendo (simbolicamente) no poema “Narciso (Jogos)” porque, segundo Osakabe (2002), à medida que a palavra é lida e interpretada, ela morre, ou seja, ao dizer, por exemplo, a palavra “Flor” sua significação morre, mas pode estar transcendendo porque as significações jamais se esgotam, em seus poemas, são plurais, devido à transposição das palavras que constrói Orides. O desejo de morte do sujeito poético também pode estar presente no poema “Memória”, pois a começar pelo título, memória remete a algo passado, antigo, algo que permanece. Nos dois primeiros versos do poema “A cicatriz, talvez/ não indelével” (versos 1-2) podemos observar que a cicatriz BATISTA, J. C. V. | p. 199-209 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 205
remete a algo que marca, segundo o sentido denotativo da palavra, e que também pode estar remetendo a lembrança dolorosa que talvez não se pode apagar, pois não é “indelével”. Mas essa cicatriz nos três últimos versos “o sangue/ agora/ estigma” pode estar designando que o sangue, o qual pode estar significando morte ou vida, agora (no presente) marca (estigma).
Mas esse desejo de morte pode não ser somente do sujeito poético, mas também da palavra. A palavra morre (simbolicamente) e ao mesmo tempo em que morre pode ficar marcada como uma cicatriz, inscrita para sempre, assim como a palavra do pai (o Outro) na psicanálise, seu sentido original pode permanecer inscrito na memória, porém possivelmente é inalcançável pelo sujeito que o busca, que tenta encontrar essa verdade, mas a palavra morre (morte simbólica) porque a experiência do objeto (palavra) pelo sujeito é nova e singular. A palavra morre porque caso contrário mataria em nós o sentido de novidade e, portanto, pode transcender por isso o “sangue/ agora/ estigma”, sangue que pode significar vida, novidade singular a cada experiência do sujeito com a palavra.
CONCLUSÃO Na esteira da teoria psicanalítica referente ao estádio do espelho e ao Complexo de Édipo estudada por Freud, por Lacan e retomadas por Moraes (2002), trouxemos o mito de Narciso, o mito de Édipo Rei, a deusa Mnemósine, da Memória, e o mito da caverna, este de Platão para desenvolvermos uma leitura intervalar como propõe Barbosa (1990) dos poemas “Narciso (Jogos)” e “Memória”, de Orides Fontela. A partir da leitura intervalar dos poemas podemos perceber que sem o reconhecimento do “fora” da literatura a nossa leitura seria outra. Mas, de fato, a relação que se 206 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
estabelece entre os poemas, a mitologia e a psicanálise, é evidente e é dessa relação que compreendemos a construção poética de Orides, construção que transpõe as palavras de forma singular, de modo a subverter o sentido que trazem a mitologia e a psicanálise, pois nos poemas o que está em jogo são as palavras e a experiência do sujeito com elas. A palavra, como vimos, joga com o sujeito, pois ao mesmo tempo em que o atrai, trai porque há uma busca do seu sentido original, a busca da verdade, mas uma atividade que é traída, pois não se chega a esse sentido porque a palavra morre em significação a cada experiência que tem o sujeito com essa e renova-se, transcende. Assim, a palavra pode ser comparada ao que na psicanálise é o Outro, o depositário da linguagem e o sujeito tenta encontrar aproximações suas com esse Outro, mas seu desejo é interditado porque não há como ocupar o lugar desse. Por isso, o desejo do sujeito também morre, como a palavra.
Conclui-se, portanto, que a palavra poética pode funcionar como o phármakon, termo utilizado por Derrida que significa: o deus da escritura é, pois, um deus da medicina. Da “medicina”: ao mesmo tempo ciência e droga oculta. Do remédio e do veneno. O deus da escritura é o deus do phármakon. (1991, p. 38). A partir dessa informação depreende-se que o phármakon é remédio e veneno, o que nos faz compreender que a escritura remedia porque aumenta o saber e reduz o esquecimento, segundo Derrida (1991), mas pode ser também veneno porque a palavra nos trai, buscamos como o sujeito poético busca encontrar o seu sentido original, mas não encontramos porque sua significação transcende. Ao morrer (simbolicamente), a palavra poética pode estar nascendo com outra significação, uma significação singular. BATISTA, J. C. V. | p. 199-209 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 207
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BATISTA, J. C. V. | p. 199-209 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 209
O desafio da última expedição e o fortalecimento emocional: uma análise de Extremely Loud & Incredibly Close, de Jonathan Safran Foer João Paulo VANI (UNESP/SJRP)1
RESUMO: Este trabalho tem por objetivo examinar, por meio da jornada empreendida pelo menino Oskar, de apenas nove anos, cujo pai foi vítima dos atentados de 11 setembro de 2011 aos EUA, a forma como os acontecimentos do passado são transformados em fatos históricos relevantes, bem como verificar os sistemas que permitem a abordagem da História por meio de várias perspectivas, e, por fim, investigar a presença do trauma como elemento de ligação entre História e Literatura. Focalizamos, primordialmente, o narrador, o pequeno Oskar, de modo que nossa análise acompanha sua jornada por Nova York à procura de respostas para a morte do pai naquele dia catastrófico, tratado pelo garoto como the worst day. PALAVRAS-CHAVE: Jonathan Safran Foer; Extremely Loud & Incredibly Close; 11 de setembro; terrorismo; trauma.
ABSTRACT: The main purposes of this article are to exame, through the journey taken by the nine-year-old boy Oskar, whose father was a victim of the 9/11 attacks, how the events of the past are transformed into relevant historical facts, as well as to verify the systems which allow the treatment of History through multiple perspectives, and to investigate the presence of trauma as
1 Mestre em Teoria Literária. Programa de Pós-Graduação em Letras — Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas — Universidade Estadual Paulista (UNESP) — São José do Rio Preto — SP — CEP 15054-000 — Brasil — jpvani@ editorahn.com.br
a connection between History and Literature. Primarily focusing on the narrator, little Oskar, the analysis pursues his journey through New York looking for answers to his father’s death during that catastrophic day, treated by Oskar as “the worst day”. KEYWORDS: Jonathan Safran Foer; Extremely Loud & Incredibly Close; September 11; terrorism; trauma.
Os atentados de 11 de setembro, ocorridos em 2001, não somente marcaram o início de um novo momento histórico nos Estados Unidos da América, o da Guerra ao Terror, como também se tornaram tema de publicações em diversos suportes e línguas em todo o mundo. Naquele dia, quatro aviões comerciais foram sequestrados por terroristas ligados à rede Al-Qaeda. Dezenove homens foram transformados em armas e aterrorizaram todo o país, por meio de ataques ao World Trade Center e ao Pentágono. Um outro avião caiu em um campo na Pensilvânia, pois seus passageiros enfrentaram os terroristas que haviam sequestrado a aeronave, cujo alvo era, provavelmente, a Casa Branca ou o Capitólio. Esse se constituiu no maior atentado contra os Estados Unidos em seu próprio território.
No romance Extremely Loud & Incredibly Close (2005), de Jonathan Safran Foer, o autor propõe uma reavaliação crítica do passado ao abordar em sua narrativa dois eventos que envolvem traumas individuais e coletivos: os atentados de 11 de setembro e o bombardeio a Dresden, durante a Segunda Guerra Mundial. Por meio da análise de estratégias narrativas, das fotografias, das diferentes formas discursivas presentes no romance, a investigação conduzirá ao exame da relação entre Literatura e História. O romance, dividido em três linhas narrativas, tem como um dos narradores, Oskar Schell, um menino de 9 anos, cujo pai faleceu nos ataques terroristas de 11 de setembro e que,
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após perceber a sua nova vida de um modo inimaginável e pantanoso, vê um fato corriqueiro mudar sua rotina: cerca de um ano após a morte do pai, ainda mantém o hábito de passar uma parte de seu tempo dentro de seu closet, em busca de uma proximidade física não mais possível. Em uma dessas incursões, derruba um vaso azul, que se estilhaça no chão. Dentro do vaso, o menino encontra um envelope com uma chave. Desse episódio surge a busca a ser empreendida por Oskar, pela fechadura que aquela chave pode abrir. É sobre essa busca que esse artigo trata. A segunda linha narrativa tem os avós de Oskar como narradores: sobreviventes do bombardeio incendiário a Dresden durante a Segunda Guerra Mundial. O casal revela como a sobrevivência na companhia dos traumas decorrentes do episódio vivido. A terceira linha narrativa é composta de uma longa carta escrita a Oskar por sua avó, pela qual a mãe de seu pai busca oferecer ao menino elementos e valores da identidade familiar que não transferidos, ante a morte prematura de Thomas Schell.
Após descobrir o envelope com a chave, cuja única pista existente era a palavra “Black”, grafada em caneta vermelha ao lado de fora do envelope, Oskar decide empreender uma expedição pela cidade de Nova York, e descobre que existem 471 pessoas na cidade com sobrenome “Black”. O menino planeja visitar cada um deles, para que possa lhes perguntar o que sabem sobre a chave. Como diversos dos endereços dos “Black” são endereços familiares, com mais de um morador, Oskar organiza sua missão e se prepara para visitar 216 endereços diferentes. Corri para casa, pesquisei mais um pouco e encontrei 472 pessoas com o sobrenome Black em Nova York. Havia 216 endereços diferentes, porque obviamente, alguns dos Black moravam juntos. Calculei que se visitasse dois a cada sábado, o que me parecia possível, somando VANI, J. P. | p. 211-226 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 213
os feriados e subtraindo os ensaios de Hamlet e outras coisas como convenções sobre minerais e moedas, levaria cerca de três anos para visitar todos eles. Mas eu não sobreviveria três anos sem saber. Escrevi uma carta (FOER, 2006, p. 63).
Nesse ponto da narrativa, observamos a utilização de fotografias, que entremeadas ao texto, dialogam com o leitor. As imagens utilizadas pelo autor servem não apenas para pontuar a narrativa de Oskar, mas também para situar o leitor no ambiente da cidade de Nova York pós-11 de setembro. Uma delas é a imagem do papel em que as pessoas testam as canetas, na qual Oskar pode perceber o nome de seu pai, Thomas Schell.
Antes de iniciar a jornada Oskar explica que decidiu percorrer a lista de nomes em ordem alfabética, em vez de dividir os “Black” geograficamente. Essa escolha baseia-se no fato de que Oskar, desde “o pior dos dias”, entra em pânico somente ao pensar em usar transporte público. Essa é somente uma das evidências que o romance oferece do contexto da cidade de Nova York no período pós-11 de setembro. A primeira visita de Oskar foi a Aaron Black, com quem conversou apenas pelo interfone. Aaron Black, doente, não podia descer do nono andar até o térreo para falar com Oskar, que, por sua vez, amedrontado, não queria subir ao nono andar, por ser alto demais, pouco seguro, suscetível a algo que Oskar sequer era capaz de mencionar.
Levei três horas e quarenta e um minutos para chegar a pé até a casa de Aaron Black, porque meios de transporte públicos me dão aflição, embora caminhar por cima de pontes também me dê aflição (FOER, 2006, p. 101).
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A segunda pessoa por ele visitada é Abby Black, primeira pessoa a recebê-lo. Assim que Oskar chega à casa de Abby Black, presencia uma briga entre ela e o marido, revelando o delicado momento da separação. Abby Black representa na obra o ciclo da busca de Oskar, pois com ela a busca é iniciada e, com ela, a busca termina, quando Oskar descobre, após oito meses, um recado deixado por ela na secretária eletrônica. Desde “o pior dos dias”, ele não ouvia a nenhuma mensagem da secretária eletrônica. A chave para a qual Oskar buscava a fechadura pertencia ao pai do marido de Abby, William Black. Neste ponto, dois elementos devem ser considerados: o fim da busca de Oskar é também o fim da busca de William Black, personagens ligados não apenas pela chave, mas também pela perda de seus pais.
O terceiro “Black” visitado é o Sr. A. R. Black, morador do mesmo prédio que Oskar. Ao entrar no apartamento do Sr. Black, uma coluna de sustentação no meio da sala chama a atenção de Oskar, e é assim que anfitrião revela ao leitor seu próprio trauma, seu próprio sofrimento. Viúvo há 24 anos, Sr. Black externa seu sofrimento diário pregando um novo prego em sua cama, que a cada dia fica mais pesada. Metaforicamente, podemos entender que a cada dia seu sofrimento fica mais pesado, que a cada dia alimenta seu próprio luto. Na data da visita de Oskar, oito mil, seiscentos e vinte e nove dias haviam se passado desde a morte da esposa de Sr. Black, e a cama do casal, feita de pedaços de uma árvore, era coberta de pregos, um para cada dia de viuvez.
Sr. Black era jornalista e havia feito a cobertura de diversas guerras. Curiosamente, colecionava biografias de uma palavra só, escritas por ele. Aqui, entendemos essa objetividade como um traço do silêncio, como se nada mais que uma palavra houvesse a ser dito sobre uma pessoa. É importante destacar que diversas personagens políticas da história estavam VANI, J. P. | p. 211-226 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 215
descritas na coleção de Mr. Black apenas com a palavra “Guerra”. Uma dessas pessoas era Mohammed Ata, um dos terroristas responsáveis pelos ataques de 11 de setembro. Em sua própria biografia, rasurada, havia se classificado também pelo termo “Guerra” e, supostamente após a viuvez, havia se reclassificado como “marido”. Reproduzimos abaixo o cartão biográficos da coleção do Sr. Black para o físico Stephen Hawking, ídolo de Oskar.
A identificação entre Oskar e Sr. Black é tamanha que o garoto o convence a sair de casa e acompanhá-lo em sua busca. As buscas, que aconteciam somente aos sábados, permitiram a Oskar conhecer muitas pessoas. No dia em que Sr. Black convence Oskar a andar de metrô, as visitas começam por Agnes Black, que não mais estava ali. A nova moradora do antigo apartamento de Agnes Black, Feliz, revelou ao Sr. Black que mesmo não a tendo conhecido, sabia que Agnes trabalhava como garçonete no Windows on the World, localizado nos andares 106 e 107 da Torre Norte do World Trade Center. Essa evidência do acaso faz Oskar se perguntar se Agnes Black conhecia seu pai, ou se havia estado com ele naquele dia, já que era exatamente naquele restaurante que seu pai estava para a uma reunião, naquela manhã.
No mesmo dia, Oskar visitou vários outros “Black”, e começou a perceber alguns pontos estranhos em suas visitas:
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Alice Black, ao olhar pelo olho-mágico diz: “Ah, é você” (2006, p. 216). Allen Black, ao se despedir, o chama pelo nome, ainda que Oskar não tivesse se apresentado. Arnold Black, sucinto, diz que não pode ajudar, antes mesmo de Oskar ter perguntado qualquer coisa. Entre as revelações que faz sobre as visitas aos “Black”, Oskar narra uma de suas visitas ao analista, Dr. Fein. Mais adiante, Oskar revela mais um traço do trauma que vive, a automutilação, ao mesmo tempo em que se pergunta o motivo de seu pai não ter dito “Eu te amo” na mensagem das 9:46, em que falava diretamente com ele.
Por que ele não disse adeus? Fiz um roxo em mim mesmo. Por que ele não disse “eu te amo”? A quarta-feira foi chata. A quinta-feira foi chata. A sexta-feira também foi chata, exceto pelo fato de ser sexta-feira, o que significava que era quase sábado, o que significava que eu estava um tanto mais perto da fechadura, que significava felicidade (FOER, 2006, p. 228)
As circunstâncias decorrentes dos atentados terroristas e da perda de seu pai fizeram com que Oskar apresentasse sinais de automutilação. De acordo com Almeida (2010), (...) automutilação pode ser definida como o impulso ou compulsão auto-agressiva em que o paciente realiza autolesões voluntárias causando a destruição ou a alteração deliberada de tecidos orgânicos sem intenção suicida consciente, que podem variar de intensidade, sendo as lesões leves caracterizadas por comportamentos como arranhar a pele com as unhas, queimar-se com pontas de cigarros (p. 2) VANI, J. P. | p. 211-226 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 217
Para Lima et. al. (2005), não é incomum que pacientes psiquiátricos com transtorno de personalidade boderline e transtornos afetivos, indivíduos obsessivo-compulsivos e deficientes mentais, possam apresentar formas mais leves de autolesão, como ocorre com Oskar. Doze semanas após o início de suas visitas aos “Black, acontece a apresentação da montagem de “Hamlet”. Oskar interpreta Yorick, o bobo da corte cujo crânio Hamlet ergue em suas mãos. A cena emblemática do crânio nas mãos de Hamlet, na Cena I do quinto Ato do drama shakespereano comumente confunde o público em geral, que imagina ser nesta cena o momento em que Hamlet profere o célebre questionamento “ser ou não ser”, na Cena I, do terceiro Ato.
Yorick, personagem ligado à infância de Shakespeare, desperta em Hamlet lembranças boas por ter sido seu companheiro de brincadeiras, ao mesmo tempo em que ali, com o crânio do bufão em suas mãos, diante de seus restos mortais, sente em seu corpo os efeitos morte: reflete sobre o quanto a vida é efêmera e sobre ser a morte algo inevitável. Do mesmo modo, Oskar reflete sobre a morte de seu pai, sobre a vida que tinha antes de perdê-lo, sobre a alegria que o pai representava em sua vida, o modo como eram companheiros, as brincadeiras que o pai planejava e, em razão dos acontecimentos, manifesta a mesma tristeza de Hamlet, por saber que de seu pai não sobraram nem ao menos restos mortais, apenas lembranças. Na primeira noite de apresentação da peça, Oskar está muito feliz com a presença das pessoas que foram vê-lo. Sua mãe e sua avó estão lá, mas também estão várias pessoas que haviam sido visitadas por ele. Ter sido prestigiado por todas aquelas pessoas, com as quais esteve é algo significativo, e na passagem em que trata do episódio, Oskar as cita, uma a uma: 218 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
Muitos dos Black que eu havia conhecido naquelas doze semanas também compareceram. Abe foi. Ada e Agnes foram. (estavam mesmo sentadas uma ao lado da outra, embora não soubessem disso.) Vi Albert, Alice, Allen, Arnold, Barbara e Berry. Deviam compor metade da plateia (FOER, 2006, p. 159).
No dia seguinte, somente a mãe e a avó de Oskar estavam na plateia. Nas apresentações seguintes, somente a avó comparece.
Durante a última apresentação da montagem de Shakespeare, Oskar revela questionamentos de uma pessoa adulta, madura, e não de uma criança:
Naquela noite, naquele palco, por trás daquela caveira, me senti incrivelmente perto de tudo no universo, mas ao mesmo tempo extremamente sozinho. Pela primeira vez na vida, me perguntei se a vida valia todo o esforço necessário para se viver. O que, exatamente, fazia a vida valer a pena? O que há de tão horrível em permanecer morto para sempre, não sentindo nada e nem mesmo sonhando? (FOER, 2006, p. 161).
Outra reflexão sobre a morte acontece quando Abe Black convida Oskar a dar uma volta em uma montanha-russa. Vejamos a passagem:
Obviamente, fico incrivelmente aflito com montanhasrussas, mas Abe me convenceu a andar numa junto com ele. “Seria uma pena morrer sem ter andado na Cyclone”, me disse. “Seria uma pena morrer”, falei. “É”, ele disse, “mas com a Cyclone você tem escolha.” Sentamos no carrinho da frente e Abe ergueu as mãos no ar nas partes de descida. Fiquei me perguntando se o que eu estava sentindo era parecido com cair. (FOER, 2006, p. 165). VANI, J. P. | p. 211-226 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 219
Oskar revela, ao longo de todo o romance, uma grande preocupação com o fato de seu pai ter sido uma das pessoas que pulou das torres antes que elas desmoronassem. No trecho acima, fica evidente a natureza de seu questionamento sobre o que é cair, sobre a sensação de estar caindo. E a questão da queda de centenas de pessoas diante da perspectiva incontestável de morrer é, ainda hoje, um tabu. Apesar de todos os cálculos feitos no início, Oskar visita ao todo 27 pessoas de sobrenome Black, sendo que somente Abby e William, que ainda eram casados, moravam no mesmo endereço.
Dentre as 27 pessoas com as quais Oskar esteve, não há qualquer possibilidade de desdobramento da história de algumas delas, pois são apenas citadas, como é o caso de Iris Black, Jeremy Black, Kyle Black e Lori Black; Bernie Black, Chelsea Black, Don Black, Eugene Black e Fo Black, Barbara Black e Berry Black.
Aaron Black, o primeiro a receber a visita de Oskar, não chegou a ser ouvido, pois era doente e estava ligado a aparelhos que monitoravam seu corpo; morava no nono andar de um edifício, e Oskar julgou que subir até lá não era seguro. O amadurecimento de Oskar pode ser nitidamente verificado quando, quase ao final da narrativa, depara-se com o endereço de Ruth Black, no octogésimo sexto andar do Empire State Building. Ainda que relutante e expressando seu medo, Oskar subiu até o andar de número 86 do prédio mais alto de Nova York, onde está localizado o terraço, com ampla vista sobre a cidade. Oskar, nesse ponto da narrativa, está lutando para vencer seus medos, e tem sucesso. Sobre Albert Black sabemos apenas que veio de Montana e queria ser ator, ou pelo menos, queria ter aquilo que imaginava ser a vida de um ator.
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Allen Black, o porteiro, não revelou sua própria história, apenas disse ter sido engenheiro na Rússia e ter tido um filho. Arnold Black recebeu Oskar e Mr. Black e imediatamente recusou-se a ajudar, o que causou bastante estranheza em Oskar.
Georgia Black recebe Oskar e Mr. Black com uma apresentação do que parece ser um museu sobre a vida de seu marido. Após todas as explicações acerca de sapatinhos de bebê e lugares por onde havia passado, Oskar e Mr. Black imaginam que Georgia Black fosse viúva, mas ficam surpresos ao se deparar com o marido dela, possuidor também um “museu” sobre a história da esposa. Mark Black os recebe chorando, pois, ao abrir a porta, sempre espera encontrar alguém que nunca chega. Apesar da evidência do trauma, a narrativa de Mark Black não evolui, e nada mais sabemos sobre essa personagem.
A visita de Oskar a Peter Black não é apenas a última, mas é também o momento em que Oskar tem contato com um ser mais frágil que ele e, após o longo percurso da narrativa, e do amadurecimento pelo qual passou, pode dizer ao pequeno bebê que está em seu colo, filho de Peter Black: “Oi, Peter. Vou protegê-lo” (2006, p. 318)
Ainda que não soubesse, Oskar encerraria ali, com Peter Black, sua busca pelos Black de Nova York, mais maduro do que havia começado, mais confiante e, principalmente, menos frágil. Oskar havia se fortalecido a tal ponto que, naquele último encontro, se sentia forte e confiante o suficiente para dizer ao pequeno Peter que iria protegê-lo. O garoto, naquele momento estava demonstrando que, mesmo tendo perdido seu protetor, não estava mais desamparado e podia, agora, ser também um protetor. Ao propormos, nesse trabalho, que as buscas de Oskar pelos VANI, J. P. | p. 211-226 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 221
Black de Nova York representavam busca por luz em meio à escuridão que havia sido submetido após a morte de seu pai, podemos afirmar que o amadurecimento de Oskar o levou à luz, lhe permitiu voltar à vida, perceber que precisava retomar seu caminho. A medida que recebia o apoio das pessoas que visitava, ainda que não soubesse que era esperado em cada um daqueles endereços, Oskar foi, pouco a pouco, se curando, descobrindo que cada uma daquelas pessoas possuia uma história de vida, uma história na qual cabia alegria, sofrimento, dor, conquistas, derrotas e essa percepção foi um componente fundamental para a sua cura.
E os elementos para a cura de Oskar não estão apenas nas visitas, mas em fatos cotidianos. Oskar, ao falar em uma apresentação para a sua classe no colégio sobre o episódio de Hiroshima, acerca da bomba atômica, mostra um documentário de uma mãe que descreve sua busca pela filha desaparecida. Ao final do documentário, um dos colegas pergunta a Oskar por que ele é tão esquisito, e todos riem dele. Isso acontece na quarta-feira. Na quinta-feira, Oskar se refugia na biblioteca na hora do intervalo e, na sexta-feira, é novamente ridicularizado pelos colegas, que falam sobre garotas e sexo. Oskar cede ao ridículo jogo de palavras de seu colega, e novamente busca refúgio na biblioteca da escola. De acordo com Bauman (1998, p. 62), o alimento da ética individual no dia a dia das pessoas está na busca pela sobrevivência, na consideração racional de fins e meios, na avaliação de ganhos e perdas, no poder, entre diversos outros fatores. E, assim, Oskar mais uma vez, revela uma maturidade que não condiz com sua idade. Como se fosse possível voltar no tempo, a obra de Foer termina com a sequência invertida das fotos tiradas por Richard Drew, batizada de Falling Man. Na sequência original, Drew registra a queda de um homem. Na montagem das páginas finais do livro, tem-se a impressão de o homem
estar voando, subindo em direção ao topo da torre, e não caindo. Esse recurso é compreendido neste trabalho como uma suposição de Oskar de como seria controlar e retrocer o tempo, com frases e histórias ditas do fim para o começo, com a possibilidade de o tempo retroceder e estarem a salvo, como na noite que antecedeu “o pior dos dias”. Extremely Loud & Incredibly Close termina com um protagonista mais maduro, cujas feridas estavam suficientemente cicatrizadas, de modo a permitir a Oskar se lembrar dos últimos momentos vividos com seu pai, na véspera do dia que mudaria sua vida para sempre. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BORGES E O CAMINHO À TRADIÇÃO. APROXIMAÇÃO A PIERRE MENARD, AUTOR DEL QUIJOTE Jorgelina Rivera 1
Resumo: O objetivo da seguinte comunicação é apresentar uma das facetas do projeto literário do escritor argentino Jorge Luis Borges. Neste trabalho nos centraremos na época em que o escritor alcança o zênite da sua produção. Trata-se da década dos quarenta da qual surgiram duas obras fundamentais dele: Ficciones (1944) e El Aleph (1949). Anos depois, ele se encarregaria de dizer no seu ensaio “Kafka y sus precursores” que cada autor cria os seus precursores: a tradição joga um papel decisivo na sua obra. Jorge Luis Borges é uma figura fundamental na literatura argentina e um escritor de consideração nas letras de repercussão mundial. Nos seus artifícios confluem a história, a literatura mundial, as ciências e a mitologia que fazem dos seus textos a representação do cosmopolitismo de seu autor. Assim, com a ideia de que todo autor possui os seus precursores –que são uma seleção pessoal da tradição literária do escritor- Jorge Luis Borges funda uma poética original baseada no diálogo intertextual presente nos seus textos. Nesta pesquisa, vamos a utilizar o exemplo de “Pierre Menard, autor del Quijote” porque acreditamos que o procedimento utilizado na escritura do artifício é um arquétipo ideal da sua poética proposta. No desenvolvimento do texto, ele destrói por completo a ideia de identidade fixa de um texto e do autor, portanto: da escritura original. Com o procedimento que abraça Pierre Menard não existem as escrituras originais e fica afetado o princípio de propriedade sobre uma obra. Portanto, a obra literária converte-se num palimpsesto que, com cada nova leitura, adquire um novo sentido. Borges apela à ideia do dialogismo constante entre escritor e leitor, ambos constroem a obra que é de
IBILCE/UNESP
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todos e também não é de ninguém. Deste modo, a renovação da obra literária é permanente: em cada leitura e em cada escritura. Palavras-chave: Borges, tradição, leitura, Pierre Menard, precursores.
Segundo Schwartz (1993, [s.p.]) existe um denominador comum nas estéticas vanguardistas com que quebram a tradição os argentinos e os brasileiros na segunda década do século XX: o objetivo era acabar ou modificar o modernismo canonizado na América hispano-portuguesa. Essas vanguardas fazem uma reflexão “sobre o caráter de suas próprias culturas” por meio de manifestos, exposições e artigos polêmicos que justificam e cobrem toda a sua criação.
Na Argentina, temos principalmente a figura de Borges e Macedonio Fernandez na revista literária Proa (1922-1925). Jorge Luis Borges é uma figura importante na literatura argentina e um escritor de renome nas letras de repercussão mundial. Sem dúvida alguma, trata-se de um escritor extremamente erudito e isso pode se comprovar por meio das leituras dos seus “artificios” ou “ficciones” como ele preferiu denominar suas produções em prosa, antes de denominá-las “cuentos”. Nesses confluem a história, a literatura mundial, as ciências e a mitologia que fazem dos seus textos o reflexo do cosmopolitismo de seu autor. No Brasil, segundo Schwartz (1993), a figura reinante, no mesmo período, é Oswald de Andrade. Em 1928, publica-se o “Manifesto Antropofágico” que privilegia autores locais. Basicamente trata-se da metáfora do canibalismo como um modo de inserir o homem em determinada cultura, absorvida através de “devoração crítica”. (BITARÃES NETTO, 2004, p.55). Borges volta da Europa para “fundar” Buenos Aires por meio da sua escritura e Oswald de Andrade vai delimitar o vínculo entre tradição e modernidade a partir da antropofagia e da
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sua viagem para a França. Para Borges é crucial a construção da literatura a partir da revisão crítica do cânone que passa, necessariamente, pela leitura e ressignificação desse mesmo cânone, a partir de um trabalho árduo de criação de precursores, tal qual Borges o define no famoso ensaio, “Kafka y sus precursores”: El hecho es que cada escritor crea a sus precursores. Su labor modifica nuestra concepción del pasado, como ha de modificar el futuro. En esta correlación nada importa la identidad o la pluralidad de los hombres. (BORGES, 2011b, p.95, grifos do autor).
Com o decorrer do tempo, o escritor Jorge Luis Borges evolui para uma fase na qual afirma a falta de necessidade de inserir nos seus escritos elementos que demonstrem a cor local. Ana María Barrenechea em seu artigo “Borges y el lenguaje” afirma que houve uma mudança significativa na obra dele: En Fervor de Buenos Aires (1923) e Inquisiciones (1925), pocas formas locales; en Luna de Enfrente (1925)[…] auge de lo criollo. Discusión (1932) inicia ya la serie con predominio de lo universal que se manifiesta en un lenguaje cada vez más despojado de particularismos[…]. En los últimos tiempos, Borges, crítico de sí mismo, ha denunciado el exceso de color local,[…], confesando que fracasó al buscar en lo externo el sabor de la patria (BARRENECHEA, 1953 apud BASTOS 1974, p.214, 215)
No primeiro conto que Borges escreve, “Hombre de la esquina rosada” (1933), ele inclui a temática “del criollo argentino”. Entretanto, “El acercamiento a Almotásim” (1935), “Pierre Menard, autor del Quijote” (1939) e sua AUTOR | p. 227-239 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 229
primeira coleção de contos El jardín de los senderos que se bifurcan (1941) estão já sob a influência de preocupações metafísicas. Contudo, o tema do argentino não desaparece completamente e volta a aparecer em vários de seus escritos. A sua narrativa então se apoia no genérico e essencial deixando de lado o particular ou acidental. Em um ensaio que publica em Discusión (1932) “El escritor argentino y la tradición” (1955), Borges critica a ideia em voga que pressupunha que se a literatura argentina quisesse ter sucesso deveria abundar em elementos diferenciais argentinos e em cor local. Para reforçar seu argumento, escreve: “Si nos preguntan qué libro es más argentino, el Martín Fierro o los sonetos de La urna de Enrique Banchs, no hay ninguna razón para decir que es más argentino el primero” (BORGES, 2011a, p.552). O que queria dizer Borges nessa citação é que não era preciso adornar os textos com descrições de cor local ou reproduções de fala populares para que fossem mais ou menos argentinos. Nos poemas de Banchs (1911), por exemplo, encontramos aquilo que é considerado argentino precisamente na dificuldade que temos para as confidências e não necessariamente na descrição do país. Para compreender melhor, podemos convocar as palavras de Borges com respeito ao tema argentino:
Durante muchos años, en libros ahora felizmente olvidados, traté de redactar el sabor, la esencia de los barrios extremos de Buenos Aires; naturalmente abundé en palabras locales, no prescindí de palabras como cuchilleros, milongas, tapia, y otras, y escribí así aquellos olvidables y olvidados libros; luego, hará un año, escribí una historia que se llama “La muerte y la brújula” que es una suerte de pesadilla, una pesadilla en que figuran elementos de Buenos Aires deformados por el horror de la pesadilla; pienso allí en el Paseo Colón y lo llamo Rue de Toulon, pienso en las quintas de Adrogué
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y las llamo Triste-le-Roy; publicada esa historia, mis amigos me dijeron que al fin habían encontrado en lo que yo escribía el sabor de las afueras de Buenos Aires. Precisamente porque no me había propuesto encontrar ese sabor, porque me había abandonado al sueño, pude lograr, al cabo de tantos años, lo que antes busqué en vano (BORGES, 2011a, p.553, 554)
Dessa forma, Borges deu expressão, em vários dos seus contos, o que significa ser argentino a partir de um plano em que se instala como narrador, como ele bem diz: “lo genérico puede ser más intenso que lo concreto” (BORGES, 2011a, p. 644). O crítico literário Harold Bloom afirma que no ensaio “Kafka y sus precursores” , de apenas duas páginas e meia, tornou-se crucial especialmente na parte em que Borges afirma “El hecho es que cada escritor crea sus precursores”. Algumas linhas adiante, conclui com o ensino que o poeta argentino legou para todos os escritores: “fue Borges quien nos enseñó que Shakespeare era todos los hombres y ninguno, lo cual significa que él es el laberinto vivo de la literatura” (BLOOM, 2005)2, ou seja, percebem-se aí a transcendência de fronteiras e a busca do universal sem que o particular seja suprimido, antes nota-se que este atua sub-repticiamente, como foco de tensões – labirintos. Dessa forma, certos autores, segundo seu legado, estarão nos textos dos seus predecessores. “É nessa despersonalização que a arte pode aproximar-se da condição da ciência.” (ELIOT, 1932 apud PERRONE-MOISÉS, 2003, p.55) Anos depois, o escritor argentino no seu livro Otras Inquisiciones (1968) apresenta um capítulo “Nuestro pobre individualismo” e determina, por meio deste, algumas características desse “argentinismo” fundamental: “El mundo, para el europeo, es um cosmos en el que cada cual íntimamente corresponde a la función que ejerce; para el argentino, es um
BLOOM, 2005 apud <http://edant.clarin.com/suplementos/cultura/2005/07/16/u-1014726.htm> 2
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caos.” (BORGES, 2011b, p.40). Se prestarmos atenção à obra de Borges, o caos e os mundos labirínticos são parte da sua cosmovisão nas suas ficções. Nesse ensaio, ele afirma que o argentino não se identifica com o Estado a diferença dos países europeus. Consecutivamente, Borges já na década de 1930 define-se como um não-nacionalista, em pleno “boom do nacionalismo”. Seu pensamento é ‘modestamente’ argentino, segundo suas palavras, em resposta ao crítico Nestor Ibarra (BASTOS, 1974). Borges, então, não discute a consignação de uma identidade para a Argentina, mas tenta afirmar a existência de uma identidade híbrida e rica, indo mais além do local até abranger o universal. Nesse sentido, podemos aproximar grandemente as propostas de Borges daquelas apresentadas por Machado de Assis no visionário texto, “Notícia Atual da Literatura Brasileira: O instinto de nacionalidade”, publicado em 1873. Nesse texto, Machado afirma que um escritor pode ser um homem de seu tempo e de seu país ainda que trate de temas distantes no tempo e no espaço. Empreendendo uma elegante crítica aos românticos, que valorizavam a floresta e a natureza exuberante, Machado destaca que estas talvez sejam cantadas mais porque a visão do europeu sobre o Brasil recai sobre elas do que propriamente por serem uma visão do Brasil pelos brasileiros: [...] e perguntarei mais se o Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês.[...]. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. (ASSIS, 1873, disponível em: http://www.ufrgs.br/cdrom/ assis/index.htm>)
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Esse deslocamento necessário para que haja a produção de informação estética original, ou ainda, o sentimento íntimo de nacionalismo, é mais contundente se o situarmos em termos da própria história da América Latina, que precisou se constituir a partir do discurso do Outro, do europeu. Para Octavio Paz, é necessário que essa literatura desenraizada invente-se a si mesma, ao mesmo tempo que encarne um desejo simbólico de constituição identitária. Diz Octavio Paz:
[...] a literatura hispano-americana [por extensão a brasileira] é uma empresa da imaginação. Propomonos a inventar a nossa própria realidade. [...] inventar a realidade ou resgatá-la? Ambas as coisas. [...] Desenraizada e cosmopolita, a literatura hispano-americana é regresso e procura de uma tradição. A o procurá-la a inventa. Mas a invenção e a descoberta não são os termos que convêm as suas criações mais puras. Vontade de encarnação. Literatura de Fundação (Paz, 1996, p.131)
Paralelamente,em Os Filhos do barro, Paz assinala que desde a sua origem a poesia moderna tem sido uma reação frente ou contra a modernidade: a Ilustração, a razão crítica, o liberalismo, o positivismo e o marxismo. Na sua disputa com o racionalismo moderno, os poetas redescobrem uma tradição tão antiga como o próprio homem que foi transmitida pelos neo-platonistas e renascentistas dos séculos XVI e XVII, atravessa o século XVIII, prossegue no XIX e chega aos nossos dias. Quer dizer, os poetas compreendem a analogia como um sistema de correspondências e a linguagem como o dublê do universo. Seguindo a mesma linha, para elucidar os conceitos de analogia e ironia, cremos conveniente adicionar as palavras de Cripa Ivan: AUTOR | p. 227-239 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 233
Na linguagem da poesia moderna, o tempo linear se expressa pela ironia. No interior do poema, o conflito entre o tempo linear da modernidade e as outras temporalidades cíclicas, se realiza a partir do embate entre ironia e analogia. A ironia expressa a consciência da historicidade, do tempo irreversível e a analogia busca uma reconciliação dos contrários. Os dos conceitos combinados serão aplicados no trabalho de interpretação da historia literária, cultural e política de América Latina.3
Por sua parte, Borges se relaciona diretamente com o assunto desse trabalho já que no conto escolhido –ou artificio, como preferia chamar o escritor argentino aos seus escritos breves- ele destrói por completo a ideia de identidade fixa de um texto e do autor, portanto: da escritura original. Com o procedimento que abraça Pierre Menard não existem as escrituras originais e fica afetado o principio de propriedade sobre uma obra. A ideia central do relato é a historia de um escuro escritor francês cujo maior logro foi ter escrito no século XX os capítulos noveno e trigésimo oitavo da primeira parte de El Quijote de Cervantes. Os textos são idênticos em cada palavra inclusive na pontuação aos escritos originalmente pelo escritor espanhol. No entanto, não se trata de um plagio. No seu começo como escritor, Pierre Menard queria ser como Cervantes: “conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear contra o turco, esquecer a história da Europa entre os anos 1602 e 1918” (p. 47)4. Em síntese, ser Cervantes. Porém, descartou a ideia e deixou uma carta ao crítico - o narrador do artificio-, expondo os motivos para escrever a sua obra. Inclusive, o mesmo crítico considerou superior a versão
CRIPA, Ivan de Assis, “Os conceitos de analogia e ironia e a crítica de Octavio Paz”, Anais do Seta, número 1, 2007. 4 “Conocer bien el español, recuperar la fé católica, guerrear contra los moros o contra el turco, olvidar la historia de Europa entre los años de 1602 y 1918” (As traduções do conto sãopróprias) 3
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de Menard a da Cervantes, ele disse: “O texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente idênticos, mas o segundo é quase infinitamente mais rico.”5 (p. 52) Encontramos o processo enunciado através de Pierre Menard: o sentido como um efeito frágil relacionado diretamente com a enunciação: só emerge na atividade de escrever-ler, o realmente significativo é o contexto que a demarca. Como diz Beatriz Sarlo em Borges, un escritor en las orillas: “Não existe uma possibilidade de que um texto seja idêntico ao seu doble, não tem nenhum espelho que ofereça uma transcrição exata. Todos os textos são absolutamente originais.” 6 Pois bem, essa ideia aparece ironizada no conto, vemos retratada a ideia do processo da escritura levada ao limite do absurdo e inexecutável. Nesse caminhar a palavra poética se vê irrompida pela ironia que quebra, neste caso, com a lei da criação de um texto:
É uma revelação cotejar o Don Quijote de Menard com o de Cervantes. Este, por exemplo, escreveu (Don Quijote, primeira parte, noveno capítulo): ... a verdade, cuja mãe é a historia, emula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência daquilo que está por vir.
Escrita no século dezessete, composta pelo “ingenio lego” Cervantes, essa enumeração é um mero elogio retórico da história. Menard, no entanto, escreve:
... a verdade, cuja mãe é a historia, emula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência daquilo que está por vir. (p. 52 e 53)7
5 “El texto de Cervantes y el de Menard son verbalmente idénticos, pero el segundo es casi infinitamente más rico” 6 SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en las orillas. Buenos Aires: Ariel, 1995, p. 28. O original é o seguinte: No hay modo de que un texto sea idéntico a su doble, no hay ningún espejo que ofrezca una transcripción exacta. Todos los textos son absolutamente originales” 7 Es una revelación cotejar el Don Quijote de Menard con el de Cervantes. Éste,
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Como fazer um texto idêntico ao anterior e afirmar, em um tom que quase ensaístico, (e, evidentemente, irónico) que é superior? Deliberadamente, Borges apela à ideia do diálogo permanente entre escritor e leitor, ambos formam O Espirito (ideia de P. Valery) que prossegue escrevendo a Obra com maiúsculo que pertence a todos e também não é de ninguém. Esse escrito se renova constantemente, em cada leitura e em cada escritura. E ainda, é preciso voltar a definição de Octavio Paz: “O poema é uma virtualidade transitória que se atualiza na história, na leitura. Não tem poema em si, senão em mim ou em ti” (p. 202). Consideramos viável associar essa frase com o reconhecido texto de Roland Barthes “Da obra ao texto”. O poema como o não-lugar no qual converge o leitor e a obra, obra que não se configura como texto senão até a aparição do leitor. Podemos lembrar-nos das múltiplas metáforas que utilizava Borges para exemplificar isto: a literatura como aquela metáfora que continua recreando-se e continua atualizando-se8. Por isso Paz diz: “Cada leitura é histórica e cada uma nega a historia. A estrutura é ahistórica: o texto é historia, está datado.” A leitura é um fato da realidade, a ratificação da realidade textual se da napratica da leitura; a estrutura simbólica é uma reprodução de metáforas que tem sido trabalhadas desde o surgimento da linguagem. Além disso, é importante mencionar que “Pierre Menard, autor del Quijote” contém algumas ideias formuladas em ensaios anteriores. Por exemplo, em “La fruición literária”
por ejemplo, escribió (Don Quijote, primera parte, noveno capítulo): ... la verdad, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir. Redactada en el siglo diecisiete, redactada por el “ingenio lego” Cervantes, esa enumeración es un mero elogio retórico de la historia. Menard, en cambio, escribe: ... la verdad, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir. 8 BORGES, J. L. Obras completas. Buenos Aires: Emecé Editores, 2005, p. 231. 236 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
(1928) Borges analisa uma metáfora para chegar à conclusão de que todo leitor se posiciona numa perspectiva acondicionada: antes de julgar, todo leitor pre-julga. Linhas depois, o ensaio se concentra na seguinte ideia: qualquer tipo de ponderação é arbitraria e a crítica é uma atividade tão relativa quanto a ficção ou poesia. Esta afirmação nos faz pensar na ideia na qual se baseou o escritor argentino para escrever o artificio mencionado. Referências bibliográficas
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Das camadas da memória: a construção narrativa de Memórias de Lázaro (1952), de Adonias Filho Juliana S. DIAS1
Resumo: Dos contornos primitivos da natureza do território sul-baiano do cacau ao passado (que se faz presente) do protagonista Alexandre, a obra adoniana Memórias de Lázaro (1952) tem a memória como marca maior da narrativa. O espaço aciona aquilo que era do passado, a ligação entre os tempos marca os galopes da memória e os sentidos operam de forma a desvelar camadas e mais camadas de uma narrativa em forma de confissão. Uma confissão que precisa ser feita. Uma salvação? A partir deste e de outros questionamentos, o presente trabalho tem por objetivo mostrar uma visão acerca da construção memorialística que orienta a narrativa adoniana em questão partindo do trabalho com a trama da rememoração de Alexandre até a análise do conteúdo específico de suas memórias. Memórias essas formadas por elementos que extrapolam a moldura da vida: para além de sua memória, Alexandre tem uma espécie de sina a “cumprir”. Além desse movimento ao encontro da memória, daremos especial atenção também ao posicionamento da obra do autor baiano na construção da forma do romance regionalista brasileiro – algo como que a memória dessa construção – não somente em relação a essa forma em si, mas também no que tange às peculiaridades da temática na qual seu trabalho como um todo se assenta, diga-se, pois, a violência. Palavras-Chave: memória, espaço, violência, salvação.
1 (Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas – IBILCE/UNESP Câmpus de São José do Rio Preto - julianasilvadias@gmail.com) Bolsista CAPES/ CNPq
A presença de algumas características que marcam bem o regionalismo brasileiro, mais especificamente, as cores fortes do nordeste brasileiro, ajuda a compor o cenário de Memórias de Lázaro (1952). Dentre os aspectos dessa construção trabalhados pelo autor, destacamos três: primeiro, o cenário baiano, território que foi amplamente acionado e ficcionalizado por Jorge Amado; segundo, o cântico universal na voz da personagem regional, traço muito presente na obra de João Guimarães Rosa; e, terceiro, o “drama humano” ̶ que acentua “os laços telúricos entre o homem e a terra” ̶ , problemática trabalhada por Euclides da Cunha (SILVERMAN, 1978, p. 11). Nas palavras de Cyro de Mattos: A experiência histórica de caráter épico decorrente da implantação da lavra cacaueira no sul da Bahia é recriada em nossa ficção por Jorge Amado como um cancioneiro lírico, dramático e social, mas é com Adonias Filho que essa saga de sangue e cobiça alcança uma dimensão mítica, aparecendo as criaturas que habitam esse território de força fatalista carregadas de penetração psicológica, em nervos e sangue sob a força cega do destino, vivendo os limites de trágica atmosfera (MATTOS, 1991, p. 6).
É assim que a substância social se torna substância textual, quando o que é da história passa, via representação, para a forma de narrar, para a narrativa. O que se diz, na verdade, é que a obra adoniana como um todo é marcada pelo duplo caráter naturalista e regionalista (Cf. SILVERMAN, 1978). Esse tom naturalista em si nos fica evidente em Memórias de Lázaro (1952) principalmente pelo forte traço instintivo, espécie de guia das personagens, presente em toda a narrativa. Mais especificamente, é o instinto de sobrevivência que leva as personagens incessante e recorrentemente a optarem pelo ataque como meio de defesa, salientando a marca da violência.
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A narrativa que compõe essas Memórias gira em torno de Alexandre, narrador e personagem principal da história, que cresce sem os pais no Vale do Ouro, mas vive sob a tutela de Jerônimo, amigo de seu pai. Já adulto, Alexandre estabelece relação com Rosália. Decorridas algumas ações trágicas que envolvem Alexandre e a família de Rosália, o protagonista, para poder se proteger da justiça dos moradores do Vale, acolhe os conselhos de Jerônimo e afasta-se. Longe da terra natal, ele entra em contato com novas paisagens e gentes, chega a viver em condições mais amenas do que as em que viveu no Vale, mas presencia, também nesses outros lugares, o desenrolar de alguns acontecimentos funestos. Sob efeito do calor desses acontecimentos, Alexandre volta para o vale. Quando volta, passa breve tempo com Jerônimo, observa o que sobrou de sua antiga morada, recorda toda a sua trajetória e morre junto ao lodo do canal. O recordar dessa trajetória, essa tessitura narrativa promovida pela rememoração é, na verdade, a grande história adoniana, o veio da narrativa. O que precede e o que é posposto a esse trabalho com a memória empreendido por Alexandre, uma espécie de moldura da obra, configuram-se, respectivamente, como espécie de mote e desfecho dessa grande construção memorialística. Na narrativa, o mote é uma construção baseada em espécie de apresentação da paisagem do Vale que marca algo como que entrelaçamento deste território com a história de Alexandre, e o desfecho se estabelece como uma espécie de recolha do protagonista, um fechar-se em concha cuja casca seria a própria paisagem. A morte de Alexandre. Em linhas gerais, é possível dizermos que o recordar de Alexandre feito em uma espécie de estrutura confessional abriga a narrativa e marca o que parece ser uma consciência pungente, linha mestra da própria narrativa em memória, DIAS, J. S. | p. 241-251 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 243
visto que organiza os pedaços de memória em torno da pessoa de Alexandre. Já o conteúdo da confissão de Alexandre, a sua memória em si, cuja origem se reporta não somente a imagens oriundas da própria história narrada, mas também a referências que ultrapassam as margens e o tempo da história central, formam a história de Alexandre, algo como que um mosaico dessa representação da memória. No Vale do Ouro, espaço no qual acontecem a maioria das ações da narrativa, o aspecto selvagem e primitivo ímpares são presenças incessantemente consolidadas em cada nova consideração feita por Alexandre em seu relato-narrativa, como podemos observar logo no prólogo:
Aqui, embora as môças cantem na colheita e possam os rapazes domar os potros entre gritos, negra é a alma e bruto o coração. Não que alucine o mêdo de ser destruído pelo semelhante, a necessidade da fôrça física, a assistência para não ser devorado na luta impiedosa. Os fracos, aqui, morrem no seio das mães. Os enfermos se isolam, apodrecem, são naturalmente eliminados. Restam as feras que se apaixonam com ódio, insensíveis e rudes. Mas, agarrados à crosta do vale como prisioneiros, como animais enjaulados numa planície sem céu, refletem na angústia do sangue o pânico da obscuridade e da solidão (ADONIAS FILHO, 1970, p. 5).
Dessa forma, a cor naturalista na obra, marcada, sobretudo, nos atos violentos praticados pelas personagens, vai um tanto além do que pode ser visto por meio do comportamento humano, pois a composição narrativa adoniana não credita somente ao, digamos, “âmago” dos moradores essa disposição para a prática de atos bárbaros. O primitividade do território, em certa medida, propicia que a violência se manifeste. A trajetória de Gemar Quinto - leproso, de origem não
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precisamente determinada na narrativa – seria um exemplo de como este espaço atua em prol da violência na narrativa. Este, o Vale do Ouro, condenava Gemar Quinto e, em certo sentido, “tramava”, pouco a pouco, o seu fim dadas as espécies de indicações reveladas pelos apontamentos feitos por Alexandre na tessitura narrativa que paulatinamente marcam a rejeição que o Vale como um todo, moradores e espaço, tem pelo doente:
Bravio em sua prisão, por cima o céu como uma sinistra tampa de chumbo, embaixo a terra insensível e calcinada, o vento eterno correndo como um fantasma entre o céu e a terra, o vale não tenta sofrear em ninguém o destino já tão humilde e miserável. Repele Gemar Quinto porque o leproso, podre e inchado, pode sacrificá-lo - mas tolera os que enlouquecem e perdoa os que roubam. Não ignora que todos nascemos para uma espécie de vida e uma certa morte. Amedrontado, é um monstro. Sem medo, é tranquilo como o seu canal de lodo (ADONIAS FILHO, 1970, p. 36-37).
Se o instinto de sobrevivência marca o que há de natural e primitivo, importante dizer que o espaço que açoita seus moradores também é aquele que oferece conforto aos seus, reiterando partes do excerto anteriormente citado, “Sem medo, é tranquilo como o seu canal de lodo (ADONIAS FILHO, 1970, p. 37)”. É como se, por vezes, as características do Vale se conciliassem aos estados d’alma dos que sobre seu chão vivem “[Rosália] Espancada pelos irmãos, esbofeteada pelo pai - mas como eu, ouvindo o vento à noite e contemplando pelas manhãs a estrada sempre deitada como uma grande nódoa” (ADONIAS FILHO, 1970, p. 57). Dada certa imobilidade do território e a repetição dos movimentos naturais, como o vento, sempre presente, para os moradores do Vale, o espaço é algo no que se pode agarrar, uma estabilidade em meio a intemperança que também é uma constante nessa ficção. DIAS, J. S. | p. 241-251 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 245
Daí entendermos como a substância do espaço se agarra tão fortemente a substância das memórias de Alexandre. Como é possível observarmos, ele, o espaço, é, à seu modo, espécie de força pulsante na narrativa cujo poder de ação não é passível de ser medido ou entendido. Imperscrutável, ele é o ambiente propício para o aparecimento de memórias que, paradoxalmente, são imanentes ao Vale e transcendem-no ao mesmo tempo, visto que na trama adoniana, segundo Brito: A paisagem não é mero décor, recurso com que o narrador ganha tempo para o fluir da história, mas antes realçada componente da própria narrativa, e mais até, é elemento que funde seres e coisas, e com elas forma sólida unidade, uma peça indestrutível e coesa (BRITO, 1970).
A interação entre homem e espaço, torna o último como que personagem atuante, em virtude, talvez, do que Cyro de Matos (1991) denomina de território de “força fatalista”. Nas palavras de Alexandre: “Mas, reconhecendo a estrada, sobre ela avançando, não consigo evitar o domínio que o vale exerce sobre todos” (ADONIAS FILHO, 1970, p. 11). É, pois, deste espaço que brotam as memórias do protagonista, uma narrativa construída em uma noite que nos apresenta rememoração de Alexandre. É assim que conhecemos o seu passado: em dado espaço e tempo, as ruínas da antiga morada, as indagações e as considerações feitas pelo personagem protagonista são espécies de galopes da narrativa. Há, ainda, elementos naturais e primitivos capazes de concatenar tempos. Somos, pois, (desesperadamente) convidados a observar e acompanhar a trama da memória tecida por Alexandre. A camada que envolve toda a trama, espécie de moldura do texto, é tecida por um narrador que parece, em um primeiro
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momento, estar além da própria narrativa. Mais do que apresentar toda a sua história, o tom inicial é o da evocação. O lugar do qual narra o narrador, privilegiando-se, dessa forma, de espécie de visão panorâmica para a elaboração do relato a ser construído, parece ser algum que esteja por entre e acima das paisagens sul-baianas.
Logo após, o narrador aproxima-se de seu ouvinte. É, agora, o momento em que ele ganha um nome, torna-se, de fato e em plenitude, Alexandre e pede licença para narrar suas memórias. Sabemos que a necessidade febril de ter que voltar ao vale, somada às feridas que se abriram durante esse trajeto fazem-no buscar a casa de Jerônimo, estabelecer-se, seja lá de que forma ou em qual estado, novamente no Vale. Entretanto, deste momento da narrativa em diante, é do casebre construído para morar com Rosália que partem as memórias de Alexandre e tem início o desvelar das memórias desse protagonista. É do contato com o espaço, portanto, que a memória é ativada. Vento e estrada, por envolver a todos no Vale, revelam um traço coletivo marcadamente presente na obra, mas é presença do filho de Abílio com a casa pobre que surge algo como que uma coletividade às avessas, posto que é na solidão de um contato com as paredes e com o chão do local que toda a narrativa é tecida. Coletividade, posto que os escombros da casa de Alexandre acolhem a todos. Dessas terras e de outras terras, deste mundo e de outros tempos. Mais precisamente, é a angústia de ver seu antigo lar destruído que desencadeia um processo de busca incessante pelas memórias: “No entanto, mesmo que o sangue corra normal entre as veias, ainda que se anule a violência de todos os instintos, juro que a minha fisionomia, neste instante, não remove o seu desespero” (ADONIAS FILHO, 1970, p. 13). O relato é espécie de consequência do choque sofrido por Alexandre ao se encontrar com seus escombros. DIAS, J. S. | p. 241-251 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 247
Estabelecido o contato, que, em um primeiro momento, parece ser com os que não mais sobre a terra pisam e, logo em seguida, parece ser com aqueles que se disporiam a sentir com ele o drama humano, o filho de Abílio entra em uma espécie de estado de transe irrefreável guiado pela memória. O tom narrativo daqui em diante é o da confissão:
Antes que venha a ouvir a voz de Rosália, porém, e rever sua órbitas dançando na escuridão, antes que essas paredes possam cair e que a própria noite se desfaça, penso em fugir. Precipitar-me, mais uma vez, sem destino. Escapar, e escapar como um homem que vem perdendo sempre, sem repouso, sem abrigo, irremediàvelmente derrotado e batido. Não fosse essa última fascinação - a mim próprio escavando, como se buscasse um tesouro oculto, nas cinzas dêste incêndio -, não fosse o desejo estúpido de apertar o passado entre os dedos, não esperaria o sol da manhã. Inexplicável imposição, a que me domina. Nervos, consciência, carne, não são pedaços mortos, escravos porém de uma confissão que não devia ser feita (ADONIAS FILHO, 1970, p. 14, grifo nosso).
Em seus últimos momentos, é como se Alexandre apreendesse o que antes lhe era indizível. Ele reúne condições e qualidades realmente capazes de o fazerem chegar a uma espécie de transcendência possível, pois o Alexandre narrador parece estar, não acima, mais além do Alexandre personagem, até o momento de encontro de ambos no fim da narrativa. A fusão se dá aos poucos, de leve. É por meio de seu relato que podemos observar que Alexandre galga degraus importantes ao longo da vida que o tornam apto a alcançar e desvelar a memória: a da própria alma e a de seus antepassados. É assim que o passado do pai se torna sua sina. O afastamento de Alexandre do pai deu-se quando o filho era ainda muito pequeno. Criado por Jerônimo, este fica encarregado não
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somente da sobrevivência do menino, sua incumbência é, ainda, a de ajudar Alexandre a buscar suas origens, construir aquelas que serão as suas memórias familiares. Contudo, a sombra que os acontecimentos de outrora projetam sobre a figura de Alexandre ultrapassa os limites daquilo que poderia ser racionalizado. Menos do que simples legado, a sua história familiar pesa-lhe como verdadeira sina a amputarlhe a possibilidade de se ter um destino ameno, tem a força daquilo que Sônia Brayner chama de “fatum inexorável, na permanência de um passado que lhes domina inteiramente o presente e bloqueia o futuro” (BRAYNER, 1976, p. 9). É assim que, de alguma forma, parece-nos, sim, ser a voz de seu próprio sangue que se sobressai a qualquer outra que poderia vir a surgir. Alexandre, aparentemente, não vive uma vida, mas, sim, cumpre uma sina.
Mas a memória que, de certa forma, o “condena”, também é a que o salva. Observarmos, assim, que, de uma forma ou de outra, é a memória de Alexandre que, trabalhada até o último de suas forças, promove pequenos encontros com o pai, via palavras de Jerônimo, até a promoção de um último e derradeiro encontro. É assim que a última imagem que Alexandre tem do pai, a face de Abílio morto, é revisitada e retrabalhada ao longo da narrativa. Mas no fim, a imagem do pai vivo é que surge para buscá-lo e acolhe-lo. Essa, sim, é a imagem clara da salvação diante, ao menos, da figura paterna: “Agora, ùnicamente o maravilhoso caminho, aquêle caminho que se não pode comparar à estrada do vale, mas o caminho que se abre, aos meus olhos, pela mão de Abílio, meu pai. Vejo-o, na frente, a guiar-me. Em volta, o que resta é negro” (ADONIAS FILHO, 1970, p. 161). Enfim, observamos que a narrativa de Adonias Filho vai muito além do espaço ficcionalizado quando se estabelece como um escritor “que conhece a memória de sua gente, sabe DIAS, J. S. | p. 241-251 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 249
penetrá-la como ficcionista e reconstituí-la como historiador da condição humana, em suas raízes místicas e lendárias” (MATTOS, 1991, p. 7). É assim que a memória, na narrativa, não só estabelece relações entre os tempos e formam uma singular composição, mas também revela a tentativa de libertação do passado. Mesmo estando entre as delimitações de uma construção em ruínas, Alexandre vai além das paredes antes construídas e coloca, ali, tudo o que foi para ele o seu mundo pela via da memória. Entendemos que, para Alexandre, ter concluído sua narrativa é ter alcançado sua salvação. Referências bibliográficas
ADONIAS FILHO. Memórias de Lázaro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1970. BRAYNER, S. Tempo e destino na ficção de Adonias Filho. Suplemento Literário. Minas Gerais: 11 de setembro de 1976, p. 9.
BRITO, M. da S. Orelhas In: FILHO, Adonias. Memórias de Lázaro. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1970.
FISHER, A. O Largo da Palma na obra de Adonias Filho. Suplemento Literário. n.858. Minas Gerais: 12 de março de 1983. HALBWACHS, M. A memória coletiva. Tradução de B. Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.
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MATTOS, C. de. O chão de cacau: Adonias Filho. Suplemento Literário. n. 1.160. Minas Gerais: 2 de fevereiro de 1991, p. 6-7. SILVERMAN, M. Adonias Filho e o romance naturalistaregionalista. Trad. João Guilherme Linke. In: Moderna ficção brasileira: ensaios. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1978, p. 9-18.
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AS INTERMITÊNCIAS PROUSTIANAS ADAPTADAS PARA O BALÉ: UM ESTUDO DA TRANSPOSIÇÃO MIDIÁTICA DO ROMANCE EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO AO DRAMA Karina ESPURIO1
Resumo: Este trabalho analisa a adaptação realizada pelo coreografo francês Roland Petit do romance Em busca do tempo perdido de Marcel Proust para a forma dramática do balé. Para tanto, o presente artigo baseou-se nas teorias da adaptação de Linda Hutcheon (2011) e nos conceitos de drama de Martin Esslin (1978) para mostrar como o coreógrafo cria suspense e tensão a partir da poética gestual e da ação que ela constrói. Palavras-chave: Roland Petit; Marcel Proust; adaptação.
Sobre Em busca do tempo perdido Marcel Proust com sua obra monumental tenta alcançar a verdade da alma por meio da arte narrativa. Por isso a tentativa incessante de se tornar escritor. Seu narradorprotagonista usa flutuações da memória afetiva para passear no passado e por meio de “agentes”, como a madeleine ou os pequenos pilriteiros de Combray, por exemplo, vem à tona eventos importantes de sua vida por intermédio da memória involuntária. 1
UNESP/IBILCE, São José do Rio Preto, SP. E-mail: karinaespurio@hotmail.com
Na narração proustiana também se misturam lugares conhecidos do autor, lembranças de sua infância, reflexões sobre a arte, sobre o amor e os ciúmes e também questionamentos sobre a existência do tempo, herança, como alguns críticos dizem, da convivência com Henri Bergson, um estudioso do tempo filosófico. Além disso, Proust esboça um olhar impiedoso sobre a burguesia e a aristocracia da Belle Époque por meio da análise de um universo povoado por personagens-modelo, ao mesmo tempo imaginários e reais, (re)criados pelo escritor, misturando caracteres de várias personalidades amalgamadas para criar somente uma. Romance moderno, a Recherche, doravante chamado, é “voltado para a realidade verdadeira, integral e não teatral”, como diz Erich Auerbach em “Proust, o romance do tempo perdido”, ensaio publicado no livro Ensaios de literatura ocidental (2007, p. 335). Sete volumes publicados no Brasil, “Nilo da linguagem” nas palavras de Walter Benjamin (2012, p. 37), a obra proustiana parece ter sido feita por um romancista experiente e consciente da intenção de captar a atenção do público. Mas Marcel Proust não tinha experiência e tão pouco tinha estratégias para prender o interesse de quem se dispusesse a lê-lo.
A narrativa de Marcel Proust é simples, voltada para sua realidade interior e por acontecimentos de uma vida “rememorada por quem a viveu” (BENJAMIN, 2012, p. 38), não sendo, assim, sua obra mais uma autobiografia como dizem alguns teóricos. A mistura de fatos reais com reminiscências e criações narrativas perfaz um novo caminho do gênero romance na literatura mundial, dando atenção ao fluxo temporal sob uma forma mais introspectiva, cruzando rememoração e envelhecimento, a vida interior e a exterior, destacando os acontecimentos mais frívolos do dia-a-dia, desde um passeio de charrete pelos Campos Elísios até
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mesmo a mais delineada descrição de um encontro fortuito em um salão mundano. Sobre a adaptação
Como leitores, construímos imagens pessoais sobre construtos literários. Obras como a Recherche são consideradas canônicas, pois pertencem a um seleto grupo de narrativas que gozam de prestígio no panteão da literatura universal. Quando uma obra canônica é adaptada para um suporte diverso do de sua origem, muitas vezes essa adaptação subtrai de sua “zona de conforto” o leitor habituado a ela e o coloca em outro patamar relacionado à interpretação dessa mesma obra. O indivíduo que entra em contato com o produto de uma adaptação não pode vê-la como antes via o texto fonte. A relação entre os dois objetos é nova, pois houve a criação de algo autônomo, não vinculado ao original diretamente, mesmo sendo derivativo dele. Essa criação muitas vezes é considerada uma cópia, e, por conseguinte, tem uma conotação de inferioridade. Um romance como o de Marcel Proust, por ser canônico, esbarra em alguns obstáculos para que sua adaptação seja feita. A aceitação de sua “cópia” é uma delas, mas a ausência de momentos-chave, de suspense no desenrolar das tramas paralelas pode constituir um empecilho ainda maior em uma adaptação para uma estrutura dramática como um filme ou uma peça de teatro, pois cada uma delas tem características intrínsecas que demandam adequações específicas. Segundo Martin Esslin (1978), a transmissão de emoções, de sabedoria, de poesia e o divertimento são elementos primordiais para captar a atenção de uma plateia e mantê-la por toda a duração de um espetáculo. Na década de 1970, o coreógrafo francês Roland Petit (1924-2011) aventurou-se a fazer uma adaptação da obra ESPURIO, K. | p. 253-264 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 255
de Marcel Proust para o balé. A coreografia de Proust ou les Intermittences du Cœur foi concebida em 1974 e sua estreia aconteceu na Ópera de Monte-Carlo com o Ballet de Marseille, companhia fundada pelo próprio Roland Petit dois anos antes. Habituado a fazer adaptações de clássicos da literatura mundial para tal tecido dramático, Petit transpôs das páginas para o palco Notre Dame de Paris de Victor Hugo e Cyrano de Bergerac de Edmond Rostand, por exemplo. O coreógrafo francês destacava-se por seu preciosismo em relação ao todo teatral, pois dava atenção aos mínimos detalhes de todos os elementos relativos à performance: da coreografia à iluminação; da música aos figurinos, tudo era minuciosamente pesquisado antes de ser posto em um espetáculo. Ainda nos anos 1970, em excursão pelos Estados Unidos, contrariamente à recepção francesa, Proust ou les Intermittences du Cœur obteve sucesso de público e crítica. Em 2007, o espetáculo voltou a ser encenado e entrou para o repertório da Ópera Nacional de Paris e, desde então, tornouse um dos seus clássicos. Sobre o balé como forma dramática
O balé, como uma encenação teatral, um filme, uma série televisiva, é um tipo de drama. E como todo drama, ele é uma arte social, já que é coletiva. Ainda de acordo com Esslin, (1978), para uma efetiva realização do drama deve haver uma colaboração coletiva entre componentes da técnica (sonoplastas, iluminadores, maquinistas, por exemplo), atores e diretor, além, claro, da plateia. Não existe drama sem comunicação dos que dele participam, pois não é possível a existência do drama de forma isolada. O movimento de qualquer forma dramática deve ser muito bem articulado (ibid., p. 55). Todos os elementos que compõem 256 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
o drama adquirem significado dentro de uma “moldura”. No caso especifico do balé, essa moldura é o palco, onde se passa todo o espetáculo. Ela abre a possibilidade do olhar, de o espectador ter sua visão ampliada e poder acompanhar o espetáculo de onde seu olhar o quiser. O palco permite que isso aconteça, ao contrário dos meios de comunicação de massa, nos quais nosso olhar é direcionado pela lente da câmera do diretor: ele é quem escolhe a direção para onde devemos olhar e qual ação é mais importante a seguir.
O drama, forma de arte complexa, tem como tarefa básica prender a atenção do espectador pelo tempo necessário do espetáculo. Para isso, deve criar variações de ritmo afim de não cair em monotonia. Um espetáculo de balé atrai a atenção do público por meio de vários elementos, tais como a beleza dos bailarinos, a variedade coreográfica, a música, a iluminação, o figurino, a maquiagem, o cenário. A mistura desses elementos mantém (ou deve assim o fazer) o interesse dos espectadores durante todo o espetáculo. O balé utiliza esses elementos amalgamados em sua composição. Mas tem uma diferença essencial em relação a outros tipos de drama: ele não usa linguagem verbal para comunicar seu “texto”. Ele aproveita a destreza física e o domínio corporal atlético dos bailarinos para contar uma historia (ESSLIN, 1978) e seus personagens são conhecidos por meio de seus movimentos e da música (HUTCHEON, 2011). A adaptação de Roland Petit
Petit, inicialmente, ao transpor a obra proustiana para a dança rejeitou a ideia de fidelidade ao texto-fonte. Para ele, “adaptar não significa copiar fielmente (...) primeiramente, é impossível, e depois onde ficaria a criação?” 2 (SCHMID, 2013,
« Adapter, cela ne veut pas copier fidèlement…d’abord, c’est impossible, et puis où serait la création ? » 2
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p. 187, tradução minha). Para Roland Petit deveria sempre haver o elemento criador, a intervenção do artista que adapta a obra. Se assim não pudesse fazer, isso seria considerado prejudicial à liberdade criativa (ibid., p. 1). A ideia de fidelidade para os estudos de adaptação é ainda considerada controversa, pois ela não deixa de ser uma recriação, já que pode contar uma história a seu próprio modo (HUTCHEON, 2011). Uma adaptação como a do coreógrafo francês implica em perdas e ganhos, pois uma mídia performativa como o balé faz perder sutilezas linguísticas que somente a obra literária pode nos mostrar, mas os ganhos são valorizados pelos detalhes que podemos perceber a olho-nu. Existe, também, uma condensação da obra na passagem da literatura para um veículo dramático como o balé, pois não há tempo possível para transpor ao palco tudo o que acontece em um romance de mais de três mil páginas, como o de Marcel Proust. Mas, por outro lado, a ênfase da passagem de um meio verbal, como a literatura, para um não verbal, como o balé, faz com que a imaginação do que acontece, dê lugar à percepção ocular da realidade: não mais imaginamos, mas percebemos os dançarinos, o figurino, o cenário e outros elementos que nos ajudam a compor a trama dramática. Quando lemos, acumulamos detalhes e quando assistimos a algo, percebemos objetos (ibid.). As equivalências emocionais podem tornar os sentimentos visuais: transpor emoções para a coreografia é algo complexo, pois a aparência externa deve espelhar verdades interiores (ibid.); o corpo é um canal por meio do qual podemos mostrar o que sentimos e nos fazermos, desse modo, compreender. Roland Petit tentou levar seu balé a um público não familiarizado à atmosfera textual e às tonalidades distintas do universo da Recherche. Segundo o coreógrafo francês, o propósito da recriação do texto proustiano em um suporte como o balé era de fazer “dançar os sentimentos” (GOATER,
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2009), tentando, assim, destacar a poesia do teatro que com um olhar, com a intensidade de um movimento, pode ser tão perceptível emocionalmente quanto à narração literária.
A adaptação de Roland Petit para o balé está dividida em dois atos intitulados Quelques images des paradis proustiens e Quelques images de l’enfer proustien. Segundo Schimid, o espetáculo apresenta uma estrutura díptica, refletindo as experiências intermitentes do protagonista na alegria e no sofrimento. De acordo com sua análise, esse díptico espelhado refletiria esses dois estados de espírito no decorrer das duas partes da adaptação do coreógrafo francês. No interior dos dois atos, somam-se treze quadros. Ao analisar o programa do espetáculo, podemos ver que cada quadro se inspira em passagens do texto proustiano ou mesmo na correspondência pessoal do autor com amigos mais próximos. Esses quadros propõem uma leitura da obra Recherche por meio de seus movimentos coreográficos e evocam alguns dos temas mais relevantes do romance tais como a frivolidade da alta sociedade, a vaidade da existência humana, as múltiplas (des)ilusões do amor, o poder do ciúme, a gradual decomposição de um relacionamento e a procura pelo prazer carnal de forma autodestrutiva. A sucessão dos quadros segue, geralmente, o desenrolar da narrativa proustiana, que vai da adolescência do Narrador até sua vida adulta e perpassa períodos históricos importantes da França como a Belle Époque e a Primeira Guerra Mundial.
A música é elemento importante na composição de um espetáculo de balé. Segundo Patrice Pavis em Uma análise do espetáculo, ela influencia na percepção global, criando uma atmosfera receptiva à representação (2008, p. 131). A música é assemântica, pois não representa diretamente o mundo da palavra, mas cria uma influência emocional sobre a encenação. Há impacto da cena sobre a música e sua percepção, criando, ESPURIO, K. | p. 253-264 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 259
assim, uma sucessão de climas (ibid., p.130-132). A música no espetáculo de Roland Petit desempenha papel importante no todo teatral. A progressão da adolescência do Narrador para a idade adulta é destacada pela diversidade da escolha musical: compositores admirados por um Proust ainda jovem, como Franck, Saint Saëns, Debussy e Fauré dominam o primeiro ato, o paraíso, do espetáculo. Já na segunda parte, compositores preferidos em sua maturidade como Beethoven e Wagner foram os escolhidos para desenhar o inferno proustiano. Todas as escolhas feitas pelo coreógrafo parecem ter sido propositais, pois como dito por Linda Hutcheon (2011, p. 183) a música provoca uma resposta afetiva que exige uma reflexão para envolver o publico, além de englobar poder mimético (ibid., p. 71) e representar o ritmo das emoções (ibid., p. 95).
Petit em sua composição coreográfica utiliza diferentes linguagens estéticas. Desafia a rígida ideologia do balé clássico com sua mistura de fluidez sensual (ou seria sexual?) e transgressão dos movimentos clássicos. Isso torna seu trabalho um balé clássico fora dos padrões convencionalmente aceitos. Do balé clássico tradicional pode-se notar os simétricos e harmoniosos arranjos misturados aos movimentos da dança moderna. No primeiro ato, o quadro II La petite phrase de Vinteuil ou la musique des amours exemplifica a presença do balé clássico tradicional com seu pas de deux delicado no qual a bailarina personifica o piano e o bailarino, o violino na execução da famosa pequena frase de Vinteuil. O quadro VIII, Monsieur de Charlus face à l’insaisissable, que abre o segundo ato, nos dá a ideia de como pode ser uma coreografia permeada por passos de dança moderna ao mostrar o jovem violonista Morel tornar-se ídolo de Monsieur de Charlus. Além do balé clássico e da dança moderna, há exemplos da dança-teatro de Pina Bausch e de gestos manuais anti-naturalistas do teatro de bonecas japonês no último quadro, Cette idée de la mort... où le monde apparaît au narrateur comme derrière “une porte 260 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
funéraire”. Nesse quadro, o Narrador encontra-se face a face com a Duquesa de Guermantes, antiga Senhora Verdurin. Ele vê toda sua vida mundana passar diante de si e a duquesa que tanto admirou no passado é atualmente apenas a imagem de sua morte, pois a verdadeira Duquesa de Guermantes já não mais existe. Esse quadro remete à decadência da sociedade mundana e ao final da Recherche. Essas performances polifônicas coexistem em todo o espetáculo, ecoando a diversidade discursiva e estilística do romance proustiano e destacando o hibridismo do balé contemporâneo adotado por Roland Petit no decorrer de sua prolífica carreira de coreógrafo.
As divisões em atos que retratam o paraíso e o inferno evocam um movimento metafórico por meio de mudanças de cores, de iluminação e de cenário. O primeiro ato, que nos mostra algumas imagens dos paraísos proustianos, é dominado pelos tormentos amorosos dos casais Odette/ Swann e Albertine/ Narrador. Nesse ato podemos constatar a presença de cores claras, cenários com natureza e mar ao fundo, figurinos leves e esvoaçantes, iluminação primordialmente em tons neutros. Já no segundo ato, que apresenta algumas imagens do inferno proustiano, os tons cromáticos utilizados mudam radicalmente: cores escuras, sobretudo o vermelho e o preto, que evocam a tentação e o desejo, mote desse ato que exibe um mundo claustrofóbico de casas de prazer, dos salões da alta sociedade, de sórdidos hotéis para encontros libidinosos. A transgressão de leis morais é o maior fascínio do inferno proustiano, com destaque para os personagens Charlus, ligado a excessos e ao sadomasoquismo e na dupla Saint-Loup e Morel com seu pas de deux referencialmente homossexual. Marion SCHMID no artigo supracitado afirma que ao nos debruçarmos sobre aspectos obscuros e transgressores do romance, tais como o olhar sobre a sexualidade e o desejo, o ESPURIO, K. | p. 253-264 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 261
balé muda as percepções do público em relação ao texto-fonte. (2013, p.198). Proust também se debruçou sobre aspectos até então inexplorados na alta literatura ao abordar temas como sadomasoquismo das paixões humanas, a natureza auto-destrutiva do desejo e do ciúme e a homossexualidade feminina e masculina, por exemplo. Contrariando convenções dominantes no balé clássico até os anos 1970, Petit aborda tais temas de forma sensualizada, e por vezes sexualizada, ao mostrar um pas de deux exclusivamente masculino (no quadro XII - Morel et Saint-Loup ou les combat des anges) no qual dois personagens másculos sucumbem ao charme mútuo. E em outro quadro, XI - Rencontre fortuite dans l’inconnu, uma bailarina com dorso nu dança ao redor de três outros bailarinos, seminus, numa busca frenética pelo prazer mundano. Mesmo abordando temas que podem cair em lugar-comum, Roland Petit dá demonstrações concupiscentes de que as convenções quebradas com sua coreografia não resultam em pornografia. Muito pelo contrário, ele coloca o léxico da dança clássica em seu proveito e disso resulta uma intensidade erótica revigorante. Conclusão
Roland Petit com sua adaptação de Proust para o balé fez com que o público tivesse um olhar privilegiado sobre a ação desenvolvida na moldura do palco. Esse frame mantém relação estreita com a presença do público e o imediatismo da ação. O drama como meio de expressão e comunicação faz com que sua multiplicidade de níveis adquira significados polivalentes; ele é multifacetado em suas imagens. Essas imagens criadas por Petit tentam repetir com variação (HUTCHEON, 2011, p. 25) o conforto do ritual da leitura proustiana combinado à atração da surpresa de sua adaptação performativa. Mesmo padecendo de momentos de suspense despertados por 262 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
recursos de intriga (ESSLIN, p. 47) a Recherche adaptada para os palcos desperta interesse dramático. O coreógrafo francês utilizou recursos teatrais para que a ausência de ação do romance fosse transposta para a ilustração coreográfica das passagens da obra proustiana. Dessa forma, Auerbach estaria equivocado ao dizer que a obra de Marcel Proust não é teatral. Aos que têm contato com a obra literária e sua adaptação para o tecido dramático do balé, cabe a tarefa de validar a passagem da literatura para o drama, pois somente desse modo podemos dizer que houve uma transposição intermidiática. Referências Bibliográficas
AUERBACH, Erich. Proust, o romance do tempo perdido. In: Ensaios de literatura ocidental. Trad. Samuel Titan Jr. e José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Ed 34, 2007. BENJAMIN, W. A imagem de Proust. In: Magia e técnica, arte e política. Trad. de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012.
ESSLIN, Martin. Uma anatomia do drama. Trad. de Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. GOATER, Delphine. Proust ou les Intermittences du Cœur: À l’Ombre des Tourments. ResMusica. 1º jun. 2009. Disponível em: http://www.resmusica. com/2009/06/01/a-lombre-des-tourments/. Acesso em: 12 maio 2013. ESPURIO, K. | p. 253-264 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 263
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. de André Cechinel. Florianópolis: Editoria UFSC, 2011. PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. Trad. de Sérgio Sálvia Coelho. São Paulo, Perspectiva, 2011. PROUST OU LES INTERMITTENCES DU CŒUR. Direção de TV & video: Vincent Bataillon. Produção: Denis Morlière, Antoine Perset, François Duplat. BelAir Classiques, 2008. 1 DVD, 102 min., son., color. SCHMID, Marion. Proust at the Ballet: Literature and Dance in Dialogue. In: French Studies. Oxford: Volume 67, p. 184-198.
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Nueba Yol: Leaving the Dream Behind Manuel Medina1
ABSTRACT: Most films dealing with the immigrant experience portray the struggle of life in the United States, the odyssey of the trip to the county and how characters eventually adapt themselves to the rigors of life in a country where they must work hard to survive. These characters chase the American Dream in hope of better lives for their children and future generations. Nueba Yol shows a character who realizes that the proverbial ‘American Dream’ exists only in his mind and choses to return to his beloved homeland. He picks a life of ease near his new wife, friends and relatives rather than compete in the rat race in the Big Apple. KEYWORDS: Nueba Yol: A Funny Way to Say New York, American Dream, Ángel Martí Múñiz, Dominican Republic Film US Latino Film
The concept of the “American Dream” has fueled the dreams of people who colonized the United States from its inception. The concept that the U.S. provides the perfect environment to flourish in a setting that granted individual liberties to his citizens can be traced back to the mid eighteenth century. The phrase “American Dream” itself became a common reference in the USA after 1931 when historian James Truslow Adams used it for the first time:
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Department of Classical and Modern Languages, University of Louisville
It’s the belief that in the United States, people are free to pursue opportunity, and that through hard work, they can make a better life for themselves and their children. This dream has powered the hopes and aspirations of Americans for generations. It’s a dream that began as a plain but revolutionary notion: each person has the right to pursue happiness - not as self-indulgence, but as fair ambition and creative drive” (GUETTLER & ELLIS, n.p.).
The idea of the United States as the closest example of utopia, paradise or living a dream for over a century has fueled the world’s desire to migrate to the country in search of a better life: freedom, economical stability, and a myriad of other success, professional and personal. Writers, artists, film directors, tv producers, and magazine editors have helped propagate the concept of the American Dream in the world’s imaginary. Latin American and US Latino literature and film have explored and depicted life of immigrants who have left their homeland in pursuit of the American Dream. In general, directors have shown the difficulty of living the dream by delivering characters who deal with nostalgia, discrimination, unfairness and harsh labour conditions. In films like Alejandro Galindo’s Espaldas mojadas (1953), Alambrista! (1977) directed by Robert M. Young and Luis Valdez’s movie Zoot Suit released in 1981, just to name a selected few, we observe immigrants whose lives in the US do not live up to par with the American Dream. But yet they choose to stay because the conditions mean a huge improvements over those in their home countries. More recently, directors of both documentaries and films, have concentrated on showing the horrible conditions that immigrants must endure as they travel from their home countries to the United States: Asalto al sueño (Uli Stelzner, 2006), Which Way Home (Rebecca Cammisa, 2009) , Paraíso Travel (Simon Brand, 2009) and many others who remind us of Gregory Nava’s 1984 film El Norte. Among all of these, Nueba Yol: ¡Por fin llegó Balbuena (1995) by Dominican
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director Ángel Muñiz stands out because it portrays the life of Balbuena, an immigrant who travels to New York but decides to return to his birthplace, Santo Domingo. After finding out that the American Dream resembles more of a nightmare to immigrants who must struggle to make ends meet and settle for living under less than ideal conditions Balbuena chooses to abandon the American Dream, for good. Gallup, in a study published in 2012, found that the United States tops the list of desired destinations for adults who would migrate to another country:
About 13% of the world’s adults -- or more than 640 million people -- say they would like to leave their country permanently. Roughly 150 million of them say they would like to move to the U.S. -- giving it the undisputed title as the world’s most desired destination for potential migrants since Gallup started tracking these patterns in 2007 (CLIFTON, 2013).
Reviewing the study Max Fisher noticed that Dominican Republic, along with Liberia and Sierra Leone, head the list of countries: “And there are three countries where more than a quarter of the adult population would like to move here: Liberia, Sierra Leone and the Dominican Republic.” (2013). Indeed the Pew Research Center on his “Hispanic Trend Project” on a breakdown of the fourteen largest U.S. Hispanic groups by origin lists Dominicans in fifth place. Jeanne Nwosu and Jeanne Batalovahas (2014) in a report for the Migration Information Source spotlight the Dominican Republic migration pattern showing that since 1990, it has surpassed, in numbers, those of any other Caribbean country, except Cuba. However, they conclude that once in the U.S., Dominicans usually do not move within the social and economical scale: MEDINA, M. | p. 265-279 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 267
Immigrants from the Dominican Republic were more likely than the overall foreign-born population in the United States to live in poverty, be Limited English Proficient, and have gained U.S. citizenship; they were less likely to have a college degree or to be uninsured. Immigrants from the Dominican Republic residing in the United States had a lower median income than immigrants from the Caribbean ($31,000 versus $39,000) and the overall foreign-born population ($47,000).
The share of immigrants from the Dominican Republic in poverty (28 percent) was higher than the corresponding share for the overall immigrant population from the Caribbean (21 percent) and the overall foreign-born population (19 percent)” (2014). And they explain that they provide great support to the overall Dominican economy: “The Dominican diaspora in the United States transferred about $2.7 billion in remittances to the Dominican Republic in 2012” (2014).
Nueba Yol: ¡Por fin llegó Balbuena! by the Dominican director Ángel Múñiz tell the story of Balbuena whose beloved and beautiful wife dies in an aquatic accident while they enjoyed a day at the beach. Luisito falls behind on his financial obligations and thanks to his friend Fellito’s persuasion, decides to travel to New York to make enough money to pay his debt. Fellito sells him on the idea of an easy life, a fast track, and abundant money associated with the United States. According to Fellito, Balbuena only has to show up to New York and the money will quickly start filling his pockets. Soon, again as expressed by Fellito, Balbuena would be able to earn enough to buy back his house and live well within the comforts afford it to him by the modernities of the great metropolis. Balbuena arrives into New York to a rude awakening and he quickly discovers that life in the States does not resemble the many tales he 268 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
had heard from fellow Dominicans. Balbuena meets Nancy when she accidentally hits him with her car and he has to spent time in the hospital. She offers to show him the city, in compensation for running him over, and they become close friends. Nancy eventually returns to Santo Domingo following a better job offer. Balbuena has great difficulty finding work but he eventually manages to get a job in a Mexican restaurant where he gets paid clandestinely. But, he manages to save enough funds to recover his house. Disappointed with life in New York due to problems with his extended family, Fellito who turns into drugs, and tries to rob him, crime and so forth, Balbuena decides to return to Santo Domingo where life seems so much brighter than in the United States.
Ángel Múñiz based the film Nueba Yol: ¡Por fin llegó Balbuena on the character Balbuena, a very popular radio show host in Santo Domingo who tells stories about Dominicans who pawn, sell everything they own or borrow excessive amounts of money to collect the necessary funds to travel to the United States. They consider it an investment in their future because, according to their view, life in the United States will solve all of their problems. Múñiz also directed a sequel, Nueba Yol 3; bajo la nueva ley that premiered in 1997 where Balbuena’s story continues. But in the second film, he returns to settle down in the United States taking advantage of the new migratory law. The film’s title, Nueba Yol: ¡Por fin llegó Balbuena, officially translated as “Nueba Yol: A Funny Way to Say New York” lacks some of the connotation of its original Spanish version. Nueba Yol alludes directly to the way a group of Dominicans pronounced the two sounds that appear in the words New (Nueva in Spanish) York: “v” and “r”. In Spanish, the letters ‘b’ and ‘v’ are pronounced the same in this context [ß]. Furthermore, uneducated Spanish speaker often make orthographic errors in words containing the sound [ß] e.g., ceviche vs cebiche (ALONSO, 1967). The confusion of the liquids / ɭ / and / ɹ / in post nuclear syllabic MEDINA, M. | p. 265-279 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 269
position (e.g., Y, onset-O, nucleus and RK, coda) is a phenomenon called ‘trueque de liquidas [switch of liquids]’ common in the Caribbean and lowland varieties of Spanish in the Americas and in Andalusian Spanish (NAVARRO, 1990). The selection of this title suggests that the director decided to give the point of view of a lower class, less educated Dominican traditionally associated with those phonetic patterns. The subtitle “¡Por fin llegó Balbuena!” literally translates as “Balbuena finally arrived” but officially translated as “A Funny Way to Say New York” misses the connotation behind the famous character and his act that most Dominicans would recognize: it must be explained to a non-Dominican because the meaning is not obvious, even to a Spanish native speaker from another country. The Balbuena character evolves throughout the film and he completely changes from the beginning to the end. Probably, his wardrobe becomes the best visual indicator that his character has changed. In the opening scenes and for most of the film he wears the same outfit: a red tank top (wife beater), jeans, black beret and a hair pick that he stores safely under his hat hanging over his right ear. The top outer piece changes to a short sleeve dress shirt when he goes out with Nancy to see New York. He also wears a different shirt on the night before he plans to fly back for the Dominican Republic. Balbuena also sports a black leather jacket to protect himself from the cold weather. In the closing scene, he wears a white tuxedo and the black beret. In between, his attitude towards New York changes dramatically since he utters these words when he first arrives: “Llegar a Nueba Yol es como la gloria.” [To arrive to ‘Nueba Yol’ is like making it to heaven]. The last words pronounced by Balbuena as a voice over narrator when he movie ends summarize his change in attitude and perception towards the ‘gran manzana” (the Big Apple, as natives refer to New York City). He expands on his original statement: 270 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
Llegar a Nueba Yol es como llegar a la gloria. Allí todo el mundo es rico. En Nueba Yol los quarters están rodando por la calle. Pero ese era el Nueba Yol de mi fantasía. Porque New York es otro.”
[To arrive to ‘Nueba Yol’ is like making it to heaven. There everyone is wealthy. In ‘Nueba Yol’ quarter (25 cents coins) are rolling down the streets. But, that is the ‘Nueba Yol’ of my fantasy. Because New York is other ].
Notice how he uses Nueva York, pronounced in English to differentiate it from the place he had fabricated in his dreams where one can pick up money off the streets.
Roland Marchand in his book Advertising the American Dream: Making Way for Modernity, 1920-1940 explains that after the Great Depression American media opted to paint a picture perfect representation of what the American Dream offers to families in this country: “Like the paintings and murals of Socialist Realism, the illustration in American advertising portrayed the ideals and aspirations of the system more accurately than its reality. They dramatized the American Dream” (1985 vxiii). The world has grown up with that notion of the United Sates because of the advertising, television shows, movies, and the like that export that “dramatized” version of the American Dream. Balbuena has developed that idea of New York, and when he arrives and finds himself in a poor neighborhood in New York, he experiences great cultural shock. To place the film in context, the director sets up the opening scene by showing Balbuena as a good family man who has lost his wife and therefore does not have anything tying him to the island. Balbuena might not resemble the image of a typical immigrant, but he reflects the typical person who wants to come to America because he has a distorted idea of what is it like to be in the States. MEDINA, M. | p. 265-279 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 271
Juan Luis Guerra, the famous Dominican singer and composer, in his song “Visa para un sueño” [Visa for a Dream] addresses a similar issue. The lyrics narrate the experience of waiting at the American Embassy to obtain a visa for a dream, a visa to come to the United States. After arriving early, standing in line, being hit by the hot sun and showing fake documentation, they get nothing in return. The Embassy denies their request and they must head back to look for other ways to enter the country. “Visa para un sueño” [“Visa for a dream”] from Ojalá que llueva café [I hope it rains coffee] Eran las cinco (d)e la mañana un seminarista, un obrero con mil papeles de solvencia que no les dan pa(ra) ser sinceros Eran las siete de la mañana y uno por uno al matadero pues cada cual tiene su precio buscando visa para un sueño Eran las nueve e la mañana Santo Domingo, ocho de enero con la paciencia que se acaba pues ya no hay visa para un sueño [Sonido de helicópteros]
It was five o’clock in the morning a seminarist, a laborer, With a bunch of documents that prove their financial solvency that do not allow them to be honest. It was seven o’clock in the morning one by one to the slaughter house.
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Each one has a price tag Requesting a visa to attain a dream It was nine o’clock in the morning Santo Domingo, January 8 with patience running out because there is no visa [Helicopters sounding]
for
a
dream
Notice how the song very wisely ends with the sound of helicopters flying. This allusion refers to the thousands of applicants who do not receive or apply for a visa and try to illegally cross into Puerto Rico through the Canal de la Mona sailing rustic make-shift boats. Some make it; others become shipwreck. The rest get eaten by the sharks or get picked up by the US Coast Guard. Milagros Ricourt (2014) expands on the danger faced by those who venture to cross this way: The most treacherous route for Dominican emigrants to take to reach the United States is crossing the stormy Mona Passage to Puerto Rico in small boats called yolas. Predatory criminals control this human traffic, which began in the 1970s and has killed untold thousands of desperate people. (2014)
Balbuena does not return to the D.R. just because of unfavorable economic conditions. He also struggles with cultural adaptation in his three stages: honeymoon, culture shock and recovery (“Cultural” 2007). Back in Santo Domingo, the director shoots most of the scenes under the bright sun to match the high energy and happiness of the easy going lifestyle of the Island. Once Balbuena arrives into New York, the light dims down and everything seems to be filtered through a lens that shows scenes under a darker light. Muñiz films most of the shots indoors, under poorly lit conditions, or outside at night. MEDINA, M. | p. 265-279 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 273
Balbuena sleeps in his cousin’s living room and he does not mind it. He just shows extreme happiness for finally making it to America. We see the city’s famous landmarks from as far as a distant backdrop, almost as an afterthought. The audience understands that Balbuena has arrived in a location far away from Lower Manhattan. The director photographs one of the famous bridges. Consistent with the theme of the fragmented American Dream present since Balbuena’s arrival, Angel Martí Múñiz only places half of it in the screen. In contrast, when Nancy invites him to see the city, the frames show a sunny day as the main lighting in the shots of the two friends navigating the city as tourists trapped under the magnificent presence of the skyscrapers that surround them. In another scene, Balbuena plays with a few children who enjoy the freshly fallen snow, also on a sunny day. The cultural shock occurs when he feels overwhelmed by his inability to speak English, experiences problems with his extended family, and is confused about the different values in this new society, a blended culture of Dominican and American values. The director shoots all of the final scenes in New York under very little light to emphasize the environment’s darkness. Fellito, concealing his identity wearing a mask, attacks Balbuena to rob him of the money that he has earned by working very hard since his arrival. Balbuena’s landlady gets shot and killed in the aftermath. He decides to return home rather than try to solve his adaptation conflict through an understanding of his new land. He choses to go back to Santo Domingo to the land of the sun. Nancy plays a key role in his decision because the movie uses the structure of a romantic comedy. Balbuena goes back to Dominican Republic to find his recently found true love. The closing scene shows Balbuena and Nancy wearing a white tuxedo and a wedding gown, respectively. On a chronological jump, the director closes the film by showing that Balbuena 274 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
has returned safely to Santo Domingo. In Balbuena’s last scene in New York, he had been shot and the audience does not know if he survived or not. The film jump cuts ahead to a shot of a church while bells toll. The camera pans down the church facade and stops on the main entrance just as Nancy and Balbuena walked out as newly weds. Faithful to the film’s sentimental pathos, as a romantic comedy, the director ends the film having the groom visiting the cemetery to explain to his deceased first wife why he has chosen to move on and get married again. Balbuena talks to the grave as if she could hear him as if negotiating in order to find peace of mind and move on with his new life. The film’s closure shows the limousine riding out of the cemetery into the streets of Santo Domingo, a welcoming place, quiet, and sunny, ready to provide them a space for a new, happy life far from the hustle and bustle of the dark, unfriendly and unwelcoming streets of New York. In closing, Nueba Yol: ¡Al fin llegó Balbuena! stands out as a great example of a film that shows a protagonist who realizes that the proverbial ‘American Dream’ exists only in his mind and choses to return to his beloved homeland. He picks a life of ease near his new wife, friends and relatives rather than compete in the rat race in the Big Apple. The movie, under the cover of a romantic comedy, uses humor and a light plot to deliver the strong message that people do not have to live in the United States to be happy. It turns upside down the concept of sacrificing all of a person’s belongings to pay for a way to make it to the United States. The corollary of the message suggests that people can find happiness literally anywhere. The message of the film echoes even more strongly in light of the current statistics, even eleven years after the film premiered, that show that people in Dominican Republic still ranks among the top three spots of populations who want to come to the United States and live here. Ironically, Balbuena in the film’s sequel returns to the States, to Miami to establish MEDINA, M. | p. 265-279 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 275
himself there to take advantage of the new migratory law. Not even Balbuena could resist such inviting offer. Referências bibliográficas
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CANÇÃO, CRÔNICA E IMAGENS SOCIOCULTURAIS Marcelo PESSOA1
Resumo: O presente trabalho está centrado nos estudos jornalísticos e literários, os quais acompanham os pressupostos dos Estudos Culturais e da Análise do Discurso. O objetivo da pesquisa proposta é delimitar e interpretar o modo como são realizadas as investigações dos poemascanções de Chico Buarque, na obra A Imagem do Som de Chico Buarque. Tal livro apresenta uma transposição de poemas para imagens, com o que chamaremos em nossa pesquisa de crônicas-imagens. O poeta-compositor em voga, no cenário da MPB – Música Popular Brasileira –, se nos apresenta como artista sui generis, ao conjugar em sua obra poético-musical, tanto elementos próprios da produção textual em prosa, quanto dos expedientes típicos da música, reafirmando-se, assim, como um dos maiores representantes da literatura e da música nacional. Palavras-chave: canção; Chico Buarque; crônica; imagem, cultura brasileira.
INTRODUÇÃO Se de um lado temos como contexto um Brasil repleto de restrições e indignação, por outro lado temos um cantor e compositor, Chico Buarque, de perfil poético-musical que
Doutor em Letras pela UEL (2010), com pós-doutorado pela USP (2012), Instituto de Biologia, Departamento de Zoologia. Docente da UEMG, Campus de Frutal – MG, nos cursos de Comunicação Social, Administração e Sistemas de Informação. Contato: mpmarcelopessoa@yahoo.com.br. Link Lattes: http://lattes. cnpq.br/1863556911259481. 1
ora é engajado ora é romântico, caminhando meio que à revelia de tudo isso. O lirismo de Chico Buarque, em diversos momentos abalou o regime ditatorial brasileiro da década de 1960, de vários e “péssimos” modos – aos olhos de alguns pareceu panfletário, aos olhos de outros, reacionário, mas, de qualquer modo, “um perigo para a manutenção do status quo do sistema” –, e, por isso, era necessária a intervenção da censura para silenciá-lo. A partir disso, em nosso trabalho acreditamos que, o que predominantemente ocorre nos textos de Chico Buarque, é a dissensão dual entre certos processos de denuncismo retórico, até certo ponto bastante comum na poética latino-americana (e, também, como desejava a esquerda intelectual dos anos sessenta ao depositarem sobre os artistas da época todo o peso de fazer as revoluções acontecerem) e a manipulação estética da linguagem (à moda de Chico Buarque, de Caetano Veloso, dos tropicalistas e dos adeptos da Antropofagia oswaldiana) (TATIT, 2001).
O centro das nossas investigações aqui é o livro A Imagem do Som de Chico Buarque, com texto e diagramação produzidos pelo “Projeto Imagem do Som” e de concepção e curadoria de Felipe Taborda. Na obra supra, encontramos 80 (oitenta) canções de Chico e 80 (oitenta) artistas contemporâneos que releem os seus poemas-canções, para explicitar que: “A união da criatividade notória da música brasileira com imagens trabalhadas por alguns dos nossos melhores artistas visuais.” (1999, p.11) pode trazer à tona o inusitado, isto é, podem reposicionar nos anos 2010 as discussões sobre os fatos ocorridos nos anos vividos sob a ditadura militar no Brasil. Por isso, também, é que em nossa pesquisa tal releitura é denominada como crônica-imagem ou crônica visual, face à semelhança que a imagética cantada de Chico Buarque aparenta ter ao fazer dos cronistas em prosa (PESSOA, 2013). 282 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
Assim, acreditamos que Chico Buarque teria, em algumas de suas letras, deixado transparecer, de algum modo, elementos retidos em sua poesia relacionados às efervescências socioculturais de sua época, matizes os quais os artistas que o revisitaram nos revelaram na obra A Imagem do Som de Chico Buarque, em forma de imagens. Percebemos que, no caso de Chico Buarque, o que pode ter ocorrido em seu processo criativo é que, ao lado de sua preocupação linguística e sonora, pode existir subentendido o fazer subjetivo próprio aos registros fotográficos. Portanto, além de podermos analisar as composições de Chico Buarque como se fossem fotos-crônicas socioculturais, dando destaque ao seu engajamento político e social, sua representação do feminino e a sua expressão sentimental com a poesia da mais alta qualidade, será possível perceber como se constrói musical e imageticamente, um verdadeiro retrato do psicossocial brasileiro (SÁ, 2008). Permite-se ainda, com essa abordagem, ajudar na conformação de um repertório crítico, a partir do qual se possam aplicar os presentes estudos à área da Comunicação Social, ao se realizarem aqui análises críticas de imagens e textos publicitários, destacando-se neles a importância que as imagens causam na sociedade contemporânea devido à constante iconografia observada nos meios publicitários. Em suma, ao investigarmos as imagens de Taborda (1999), é preciso compreender o contexto no qual a letra da música fora composta, o que, por si só, requisita um volume muito maior de estudos, pois em diversas vezes Chico Buarque não quer apelar para o seu conteúdo de entretenimento, mas, sim, para estratégias de linguagem a fim de construir significados alegóricos, tais como o que aventamos em nossa pesquisa. É possível notar que cada artista-plástico que trabalha os poemas-canções no livro de Felipe Taborda, transpõe com suas particularidades a sua representação imagética. Alguns PESSOA, M. | p. 281-293 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 283
são literais, outros subjetivos, mas todos socioculturalmente instigantes. DE-‘LIMITAÇÕES’
O livro A Imagem do Som de Chico Buarque, como foi mencionado, possui 80 (oitenta) poemas-canções com representações de crônicas visuais diferentes. No presente trabalho foram analisadas 38 imagens ou crônicas-imagens. Abaixo, segue o corpus analisado (WERNECK, 2006): 1) Pedro Pedreiro – Chico Buarque (1965) 2) A Rita – Chico Buarque (1965)
3) Sonho de Um Carnaval – Chico Buarque (1965) 4) A Banda – Chico Buarque (1966)
5) Com Açúcar, Com Afeto – Chico Buarque (1966) 6) Noite dos Mascarados – Chico Buarque (1966) 7) Carolina – Chico Buarque(1967)
8) Roda Viva – Chico Buarque (1967)
9) Ela Desatinou – Chico Buarque (1968)
10) Retrato em Branco e Preto – Chico Buarque/ Antônio Carlos Jobim (1968) 11) Sabiá- Chico Buarque/ Antônio Carlos Jobim (1968) 12) Apesar de Você – Chico Buarque (1970) 13) Cotidiano – Chico Buarque (1971)
14) Bom Conselho – Chico Buarque (1972) 15) Partido Alto – Chico Buarque (1972)
16) Quando o Carnaval Chegar – Chico Buarque (1972)
17) Soneto – Chico Buarque (1972)
18) Cálice – Chico Buarque/ Gilberto Gil (1973) 19) Basta Um Dia – Chico Buarque (1975)
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20) Gota d’Água – Chico Buarque (1975)
21) Meu caro amigo – Chico Buarque/ Francis Hime (1976) 22) Olhos Nos Olhos – Chico Buarque (1976)
23) O Que Será (À Flor da Terra) – Chico Buarque (1976)
24) O Cio da Terra – Chico Buarque /Milton Nascimento (1976) 25) Folhetim – Chico Buarque (1977-1978)
26) Homenagem ao Malandro – Chico Buarque (1977-1978) 27) O Meu Amor – Chico Buarque (1977-1978)
28) Viver do Amor – Chico Buarque (1977- 1978) 29) Pivete – Chico Buarque/ Francis Hime (1978)
30) Tanto Mar – Chico Buarque (1978)* segunda versão 31) Não Sonho Mais – Chico Buarque (1979)
32) Morena de Angola – Chico Buarque (1980) 33) O Meu Guri – Chico Buarque (1981)
34) Vai Passar – Chico Buarque/ Francis Hime (1984) 35) O Futebol – Chico Buarque ( 1989)
36) Paratodos – Chico Buarque (1993) 37) Carioca – Chico Buarque (1998)
38) Iracema Voou – Chico Buarque (1998)
É possível observar que o corpus estudado possui canções com um intervalo de tempo considerável, em que seus respectivos contextos socioeconômicos tiveram mudanças e interferências relevantes. Entretanto, músicas como “Partido Alto”, de 1972, tornam-se atemporais, devido à referência que Chico Buarque realiza ao descrever a penúria brasileira: “Na barriga da miséria, eu nasci brasileiro” (“Partido Alto”, 1972).
Sob o viés sociocultural, é interessante frisar ainda, que Chico Buarque é um compositor constantemente preocupado em atualizar-se. Em seu CD nominado Chico (2011), ele nos PESSOA, M. | p. 281-293 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 285
apresenta a música “Nina”. Nesta canção Chico comenta a influência da internet:
Na canção “Nina”, que ele (Chico) define como uma valsa russa, a letra descreve um homem no Brasil que mantém uma relação via computador com uma mulher na Rússia. Mulher que ele pode até espiar, claro, pelo Google Maps. Aos poucos Chico vai descobrindo mais novidades no admirável mundo novo da internet (ZAPPA, 2011, p. 414).
Neste sentido, o discurso de Chico Buarque nesse sentido é um discurso da práxis. É construído todo por meio de encadeamentos simbólicos cujas metáforas explicam nossa sociedade, demonstrando por meio de uma série de ramificações alegóricas a própria natureza do objeto artístico – na literatura, na música, na imagem.
No cotejamento foi possível identificar as particularidades com que cada artista plástico releu Chico Buarque, no trabalho publicado em Taborda (1999). Vimos que alguns foram literais, outros, subjetivos, mas todos retrataram com fidelidade as temáticas encantadas nos poemas-canções de Chico Buarque. FACES BUARQUEANAS FRENTE SEMIÓTICO DE TABORDA (1999)
AO
TRÂNSITO
Chico Buarque possui várias faces, e algumas delas são exibidas no corpus em destaque. Em nossas apresentações sobre o nosso trabalho de pesquisa em eventos acadêmicos e científicos, mas, principalmente em escolas de ensino fundamental e médio, apresentamos aos alunos as três particularidades mais expressivas deste poeta-compositor: o Chico Buarque político, o Chico Buarque romântico e o
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discurso feminino que Chico se faz portador em suas canções (JUNIOR, 2008; e LABRIOLA, 2009). Imagem 01:
O poema-canção representado acima, na imagem 01, trata-se da música “Folhetim” (Chico Buarque /19771978). A representação imagética que o artista plástico Luiz Zerbini nos apresenta é a de um buquê de rosas vermelhas, acompanhadas de um bilhete. Em “Folhetim” pode ser observada uma das faces citadas acima de Chico: o seu lado feminino, ou seja, sua indiscutível sensibilidade ao se fazer passar e sentir os humores femininos. “Folhetim” trata de uma mulher da boemia, que deixa claro aos seus amantes que o seu amor dura apenas uma noite. Entretanto, essa mesma personagem revela sua felicidade caso recebesse algum presente de seus amores passageiros.
Luiz Zerbini, então, a presenteia com um buquê de rosas simples, mas repleto de significados. Primeiramente, as rosas, assim como o amor dos amantes da música são passageiras, no outro dia ficam feias, perdem o encanto e acabam morrendo. Posteriormente, observamos a cor vermelha, que nos PESSOA, M. | p. 281-293 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 287
indica ao mesmo tempo uma paixão avassaladora e também a feminilidade da mulher amada.
Zerbini ainda nos oferta ao olhar um cartão com os seguintes dizeres: “Por todas as coisas lindas que você sussurrou no meu ouvido, principalmente as mentiras. Luiz”, frisando ainda mais os ‘desen’cantos destes amores, ditos, por isso, temporários. Imagem 02:
Acima, na imagem 02, temos representada a canção “Tanto Mar” (Chico Buarque / 1978), numa crônica-imagem em que o artista Arnaldo Pappalardo dá à música ares de ligação direta com o contexto no qual a mesma foi escrita. Ao fazer “Tanto Mar”, Chico inspirou-se na “Revolução dos Cravos” (Portugal, 1974), que derrubou o regime salazarista. Para comemorar o fim da ditadura a população distribuiu cravos, a flor nacional portuguesa, aos soldados e à população, em forma de agradecimento e comemoração:
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Artistas e intelectuais progressistas no Brasil se apressaram para saudar a queda do regime salazarista e apoiar a revolta militar que, com a adesão em massa da população, foi levada a cabo sem que houvesse quase nenhuma resistência. Quando Chico compôs “Tanto Mar”, uma homenagem aos revolucionários portugueses, sua canção foi proibida pela censura no Brasil. Acabou sendo gravada em um compacto em Portugal (ZAPPA, 2011, p.316).
Neste caso-exemplo, observamos o viés do Chico Buarque engajado, pois nessa releitura se expõe o poeta preocupado com a situação política. Pappalardo, então, apresenta-nos um cravo na representação imagética da música. Observa-se que o cravo está feio, perdeu seu viço e sua exuberância, isso pode ser explicado devido ao fato de que a representação feita por Pappalardo fora da segunda versão da música “Tanto Mar”, visto que a primeira tivera sido censurada:
Quando, anos depois, a música foi liberada pela censura, a situação em Portugal já era outra. Embora todos reconhecessem que o dia 25 de Abril representara um grande salto no desenvolvimento político-social do país, participantes do movimento e observadores de esquerda acreditavam que, com os anos, a revolução havia se perdido. Muitos, inclusive no Brasil, acreditavam que a descolonização havia sido feita de forma errada e que muitas das conquistas da revolução foram se perdendo. Chico refez a letra. Dessa vez, a mensagem já não era tão otimista, mas guardava ainda a esperança (ZAPPA, 2011, p. 317).
Entre a primeira versão, composta em 1975, e a segunda, gravada em 1978, a situação política em Portugal havia sofrido transformações e, assim, muitos membros revolucionários e observadores alegavam que os ideais da “Revolução dos PESSOA, M. | p. 281-293 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 289
Cravos” acabaram se perdendo. Ao compor a segunda versão de “Tanto Mar”, Chico não é tão otimista quanto na primeira versão, mas, ainda assim, é possível observar na letra da canção certa expectativa sociocultural. Imagem 03:
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Na imagem 03 se trata de releitura da canção “A Rita” (1965). O artista-plástico Alexandre Sant’Anna foi impactante ao representar em seu texto a música que revela o lado romântico de Chico Buarque. Neste poema cantado se nos mostra um homem abandonado por sua mulher. Ao partir, a amada levou os seus planos, seus pobres enganos, os seus vinte anos, e o coração do amante e, mesmo assim, ainda não satisfeita, o deixou mudo, pois levou consigo a inspiração do amado, ou seja, ela mesma. Sant’Anna, neste sentido, foi tão perspicaz quanto literal em sua representação, pois nos apresenta o amante da canção deitado numa mesa cirúrgica, talhado com um corte, levandonos a crer que este está ferido, machucado. Imagem 04:
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Na crônica-imagem 04 se vê representada a música “Carolina” (1967). Nesta canção, Chico Buarque refere-se a uma mulher que não vê o que a vida tem de belo. Carolina é uma mulher que vive para si mesma, sem olhos para o mundo, parece meio que refletir o momento em que o eu-lírico dá-lhe vida na letra da canção:
“Carolina” foi feita às pressas, para aplacar a ira da TV Globo, depois que Chico abandonou as gravações do programa Shell em show maior, em que era o apresentador. Para não ser processado, Chico acatou a exigência de Walter Clark, então diretor da emissora, de inscrever uma música no Festival Internacional da Canção, que era coordenado e transmitido pela TV Globo. O que não teria deixado Chico nada feliz, daí sua implicância com a música (ZAPPA, 2011, p.187).
Ao representar “Carolina”, o artista-plástico Jarbas Lopes, em Taborda (1999), tentou transmitir uma imagem misteriosa da mulher da canção e nos apresenta uma incógnita: Carolina, na imagem é emblemática, híbrida, visto que possui as mãos femininas e os quadris e pernas masculinos. Carolina, na canção, é entidade complexa, assim como se lê na imagem. Trata-se de uma pessoa de difícil identificação.
Desse modo, observa-se que nesta crônica-imagem, o artista não mostrou os olhos de Carolina, pois os mesmos, em nossa sociedade, são altamente simbólicos e tidos como sinônimos de sinceridade e lealdade, fato que, na releitura de Jarbas Lopes, foram intencionalmente reformulados para nos remeter ao universo da ambiguidade poética buarqueana.
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Referências Bibliográficas JUNIOR, Atilio B. Voltas em torno de algumas personagens femininas em canções de Chico Buarque. Revista eletrônica de crítica e teoria de literaturas, Ano 2008. LABRIOLA, Isabel F.R. As mulheres em Chico ou As mulheres do Chico. Artigo. Ano 2009. PESSOA, Marcelo. A Crônica-canção de Chico Buarque. Curitiba: Appris, 2013. SÁ, Jorge de. A Crônica. São Paulo: Ática, 2008.
TABORDA, Felipe. A imagem do som de Chico Buarque, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1999.
TATIT, Luiz. Análise Semiótica Através das Letras, São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. WERNECK, Humberto. Tantas palavras, São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
ZAPPA, Regina. Para seguir minha jornada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. PESSOA, M. | p. 281-293 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 293
UMA ANÁLISE DAS FIGURAS DO GATO E DOS RATOS EM CORALINE E O MUNDO SECRETO Marco Aurélio Barsaneli 1
Resumo: O texto que aqui apresentamos tem por objetivo analisar o romance Coraline (2003), do escritor e quadrinista inglês Neil Gaiman, lançando foco especialmente na forma como são construídas as figuras do gato e dos ratos e em como essas personagens são trazidas para a adaptação fílmica Coraline e o mundo secreto (2009), de Matthew Vaughn. A partir de textos de Robert Stam (2000) sobre o conceito de fidelidade e o processo de adaptação, de Linda Hutcheon (2011) sobre adaptação enquanto texto independente e de Thomas Leitch (2008) a respeito da relação entre os textos das adaptações e os textos literários dos quais foram adaptados, pretendemos mostrar como são estabelecidas as relações entre as personagens de Coraline, da Outra Mãe, do gato e dos ratos e como essas personagens se dividem ao longo de ambas as narrativas. Percebemos também que a adaptação do texto literário reinterpreta a narrativa e seus personagens transformando e expandindo as características presentes no texto fonte. Com base na análise feita é possível notarmos que embora ambos os suportes dialoguem, seus textos mantém sua independência enquanto textos autônomos. Palavras-Chave: Neil Gaiman; Adaptação; Coraline.
Introdução
1
Em seu romance Coraline (2003), Neil Gaiman explora o
(UNESP/IBILCE)
mundo de uma criança que acaba de deixar seus amigos para mudar-se com seus pais para um novo lar, um casarão que fora transformado em um conjunto de apartamentos, e está prestes a ingressar em uma nova escola. Durante seus passeios pelos arredores da casa, Coraline encontra um gato preto de rua, além de suas vizinhas do andar de baixo, Senhoritas Spink e Forcible, e o Senhor Bobinski, que vive em um apartamento no sótão.
Durante suas explorações dentro do novo apartamento, Coraline descobre uma porta que, dependendo do momento em que a menina a abre, revela uma parede de tijolos ou então uma passagem para um novo mundo. Nesse novo mundo, Coraline encontra muito do que sempre quis, como pais atenciosos e boa comida. É nesse momento que conhecemos a Outra Mãe: uma mulher desse novo mundo que é ao mesmo tempo diferente e estranhamente parecida com a mãe da menina, mas que descobrimos ser a principal vilã da narrativa. Ao sermos apresentados à Outra Mãe, somos também apresentados aos ratos, que agem na narrativa como servos da vilã, ajudando-a em seu plano de manter Coraline presa ao Outro Mundo para sempre. Ao mesmo tempo, notamos como a relação entre Coraline e o gato começa a tornar-se gradativamente mais próxima conforme a narrativa se desenvolve. Percebemos então, através das ligações estabelecidas entre as personagens de Coraline, da Outra Mãe, do gato e dos ratos, como as relações dessas personagens são tratadas no romance e na adaptação cinematográfica e como elas acabam se polarizando em ambos os suportes. Algumas considerações acerca da adaptação
Em 2009 foi lançada a adaptação fílmica Coraline e o mundo
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secreto, uma obra em stop-motion baseada no romance de Gaiman, produzida e dirigida por Henry Selick.
Ao ser transportada para o suporte fílmico notamos algumas modificações com relação à narrativa apresentada no romance. Dentre as modificações apresentadas podemos citar: a introdução de uma nova personagem, Wybie, amigo de Coraline, a modificação na origem dos ratos, as mudanças na aparência da Outra Mãe e algumas cenas durante o jogo entre Coraline e a Outra Mãe que, ou foram modificadas, ou foram omitidas no novo suporte. Essas modificações no texto da obra literária ocorrem não só devido às técnicas e linguagem do novo suporte, como também devido à nova interpretação concedida ao texto narrativo. É necessário e desejável que a nova obra possua sua independência interpretativa não só para que não dependa do texto narrativo para ser compreendida, como também para que não se configure como uma simples replicação da obra literária, como cita Linda Hutcheon: “Adaptation is repetition, but repetition without replication” (2006, p.7). Robert Stam também, em seu texto Beyond fidelity: the dialogics of adaptation (2000), afirma que manter-se totalmente fiel ao que acontece na obra literária é impossível pois, uma vez que a obra narrativa é aberta a infinitas interpretações distintas, não é viável que uma única leitura reúna todos os elementos que os leitores esperam encontrar numa adaptação. Stam argumenta que: “[...] it is questionable whether strict fidelity is even possible […] an adaptation is automatically different and original due to the change of medium” (2000, p. 55). Dessa forma, as transformações pelas quais passa a obra literária para adaptar-se ao novo suporte auxiliam na construção da independência significativa da adaptação. Ao BARSANELI, M. A.| p. 295-302 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 297
ser transformado, o texto literário é também expandido e não só conta com novos elementos narrativos como também com a imagem, o som e a música, elementos próprios do suporte fílmico. O gato e os ratos: no romance e na adaptação
Ao observarmos as obras em ambos os suportes notamos a clara divisão que se estabelece entre o mundo que poderíamos chamar de natural, ou seja, o universo em que situamos Coraline e sua família, e o Outro Mundo, no qual encontramos um universo sobrenatural com a Outra Mãe, o Outro Pai e seus demais habitantes. Analisando as narrativas literária e cinematográfica, percebemos que as personagens do gato e dos ratos identificam-se com esses dois mundos e, a partir dessa identificação, essas personagens acabam estabelecendo laços com a Outra Mãe ou com Coraline. Ao atravessar a passagem entre os dois mundos, Coraline experimenta os benefícios que o Outro Mundo pode lhe oferecer, mas acaba decidindo-se por voltar para seu próprio mundo após descobrir as reais intenções da Outra Mãe para com ela. Dessa forma, percebemos que cria-se uma divisão entre Coraline, que deseja voltar para o mundo natural, e a Outra Mãe, criadora e controladora do Outro Mundo e que deseja que Coraline fique permanentemente no mundo sobrenatural. A divisão entre o mundo natural e o mundo sobrenatural se reflete na relação entre as personagens, não só Coraline e a Outra Mãe, como também no gato e nos ratos. Em ambos os suportes notamos que enquanto os ratos servem como servos para a Outra Mãe, ajudando-a a atrair e manter Coraline no Outro Mundo, o gato é rejeitado pela Outra Mãe, uma vez que ela não consegue enganá-lo nem controlar seu trânsito entre os dois mundos. A identificação entre 298 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
Coraline e o gato fica mais forte quando a menina desobedece a Outra Mãe e deseja voltar para o mundo natural, pois assim como o gato, Coraline também demonstra que não pode ser controlado pela vilã. — Não quero jogar com você — disse. — Quero ir para casa e ficar com meus pais de verdade. Quero que você deixe eles irem embora. Quero que você nos deixe todos irmos embora. A outra mãe abanou a cabeça lentamente: — Mais afiado que o dente de uma serpente — disse ela — é a ingratidão de uma filha. Mas até o espírito mais orgulhoso pode ser vencido com o amor. — E seus longos dedos brancos moviam-se de um lado para outro e acariciavam o ar. — Não tenho planos de amar você — disse Coraline. — Haja o que houver, não pode me obrigar a amar você. (GAIMAN, 2003, p. 76) — Então você está de volta — disse a outra mãe. Ela não parecia satisfeita. — E trouxe vérmina com você. — Não — respondeu Coraline. — Trouxe um amigo. (GAIMAN, 2003, p. 123)
Tanto a menina quanto o gato desafiam os poderes e as vontades da Outra Mãe ao não se submeterem a suas vontades e derrotarem a vilã em seu próprio mundo. Além disso, notamos que as únicas personagens que não possuem uma versão enquanto “Outro” são o gato e a própria Coraline. Ainda que na adaptação a Outra Mãe tenha conseguido produzir uma boneca parecida com Coraline com o intuito de espioná-la, e personagem em sua versão humana não é reproduzida como um boneco vivo da Outra Mãe, assim como são as outras personagens como seu pai e seus vizinhos – todos eles possuem sua versão enquanto “outro”. Já a relação entre a Outra Mãe e os ratos é mostrada mais claramente quando analisamos a adaptação fílmica. Nela, BARSANELI, M. A.| p. 295-302 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 299
percebemos que, diferente do romance, em que os ratos são como os do mundo natural, na adaptação eles também possuem olhos de botão e são criados pela Outra Mãe, assim como todos ou outros habitantes do Outro Mundo. Na adaptação, dessa forma, podemos perceber mais claramente a divisão entre os dois mundos: diferente das personagens do mundo natural, aqueles que vêm do mundo sobrenatural possuem como marca mais forte os olhos de botão.
Além disso, assim como os ratos servem como servos da Outra Mãe, o gato serve como o auxiliar de Coraline quando a menina volta ao Outro Mundo para libertar seus pais. Percebemos assim que ao mesmo tempo em que Coraline e o gato partilham de uma relação de amizade, ambos têm sentimentos de desafeto para com a Outra Mãe e desejam voltar para o mundo natural. A identificação entre as personagens, entretanto, não se dá apenas a partir do mundo do qual são originadas ou da relação que estabelecem entre si. Percebemos que muitas vezes as ações das diferentes personagens se refletem umas nas outras de forma que suas ações para atingir um mesmo objetivo são paralelas. Podemos citar como exemplo o momento em que o gato derrota o líder dos ratos arrancando-lhe a cabeça, assim como Coraline, ao enganar e derrotar a Outra Mãe, acaba cortando um das mãos da vilã. Na adaptação, por exemplo, quando desejam atrair Coraline para o Outro Mundo, primeiramente são os ratos que trazem a boneca de Coraline para perto da porta entre os mundos, na segunda vez, quem atrai Coraline é a própria Outra Mãe ao seqüestrar seus pais. Abriu os olhos e viu o rato. Estava deitado sobre a passagem de tijolo ao pé da escada com um olhar de surpresa em seu rosto — que se encontrava agora a vários centímetros do resto do corpo. Seus bigodes estavam rijos, seus olhos esbugalhados, seus dentes à
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mostra, amarelos e afiados. Um colarinho de sangue fresco brilhava em seu pescoço.
Ao lado do rato decapitado, com uma expressão de satisfação no rosto, achava-se o gato preto. Descansava uma de suas patas sobre a bola de gude cinza. (GAIMAN, 2003, p. 119)
Assim vemos que, também através de suas ações, as personagens criam uma forma de identificação entre si e com o mundo de seu interesse, natural ou sobrenatural. Dessa forma notamos que, por meio de diversos formas de identificação, criam-se em ambos os suportes, ainda que algumas vezes de maneiras diferentes, laços de amizade ou serventia entre as personagens. Esses laços produzem a perceptível divisão entre o mundo natural e o sobrenatural e acabam por promover o principal embate presente na história, tanto do romance quanto da adaptação fílmica. Considerações finais
A partir da análise das obras em diferentes suportes, notamos como ocorre o agrupamento das personagens em dois diferentes pólos, que se identificam com uma das duas diferentes realidades apresentadas pelas obras: Coraline, com a ajuda do gato, deseja voltar ao mundo natural enquanto que a Outra Mãe, com a ajuda dos ratos, deseja que ela permaneça no mundo sobrenatural. Verificamos também como a mudança de suporte influencia na interpretação das personagens, como os ratos, que na narrativa pertencem ao mundo natural enquanto que na adaptação se configuram como criações da Outra Mãe.
Mesmo com as modificações inerentes ao processo de adaptação, podemos perceber que as obras em ambos os BARSANELI, M. A.| p. 295-302 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 301
suportes se configuram como obras inteiras, independentes e que, como propõe Hutcheon (2006), a adaptação não é concebida como uma replicação da obra literária mas sim como uma de suas possíveis interpretações. Referências bibliográficas
GAIMAN, N. Coraline. Trad. Regina de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
HUTCHEON, L. A Theory of Adaptation. New York: Routledge, 2006. LEITCH, T. Adaptation Studies at a Crossroads. Adaptation, v. 1, n. 1, p. 63-77, 2008.
LEITCH, T. Adaptation, the Genre. Adaptation, v. 1 , n. 2 , p. 106–120, 2008.
SELICK, H.; JENNINGS, C. Coraline e o mundo secreto. [Filme-vídeo]. Produção de Henry Selick e Clare Jennings, direção de Henry Selick. Reino Unido, Estados Unidos, 2009. 1 dvd, 100 min. color. som. STAM, R. Beyond Fidelity: The Dialogics of Adaptation. In: NAREMORE, J. (Ed.) Film Adaptation. London: Athlone, 2000. p. 54-76. 302 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
A CAPTURA DO OLHAR OU UMA POÉTICA INTERSEMIÓTICA NA OBRA CLARICEANA Marta Francisco OLIVEIRA 1
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Resumo: Este trabalho propõe uma abordagem de leitura e aproximaçãodostextosclariceanoscomastécnicasempregadas em outros sistemas semióticos, destacando a conexão que a autora talvez esperasse estabelecer com seu público através de sua literatura por considerar que o texto clariceano muitas vezes se inscreve como uma captação sensorial, para além da leitura. Como resultado de sua experimentação como a linguagem, a própria escritora afirmava sua intenção de, entre outras coisas, ‘pintar com palavras’, o que pode ser entendido como um esforço de transpor e transcrever as variações que sua narrativa apresenta, como em uma seqüência de cenas que se desenrolam lentamente, mas em nuances sutis. Para tal intento, partiremos da análise de como a narrativa de Clarice Lispector, destacadamente nas obras O lustre, A cidade sitiada e A maçã no escuro oferecem ao leitor uma experiência literária que se aproxima da experiência estética vivenciada em outros sistemas semióticos. Esta constatação ocorre devido ao modo como a autora constantemente requisita o olhar do leitor, evocando imagens que empregam a plasticidade a tal ponto que chega a confundir e a dificultar a leitura, caso a expectativa mantenha-se fiel a um ritmo rápido e fluente na prosa. Numa aproximação aos princípios e critérios cinematográficos (o cinema terá destaque na novela A hora da estrela, de 1977), interessa-nos rastrear a ‘montagem das cenas’ diante do leitor, ao passo que analisamos como o relato poético (TADIÉ, 1994) é construído. Palavras-chave: Literatura, cinema, Clarice Lispector, semiótica.
PPG Letras, Unesp/Assis. E-mail: martisima@gmail.com
Muito já foi dito sobre a obra e o fazer ficcional de Clarice Lispector. Mas este trabalho procura estabelecer um diálogo entre o fazer ficcional literário de Clarice e as relações intersemióticas que se apresentam em outras artes, com destaque para o cinema. Dentre tantos comentários de críticos, parece-nos válido destacar aqueles que fazem referência ao modo como a escritora se vale da linguagem para apresentar a seus leitores palavras com grande poder de evocar imagens, mas imagens incomuns, pouco usais, distantes da ideia simples ou simplista de figuração, retrato ou paisagem. Um diálogo profícuo de sua literatura com a pintura já é bastante conhecido. Ampliando essa questão, Barthes (1984) nos mostra a evolução da imagem através da apreensão da imagem através das lentes de uma câmara; portanto, um diálogo entre artes pode também abarcar a arte cinematográfica, o emprego da imagem em movimento, aliada a todos os demais recursos que se podem apreender em uma tomada ou numa sequência. E, considerando como a mídia explora cada vez mais e de variadas formas a imagem na atualidade, a crítica da argentina Beatriz Sarlo tornase bastante relevante para pensarmos como uma cultura imagética vem sendo desenvolvida desde as décadas de 1940 a 1970 no Brasil, período de plena produção literária de Clarice Lispector. O que Clarice propõe é uma leitura a um só tempo poética e plástica de palavras em um texto desenhado sobre o papel, uma narrativa na qual o olhar atua em suas múltiplas funções de percepção de sentidos, texturas, sensações, cores e lentos e complexos movimentos de linhas e curvas ao perambular por entre palavras que se revestem de poder evocativo de grande intensidade. Seu texto é uma matéria em metamorfose, uma proposta de ruptura que escapa às ideias mais ou menos definidoras de arte, literatura, gênero. Por exemplo, Ana Cristina de Rezende Chiara, na apresentação da nona edição
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de O lustre, em 1995, pela Francisco Alves Editora, menciona que “ler Clarice... significa deixar-se guiar, pela maestria da mão que escreve, num mundo de estranha beleza e cruel realismo.” A obra aqui destacada é considerada, por muitos críticos, um momento de continuidade e ruptura de um percurso circular da autora, rompendo com a apresentação de personagens com fortes características individuais, ao mesmo tempo em que dá continuidade a um projeto de enfoque no sujeito, conforme aponta Regina Pontieri (PONTIERI, 2001). E é a própria Regina Pontieri quem busca dar maior destaque ao papel do olha na ficção clariceana. A plasticidade que se faz presente no texto é o ponto de conexão entre a literatura e outros sistemas semióticos, promovendo uma experiência estética que aqui podemos aproximar ao cinema. O olhar exerce protagonismo, embora muitas vezes deslocado, hora colado à personagem, portanto interno, hora exteriorizado porque adere à voz narrativa; mas seguir a leitura das palavras é evocar mentalmente as imagens criadas e captar a mirada e a percepção, do olho por trás da objetiva. Tanto em cenas estáticas, como as descrições de objetos, como naquelas que transcorrem como sucessão lenta ou abrupta de quadros, a técnica empregada confere ao leitor a cumplicidade compartilhada com o espectador. Mas o olhar desperta a sensação. A estreita relação entre essas percepções pode explicar nosso interesse na imagem e como esta alcançou o protagonismo que tem nas sociedades atuais, na maioria das quais já não basta ver as imagens filmadas por outros, cada um pode sacar seu aparelho e produzir uma sequência qualquer, mesmo através do celular, para logo em seguida torná-la acessível a quem quiser ver, via internet. Está em voga a possibilidade de produzir, que não suprime a necessidade e a curiosidade de ver o que outros produzem. Por isso é relevante analisar como as obras de Clarice Lispector se aproximam da linguagem empregada OLIVEIRA, M. F. | p. 303-316 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 305
no cinema, principalmente quando nos remetemos a um contexto de escrita dos anos de 1940 e 1950, que abarca tanto o Brasil como países estrangeiros. Avellar (2007), ao aproximar as linguagens literária e cinematográfica, destaca que para fazer poesia seria conveniente passar – passear, vaguear, diria eu – os olhos pelo cinema; sem querer contestar a firmação, relevante para as considerações do estudioso, neste estudo preferimos destacar o oposto, sem dúvida mais profícuo para o cinema, pois este só tem a lucrar e se engrandecer com a leitura da literatura, seja ou não para fazer adaptações. Questões clássicas relacionadas às duas artes não são pertinentes neste estudo, pois não tratamos de adaptação ou fidelidade, termos caros ao processo de transição de uma linguagem para outra. Nosso interesse se concentra em analisar como Clarice consegue estabelecer uma relação intersemiótica no texto, que pode ser compreendida pelo leitor. Sem o auxílio da câmera literal, do objeto que captura a imagem em movimento, o texto em si apresenta o vaguear do olhar conforme a obsessão cinematográfica de acompanhamento da cena: a objetiva é o próprio olhar que, ao passar pelas linhas do texto escrito, projeta a imagem em sequência na mente: a imagem é mental, mas nem por isso sem a ilusão de real que o cinema conseguiu criar. Para além das influências cinematográficas perceptíveis em seu texto literário, a escritora demonstrou como o cinema passou a ter um papel de protagonista nas grandes cidades quando o coloca em evidência na novela A hora da estrela. Nesta obra de 1977 é o local em si, no espaço físico em que o público se posta diante da grande tela que a personagem miserável Macabéa sente uma espécie de conexão com o mundo e tem certa noção do outro como possível exemplo para si mesma. A jovem alagoana freqüenta ‘cinemas poeira’ e se conecta com as atrizes Greta Garbo e Marilyn Monroe, numa menção explícita ao cinema hollywoodiano e sua propagação 306 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
pelo mundo, em um processo que não manteve imunes nem mesmo as classes mais baixas da sociedade. O acesso à sala escura era um luxo permitido às vezes até mesmo para alguém que passava fome. No entanto, a fome cultural nascida e desenvolvida sob a égide da sétima arte também precisava ser saciada, talvez até com mais urgência do que a fome física, literal. E o desejo, criado e nutrido via filmes com as estrelas internacionais, era justamente o de ser Marilyn, pois a ‘altiva Greta Garbo’ parecia muito distante para Macabéa, sempre humilde e subserviente. Ainda assim, o mundo dos sonhos de Hollywood parecia ser real, e diante do espelho do escritório talvez seu rosto se metamorfoseasse para deixar de refletir aquele rosto magro e cheio de manchas brancas, os ‘panos’.
Em contrapartida a essa menção explícita ao cinema, nas três obras do período aqui destacado a aproximação se dá pelos modos de produção artística. O que queremos destacar é o que Pontieri chama de uma poética do olhar, que é perpassada pela idéia de Tadié (1994) de um relato poético, porque se constrói como narrativa subjetiva, poetizada e reveladora da capacidade do texto literário clariceano de captação de vários elementos sonoros, visuais, sensoriais, fazendo-os conviverem na mesma cena, propiciando a fruição que o cinema conseguiu conferir de modo mais pleno ao espectador, como uma exigência a mais ao leitor para o uso do suporte da imagem mental. Se a ação da câmera poupa a abstração, o esforço imaginativo de criação mental dos objetos, paisagens e conceitos, apresentando-os como dados factuais da realidade ficcional, também restringe a percepção, embora as imagens mantenham uma importante e vasta carga de informações sugeridas. Mas por vezes a restrição é essencial, sobretudo no que se refere à Clarice Lispector. Alguns estudiosos nos auxiliam a pensar em como as artes se relacionam, e é possível OLIVEIRA, M. F. | p. 303-316 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 307
fazer o exercício de aproximação das linguagens literária e cinematográfica de modo a chegar à conclusão de que há pouca diferença entre as imagens conceituais que a linguagem verbal evoca e os conceitos provocados pela imagem não verbal. Aliado a isso, ambas se baseiam em uma forma de narratividade, sobretudo o cinema, no qual esta se converte em traço hegemônico. Na contramão, talvez a procura da ausência da narratividade convencional seja perceptível na ficção clariciana, como se esta priorizasse a imagem em seu lento desfilar diante dos olhos, sem ações, apenas insinuando os contornos, as cores, as formas e suas implicações, como se tentasse eliminar o suporte narrativo para trazer para o primeiro plano o suporte descritivo mas estanque, como quadros sem o fio condutor na narração que os conecta uns aos outros; todavia, o ponto de contato reside no destinatário, projetado em sua mente e em seu imaginário.
Para exemplificar o exposto acima com a ficção da autora, tomemos O Lustre, obra de 1946, iniciada no Brasil e concluída na Europa. O título já remete a um objeto de descrição bastante complexa, que por sua vez tem seu uso diretamente ligado à luz, essencial para a imagem em sua nitidez. A capacidade de ver está a ele intrinsecamente relacionada, e é crucial a observação do lustre na sala da casa de Granja Quieta, território da infância de Virgínia, para a compreensão da personagem. Uma descrição lenta e detalhada é preterida em favor de uma condensada, restrita à metáfora, ao campo conceitual que a relaciona ao aracnídeo cheio de olhos, remetendo ao episódio da caixa de aranhas de Daniel, o irmão de Virgínia, responsável por seu olhar estrábico, ‘vesgo’. É essa descrição que permite o vaguear dos olhos e a percepção de como aquele objeto posicionado no centro da sala é revelador, cena que funcionaria bastante bem numa filmagem cinematográfica, guiando as lentes da câmera: não mera imagem estática, mas em movimento para abarcar o todo, os 308 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
detalhes, aproximando-se, distanciando-se. Assemelhandose a uma pintura, independente, capaz de evocações que tocam diretamente os reinos incomunicáveis do espírito, a linguagem desejada pela autora tenta transformar sonhos, sensações e evocações em pensamento, comunicar sensações tão particulares, individuais, a ponto de existirem por conta própria. Porém, é recurso da linguagem trabalhada pela autora a busca de apoio em elementos que a fazem criar imagens sugestivas. Como resultado, em O lustre a descrição da escada, da sala vazia e do próprio objeto lustre reveste-se de uma beleza plástica, pictórica, captada através do jogo de luz, sombras, cores e movimento do olhar se dirigindo àquilo que o momento de apreensão deve capturar:
Os degraus subindo sinuosos alcançavam uma graça firme tão leve que Virgínia perdia a sua percepção quase ao possuí-la e interrompia-se à sua frente vendo apenas madeira empoeirada e veludo encarnado, degrau, degrau, ângulos secos. Sem saber por quê, detinha-se no entanto, abanando os braços nus e finos; ela vivia à margem das coisas. A sala. A sala cheia de pontos neutros. O cheiro de casa vazia. Mas o lustre! Havia o lustre. A grande aranha escandescia. Olhava-o imóvel, inquieta, parecia pressentir uma vida terrível. Aquela existência de gelo. Uma vez! Uma vez a um relance – o lustre se espargia em crisântemos e alegria. Outra vez – enquanto ela corria atravessando a sala – ele era uma casta semente. O lustre. Saía pulando sem olhar para trás. (LISPECTOR, 1995, p.14,15)
Observando as considerações mais específicas sobre a relação cinema/literatura, podemos olhar o texto clariceano com base nos conceitos e técnicas de montagem que deslocam o olhar do diretor e da câmara como algo externo para dar OLIVEIRA, M. F. | p. 303-316 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 309
lugar à percepção que o próprio personagem possa ter do mundo ficcional, o que faz com que o narrador desapareça. No texto, essa informação é apresentada de modo complexo, pois há uma voz aparentemente em terceira pessoa que se confunde com a da personagem. A sequência de frases é como uma montagem, por vezes em aparente desconexão entre o que se apresentaria como sendo a lógica da narrativa e a cena descrita. Porém, com o uso de técnicas de montagem cinematográfica, as peças desconexas poderiam, não encontrar seu elo de ligação, pois eles existem, mas demonstrar como a imagem e a percepção (da personagem e do leitor/espectador) se aliam: “degrau,degrau, ângulos secos”; “ela vivia à margem das coisas”; a sala cheia de pontos neutros”; “a grande aranha escandescia”. Há uma espécie de ‘montagem’ operada com a sucessão rítmica das imagens, congregando outros recursos que fornecem a percepção geral dos elementos narrados, mas sempre direcionados por um olhar a um só tempo interno e externo. Além disso, é muito emblemático que a própria protagonista tenha um certo defeito no olhar, pois em Clarice Lispector o olhar se converte em elemento essencial para sua estética. No texto da escritora brasileira, o exercício da leitura é realizado a partir do vaguear dos olhos pelas cenas que se desenvolvem – mas não se desenvolvem em ações –, para delas extrair uma interpretação. A autora, sem dúvida, se destaca ao criar as imagens que farão a ponte entre mundo real e mundo ficcional invocado na imaginação leitora, numa forma própria de uso da estética cinematográfica e ao tudo-imagem, tomando uma expressão de Barthes (1984), que esta propicia. O olhar do leitor, então, também foge ao convencional, pois de outro modo a primeira impressão de estranheza do texto literário não permitiria a apreciação de todas as suas nuances. A forma de olhar deve, portanto, assemelhar-se ao olho de Virgínia, após espiar a caixa de aranhas de Daniel, em mais 310 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
um dos jogos cruéis de seu irmão, quando ameaçava com a abertura da caixa a qualquer desobediência de sua parte. Uma primeira vez Virgínia espiou a caixinha, entretanto “recusou enojada. Mas terminou colando um olho no buraco da caixinha e nada vendo senão movimentos vagarosos na escuridão.” (LISPECTOR, 1995, p. 37). Somente depois de mencionar que um dia a caixa afogou-se na água da chuva que invadiu o esconderijo e Daniel decidiu se desfazer de suas aranhas, o narrador nos informa que
o olho com que ela espiara as aranhas doía. Durante dias lacrimejara torto, caído e de manhã ela não podia abrilo até que o calor do sol e de seus próprios movimentos acordava-o. Inchou depois, insensível e sem sangue. Quando tudo passou, já não era o mesmo, tornara-se imperceptivelmente vesgo e menos vivo, mais lento e úmido, mais amortecido que o outro. E se escondia com uma mão o olho são, via as coisas separadas dos lugares onde pousavam, soltas no espaço como numa assombração. (LISPECTOR, 1995, p. 37,38)
A partir de então, o modo como Virgínia vê o mundo é meio distorcido, levemente irreal, fantasmático, o que pressupõe uma nova experiência com o real e com sua representação, sugerida pela autora. O olhar, sempre requisitado, pode ser o dos personagens ou do próprio leitor, não importa; importa acompanhar o vaguear dos olhos da voz narradora, que não narrará os quadros vistos como se os representasse tal como são, mas conforme se descortinam diante de sua subjetividade, prenunciando experiências mais radicais com o real que, no contexto de 1940, ainda estavam por vir, tanto no campo literário como nas experimentações do cinema. Quanto às obras e A cidade sitiada, ainda o olhar se destaca, trazendo o cenário para o primeiro plano, pleno de imagens OLIVEIRA, M. F. | p. 303-316 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 311
e exíguo de ações (enquanto acontecimento e sucessão de fatos, ações, cenas). A maçã no escuro, obra iniciada em 1952 e terminada em 1956, apresenta um protagonista masculino que se encontra na impossibilidade de dominar a realidade circundante, e é a ela submetido através do exercício de sua reconstrução, uma reconstrução da realidade que acarreta uma relação com o espaço no qual se desenvolve. Aliado à vontade de se desvencilhar do passado, do mundo anterior, para Martim era também necessário buscar refúgio e paz, e essa busca prossegue até o fim da narrativa, mesmo que seja uma busca não exterior, mas interna e em si mesmo:
Mas para encontrar essa paz, teria que esquecer os outros. Para encontrar esse refúgio, teria que ser ele mesmo: aquele ele mesmo que nada tem a ver com ninguém. Mas tenho direito a isso!, reivindicou cansado, que diabo! Que tenho a ver com os outros! Há um lugar onde, antes da ordem e antes do nome, eu sou! E quem sabe se esse é o verdadeiro lugar-comum que saí para encontrar? Esse lugar que é nossa terra comum e solitária, e aí é apenas como cegos que nos apalpamos - mas não é só isso o que queremos? Eu te aceito, lugar de horror onde os gatos miam contentes, onde os anjos tem espaço para na noite bater asas de beleza, onde entranhas de mulher são o futuro filho e onde Deus impera na grave desordem da qual somos os felizes filhos. (LISPECTOR, 1998, p. 319,320)
As considerações da voz narrativa deixa entrever outro ponto de contato da narrativa literária com a fílmica, na qual a intertextualidade é bastante aplicável, numa sucessão de citações quase infinitas em suas possibilidades, alimentandose da própria arte e incorporando outras formas artísticas e gerando uma multiplicidade de significados. Incorporar habilmente os elementos de outras linguagens artísticas
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permite compor mais ou menos sutilmente os caracteres que se desejam apresentar aos espectadores. A narratividade é recurso inesgotável da cinematografia, e neste ponto está em conexão com a literatura, seja em prosa ou em verso, mas que também se utiliza deste recurso. Não se negam as grandes diferenças entre a página e a tela do cinema, entre a percepção descrita em palavras e aquela feita através de imagens em movimento ou mais ou menos estáticas. Mas em ambos os casos o imaginário é acionado, quase sempre acompanhado de sentimentos, de sensações, o que era tão caro à Clarice Lispector. Hoje em dia, as mídias se alimentam incessantemente de, tornando corriqueiro o fluxo entre as artes, apesar dos sistemas semióticos serem distintos. Porém, ambas tocam o público e seus recursos se assemelham ora em modo ora em resultado. Por isso, parece acertado analisar e aprofundar a questão dos modos de fazer que remetem à busca do tudo do cinema – para além da imagem – no que chamamos de captura do olhar ou uma poética intersemiótica na obra de Clarice Lispector. Devido ao fato de que a escritora antecipava, em sua ficção, elementos que mais tarde se converteriam em cenas cotidianas da vida nas sociedades ocidentais, a leitura de sua obra contém uma chave de leitura para a percepção do processo de valorização da imagem e seu deslocamento para a própria constituição da contemporaneidade. A relação intersemiótica entre duas linguagens com tanta penetração na vida diária do homem ocidental – e mesmo oriental, funda as bases essenciais para a compreensão da vida social, bem como para qualquer análise atualizada da configuração das sociedades humanas. Projeto árduo e ambicioso, sem dúvida, para os estudiosos da obra de uma autora que se contentava em olhar poeticamente para o mundo aparente das imagens, para daí extrair a percepção do invisível. OLIVEIRA, M. F. | p. 303-316 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 313
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REMINISCÃO: REMINISCÊNCIA DE INVENÇÃO Maryllu de Oliveira CAIXETA1
Resumo: “Reminisção” é um dos quarenta contos de Tutaméia: terceiras estórias de João Guimarães Rosa. A estória de vida e morte do sapateiro Romão tem como conflito seu amor por Drá. Ele a ama sem que ela mereça por aparência ou valor, o que escandaliza o povo. O notório pouco valor da amada contrasta com o esmero do sapateiro para com ela. Depois de uma sucessão de erros e defeitos crescentemente agravados por parte de Drá, o conto termina com a morte de Romão que, em boa medida, foi provocada pelo tratamento extravagante que a esposa deu a uma doença leve do marido. Drá reuniu o povo e o padre no quarto e todos assistiram sua transfiguração na luminosa Nhemaria, no momento em que o marido morreu ou fingiu que morreu. O instante da morte de Romão pode ser nomeado pelo título do conto, como uma reminisção que é um neologismo no qual o substantivo reminiscência se condensa ao aumentativo –ção, o que sugere tratar-se antes de invenção que de ciência. A redenção de Nhemaria realiza-se por um instante em que todos os presentes vislumbram o que até então apenas Romão enxergava na mulher. A opinião pública acaba absorvendo a sabedoria amorosa de Romão moribundo comparado pelo narrador a um triângulo inteiro rompido das amarras e rodeado por ilhas. A perfeição da figura geométrica reforça a sugestão da teoria platônica da reminiscência que o conto reverte ao narrar uma sequência de ações de nonsense que resultam em uma transfiguração da feiura e da maldade. Propomos um estudo comparado do conto “Reminisção” e da teoria platônica da reminiscência revertida em nome do valor que a invenção assume em Tutaméia. Palavras-Chave: Guimarães Rosa, Tutaméia, conto, invenção.
1 Doutora pela UNESP-Araraquara. E-mail: maryllucaixeta@yahoo.com.br
O nome do conto “Reminisção” é um neologismo, o que já assinala a opção da estória por uma nova lógica ou a recusa dos padrões clássicos de representação fundados no princípio racional apto a conferir verossimilhança ao encadeamento das ações no enredo. Ao recusar a verossimilhança ostensivamente, o conto entra em conflito com as bases do pensamento ocidental, o que inclui a noção mais corrente de mímesis traduzida para o latim como imitatio. A disseminação e a vigência da noção de imitação nos estudos de literatura evidencia a permanência do caráter normativo das apropriações latinas das filosofias de Platão e Aristóteles. No conto de Guimarães Rosa, o neologismo “reminisção” dissolve a teoria platônica das reminiscências e o enredo nega seguidamente a prescrição aristotélica de verossimilhança.
O entendimento da mímesis como imitação pressupõe a política platônica de inventar o erro para colocar o filósofo na posição daquele que enuncia verdadeiramente e a exigência aristotélica de adequar-se a mimese ao verossímil ou às opiniões tidas como verdadeiras pelos sábios. A prescrição da boa mímesis, a que participa na Forma ideal, estabelece como semelhança inferior ou degradada a mímesis não verossímil que produz diferença, erro, aquilo que não existe como o neologismo, o não ser, o cômico e o humor excessivo que não repete a boa opinião nem reprova. “Reminisção” fornece neologismos significativos que ajudam a compor o conto como uma alegoria da nova lógica apresentada pelo conceito de “reminisção” proposto como uma reminiscência de invenção que afirma seu caráter produtivo e nega o princípio supostamente racional das convenções públicas. Segundo o capítulo “As portas da visão em dois contos de Tutaméia”, de Aguiar (2001, p.234, 243, 245), o neologismo “reminisção” pode ter sido formado como mescla dos vocábulos “rememoração” e “reminiscência”. A influência
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da teoria platônica da reminiscência no pensamento ocidental nota-se, por exemplo, na concepção do artista como ser genial de sensibilidade privilegiada para a percepção intuitiva do sagrado. O nome do protagonista Romão anagramatiza amor e remete a uma designação popular do diabo: Romãozinho.
Por sua vez, o neologismo Cunhãberá nomeia o povoado onde se passa a estória e parece ter sido formado a partir do acoplamento dos substantivos “cunhã”, que designa a mulher do caboclo (HOUAISS; VILLARA, 2009), e “Berá”, que remete ao Arco Triunfal de Berá2 em Terragona na Espanha. Conforme se sucedem os acontecimentos, o povo vai renomeando a mulher de Romão. A princípio, por causa de sua feiura, chamaramna Drá que parece ser uma abreviação de dragão, “sinisga de magra”. Depois que Drá trai Romão com um moço vindiço que em seguida se desfaz dela, o povo apelidou-a de Pintaxa que parece ser uma corruptela pejorativa do regionalismo “pinta” com o sentido de aspecto sintomático. No desfecho do conto, Pintaxa emociona-se com o desfalecimento de Romão, o que faz o povo de Cunhãberá reunido no quarto do marido moribundo partilhar com ele a nova visão alva, belíssima, de Nhemaria. Romão por derradeiro se soergueu, olhou e viu e sorriu, o sorriso mais verossímil. Os outros, otusos, imaginânimes, com olhos emprestados viam também, pedacinho de instante: o esboço, vislumbrança ou transparecência, o aflato! Da Drá, num estalar de claridade, nela se assumia
2 O arco de Berá foi construído no ano 13 a.C pelo imperador Augusto possivelmente para marcar limites territoriais (http://www.rutasconhistoria.es/loc/arcode-bara). Augusto defendia o regime republicano, mas seu governo transitou dele para o Império monárquico e militar do qual se tornou o supremo líder graças a um intenso investimento e empreendedorismo que o legitimava como restauração da tradição imprescindível para a vigência da república futura. A era de Augusto foi cantada por Horácio como um tempo de feitos inusitados e exuberantes. O governo de Augusto trouxe a impressão de que se anunciava “uma nova era na história dos romanos, caracterizada pelo resgate de algo bom vivido no passado mas que há muito se perdera” (SILVA, 2001, p.47).
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toda a luminosidade, alva belíssima, futuramente... o rosto de Nhemaria. (ROSA, 1979, p.83)
O neologismo Nhemaria parece acoplar o vocábulo guarani “nhé” ao nome Maria que na tradição religiosa cristã reúne em seu campo semântico características como a pureza, a virgindade, a alvura e a beleza. “Escolheram-se, no Cunhãberá, destinado lugar, onde o mal universal cochila e dá o céu um azul do qual emergir a Virgem.” (ROSA, 1979, p.81) Antes que os demais, Romão mostrou ser um iniciado na verdade acessada na reminisção, na reminiscência de invenção, numa espécie de desvelamento de Nhé. Para nós, Guarani – Mbyá, o ser Nhe´e é o princípio de nós, seres humanos, pessoas. Ele é um espírito que dá todo o sentido de nossas vidas. Todos os hábitos e comportamentos são pertencentes a Nhe´e. Nós, seres humanos, somos apenas representações imperfeitas deste ser perfeito que é o Espírito Nome Nhe´e. (POTY, 2013)
Quando mentiu que morreu no desfecho do conto, Romão desvelou Nhemaria. “Mentiu que morreu. Deu tudo por tudo.” O triunfo de Romão sobre a opinião pública depende de sua aptidão superior para mentir ou para contrariar a razão. “Disso ninguém dava razão: o atamento, o fusco de sua tanta cegueira? Sapateiro sempre sabe. Ou num fundo guardasse memória pré-antiquíssima. Tudo vem a outro tempo.” (ROSA, 1979, p.82 e 83) De acordo com a parábola do sapateiro de Esopo, Zeus incumbiu Hermes de distribuir o veneno da mentira entre todos os artesãos dos quais o sapateiro é o último e o mais bem servido. Ao lermos os nomes como indícios de um enredo alegórico,
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Cunhãberá é o lugar onde a mulher do caboclo3 passa pelo arco triunfal aberto pelo sorriso mais verossímil de Romão, amoroso-tinhoso-ilusor-gênio-augusto, que acaba por vencer a opinião pública. O sorriso de Romão é qualificado com humor como “mais verossímil” ou como tendo um fundamento supraracional superior à opinião pública. De acordo com Platão, a opinião pública erra por não ter a garantia do conhecimento racional do ser das coisas, por isso ela deve orientar-se pela palavra do filósofo iniciado na visão do Ser que o capacita a aconselhar ações bem sucedidas. Contrário à opinião pública, o caboclo Romão desposa Nhé representando-a com uma adequação superior de acordo com o novo nome de Nhemaria. O humor está no fato dessa adequação não ser filosófica, mas nonsense ainda que nossa interpretação possa justificála admitindo-a como sabedoria de caboclos exterminados na colonização ou como atitude amorosa ante a diferença apresentada nos traços etíopes da amada que a comunidade desqualifica como feios. O narrador adere à opinião pública ao descrever Drá: “Divulgue-se a Drá: cor de folha seca escura, estafermiça [mal-arrumada], abexigada [abexi ou abissínia + gada4], feia feito fritura queimada, ximbé-ximbeva [que apresenta nariz pequeno e achatado]; primeiro sinisga de magra, depois gorda de odre, sempre própria a figura do feio forada-lei.” (ROSA, 1979, p.8; HOUAISS; VILLARA, 2009) [chaves minhas] A redenção de Pintaxa em Nhemaria não significa a
3 O substantivo masculino “caboclo” designa indivíduo mestiço de índio, que pode ser especificamente um sertanejo desconfiado, dançador de folguedos populares e, ainda, “designação genérica dos espíritos de ancestrais indígenas brasileiros que supostamente surgem nas cerimônias rituais e que foram idealizados, já no século XX, segundo os modelos de orixás da teogonia jeje-nagô e do Indianismo literário da fase romântica” (HOUAISS; VILLARA, 2009). A noção do caboclo orixá aproxima-se do caráter demiúrgico ou organizador do universo do gênio romântico. 4 Gada é o nome de um bastão de metal oriundo do sul da Ásia. (GADA, 2013) Gada é o principal artefato do deus hindu Hanumam (Hanu: mandíbula; mam: desfigurada ou proeminente) (HANUMAN, 2013) “Todo o tempo o atanazava, demais de cenhosa, caveirosa, dele, aquela mulher mandibular.” (ROSA, 1979, p.82)
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assimilação, por parte do povo de Cunhãberá, de seus traços de abissínia ou etíope; para considerá-la belíssima, a opinião pública tem de enxergá-la alva e luminosa. Na teoria platônica das reminiscências, a opinião pública deduz as virtudes a partir da observação dos acontecimentos e é uma fonte de enganos. A opinião pública na teoria platônica das reminiscências
Em questão na Grécia nos séculos V e IV, a opinião pública e seus parâmetros éticos estavam em discussão. Os interesses dos diferentes grupos entravam em conflito e sua defesa incluía a manipulação da opinião pública. No final do século V, predominam os democratas que repudiam os filósofos pelo elitismo de suas investigações e os sofistas caracterizados por Platão como aqueles que empregam uma argumentação sem fundamento de verdade (POLISELI, 2003, p.173). Platão afirma que a oratória dos sofistas tem fundamentos falsos e propõe que o enunciado verdadeiro do filósofo é sustentado por uma epistemologia legitimando-a por meio da teoria mítica das reminiscências.
A teoria da reminiscência é uma noção central no pensamento de Platão que pode ser tomada como um conceito ou como uma metáfora mítica e foi apresentada nos diálogos Mênon, Fedon, Fedro e na Leis (MORA, 1964, 560-561). Sócrates empreendia o método dialético ao fazer questão de filosofar por meio do diálogo e preferia que a interrogação e as respostas fossem elaboradas em períodos curtos. O método dialético leva o interrogado a exercitar a razão no exame das coisas sensíveis para capacitá-lo à anamnese ou à reminiscência das ideias. O filósofo verdadeiro aparece com o exercício da dialética na contemplação do Bem seguida da revisão das ideias e particulares associados ao Bem. 322 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
No Mênon, o interlocutor de Sócrates leva-o a examinar a hipótese de virtude ser ciência, a perguntar-se o que é virtude e propor que ciência é reminiscência. Segundo a tradição religiosa referida a Homero e que os filósofos também tinham em consideração, a virtude pode ser guiada pela opinião pública (doxa) e pela inspiração divina de adivinhos e poetas. A opinião pública frequentemente se presta à maledicência ou ao louvor de uma situação particular; de modo diverso, sob inspiração divina, a fala do poeta assemelha-se ao discurso mítico por propor uma verdade geral, latente e de aparência estática que só vem a ser abalada quando passa a destoar de novas correntes de opinião (POLISELI, 2003, p.157). A opinião pública concebe uma virtude lançando hipóteses interessadas em suas consequências práticas que podem ser aplicadas na esfera particular ou na atuação política. Sócrates pergunta a Mênon se a virtude concebida pela opinião pública é ciência, pois, caso seja, para se chegar à ciência convém partir de uma opinião comum ainda não verificada como verdadeira ou falsa, fonte de felicidade ou infelicidade.
No Mênon, o representante mais radical da opinião pública é Anitos que defende a democracia, mas rejeita os ensinamentos dos sofistas cuja popularidade pode ser atestada, por exemplo, pelo enriquecimento de Protágoras. Anitos defende a opinião da maioria e sua representação pelos políticos, mas rejeita a deferência da maioria quanto aos sofistas. A posição de Anitos, contrário aos sofistas e favorável à democracia, tem sua contradição explicitada no diálogo que demonstra um maior potencial corrompedor por parte da opinião pública que por parte dos sofistas assumidamente contraditórios. Quando Sócrates argumenta que os políticos não sabem sequer educar os próprios filhos, Anitos ameaça-o afirmando que difamar é perigoso na cidade onde a opinião pública tem poder de decisão e, mais tarde, vem a ser aquele que denuncia Sócrates nos tribunais (POLISELI, 2003, p.158-159 e 166). CAIXETA, M. O. | p. 317-329 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 323
Anitos toma a opinião pública como único critério, quando afirma que Sócrates fala mal. Sócrates fala mal, porque fala em desacordo com a opinião comum. Chama a atenção aqui, o exagerado apego de Anitos à opinião pública, pois Sócrates referiu-se aos estadistas de uma forma branda, com um tom reticente, que de forma alguma parece infamante. Sócrates insinua que Anitos sente-se pessoalmente atingido por se considerar um deles e lamenta que Anitos não saiba o que é difamar (ΚαΚηϒoρεîv) alguém (95 a).
Anitos representa o império cego da opinião pública. Para ele, o simples exame crítico de uma decisão da opinião pública é falar mal. A opinião pública mantém seu império permitindo que se faça mal a quem não concorde perfeitamente com ela. Ela é como um animal grande e forte cujos gostos devem ser cuidadosamente estudados para saber como agradá-lo e daí tirar proveito (Rep. VI. 493 a). (POLISELI, 2003, p.160)
Na República (538 c), Sócrates concede que algumas das opiniões públicas sobre virtudes como a justiça e a honestidade devam ser ensinadas às crianças e enraizadas a seus costumes, mas ressalta que a dificuldade está em discernir qual dessas opiniões são educativas. O questionamento das máximas morais se faz pelo exercício da dialética no qual o jovem deve ser iniciado apenas depois que tiver fixado no espírito a certeza dos princípios da sabedoria, o que afasta o perigo da rebeldia prejudicial aos debates públicos e a decisões políticas preocupadas apenas com a anuência da maioria (POLISELI, 2003, p.161). Como saber de finalidade prática ou interessado nas consequências, a opinião pública articula-se à opinião verdadeira racionalmente adquirida pela episteme do filósofo que a supera por oferecer certeza quanto à verdade caracterizada como una. O princípio da unicidade da verdade é imprescindível à alma e à política. A alma realiza-se pela
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harmonização e unificação de seus movimentos; a cidade preserva-se pela unificação da pluralidade que tende à dispersão. A opinião pública pensa possuir a verdade e com ela sustenta o poder político, mas ela só pode ser atingida pela episteme do filósofo (POLISELI, 2003, p.152). Sócrates reconhece o poder da opinião pública mencionando-a e, por vezes, partindo dela ao propor um debate sobre valores.
Sócrates cita versos de Píndaro para afirmar a imortalidade da alma, suas sucessivas encarnações, a possibilidade de nos lembrarmos do que aprendemos nas vidas passadas e a homogeneidade da natureza que, uma vez conhecida em determinado aspecto, revela-se em todos os outros. Para demonstrar a validade do que afirma, Sócrates interroga um escravo acerca de uma figura geométrica e o interrogado, a princípio, reproduz opiniões alheias, mas conforme a demonstração indireta da matemática avança descobre em si mesmo as opiniões verdadeiras até então desconhecidas. (SOUZA, 1971, p.52, 53) Para se alcançar a ciência, a investigação deve debruçar-se sobre diferentes objetos, encadear hipóteses e abstrações mais simples, como as da matemática que apreendem a figura no sólido, para atingir “outras hipóteses mais universais, até chegar ao princípio não hipotético do qual decorrem todas as identidades e proporções. Esse caminho ascendente é a dialética, que promove a passagem da opinião para a ciência.” (POLISELI, 2003, p.175) A verdade das coisas é inerente à alma imortal e apta a lembrar-se do que já aprendeu.
Na República, Platão defende que a verdade reconhecida pelo filósofo precisa ser aceita pela opinião pública sem a qual ela não se efetiva. No Mênon, o caminho da ciência ou da episteme do filósofo é traçado pela teoria da reminiscência e principia pelo reconhecimento das aporias às quais a opinião pública frequentemente conduz. O exercício da geometria é CAIXETA, M. O. | p. 317-329 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 325
o primeiro estágio de verificação empírica de hipóteses ou opiniões verdadeiras. Uma vez atestada uma hipótese, para se chegar à ciência é preciso avançar por meio do método dialético que rejeita sucessivamente as aporias com a finalidade de investigar determinado princípio racional acessado como reminiscência dos encadeamentos das causas. Assim, a partir de opiniões verdadeiras aleatórias, concedidas por um favor divino, podemos chegar à ciência ou ao conhecimento racional dos princípios de causalidade (POLISELI, 2003, p.128).
Ainda há a possibilidade de uma opinião acertada, a doxa alethes que resulta da apreensão do mundo do devir por parte de uma “alma ordenada em que a parte racional não está prejudicada pelo turbilhão dos sentidos.” (POLISELI, 2003, p.147 e 148) Opinião é generalização e indução. No diálogo homônimo, Mênon apresenta a hipótese sofística da impossibilidade paradoxal de se vir a conhecer algo. Como perguntar pelo que não conheço? A pergunta já contém algo da resposta. Se admito que desconheço algo, como o identifico entre outros desconhecidos? Mênon menciona o paradoxo apresentado pelos sofistas acerca do conhecimento, que não significava uma desistência ou desinteresse a respeito da virtude, por interessar-se pelos meios de adquirir conhecimento capaz de conduzir a excelência e à manifestação da virtude também na forma política. Defendendo que virtude é conhecimento ou sabedoria daquele que possui a episteme e vício é ignorância, Sócrates tenta deslocar o interesse de Mênon sobre a virtude para a investigação acerca do conhecimento que a condiciona, mas Mênon não deseja ir além da operação simples à qual o escravo fora induzido por Sócrates e interessa-o apenas investigar uma opinião para formular uma hipótese e saltar logo a uma conclusão acerca da virtude. Diante do desinteresse de Mênon pela investigação do que seria a ciência, Sócrates assinala a diferença entre a virtude guiada pela opinião reta até a verdade e aquilo que 326 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
a opinião pública corrobora. Como a Mênon só interessa a virtude política que atua apoiada no conhecimento opiniático, Sócrates reitera que a opinião pública pode deixar-se guiar pela opinião reta do filósofo que a orienta a atuar segundo a verdade para obter consequências afortunadas sem pôr-se à mercê de um favor divino (POLISELI, 2003, p.175, 176, 177).
Ideias sem matéria: recordação de horror e invenção de humor
“Romão, meão, condiçoado, normalote, pudesse achar negócio melhor”. Drá era, sem dúvidas, mau negócio. “Medonha e má; não enganava pela cara”. O enredo de nãosenso é produzido pela desvelo do amante em contraste com a desvalorização da amada pela opinião pública. A redenção de Nhemaria realiza-se por um “pedacinho de instante” em que todos vislumbram, pelo olhar do amado e a verossimilhança de seu sorriso, uma Drá diferente. “Da Drá, num estalar de claridade, nela se assumia toda a luminosidade, alva, belíssima, futuramente ...o rosto de Nhemaria” (ROSA, 1979, p. 81 e 83). O desfecho do conto leva a outra leitura na qual revemos a construção da opinião pública da qual o narrador assume a perspectiva e pontualmente assinala como intolerante à diferença. A outra leitura retroativa tem o efeito de uma reminisção, pois a transubstanciação do desfecho abre espaço para uma nova opinião pública acerca de Nhemaria e ela se afirma no futuro, o que faz a invenção de Romão prevalecer sobre as convenções que até então reservavam a Drá a propriedade de fora-da-lei ou de fora-da-norma. “Os outros, otusos, imaginânimes, com olhos emprestados viam também, pedacinho de instante: o esboço, vislumbrança ou transparecência, o aflato!”. O final ambíguo, quando Romão morreu ou fingiu que morreu, ressalta que a comunidade CAIXETA, M. O. | p. 317-329 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 327
vislumbra por um instante Pintaxa em Nhemaria. Como em outros textos de Tutaméia, a narrativa se põe em dúvida ao questionar também a interpretação da aparência dos acontecimentos pela comunidade. Romão soergue-se na cama ao ter uma visão do “aflato!”: uma brancura ambígua de alento ou inchação, erisipela, que por um instante ilumina na Drá o futuro “rosto de Nhemaria”. O povo viu “com olhos emprestados” do amado. Associado ao conhecimento racional cuja universalidade se confirma numa ótica particular, o sentido da visão no conto é superado pela capacidade ilusória do sapateiro que a narrativa ressalta como metonímia da invenção. “Sua história recordada foi longa: de tigela e meia, a peso de horror. O fundo, todavia, de consolo. Esse é um amor que tem assunto. Mas o assunto enriquecido – como do amarelo extraem-se ideias sem matéria. São casos de caipira.” A história de Romão é longamente recordada pela comunidade a peso de horror e com fundo de consolo. O narrador, no entanto, encurta-a ressaltando as ações paradoxais de Romão e opta pelo humor. Trata-se de uma estória de ideias sem matéria e o não-senso da operação é encenado como atos de amor de Romão. “Todo fim é exato. Só ficaram as flores” (ROSA 1979, p. 83). Referências bibliográficas
FERRATER MORA, Jose. Diccionario de Filosofia. Buenos Aires: Montecasino, 1964. GADA. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/ Gada_(mace)>. Acesso em: 20 out. 2013. 328 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
HANUMAN. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/ wiki/Hanuman>. Acesso em: 20 out. 2013. POLISELI, Romualdo Vicentin. Opinião verdadeira e opinião pública no Mênon de Platão. 2003. 186f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. POTY, Vherá. Nhe’e – espírito nome, som, melodia da vida. <http://osguaranimbya.com.br/?p=937>. Acesso em: 20 out. 2013. ROSA, João Guimarães. Tutaméia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. SILVA, Gilvan Ventura. “Política, ideologia e arte poética em Roma”: Horácio e a criação do principado. Politeia, Vitória da Conquista, v.1, n.1, p.29-51, 2001. Disponível em: <http://periodicos.uesb.br/index.php/politeia/ article/viewFile/134/146>. Acesso em: 18 mar. 2011. SOUZA, José Cavalcante de. “A reminiscência em Platão”. Discurso, v. 1. n.2, p. 51-67. São Paulo: FFLCH-USP, 1971.
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HISTÓRIA DE PONTES: AS MADRUGADAS RECIFENSES E SEUS ESPAÇOS ASSOMBRADOS Milena Karine de Souza Wanderley 1
Resumo: São várias as máscaras que podem ser desveladas em um poema. Desde sua construção estrutural até as intenções discursivas nele contido, tudo pode principiar a verticalização de uma nuance, de um sinal, de um diálogo. As razões que levam um indivíduo a desbravar as suas possibilidades são tão plurais quanto são os olhares no mundo. Pois se é através da Literatura que nos tornamos mais humanos, é a partir das articulações poemáticas que podemos nos enxergar mais caleidoscópicos, pois estamos contidos nelas subjetiva e coletivamente, ao mesmo tempo. E é assim que analisamos o poema “História de Pontes”, publicado no livro Crime na Calle Relator de João Cabral de Melo neto (1897). É através do caleidoscópio engendrado por Cabral e suas criações estéticas lógico/matemáticas que pousamos o olhar sobre o Recife, suas pontes, percursos e mistérios. Primeiro, desvendando a significação de suas intenções matemáticoestruturais e depois investigando o diálogo que esse seu texto mantém com a obra de Gilberto Freire (1987) Assombrações do Recife Velho. Aqui traçamos um percurso analítico que faz da estrutura ponte para a significação dos espaços e das assombrações que habitam o imaginário recifense resgatado pelos dois autores através de gêneros diferentes, com olhares diferentes, mas com mesma essência mítico/antropológica. Para tal, contamos com as contribuições teóricas do próprio Gilberto Freire (1987) através da obra já mencionada, com os questionamentos acerca da construção poética de Octávio
1 Milena Karine de Souza Wanderley é aluna do programa de pós-graduação em Letras da UFMS, campus de Três Lagoas, orientada pela professora doutora Kelcilene Grácia-Rodrigues.
Paz em O Arco e a Lira, com as contribuições dialógicas bakhtinianas em Estética da criação verbal (2003) e com o conceito de monstro de Jorge Leite Júnior (2007) em artigo publicado na Revista Eletrônica Científica Com Ciência, que tem por título O que é um monstro?. Palavras-chave: Poesia, espaço, engenharia estética, diálogo e assombração.
De boca em boca Publicada em Crime na calle Relator em 1987 e escrita por João Cabral de Melo Neto, “História de Pontes” é um poema dividido em oito partes, de teor narrativo, que segue um esquema rítmico específico, o que sugere uma ligação direta com a poesia popular “cordel” como acontece em outros poemas nessa publicação. Crime na calle Relator (1987) foi publicado quando João Cabral já estava amadurecido no cenário literário nacional e traz poemas cujas estórias se baseiam nas lembranças no nordeste de sua infância, bem como nas suas vivências na Europa. O poema em questão vai estar baseado, justamente, em estórias que se eram conhecidas no Recife de sua infância e que mereceram também a atenção de um outro grande escritor pernambucano: Gilberto Freire cujo livro Assombrações do Recife velho (1987) traz as narrativas de causos assombrosos que permearam e permeiam o imaginário das gentes dessa cidade.
A primeira edição do livro de Freire data de 1955, ou seja, antes da publicação de Cabral, por isso além dos aspectos formais e da construção do espaço diante das percepções da personagem, há de se traçar considerações acerca das congruências temáticas encontradas em “História de Pontes” de Cabral e o causo “O Boca-de-ouro” relatado por Gilberto Freire. Esteticamente simétricas, as estrofes dísticas do poema
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em questão seguem um esquema emparelhado e cada uma das partes conta com quatro estrofes, ou seja, são sessenta e quatro versos que mantém um esquema de rima em seus pares da mesma forma em suas oito partes. O poema parece girar, esteticamente, em torno do número dois e seus múltiplos tendo o percurso entre as duas pontes como espaço em que se passa a narrativa forjada pela sequência musical dos dísticos. Se não fosse a divisão dos versos em quatro estrofes, estivessem elas juntas, musicalmente, o causo contado ganharia ares de cordel, poesia com intencionalidade oral largamente produzida no Recife desde muito antes do nascimento de João Cabral e difundida pelos populares que disseminavam muitos causos através da declamação de seus versos. Sobre os percursos que traçaram as estórias assombrosas do Recife, Gilberto Freire comentou em Assombrações do Recife velho (1987): (...) também não poucos terrores têm saído do Recife para assombrar matutos ingênuos, sertanejos crédulos, gentes sossegadas e temente a Deus, do interior. Assombrações nascidas, criadas, crescidas no Recife – à sombra dos seus altos sobrados, das suas maternais igrejas, dos seus quarteis, das suas pontes – têm chegado até aquelas gentes, fazendo os mais tímidos pensar na metrópole da região, como um antro de mil demônios disfarçados em cães misteriosos, em bodes sinistramente pretos, em bocas-de-ouro nauseabundas, em terríveis exus, em mães-d’água traiçoeiras que não existiriam – pensam os bons matutos – senão como coisas saídas das entranhas do Recife. (FREIRE, 1987:49)
E das entranhas do Recife também brota o causo contado por João Cabral, como sendo uma das versões para a assombração contada por Freire: “O Boca-de-ouro”. E, não por acaso, o poema chama-se “História de Pontes”, já que algumas dessas figuras assombrosas aparecem justamente nas pontes dessa cidade. WANDERLEY, M. K. S. | p. 331-350 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 333
Com a finalidade de traçarmos um percurso teórico, buscaremos fundamento para nossa análise na obra de Octávio Paz (1982) “O arco e a Lira” no que tange aos processos de pluralidade discursiva que envolve o exercício poético e em “Estética da Criação Verbal” de Mikhail Bakhtin (2003) para fins de discussão em torno das instâncias narrativas que nos parecem mais significativas nesse poema – a relação da personagem com a construção o espaço. Com a intenção, também, de complementar nossa análise acerca da significação das assombrações, monstros do imaginário recifense, buscamos aporte teórico no artigo de Jorge Leite Júnior (2007) O que é um Monstro? . Serão também referenciais teóricos das nossas análises os artigos acerca do livro de João Cabral. A engenharia poética
A poesia se estende, se mistura, constrói e desconstrói estéticas e universos. Ela se constitui pela plurissignificação das possibilidades discursivas que o manuseio estético pode proporcionar. Evento linguístico que se materializa através de sons, ritmos e imagens, a poesia é a manifestação da natureza humana ao longo dos tempos e está contida como experiência em muitas possibilidades artísticas. Todavia, é através da palavra que experenciamos o mundo. E é ela o princípio de construção do poema.
Sendo através da utilização dos recursos formais ou a partir da sua negação, a construção poemática é repleta de possibilidades, inclusive no que diz respeito ao diálogo com outras possibilidades discursivas como a narração, tipologia textual que possui instâncias estéticas cujas bases já estiveram atreladas ao verso simetricamente metrificado e ritmado. À respeito do ritmo e a motivação para sua articulação, Octávio Paz (1982), em O Arco e a Lira, faz a seguinte consideração:
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No fundo de todo fenômeno verbal há um ritmo. As palavras se juntam e se separam atendendo a certos princípios rítmicos. Se a linguagem é um contínuo vaivém de frases e associações verbais regido por um ritmo secreto, a reprodução sobre esse ritmo nos dará poder sobre as palavras. O dinamismo da linguagem leva o poeta a criar seu universo verbal. Utilizando as mesmas forças de atração e repulsa. O poeta cria por analogia. Seu modelo é o ritmo que movimenta todo idioma. (PAZ, Octávio. 1982: 64)
Sendo o ritmo uma manifestação espontânea da linguagem, ele aparecerá na poesia cabralina atrelado a todo um processo significativo de intenções discursivas nas quais o poeta significa sua tessitura e seu estilo, fundamentado, sobretudo, no manuseio das possibilidades estéticas que constituem a musicalidade de seus textos. Não há como pensar em João Cabral de Melo Neto sem procurar desvendar a riqueza que há em seu rigor formal. As nuances que são construídas pela musicalidade e os mecanismos que revelam universos elaborados sob um novo olhar, tudo isso trazendo a luz impressões sobre coisas que sempre existiram, mas que nunca enxergamos.
Assim acontece na poesia “História de Pontes”. Nela encontramos a formação da imagem de uma cidade noturna, cheia das criaturas que habitam a madrugada e fazem do coito crepuscular um momento que nunca chega. As horas da madrugada costumam passar lentas, lúgubres e misteriosas, principalmente para quem se deixa inebriar pelas aventuras boêmias. Cabral sempre foi um inventor de universos através do verso. Poeta consciente de sua tessitura, urdiu gêneros que pareciam caminhar separados. E através de um processo de construção e desconstrução de estruturas poéticas e sob a influência de uma observação cotidiana publicou os poemas WANDERLEY, M. K. S. | p. 331-350 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 335
de Crime na Calle Relator, como afirma Carlos André Pinheiro (2004) em artigo publicado na revista “Ao pé da Letra2”:
A grande maioria dos poemas trata de temas simples e inusitados, extraídos diretamente das experiências do cotidiano. A naturalidade temática, o humor, os motivos populares e a armação da forma – de identidade quase trovadoresca (devido ao uso constante das quadras) –, lembram um pouco a literatura de cordel; (...) (PINHEIRO, C. A. 2004, p. 116)
A manutenção de uma cadência rítmica mantida pelos versos octossílabos em suas estrofes dísticas de rima paralela, cujo conjunto de quatro marca as oito partes em que está dividido o poema, garante a musicalidade necessária para envolver o leitor na estória que se conta. E ela está entranhada de significação também no que tange a sua ligação com os recursos formais utilizados. Iniciemos a observação através da tabela abaixo: Características Formais
Versos por estrofe Estrofes por parte Número de partes Sílabas poéticas nos dísticos Número total de versos
MMC (Mínimo múltiplo Comum) = 2
2 4 8 8 64
Traçando um raciocínio matemático simples, chegamos ao número dois como sendo a representação mínima em termos estéticos quantitativos. E são duas as pontes que fazem parte do percurso, assim como são duas as personagens mais significativas na narrativa assombrosa tecida por Melo Neto. Desta forma, esse número não só representa a engenhosidade
A Revista “Ao pé da Letra” traz publicações dos alunos de graduação da UFPE e mantém um site com suas publicações em PDF, onde pudemos encontrar o texto em questão. Site da revista : http://www.revistaaopedaletra.net/volume6-2-autoria.html .
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formal como também está imersa na construção narrativa, fazendo dessa poesia de Cabral uma espécie de palíndromo3 estético em que a análise combinatória chega sempre ao número dois ou aos seus múltiplos. É a mágica dos números nas infindas possibilidades permitidas pelas letras e suas significações. Eis nesse poema também a representação simétrica da engenharia cabralina.
As pontes Maurício de Nassau e da Boa Vista, localizadas no centro do Recife, são ícones da engenharia pernambucana. A primeira, herança de uma época de dominação holandesa, sendo a primeira ponte construída na América, possui em suas cabeceiras uma dupla de figuras femininas que representam as bases mitológicas ocidentais bem como os fundamentos da formação pernambucana, inicialmente agrícola e depois política e cultural. Já a Ponte da Boa Vista, também herança do período de dominação holandesa, possui também uma dupla de torres em cada uma de suas cabeceiras, nas quais se inscreveram as datas mais importantes para a formação da sociedade pernambucana, num total de dezesseis datas inscritas. São as pontes mais antigas do Recife porque foram construídas na mesma época. Não por acaso o deslocamento do personagem seguiu por essas duas pontes, já que havia a possibilidade de outro percurso, até mais curto, que seria da Praça do Diário até a Avenida Guararapes seguindo pela Ponte Duarte Coelho que precipita na Av. Conde da Boa Vista. No entanto, fosse esse o percurso feito, a poesia não manteria sua significação dística em termos de formalidade, engenharia e geografia.
Sendo assim, analisando as características do espaço na narrativa, bem como das personagens, vê-se a manutenção de uma coerência matemática quantitativa que une as
3 Palíndromos podem ser palavras ou frases que são iguais quando lidas de frente para trás e de trás para frente. Ex: AME O POEMA. (http://www.somatematica. com.br/palindromos.php - Acessado em 16/09/2013).
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características formais aos elementos mais significativos da narração. Tudo isso intencionado e construído como sendo uma teia em que o número dois é o pilar que mantém a simetria musical relacionando-se aos processos de construção diegética. No caminhar da noite assombrada A ponte: facilitadora de deslocamentos, elo que liga os espaços, elemento da engenharia que subverte a gravidade e faz o homem andar sobre as água e abismos. A ponte é sem dúvida uma das tecnologias mais importantes desenvolvidas pela humanidade. Fisicamente ela permitiu e facilitou a aproximação, troca e mistura de culturas ao longo da história.
Em Recife as pontes fazem parte da geografia por conta dos rios que a cortam. Elas permitiram a ligação do porto com o continente de uma forma mais prática e racional, já que a Ilha do Recife ficava isolada do continente, assim como ficava, parcialmente, o bairro de Santo Antônio. As duas primeiras pontes recifenses foram construídas durante a dominação holandesa e ambas fazem parte do folclore local, desde ao que diz respeito à inauguração da Ponte Maurício de Nassau4, com o episódio do Boi Voador, até a arquitetura mais aprimorada da Ponte da Boa Vista5 com estrutura inglesa toda em ferro depois de suas reformas, deslocamento e mudanças de nome.
4 Foi a primeira ponte de madeira construída sobre o rio Capibaribe, e a primeira ponte de grande porte no Brasil, inaugurada em 28 de fevereiro de 1643, sob a administração do príncipe holandês Maurício de Nassau. Na ocasião do evento foi realizada uma grande festa, cujo episódio mais importante foi a história do boi voador, que marcou a história da cidade Maurícia. Nas suas cabeceiras existiam dois arcos, um do lado do bairro do Recife, denominado arco da Conceição, e outro do lado oposto chamado arco de Santo Antônio (MACHADO, Regina Coeli Vieira. 2007). 5 Considerada a ponte mais típica e original do Recife, ela liga atualmente a rua Nova, no bairro de Santo Antônio, à rua da Imperatriz, na Boa Vista. Sua origem é do tempo dos holandeses. Em 1640, o príncipe Maurício de Nassau mandou construir uma ponte por onde os moradores pudessem atravessar o rio Capibaribe, do continente para a ilha de Santo Antônio, e desta para o Recife, indo e voltando continuamente sem estorvo ( GASPAR, Lúcia. 2007) .
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Essas duas pontes sempre povoaram o imaginário do povo recifense. Eram símbolos do progresso e caminho obrigatório de quem se deslocava do porto para o continente. Elas são o símbolo da interiorização das culturas que lá chegaram e, embora tenham sido reconstruídas ao longo dos quatro séculos de vida, ainda são a representação de uma cidade que se urbanizava nas mãos da coroa holandesa. E foram, as duas, umas das poucas construções do período de dominação holandesa que resistiram à retomada territorial portuguesa. As suas representações físicas aparecem nesse poema cabralino como cenário para a encenação dos fatos assombrosos que fazem o personagem se deslocar por sobre elas. Ele percorre os espaços que ligam a Ilha do Recife (Bairro do Recife), a Ilha de Santo Antônio e o bairro da Boa Vista6. O caminho traçado vai do litoral para o continente e é percorrido na madrugada boêmia recifense. O personagem parte de um espaço habitado por tipos sociais do submundo noturno e pela solidão do silêncio. Tanto o primeiro espaço quanto a atmosfera misteriosa da noite são o mote dos três primeiros dísticos da primeira parte. Mas é no quarto dístico que o personagem de nome incerto é apresentado, bem como aparece o primeiro verbo de deslocamento: 7 Certo Cavalcanti ou Albuquerque 8 Voltava a casa, murcha a febre.
A intencionalidade da indeterminação do nome da personagem, que aparece significada no verso sete, desloca a atenção do leitor para a percepção desse ser diante do espaço que o circunda. As informações mais precisas giram em torno da construção da atmosfera espacial do bairro do qual ele parte, bem como também da caracterização do seu estado
O recorte do percurso no google maps está no anexo 01 para melhor visualização do caminho percorrido pelo personagem. 6
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de espírito: “murcha a febre”, ou seja, desejos aplainados, satisfeitos. A quebra de estrutura sintática promovida entre os versos sete e oito ocorrerá outras vezes durante o poema, afinal, a intenção narrativa é construtora de estruturas complexas, as quais são distribuídas nos versos que articulam, desta forma, os enjambemants7.
A estrofe quatro marca o início do deslocamento da personagem de identidade incerta. Mas é nos dois primeiros dísticos da segunda parte que aparecerá a primeira ponte caracterizada sombriamente diante do deserto e do silêncio da noite: 2 9 Na Ponte Maurício de Nassau, 10 deserta, do deserto cão
11 das pontes (quem não conhece 12 é melhor que não sofra o teste),
O enjambemant que ocorre entre os versos dez e onze marca uma quebra forte na estrutura sintática em detrimento da manutenção da formalidade estética e acentua a caracterização dessa primeira ponte. Vê-se nessa observação a intenção da manutenção de uma estética simétrica, matemática, como retas paralelas, traços que sustentam as pontes. A ação e o espaço são o que há de mais significativo no que tange a narração no poema em questão. A utilização de uma terceira pessoa com identidade incerta põe o leitor diante das percepções espaciais da personagem, ou seja, o leitor vai construindo as suas impressões espaciais de acordo com o caminho que a personagem trilha na madrugada recifense.
Enjambement é um encadeamento sintático entre um verso e outro, quase que se pode dizer um transbordamento em que a última palavra do verso se liga à primeira palavra do próximo verso. (http://consultoriodasletras.blogspot.com. br/2011/06/enjambement.html)
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A caracterização do cenário fica a cargo de um narrador que observa, descreve, personifica e dá voz.
Em relação à construção exterior em termos de espaço e vivência, ou seja, o excedente da visão exterior da personagem, Mikhail Bakhtin (2003) em Estética da Criação verbal, a partir dos processos dialógicos que estão intrínsecos nas construções dos personagens e seus universos, alerta para a peculiaridade da posição de quem olha em relação à formação da imagem exterior. Pois que estão, no caso do poema em questão, narrador e leitor, ocupando um mesmo espaço de observação, ou seja, ambos enxergam a ação de fora. No entanto, um é ativo e outro passivo nessa construção. Em termos de percepção do outro, há, pela escolha desse tipo de narrador, a possibilidade de observação mais ampla diante dos fatos e dos espaços, pois se O outro me é todo dado no mundo exterior a mim como elemento deste, inteiramente limitado em termos espaciais; em cada momento dado eu vivencio nitidamente todos os limites dele, abranjo-o por inteiro com o olhar e posso abarca-lo com todo tato; vejo a linha que lhe contorna a cabeça sobre o fundo do mundo exterior, e todas as linhas do seu corpo que o limitam no mundo; o outro está todo estendido e esgotado no mundo exterior a mim como um objeto entre outros objetos, sem lhe ultrapassar em nada os limites, sem lhe violar a unidade plástico-pictural visível e tátil. (BAKHTIN, 2003:34).
Assim, os deslocamentos espaciais da personagem são perceptíveis ao leitor através da linha traçada pelo narrador que tanto observa os movimentos do outro, como também emula as nuanças do espaço que esse outro percorre. Assistindo ao encontro do personagem com passante estão o narrador, o leitor e agora a própria ponte. Personificada na WANDERLEY, M. K. S. | p. 331-350 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 341
terceira parte, a ponte Maurício de Nassau, no segundo dístico parece se defender das intempéries noturnas: 3 17 A noite na ponte é sem diques, 18 mais, numa ponte do Recife. 19 A ponte a custo se defende, 20 esgueirando-se frágil, entre 21 massas cegas, nuvens de treva 22 que a esmagam pelas costelas: 23 não há sequer a companhia 24 de janela que se abriria.
A ausência de diques, ou defesas, não é só uma característica da ponte em si, mas também da própria situação construída. Pois se a ponte está vulnerável às ações da natureza e permanece só na noite, está o homem também vulnerável às imprevisões da madrugada. Tal característica de vulnerabilidade apresentada pelo narrador prepara o leitor para a próxima ação, funcionando como prolepse, anunciação da presença de uma assombração, desconstruindo a primeira impressão do protagonista contida lá nos versos quinze e dezesseis “Vendo alguém, vê-se aliviado: eis onde acender-se um cigarro”. Corre, N. Corre... É na quarta parte, exatamente no meio da narração, que ocorre o acontecimento chave do enredo. Eis que se dá o encontro anunciado com a assombração na ponte: 342 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
4 25 Nisso o homem que se aproximava 26 frente a N. a boca escancara, 27 boca de assombração, vazia, 28 onde um único dente havia, 29 um dente de frente, o incisivo, 30 único, mas capaz do riso 31 bestial, que não é o da morte 32 mas o que vem de sua posse.
A quarta parte é dedicada à descrição da assombração. Um homem que possui apenas o dente incisivo da boca e que aborda o protagonista com a tal boca escancarada. A descrição feita pelo narrador também põe o leitor diante da imagem de um ser disforme, com os dentes mutilados, e por isso, mais perto da morte. Há formação de uma imagem bestial, grotesca. A transposição do imaginário para o que chamamos de realidade8 e a verossimilhança que a assombração/monstro9 terá serão pontos cruciais no que diz respeito às características físicas que possuirá a figura. Este ser, inicialmente sem forma, tem gênese no relacionamento que o homem estabelecerá com a natureza, bem como com o que chamamos de instinto de sobrevivência, entendida aqui como o conjunto de reações estimuladas por fatores externos que promovem a continuidade da espécie humana. Assim, o medo será um dos principais sentimentos que permitirá tanto a continuação da espécie como a manipulação dela. Concebemos, aqui, realidade, como sendo espaço das experiências sensoriais. “Esses seres incríveis conhecidos por monstros são, por excelência, a marca explícita de algo fora dos pré-supostos de ordem, do “natural” ou, no mínimo, do conhecido. Constantemente, a monstruosidade é entendida como uma transgressão das leis estabelecidas, visando através de sua presença, inspirar temores e dúvidas ou punir contra infrações.” (JÚNIOR, Jorge Leite. 2007 – Em artigo publicado na revista eletrônica de jornalismo científico “Com Ciência”) 8 9
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Seguindo o princípio da caracterização monstruosa da assombração é importante que se entenda a intencionalidade descritiva do narrador ao formar uma imagem chamada por ele mesmo de “bestial”. E é justamente esse sentimento de “medo” que impulsiona o protagonista ao deslocamento ligeiro por entre as ruas, praças e pontes do Recife: 5 33 N. Cavalcanti ou quem quer, 34 pavor e nojo, deu no pé:
35 varou a Primeiro de Março, 36 varou a Pracinha do “Diário”, 37 vara disparado a Rua Nova, 38 nesse então Barão da Vitória, 39 chega à ponte da Boa Vista: 40 outra ilha! quem sabe, a saída.
Há nos verbos de deslocamento uma gradação quanto ao movimento do protagonista. Seu temor é tanto que ele dispara por entre as ruas e praças em um itinerário pouco racional como já foi dito anteriormente. Pois se sabe que seguindo pela Primeiro de Março e pela Praça do Diário o caminho retilíneo das ruas para o pedestre seria seguindo pela Av. Guararapes que se finda na ponte Duarte Coelho, uma das três pontes que ligam o bairro de Santo Antônio ao bairro da Boa Vista. O caminho traçado pelo narrador revela ainda mais o estado de terror em que se encontrava a personagem ao se deparar com a assombração em questão. A assombração, para Gilberto Freire, é, sobretudo, uma manifestação social, ou seja, é um aspecto da imaginação humana que ganha corpo coletivo na oralidade e, portanto, funciona como uma representação de aspectos sociais. Foi
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essa a motivação que o fez catalogar os casos que narra em “Assombrações do Recife Velho”. Nessa obra há toda uma gama de monstros que fazem parte do imaginário popular recifense, mas é o “Boca-de-ouro” o que mais se assemelha a assombração descrita por Melo Neto em “História de pontes”.
As congruências e diferenças apresentadas pelos dois escritores pernambucanos em relação ao monstro em questão marcam a possibilidade de inter-relação entre as duas figuras, já que ambas são frutos do imaginário popular recifense que foram chegadas aos escritores, provavelmente, através da oralidade. O que explica as diferenças das versões. Para uma análise mais detida acerca da formação do monstro em questão nas duas narrativas, buscamos traçar abaixo um quadro que aponta aspectos significativos encontrados em História de Pontes de Cabral e O Boca-deOuro de Gilberto Freire(1987) em Assombrações do Recife Velho:
Cenário da Aparição
Hora da aparição Tipo social que encontra a assombração Atitude do tipo social antes da aparição
História de Pontes
O Boca de Ouro
Centro do Recife – Do Bairro do Recife até o Bairro da Boa Vista passando pelas pontes Maurício de Nassau e pela Ponte da Boa Vista. Ambas sobre o Rio Capibaribe.
Centro do Recife – Beira do cais do Capibaribe. Na narrativa de Freire não há especificação do percurso.
Madrugada
Madrugada
Caminhava em silêncio sobre a ponte Maurício de Nassau.
Caminhava cantante e assobiante pelo Cais do Capibaribe.
Tipo de identidade incerta que acabara de sair do boêmio Bairro do Recife.
Tipo caracterizado como “pacato recifense” boêmio.
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Expectativa de encontro Alguém que lhe anunciado pelo acendesse o cigarro. narrador
Ação do monstro no momento da primeira aparição
Reação do indivíduo após a primeira aparição
Segunda aparição e desfecho
Alguma mulher bonita.
Aborda o transeunte pedindo algo para acender o cigarro. O cidadão Escancara a boca na atrapalha-se e o monstro qual se vê um dente escancara a boca em incisivo apenas. Há referência ao aspecto gargalhada, revelando um rosto carcomido por bestial do monstro, bem como ao seu mau vermes e sua dentadura dourada. Há também hálito. referência ao mau hálito do boca-de-ouro. Corre atravessando a ponte Maurício de Nassau, adentra na Primeiro de Março, seguindo pela Praça do Diário, percorrendo e Rua Nova até a Ponte da Boa Vista.
Na Ponte da Boa Vista, já cansado, o cidadão encontra uma outra pessoa a quem conta o acontecido. Eis que a figura é aquela mesma que o assombrara na Ponte Maurício de Nassau. Ele então corre até a Tamarineira, bairro conhecido pelo hospital psiquiátrico que lá se encontra até os dias atuais.
Corre até cansar. Freire não especifica o percurso.
Quando o indivíduo afrouxa o passo, dá-se o novo encontro com a figura assombrosa que lhe solta uma outra gargalhada fétida. Aterrorizado, o pacato recifense cai no chão desmaiado, sendo encontrado já de dia pelo negro leiteiro a quem conta o ocorrido e o qual trata de espalhar o causo.
Analisando os aspectos apresentados na tabela ficam nítidas as congruências das narrativas de Cabral e Freire. No entanto, é na narrativa de Gilberto Freire que se encontra referência
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para a oralidade quando trata do “preto do leite, madrugador” que tratou de espalhar a narrativa depois que a ouviu. Em História de Pontes, a pluralidade do substantivo que faz parte da locução adjetiva “de pontes”, além de apontar um aspecto importante da construção espacial traçada por João Cabral de Melo Neto, também dá um sentido de indeterminação de veracidade da estória contada, característica que é acentuada pela indeterminação da identidade da protagonista. Não trabalhamos aqui com a possibilidade de que o narrador tivesse interesse em ocultar a identidade do indivíduo, não pela inviabilidade de tal interpretação, mas porque o percurso analítico que traçamos privilegia o texto, tendo como elemento que o extrapola, apenas, o diálogo que pode ser estabelecido entre a assombração que aparece na narrativa de Cabral e de Freire, apontando a possibilidade da narrativa cabralina ser fruto desse processo de oralidade em que as estórias correm de boca-em-boca ganhando características diferentes nesse processo de dialogismo que caracteriza as experiências orais e constroem o aporte folclórico/mitológico das gentes.
De Cabral a Freire o que se testemunha é o apego pela construção de um espaço imaginário em que habitam figuras típicas da formação cultural pernambucana em suas pluralidades e diálogos estabelecidos com o universo. Pois se na voz e no imaginário recifense as figuras são articuladas como o fizeram os escritores em questão, há também a representação de tal assombração por outros espaços desse país, como afirma Gilberto Freire na introdução do causo O Boca-de-ouro: Um amigo, porém, me adverte de que parece haver uma migração de fantasmas do Norte para o Sul do país como houve outrora de bacharéis e de negros escravos e há, hoje, de trabalhadores. Boca-de-ouro talvez seja um desses duendes ou fantasmas aciganados: espécie WANDERLEY, M. K. S. | p. 331-350 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 347
de cearense que quando menos se espera surge numa cidade do interior de Goiás ou do Rio Grande do Sul. O contrário do fantasma inglês, tão preso à sua casa ou ao seu castelo que quando os reconstrutores de casa velha alteram o piso, elevando-o, o fantasma tipicamente inglês só de deixa ver pela metade: não toma conhecimento da reforma da casa. (FREIRE, Gilberto. 1987:50)
A precisão das palavras de Gilberto Freire, já que nesse caso há a percepção nítida da voz do antropólogo, remete-nos à pluralidade e identidade coletiva na qual a cultura brasileira parece estar apoiada. Pois, além de permitir a conclusão de que a disseminação oral é um aspecto importantíssimo de nossa constituição cultural, faz-nos pensar que é através de voz coletiva, dos saberes das gentes simples, que nos conheceremos cada vez mais plurais. Nas águas misteriosas do Capibaribe já navegaram muitas poesias. Mas é em Cabral que o rio se personifica, n’O cão sem plumas, e se mistifica através de suas pontes e dos seres que nela habitam. São pilares da constituição cultural do Recife. Rio e Ponte. Concreto e líquido. Ora espessos como sangue, ora líquidos como assombração em noite escura. São mazelas, mistérios e tipos que habitam a poesia cabralina. Todos pousados sobre o rio Capibaribe, assim como está eternizada a sua imagem10 sentado num banco da rua da Aurora a observar o Capibaribe e suas pontes.
A estátua de João Cabral de Melo Neto assim está localizada e faz parte de um projeto da prefeitura do Recife chamado “Circuito da poesia” do qual fazem parte outros escritores recifenses. Mais informações através do seguinte link: http:// www.recife.pe.gov.br/2009/09/18/circuito_da_poesia__168591.php .Um reprodução fotográfica está contida no anexo 10 desse trabalho. 10
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Referências bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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LEITE JUNIOR, Jorge. O que é um monstro?. Com Ciência, revista eletrônica de jornalismo científico da SBPC, 2007. Disponível em: http://www.comciencia.br/ comciencia/?section=8&edicao=29&id=340 .
MACHADO, Regina Coeli Vieira. Ponte Maurício de Nassau.. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://basilio.fundaj. gov.br/pesquisaescolar/>. Acesso em: 17 set. 2013. MELO NETO, João Cabral de (1997a). Serial e antes. São Paulo, Nova Fronteira. ______ (1997b). A educação pela pedra e depois. São Paulo, Nova Fronteira. WANDERLEY, M. K. S. | p. 331-350 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 349
PAZ, Octávio. O Arco e a Lira.. Tradução de Olga Savary. 2ª ed., Coleção Logos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1982.
PINHEIRO, Carlos André. O contador de estórias: um caso em Um crime na Calle Relator. Publicado no número 6.2 da Revista Ao Pé da Letra – UFPE. Recife: Editora Universitária, 2004.
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A SUBVERSÃO DOS RETRATOS: VERTIGENS ESPACIAIS EM MAR PARAGUAYO, DE WILSON BUENO Nádia Nelziza Lovera de Florentino1
Resumo: Mar paraguayo, publicado em 1992 por Wilson Bueno, é um romance repleto de particularidades estéticas e de inovações literárias. Nas oscilações entre Espanhol, Português e Guarani, o trânsito de línguas, expresso no próprio título do livro, tem como principal finalidade o apagamento de toda e qualquer fronteira. Podemos, então, pensar o mar paraguayo como a representação de um espaço metafórico no qual ocorre uma degradação cultural transposta na linguagem. Nessa perspectiva, propomos neste trabalho uma associação entre as reflexões de Willi Bolle (2004) a respeito da construção de uma paisagem nacional em Os Sertões de Euclides da Cunha e Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa e a subversão dessa paisagem na demarcação espacial oscilante do romance de Wilson Bueno. Portanto, podemos considerar que, em linhas gerais, a paisagem nacional em Grande Sertão: Veredas e Os Sertões constrói-se na relação a um contexto histórico e possui demarcações nítidas e bem contornadas: a paisagem é estável e positiva. Em contrapartida, Mar paraguayo reconfigura essa paisagem nacional apresentando uma paisagem difusa e sem fronteiras definidas e que se afirma mediante caracteres considerados, em sua maior parte, como negativos: o erro, a marginalização, o hibridismo, dentre outros. Palavras-chave: Espaço; Mar paraguayo; Retrato; Vertigem 1
Doutoranda pela UNESP/campus de Assis
Introdução Mar paraguayo é um livro escrito por Wilson Bueno2. Sua primeira publicação foi em 1992 pela editora Iluminuras, em parceria com a Secretaria de Estado de Cultura do Paraná. Posteriormente, foi editado pela Intempérie – Santiago, Chile, em 2001; em 2005 na editora Tse Tse em Buenos Aires, Argentina; e em 2006 pela Bonobos, no México. Há, também, as tentativas de tradução do romance para o francenglish – pela canadense Erin Moure, que substituiu o guarani pelo mohwac, uma língua esquimó – e para o spanenglish, nos Estados Unidos.
O romance gira em torno da narração da protagonista, a “marafona del balneário” (BUENO, 1992, p. 15). Trata-se de uma paraguaia, prostituta e cartomante, que vive um confuso triângulo amoroso com o viejo – espécie de morto vivo dentro da narrativa – e o niño – rapaz de dezessete anos com quem a marafona mantém um relacionamento amoroso. Como personagens aparecem também o Doctor Paiva, Sônia Braga e o cachorrinho Brinks, sua última companhia. Uma casa no balneário de Guaratuba é o espaço onde, sentada no sofá, a marafona tece seu relato de sobrevivência enquanto entrelaça os fios de crochê, relembrando os fatos marcantes de sua vida, afirmando com toda a convicção que
No delineio do perfil do autor, convém destacar sua trajetória fronteiriça, que lhe proporcionou a construção de um legado literário que perpassa diferentes gêneros. Wilson Bueno nasceu em Jaguapitã no ano de 1949; além de ser autor do lendário Nicolau, publicou Bolero’s Bar (Curitiba: Criar Edições, 1986), Manual de zoofilia (Florianópolis: Noa Noa, 1991), Ojos de água (Argentina: El Territorio 1992), Mar paraguayo (São Paulo: Iluminuras, 1992), Cristal (São Paulo: Siciliano, 1995), Pequeno tratado de brinquedos (São Paulo: Iluminuras, 1996), Medusario – mostra de poesia latinoamericana (México: Fondo de Cultura Econômica, 1996), Jardim zoológico (1999), Meu Tio Roseno, a cavalo (São Paulo: Editora 34, 2000), Once poetas brasileños (2004), Amar-te a ti nem sei se com carícias (São Paulo: Editora Planeta, 2004), Cachorros do céu (São Paulo: Editora Planeta, 2005), Diário vagau (Curitiba: Travessa dos Editores (2007), Pincel de Kyoto (2007), Canoa Canoa (2007), A copista de Kafka (São Paulo: Editora Planeta, 2007). O escritor faleceu na cidade de Curitiba em maio de 2010, deixando no prelo o livro Mano, a noite está velha, publicado em 2012. 2
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não matou o viejo, delirando pelo niño e esperando a morte, o inferno: […]: de lo sofá diagonal al cielo de la ventana no me quiero salir: estoy sentada: los cabelos casi que ocultan el trabalho crochê: tiquitito arpón en el extremo aguja: nudo; trança: laçada:laçada:nudo:trança:la tela cumprindo-se: inútil: un nada ainda: sin forma que lhe faça sutiã ô canción [...] (BUENO, 1992, p. 46).
Nessa perspectiva, para expressar suas confissões, emoções e sensações, a narradora confunde e mistura Português e Espanhol, utilizando, ao mesmo tempo, o Guarani carregado de mitos, lendas e encantamentos. Assim, a marafona constrói sua narrativa abusando da sonoridade característica do idioma indígena, criando um ambiente poético no qual revela suas experiências de meretriz. Vertigens Espaciais Mar paraguayo é um romance repleto de particularidades estéticas e literárias e de inovações linguísticas. Os trânsitos por diferentes línguas se iniciam no próprio título, que expressa uma incongruência e manifesta uma tensão. O nome antecipa o que vem no desenrolar da obra. Nessa perspectiva, na observação das palavras que compõem o título, temos um substantivo, mar; e um adjetivo, paraguayo. A combinação dessas duas palavras é inusitada geograficamente, já que o país a que se refere o adjetivo é cercado apenas por terras e sem saída para o oceano, mas é rica e expressiva no simbolismo, no plano estético, no literário, na densidade narrativa.
A fim de melhor esquadrinhar essa combinação e a riqueza estética que ela proporciona, é necessário realizar uma FLORENTINO, N. N. L. | p. 351-362 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 353
abordagem gramatical, semântica e metafórica de ambos os termos.
Iniciemos com o adjetivo: paraguayo é um gentílico em espanhol cuja forma aportuguesada é paraguaio e se refere ao habitante da República do Paraguai. O vocábulo provém do topônimo paraguay que nomeava inicialmente o rio, mas que posteriormente passou a designar também o país inteiro que se formou na região.
Apenas a origem guarani é unanimidade entre os estudiosos, mas diversas são as explicações e significados para o nome. Frei Antonio Ruiz de Montoya3 (1876), um dos pioneiros na tradução e organização gramatical do Guarani, em seu Vocabulario y tesoro de la lengua guarani define o termo paraguay como “rio coronado”, rio coroado. Para ele, “paragua” significaria “corona de palmas”, coroa de palmas, e “y” água ou rio. De acordo com Hugo Ferreira Gubetich (1951), para se obter o sentido do termo, deve-se desmembrá-lo em três segmentos: “pará” significando mar; “gua”, origem; e “y”, rio. O significado da palavra seria, então, rio que origina um mar. Nas palavras do estudioso, Se há discutido largamente sobre el significado del topônimo Paraguay, pero nunca se há llegado a una explicación satisfactoria [...]. La palabra formada por aglutinación, se compone de los tres siguientes elementos: Pará cuyo significado es “mar”; “gua”, que es un gentilicio y significa “originado de”; e “y”, que significa “Rio”. Por tanto, la palabra Paraguay significa “Rio que se origina en un mar”. (GUBETICH, 1951, p. 13)4
Não há registro de páginas no documento original. Tem-se discutido longamente sobre o significado do topônimo Paraguay, mas nunca se chegou a uma explicação satisfatória [...]. A palavra formada por aglutinação, é composta pelos três seguintes elementos: Pará cujo significado é “mar”; “gua”, que é um gentílico e significa “originado de”; e “y”, que significa “Rio”. Portanto, a palavra Paraguay significa “Rio que se origina em um mar”. (Tradução nossa). 3 4
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A versão mais recorrente, no entanto, é a de que a tradução correta para o termo paraguay seria rio dos moradores do mar. Essa versão é também defendida pelo pesquisador Natalício Gonzalez (1993), em sua Geografia del Paraguay. Para ele, esse significado faz menção ao povo guarani que dominava o rio em boa parte de sua extensão:
[...] Paraguá’y (de Pará, mar; gua, morador, oriundo; y, rio o água), dice literalmente rio de los moradores del mar, clara referencia a los guaraníes que eran los señores de su corriente y navegaban por el Atlántico, en gigantescas piraguas, desde el Plata hasta el mar Caribe. (GONZALEZ, 1993, p. 71-72)5
Nas diferentes acepções do vocábulo paraguay, observamos que a maioria dos estudiosos concordam com a definição mar para o termo pará e de rio para y. Cecy Fernandes de Assis (2008) no livro Ñe’ẽryru Avañe’ẽ - Portuge/Portuge - Avañe’ẽ [Dicionário Guarani – Português/Português – Guarani], bem como os padres Antonio Guasch e Diego Ortiz no Diccionário Guarani-Castellano/Castellano-Guarani também atribuem os mesmos sentidos para essas duas palavras. As discordâncias entre os teóricos estabelecem-se na delimitação exata de gua, cuja significação varia desde lugar de origem até originado ou habitante de determinada região. Nessa perspectiva, temos, no nome do romance, uma expressão redundante. O sentido de mar é expresso três vezes: uma em “mar” e duas vezes em paraguayo – pará e y, este último também entendido como uma vasta extensão de água.
5 [...] Paraguá’y (de Pará, mar; gua, morador, oriundo; y, rio ou água), diz literalmente rio dos moradores do mar, clara referência aos guaranis que eram os donos de sua corrente e navegavam pelo Atlântico, em gigantescas piráguas, desde o Prata até o mar Caribe. (tradução nossa).
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Ora, se reconsiderarmos que o país ao qual o adjetivo se refere – o Paraguai – não possui saída para o oceano, entendese que a palavra mar adquire uma conotação que ultrapassa o plano físico e geográfico.
Em sentido figurado, o mar pode ser compreendido como “esfera de coisas ou de acontecimentos que estão sujeitos a vicissitudes, a avanços e recuos, a incerteza; labirinto” (HOUAISS, 2001) ou ainda, metaforicamente, como “grande quantidade ou extensão, imensidade; [...] abismo moral” (BUARQUE DE HOLLANDA FERREIRA, 2004). Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (1991) no Dicionário de Símbolos atribuem o seguinte sentido para o vocábulo mar: Símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e tudo retorna a ele: lugar dos nascimentos, das transformações e dos renascimentos. Águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda informes as realidades configuradas, uma situação de ambivalência, que é a de incerteza, de dúvida, de indecisão, e que pode concluir bem ou mal. Vem daí que o mar é ao mesmo tempo a imagem da vida e a imagem da morte. (CHEVALIER & GREERBRANT, 1991, p. 593).
Desse modo, enquanto nos dicionários de abrangência geral da língua a palavra mar pode ser entendida em sua relação com a vastidão, a profundidade abissal, no de denotação simbólica ela representa tanto a origem e o fim de todas as coisas, a totalidade imanente, como a ambiguidade e as incertezas. Pois bem, se entendermos o vocábulo mar como uma dimensão obscura, abismal e indecifrável, ele pode ser relacionado, sem nenhum problema aparente, às contrariedades e complexidades do ser. No último enunciado de Mar paraguayo aparece a sentença
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derradeira da narradora: “Mi mar? Mi mar soy yo. Ĩyá” (BUENO, 1992, p. 73). A partir desse raciocínio da protagonista, no plano textual, o mar seria a sua própria representação e, por extensão, o seu relato que se encarrega de reproduzir a canção trancafiada no elevedor – o seu coração – e da qual explodem amargura, desespero e solidão. E esse mar é paraguayo porque paraguaia é a sua narradora: Nasci al fondo del fondo del fondo de mi país – esta hacienda guaraní, guarânia e soledad. La primera vez que me acerquê del mar, o que havia era solo el mirar en el ver – carregado de olas y de azules. Además, trazia dentro en mim toda una outra canción – trancada en el ascensor, desespero, suicidados desesperos y la agrura. (BUENO, 1992, p. 16).
O Ĩyá, duende das águas e divindade aquática na mitologia guarani pode ser entendido, em uma representação metalinguistica, como uma metáfora para escrita do livro pela marafona. Se entendermos a escrita como uma afirmação de identidade e a narradora como o próprio mar paraguayo, a materialização escrita do relato poderia ser esse Ĩyá que detém o poder divino e transcendental de dominar as águas desse mar
A narradora se identifica com o mar. Prova disso é que a prostituta paraguaia velha deixou seu país de origem para radicar-se em Guaratuba, cidade litorânea do Estado do Paraná. Sua única afirmação de identidade é “Yo soy la marafona del balneário. A cá, em Guaratuba, vivo de suerte” (BUENO, 1992, p. 15). Com a ausência de nome, a protagonista se autodefine mediante a profissão, prostituta; e o espaço, o balneário de Guaratuba. O espaço Guaratuba, associado ao mar e, consequentemente FLORENTINO, N. N. L. | p. 351-362 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 357
à protagonista, constitui-se geograficamente como brasileiro e paraguaio por influência – haja vista que as praias de Guaratuba são assiduamente frequentadas por turistas provenientes do país vizinho. Sobre a localização geográfica do romance, Wilson Bueno afirmou no texto Fronteiras: nos entrecéus da linguagem6:
Situei a novela em Guaratuba, no litoral do Paraná, não só porque ali se encontrava exilado o recém deposto ditador do Paraguai, Alfredo Stroessner, como também porque a cidade é efetivamente o “mar” dos paraguaios, balneário preferido da classe média do país vizinho.
Retomando o adjetivo paraguayo, que é uma palavra guarani incorporada ao léxico espanhol e utilizada em sua forma aportuguesada em um livro escrito no Brasil, evidenciase uma confluência de idiomas, espaços e associações.
Se considerarmos a composição da personagem principal, a prostituta paraguaia, neta de argentinos e que vive em território brasileiro, podemos comprovar a não existência de fronteiras geográficas nesse romance de Wilson Bueno. A narrativa estabelece-se na tríplice fronteira Paraguai – Brasil – Argentina. Ora, ao mesmo tempo em que representa cada um desses países, ela não pertence a nenhum deles, configurando-se no mar do ser da marafona, universo no qual não existem demarcações espaciais. Wilson Bueno, ainda no texto Fronteiras: nos entrecéus da linguagem, comenta sobre essa ausência de fronteiras em Mar paraguayo e esclarece: 6
Importante, de igual modo, que a novela Mar Paraguayo apontasse para a desterritorialização que é uma das grandes marcas do neobarroco. Em conseqüência, essa
Disponível no web site Goeth-Institut, acesso em 10/03/2014
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“geografia” inteiramente inusitada, evidencia desde o título uma coisa que não existe nem nunca existiu. No entanto, ao juntar as “geografias” e dotar o Paraguai – país mediterrâneo – de um mar, eu o fiz como quem embaralha todas as fronteiras. Daí a mistura e a inversão nesse livro, além de sua inerente “perversão”...
O escritor também revela que, ao seu o ver, o melhor de Mar paraguayo “é esse borrar todas as fronteiras, a indeterminação, como na Teoria do Caos, gerando leis sutis de imprevistas determinações”. Destarte, o trânsito de línguas expresso no título tem como principal finalidade o apagamento de toda e qualquer fronteira. Desse modo, pode-se pensar, também, o mar paraguayo como a representação de um espaço metafórico no qual ocorre uma degradação cultural transposta na linguagem.
No afã de elucidar essa representação, propomos uma associação às reflexões de Willi Bolle (2004) no livro Grandesertão.br, especificamente no capítulo O sertão como forma de pensamento. Para ele, em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa e em Os Sertões de Euclides da Cunha a imagem do sertão corrobora na construção de uma “paisagem nacional”:
[...] Os dois escritores nomeiam o sertão, dão-lhe voz e fala. Os Sertões e Grande Sertão: Veredas são recriações da realidade na língua, convidando o leitor a redescobrir com os sentidos despertos o centro do país que, tanto pelo seu papel histórico quanto pela originalidade étnica de seus habitantes, mas sobretudo pela qualidade da representação literária, transborda seus horizontes em direção à Amazônia e às metrópoles do Sudeste, para tornar-se um retrato alegórico do Brasil. (BOLLE, 2004, p. 47-48, grifos do autor). FLORENTINO, N. N. L. | p. 351-362 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 359
Pois bem, se Euclides da Cunha e Guimarães Rosa constroem um “retrato alegórico do Brasil” mediante o sertão, Wilson Bueno, por sua vez, utilizando-se também de uma revolução linguística, de certa forma subverte esse retrato através das dimensões espaciais oscilantes do seu Mar paraguayo.
Na reflexão sobre o processo de constituição do sertão como retrato alegórico, Willi Bolle (2004) analisa a evolução histórica da consolidação de uma paisagem nacional no Brasil, com ênfase aos “mapeamentos literários” realizados por Guimarães Rosa e Euclides da Cunha:
A base teórica para a construção da paisagem como retrato de um país foi criada no Romantismo europeu. Por intermédio dos viajantes das primeiras décadas do século XIX a idéia chegou ao Brasil, onde foi vivamente acolhida pela elite, que desejava dar um sólido sustento cultural à construção política do Estado independente, através da fundação concomitante de uma “paisagem nacional”. Assim se desenvolveu aqui, entre os anos 1820 e 1870, um rico repertório de formas e procedimentos, no qual puderam se basear Euclides da Cunha e Guimarães Rosa em seus mapeamentos literários do país. (BOLLE, 2004, p. 48-49, grifos do autor).
Desse modo, podemos considerar que, em linhas gerais, a paisagem nacional em Grande Sertão: Veredas e Os Sertões constrói-se na relação a um contexto histórico e possui demarcações nítidas e bem contornadas: a paisagem é estável e positiva. Em contrapartida, Mar paraguayo reconfigura essa paisagem nacional apresentando uma paisagem difusa e sem fronteiras definidas e que se afirma mediante caracteres considerados, em sua maior parte, como negativos: o erro, a marginalização, o hibridismo, dentre outros. 360 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
Considerações Finais A paisagem de Mar paraguayo é composta nesse espaço movediço no qual confluem fronteiras em uma fusão de línguas e de culturas. Como lugar desprovido de identidade, é constituído e ao mesmo tempo desconstruído através do erro. O que resulta dessa terra de ninguém, desse lugar sem pátria é a “mescla aberrante” (PERLONGHER, 1992, p. 9), a marginalização, a expressão do caos.
Desse modo se para Willi Bolle o sertão como retrato alegórico “[...] aparece aqui como labirinto, lugar por excelência do se perder e do errar. Apagam-se todas as referências, a cartografia chega ao limite e se desfaz” (BOLLE, 2004, p. 65), podemos considerar que Mar paraguayo, como uma desconstrução desse retrato alegórico, desafia o leitor a compreender, na confluência de fronteiras e de idiomas, esse mar paraguayo geográfico, simbólico e metafórico que não possui fim ou limite; quanto mais se observa, mais se tem a descobrir. Referências bibliográficas
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BOLLE, Willi. Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades; 34, 2004. BUENO, Wilson. Mar paraguayo. São Paulo: Iluminuras, 1992. FLORENTINO, N. N. L. | p. 351-362 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 361
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OS COSTUMES DO NORDESTE IMPRESSOS NAS CRÔNICAS DE GRACILIANO RAMOS Patricia Aparecida Gonçalves de Faria 1
Resumo: Caminhos tortuosos e impensáveis como as surras levadas na infância, a aspereza dos problemas da região nordestina, a viuvez precoce, o posto de prefeito em Palmeira dos Índios, a preocupação exagerada com a reescrita de suas obras, a maestria como romancista, a prisão durante o Estado Novo, a colaboração com Cultura Política: revista mensal de estudos brasileiros e a participação como membro do Partido Comunista Brasileiro foram apenas alguns episódios que marcaram a vida de Graciliano Ramos. Assim, levando em consideração o percurso intelectual e literário do escritor de Vidas Secas o presente estudo tem por objetivo verificar os principais motivos que levaram Graciliano a contribuir com a revista Cultura Política, de 1941 a 1945, principal publicação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão controlado pelo Estado Novo analisando as estratégias de escrita utilizadas pelo escritor para servir o Estado sem, contudo, se render a ideologia do governo Vargas e deixar de lado os costumes do nordeste que tanto fizeram parte de suas obras, inclusive nas crônicas de Cultura Política. Palavras-chave: Graciliano Ramos; Revista Cultura Política; Crônicas.
Com a ajuda dos chefes militares, Getúlio Vargas, teceu por meses a trama que culminou no golpe de 10 de novembro de 1937 e instaurou o Estado Novo, um sistema político
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Mestranda/UNESP – FCLAssis
que promulgou uma nova constituição brasileira com bases em decretos-leis que previam ações ligadas à cultura e à propaganda ligadas às atividades estatais com o intuito de esclarecer a opinião pública, principalmente em relação à aceitação do regime e da figura do novo presidente.
Assim sendo, o Estado Novo financiava a sua própria propaganda e colocava em circulação mensagens e relatos favoráveis ao governo nos mais variados meios de comunicação como o rádio, o cinema, os jornais, as revistas etc. Logo, para conseguir essas manobras propagandísticas, contou com o apoio do Departamento de Imprensa e propaganda (DIP), órgão responsável por vigiar, classificar, definir e centralizar as manifestações da cultura popular, da publicidade, das manifestações cívicas, da propaganda externa e interna dos meios de comunicação e o direcionamento da radiodifusão oficial do governo com censura em nível nacional. Enquanto o Brasil passava por transformações políticas, econômicas e sociais, no Nordeste do Brasil, entre oss fins da década de 20 e anos 30, o escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953), também, vivenciou tranformações que foram decisivas em sua vida pessoal e profissional. Dentre estas mudanças estão o seu segundo casamento com Heloísa, a posse como prefeito em Palmeira dos Ìndios em 1928 e a redação do emblemático relatório de 1929 enviado ao governador, que circulou em jornais de Alagoas e Rio de Janeiro, e acabou nas mãos Augusto Frederico Schmidt, poeta e responsável pela Livraria Schmidt Editora, uma das maiores editoras da época. Schmidt quando leu o relatório ficou impressionado com a qualidade literária da escrita de Graciliano e, prontamente, entrou em contato com o escritor para a publicação de um de seus romances. Tempos depois a editora começa a editar Caetés, o primeiro romance do autor. 364 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
Em 1930, Graciliano renunciou o cargo de prefeito. Sem emprego fixo, aceitou o convite do governador Álvaro Paes para assumir em Maceió a direção da Imprensa Oficial do estado de Alagoas sendo, posteriormente, nomeado em 1933 como diretor da Instrução Pública, a convite de Afonso de Carvalho. A movimentação política desde 1935, por sua vez, tinha deixado o país em alerta e os membros ou aqueles com relações ou suspeitas de ligação com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) começaram a ser cada vez mais observados de perto. Contando com o apoio do exército, Getúlio Vargas decretou estado de sítio e algumas pessoas passaram a ser perseguidas. No início de 1936, Graciliano percebeu que a sua presença incomodava e causava desconforto na Instrução Pública. Logo, solicitaram que ele pedisse afastamento do cargo, pois não queriam demiti-lo sem motivo. O governo, usando como pretexto a manutenção da ordem pública começou a controlar e repreender os comunistas e os possíveis simpatizantes do movimento. Portanto, é a simpatia demonstrada por Graciliano Ramos ao comunismo que irá ocasionar a sua prisão em 19362.
Graciliano Ramos é preso no dia 3 de março de 1936. Na ocasião da prisão, não havia uma acusação específica contra o autor de Vidas Secas; o que, certamente, existia era uma acusação contra um homem tido como “perigoso” diante os princípios governamentais.
Como é de conhecimento, os posicionamentos assumidos em seus cargos públicos e em seus romances e contos não glorificavam o novo governo.
2 De fato, já havia, desde os anos da prefeitura, certa inquietação em relação a sua figura, uma vez que fora um prefeito de pulso forte, que tentava, apesar das dificuldades, administrar com imparcialidade a prefeitura, o que ocasionou a inimizade de grande parte da elite local.
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Preso, Graciliano foi, primeiramente, levado para Recife e, depois conduzido ao seu destino final: Rio de Janeiro. Por todos os lugares em que esteve sob custódia do governo, sofreu horrores, pois a comida intragável, a higienização era precária e a convivência com os mais variados tipos de sujeitos, inclusive ladrões perigosos era insuportável, conforme descreve Dênis de Moraes na obra O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos: “Graciliano sofreria com a comida intragável, o odor insuportável de urina, os enjoos, as dores na perna operada anos antes e uma hemorragia intestinal. (...)”. (MORAES, 1992, p. 118). Heloísa, após a transferência do marido para o Rio de Janeiro foi sozinha atrás dele para tentar auxiliar na sua libertação. Graciliano quando ficou sabendo que a esposa estava no Rio de Janeiro, ficou muito perturbado, pois temia que Heloísa pudesse ter problemas financeiros e com a polícia.
Após dez meses e dez dias, na manhã do dia 13 de janeiro de 1937, estava livre, mas trazia estampado no corpo e na alma as dores da prisão. “Recebido com carinho, Graciliano não escondia as marcas deixadas por dez meses e dez dias de cárcere: fios de cabelos grisalhos, o corpo muito magro, rugas e olheiras a sobrecarregá-lo de anos. (...)” (MORAES, 1992, p. 152). Em liberdade, Graciliano juntamente com a esposa se hospedou na casa de José Lins do Rego e, depois em uma pensão até que decidiram permanecer definitavemente no Rio de Janeiro.
José Lins do Rego cuidou de introduzir o amigo aos redutos da intelectualidade carioca, todavia, por esta época Graciliano já havia publicado obras de grande repercussão como Caetés, São Bernardo e Angústia. Mesmo com obras importantes em circulação Graciliano
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sofria com as dificuldades financeiras, pois vivia com a família me um quarto de pensão com pouco dinheiro no bolso. Em uma entrevista concedidaa Homero Senna, que se encontra na obra Graciliano Ramos: coletânea organizada por Sônia Brayner, o estudioso pergunta a Graciliano sobre a rentabilidade advinda da profissão de escritor no Brasil e o romancista afirma que não acredita na possibilidade de um escritor poder viver somente às custas de seus direitos autorais. O sustento da família e a pensão eram pagos com muita dificuldade, pois o magro orçamento vinha dos poucos rendimentos adquiridos de publicações em livros e de colaborações em jornais e revistas.
O pequeno orçamento não se alteraria nos anos seguintes. Sem emprego fixo, a atividade profissional de Graciliano Ramos se resumia a escrever contos e crônicas pedidas às pressas por periódicos que lhe pagavam alguns contos de réis. Carlos Drummond de Andrade sabendo das dificuldades financeiras enfrentadas por Graciliano conseguiu junto a Gustavo Capanema3 a nomeação do escritor alagoano como inspetor de ensino secundário do Distrito Federal: “(...) Capanema, em plena política de atração de intelectuais para a órbita do MEC, levaria o decreto pronto para Getúlio Vargas assiná-lo” (MORAES, 1992, p. 178). Uma duplicidade inesperada acontecia, pois de um lado, um ex-preso político trabalhando no Ministério da Educação, instituição controlada pelo Estado Novo e do outro lado, um ditador nomeando um homem que foi preso durante o seu governo. Cada qual tinha os seus motivos para aceitar tal situação embaraçosa. Graciliano precisava de um emprego
3 Gustavo Capanema, Ministro da Educação de 1937 a 1945, foi responsável por projetos de reorganização do ensino no país e reorganizou o Ministério da Educação. Para tal proposta contou com o apoio de muitos intelectuais e, mais especialmente, a arquitetos e artistas plásticos de orientação moderna.
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fixo que pudesse contribuir com os rendimentos escassos que vinham de suas colaborações e publicações e Vargas, por sua vez, almejava recrutar intelectuais que pudessem contribuir para a credibilidade do Estado Novo.
Juntamente com o novo ofício, o escritor mantinha as suas colaborações com a imprensa, o que auxiliava nas despesas. Entretanto, a efervescência da segunda guerra mundial afetou vários setores, inclusive o das colaborações literárias em jornais e revistas da época. Mais uma vez, o orçamento familiar ficou limitado. Em 1941, Graciliano Ramos começou a colaborar com Cultura Política: revista mensal de estudos brasileiros, principal publicação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), do Estado Novo.
Cultura Política, publicada de março de 1941 a outubro de 1945, foi uma publicação de grande circulação, vendida em bancas de jornais de todo o Brasil. Tendo como diretor principal Almir de Andrade, seu principal objetivo era estudar, determinar e esclarecer as transformações sócio-econômicas que aconteciam no país, divulgando as realizações de Getúlio Vargas e o Estado Novo. O pagamento pelas contribuições em Cultura Política era o dobro oferecido pelo mercado jornalístico da época. Mas, a revista precisa de intelectuais de renome, pois contar com estes intelectuais era mais do que ter a certeza de estampar em suas páginas artigos de boa qualidade; era, evidentemente, mostrar o quanto a nova estrutura estadonovista cativava a todos, inclusive a classe intelectual que outrora fora contra os princípios do governo.
No decorrer de sua circulação foram publicados cinquenta números com uma tiragem mensal de aproximadamente 3.000 exemplares. Cada número contava em média 300 368 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
páginas, medindo 16 x 22,5 cm. A exceção fica por conta dos três últimos números, que, com o fim da Agência Nacional, reduzira as suas páginas para cento e poucas numa medida de 13,50 x 18,50 cm; todas as edições da revista foram realizadas por Fernando Chinaglia S/A. A revista era vendida por um valor símbólico de Cr$ 3,00 o exemplar, sendo que uma assinatura anual correspondia a Cr$ 30,00; todavia, o seu custo unitário ultrapassava a quantia de Cr$10,00. Nesse sentido, fica claro que o periódico desejava divulgar o governo e os seus feitos culturais no país sem a mínima intenção de lucrar com as suas publicações, atestando que a finalidade do regime Vargas era firmar a cultura como um negócio oficial com orçamento próprio, que, consequentemente, intervinha e difundia os diversos setores relacionados ao trabalho intelectual e artístico. A este respeito o sociológo Sergio Miceli na obra Intelectuais à brasileira faz o seguinte comentário: Durante o regime Vargas, as proporções consideráveis a que chegou a cooptação dos intelectuais facultaramlhes o acesso às carreiras e aos postos burocráticos em quase todas as áreas do serviço público (educação, cultura, justiça, serviços de segurança etc). Mas, no que diz respeito às relações entre os intelectuais e o Estado, o regime Vargas se diferencia sobretudo porque define e constitui o domínio da cultura como um “ negócio oficial”, implicando um orçamento próprio, a criação de uma intelligentzia e a intervenção em todos os setores de produção, difusão e conservação do trabalho intelectual e artístico. (MICELI, 2001, p. 197-198).
Cultura Política contou com os mais variados tipos de intelectuais relacionados a diversos meios culturais e artísticos totalizando mais de trezentos colaoradores, conforme cita Raúl Antelo na obra Literatura em revista. FARIA, P. A. G. | p. 363-374 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 369
Os relatos de Graciliano Ramos em Cultura Política se dão entre os anos de 1941 a 1944, representando a mais duradoura de suas contribuições num único periódico. De sua autoria foram publicadas vinte e cinco crônicas, sendo vinte e uma de 1941 a 1942, duas em 1943 e duas em 1944. Deve-se esclarecer que, as primeiras dezoito foram estampadas nos dezoito números iniciais na seção “Quadros e costumes do Nordeste”; quatro se encontram em “Quadros e costumes regionais”; duas estão em “Quadros regionais” e apenas uma em “Literatura”. Com efeito, com o tempo a revista vai reduzindo os nomes das seções e caminhando para a decadência.
As crônicas publicadas na seção “Quadros e Costumes do Nordeste” não apresentam títulos apenas o número da crônica e o nome do seu autor. Portanto, em “Quadros e Costumes do Nordeste” foram publicadas as seguintes crônicas: I (1941), II (1941), III (1941), IV (1941), V (1941), VI (1941), VII (1941), VIII (1941), IX (1941), X (1941), XI (1942), XII (1942), XIII (1942), XIV (1942), XV (1942), XVI (1942), XVII (1942), XVIII (1942).
Na seção “Quadros e costumes regionais” foram estampadas quatro crônicas que receberam títulos para a publicação na revista: “A decadência de um senhor de engenho” (1942), “Recordações de uma indústria morta” (1942), “Uma visita inconveniente” (1942), “Está aberta a sessão do júri” (1943). Graciliano na seção “Quadros regionais” colaborou com apenas duas crônicas que foram intituladas em Cultura Política como “Um homem notável” (1943) e “A viúva Lacerda” (1944). Na seção “Literatura” escreveu apenas a crônica “Booker Washington” (1944).
Anos mais tarde, vinte e quatro das vinte e cinco crônicas foram reunidas nas obras póstumas Viventes das Alagoas (1962)
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e Linhas Tortas (1962), sendo que vinte e duas se encontram em Viventes das Alagoas e apenas duas em Linhas Tortas. As publicações póstumas do escritor alagoano, inclusive Linhas Tortas e Viventes das Alagoas, foram editadas por Heloísa Ramos, Ricardo Ramos e James Amado, genro de Graciliano Ramos. Portanto, as crônicas que pertenciam a seção “Quadros e Costumes do Nordeste” foram todas publicadas em Viventes das Alagoas e receberam os seguintes títulos:
Quadros e Costumes do Nordeste I (ano 1, n.1, mar. 1941) intitulada “Carnaval”;
Quadros e Costumes do Nordeste II (ano 1, n.2, abr. 1941) intitulada D. “Maria Amália”; Quadros e Costumes do Nordeste III (ano 1, n.3, maio 1941) intitulada “ O moço da farmácia”;
Quadros e Costumes do Nordeste IV ( ano 1, n. 4, jun. 1941) intitulada “Casamento”; Quadros e Costumes do Nordeste V ( ano 1, n. 5, jul. 1941) intitulada “Ciríaco”;
Quadros e Costumes do Nordeste VI ( ano 1, n. 6, ago. 1941) intitulada “Habitação”; Quadros e Costumes do Nordeste VII ( ano 1, n. 7, set. 1941) intitulada “Teatro I ”; Quadros e Costumes do Nordeste VIII ( ano 1, n. 8, out. 1941) intitulada “Teatro II”;
Quadros e Costumes do Nordeste IX ( ano 1, n. 9, nov. 1941) intitulada “Bagunça”;
Quadros e Costumes do Nordeste X ( ano 1, n. 19, dez. 1941) intitulada “D. Maria”; Quadros e Costumes do Nordeste XI ( ano 2, n. 11, jan. 1942) intitulada “Libório”; Quadros e Costumes do Nordeste XII ( ano 2, n. 12, fev. 1942) intitulada “Desafio”; FARIA, P. A. G. | p. 363-374 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 371
Quadros e Costumes do Nordeste XIII ( ano 2, n. 13, marc. 1942) intitulada “Funcionário Independente”;
Quadros e Costumes do Nordeste XIV ( ano 2, n. 14, abr. 1942) intitulada “Um antepassado”; Quadros e Costumes do Nordeste XV ( ano 2, n. 15, maio. 1942) intitulada “Um homem de Letras”; Quadros e Costumes do Nordeste XVI ( ano 2, n. 16, jun. 1942) intitulada “Um gramático”; Quadros e Costumes do Nordeste XVII ( ano 2, n. 17, jul. 1942) intitulada “Dr. Pelado”;
Quadros e Costumes do Nordeste XVIII ( ano 2, n. 18, ago. 1942) intitulada “ Transação de Cigano”;
Nestas crônicas, o escritor alagoano relatou o cotidiano nordestino, abordou o Natal, o casamento, o teatro mambembe, o júri, o carnaval, o jogo do bicho, o engenho de cana de açúcar, além de tipos humanos como o gramático, o funcionário público, o farmacêutico, o literato e o juiz de direito. Ao ler e analisar estas crônicas pode-se perceber qu elas são norteadas por eixos temáticos que retratam o nordeste brasileiro. Entre os temas abordados pelo cronista Graciliano Ramos estão a economia, a política, as letras, a sociedade e a cultura nordentina.
É por meio das personagens, que o cronista, muitas vezes, leva o leitor a refletir sobre os costumes e uma cultura tradicionalista de uma sociedade que se encontra distante da modernidade. Em outros momentos, ele coloca em questão a economia e a política do Nordeste. Um dos temas, também, abordado por Graciliano Ramos nas crônicas que se encontra em Política Cultura é a questão da linguagem e do conhecimento das letras do homem nordestino e de estudiosos das letras. Ao retratar este
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assunto o cronista, muitas vezes, valoriza o conhecimento da língua local, em outros momentos, com certa ironia, revela o desconhecimento da nossa língua por parte de estudiosos nordestinos e, até mesmo de outras regiões. Em uma única crônica, é possível verificar o tema da sociedade e da cultura nordestina, por exemplo. Em outras crônicas, dois ou mais temas podem ser analisados pelo cronista simultaneamente, como é o caso da crônica XVI (“Um gramático”) que apresenta informações da cultura e da sociedade nordestina e, ao mesmo tempo, elementos das letras e da linguagem.
Na maioria das crônicas não há uma data que especifique o ano em que aconteceram os fatos, contudo, o leitor percebe nas entrelinhas que está diante de fatos que ocorreram antes de 1930. Logo, quando o cronista situa os acontecimentos antes de 19304 e chama a sociedade antes deste período de tradicionalista e apegada ao passado do atraso, ele convém com a proposta imposta pelos moldes da revista, cuja proposta era “definir” e “esclarecer” o rumo das transformações sociais e políticas do país. É perceptível que todas essas colaborações de Graciliano Ramos em Cultura Política foram marcadas pela necessidade de equilibrar as palavras. Assim sendo, o que se vê é uma escrita mais cautelosa e discreta diante dos mais variados tipos de problemas enfrentados pelo nosso país, mais precisamente o cotidiano nordestino.
Assim, ciente das adversidades políticas e sociais de seu tempo, Graciliano Ramos soube ler e recolher com aguda sensibilidade os sinais que se materializavam ao seu redor, principalmente do sertão nordestino.
Apesar do Estado Novo ser instaurado apenas em 1937, considera-se como marco fundador da política de Vargas a revolução de 1930. 4
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MAX MARTINS: O CAMINHO DO DIÁRIO PERFEITO Paulo Roberto Vieira 1
Resumo: Este trabalho consta da análise de alguns poemas publicados e fólios de diários inéditos de Max Martins (19262009), procurando compreender certos aspectos marcantes do caminho percorrido pelo poeta na sua silenciosa e incansável busca de autoconhecimento. Max começou a escrever diários em 1982, experimentando, neles, ao longo de quase duas décadas, diferentes linguagens artísticas. Parte das motivações ao trabalho poético nos diários ligase intimamente ao interesse do artista pelos ideogramas, os haikais, e aos seus estudos de conceitos da cultura oriental, principalmente do zen-budismo e do taoismo. Palavras-Chave: Max Martins, diário, poesia, zen, taoismo.
O poeta paraense Max Martins (1926-2009) começou a escrever diários em 1982. Recentemente incorporado ao acervo da Universidade Federal do Pará, em Belém, os documentos do artista englobam 48 diários, 28 cadernos de poemas, centenas de cartas, recortes de jornais e revistas, além de volumosas somas de manuscritos avulsos. Experimentando, nos diários, ao longo de quase duas décadas, diferentes linguagens artísticas, o poeta acostumou-se a reunir à parcela
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Doutorando da FFLCH/USP; Bolsista FAPESP.
escrita colagens, grafismos, desenhos e pinturas. Associando citações de leituras de prosa e de poesia a materiais pouco convencionais, como recortes e objetos coletados no dia a dia.
Parte das motivações a esse trabalho poético nos diários liga-se intimamente ao interesse de Max pelos ideogramas, os haikais, e aos seus estudos de conceitos da cultura oriental, principalmente do zen-budismo e do taoismo, praticados pelo poeta desde a juventude, mas também ao seu ambiente ancestral – a floresta amazônica – nos diários e na poesia representado pela praia de Marahu. Mas o que é um diário? Porque certas pessoas passam anos, às vezes décadas, escrevendo-os? Em síntese: é um conjunto de registros do cotidiano datados. São relatos que representam porções, relevantes ou não, do dia a dia daquele que os escreve. Eis a resposta geral à primeira pergunta. No tocante às motivações, são os próprios diaristas que nos dão a resposta. Aqueles que representam uma estranha multidão de vozes silenciosas. Pois o conteúdo que preenche um diário é que fundamenta a sua existência. A motivação é a essência daquilo que foi redigido ao longo do tempo. Dizendo de outra maneira, é lendo um diário que se pode compreender o porquê de sua feitura.
Defino o corpus deste trabalho: seu eixo será a análise de alguns poemas publicados e fólios dos diários de Max Martins, procurando compreender certos aspectos marcantes do caminho percorrido pelo poeta na silenciosa e incansável busca de autoconhecimento.
Começo pela praia, malgrado tratar-se de litoral, portanto margem, Marahu (distante 70 km de Belém do Pará) ocupa lugar central na poética de Max Martins. A praia e o sonho da cabana aparecem logo no primeiro diário (1982). Em um par de páginas vê-se, à direita, a xerocópia do recorte de uma 376 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
foto de jornal. Nela, areia e água, céu e floresta. Acompanha a inscrição, à guisa de legenda, “praia de Marahu, onde farei / a minha cabana”. Figura 1 – Páginas do diário de Max Martins, iniciado em 1982.
Casa é um dos muitos temas recorrentes na poesia de Max Martins. Portanto, a cabana – erigida como refúgio – faz lembrar outro abrigo que, encravado no âmago da infância do poeta, é aludido no poema A casa, (no livro H’Era), “Esta casa é uma ruína, / quase terreno baldio: / coração de minha mãe / - esta terra de ninguém, / está cheio e está vazio (...).”(MARTINS, 1971).
Em A casa, Max rememora os desabamentos da infância, a labuta materna para criar os filhos, a dificuldade em aceitar a morte do pai, “Nesta casa inda ressoa / o pigarro de meu pai / seu cigarro era uma brasa / nessa noite que o escondeu”, e a desmesurada doação afetiva da família, “Esta casa tinha VIEIRA, P. R. | p. 375-387 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 377
escada / esta escada três degraus. / E no último tropeçaram / estes sete filhos teus”, procurando reavivar o que os dias não devolvem. No mesmo poema Max escreveu “Esta casa vai cair!”, para assim, paradoxalmente, assegurar na poesia, esse alqueire indestrutível, a permanência de sua primeira cabana-memória.
Ao eternizar a casa de partida, o poeta pode seguir na jornada. E a cabana na praia é novo alento no caminho transformado pela natureza. Marahu, uma vereda litorânea sombreada por dossel de árvores ancestrais, onde o poeta inventou a própria concha, espécie de morada natural. Como um caracol que faz sua casa na pedra. Assim, dentro da nova morada, Max passou a engendrar outras casas da intimidade – os diários – e dentro delas as demais, antigas e nunca desabadas. Figura 2 – Página de diário de Max Martins, iniciado em 1985.
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“Foto feita pelo João Mendes por volta do / mês de outubro do ano passado, quando / a cabana ainda estava em construção vista / pelo fundo. Até pouco tempo ‘lá em casa’, além / da nossa casa na vila do Iapi (desde 1953) / a casa de mamãe na Piedade, essa também / ‘lá em casa’. Esta acabou. Mas agora há / novo ‘lá em casa’. A cabana de Marahu, / Morei na Piedade acho que desde / os meus seis anos (1932), até os 27 (1953)”.
Em pouco tempo a cabana de Max já o abrigava, bem como aos amigos, que ele chamava de seu ‘arvoredo’. Os reflexos das temporadas do poeta na praia não demoraram a se traduzir em versos. Em 1983 saiu publicado Caminho de Marahu, que traz os primeiros poemas litorâneos, e em 1986 o livro-poster 60/35 – sessenta anos de vida e trinta e cinco de poesia – que em admirável arranjo associa poemas a fotografias de Max na praia. Mas o vigor praieiro se fez manifesto ainda nos livros ulteriores, Para ter onde ir (1992), Marahu poemas (Não para consolar, 1992) e Colmando a lacuna (Poemas reunidos, 2001).
Se nesta análise tomo a época da primeira relação de Max com a praia como um começo, é porque os diários também surgem nessa época. Todavia, para o poeta, Marahu representava a continuação da caminhada intérmina. Ao erguer sua cabana e colocar-se à disposição do que a natureza tem a dizer, ele praticava os ensinamentos do zen budismo que cultivara desde a juventude. “Passei uma época muito ligado ao zen-budismo, ao taoismo. As melhores leituras que tive foi ao ler as anedotas, os paradoxos zen-budistas. Aprendi que o melhor que temos a fazer é fazer o que devemos fazer. Não ir para o lado esquerdo, não ir para o lado direito, mas caminhar passo-a-passo para frente”(MARTINS, trecho de entrevista, 1999). VIEIRA, P. R. | p. 375-387 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 379
Devo, neste ponto, recapitular elementos desses caminhos filosóficos de Max Martins, para melhor compreensão deles. Nascido na China, o budismo busca difundir os ensinamentos de Siddhartha Gautama, o Buda, que viveu entre os séculos VI e IV A.C. Por sua vez, Zen é uma prática religiosa que consiste na meditação contemplativa de autoinstrução e autoconhecimento, através da observação da própria mente.
Outros ensinamentos de tradição chinesa, que abarcam a filosofia, a religião e a poesia, estão no Taoismo. Trata-se, sobretudo, de um modo de ver a vida como caminho que se abre à natureza. Seus ensinamentos foram condensados em Tao Té Ching - O livro do caminho perfeito, cuja autoria é atribuída a Lao Tsé, personagem lendário e mitológico, que teria vivido entre 570-490 A.C. A obra compõe-se de máximas e aforismos que buscam interpretar o mundo e os homens com o propósito de uni-los e de envolvê-los numa atmosfera harmônica e de profunda compreensão. Para o Taoismo, Tao é uma palavra é intraduzível. Expressão do constante movimento do universo. Algo intangível, inexplicável. Para entendê-lo é preciso colocar-se em sintonia com ele, senti-lo. A melhor imagem que poderia ilustrar o caminho perfeito é a da linha que oferece a menor resistência entre dois pontos.
Todavia, além de interessar-se pelos ensinamentos orientais desde a juventude, Max também leu Auden, do poeta, anarquista e naturalista norte americano Henry David Thoreau (1817-1862). Propondo um retorno à vida simples, esta obra autobiográfica contém tanto uma declaração de autoindependência, quanto uma experiência social e uma viagem de descoberta do espírito. Em 1845 Thoreau retirou-se para a floresta, inspirado na
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filosofia de Confúcio (que foi contemporâneo de Lao Tsé). O poeta habitou a margem do lago Walden onde construiu os seus móveis e a sua cabana, passando a viver com o mínimo necessário à sobrevivência e em intenso contato com a natureza. Motivado pelos ensinamentos do Tao e pelo exemplo inspirador lido em Auden, Max Martins desembocou na praia, cajado à mão, procurava, no contato vegetal do bambu, fluir por caminho de menor resistência. Caminho da sabedoria, da solução contemplativa do mundo que passou a transmitir, com ênfase ainda maior, em seus poemas a partir de Caminho de Marahu, estimulado pela (primeira) relação direta com a natureza e pelos conceitos do Taoismo e do zen-budismo. Marahu: primeira relação
2 formigas - operárias ápteras ou novatas, não de fogo mas noturnas, doces
1 grilo (depois aprisionado pela aranha, morto ao amanhecer). O canto dum galo e outro galo A saracura. A tarde 2 gaviões molhados encolhidos no pau da árvore pensos Garças sobre as pedras negras da praia
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Os urubus o boto morto um cão medroso, sapos sapos sapos 1 goteira sapos chuva o sol vindo do mato às 7 da manhã A noite a escuridão o vento as velas de Lao-tsé Thoreau e o meu cajado de bambu rachado o chão folhas úmidas
Ainda no que concerne a Auden, é preciso dizer que a atitude de Thoreau perante o mundo faz lembrar, em certa medida, a de outro poeta, igualmente anarquista e norte americano, que conviveu com Max e seu grupo em Belém no início dos anos 1950. Robert Stock, o Homem da Matinha, como era conhecido porque morava em uma choupana de chão batido no antigo bairro da Matinha. Essa convivência intelectual, que durou certa de três anos, marcou profundamente a poesia do autor de Caminho de Marahu.
É preciso destacar que nesse mesmo período se deu a publicação de O homem e sua hora (1955), de Mário Faustino, obra que tocou profundamente o desenvolvimento da poética maxmartiniana. Aliás, entre Mário e Robert, também se dera uma relação de influências mútuas, que passa ainda pelo trabalho tradutório de poesia realizado por ambos, e atentamente absorvido por Max e outros. Todavia, se aqui
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destaco principalmente a atuação de Stock, é no encalço das motivações ao caminho que Max efetivamente escolheu para a condução da própria existência.
O Homem da Matinha encerrava lições de poética em consonância com a ética. Ligava o ato da poesia à moral, a primeira não poderia prescindir da última. Para ele, o compromisso com a arte devia ser igualmente dirigido à vida. O autor de Covenants (1967), morto em 1962, legou a Max o interesse pela visualidade da página, o gosto e a obsessão pela forma do poema e sua distribuição na geografia do papel. Retomo uma entrevista, concedida ao jornalista Elias Pinto, publicada no jornal “A província do Pará”, em que Max relembra o amigo, “Ele [Robert Stock] me apresentou o William Carlos Williams, o Dylan Thomas – poeta que passei a admirar muito –, o Cummings (antes da onda do concretismo eu já conhecia o Cummings).” Buda, Lao Tsé, Confúcio, Thoreau, Stock. Os dois últimos, from USA, pela atitude anticonsumista e desprendimento material perante o mundo, princípios fundadores da beat generation – gérmen do movimento hippie – coadunam com o desapego em favor do espírito professado nos ensinamentos dos três chineses.
Não fossem os excessos e os desregramentos empreendidos pela juventude artística do pós-segunda guerra mundial que, na contramão dos interesses do Estado, atentava, principalmente, contra a sua própria vida, o célebre On the road seria mais que uma metáfora, evidentemente contraditória e enviesada, do caminho (que se quer) perfeito. Insira-se ainda na poção da alquímica experiência de Max Martins, o seu estudo do oráculo chinês, uma das faces do milenar I Ching, o livro das mutações. Esta relação evidencia-se, com maior rigor, no livro Para ter onde ir (1992), inteiramente VIEIRA, P. R. | p. 375-387 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 383
escrito segundo as regras do jogo ritual, que consiste em consultas ao oráculo através da formulação de perguntas. Estas têm um papel decisivo no êxito ou no fracasso da consulta no que concerne à compreensão ou não da resposta obtida. O poeta deixou-se envolver pelo acaso, interessado nas revelações proporcionadas pelo I Ching com sua linguagem simbólica, não verbalizada, que se relaciona à manifestação do inconsciente.
O bruxo zen combinava ervas de diferentes páramos no seu caldeirão. Infusões de uma lírica transitória que se doa à mutação. Sabendo, todavia, da concepção chinesa, que nem os seres nem os objetos mudam. Quer dizer, não há mudança, o que há é o mudar. Por isso, o ideograma expresso por “I” significa ao mesmo tempo mutação e não-mutação. Para alguns “I” simboliza ainda o camaleão que, ágil e mimético (representações respectivas de movimento e de mutação), nunca deixará de ser um lagarto. Afinal, mesmo que as flores sejam outras a cada primavera, as estações sempre se repetirão. Nessa chave, a sabedoria deve consistir em alcançar o vazio. O poeta incorporou na poesia esse princípio, segundo o qual o destino de todo o saber é nos conduzir ao não-saber. “O rio que eu sou / não sei / ou me perdi”, escreve Max em “viagem”, poema e insipit de Caminho de marahu. O caldeirão é com frequência abastecido, mas principalmente para que seja esvaziado. Diz o Tao, “é melhor não encher totalmente um vaso do que tentar carregá-lo se estiver cheio”. O caldeirão
Aos sessenta anos-sonhos de tua vida (portas que se abrem e fecham fecham e abrem carcomidas) ferve
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a gordura e as unhas das palavras seu licor umbroso, teus remorsos-pêlos Ferve e entorna o caldo, quebra o caldeirão e enterra teu faisão de jade do futuro teu mavioso osso do passado
Agora que a madeira e o fogo de novo se combinam e o inimigo nº 1 já não te enxerga ou vai-se embora varre a tua cabana e expõe ao sol tua língua tua esperança tíbia o tigre da Coréia da parede É lícito tomar agora a concubina E despentear na cama a lua escura, o ideograma
De outra feita, a fascinação ideogramática provocada pela leitura de haikais levou a escrita de Max à incorporação dessa forma poética oriental, conjugando-a com um lirismo ocidental, muitas vezes, a um só tempo, de libido e de ascese, visível neste epigrama da lavra maxmartiniana, “chove / e a terra intumesce / agradece”. Além disso, o indisciplinado arranjo sonoro e plástico nos poemas de Max Martins contrasta com a disciplina zen. Sobressaem escatologias e jogos miméticos no singular léxico dos poemas que, revigorados naquele ambiente insular, marahúnico, consolidavam, dia após dia, o entrosamento de conceitos da sabedoria oriental com o erotismo penetrante no âmago da poesia dele.
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Referências bibliográficas FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. MARTINS, MAX. Não para consolar - poemas reunidos 1952-1992. Belém: Cejup, 1992. _______________. Para ter onde ir. São Paulo: Massao Ohno e Augusto Massi. 1992.
_______________. O jardim zen de Max Martins: entrevista. [26 de julho de 2010]. (Em: < http:// hospiciomoinhodosventos.blogspot.com.br > Acesso em: 10 de janeiro de 2013). Entrevista concedida a Ney Paiva. _______________. As antenas do poeta: entrevista. [março de 1990]. Jornal A província do Pará. Entrevista concedida a Elias Pinto. STOCK, Robert. Covenants. Nova York: Trindent Press. 1967. THOREAU, H. D. Auden. (Trad. Denise Bottmann). Rio de Janeiro: L&PM Pocket, 2010.
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TSÉ, Lao. Tao-Té-Ching - o livro do caminho perfeito. (Trad. Murilo Nunes de Azevedo). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1973. WILHELM, Richard. (Org.) I Ching o livro das mutações. (Trad. Alayde Mutzenbecher e Gustavo Alberto Corrêa Pinto). São Paulo: Editora Pensamento. 1956.
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NEVER LET ME GO: THE FILM ADAPTATION, OR WHERE IS THE DRAMA TO BE FOUND IN ‘WHO’ YOU ARE AND ‘WHAT’ YOU ARE? Prof. Dr. Peter James HARRIS1 Silvia Mara TELLINI2
Abstract: This essay proposes to start a dialogue between two different sources of drama present in the movie adaptation (2010) of the novel Never Let Me Go (2005) by Kazuo Ishiguro. One source we will consider as being generated from the ontological theme of the novel and the other as being generated by the very nature of the kind of the medium ‘motion picture’. To discuss the previous source of drama we propose to approach that concept based on a fundamental philosophical question- ‘what is being’, discussing it as a kind of ‘ontological drama’ through the lenses of the hermeneutical phenomenology method presented by Heidegger in Being and Time (1998). And the latter, as a concept of drama conveyed by the medium itself as discussed by Martin Esslin in An Anatomy of Drama (1976). In order to exemplify the relevance of both dramatic sources, we will take as a standpoint the dialogue established between the author Kazuo Ishiguro and the screenwriter Alex Garland (2011) throughout their creative process. Their conversation will provide us with elements to illustrate and inter relate both sources of dramatic elements present in the motion picture in order to bring out some aspects of the human drama hidden beneath the story of clones. 1 2
Key-words: Kazuo Ishiguro; Martin Esslin; Martin Heidegger; Never Let Me Go
UNESP-SJRP UNESP-SJRP
Our objective in this paper is to consider whether the slow-moving cinematic adaptation of Kazuo Ishiguro’s novel Never Let Me Go (2005), directed by Mark Romanek and released in 2010, can be described as dramatic and, if so, to identify wherein the drama lies. Although the film opened to generally favourable reviews, a number of critics were irritated by its somnolent rhythm. Marshall Fine, of The Huffington Post, for example, complained that the film had ‘a quiet, leisurely pace that would not be out of place in a yoga class’, and described it as ‘a staid, lifeless tale that never talks about what it’s about’ (FINE, 2010). We argue that the film does indeed satisfy some of the basic criteria postulated by Martin Esslin (1918-2002) in An Anatomy of Drama (1978), including those of action and suspense, and that these qualities are inherent to the ontological or existential theme common to both the novel and its adaptation as a film. Never Let Me Go, we believe, is best seen as a dramatisation of the ‘question of Being’ posed by the German philosopher Martin Heidegger (1889-1976) in his key text, Being and Time (Sein und Zeit), first published in 1927. Never Let Me Go is a dystopian narrative, set in late-twentieth-century Britain in a society which ensures the longevity of its citizens by transplanting organs, harvested from human clones created specifically for the purpose of ‘donating’ up to three of their vital organs in a process culminating inevitably in their own death. The theme is rendered particularly poignant by the fact that the first section of the narrative is set in Hailsham, a designated school for the education and upbringing or, more precisely, rearing of these clones, who become increasingly aware of the finitude of their own life-span. The novel and film alike have a theatrical three-act structure, depicting, respectively, the childhood, adolescence and premature decease or ‘completion’ of the clones, and the plot essentially concerns the unsuccessful search by some of the clones
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to find a means of postponing the beginning of the ‘donation’ process.
At the outset of An Anatomy of Drama Martin Esslin recalls that the Greek word drama ‘simply means action’, and he goes on to define drama as ‘mimetic action, action in imitation or representation of human behaviour’ (ESSLIN, 1978, p. 14), but he also stresses that, beyond ‘the artistic imitation of real human behaviour, it is also the most concrete form in which we can think about human situations’ (p. 21). In other words, drama ‘is a form of philosophising, not in abstract but in concrete terms – in today’s philosophical jargon one would say in existential terms’ (p. 22). He thus quickly dispenses with the notion that dramatic action needs to occur in the form of plot or narrative development. In fact, one of the greatest dramatists of the twentieth century was Samuel Beckett (1906-1989), whose masterpiece, Waiting for Godot (1955), was memorably described as ‘a theoretical impossibility – a play in which nothing happens, that yet keeps audiences glued to their seats. What’s more, since the second act is a subtly different reprise of the first, (it is) a play in which nothing happens, twice’ (MERCIER, 1956, p. 6). Esslin argues that what ‘keeps audiences glued to their seats’ in a play like Waiting for Godot, or in any other drama – whether performed in a theatre, on the radio or on a television or cinema screen is the key element of suspense: ‘the creation of interest and suspense (…) underlies all dramatic construction (…) expectations must be aroused, but never, until the last curtain, wholly fulfilled’ (ESSLIN, 1978, p. 43). So the question we must seek to answer is: how is suspense created in the film of Never Let Me Go? According to Marshall Fine, the film does not work at all ‘on a suspense level (…). The big emotional moment at the end of the film – the reveal, if you will – is so unrevealing, so uninvolving, that you’re bowled over mostly by the anticlimax of it’ (FINE, 2010). We HARRIS, P. J.; TELLINI, S. M. | p. 389-399 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 391
contend, however, that suspense is generated in the film principally through the process of ontological interrogation in the protagonist, Kathy H.’s reminiscences, which may be understood in the light of Heidegger’s concept of Dasein, elaborated in Being and Time. For Heiddeger, Dasein referred to the being for whom Being was a question of interest, in other words, the human being. According to Heidegger, since the Dasein lives in a constant state of projecting or throwing itself into the future, suspense arises as an inevitable part of the condition of being human, (HEIDEGGER, 1998, p. 219-24).
For Heidegger, although an understanding of Being does not reside solely in its functions (‘what’ you are), he argues that the existence of Dasein (Being-in-the-world) can be hidden, its ‘presence’ camouflaged by its functions. By analogy it could be said that the clones’ function as organ donors camouflages their essential humanity. This may be one of the reasons why many scenes in the film are constructed on the basis of the non-reaction or absence-of-action of the participants. Heidegger argues that there are two possible questions serving as means of accessing the Being (Sein) present in Dasein (HEIDEGGER, 1998, p.70-1). It is precisely these questions that are posed for the clone-children by Miss Lucy, the newly arrived guardian at Hailsham boarding school: – ‘who’ are you and ‘what’ are you? In this scene (Never Let Me Go, 2010, 22:21-25:35 min.), when the clones hear from Miss Lucy that they will die around the time of their third organ donation, there is no revolt, no rebellion, no crying, and nearly no physical reaction. So where is the drama to be found in this scene?
A reading of Heidegger suggests that there is no need to dramatise human existence at all since it is already dramatic per se, in its very condition for ‘showing’ (Zeigen) as opposed to ‘acting’ or ‘announcing’ (Melden) the existence of its Being. Since the main theme of the novel is encapsulated in Miss 392 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
Lucy’s question, Heidegger’s interpretation of an ontology of Being enables us to comprehend the presence of drama in the absence of action, or at least, in the absence of concrete, physical action in the film. Despite the lack of action, suspense is embodied in the increasingly puzzled faces of the clone children as their unfortunate fate is revealed to them – the fact that they have been created in order to donate their organs and that they will inevitably die while still in their twenties. Thus the tension and suspense intrinsic to the condition of their Being-in-theworld (Dasein) are intensified by Mark Romanek’s direction.
The sombre tone of the scene is set by the sound of rain outside and the dark palette of colours both inside the classroom and outside in the garden. ‘Who’ the clones are is defined by the dynamic interrelationship between the world they inhabit and their emotional reaction to it. Their frozen bodies and expressions render their astonishment in the face of the void opening before them implicit rather than explicit. As they are told about their fate their silence is underscored by their delicate gestures and expressions as they attempt to grasp the full meaning of what they have just been told. Their fate has been disclosed, but what can they make of it? It is the very ontological apprehension and non-apprehension of their Being-in-the-world that generates suspense. Although Miss Lucy presents them with the facts, the viewer is held in suspense with regard to how much the clones can or should know about their own Being-in-the-world – that is, how much of their ontological truth is revealed to them. For Heidegger, the essence of Dasein is a life in constant anxiety, constantly projecting itself into the future and unable to grasp its meaning. In his commentary on Heidegger’s text Taylor Carman stresses the impossibility of the Dasein comprehending the narrative structure of its own existence: HARRIS, P. J.; TELLINI, S. M. | p. 389-399 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 393
[…] the very structure of being-in-the-world as my own … makes it impossible in principle for me to take up a merely observational or biographical point of view on myself and my existence. I am so directly involved in my life that I can’t understand my own existence as anything like a finite life span […] organized by a beginning, a middle and an end. (CARMAN, in DREYFUS, 2005, p. 13)
Not only in Never Let Me Go, but throughout Ishiguro’s work, his first-person narrators reveal their inability to understand their own narratives. This aspect is also a source of suspense in the film.
Heidegger stresses that Being is not a scientific or philosophical form of knowledge, but rather one that is unveiled in the ontology intricately manifest in the most gratuitous gesture in ‘everydayness’. This quotidian quality is accentuated in both the book and the film of Never Let Me Go. Heidegger’s notion of Being revealed in the ‘everydayness’ of life is depicted in the long scenes showing the children´s routine at Hailsham in the first act of the film. In one of the first scenes, we see Kathy meeting Ruth for the first time and playing with her during a school breaktime. (Never Let Me Go, 2010, 00.05:00-00.05.30 min.) Mundane though it is the scene foreshadows some aspects of their later relationship. When Ruth tells Kathy that she cannot have the best horse she owns and that she will be the one giving permission for her to play with this or that horse we see her need for control, which will be so significant in their relationship later on. In addition to its components of action and suspense, another of the characteristics cited by Martin Esslin as being essential to drama is that of economy of expression, which he sees as one of the main advantages that drama has over other art forms (ESSLIN, 1978, p. 17). One of the most powerful im-
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ages in both the novel and the film version of Never Let Me Go is that of the derelict, beached boat, which may be seen as a symbol for the inviability of Tommy and Kathy’s dream that they may be granted a deferral by Madam. In his introduction to the published text of Alex Garland’s screenplay, Kazuo Ishiguro has no doubt that this scene in the film is far more effective in dramatic terms than it is in the novel, precisely because of its greater economy:
[…] In the original, they look at the boat and reminisce about their childhoods. Only later, on the drive back, do tensions rise, culminating in Ruth suddenly asking the other two to forgive her for a lifetime of obstructing their love. In Alex’s version, it all happens in one go, with far fewer words as they sit there on the sand. The movement of emotions is swifter and cleaner, making for an intensely affectionate scene – better, I think, then in my novel. (ISHIGURO, in GARLAND, 2011, p. x)
It is at this point that Kathy and Tommy (Never Let Me Go, 2010, 1:10:00-1:12:36 min.) start making plans to see Madam who, they hope, will be able to see that they are in love and give them a few extra years together. However, when they arrive at Madam’s house, they realise she has been living with Miss Emily, the former headmistress at Hailsham. Madam tells them straight to their faces that ‘there are no deferrals and that there had never been’. Miss Emily goes on to reveal the purpose of the Art Gallery they had back at Hailsham: ‘We didn’t have the Gallery in order to look into your souls. We had the Gallery to see if you had souls at all.’(Never Let Me Go, 2010, 1:27:55-1:28:37 min.) In this scene, Romanek’s technique is similar to that in the scene in which the clone-children discover their true fate. Once again, the characters are told ‘who’ they are and ‘what’ HARRIS, P. J.; TELLINI, S. M. | p. 389-399 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 395
they are. At the end of the scene there is silence, meaningful, dramatic silence, which once again suggests the huge void space before their understanding of the meaning of life. Kathy’s reaction to what she hears is a verbalised, condensed ‘yes’, whereas Tommy is unable to express anything until half-way through their drive back to the recovery centre where he is now living. He asks Kathy to stop the car, gets out, and gives vent to a prolonged primal scream, which in the book is described over almost ten pages (ISHIGURO, 2005, p. 266-75) as being something similar to the tantrum spells he used to have as a boy. In the film, Tommy’s scream is fully illuminated in the car headlights, which contrast with the darkness of the night. In the book, Kathy only manages to catch a glimpse of Tommy in the moonlight after slipping in the mud, and they exchange short dialogues, which would be redundant in the film.
Another aspect, central to Heidegger’s concept of Dasein, which is highlighted in the film is that of modes of temporality. For Heidegger, the only way that the ontological history of Dasein can be constituted is through temporality (HEIDEGGER, 1998, p. 38). Both Ishiguro and Garland have found ways of revealing how the element of time passing is one of the main constitutive elements of the short lives of these clones, which is also a source of suspense, since we see the clones resisting the finitude of their lives by creating and perpetuating rumours about the Gallery and the supposed deferrals.
The temporality factor is clearly acknowledged in Kathy’s perspective at the end of the film, as she recognises that Tommy’s life has ended. In the book, two weeks after Tommy’s death, she finds herself in a field in Norfolk and fantasises that he is waving to her, but she stops herself and ‘waits a bit, turns back to the car, to drive off to wherever she was supposed to be’ (ISHIGURO, 2005, p. 288). Although Kathy’s role as a carer 396 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
has earned her a period of remission, a kind of ‘deferral’, she must now face the inevitability of making her own ‘donations’. At this point it becomes clear that Dasein or her humanity is being pressed by time. In the closing lines of the screenplay Garland stresses Kathy’s awareness of this temporality in her final voiceover:
[…] I’ve been given my notice now. My first donation is in a month´s time. […] I remind myself I was lucky to have had any time with him at all. What I’m not sure about is if our lives have been so different from the lives of the people we save. We all complete. Maybe none of us really understand what we’ve lived through or feel we’ve had enough time. (Never Let Me Go, 2010, 1:34:35-1:36:45 min.)
In referring to the common ground shared by clones and humans alike Garland is here clearly signalling that this work should not be interpreted as science fiction. Just as much as those of the clones the lives of human beings are constrained by their limited temporality. Kathy here echoes Heidegger in acknowledging her lack of perspective throughout her life, which is constrained by its temporality, one of the fundamental constituents of Dasein (HEIDEGGER, 1998).
To conclude, we have sought to demonstrate that, undeniably slow-moving though it is, the cinematic adaptation of Never Let Me Go may be fairly described as dramatic. Although its action does not occur in the form of a narrative in which one plot development or event is swiftly succeeded by another, it is, to use Martin Esslin’s phrase, ‘a form of philosophising’. The film may be seen as a dramatisation of the ‘question of Being’ that lies at the heart of Heidegger’s Being and Time, with his key concept of Dasein embodied in the attempts of the protagonists to comprehend ‘who’ and ‘what’ they are, HARRIS, P. J.; TELLINI, S. M. | p. 389-399 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 397
their quest rendered particularly poignant and urgent within the reduced time-frame and pre-defined temporality of their designated function as organ donors. The filmscript’s utilisation of suspense and its economy of expression, both identified by Esslin as important characteristics of drama, are further indications of the film’s dramatic nature. In short, we have attempted to show that the film of Never Let Me Go is no less dramatic than Waiting for Godot, Samuel Beckett’s masterpiece, the play in which ‘nothing happens, twice’. Bibliographical References
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HARRIS, P. J.; TELLINI, S. M. | p. 389-399 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 399
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Por trás da história: Gênero Policial e Intertextualidade na obra de Rubem Fonseca Priscila Costa Domingues1 Daniela Mantarro CallipO 2
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Resumo: Rubem Fonseca é um autor de “mil faces”, pois sua produção não se resume a um único gênero. Já escreveu obras que se encaixam na concepção pós-moderna do romance histórico e tem diversos títulos, que se ligam ao gênero policial, mesmo que de modos distintos, o que demonstra o hibridismo do autor, prova da sua escrita pós-moderna. Em uma de suas “faces”, se olharmos mais atentamente, notaremos a questão da intertextualidade que perpassa a obra fonsequiana. Em diversos textos podemos encontrar essas marcas, um exemplo é o diálogo que o autor faz com outros autores, seja da tradição literária ou ícones da literatura de massa. Independente do seu “interlocutor”, Fonseca transforma, (re)cria, traz algo novo, tanto que o diálogo se torna tão tênue que pode passar despercebido aos leitores desavisados. Utilizando o gênero policial para elaborar uma trama que atrai (ou será que trai?) o leitor, o autor rompe as barreiras do policialesco para ir além. Seja no romance, fazendo um “jogo” com os nomes: em Bufo & Spallanzani há um Gustavo Flávio, seria uma versão abrasileirada de Gustave Flaubert? No conto Dia dos Namorados, a primeira aparição do advogado Mandrake, um homônimo do ilusionista dos quadrinhos, ou será que ele quer nos iludir? Na crônica O último suspeito, as “coincidências” também aparecem, não é no nome do protagonista, mas para
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olhos bem atentos ela estará lá. Tendo como base no gênero policial, Rubem Fonseca elabora textos em que, independente do gênero narrativo, a intertextualidade está presente. Como ela se apresenta nos textos policiais do autor, sendo ele pósmoderno, é o que pretendemos identificar. Palavras-Chave: Intertextualidade, Gênero Policial, Rubem Fonseca, Romance, Conto, Crônica.
Rubem Fonseca é um autor pós-moderno, ou pelo menos em que há elementos da pós-modernidade em sua obra, podemos verificar este aspecto pela mistura de gêneros que existe nos textos do autor, neste há um rompimento de fronteiras literárias. Erudito e popular convivem de forma pacífica, formando um todo coeso que dá o tom nas narrativas do autor. Em uma de suas facetas, mais conhecidas, Fonseca é um escritor de literatura de violência em que é mostrada, com crueldade, o que o ser humano tem de pior. Com uma linguagem direta e áspera, que chega a ser corrosiva, a irônica dos textos atinge o leitor, e este se sente agredido por uma linguagem que é uma “arma” poderosa nos textos fonsequianos. Podemos perceber o hibridismo do autor, e sua inserção na pós-modernidade, por outros elementos inerentes à obra, Rubem Fonseca não se liga apenas a uma única tradição literária. Entre seus livros há os que se ligam, entre outros, ao romance histórico e ao gênero policial, no entanto, sua marca é a mescla de gêneros dentro da narrativa.
No que concerne ao gênero policial na obra do autor, podemos perceber que sua inclusão no conceito de pósmodernidade não é verifica não pela história contada “descobri o que os escritores sempre souberam (e disseram muitas vezes): os livros falam sobre outros livros, e toda história conta uma história que já foi contada” (ECO, 1985, p. 20).
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Deste modo, a originalidade do livro não é a história contada, mas a forma que isso ocorre, a estruturação da narrativa é algo imprescindível para o aspecto pós-moderno da escrita do autor. Este se vale do gênero policial para criar algo maior, uma narrativa que ultrapasse as fronteiras permitidas pelo gênero, que desta maneira adquire o estatuto de pós-moderna.
Assim, podemos começar a compreender qual o papel da intertextualidade na obra fonsequiana. Como esta se insere na perspectiva pós-moderna da escrita do autor? O hibridismo do autor pode começar a ser demonstrado por este aspecto, ele se liga ao erudito quando nomeia seu protagonista (ou será que a própria personagem se auto-nomeia?) de Gustavo Flávio, e a cultura popular ao dar o nome de um dos seus mais conhecidos personagens de Mandrake. Os estudos de literatura comparada estão no cerne dos estudos brasileiros
na abertura do 1º Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada [...] é o próprio Antonio Candido que afirmar: Há mais de quarenta anos eu disse que ‘estudar literatura brasileira é estudar literatura comparada’, porque nossa produção está vinculada aos exemplos externos, que insensivelmente os estudiosos efetuavam as suas análises ou elaboravam os seus juízos tomando-os como critérios de validade. (MIRANDA e SOUZA 1997, p. 40).
Ao pensarmos nas questões do gênero policial no Brasil e, conseqüentemente, em Rubem Fonseca, um dos maiores nomes do gênero no país, compreendemos de maneira mais profunda a afirmação de Candido. Os estudos, e as discussões, feitos acerca do gênero policial não foram elaborados no Brasil, DOMINGUES, P. C.; CALLIPO, D. M. | p. 401-415 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 403
mesmo sendo um grande consumidor de literatura policial não é um país produtor, está normalmente vem de fora.
Com isso, quando surge um nome como o de Fonseca, cujos textos, pelo menos alguns, são visivelmente ligados a esta tradição, os estudiosos não têm parâmetro nacional, tendo em vista que no Brasil não há uma tradição do gênero. Deste modo, a comparação é feita com outros escritos do gênero, seja os mais tradicionais como Sherlock Holmes ou pósmoderno como O Nome da Rosa.
Assim, a literatura comparada está na raiz de uma análise de qualquer texto policial do autor. Como se trata de um gênero que mesmo tendo nascido de um norte-americano: Edgar Alan Poe, teve grande desenvolvimento na Europa. Assim, mesmo a afirmação de que Rubem Fonseca rompe as regras do gênero, é feita considerando as regras estabelecidas pelos escritores e estudiosos estrangeiros, principalmente os europeus. Até mesmo os cenários escudos e mórbidos, típico de países frios, são transpostos para os trópicos, o autor transporta o clima de suspense, agora, os crimes acontecem no Rio de Janeiro. Para tanto ele esquece o calor das praias para colocar suas personagens no centro da cidade, em um submundo em que o luxo e o lixo se misturam, em que o flâneur tem espaço garantido em suas perambulações noturnas. Deste modo, podemos compreender que a intertextualidade do texto fonsequiano se inicia já na escolha do gênero. Ao elaborar uma narrativa policial o diálogo com a tradição começa, é preciso conhecer os primórdios do gênero, conhecer suas estruturas, para poder se associar a ele, mesmo que seja para ultrapassar as regras depois. Podemos perceber que a intertextualidade tem papel decisivo na obra do autor ligado ao gênero policial. Se 404 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
as histórias são sempre as mesmas, Rubem Fonseca está contando a de Poe, Conan Doyle e Umberto Eco, só que de maneira diferente, existindo um diálogo intertextual com esses autores e suas obras. Há nas personagens fonsequianas duas importantes e fundamentais características que nos evidenciam, mais uma vez, que a questão da intertextualidade é inerente ao autor. As personagens sempre citam autores da tradição literária, seja para afirmar uma atitude, seja para demonstrar erudição. Essas personagens também não se limitam a um único livro. Um exemplo desse rompimento é o da personagem Mandrake, do conto Dia dos Namorados, o qual não se limita a uma única obra, é o protagonista de diversos contos, e do romance A Grande Arte. Gustavo Flávio, protagonista de Bufo & Spallanzani, também irá parecer em outros textos de autor.
Assim, é possível perceber que a relação intertextual ocorre de duas formas distintas dentro das narrativas de Rubem Fonseca. Elas podem tanto dialogar com outros autores, tanto da tradição literária como da cultura de massa, como também com textos do próprio autor. Não só na “caminhada” dos personagens entre os textos, o que por si já nos faz lembrar de um autor da tradição literária: Honoré de Balzac; mas na formação de uma citação a uma cena ou passagem do autor.
Para descrever seu primeiro encontro amoroso Gustavo Flávio, em Bufo & Spallanzani, faz o seguinte comentário “Liguei o gás do aquecedor, talvez pensasse que um banho nos purificaria, nos fizesse esquecer aquele horror, voltasse a encher meu pênis de sangue. Subitamente o aquecedor explodiu (ver Fonseca).” (FONSECA, 1991, p. 13) Esta nota sem mais detalhes, talvez passe despercebida por um leitor desatento, ou como uma referência sem sentido para um outro que não conhece a obra fonsequiana. Contudo, para DOMINGUES, P. C.; CALLIPO, D. M. | p. 401-415 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 405
os leitores desta, esta referência não é segredo se pensarmos que existe uma cena muito parecida à referida no romance O caso Morel.
Ou para ilustrar de maneira mais contundente os diálogos entre as obras de Rubem Fonseca, podemos ver o comentário que Mandrake faz se referindo ao detetive Guedes “um crente, na imprensa e na opinião pública, um ingênuo”. Nesta passagem, temos duas personagens de história distintas, Guedes de Bufo & Spallanzani e, Mandrake de Dia dos Namorados, se encontrando em um outro conto do autor, as personagens se interrelacionam.
Deste modo, entendemos que a obra fonsequiana, ao dialogar com si mesma cria vínculos que somente os leitores assíduos do autor irão perceber, que causam um maior aprofundamento nas leituras à medida que estes vão conhecendo as obras do autor, ao mesmo tempo em que os leitores de um único livro não perdem por não compreender a citação implícita. Assim, é possível observar que as questões intertextuais são muito importantes para a compreensão das narrativas de Rubem Fonseca, principalmente se levarmos em conta outros dois aspectos da obra do autor: as distinções de gêneros e a distância temporal entre os escritos.
Para compreender os aspectos intertextuais da obra de Fonseca foram eleitas narrativas de gêneros textuais distintas com o intuito de demonstrar que estas independem do gênero, já que é uma parte inerente dos textos do autor. Com isso, não pretendemos dizer em que todos os textos do autor a intertextualidade está presente (sendo tão vasta a obra do autor há textos em que este aspecto não é privilegiado), mas que este é um fator determinante dentro de suas narrativas. Da mesma forma a questão temporal também é significativa
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para verificarmos a importância das questões intertextuais na obra fonsequiana. Ao observarmos, por exemplo, que o conto Dia dos Namorados, foi publicado no livro Feliz Ano Novo, em 1975, o romance Bufo & Spallanzani foi lançado em 1985 e a crônica O Último Suspeito, do livro O Romance Morreu, foi publicado em 2007. Percebemos que há uma distância temporal relevante entre cada publicação, de modo que podemos constatar que a intertextualidade perpassou a obra de Rubem Fonseca, desde de suas primeiras narrativas até os seus últimos lançamentos é possível encontrar as marcas da intertextualidade do autor. Com isso, podemos entender que independente do ano de publicação ou do gênero narrativo escolhido, a intertextualidade é uma marca do autor. Em suas narrativas em que os elementos da pós-modernidade são inegáveis, os aspectos intertextuais são utilizados para reforçar estes elementos.
Do mesmo modo, as questões intertextuais também auxiliam no hibridismo que há nas narrativas fonsequiana. Isso fica mais claro se pensarmos que estes elementos contribuem para uma dupla função nas narrativas do autor: ao mesmo tempo em que se liga à literatura de massa, também se une à literatura culta. Como a obra de Fonseca é marcada por narrativas em que os gêneros literários estão mesclados, os intertextos são ingredientes acrescentados à mistura. De maneira que os livros do autor podem ser lidos por qualquer público, à medida que as questões intertextuais são feitas com todos os tipos de cultura, seja ela erudita ou popular. Maria Antonieta Pereira, em seu livro no Fio do Texto diz o seguinte em relação ao livro A Grande Arte A narrativa dirige-se, dessa forma, ao leitor comum de
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romance policial, ao leitor culto que compreende os termos estrangeiros àquele, ainda mais refinado, que percebe o trabalho de intertextualidade, ao ensaísta que desenvolve uma leitura crítica e analítica, ao cinemaníaco que assistiu a todos os filmes referidos, ao consumidor de cultura de massa via televisão, quadrinhos e congêneres. (PEREIRA, 2000, p. 111).
Como os textos escolhidos também estão inseridos dentro do gênero policial, a afirmação pode se referir aos mesmos, por misturar em seus diálogos intertextuais questões de diversos segmentos, os leitores de diversos níveis irão perceber alguma referência nos textos. Um leitor de literatura de massa não terá problemas em identificar os quadrinhos no nome de Mandrake, enquanto os leitores eruditos perceberam sem problemas o jogo textual no nome de Gustavo Flávio. Assim, as questões intertextuais contribuem para que os textos do autor atinjam a todos os públicos. Estes, independentemente do nível de leitura, conseguiram fazer alguma ligação com a sua cultura, de modo que ninguém se sentirá excluído dos diálogos presentes dentro da narrativa. Da mesma maneira, os aspectos intertextuais auxiliam a abertura da narrativa, haverá mais de um modo de ler o texto, dependendo da forma como as ligações intertextuais foram lidas. Cada leitor tem a possibilidade de fazer uma leitura própria, respeitando os limites da obra, conforme as ligações intertextuais que ele faz.
Com isso, podemos perceber que será diferente a leitura para um leitor que conhece o Mandrake dos quadrinhos, do seriado da TV, a personagem de James Joyce, ou quem não conhece a personagem, cada um fará as suas próprias interpretações da narrativa. Dentre as possibilidades de leitura, um pode achar que há uma aproximação entre o ilusionista dos quadrinhos e o advogado do conto, enquanto,
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para outros será somente uma coincidência, de modo que as questões intertextuais possibilitam diversas formas de leitura. Podemos perceber como a questão intertextual é importante na obra do autor, ao compreender que ela começa em relação ao gênero narrativo do qual o autor se vale para construir a sua narrativa. Já foi mencionado que Rubem Fonseca utiliza o gênero policial para poder romper suas fronteiras, estabelecendo uma relação com a pós-modernidade.
Porém, mesmo com o posterior rompimento, há nas obras fonsequianas referências nítidas ao romance policial, seja ele o tradicional, nos moldes de Poe e Conan Doyle, ou o romannoir, com sua violência explicita, que também é uma marca do autor, de maneira que ai se encontra um diálogo intertextual. “se podemos encontrar inúmeras semelhanças entre os romances do autor e o roman – noir de melhor qualidade, como de Hammett, por exemplo, percebemos também que Rubem Fonseca estabelece um diálogo crítico com essas obras.” (FIGUEIREDO, 2003, p. 44). Assim, podemos entender que existe uma relação intertextual do gênero em que as narrativas são escritas, mas que essas não se limitam a ser a mesma, elas vão além, criando algo mais profundo. A questão do marginal, muitas vezes colocado em pauta por Fonseca, independentemente do tipo de marginalização, também pode ser explorado pelo viés da intertextualidade. Como o gênero policial permite, ou até pede, a inserção de um marginal dentro da narrativa o autor pode se valer deste recurso para elaborar o debate. É possível [...] desvendar a busca de sobrevivência pelo marginal, frente as suas condições de existência e coexistência. Em função disso veremos em que medida podem ser marginais a condição das personagens, do escritor, e mesmo a concepção de Literatura expressa ocasionalmente pelos narradores.”(MARETTI, 1986, p.5)
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A intertextualidade se mostra deste ponto de vista, como fator que contribui para demonstrar a marginalidade. Tendo como base os textos escolhidos, percebemos que em cada um deles o marginal é visto de forma distinta: no conto, como o marginal é um personagem comum, a intertextualidade está (em primeiro plano) ligada à literatura de massa; no romance à literatura culta; e na crônica há aspectos distintos ora ligado à literatura de massa ora à culta. Porém, é a Literatura o fator mais relevante. Ao utilizar a intertextualidade, Rubem Fonseca demonstra como a literatura brasileira é marginal. Ela precisa dialogar com outras literaturas para agregar outros valores, como se pelo fato de ser uma literatura de um país subdesenvolvido necessitasse de uma ligação com a tradição, para se afirmar.
Por outro lado, não podemos perder de vista que se trata de gêneros literários distintos, de forma que as relações intertextuais ocorrem de forma diferente dentro de cada narrativa, uma vez que há um respeito ao gênero literário. Ao levarmos em conta que cada um tem as suas próprias especificidades, compreendemos que as construções se darão de diversas maneiras dependendo do gênero.
No que concerne ao conto podemos perceber que há especificidades do autor em relação à maneira de estruturar a narrativa nos moldes do gênero. Sabendo que Rubem Fonseca é um autor contemporâneo de Borges, e que sendo ambos latinoamericanos, produzem literatura em países subdesenvolvidos, que não estão no centro da literatura mundial. Segundo o autor argentino Ricardo Piglia “o conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a história 1[...] e constrói em segredo a história 2 [...]. a arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Um relato visível esconde um relato secreto, narrado de modo elíptico e fragmentário” (2004, p.89- 90)
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Como o conto fonsequiano escolhido é ligado ao gênero policial, percebemos que a relação das duas histórias está presente, e que uma vai sendo encaixada na outra, para que somente no final ambas se resolvam, mesmo que não de forma clara. Borges inovou a maneira de construir as relações entre as duas histórias, elaborando uma narrativa que se propõe a “enganar” e iludir ao leitor, ao fazer uma trama que cheia de fatos e caminhos incertos confundem o leitor.
A criação de Rubem Fonseca caminha da mesma forma, as histórias são presentes mais para confundir do que para esclarecer, de modo que o leitor perceber “o que compreender, na revelação final, é que a história que tentou decifrar é falsa e que há outra trama, silenciosa e secreta a ele destinada. A arte de narrar se baseia na leitura equivocada dos sinais” (PIGLIA, 2004, p. 103). Com isso, podemos compreender que no conto cabe a intertextualidade tirar o foco do leitor, se é necessário que o que se faça uma leitura equivocada, as relações intertextuais é um elemento poderoso para mudar o caminho da leitura, dando pistas falsas que fará o leitor buscar um trajeto que se mostrará equivocado no final da narrativa.
No romance a intertextualidade terá uma função distinta na que encontramos no conto. Mesmo que também possa ludibriar o leitor, esta não será a função mais importante. Por ter uma estrutura longa a intertextualidade assume outras possibilidades de utilização. No romance Bufo & Spallanzani percebemos que uma das funções adquiridas pelos aspectos intertextuais é o de demonstrar a erudição do narrador. Por se tratar de um narrador que é escritor, este tem a necessidade de citar de DOMINGUES, P. C.; CALLIPO, D. M. | p. 401-415 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 411
modo exacerbado os autores da tradição literária para se afirmar como ele também sendo parte desta tradição.
Como o romance é uma narrativa longa, o autor se vale das relações intertextuais para elaborar um jogo textual, que somente um leitor atento irá perceber. Utilizando nomes e fatos que nos remetem a outras histórias, no romance o livro Bufo & Spallanzani não é escrito, ao mesmo tempo em que estamos lendo Bufo & Spallanzani.
Assim, no jogo da reflexividade infinita de Bufo & Spallanzani Rubem Fonseca utiliza seu personagem escritor para tematizar a literatura como eterna reescritura de obras já escritas, como pura trajetória da letra a letra. A partir da incapacidade de Gustavo Flávio para reescrever Madame Bovary, o autor o reescreve, optando por uma posição de enunciação diferente da que Flaubert escolhera. (FIGUEIREDO, 2003, p. 107)
Com isso, compreendemos, que no romance, uma das funções da intertextualidade é de fazer uma ponte com a tradição literária, não com o intuito de imitá-la, mas de fazer uma nova versão, atualizada, ao mesmo tempo homenagem e crítica, de modo que não existe uma tentativa de negar o que veio antes, ao contrário, este colocado como influência, mas que pode e deve ser ultrapassada. Fazendo o caminho contrário da maioria dos autores, Rubem Fonseca só começa a escrever crônicas quando já é um autor reconhecido no cenário nacional. Outra peculiaridade é o fato de que o autor não utilizou os jornais para a publicação de suas crônicas, mas um blog, e posteriormente reunidas no livro O Romance Morreu. Na crônica O Quinto Suspeito, a intertextualidade é usada como meio de identificar ou dispensar os suspeitos pelo
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crime. Assim, a intertextualidade assume uma outra função é por meio dela que um suspeito vai ou não continuar na lista, aspecto que não é privilegiado nos outros gêneros.
Outra peculiaridade é o fato de que na crônica não há somente uma relação intertextual coma literatura e outras artes. Estas também são presentes, mas convivem de forma harmônica referências científicas, que dão mais veracidade a análise do suspeito. Deste modo a intertextualidade é utilizada para fazer para construir a narrativa, que se ligando ao gênero policial não se ligará no fim das contas Ou seja, não há mais delito (apenas uma “charada”) e, por conseqüência, nem delinqüente e nem investigação. Há, na verdade, um convite ao leitor para suspeitar da narrativa até um certo momento policial e que pretendia chegar a uma suposta verdade absoluta, única e inquestionável através de métodos ditos científicos como a dedução, a análise, o raciocínio lógico, que tanto alimentaram as primeiras narrativas policiais (de Edgar Allan Poe, de Conan Doyle, de Agatha Christe...). (MARETTI, 2009)
Assim, percebemos que as funções da intertextualidade são distintas em cada gênero literário, mesmo que todas as narrativas sejam ligadas ao gênero policial, elas se desenvolveram se modos diversos. Com isso, os aspectos intertextuais serem utilizados de maneiras diferentes em cada narrativa. Contudo, a intertextualidade estará presente, permitindo que em uma de suas “mil faces”, a obra fonsequiana, que ainda é contestada por parte da crítica, seja vista por outras perspectivas que, do mesmo modo, colabora para afirmação da literariedade da obra fonsequiana. DOMINGUES, P. C.; CALLIPO, D. M. | p. 401-415 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 413
Referência Bibliográficas ECO, Umberto. Pós-escrito a O NOME DA ROSA. (trad. de Letizia Zini Antunes e Álvaro Lorencini). 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. FIGUEIREDO, Vera Lucia Follain de. Os crimes do texto: Rubem Fonseca e a literatura contemporânea. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2003 FONSECA, Rubem. Bufo & Spallanzani. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985. FONSECA, Rubem. Dia dos Namorados, In: Contos Reunidos. São Paulo: Companhia das Letras FONSECA, Rubem, O Quinto Suspeito. In: O romance Morreu. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. A lógica do mundo marginal na obra de Rubem Fonseca. Campinas: Dissertação (Mestrado em Teoria e História Literária). IEL-UNICAMP, 1986. 414 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
PEREIRA, Maria Antonieta. No fio do texto. A obra de Rubem Fonseca. Faculdade de Letras da UFMG, Belo Horizonte, 2000. PIGLIA, Ricardo. Formas Breves; tradução: José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. TODOROV, Tzvetan. Tipologia do romance policial. IN:______. As estruturas narrativas. Trad. Leyla PerroneMoysés. São Paulo: Perspectiva, 1970, p. 93-105.
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DA PINTURA DE CEREZO BARREDO À POESIA DE DOM PEDRO CASALDÁLIGA Rosana Rodrigues da SILVA 1 Resumo: Nesta análise, estudamos a transposição da pintura para a poesia, na obra Murais da libertação (2005), do poeta dom Pedro Casaldáliga e do pintor Cerezo Barredo. A leitura interartística possibilitou investigar os signos culturais representados na pintura e na poesia, bem como compreender a relação entre esses dois fazeres artísticos, orientados pela chamada Teologia da Libertação. Ambos, poeta e pintor, são missionários claretianos que vivenciaram o trânsito da cultura europeia, do catolicismo conservador, à cultura popular, mestiça e indígena. A compreensão da signicidade dos objetos culturais que compõem a pintura e a poesia é possível graças à análise dos níveis, cores e formas que funcionam como signos dessa teologia, representados em imagens do povo, da terra, da natureza maternal, de Maria, protetora do povo, do Anti-reino, da luta, da errância e, principalmente, da figura de Cristo revolucionário. Palavras-chave: Poesia; Teologia Interculturalidade; Casaldáliga, Barredo.
da
libertação;
Comumente vemos a obra poética de um determinado autor ser traduzida em formas e cores pela expressão artística do ilustrador ou mesmo de algum pintor. De modo menos comum, encontramos o caminho inverso: o poeta
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CAPES/ UNEMAT- Sinop. E-mail: rosana.rodrigues@unemat-net.br
traduzindo em imagem e ritmo a obra do pintor. Neste artigo, analisamos essa passagem da pintura à poesia, na obra Murais da libertação (2005), composta em parceria, pelo poeta dom Pedro Casaldáliga e pelo pintor Cerezo Barredo. Interessa-nos a leitura interartística possível nessa relação, a fim de compreender os signos culturais representados na pintura e na poesia, sob a perspectiva da chamada Teologia da Libertação. Ambos, poeta e pintor, são missionários claretianos que vivenciaram o trânsito da cultura europeia à cultura popular, mestiça e indígena. Casaldáliga nasceu em 1928, em Balsareny, povoado próximo à Barcelona, Espanha, de família de sitiantes católicos direitistas; decidiu-se cedo pelo sacerdócio, pela poesia e pela vida missionária. O início desse percurso foi a viagem à África, sob a colonização espanhola, de onde, ao regressar, observou que “trazia para sempre, no coração, confusamente, como um feto, a África, o Terceiro Mundo, os Pobres da Terra e essa nova Igreja _ a Igreja dos Pobres _ assim denominada mais tarde, a partir do concílio” (1975, p. 26). Conforme relata em suas memórias, é nesse momento que o poeta se conscientiza que a missão se tornara seu grande objetivo.
A obra memorialística de Casaldáliga atesta sua personalidade revolucionária e contestadora. Seu desejo de reformas estendeu-se ao desejo de modificar as normas da igreja e dos institutos pelos quais passou. Durante esse período, atuou em programas de rádio e dirigiu a revista El íris de paz, revista do instituto claretiano, onde estreitou a amizade com o pintor Cerezo Barredo, encarregado da direção artística da revista. O pintor da libertação, como é chamado Barredo, nasceu em Astúrias, em Villaviciosa, em 1932; possui um currículo de catedrático em pintura sacra. Com a parceria na organização da revista Íris, ambos passaram a comungar da mesma poeticidade que envolve o 418 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
fazer artístico comprometido com uma causa. Na “portada”, contracapa da revista, lemos notas de Casaldáliga explicando o trabalho do artista Barredo. Nos comentários críticos do autor, vemos a forma como o poeta lê a pintura, referindose aos signos que, futuramente, iriam singularizar a estética do amigo. Essa sintonia entre as expressões artísticas irá se confirmar nas demais obras, em que presenciamos a parceira entre pintor e poeta, tais como Llena de Dios y tan nuestra, Sonetos neobíblicos, Orações da caminhada, entre outras.
Após a saída da direção de Íris, ambos ingressaram nas missões. Em 1968, Barredo iniciou a pintura na catedral de Basilan, Filipinas, momento em que passa a repensar sua dedicação pastoral. A partir das missões na Amazônia peruana, sua arte ganha contorno latino-americano, com o mural polêmico La opcion pelos pobres, na capela de Medellín. Nas décadas de 80 e 90, Barredo pinta, na Nicarágua, Panamá e Peru, outros murais que trazem os signos da teologia da libertação. Em solidariedade às vítimas e sacerdotes claretianos, entre eles o amigo Casaldáliga, perseguidos pelo regime ditatorial, Barredo visita o Brasil. Neste período, realiza a pintura na catedral de São Félix do Araguaia-MT, a primeira de outros murais pintados em cidades do município e que compõem o livro Murais da libertação (2005). O contexto das missões era um contexto de ditadura militar, em que Casaldáliga presencia o domínio de latifundiários, o trabalho escravo, pobreza e subnutrição. O novo espaço de onde Casaldáliga passa a pronunciar-se exige novo posicionamento crítico diante da instituição religiosa. Em uma posição distante do catolicismo conservador europeu, o bispo assume a voz dos oprimidos e subalternos, concretizando um processo intercultural em sua relação com o outro. Sua literatura, não somente registra sua atuação missionária, como também é parte de sua atividade sacerdotal. Em SILVA, R. R. | p. 417-429 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 419
poemas, autos e memórias, o poeta não apenas testemunha as arbitrariedades e injustiças que presenciou ao longo dos anos em que missionou em Mato Grosso, mas, sobretudo, faz a denúncia e convida o leitor a reflexão e a mudanças. Em sua obra constatamos a crítica ao catolicismo ortodoxo europeu e a simpatia por uma religião voltada às causas do povo da América.
O cristianismo, enquanto projeto religioso, cultural e político, não soube reconhecer o desafio presente na evangelização dos povos ameríndios e afro-americanos; foi, segundo Fornet-Betancourt (2007), regional e não universal, como era esperado em um projeto expansionista. Em defesa de uma religião libertadora, a nova configuração da fé cristã deverá, conforme defende o autor, dar-se mediante a interculturalidade. Somente por meio dessa, pode-se quebrar o paradigma eurocêntrico pelo qual se move a inculturação. Assim, essa nova religião deve renunciar a sacralização das origens de tradições religiosas, como a católica; a fim de descentralizar o que cada cultura chama de próprio. A teologia da libertação nasceu com a crise que se instalou no catolicismo conservador, na busca de colocar o povo como sujeito de sua história e sujeito da igreja, atuante nas transformações sociais. Conforme aponta Catão (1986), a teologia da libertação evoca, em seus princípios, a narrativa do Êxodo que mostra o sofrimento do povo escravizado no Egito e sua marcha pela liberdade, como também evoca a vida de Cristo como um revolucionário que teve a missão de alertar e libertar o povo.
A Segunda Conferência do episcopado, ocorrida em 1968, em Medellín, definiu o que viria a ser essa teologia, ao mostrar o compromisso com uma práxis libertadora em que os sujeitos transformadores deveriam ser a população pobre e desprezada dos países da América Latina. Anterior 420 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
a esse encontro, ocorreu a Primeira Conferência (1955) que não trouxe mudanças significativas para o cenário da igreja, a não ser a criação, em Roma, de uma Comissão para a América Latina, com o objetivo de solucionar problemas da Igreja Católica nos países americanos. Após a conferência, em Medellín, e a terceira em Puebla (1979), no México, ocorreram mudanças na práxis cristã, tal como a constituição das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) que mobilizaram a população, formando comunidades que partilhavam o trabalho e comungavam dos mesmos ideais do povo, ainda que sem vínculo institucional com a Igreja. Essas comunidades são retratadas na pintura e na poesia dos autores de Murais da Libertação, ao lado dos signos da nova teologia, tais como, a representação da pobreza e da natureza. Após as mudanças, anunciadas no Concílio do Vaticano II e fortalecidas na Segunda Conferência de Medellín, a Teologia da Libertação ganhou expressão na voz de dois teólogos. Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff se dedicaram a mostrar a necessidade de reestruturação da Igreja Católica no contexto da América Latina. Gutierrez salienta o fundamento marxista, para mostrar que o pobre é um oprimido vitimado pelo capitalismo. Segundo ele, “a miséria, a injustiça, a situação de alienação e a exploração do homem pelo homem que se vive na América Latina configuram uma situação que a conferência episcopal de Medellín não vacila em qualificar e acusar de “violência institucionalizada” (GUTIÉRREZ, 1981 , pp.44-45).
O teólogo brasileiro, Leonardo Boff acrescenta à questão da violência contra o pobre, a violência contra a natureza, a que o autor considera a essência primeira da humanidade. Conforme expõe Boff, há uma ecologia exterior e outra interior que estão condicionadas, ligando homem à natureza. Se há violência e agressões contra a natureza é porque há no ser humano arquétipos de exclusão e violência. A necessidade cada vez SILVA, R. R. | p. 417-429 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 421
mais urgente de uma nova re-ligação traduz o sentimento do desejo de retorno à natureza, uma nova espiritualidade que sela o acordo do ser humano para com todos os seres (Boff, 2000, p. 24). Essa nova mística vemos representada na pintura e nos poemas da obra, enquanto formas de relacionar o homem à natureza e resgatar novo significado à palavra religião, conforme expõe Boff.
Na obra Murais da libertação, encontramos 11 pinturas de murais (pintados em igrejas do município de São Félix do Araguaia-MT) que dialogam com 11 poemas de Casaldáliga. Neles, o signo-imagem e o signo-palavra confluem para os signos da teologia da libertação. Os elementos, níveis, cores e formas, que funcionam como partes constitutivas da signicidade da obra, confirmam a expressão do engajamento religioso e marcam o seguimento de sua causa, recuperados nas imagens: do povo, da terra, da natureza maternal, de Maria protetora, do capitalismo como Anti-reino, da luta, da errância no Êxodo e, principalmente, imagens que recuperam a figura de Cristo revolucionário, com aparência do povo atuante nas comunidades de base. O mural (O Reino e o Anti-reino), pintado na igreja Morro de Areia, em Santa Terezinha (1989), inaugura as imagens e os poemas da obra:
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A pintura contorna o teto da igreja, respeitando o triângulo formado no centro, dividindo os dois conjuntos de imagens: de um lado imagens do Anti-reino e do outro, imagens do Reino. Do lado direito, a máquina do lucro (trator), a fome do poder e os ídolos da morte. O homem ajoelhado diante do dinheiro marca a idolatria do capital. Nas imagens do reino: o povo, homem mestiço, com braços levantados, pés descalços, significando a luta e a força necessárias às reivindicações. A representação do movimento, marcada nos gestos das pessoas, colabora para a compreensão do povo como sujeito das transformações, confirmando, com isso, a presença atuante das comunidades de base. No centro do mural está a porta da entrada da igreja, por onde entra a luminosidade que contrasta com as cores mais escurecidas do Anti-reino. O grande braço sombrio que sai do anti-espaço está com as mãos abertas e se direciona aos homens para capturá-los e subordiná-los ao Reino do capital. Ao lado esquerdo da porta, está a figura de Cristo, homem moreno de roupa branca, assim como a cor das camisetas do povo, com um braço erguido, em direção ao Anti-reino. Com esse gesto, demonstra posição de liderança, à frente dos homens armados que o seguem. Essa posição de Cristo e o povo o seguindo recupera a imagem bíblica do Êxodo, compondo os signos do homem rumo à libertação. No poema de Casaldáliga, as imagens do Anti-reino são recuperadas nos signos: trevas da mentira; máquina do lucro, fome do poder e ídolos da morte. Encontramos na mesma posição sintática os léxicos que colaboram para a imagem do Anti-reino: mentira, lucro, poder e morte, o que faz confirmar o significado do capitalismo enquanto o mal que corrompe os homens. Defendendo o povo, na luta contra esse mal, o eu poético clama pelo “Pai da vida” para que o ajude a abrir as “portas do santuário”, portas que significam a saída em direção à luminosidade, à libertação do espaço escurecido do Anti-reino. SILVA, R. R. | p. 417-429 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 423
Na nona pintura, do mural intitulado Na ceia ecológia do reino, (pintado na Igreja de Querência, em 2001), novamente temos o formato triangular do contorno da pintura, significando a forma da santíssima trindade:
A figura de Cristo ao centro une a comunidade, a qual ele também integra, representado como homem mestiço, com traços parecidos com os homens que o cercam. Singularizado pela roupa branca, pelo círculo da aura divina e pelas duas linhas que se cruzam em sinal de cruz em seu tórax, a imagem de Cristo no banquete ecológico alude à representação bíblica da Santa ceia, confirmada pelos signos da comunhão: o cálice de vinho, o pão e bacia de água. Em harmonia com sua roupa branca, está a toalha branca, representando a extensão do corpo à palavra. Sentido esse que Casaldáliga expressa nos versos: “seja nossa utopia, como a toalha, aberta e luminosa/ aberta e luminosa, como a tua Palavra”. O povo, sentado ao redor da toalha, recebe a Palavra, em círculo maior e envolvido em círculos menores. Outros três personagens também vestem branco em harmonia com a toalha (Palavra) e Cristo re-ligando pela cor branca a linha da trindade. Nesse sentido, encontramos o real objetivo da ceia ecológica: re-ligar os
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homens, direcioná-los ao sentido primeiro da religião (Boff, 2000, p. 24).
A presença das árvores ao redor da ceia harmonizam o mural, envolvendo cada personagem no verde da natureza, verde que se diversifica em tonalidades, verde que além da cor da esperança e da ecologia significa a diversidade que une. Nesta pintura, temos os signos da teologia de Boff que referemse ao condicionamento da ecologia exterior (natureza) e da interior (homem) que necessitam ser compreendidas para a transformação do mundo. Cristo centralizado divide o sol e a lua, os signos da noite e do dia, da passagem temporal. A representação do povo mestiço (homens e mulheres, índios carajás, com cores de roupas variadas), assim como o alimento da ceia (a banana, o queijo, a cuia, o chimarron), significam a diversidade de culturas da região. Essa diversidade é constatada nos versos do poema de Casaldáliga (“Nesta ceia se abraçam diversas culturas em comunhão pascal”), como também é reconhecida na própria fisionomia do Cristo (“os diferentes rostos, no rosto de teu filho”). O poeta confirma como na pintura a imagem do povo, estendida na figura do Cristo mestiço. Os pés, sempre descalços, assim como é retratado em outras pinturas, e os braços levantados confluem para sua posição de renúncia ao capital, mas também de liderança pela libertação. Seus gestos revelam a preocupação do pensamento libertador com o alerta do povo sobre sua condição. Nessa teologia, a caridade não deve estar apenas na ajuda ao próximo, mas, sobretudo, na conscientização do povo vitimado. No décimo primeiro mural, pintado na catedral de São Félix do Araguaia-MT, em 1977, temos representados os signos pascoal. A pintura, intitulada A páscoa de Cristo e a páscoa do povo, traz a figura do Cristo, também mestiço, mas agora transcendente. SILVA, R. R. | p. 417-429 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 425
Mais iluminado que os demais, Cristo novamente está com braço erguido, em sentido de luta e de libertação. Seus pés descalços, desta vez, não tocam a terra; estão em movimento que indica a ascensão pascoal, assim como a grande cruz carregada pelo povo. O rosto deste Cristo, conforme Casaldáliga afirma em entrevista, é o rosto de um homem do povo que se sentava na primeira fila da missa e que sofria de malária. Por sua expressão sofrida, o rosto desse homem foi escolhido como signo do sofrimento humano. No seu corpo estão os sinais da crucificação, explicadas no poema como as “chagas luminosas”, como a “memória subversiva para sempre”, as “arras fidedignas do seu maior amor”. O povo (mulato, caboclo, índio, branco, mulher, criança), novamente com roupas coloridas que ressaltam a diversidade, e com os pés descalços, em harmonia com os pés descalços de Cristo, carrega a grande cruz, explicada nos versos: “a mesma grande cruz ele e nós carregamos. Os pobres a carregam mais de perto”. Não somente o sofrimento de Cristo é igualado ao do povo oprimido, mas também o desejo de libertação. Os homens do povo também, assim como Cristo, estão com os braços elevados em sinal de luta. O espaço dessa luta é o
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espaço das reivindicações, o espaço que une a igreja a terra, retratada na pintura. No poema, Casaldáliga descreve a igreja em que se encontra o mural pintado por Barredo, em São Félix do Araguaia: “igreja nova tão pequena quanto um grão de mostrada/ pequena catedral/ catedral apenas de insônias e esperanças/ mas a humilde assembleia já foi selada com o sangue vivo”. O sangue de Cristo se confunde com o sangue dos mártires, que deram seu “testemunho” e “missão ecumênica”. As mãos de Cristo e do povo, em tamanho desproporcional ao corpo, dão significado à força, à vontade de justiça. Os versos que remetem às imagens do Anti-reino referemse aos signos do latifúndio, da exploração: “as queimadas da morte”, “os arames fechados no egoísmo”. Em oposição a esses signos, está a ressurreição, referida na luta que faz transcender. Desse modo, a páscoa do povo não possui o sentido de renúncia e espera do homem oprimido, mas deve ser a conscientização que leva à luta. O verso final do poema confirma a esperança na páscoa: “Sobre a Igreja pequena do Araguaia/ desce, grande, o Espírito”. A salvação vem com a libertação desse povo marginalizado, mas abençoado na pequena igreja do Araguaia. As obras de Barredo e Casaldáliga são estudadas como artes que re-significam as aspirações religiosas da igreja da América Latina. São obras que testemunham formas da cultura humana e religiosa modificadas pela perspectiva de um contexto pós-colonial. A desigualdade social no contexto das Américas vem representada nas pinturas e na poesia, harmonizando o diálogo entre as duas artes e pondo em evidência a nova mística na relação do homem com a natureza, do homem com a religião. Com isso, os autores, não somente concretizam novo significado à palavra religião, como também re-ligam poesia e pintura na composição de uma arte única. SILVA, R. R. | p. 417-429 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 427
Referências bibliográficas BOFF, L. Ecologia; grito da terra; grito dos pobres. São Paulo: Ed. Ática, 2000. CASALDÁLIGA, P. Águas do tempo. Cuiabá: Fundação Cultural de MT. Ed. Amazônida, 1989. _______. Murais da Libertação. São Paulo: Loyola, 2005
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CANCLINI, Nestor. Diferentes, desiguales y desconectados. Mapas de la interculturalidad. Editorial Gedisa, 2004. CATÃO, Francisco. O que é teologia da libertação. São Paulo: Nova Cultural; Brasiliense, 1986.
FORNET-BETANCOURT, Raúl. Religião e interculturalidade. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2007.
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A OBRA DE ARTE ENTRE O REAL E O IRREAL Thiago Henrique de Camargo ABRAHÃO1
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Resumo: Na obra de Jean-Paul Sartre encontram-se aspectos filosóficos e literários em comunicação não hierárquica, evidenciando-se uma via de mão dupla entre o criar conceitos, próprio do discurso filosófico, e o colocá-los em situação, próprio do discurso literário. Antes de exercer um papel subalterno de simples exemplificação de um pensamento filosófico, a literatura permite a manifestação crítica e contextual das problemáticas humanas. Além disso, aliando-se a expressão teórico-conceitual da filosofia ao aprofundamento literário da interrogação, alcança-se uma visão mais completa da dramaticidade existencial do ser humano, pois o papel crítico e revelador do discurso literário, por meio de uma linguagem não objetiva, com suas ambiguidades e contradições, é capaz de apresentar o homem ao próprio homem. Nesse sentido, à luz do pensamento sartriano, a obra de arte, sendo objeto do imaginário, parte do real e o nega para se constituir como irreal, mas o faz mantendo necessariamente o real como pano de fundo, a fim de se voltar constantemente para ele, negando-o permanentemente para se manter como irreal. Saliente-se que esse afastamento do real, proporcionado pela passagem da consciência perceptiva (campo da ética) à consciência imaginante (campo da estética), não implica um processo de alienação, mas, antes, provoca um retorno mais compreensivo e crítico ao real. Sendo criação artística, isto é, ato da consciência imaginante a partir do qual ocorre um movimento de negação da consciência perceptiva, a prosa literária sartriana demanda o exercício da liberdade do escritor e o apelo à liberdade do leitor. Disso se segue que a imaginação, enquanto atividade de uma consciência intencional, revela o ser mesmo do homem, pois
UNESP - São José do Rio Preto. E-mail: henrique_filosofia@hotmail.com
apenas uma consciência livre é capaz de se evadir do real, de negá-lo e de mantê-lo negado para conceber uma irrealidade que discuta e complemente a própria realidade no retornar do imaginário. Palavras-chave: Jean-Paul Sartre; filosofia; literatura; prosa; imaginação; liberdade.
Na produção intelectual de Jean-Paul Sartre (Paris, 1905– 1980), a relação entre os discursos literário e filosófico — encontrada desde os diálogos platônicos e marcadamente no escritor francês — estabelece uma via de mão dupla por não se tratar de mera hierarquização a colocar um deles em posição de superioridade; trata-se, ao contrário, de uma relação que se solidifica a partir da correspondência entre ambos, que são, cada um à sua maneira, produção e exposição de pensamentos, representações específicas da realidade humana: a literatura retrata, situa, mas não conceitua; a filosofia conceitua, mas não consegue retratar. Ou ainda: a literatura é capaz de substituir a argumentação demonstrativa pelo aprofundamento da interrogação. Antes de exercer um papel subalterno de simples exemplificação de um pensamento filosófico, a literatura permite a manifestação crítica das problemáticas humanas. Nesse sentido, os aspectos teóricos acerca da literatura defendidos por Sartre, encontrados, sobretudo, em seu ensaio Que é a literatura? (1948), embasam a ideia de que a escrita literária (especificamente o exercício da prosa, que se serve das palavras antes de servi-las, como faz a poesia), por se tratar de um exercício de representação da realidade humana, assenta-se no desvendamento, na revelação ativa do mundo: “Falar é agir: toda coisa que se nomeia não é mais a mesma, ela perdeu sua inocência. Se você nomeia a conduta de um indivíduo, você a revela a ele: ele se vê”2 (SARTRE, 1948, p. 27).
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“Parler c’est agir : toute chose qu’on nomme n’est déjà plus tout à fait la même,
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Tal revelação não deve ser entendida por um viés metafísico-religioso, mas, antes, por uma perspectiva pragmática a tencionar mudanças sociais. Apesar de reconhecer seus limites em meio às responsabilidades sociais e históricas com as quais se permite dialogar, a manifestação artística literária é um elemento importante de crítica e esclarecimento — diznos Terry Eagleton, a esse respeito, que “[a] teoria materialista da História nega que a arte possa, por si só, mudar o curso da História; mas ela insiste que a arte pode ser um elemento ativo em tal mudança” (EAGLETON, 2011, p. 25) —, e, para Sartre, escrever é engajar-se, participar do mundo, no mundo, para o mundo, e ser leitor é ser cúmplice do autor, pois ambos, enquanto seres em determinada situação sócio-histórica, não podem inocentar-se a respeito do que acontece na realidade: “a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e ninguém possa considerar-se, nele, inocente”3 (SARTRE, 1948, p. 30). O ato de escrever leva em consideração, portanto, o engajamento, a ação sobre os leitores, de modo que o texto literário é entendido como estopim de indignação no e do leitor, inserindo este em sua condição propriamente humana, livre e contingente. Escrever é, para Sartre, possibilidade de revelar o mundo, nele interferir, excluindo as coisas de uma aura de inocência aparente; isso, consequentemente, exige participação ativa do escritor e do leitor, produtor e receptor de um texto capaz de incitar a indignação — e a imaginação. O romance (e a obra de arte em geral) visa, desse modo, a uma retomada completa do mundo, da totalidade do ser condenado a ser livre, “pois é este o objetivo final da arte: recuperar este mundo dando-o a ver tal como é, mas como se ele tivesse origem na liberdade
elle a perdu son innocence. Si vous nommez la conduite d’un individu vous la lui rélévez: il se voit.” As traduções aqui utilizadas são de nossa responsabilidade. 3 “La fonction de l’écrivain est de faire en sorte que nul ne puisse ignorer le monde et que nul ne s’en puisse dire innocent.” ABRAHÃO, T. H. C. | p. 431-438 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 433
humana”4 (SARTRE, 1948, p. 64). Vale dizer que essa recuperação do mundo se torna realidade objetiva para o leitor tão somente, por óbvio, a partir do compromisso da leitura, e o contexto em que se insere o leitor aparece como fundamental nesse processo, pois as percepções, os gostos, as lembranças, as idiossincrasias e o gênero de cada um passam a fazer parte do ato de leitura, de modo que “a exigência do escritor se dirige, a princípio, a todos os homens”5 (SARTRE, 1948, p. 75; grifo do autor). Problematizador, o texto literário é, para Sartre, resultado de uma criação (artística) que, assim como a leitura, não se coloca como um ato alheio à percepção do mundo e à produção de sentidos. Desde que o leitor, assim como o autor, seres históricos que são, não se alienem a respeito da contemporaneidade em que vivem, segue-se que ter consciência de sua própria situação é uma tarefa essencial para que o desvendamento do mundo, proposto pela escrita sartriana (e embasado em uma filosofia da imaginação, como veremos), ocorra, visto que as palavras, os objetos, as instituições, as ideias, o mundo, “adquirem estatutos distintos segundo as diferentes maneiras da intencionalidade humana, conforme as diferentes formas de a consciência se postar frente aos objetos” (DUARTE JR., 2008, p. 11). Intencionalidade definida pela ideia fenomenológica emprestada de Edmund Husserl de que toda consciência é consciência de alguma coisa, pois a consciência se liga sempre a algo, não necessariamente real, sendo antes um movimento intencional, transcendente, em direção ao mundo, ao invés de ser, como se pensava, uma espécie de substância imanente. Ora, a obra de arte, com isso, ainda que se proponha como um fim, não é, no entanto, como queria Kant, uma “finalidade 4 “Car c’est bien le but final de l’art : récupérer ce monde-ci en le donnant à voir tel qu’il est, mais comme s’il avait sa source dans la liberté humaine.” 5 “L’exigence de l’écrivain s’adresse en principe à tous les hommes.”
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sem fim”: pensar nas obras de arte de tal maneira seria, para Sartre, esquecer que o papel do leitor, ao imaginar, é constitutivo da obra, pois sua imaginação cria para além do que o escritor estabeleceu. Além disso, ao imaginar, o homem nega o real para conceber o irreal, pois a consciência imagina apenas se tiver a possibilidade de admitir uma tese de irrealidade que demanda um afastamento em relação ao mundo. Compreendendo as ideias de negação da realidade e de consciência, o engajamento preconizado por Sartre vai além do que estipula o senso comum: para além de um mero posicionamento político (que, diga-se, acabaria até por prejudicar a própria obra de arte), engajar-se diz respeito, sobretudo, ao desvelamento do mundo pelo homem, lançado, queira ou não, em uma situação que demanda comprometimento. O engajamento, portanto, está em cada ação, em cada pensamento, em cada palavra expressada e, também, em cada silêncio. A obra de arte, então, ao engajar autor e leitor a partir da criação de uma irrealidade que nega o real, levanta, evidentemente, a questão da alienação: ora, afastar-se do mundo, aproximando-se em uma irrealidade, não seria um processo alienador a colocar em situação de passividade o leitor de uma obra literária? Se não, vejamos. O fato de a arte dizer respeito à consciência imaginante, enquanto que a esfera da moral relacionar-se à esfera da consciência perceptiva — consciências ontologicamente distintas — não implica, todavia, admitir uma não relação entre ambas. Apesar de um tipo de consciência ser irredutível a outra, é possível que uma motive a manifestação da outra. Se o imaginário nega o real percebido para estabelecer-se, essa negação implica a conservação do que é negado: parte-se do real, que é mantido como pano de fundo; caso seja excluído esse pano de fundo, a irrealidade desaparece. Desse modo, a manifestação artística (imaginação) se relaciona com a ética (percepção), uma a depender da outra para completar-se. ABRAHÃO, T. H. C. | p. 431-438 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 435
A relação que se estabelece entre percepção e imaginação configura, pois, uma interdependência, já que uma reclama à outra o necessário que, sozinhas, não são capazes de garantir: a percepção necessita da imaginação, que, por sua vez, necessita partir da percepção e mantê-la o tempo todo como pano de fundo para existir. É importante notar que, nesse vaivém, o afasta-se do real, promovido pelo imaginário, é um afastamento que se volta para o real: nesse retorno ao real, permite uma melhor compreensão da realidade. A literatura, por exemplo, “nunca está afastada do real. Trabalhar o imaginário pela linguagem não é ser capturado pelo imaginário, mas capturar, através do imaginário, verdades do real que não se dão a ver fora de uma ordem simbólica” (PERRONE-MOISÉS, 2006, p. 109). Portanto, enquanto a consciência perceptiva (esfera da moral) é pura positividade, a consciência imaginante (esfera da arte), ao negar o que é percebido para criar o irreal, é pura negatividade. Por ser a consciência intencionalidade, um ato de movimentar-se para — a consciência é consciência de alguma coisa, a imaginação é imaginação de alguma coisa —, a consciência imaginante é um movimento de recriação de algo ausente. A negação do real para a constituição da irrealidade não é, todavia, alienação, pois a imaginação é capaz de suplantar a percepção na medida em que alcança o sentido mesmo das obras de arte (suas expressões, formas, cores, sons), sentido que não se restringe a meras cores, sons ou palavras. O sentido que a imaginação suscita parte dos sons, das cores, das formas, das palavras, mas as ultrapassa em direção ao sentido total da obra, em um movimento de transcendência que exige, necessariamente, a imanência, o ser-no-mundo, para constituir-se — logo, um processo alienador não se configura. A condição essencial para que a consciência imagine é, precisamente, que ela seja situada; a imagem, portanto, não é fruto de uma negação indiferente, a nos levar a abstrair o 436 • Volume de Anais do II Congresso Internacional do PPG Letras
mundo negado, pois ela, a imagem, é negação do mundo a partir de um ponto de vista particular: “o artista pode assumir o compromisso de ignorar a história, mas não pode ausentar-se dela. É por essa razão que o estudo da literatura e dos escritores é uma maneira de formular a questão das relações entre a subjetividade e a história” (SILVA, 2004, p. 241). Disso se segue que a imaginação, enquanto atividade de uma consciência intencional, revela o ser do homem, pois somente uma consciência verdadeiramente livre é capaz de se evadir do real, negá-lo e mantê-lo negado para conceber uma irrealidade que problematize e critique a própria realidade no movimento de retorno do imaginário a este real — agora despido de qualquer tipo de ingenuidade —: “enquanto consciência intencional que visa um irreal, a imaginação revela o ser mesmo do homem. Com efeito, apenas uma consciência imaginante é necessariamente livre, e reciprocamente”6 (CABESTAN, 2001, p. 31). A literatura (a prosa, mais precisamente) é, como vimos, imaginário, mas é também comunicação, significação que salienta, evidencia, para além de si mesma, a representação da realidade humana aos outros homens a fim de permitir-lhes reconhecer e/ou mudar sua condição; seja como for, impossibilitando-os de ignorá-la: a arte “forneceria um espelho crítico a quem a observa e diante do qual já não se pode recuar; diante do qual é necessário uma transformação ou aceitação do que ele mostra — o que, em ambos os casos, implica a perda da ingenuidade, da desculpa do desconhecimento” (SOUZA, 2008, p. 23). Para Sartre, em suma, no fato de ser obra imaginária e no que é capaz de se referir, a prosa manifesta os paradoxos que
“l’imagination n’est pas la faculté parmi d’autres d’une substance pensante; en tant que conscience intentionnelle qui vise un irréel, l’imagination révèle l’être même de l’homme. Seule, en effet, une conscience libre est capable de s’évader de la réalité, de la nier et de viser un irréel. Une conscience imageante est nécessairement libre, et réciproquement.” 6
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todos somos, ontológica, social e historicamente, o que abre a possibilidade de problematizarmos e complementarmos a realidade humana que, sem o recurso da imaginação, teria sua extensão pautada apenas na superficialidade — provavelmente ilusória — da percepção. Referências bibliográficas
CABESTAN, P. Le vocabulaire de Sartre. Paris: Ellipses, 2001.
DUARTE JR., J. O que é realidade. São Paulo: Brasiliense, 2008. EAGLETON, T. Marxismo e crítica literária. Trad. Matheus Corrêa. São Paulo: Editora UNESP, 2011. PERRONE-MOISÉS, L. Flores da escrivaninha. São Paulo: Cia. das Letras, 2006.
SARTRE, J.-P. Qu’est-ce que la littérature ? Paris: Gallimard, 1948. SILVA, F. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios. São Paulo: Editora UNESP, 2004. SOUZA, T. Sartre e a literatura engajada. São Paulo: Edusp, 2008.
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LITERATURA E CINEMA: UMA ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DO ROMANCE JARDÍN DE DULCE MARÍA LOYNAZ Yoanky Cordero GÓMEZ1
Resumo: O presente trabalho propõe um estudo da relação entre literatura e cinema por meio da adaptação do romance Jardín (1951), de Dulce María Loynaz (Cuba, 1902-1997) para o curtametragem La luna en el Jardín (2011). A partir da leitura do texto literário, percebemos a existência, na adaptação, de pontos semelhantes em relação a suas respectivas linhas narrativas mediante o uso do suspense, os pontos de tensão, as curvas dramáticas, etc, o que possibilita verificar o dialogismo presente entre os dois planos do discurso (o literário e o cinematográfico): a personagem de Bárbara consegue identificar-se tão profundamente com o seu entorno, que fala por si mesma como se fosse um lugar, como se ela mesma fosse o próprio Jardín. Ela é um ser ensimesmado que se olha- no lugar do espelho-, no jardim. Por extensão, o afastamento que implica a solidão de uma mulher e seu jardim faz de Bárbara um ser contemplativo. A casa e o jardim refletem sobre a sua evolução interna como as personagens em suas diferentes fases da vida, e esses encantos do romance foram desenvolvidos com elevado acerto no argumento cinematográfico e apoiado pela letra da musica Adagio, de Alejandro García Caturla. Palavras-Chave: Dulce María Loynaz, Jardín, texto literário, adaptação.
Introdução
1
A recente produção de um material cinematográfico
UNESP/IBILCE. E-mail: pitonizov@gmail.com
cubano cimentado no romance Jardín (1928-1935), de Dulce María Loynaz, incita revisitar esse texto do qual com autentico desdobramento da linguagem, brota uma visualidade que remete, com certeza, uma translação a outras manifestações das artes visuais em geral. Ao se referir a sua obra, a poeta manifesta o
[eu] pessoalmente creio na inspiração e tenho motivos para crer nela. Porém creio também que há que ajudála. Não se pode deixar todo o trabalho a ela. O pintor, o escultor, o escritor devem, necessitam perseverar em seu fazer. Estudar serenamente a criação proposta, manter ou deixar em seu caso, o necessário ou o supérfluo, não apaixonar-se com a própria obra, observá-la de longe como faria um estranho... E em definitiva, não desalentarse quando o produto de seu próprio exame não resulta todo o positivo que esperava. E nessa auto-exigência, esse cuidado na conduta do artista é o que no meu juízo faz ao verdadeiro pintor, escultor ou escritor (LOYNAZ apud LEMUS, 2000, p.113).2
Escrutinar com olho crítico a obra de Dulce María Loynaz torna-se conhecer universos que revelam sua extraordinária sensibilidade e profunda capacidade de se conectar com outras manifestações artísticas. Tal interesse convoca reconhecer a intertextualidade de sua poesia-prosa e dos lúcidos aspetos da interdisciplinaridade presente. Entre O Cinema E A Literatura
A literatura é essencialmente um fenômeno artísticointelectual com uma especificidade própria no estético e cujo
2 LEMUS, Virgilio l. Palabras de Dulce María Loynaz en exposición de Hilda Vidal. In: Dulce María Loynaz. Estudios de la obra de una cubana universal. Tenerife: Centro de la Cultura Popular Canaria, 2000, p. 113.
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objeto é difícil de definir. Alguns autores fundamentam a sua noção de “literatura” recorrendo a sua etimologia: Litteratura < littera = letra o signo gráfico. Os signos gráficos ou o alfabeto fonético traduzem uma linguagem verbal e conformam um tecido ao texto feito de palavras escritas, ou seja, a literatura equivaleria a escritura.
A literatura não é só um texto lingüístico, pois obedece a um conjunto de regras especificas impostas por uma finalidade artística que se estruturam e conformam um sistema. Desse modo, o texto materializa-se e dá corpo à literatura, embora seja só uns de seus elementos constitutivos, já que possui suas próprias regras de funcionamento, e implica-se com a sociedade e com a cultura, por meio de uma determinada relação funcional. As intersecções entre o cinema e a literatura são múltiplas e ocorrem em ambos os sentidos. A adaptação cinematográfica não é a única forma de interação entre esses veículos de expressão da arte, há outra: a aplicação de categorias da narratológica para o estudo da especificidade fílmica. O campo de estudo que tem motivado maior quantidade de trabalhos é o relativo às análises da subjetividade no cinema clássico, análise detalhado dos processos de enunciação audiovisual no cinema narrativo, adaptações de teorias sobre o tempo, a voz, a distância narrativa etc.
Na hispanoamerica, os primeiros críticos de cinema, embora não em um sentido especializado, foram escritores conotados. Podemos citar como exemplo, o poeta Horacio Quiroga3, “[…] quem durante longo tempo dedicou-se a critica cinematográfica, tendo sob sua responsabilidade a seção correspondente da revista Atlántida, El Hogar e La Nación”
3 Foi escritor de contos, dramaturgo e poeta uruguaio, considerado como o mestre do conto latino-americano. Seus relatos breves que continuamente retratam a natureza sob rasgos temíveis e horrorosos, e como inimigos do ser humano, valeriam- lhe a comparação com Poe e Baudelaire.
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(BARSKY, 2006)4.A aproximação filosófica ao cinema, próxima dos intereses da escritura literaria, nutriu uma longa tradição acadêmica como podemos ver na revista Film and Philosophy5 e a realização de numerosos congressos dedicados ao cruzar das disciplinas. A importância que tem a literatura para o cinema é dada na medida em que todas as formas artísticas estabelecem um dialogo com a evolução da linguagem cinematográfica. No caso da literatura narrativa, isto é, o teatro, o romance e o conto, esse valor manifesta-se e compartilha como o cinema algumas estratégias cujo desenvolvimento normalmente tem manifestações semelhantes. [...] no caso da adaptação de obras literárias para o cinema devera ter-se em conta a conveniência e a bondade a luz do objetivo de cada projeto, pois, cada um deles estabelece seus critérios de avaliação já que cada intento de adaptação surge de um contexto particular e merece ser apreciado em termos de esse contexto e a partir das suas premissas artísticas e condições de produção, específicas. Convém além distribuir a informação que se oferece ao leitor ou espectador e que permite estabelecer pontes entre ele e a entidade narrativa (no cinema ou na literatura). [ZAVALA,2013, p.68]6
Precisa-se, além disso, dosar a informação que é oferecida ao leitor ou ao espectador e que permite estabelecer pontes entre ele e a entidade narrativa, seja no cinema ou na literatura.
4 BARSKY, Julián. Horacio Quiroga y el cine. In: revista Todo es Historia. Buenos Aires, 2006. 5 Criada em novembro de 1996, é uma revista acadêmica internacional dedicada a revisão dos estudos sobre o cinema, a estética filosófica e o cinema mundial. Destacam-se em particular, os artigos que estabelecem um compromisso ativo entre os estudos de cinema e filosofia mantendo assim uma re- avaliação cuidadosa dos aspectos claves de cada disciplina. Disponível em: http://www. film-philosophy.com/index.php/f-p. Accesado em 13. sept.2012, 22:00 hrs. 6 ZAVALA, Lauro. Cine y literatura. De la teoría literaria a la traducción intersemiótica. Facultad de Filosofía y Letras. México: UNAM, 2013, p. 68.
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Pode se afirmar que as melhores adaptações da literatura ao cinema oscilam- qualquer que seja o texto original- entre o descobrimento das suas convenções cinematográficas (Jules et Jim, de François Truffaut, 1961) e a reflexão sobre as fronteiras e possibilidades do mesmo meio (The French Lieutenant’s Woman, de Karel Reisz) [ZAVALA, 2005, p.10].7
O Inverossímil De Um Velho Jardim Faz Florescer O Celulóide Ao dizer de sua autora, Jardín “[…] é a história incoerente e monótona de uma mulher e um jardim”. (CITAÇÃO) Nele, Dulce María narra a história de Bárbara, uma donzela de elevada sensibilidade, encerrada entre as quatro paredes da sua casa.
Jardín transforma-se em símbolo de uma mulher que ânsia alcançar a sua liberdade, lutar contras as ataduras, convenções sociais e grilhões que impede lhe a felicidade. Nesse jardim, conta o prólogo, ela há enterrado a lua quebrada, indicio claramente genérico que ao final do relato, aumentará seu valor conotativo (ARAUJO, 1995, p.141).8
O livro Jardin é uma biografia romanceada que se fosse igualmente invertida (o que seria ser igualmente invertida?) poderia ser considerada uma romance com características biográficas. As singularidades desse idílico paraíso selvagem coincidem com o jardim de uma casa que atualmente está quase destruída. É difícil não pensar em Dulce María como um espírito
ZAVALA, Lauro. Del cine a literatura y de la literatura al cine. Tiempo Laberinto. México: UAM Xochimilco, 2005, p. 10. 8 ARAÚJO, Nara. El alfiler y la mariposa, la sombra y la luz: convención y transgresión en la poética de Dulce María Loynaz. Iztapalapa, 37. Julio-Diciembre 1995, p.141-156. 7
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de outra época. Ser uma poeta por excelência não lhe resta mestria e confiança para mover-se em outros gêneros. Nesse caso, por exemplo, a autora utiliza com total naturalidade os recursos próprios da narrativa, como, o suspense, a elaboração e o posicionamento dos diálogos, os pontos de tensão, as curvas gramáticas. Tudo flui sem enxertos, nem artifícios. José Lezama Lima manifestou sua admiração pelo romance Jardín em palavras dirigidas a autora, como podemos ver no excerto abaixo.
As obras que estão feitas para resistir o tempo são diversas e vão somando como misteriosas areias. Ao levar a vida a seu Jardim, você converteu-o em um arquétipo, uma dessas essências platônicas que não só vencem ao tempo senão que este se torna o seu esquecimento e vai- lhe presenteando novos mistérios e funções. O que si sento é não havê-la conhecido antes, pois, sua vida aparece em sua obra com toda a sedução que apontam a graça e uma maneira delicada de se aproximar aos que estão em nosso redor como se fosse um mistério que não se entrega e que ao mesmo tempo permanece selado. Você tem criado o que poderíamos chamar o tempo do jardim, ali onde toda a vida comparece como um vidro que envolve as coisas, e as pressiona e sacraliza (GONZÁLEZ, 2008, p. 14). 9
Salvador Bueno10, quem teve a oportunidade de escutar, já em 1949, a recitação publica de alguns capítulos do romance, publicou no México sua opinião acerca da obra. 9 GONZÁLEZ, Sara M. Dulce María Loynaz: fe religiosa y obra poética. 2008, 77 f. Mestrado em Artes. Florida International University, Alabama. 10 Notável jornalista e crítico literário cubano. Considera- se- lhe uma figura imprescindível como historiador da literatura cubana e universal. Dentro do mais valioso da sua obra aparecem estudos sobre poesia escrita por mulheres. Foi diretor da Academia Cubana da Língua (1995-2004), responsabilidade em que substituiu a Dulce María Loynaz.
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Jardín mostra como o vanguardismo ingressa na narrativa cubana. Emprega com freqüência a terceira pessoa gramatical como era o tradicional mais também utiliza a primeira e a segunda. A voz do narrador vincula-se com o ponto de vista de Bárbara. A multiplicidade de vozes grifa o caráter inovador que possui este romance (CRISTOBAL, 2012, p. 125). 11
A intertextualidade favorece a contaminação dos dois planos do discurso e origina uma surpreendente pluridimensionalidade dos signos. Efetivamente, encontramonos com fenômenos tão atuais como a “intertextualidade”, a “instabilidade e não fixação dos significados” e a “confusão inter-genérica na prosa de uma autora frequentemente situada no molde do intimismo pós-modernista de princípios do século XX. O estilo indireto livre reproduz a cadeia de pensamento de Bárbara, então a breve ação do conto clássico vê- se enriquecida com detalhes descritivos e uma serie de imagens sensoriais, ditadas pela livre fantasia da jovem (PUPPO, 2012, p.146).12
Assim mesmo a autora confessa que a arte cinematográfica, como em outros escritores da época, influência em seu fazer romanesco. (CRISTOBAL, 2012, p.126)13 Com frequência, no romance, as imagens plásticas “agarram” o leitor, cheias de um conteúdo quase “vago”. Mais, sob este aparente hálito de irrealidade, encontramos uma ficção transpassada pela presença da mutabilidade do mundo, pela percepção do
CRISTÓBAL P, Armando. Dulce María en su jardín. In: Encuentros, sobre la obra de Dulce María Loynaz. Pinar del Río: Ediciones Loynaz. Cuba, 2012, p.125. 12 PUPPO, María L. Releer a Loynaz o los equívocos de la crítica. Análisis de dos discursos menores en Jardín, la novela-isla. In: Encuentros, sobre la obra de Dulce María Loynaz. Pinar del Río: Ediciones Loynaz. Cuba, 2012, p.146. 13 Ibid., p. 126. 11
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tempo e do espaço, em se mostrando o desenvolvimento de um estado de ânimo constante como ocorre nos romances de Proust, de Dostoievski e de Kafka; portanto, do mesmo modo que ocorre nas obras desses autores, Jardín desenvolve-se em um cenário que, embora lírico-místico, pode ser caracterizado sob um ponto de vista social ou geográfico, às vezes histórico (explicito); que, ao final, resulta movimento, tempo e espaço artisticamente emancipados cada vez mais, desde uma perspectiva maior do tempo e do espaço reais que se afastam do reflexo tradicional da realidade.
Na obra analisada o espaço do jardim como espaço absoluto, imóvel tratado liricamente em um mundo de “tristeza vegetal”, “rede tecida com fios invisíveis”, é – ao dizer da escritora – “[…] uma trapa de luz e sombra, é para Bárbara uma cadeia sem carcereiro”, enquanto fora entregam-se lhes, convidando-a a recorrê-los, todos os caminhos da vida. Eis aqui uma licença da literatura, porque o tratamento desse espaço pela autora nos afasta dele até o ponto de que em ocasiões adquire frente a nossos olhos, um caráter dantesco. É, portanto, possível falar que, no romance, a intertextualidade indireta está acompanhada de um dos requerimentos da literatura contemporânea em que [as] relações espaciais são influídas, além, por outros fatores artísticos (...) a ironia e o grotesco, assim como por elementos fantásticos que oferecem uma pluralidade de perspectivas para interpretar a realidade por meios espaciais (ÁLVARES, 2012, p.168). 14
Em resposta, o jardim é o espaço de angustia, de medo, de testemunha muda do tempo, de cenário em que se
ÁLVAREZ E, Teonila. Un Jardín de inconstantes concepciones físico-matemáticas. In: Encuentros, sobre la obra de Dulce María Loynaz. Pinar del Río: Ediciones Loynaz. Cuba, 2012, p.168.
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suscitam enfermiças paixões humanas. É, por fim, uma forma interminável para Bárbara, em que ela fica agarrada, possuída, encerrada. Algo de que ela se sente parte: é sua solidão, seu próprio isolamento.
Em seu papel de testemunha de uma época, a protagonista da obra assiste a seu movimento dialético. Por essa razão, ainda na primeira parte, quando se destaca o tempo psicológico, percebemos essa cruzada, essa luta interna que produz exaltação dos estados de animo de Bárbara até conseguir sair ao mundo, o que significa sair de sua auto-reclusão. Essa luta, essa constante mudança transcorre no tempo e no espaço, porque, no romance, há espaço em extensão e em coexistência de objetos que conformam um espaço concreto; e há tempo, que produz uma sucessão de momentos que marcam uma duração. Assim, e como demonstramos por essa apreciação de Jardín, fica provado que o movimento é a essência do tempo e do espaço e, por conseguinte, a matéria e o movimento, o tempo e o espaço são mutuamente inseparáveis. Aspetos que são refletidos muito bem no curtametragem. Podemos perceber, tanto na obra como no filme, que o jardim representa o espaço onde convivem o passado e o presente, um espaço policromo, aparecendo em verde, em preto, em dourado, em amarelo, indistintamente segundo sejam os estados psicológicos da protagonista.
Segundo a própria Loynaz, Jardín é um livro completamente sensual. Ao respeito disse: Escrevei Jardín me re- criando com fruição nas descrições de cheiros, de cor, de sons e buscando as palavras belas, as imagens brilhantes e originais procurando com desfrute reunir todos os belos aspectos de um estilo formoso (GONZÀLEZ, 2008).15
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Ibíd., p.37.
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Tais evocações sensoriais despertaram o espírito mesmo da recriação em outros, levando a própria autora viver momentos sublimes quando o Balé Nacional de Cuba levou a cena seu romance. (RICARDO, 2012)16 Com igual acerto, mãos mais jovens possuídas pelo encanto do romance e pela excelente colocação gráfica de imagens que oferece a autora nela, teceram um argumento cinematográfico de notável fatura. As imagens cinematográficas da Luna en el jardín recriam em um curta-metragem animado o fabuloso mundo onde Bárbara, a protagonista, submerge-se para, ao mesmo tempo, emergir sempre dele.
A obra adaptada para o celuloide contou com a colaboração musical da solida camerata de cordas cubanas dirigida por Zenaida Castro Romeu17, o conjunto oferece ao espectador, como valioso presente uma magnífica interpretação de Adagio, do musico Alejandro Garcia Caturla.18
O produto final, altamente valorado pela crítica, ambienta com perfeito equilíbrio as imagens onde se contrapõem a voragem da vida cotidiana e a poesia do jardim, matizadas pela sublime banda sonora fusionada ao material artístico. Tanto no curta como no romance loynaciano, o jardim alcança o status quo de personagem e tem tantas ou mais mutações que a protagonista, é uma relação peculiar de aproximação e rejeição cujos matizes e sensações dão-lhe verdadeiro corpo ao relato.
RICARDO, Yolanda. La pupila múltiple de Un verano en Tenerife. In: Encuentros, sobre la obra de Dulce María Loynaz. Pinar del Río: Ediciones Loynaz. Cuba, 2012, p.188. 17 Importante diretora cubana de orquestra e coros. Descendente da família Romeu, com uma forte tradição musical. Desde inícios da década dos 90 do século passado dirige uma reconhecida banda de cordas integradas somente por mulheres. 18 Compositor cubano de musica contemporânea celebre por incorporar na musica orquestral os ritmos africanos. É considerado, junto Amadeo Roldán, o pioneiro da musica sinfônica cubana. 16
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A atmosfera enigmática da obra vai mais além de ser mera atmosfera para fechar em si as apojaturas e segredos do texto transcendentais na leitura do texto; centrando a atenção no subjetivo do sentir humano, as suas contradições o momento onde se unem inexplicavelmente bondades e maldades da alma e no caminho a tais objetivos resulta essencial o símbolo e a imagem plástica. (TORRES, 2011.).19
A Loynaz encontrou matizes na concepção do narrador, já que a obra Jardín é um romance da linguagem, como afirma Juan Ramón de la Portilla (2007). Os recursos para explorar todas suas potencialidades muitas vezes estão dados a partir do que o narrador monta de diversas maneiras. “A prosa de Dulce María Loynaz impõe ao leitor (e agora ao espectador de cinema), como uma autentica prosa poética, uma leitura ou olhar múltipla dos fatos, uma viagem da metáfora a metáfora.” (TORRES, 2011).20 Considerações finais
A visita ao Jardín resulta em um convite permanente e irresistível da obra de Dulce María Loynaz. A proposta tornase ainda mais prazerosa, si se faz desde o reconhecimento dos rastros sensoriais de outras manifestações artísticas, em sua prosa poética. O nexo entre a sua prosa e o cinema, entre nossos mundos e essa fina fragrância úmida e vegetal da obra Loyciana, roça a certeza; trazendo nos vocábulos de outros tempos a nossa contemporaneidade e incorporando-os como ponte entre o material e o etéreo.
TORRES R, Carmen M. La prosa de Dulce María Loynaz: camino poético hacia otros mundos. In: Artículos del Portal Web del Centro Cultural Dulce María Loynaz. La Habana, 2011. Disponível em: http://www.centroloynaz.cult.cu/index.php/ category/articulos/. Acceso em: 14.sept. 2013, 14:00 hrs 20 Ibíd. 19
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Vislumbrar esses vínculos poderia, então, entenderse como desafio, se tomamos em conta a diversidade de enfoques e aproximações que se geram. Multiplicidade de rotas haverá de conhecer-se para penetrar, sempre com gozo os fios condutores, os caminhos comunicantes e afluentes de um patrimônio cultural tão solido como o da Loynaz. Referências bibliográficas
ÁLVAREZ E, Teonila. Un Jardín de inconstantes concepciones físico-matemáticas. In: Encuentros, sobre la obra de Dulce María Loynaz. Pinar del Río: Ediciones Loynaz. Cuba, 2012. p.168. ARAÚJO, Nara. El alfiler y la mariposa, la sombra y la luz: convención y transgresión en la poética de Dulce María Loynaz. Iztapalapa, 37. Julio-Diciembre 1995, p.141156. BARSKY, Julián. Horacio Quiroga y el cine. In: revista Todo es Historia. Buenos Aires, 2006. CRISTÓBAL P, Armando. Dulce María en su jardín. In: Encuentros, sobre la obra de Dulce María Loynaz. Pinar del Río: Ediciones Loynaz. Cuba, 2012. p.125.
GONZÁLEZ, Sara M. Dulce María Loynaz: fe religiosa y obra poética. 2008, 77 f. Mestrado em Artes. Florida International University, Alabama.
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LEMUS, Virgilio L. Palabras de Dulce María Loynaz en exposición de Hilda Vidal. In: Dulce María Loynaz. Estudios de la obra de una cubana universal. Tenerife: Centro de la Cultura Popular Canaria, 2000. p. 113. PUPPO, María L. Releer a Loynaz o los equívocos de la crítica. Análisis de dos discursos menores en Jardín, la novela-isla. In: Encuentros, sobre la obra de Dulce María Loynaz. Pinar del Río: Ediciones Loynaz. Cuba, 2012.p.146. QUIROGA P, Mayra. El jardín de la Loynaz en el celuloide. Juventud Rebelde. La Habana, Diciembre 2012. p. 8.
RICARDO, Yolanda. La pupila múltiple de Un verano en Tenerife. In: Encuentros, sobre la obra de Dulce María Loynaz. Pinar del Río: Ediciones Loynaz. Cuba, 2012. p.188. RICARDO, Yolanda. Un verano en Tenerife: cristalización cervantina en la insularidad. Conferencia ofrecida en ocasión del vigésimo aniversario del otorgamiento del Premio Cervantes a la poeta Dulce María Loynaz. In: Artículos del Portal Web del Centro Cultural Dulce María Loynaz. La Habana, 2012, p.3. Disponível em: http://www.centroloynaz.cult.cu/index.php/category/ articulos/. Acceso em: set. de2013. SIMÓN, P. Dulce María Loynaz. Valoración múltiple. Casa de las Américas. La Habana: Letras Cubanas, 1991. GÓMEZ, Y. C.| p. 439-452 | ISBN 978-85-60521-59-3 • 451
TORRES R, Carmen M. La prosa de Dulce María Loynaz: camino poético hacia otros mundos. In: Artículos del Portal Web del Centro Cultural Dulce María Loynaz. La Habana, 2011. Disponível em: http://www.centroloynaz. cult.cu/index.php/category/articulos/. Acceso em: set. de 2013. ZAVALA, Lauro. Del cine a literatura y de la literatura al cine. Tiempo Laberinto. México: UAM Xochimilco, 2005. p. 10.
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