Para além dos Pós-Nacionalismos e Pós-Colonialismos

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Sumário Introdução - Para além dos Pós-Colonialismos e dos Pós-Nacionalismos, ou o poder da Literatura de extrapolar conceitos Giséle Manganelli Fernandes

5

Capítulo 1 - A projeção das sombras: emancipação e Pós-Colonialismo na América Latina Alfredo Cordiviola

15

Capítulo 2 - O conflito árabe-israelense, em A mulher foge, de David Grossman Berta Waldman

31

Capítulo 3 - Révolutions: a poética de um eterno exílio? Reflexões sobre Le Clezio Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha

49

Capítulo 4 - O suíço Hugo Loetscher, 1979: Um olhar pós-colonial sobre o Brasil? Celeste Ribeiro de Sousa

65

Capítulo 5 - “Learn your English” e pratique seu Spanglish: linguagem e identidade(s) em produções literárias de autores latinos nos Estados Unidos Giséle Manganelli Fernandes

91

Capítulo 6 - Pós-Colonialismo na Espanha: Manuel Rivas e a escritura da alteridade Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento

105


Capítulo 7 - Em busca de raízes geográficas e espirituais: o sujeito diaspórico no Século xxi Mail Marques de Azevedo

127

Capítulo 8 - Pós-Nacionalismo na vida e obra de Sean O’Faolain Munira H. Mutran

149

Capítulo 9 - Quando o ‘outro’ é um irmão: Considerações sobre a representação contemporânea do ‘judeu oriental’ na Literatura Hebraica do Século 21 Nancy Rozenchan

161

Capítulo 10 - O discurso dialógico de Margaret Atwood em Negociando com os mortos Sigrid Renaux

177


PARA ALÉM DOS PÓS-COLONIALISMOS E DOS PÓS-NACIONALISMOS, OU O PODER DA LITERATURA DE EXTRAPOLAR CONCEITOS A proposta da coletânea Para além dos Pós-Colonialismos e dos Pós-Nacionalismos tem, em seu cerne, o desafio de problematizar os conceitos de “Pós-Colonial” e de “Pós-Nacional”. Os ensaios aqui apresentados contemplam literaturas das Américas, da Europa e da Ásia, cujas análises debatem noções relativas a “identidade(s)”, “subalterno”, “minoria(s)”, além de binarismos como “centroperiferia”, “dominador-dominado”, “colonizador-colonizado”. A diversidade de autores estudados nos textos do livro permite examinar questões essenciais para o entendimento da complexidade da escrita literária e de fundamentações teóricas originadas a partir de realidades diferentes das discutidas em teorias fundadoras do Pós-Colonial, cujos estudos se basearam nas produções literárias de ex-colônias inglesas. Assim, os trabalhos fulcrais de Spivak, Homi Bhabha, Bill Ashcroft são abordados em diversos momentos da coletânea, mas colocados em perspectiva ao lado de teóricos como Hugo Achugar e Walter Mignolo. Portanto, as noções de “Pós-Colonial” e “Pós-Nacional” assumem significados distintos, de acordo com os processos coloniais, de independência e também de formação de identidade(s) ocorridos nas diferentes histórias locais. Ao nos debruçarmos sobre os termos “Pós-Colonial” e “PósNacional” torna-se difícil não refletirmos um pouco a respeito do “Pós-Modernismo”, que tem como uma de suas características a pluralidade de vozes, segundo uma de suas principais teóricas, a canadense Linda Hutcheon, responsável pela autoria do amplamente estudado conceito de “metaficção historiográfica”. Ao trazer à baila, em sua obra The Politics of Postmodernism, o aparecimento de vozes outrora silenciadas, Hutcheon observa que O que tem surgido é algo diferente das unitárias, fechadas,


evolucionárias narrativas da historiografia como as conhecemos tradicionalmente: conforme também temos visto na metaficção historiográfica, agora recebemos as histórias (no plural) dos perdedores assim como as dos vencedores, as do regional (e colonial) assim como as do centro, as dos muitos não cantadas assim como as dos poucos muito cantadas, e devo adicionar, as das mulheres assim como as dos homens.[1]

David Harvey corrobora com essa ideia ao discutir a relevância para a característica pluralista do Pós-Modernismo de os grupos poderem ter sua própria voz e esta ser aceita como legítima[2]. Essas vozes plurais passaram a ser ouvidas e trouxeram a diversidade de culturas definitivamente para a pauta das análises das manifestações desses povos outrora silenciados pela opressão. O surgimento dessas outras vozes tem extrema relevância nos textos desta coletânea. Conexões estabelecidas por guerras de independência, conflitos de identidade, busca por espaço, respeito, reconhecimento, trazem para o debate problemas atuais de busca por um mundo em que fronteiras econômicas e culturais podem ser transpostas, a fim de oferecer mais oportunidades de desenvolvimento e de igualdade social em todo o globo. As análises realizadas nos capítulos deste livro abrangem aspectos desses conteúdos partindo das provocadoras estratégias narrativas empregadas pelos autores em seus textos, as quais levam a reavaliações históricas, sociais e culturais. As preocupações com o Pós-Colonialismo na América Latina são analisadas no texto A projeção das sombras: emancipação e pós-colonialismo na América Latina, de Alfredo Cordiviola. What has surfaced is something different from the unitary, closed, evolutionary narratives of historiography as we have traditionally known it: as we have been seen in historiography metafiction as well, we now get the histories (in the plural) of the losers as well as the winners, of the regional (and colonial) as well as the centrist, of the unsung many as well as the much sung few, and I might add, of women as well as men. (tradução nossa)

1

HUTCHEON, Linda. The Politics of Postmodernism. London, New York: Routledge, 1993, p.66. Cf. HARVEY, David. The Condition of Postmodernity. Oxford: Basil Blackwell, 1989, p.48. 2


O pesquisador mostra a necessidade de se remontar às primeiras décadas do século xix para se discutir o Pós-Colonial na América então sob o jugo do império espanhol. Para atingir esse propósito, Cordiviola destaca a importância das lutas de independência dos países de colonização espanhola na América e, nesse contexto, a figura histórica de Bernardo Monteagudo; este, aos dezenove anos, escreve a obra Diálogo entre Atahualpa y Fernando VII en los Campos Eliseos. Por meio do (improvável) diálogo entre Atahualpa e Fernando VII, vê-se a relação opressor/oprimido, “mas nada diz respeito às estratégias de subalternização emanadas das próprias elites americanas”. Assim, Cordiviola, contrapõe os textos do século xx que estão relacionados aos processos de independência de excolônias europeias, que reforçavam questões de identidade regional e de populações marginalizadas pela opressão. Monteagudo teve uma atuação política relevante no continente; entretanto, o seu sonho de criar uma federação de estados hispano-americanos deu lugar à estrutura fragmentada dos países de colonização espanhola na América. As considerações finais do texto de Cordiviola mostram que o “Pós-Colonialismo” precisa ser pensado em termos complexos quando se trata da América Latina: Assim, os “estudos pós-coloniais” (entendidos como categoria altamente heterogênea e como um dos marcos de convergência na constelação formada pelos estudos culturais, os estudos subalternos, pelo pós-latino-americanismo e as investigações sobre o pensamento liminar) elaboram um arsenal teórico que nos alerta sobre os mecanismos da colonialidade, os paradoxos da modernidade e as falácias contidas nos projetos de nação hispanoamericanos, mas também sobre as possibilidades de emergência de outras vozes que iludem as armadilhas da representação e conseguem se manifestar e adquirir visibilidade.

Prosseguindo na esteira da inclusão de outras vozes e na busca da identidade, Berta Waldman analisa o romance A mulher foge, no texto intitulado O conflito árabe-israelense, em A mulher foge, de David Grossman. Grossman, de quem um dos filhos foi morto no Líbano quando


era soldado de Israel, narra o problema dos árabes israelenses que vivem em israel e estão distanciados da “identidade nacional judaica”. Sem se ater a um enfoque maniqueísta simples, o autor apresenta o conflito árabe-israelense a partir da história de uma família e das angústias vividas pelas personagens. Por meio do triângulo amoroso Orah-Avram-Ilan, a narrativa traz o temor da mãe de perder seu filho Ofer, alistado no exército, de forma trágica. Orah decide fugir e, nessa fuga, ela mergulha em sua subjetividade. O autor apresenta a personagem Sammy, o motorista árabe israelense da família, com a qual mantém grande amizade. Aí, então, reside o conflito de identidades, de culturas e Sammy é obrigado a fazer escolhas, pois “Quando os árabes estão sendo atacados, Sammy se solidariza com eles, mas ele precisa dos israelenses para sobreviver”. A estrutura complexa da narrativa atesta a multiplicidade de vozes que precisam ser reconhecidas no mundo pós-moderno. Berta Waldman aponta que É complexa a escrita deste romance construído em diferentes escalas. Ele vai do texto sincrônico que limita a perspectiva do relato, pois é escrito ao mesmo tempo da ocorrência, ao texto com uma dobra a mais que se volta à memória, através da qual se recupera um trajeto de vida em perspectiva. Nos dois casos, os narradores nunca são unívocos. O narrador em terceira pessoa intercala em sua fala a das personagens , orquestrando numa multiplicidade de vozes o discurso indireto livre; por outro lado, o discurso das personagens em primeira pessoa intercala relatos em terceira pessoa, numa imagem invertida em relação ao tipo de escrita anterior. Nos dois casos, há sempre mais de uma voz.

O livro não apresenta uma conclusão, não se sabendo ao certo o destino das personagens; portanto, não há closure, outra característica do Pós-Modernismo.[3] Aqui o conflito árabe-israelense toma proporções além do espaço de fronteiras físicas (invasor/invadido), e traz para a discussão problemas de identidade, que também podem se refletir na dicotomia Cf. HUTCHEON, Linda. The Politics of Postmodernism. London, New York: Routledge, 1993, p.69-70. 3


invasor/invadido. O desafio já pode ser constatado nos aspectos formais do texto que não podem trazer uma solução definitiva para uma situação a respeito da qual ainda não se tem uma resposta. Conflitos de identidade também marcam a obra Révolutions, de Le Clézio, analisada no texto Révolutions: a poética de um eterno exílio? Reflexões sobre Le Clézio, de Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha. No romance, a personagem Jean recebe de sua tia Catherine a incumbência de recuperar a memória da família. Nesse exercício, surge a figura de Jean Eudes Marro, o primeiro ancestral a ir buscar fortuna no exterior, até chegar às Ilhas Maurício. O dinamismo da busca pelos ancestrais, a vida nômade, de exílio fizeram de Jean um ser “culturalmente plural”, como determinado pelo novo contexto mundial: Tal dinamismo, imposto por um comportamento social aparentemente híbrido e desordenado - que a própria narrativa insiste em recuperar pela manutenção de histórias-estórias familiares e individuais fundidas em um tempo histórico igualmente superposto e desorganizado – induz à compreensão dos conflitos identitários não como uma tentativa de ruptura ou como uma opção excludente de outras vivências significativas mas como uma oportunidade de voltar ao passado, lá se municiando de uma substância e de uma adesão ao mundo familiar, que permita a esse personagem-viajante, suprir-se de raízes, de alimentos e de forças ontológicas, primitivas e ancestrais.

Jean casa-se com Mariam, uma argelina, inscrevendo uma ruptura com padrões outrora estabelecidos e o filho, fruto dessa união, deverá continuar essa história com novas viagens, exílios, buscas de identidade. Portanto, essa narrativa também não tem closure. Aspectos de diferenças culturais continuam a merecer a atenção no capítulo O suíço Hugo Loetscher, 1979: um olhar pós-colonial sobre o Brasil?, de autoria de Celeste Ribeiro de Sousa. Em seu texto, a pesquisadora apresenta um panorama histórico sobre as empreitadas coloniais da Alemanha bem como a respeito das particularidades dos estudos Pós-Coloniais na literatura de língua alemã, mencionando, por exemplo, teóricos como Susanne Zantop e


Paul Michael Lüt zeler, que consideram, por exemplo, produtores de literatura pós-colonial, “autores de língua alemã que nunca viveram em colônias ou ex-colônias, nunca sofreram a experiência dos processos de dominação, que lhes é estranha. São autores que viajaram a países do chamado Terceiro Mundo, um dia colonizado, e dele fazem relatos”. Assim, Celeste Ribeiro de Sousa elege “o caso Loetscher” e analisa uma produção literária desse autor suíço que visitou o Brasil, notadamente o Nordeste brasileiro, enfatizando a miséria da região. A pesquisadora toma por base para sua discussão um ensaio escrito pelo norte-americano Reinhard Andress acerca da obra Wunderwelt. Eine brasilianische Begegnung, de Hugo Loetscher, no qual Andress considera essa ficção um exemplo de “olhar pós-colonial”. A obra de Loetscher fundamenta-se na cena real de uma família tirando uma foto, na praça central da cidade, em torno de um caixão com o corpo de uma criança de três anos chamada Fátima. Sob a perspectiva de Andress, por meio dessa tragédia, Loetscher “passa a compreender o papel da seca no sertão, a medicina popular, as superstições, o papel da cachaça, os rituais fúnebres, a crença em milagres e em figuras lendárias como as de Lampião”. Contudo, a pesquisadora questiona o que seria o “olhar pós-colonial sobre o Brasil”. Ao focalizar apenas uma imagem devastadora do Brasil, Loetscher deixa de abordar iniciativas para o progresso agrário da região Nordeste assim como as mudanças políticas que se configuravam nos anos 70. Há uma tentativa de se aproximar do Outro, mas isso não significa aceitá-lo completamente. O distanciamento cultural europeu não permitiu a Loetscher verificar que haveria muito mais a ser mostrado sobre o Brasil ao povo de língua alemã além do “exotismo negativo”. O capítulo de Giséle Manganelli Fernandes também traz preocupações culturais e de visão do Outro, agora permeadas pela questão da língua. Em “Learn your English” e pratique seu Spanglish: linguagem e identidades em produções literárias de autores latinos nos Estados Unidos a pesquisadora analisa textos de escritores de origem latina que focalizam a busca pela identidade, pois esses imigrantes e seus descendentes se encontram entre as tradições de seus ancestrais e a realidade cotidiana nos EUA. O


problema linguístico se faz presente nesse processo, na medida em que o inglês passa a ser a língua de referência; porém, esses grupos sentem-se “in-between”, lutando para usufruir de sua cidadania de forma completa nos Estados Unidos e ter “o seu espaço reconhecido e respeitado”. Questões de linguagem e identidade ainda permanecem em evidência no capítulo Pós-colonialismo na Espanha: Manuel Rivas e a escritura da alteridade. Nesse texto, Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento apresenta a noção de Pós-Colonial vinculada ao PósFranquismo, pois somente com o final da ditadura de Franco a voz das minorias “expressa em catalão, basco ou vasconço e galego”, reprimida pelo regime opressor, pôde emergir “para a implementação de uma política identitária e reivindicadora do direito à diferença”. Para essa discussão, a pesquisadora traz reflexões sobre a obra do autor bilíngue Manuel Rivas, que escreve em galego. O texto aborda a estratégia do governo do General Franco de impor o castelhano como língua nacional com o objetivo de eliminar as diferenças; porém, o sistema repressor não conseguiu coibir a realidade plural da Espanha. Magnólia Nascimento aponta como Rivas utiliza-se da Guerra Civil Espanhola e/ou da ditadura de Franco em seus textos para enfatizar que esses fatos não devem ser esquecidos. Segundo a pesquisadora, Rivas, ao escrever em galego, “consegue deslocar e dar voz aos silenciados pelos que detinham voz e poder, sem abrir mão de uma consciência identitária especificamente galega, alcançando o global a partir do local”. Portanto, verifica-se, nesse caso, a relevância de se repensar a questão da identidade espanhola diante da multiculturalidade daquele país e como ser global sem abandonar sua realidade local. No capítulo Em busca de raízes geográficas e espirituais: o sujeito diaspórico no século XXI, Mail Marques de Azevedo realiza um estudo comparativo entre o romance da anglo-jamaicana Zadie Smith, Dentes brancos (2000), e o conto alegórico “Ayoluwa, a alegria do nosso povo”, de Conceição Evaristo, a fim de mostrar como esses textos vão além dos binarismos existentes em teorias pós-coloniais. A pesquisadora examina as ideias de Edward Said, Gayatri Chakravorty


Spivak e Homi Bhabha, aborda a questão do prefixo “pós” em “PósColonial” na concepção de Ella Shohat, tomado como “seguindo”, “indo além”, e problematiza o tratamento dado ao Pós-Colonial no tocante à Literatura Brasileira. No foco do trabalho encontra-se a diáspora negra e a posição do sujeito colonial e pós-colonial. A respeito do texto de Evaristo, Mail Azevedo observa que A questão das posições do sujeito, em todas as suas manifestações, levou estudiosos do pós-colonialismo a se utilizar com freqüência da contribuição de críticos afro-americanos, especialmente bell hooks e Henry Louis Gates, Jr. Gates defende o conceito de que “raça” é um construto social - sendo blackness uma posição do sujeito em relação ao culturalmente dominante - e não uma categoria biológica ou essencial. De fato, a ancestralidade negra é assumida com orgulho pelos escritores afro-descendentes.

Verifica-se que o sujeito diaspórico (nesse caso, negro) constituise em uma das formas de análise de matérias como “domínio e subordinação” em textos pós-coloniais. No romance de Zadie Smith, a problemática do multiculturalismo londrino, com toda a carga de preconceitos decorrente dessa realidade, é discutida por meio das diferentes reações das personagens, seja pelo medo, pela assimilação cultural ou pela resistência. Continuando nossas observações ainda na área de Literaturas em Língua inglesa, o Pós-Colonialismo nem sempre parece ser assunto tão claro no tocante à história da Irlanda. Entretanto, no capitulo Pós-nacionalismo na vida e obra de Sean O’Faolain, Munira Hamud Mutran mostra como Bill Ashcroft tem a irlanda em mira quando o assunto refere-se à construção da identidade nacional daquele país. Em seu texto, Munira Mutran destaca a importância do escritor O’Faolain que “foi um dos primeiros a desenvolver o que muito mais tarde foi chamado de revisionismo, uma interpretação pós-nacionalista da história irlandesa”. O escritor foi um ativo participante de movimentos contra os ingleses, mas, depois o seu patriotismo desvaneceu-se. Nas obras estudadas no capítulo em tela,


sua postura revela-se a de um autor preocupado com tópicos além do binarismo colonizador/colonizado. O’Faolain preocupa-se com a busca da identidade irlandesa e, segundo Munira Mutran, em sua obra é aguda a percepção do intenso sofrimento do povo irlandês durante a ocupação britânica – a morte de uma língua e de uma cultura no contato com o invasor e as terríveis consequências da pobreza, como o exílio, a fome, a diminuição da população. No entanto, ele não permite que sua visão seja restrita e acrítica; na verdade, reflete sobre a inevitável anglicização do país.

A pesquisadora ainda analisa que a obra de O’Faolain não se restringe ao contexto dos temas irlandeses, mas amplia suas perspectivas estabelecendo uma conexão mais forte com a literatura europeia. Outra forma de se discutir o Pós-Colonialismo fora dos padrões estabelecidos por suas teorias fundadoras, encontra-se exposto no capítulo Quando o ‘outro’ é um irmão: considerações sobre a representação contemporânea do ‘judeu oriental’ na literatura hebraica do século 21. Neste texto, Nancy Rozenchan traz para o debate a situação dos judeus chamados orientais (“mizrahim” em hebraico), isto é, aqueles oriundos de países árabes. Esclarece a pesquisadora que circunstâncias históricas levaram esses imigrantes a serem menosprezados, considerados como pertencentes a uma cultura inferior e submetidos a condições de miseráveis de vida. A esse respeito, observa Nancy Rozenchan, Judeus mizrahim, em particular os de origem marroquina, já desde o final da década de 50 e de forma mais nítida a partir da década de 70, promoveram manifestações de protesto contra a sua situação, de “outro”, de subalterno. Hoje judeus mizrahim de todas as origens e seus descendentes representam cerca da metade da população de israel. O estudo de sua consubstanciação é um tema que alguns definem como pós-colonialista, já que aborda uma relação de insuficiência representacional, uma incapacidade crônica dos sujeitos exporem sua própria narrativa sobre os fatos, mesmo que estes sujeitos não sejam pertencentes a um povo sob domínio. Estudos póscoloniais neste contexto justificam-se quando se constata os nãolugares dos subalternos nas narrativas oficiais.


A pesquisadora destaca as características das três fases de escritores judeus orientais e focaliza a autora da segunda geração Sara Shilo (filha de pai sírio e de mãe de origem iraquiana) e o seu premiado romance, Shum gamadim lo iavou (Nenhum duende vai aparecer). Nesta ficção, a autora aborda uma família marroquina, cuja vida é marcada pelo medo de ataques terroristas. A análise da narrativa permite ao leitor ter uma visão da história pelo ponto de vista das personagens oprimidas e, também, conforme assinala Nancy Rozenchan, como “escritores contemporâneos estão reconstituindo/ elaborando a identidade desta grande parcela da população sufocada pela sua própria história de vida no país”. No capítulo que encerra esta coletânea, O discurso dialógico de Margaret Atwood em Negociando com os mortos, Sigrid Renaux examina a obra não-ficcional Negotiating with the dead: a writer on writing, originada a partir de seis conferências que Atwood proferiu em um projeto da Universidade de Cambridge - as Conferências de Empson. O texto de Sigrid Renaux examina as argumentações de Atwood acerca da produção escrita, isto é, “Para quem você escreve? Por que você escreve? De onde vem esse impulso? (NM, p. 19)”, e de como a autora reavalia a questão colonial do Canadá, “ao redefinir, subverter e desconstruir – através de estratégias discursivas como a ótica paródica e a ironia – os conceitos fixos de eurocentrismo, cânone literário e essencialismo, entre outros”. A pesquisadora analisa como a obra de Atwood suplanta as características do pósmoderno e do pós-colonial e vincula-se ao conceito de “culturalismo cruzado”, cunhado por Harris e Soyanka. As contribuições desta coletânea, frutos de pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de Trabalho de Literaturas Estrangeiras da ANPOLL, examinam, portanto, o poder da Literatura de ir além de conceitos estabelecidos, apresentando, assim, uma permanente carga desafiadora aos seus estudiosos.

Giséle Manganelli Fernandes UNESP/SJRP


A PROJEÇÃO DAS SOMBRAS: EMANCIPAÇÃO E PÓS-COLONIALISMO NA AMÉRICA LATINA Alfredo Cordiviola[1] Entre 1809 e 1811, em várias regiões da América ainda situada na órbita do império espanhol, os movimentos pela autonomia, que vinham amadurecendo desde as décadas anteriores, cristalizam-se em gestos de cisão que haverão de inaugurar o conturbado processo que desembocará no surgimento de novas nações independentes em todo o continente. Da Bolívia à Venezuela, da Argentina à Colômbia e Equador, do México ao Chile, as nações latinoamericanas reconhecem nas atuais celebrações do bicentenário daqueles fatos a ocasião para revisar os acontecimentos históricos que marcaram a dissolução da ordem colonial e para apontar as alternativas e as falências derivadas dos vários projetos de nação e de governo que estiveram em jogo naquelas circunstâncias. No contexto da América Latina, invocar a dimensão pós-colonial supõe assim retroceder até essas primeiras décadas do século XIX, ao momento em que os discursos e proclamas da emancipação anunciavam já as formas de uma ruptura com o passado que parecia e era cada vez mais inevitável. Nessa fase decisiva e ulterior do conflito, remotos pareceriam os tímidos apelos e as vacilações dos letrados que, nas últimas décadas do século anterior, ainda pretendiam reformar o império e ampliar poderes locais para aprimorar os vínculos com a coroa espanhola. Naquela época, a maioria dos conflitos contra a dominação bourbônica aspirava a diminuir a carga tributária, a denunciar os abusos dos funcionários, a exigir a aplicação do bom governo, quase nunca a questionar a autoridade do rei ou a discutir o estatuto do pacto colonial. A coroa era a instância capaz, por equânime e justa, de resolver os conflitos, o emblema do 1 Alfredo Cordiviola é professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).


iluminismo católico, considerado o sistema mais adequado e natural para a região. O poder régio, salvo em algumas rebeliões massivas como as de Túpac Amaru e dos Cataris nos Andes, não era visto como a encarnação da tirania que tinha mantido as colônias no longo e fatal ostracismo. Essa seria a visão do passado colonial promovida pela geração seguinte, interessada em encontrar antecedentes e precursores dos movimentos libertários, em enfatizar ou inventar o suposto sentimento antiespanhol e em reler a história sob a luz das suas próprias necessidades. Essa visão, que era uma consequência das tensões e das campanhas que tinham acirrado as lutas pelo poder no começo do XIX, postulava um inimigo a ser vencido e uma máscara a ser destruída, e confiava em que futuros de grandeza necessariamente se manifestariam diante do aniquilamento e a desaparição da máquina colonial. Nas colônias hispânicas, a representação do espanhol como inimigo fatal, do “gachupín”, do “chapetón” como parasito a ser exterminado, será muito útil para alimentar tanto os ímpetos revolucionários que se tornam imprescindíveis na fase final, nessas décadas de dez e vinte, da luta independentista, quanto as incipientes histórias nacionais que, modeladas pelo épico fervor, serão escritas a partir da vitória das forças patriotas. Interpretações binárias da história costumam ser úteis e também obrigatórias em tempos de revolução, em tempos de fissura manifesta, quando as imagens constituídas do mundo perdem força, se diluem e se desvalorizam enquanto outras começam a se legitimar e a anunciar os contornos do que ainda está por vir. Nessa fissura se situam as ações e os escritos de algumas das figuras mais radicais desse momento. Nesse momento de conspirações tramadas no marco de tensões geopolíticas internacionais (marcadas pela invasão napoleônica da península ibérica, pela constituição das juntas espanholas e a expansão cada vez mais ostensiva e determinante dos interesses britânicos), e por batalhas e campanhas patriotas memoráveis que se multiplicavam no acosso final das tropas realistas, coube a Bernardo de Monteagudo ser um dos principais ideólogos e políticos intimamente envolvidos com a expansão das lutas independentistas.


Como Miranda, como Nariño, como Bolívar, San Martín, Moreno e tantos outros propagandistas e realizadores do ideário emancipador, Monteagudo desempenha uma ação continental que, longe de estar restrita ao seu local de nascimento, se expande na medida imposta pelas necessidades do projeto libertário. Como muitos deles, foi advogado, jornalista, militar, político. Nascido em Tucumán no ano da revolução francesa e assassinado em Lima em 1825, Monteagudo participou na sublevação de Chuquisaca de 1809, que, como a de Quito desse mesmo ano, anuncia a série de levantamentos que estavam a acontecer em todas as colônias. Foi membro da Assembleia do ano 1813, que decretou o fim da escravidão nas Províncias Unidas, participou nas campanhas do Chile e do Peru, e foi Ministro de Guerra, e também de Relações Exteriores, do fugaz governo peruano instaurado por San Martín. Esteve também na América Central, em procura de estreitar os laços americanistas em toda a região. Fundou a Sociedade Patriótica e vários jornais, teve fama de impiedoso e de incansável. Quando foi morto, estava organizando com Bolívar o Congresso de Panamá, que pretendeu, em 1826, criar uma grande confederação de nações independentes. Esse ambicioso objetivo tinha sido delineado por Monteagudo no seu inconcluso Ensayo sobre la necesidad de una federación general entre los estados hispano-americanos y plan de su organización. O congresso, que teve representantes de quase todas as áreas que tinham se desprendido da influência colonial, nunca chegou a cumprir a improvável (dadas as circunstâncias) missão de criar uma federação duradoura. Interesses locais e internacionais fizeram que, em poucos anos, novos antagonismos e novos países surgissem no sul e no centro das Américas, fragmentando definitivamente toda tentativa de união continental. A figura de um Monteagudo sempre combativo e disposto a participar em todas as frentes da batalha se forja precisamente em Chuquisaca, o principal centro intelectual do Alto Peru. A Universidade Mayor de San Francisco Xavier, fundada em 1624, era uma das mais prestigiosas da América; por seus claustros passaram também muitos letrados dos Andes e do cone sul que teriam ativa


participação nesses anos, como Mariano Moreno, Manuel Rodríguez de Quiroga, Mariano Álvarez e Juan José Castelli. Formado em Direito, Monteagudo, que tinha apenas dezenove anos, redige o Diálogo entre Atahualpa y Fernando VII en los Campos Eliseos em 1809. No dia 25 de maio desse ano, estoura a já mencionada Revolução de Chuquisaca, levantamento contra o governador espanhol da cidade de Charcas incentivada pela deposição de Fernando VII e pela negativa a aceitar a regência da sua irmã Carlota, instalada com a corte portuguesa no Rio de Janeiro. Os sublevados conseguem instaurar uma junta de governo, que seria depois dissolvida com a repressão e a condena dos rebeldes. Algo semelhante aconteceria em La Paz imediatamente depois. Como na tentativa de Quito desse mesmo ano, apesar do aparente fracasso, o movimento já não podia ser visto como um efêmero projeto sedicioso, mas como uma manifestação local de um conflito muito maior, que era já irreversível e tendia a se multiplicar em muitas outras cidades. A partir desse ano, outras juntas de governo desconheceriam diretamente a autoridade espanhola, e outros exércitos estariam dispostos a afrontar a guerra até o fim, em um processo que só concluiria com a batalha final de Ayacucho em 1824 e a dissolução do outrora vice-reino do Peru. A sublevação de Chuquisaca, contudo, pareceria ser ainda cautelosa quando comparada com os enfrentamentos que viriam. É possível dizer que o movimento obedecia a disputas entre as elites locais, a desejos de preservar certa autonomia regional face aos interesses de Buenos Aires e de Lima, a receios provocados pela hipotética ameaça representada pela rainha Carlota. Oficialmente, o desígnio dos insurgentes consistia não em se separar da Espanha, mas em estabelecer um governo local que preservasse os direitos do monarca deposto pelos franceses. Fernando VII aparecia assim ainda como um governante legítimo, que temporariamente estava impedido de exercer sua soberania, mas que reassumiria o mando quando as coisas voltassem a seu lugar. Essa postura não desafiava o poder constituído, apenas oferecia uma solução de emergência, sem questionar os fundamentos do vinculo colonial nem a lealdade ao rei. É possível dizer, por outro lado, que se tratava, mais do que


de um conflito separatista, de uma espécie de guerra civil, na qual confrontavam dois bandos que estavam, todos dois, formados por espanhóis e por americanos. Ou quiçá que essa posição era também uma máscara ou uma mera estratégia que ocultava outras intenções, mais radicais e diretamente apontadas a conquistar a independência. Em Quito, por exemplo, os sublevados juravam por Deus, pelo Rei e pela Pátria, depositando toda a lealdade numa única frase que soaria extravagante e impossível no futuro, especialmente a partir de 1814, quando na Espanha é anulada a Constituição de Cádiz e se reinstala o absolutismo restaurador. Mas é importante frisar que essas interpretações opostas também derivam e fazem parte desse conjunto de contradições que se revelam por todo o continente em cada um dos episódios que marcam esse ano crucial de 1809. O ano dos levantamentos em Charcas, La Paz e Quito é o mesmo em que Camilo Torres escreve na Nova Granada seu Memorial de agravios, o mesmo em que Mariano Moreno redige no Rio da Prata sua Representación de los Hacendados. O documento[2] que Camilo Torres apresenta em novembro desse ano perante o Cabildo de Santa Fé estava dirigido à “Suprema Junta Central de España”, e proclama o direito das colônias a terem uma participação igual no governo. Séculos de desequilíbrio tinham prejudicado os interesses dos criollos; a partir de agora, o Memorial exigia que Espanha e América fossem como “dois pratos de uma mesma balança”. “Un hermano habla a otro hermano, para mantenerse con él la paz y la unión”[3] escreve Torres, mas as frases de efeito e a retórica conciliadora não ocultavam as bases de uma proposta que defendia claramente a possibilidade de uma separação que na Nova Granada se concretizaria menos de um ano depois. Uma separação que, como em muitas outras regiões do continente, estava inspirada pelo fortalecimento dos interesses das elites locais, e não por uma idéia de nação que fosse inclusiva e igualitária. 2 O documento conhecido como “Memorial de agravios” se intitulava “Representación del Cabildo de Santa Fé, capital del Nuevo Reino de Granada, a la Suprema Junta Central de España, en el año de 1809”.

3 Torres, Camilo. “Memorial de agravios”, em Romero, José Luis; Romero Luis Alberto (comp.) Pensamiento político de la emancipación (1790-1825) I. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1985, pp. 25-42, p. 35.


Da mesma forma, no outro extremo da América do Sul, Mariano Moreno na sua Representación criticava duramente o monopólio espanhol e os comerciantes que dele se beneficiavam, e exigia uma abertura do comércio, principalmente com Inglaterra, que favorecesse as exportações do setor agropecuário. Moreno pretende em seu informe econômico fomentar a felicidade pública e corrigir os desvios que o sistema mercantil imposto pela coroa tinha criado; está interessado em combater as injustiças sofridas pelos fazendeiros da região platina, reprimir o contrabando (conseqüência lógica de políticas equivocadas), evitar a ruína e promover a prosperidade do reino. A Representación, dirigida ao vice-rei Cisneros, não era um texto revolucionário como o Plan de operaciones que Moreno escreve um ano depois, já instalado o governo autônomo. O primeiro era, como afirma David Viñas (1990) ao analisar as ambiguidades de Moreno, uma tentativa de acordo, baseada no eufemismo que, através de Moreno, uma incipiente burguesia utilizava para afirmar suas ambições; o segundo, já em um contexto muito diferente, marcado pelas ameaças contra-revolucionárias, evidenciava a explicitação da diferença e a intensificação do conflito. O primeiro era uma questão de elites emergentes contra elites consolidadas, de projetos antiabsolutistas contra projetos conservadores; o segundo declarava guerra frontal contra o inimigo e invocava outro princípio, a igualdade entre as classes, e outros atores sociais, que seriam historicamente marginalizados nos movimentos independentistas: os indígenas e a plebe. A Representación era assim um texto propositivo e programático, que se inseria na linha das discussões das políticas públicas que tinham sido constantes no meio século anterior, desde a implementação das reformas bourbônicas. Mas na sua crítica dos privilégios instituídos, e na sua visão do poder espanhol como uma máquina antiquada e inoperante cuja ingerência negativa impedia o desenvolvimento regional estão claros já os fundamentos que nas Províncias Unidas haverão de sustentar a revolução de 1810, as campanhas militares contra o absolutismo dos anos imediatamente posteriores, e a definitiva declaração da independência de 1816.


Como Moreno, Monteagudo também tinha passado em Charcas por experiências e leituras que permitiam interpretar o momento histórico a partir de perspectivas mais amplas e integradoras. No começo daquele ano de 1809, escreve um texto que é conhecido primeiro como peça representada e como confronto teatralizado de dois personagens, o Diálogo entre Atahualpa e Fernando VII. Circulou profusamente no claustro e fora da universidade em versão manuscrita, em vésperas das sublevações de Chuiquisaca e La Paz. Foi concebido como texto para ser pronunciado, como um instrumento mais de uma prédica que se multiplicava por todo o Alto Peru. A escolha do diálogo permitia representar vozes opostas que argumentavam diante de uma audiência que não era apenas um público receptor, mas um conjunto de ativistas que, apesar das diferenças, lutavam por uma causa comum reunidos no seio de círculos patrióticos. Sua função eminentemente didática favorecia o debate, a discussão, o drama promovido por ecos de vozes pautadas pelas tensões da oratória. O diálogo era uma forma já consagrada na tradição ocidental como método heurístico de aceder a uma verdade através de visões contrapostas. Levado a cabo por personagens planos e homogêneos, o diálogo dramatiza o esquema da encruzilhada de caminhos: apresenta duas opções, dois pontos de vista, para assinalar qual das duas alternativas deve prevalecer. Cada um dos interlocutores representa uma postura determinada, e o diálogo tende a resolver, mediante a persuasiva argumentação que surge do choque entre as vozes, a conveniência de adotar uma posição e a inviabilidade da outra. Neste caso, as vozes, que se encontram nos Campos Elíseos, são a de Atahualpa, o último Inca destituído e assassinado pelas forças invasoras de Pizarro em 1532, e a de Fernando VII, o monarca espanhol derrocado pelas tropas napoleônicas no ano anterior. O nome de Atahualpa, nesse particular momento de eclosão dos ímpetos emancipatórios americanos, não era apenas uma referência histórica de um passado remoto. Ao longo de todo o século anterior, as polêmicas medidas instauradas pelo reformismo bourbônico tinham promovido a firme resistência de diversos grupos sociais


que reivindicavam direitos perdidos e questionavam as formas da dominação metropolitana. Nas violentas rebeliões que se disseminam por toda a região durante o período, e que preparam a sublevação de maiores consequências encabeçada por Túpac Amaru em 1780, o culto ao passado inca será uma das armas que as elites indígenas empregam para recuperar o terreno diante do impacto das reformas. Aludindo a mitos e cerimoniais pré-hispânicos como o Pachakutij e o Inkarrí, mas invocando também os direitos consagrados pela administração imperial nos séculos anteriores, o chamado movimento neo-inca reivindica as figuras dos governantes civilizatórios do Tawantinsuyu, e resgata os pactos de convivência defendidos nos Comentarios Reales pelo Inca Garcilaso para postular uma ordem mais equilibrada e justa. As insurreições do século XVIII obedeciam aos pressupostos de uma interpretação do tempo e do devir históricos que Alberto Flores Galindo (1986) analisou sob o nome de “utopia andina”, um dos principais elementos constitutivos do chamado nacionalismo inca da época. A utopia andina tende a criar uma visão homogênea e idealizada do passado, e supõe a conjunção de pelos menos três fatores: uma memória resgatada, que enfatiza a harmonia da ordem pré-hispânica arrasada pela conquista; uma imaginação colocada a serviço de uma visão cíclica da história, que postula o retorno dos tempos idos como condição inexorável; e uma visão profética, que carrega o futuro imediato de indícios e confirmações que evidenciam a chegada de uma nova era de restauração. É um poderoso instrumento político que aspira a criar uma coesão quase impossível no atomizado contexto social do vice-reino, com o objetivo explícito de superar as complexas diferenças entre seus diversos atores (curacas, mestiços, mitayos, ladinos, etc.) em prol de uma causa comum. Monteagudo não era inca, e estava situado em uma esfera de ação completamente diferente, mas, atuando em um Alto Peru que ainda guardava as memórias e as esperanças dos levantamentos, invocava a figura de Atahualpa como epítome do despojo e emblema da reparação histórica. Perante esse poderoso espectro que retorna, o Diálogo impõe a interlocução de outro fantasma, Fernando VII.


Fernando, porém, não estava morto, embora nesse momento fosse, de fato, uma espécie de cadáver político. Forçado a abdicar pelos franceses, poucos anos depois voltaria, entretanto, com toda a força restauradora, apoiado pela reação absolutista que se estende pela Europa pós-napoleônica, em uma tentativa final, e finalmente inútil, de recuperar as colônias perdidas. Mas no Diálogo, Monteagudo outorga a mesma dimensão fantasmática a ambos os personagens. Nessa estratégia, o leitor reconhece antecedentes ilustres de viagens pelo mundo ultraterreno e de espectros que dialogam longe de um mundo ao qual ainda estão intimamente vinculados. Ulisses, Enéas, as visões satíricas e fantásticas de Luciano de Samosata, o Cipião sonhado por Cícero e o anônimo narrador do Somnium de Juan Maldonado poderiam ser mencionados como precursores na utilização de um artifício retórico que consiste em postular dimensões paralelas (o sonho/a vigília; os vivos/os mortos; a visão/a imaginação) que se contrapõem e se complementam para criar um ponto de observação privilegiada sobre as urgências do mundo. O anacronismo deliberado permite reunir, em um mesmo plano, entidades que, mesmo sendo de épocas muito diferentes, partilham neste caso um destino comum: ambos foram vencidos. Mas essa aparente semelhança, que só pode acontecer em um reino de sombras, esconde uma diferença que é fundamental e que o autor salienta em todo o texto. Se ambos os monarcas foram despojados de um poder legítimo, baseado na sucessão das dinastias, se ambos retornam para evocar a triste condição daqueles que perderam o reino, o Diálogo evidencia que a destituição de Atahualpa é, das duas, a mais irregular, a mais condenável. Considerar a Fernando VII como defunto é uma prova de ironia que se complementa com a escolha dos Campos Elíseos, o suposto lugar dos homens virtuosos, da abundância e do sábio discernimento, como teatro onde o diálogo é desenvolvido. Um teatro distanciado e reflexivo, que contrasta com o conturbado mundo ocidental do começo do século XIX, perpassado por tensões e guerras de todo tipo. Nessa improvável cena, Atahualpa e Fernando discutem sobre os modos da conquista, sobre tiranias, usurpações e obediências devidas. A conquista é definida por Atahualpa como catástrofe que


interrompe o justo e harmonioso governo dos incas, e atenta contra o principio de soberania dos povos, que postula que cada nação tem o direito de adotar uma forma própria de governo. Ecos dos debates éticos do século XVI, e das denúncias de Bartolomé de las Casas aparecem no discurso: en el momento en que dio noticia Colón del descubrimiento de la fertilidad de la nueva tierra y sus riquezas, empezó a hervir la codicia en el corazón avaro de los estúpidos españoles, que atravesando inmensos mares se trasmigran en tumultos a las Indias (...). Por todas partes corren ríos inmensos de sangre inocente; en todas partes se encuentran millares de cadáveres, desdichadas víctimas de la ferocidad española”. (MONTEAGUDO, 1985, p.65)

Essa evocação de uma idade de ouro arrasada pela cobiça invasora serve como contraponto da situação atual em que se encontra o reino espanhol. Como os incas, Atahualpa lembra a seu interlocutor que os espanhóis “del mismo modo que el francés en España, se han entronizado ellos en América contra la voluntad de los pueblos”. A comparação, entretanto, não pretende oferecer nenhum consolo a Fernando, mas recriminar com veemência maior a conduta ilícita dos vassalos ibéricos, “sacrílegos atentadores de los sagrados e inviolables derechos de la vida, de la libertad del hombre” (MONTEAGUDO, 1985, p. 67). A palavra “liberdade”, que tantas vezes seria pronunciada naqueles anos, e que passaria a ser referência obrigatória na retórica beligerante dos patriotas, nos posteriores hinos nacionais e nas histórias oficiais da independência, alude aqui a um direito anulado por uma monarquia que ignorou todo possível pacto social para impor uma dominação. Uma dominação que, a essa altura, já não podia ser justificada nem com o repetido argumento que tinha legitimado a ocupação como único caminho para garantir a evangelização dos indígenas e difundir o cristianismo na América. Como denuncia Atahualpa, tão ilegítima foi a ação dos conquistadores quanto a bula “Sublimis Deus”, pela qual o Papa tinha concedido à coroa espanhola algo que não lhe pertencia.


Tão contundentes são os argumentos de Atahualpa que o Diálogo deriva na final aceitação das postulações defendidas pelo Inca por parte de Fernando VII. A interação entre os dois personagens conclui com uma pergunta que fica suspensa como uma fórmula encantatória que anuncia claramente aquilo que em breve aconteceria: ¿Queréis que cuando la España, por manifiesto castigo del brazo vengador del Omnipotente, sufre en su ruina y destrucción la misma suerte que ha hecho experimentar a las Américas, permanezcan y estén sujetas todavía a un Fernando que habla conmigo ahora en la región de los muertos? ¿Queréis que cuando el cielo les abre la puerta de la felicidad, sean tan insensibles que permitan el pesado yugo de otra nación? ¿No es cierto que cuando la convulsión universal de la metrópoli y el terrible contagio de la entrega llegaran sin duda hasta la América, deben aspirar a vivir independientes? (MONTEAGUDO, 1985, p.70)

Fernando assente, vencido pela argumentação e por sua própria inexistência. Cumprido o objetivo, a revelação da verdade, o diálogo conclui. Mas o texto ainda não acaba. Os últimos parágrafos estão reservados para uma exortação que Atahualpa lança a todos os habitantes do Peru. Peça oratória final de um texto para ser declamado em altas vozes, a exortação resume em sua concisão todos os lugares comuns da prédica independentista, que se condensam na antinomia entre a escuridão e a luz: “desaparezca la penosa y funesta noche de la usurpación y amanezca el claro y luminoso dia de la libertad” (MONTEAGUDO, 1985, p.71). Todo o Diálogo se precipita neste pronunciamento final que, dirigido ao público, insta aos patriotas a lutar por uma felicidade que “será envidiable en el universo entero”. Nesse momento de irreversível crispação, nessa dramática hora das armas, tudo parece indicar que a imperiosa felicidade, que aguarda fora da tertúlia, só poderá ser conseguida através do caminho que leva do ditirambo fervoroso ao fragor do campo de batalha. Concluído o diálogo entre os fantasmas, o texto e suas sombras se projetam para o futuro, para enfatizar mais uma vez os desejos e as necessidades de uma ação revolucionária que seria iminente e definitiva. Deste modo, no contexto latino-americano, são textos como


o Diálogo e letrados como Monteagudo os que impõem uma reflexão sobre a genealogia, os paradoxos e os significados do póscolonialismo. A primeira metade do século XIX se oferece assim como um complexo campo de manobras para pensar tanto as heranças e as representações do passado como também os modos em que se articula a crítica e o saber na contemporaneidade. Esse pretende ser o aporte do enfoque pós-colonial aos estudos latinoamericanos, a partir de um projeto que aponta a analisar as relações entre imperialismo e conhecimento, a revelar as estratégias de subalternização disseminadas pela modernidade e a propor diferentes alternativas de ação política. Esse projeto teórico se situa em um horizonte aberto pela deconstrução dos discursos da modernidade, a crítica ao logocentrismo e a revisão das diversas funções e práticas dos colonialismos modernos, tomando como ponto de partida a expansão atlântica e a conformação dos impérios ibéricos. A partir do final do século XV, modernidade e colonialidade surgem como duas caras de um mesmo fenômeno mundial, não meramente europeu, que redefine o planeta a partir de locais de enunciação que emitem verdades, e de locais enunciados que são descritos pelo discurso científico e pelas representações do exotismo. Revisando estes cinco séculos, o projeto supõe uma interlocução direta com os chamados Estudos pós-coloniais (que, principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos, se consolidam nas últimas décadas do século XX), uma crítica aos paradigmas universalizantes e à configuração e difusão do conhecimento em meios acadêmicos hegemônicos, e uma profunda releitura do corpus colonial em tempos de globalização. Como se sabe, o termo “pós-colonial” está longe de significar a mesma coisa para aqueles que o invocam, ou o rejeitam, para analisar as situações latino-americanas. Aqueles que questionam sua utilidade, como Hugo Achugar, denunciam a sua falta de pertinência para entender processos históricos muito diferentes daqueles ocorridos em outras regiões do planeta e criticam seu caráter impostado, como se fosse uma nova importação de uma corrente que surge a partir de interesses específicos da academia norte-


americana.[4] Outros apontam a importância de pensar os aspectos que estes estudos impõem para a reflexão, e ampliam a noção, como Walter Mignolo[5] aludindo a um “pós-ocidentalismo”, ou como Alberto Moreiras[6] ao anunciar um “pós-latino-americanismo”, que seriam mais adequados para discutir o passado e presente latinoamericanos. Contudo, mesmo estas posições diversas estão balizadas por matizes que certamente impedem simplificar um debate que é muito mais complexo. Recentes estudos que problematizam estes possíveis antagonismos, tais como Coloniality at large. Latin America and the Postcolonial debate (2008)[7] demonstram a importância e a vitalidade que estas discussões têm para enunciar o mundo contemporâneo. O estatuto do pós-colonial enfatiza antes de tudo a necessidade de pensar nosso presente a partir dos passados coloniais, porque parte do pressuposto de que isso que Anibal Quijano define como a colonialidade do poder continua estando presente aqui e agora. Não da mesma forma, é claro, em que se manifestava na época da emancipação, nem nos anos cinquenta do século XX. Desenvolver a crítica anticolonial hoje supõe, dessa maneira, renovar o léxico político, superando os postulados do terceiro-mundismo clássico e colocando em evidência as evoluções dos sujeitos subalternos e dos seus múltiplos exercícios de resistência. Não se trata apenas de denunciar as catástrofes promovidas pelos poderes coloniais, nem de elaborar tardios discursos na esteira da teoria da dependência, mas de interrogar o estatuto epistemológico no qual estão baseados tanto os processos de dominação como os movimentos que a estes Ver, entre outros textos de Achugar, “Sobre o balbúcio teórico latinoamericano”, em Planetas sem boca. Escritos efêmeros sobre Arte, Cultura e Literatura. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

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5 Ver Mignolo, Walter. Histórias locais/projetos globais. Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

6 Moreiras, Alberto. A exaustão da diferença. A política dos estudos culturais latino-americanos. Belo Horizonte: UFMG, 2001.

Moraña, Mabel, Dussel, Enrique, Jáuregui, Carlos (org.). Coloniality at large. Latin America and the Postcolonial debate. Duke: Duke University Press, 2008. 7


se opuseram. As narrativas que a partir dos anos quarenta do século XX acompanham e fundamentam a luta pela independência dos territórios situados sob a égide dos imperialismos europeus enfatizam o fortalecimento das identidades regionais e denunciam as estruturas de opressão que tinham criado a marginalização das populações nativas e o definitivo fracasso das políticas impulsionadas pelas metrópoles, baseadas na exploração indiscriminada dos recursos humanos e naturais e nas desigualdades de todo tipo inerentes ao sistema de dominação. Discriminação, apartheid social e dependência econômica eram os males a serem corrigidos pela revolução e pela autonomia de novas nações que, quando livres do jugo das tiranias estrangeiras, poderiam finalmente aceder a uma modernidade progressiva, lineal e redentora que as mazelas da ocupação tinham obliterado. Mas os estudos pós-coloniais (e penso aqui em Spivak, por exemplo) enfatizam que essa visão, que rege a descolonização da segunda metade do século XX, estava presa da mesma prática totalizante que tinha legitimado o colonialismo. Essas narrativas acabam reproduzindo especularmente um discurso salvacionista (vinculado às noções de atraso e reparação) que, como afirma Santiago CastroGómez (1998) em relação à América Latina, “refuerza el sistema binario de categorizaciones vigente en los aparatos metropolitanos de producción del saber”.[8] Assim, no caso do Diálogo de Monteagudo, postular uma exterioridade baseada na dicotomia entre opressores e oprimidos pode ser útil para desmontar os discursos e as práticas sobre as colônias produzidos pelos saberes imperiais, mas nada diz respeito às estratégias de subalternização emanadas das próprias elites americanas. Narrativas como essas homogeneizam e simplificam a densidade dos atores sociais envolvidos, subsumem as diferenças dentro de apenas duas categorias (os invasores/os invadidos; desenvolvidos/subdesenvolvidos, etc.), e se erigem como representações fiéis da voz da nação, sem discutir o verdadeiro estatuto de objetos de conhecimento derivados dos mesmos Nestes parágrafos finais, acompanhamos as reflexões deste ensaio de CastroGómez, que apresenta uma discussão muito mais aprofundada sobre as teorias pós-coloniais e o leque de problemas que levantam.


mecanismos de alteridade e marginalização que combatem. Deste modo, legitimam a violência epistêmica que oblitera a diferença no momento mesmo em que a nomeia e a pretende redimir. Os movimentos emancipatórios que no século XIX desmembram definitivamente o regime espanhol foram promovidos pelas elites criollas, que se definiram como as encarregadas naturais de postular a hora do americanismo e de conclamar os benefícios da liberdade. Como no Diálogo de Monteagudo, o sucesso da luta parecia depender da postulação de um antagonismo transparente, fácil de compreender e capaz de mobilizar eficazmente as vontades patrióticas. Mas quando a guerra acaba e os espanhóis são finalmente expulsos, em geral os projetos de nação que vão se configurando entre anarquias e disputas acabam espelhando categorizações semelhantes às que regiam em tempos coloniais. A noção de “pureza de sangue”, tão importante no século XVIII na catalogação das castas e na definição da plebe como ameaça e exemplo de decomposição social, mantém sua vigência nos discursos que continuam considerando os indígenas, os não letrados, os mestiços, os gauchos, os negros escravos e libertos, não como elementos fundamentais na constituição nacional, mas como exemplos dessa barbárie que a civilização tinha a missão de domesticar e disciplinar para atingir plenamente as quimeras da modernização. Na progressiva consolidação dos pactos neocoloniais que definem as evoluções históricas das nascentes repúblicas hispanoamericanas como paraísos da monocultura e da dependência, aquela dicotomia dos tempos de Monteagudo seria traduzida na célebre fórmula sarmientina que servirá de guia e de programa de governo a ser seguido durante todo o século XIX. Assim, os “estudos pós-coloniais” (entendidos como categoria altamente heterogênea e como um dos marcos de convergência na constelação formada pelos estudos culturais, os estudos subalternos, pelo pós-latino-americanismo e as investigações sobre o pensamento liminar) elaboram um arsenal teórico que nos alerta sobre os mecanismos da colonialidade, os paradoxos da modernidade e as falácias contidas nos projetos de nação hispano-americanos, mas também sobre as possibilidades de emergência de outras vozes que


iludem as armadilhas da representação e conseguem se manifestar e adquirir visibilidade. Um arsenal que permite, neste momento marcado pelos bicentenários, gerar outras interpretações do passado e repensar as funções desse conjunto de saberes e interpretações sobre nós mesmos que nos acompanham, nos assediam e nos interrogam desde muito antes que Monteagudo evocasse as incertas sombras que assombravam os tempos da emancipação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Altuna, Elena. “Un letrado de la emancipación: Bernardo de Monteagudo”, em Andes, Revista de la Universidad Nacional de Salta, 13, 2002, pp. 18-30. Castro-Gómez, Santiago. “Latinoamericanismo, Modernidad, Globalización. Prolegómenos a una crítica poscolonial de la razón” (1998). Disponível no site “Proyecto ensayo hispánico”, http://www.ensayistas.org/critica/teoria/castro/castroG. htm. Flores Galindo, Alberto. Buscando un Inca: Identidad y utopía en los Andes. La Habana: Ediciones Casa de Las Américas, 1986. Monteagudo, Bernardo de. Diálogo entre Atahualpa y Fernando VII en los Campos Eliseos, em Pensamiento político de la emancipación (1790-1825) I., em Romero, José Luis; Romero Luis Alberto (comp.) Pensamiento político de la emancipación (1790-1825) I. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1985, pp. 64-71. Viñas, David. “Moreno. Entre la máscara y el don”, em Página 12, Revista aniversario Página/3, junho de 1990.


O cOnflitO árabe-israelense, em A mulher foge, de david GrOssman Berta Waldman[1] “A morte de um homem é uma tragédia, mas a morte de milhões de homens é apenas uma estatística.” J. Stalin

As palavras “iminência” e “ameaça” têm origem próxima; elas apontam para algo que está em suspensão. Algo vai ocorrer, pode ocorrer, mas não se sabe quando, como, o quê. A iminência contém sempre ameaça, pois implica a incógnita relacionada ao tempo futuro. É a iminência em estado bruto, potente, rondando a vida das personagens, o lugar em que o escritor israelense David Grossman se detém em grande parte de seu recém lançado romance A mulher foge[2] (O título em hebraico - Ishá borahat mibesorá –em tradução literal seria “Mulher foge da notícia”). Diria até que é sobre o território da ameaça que se constrói o romance. O sentido da palavra “besorá” oscila de boa para má notícia, embora prevaleça o primeiro sentido.[3] O termo é frequente tanto na Bíblia hebraica como na literatura em geral. 1 Berta Waldman é professora do Programa de Pós-Graduação em Língua Hebráica, Literatura e Cultura Judaicas da Universidade de São Paulo (USP).

2 David Gossman, A mulher foge. Trad. George Schlesinger. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Da raiz bs΄r – tornar público, dar ( boas) notícias, pregar, mostrar. Os termos derivados são: bas΄ar- carne; bes΄orah – notícia. Trata-se de uma raiz comum nas línguas semíticas, encontrada no acadiano, no árabe, no ugarítico, no etíope, etc. O sentido da raiz é trazer novas, especialmente relativas a encontros militares. Normalmente são boas novas, mas não necessariamente (1Sm 4:17, 2 Sm 18:20 onde tob é acrescentado de modo específico ). Segundo o dicionário sapir, besora é: 1. notícia comovente – geralmente que traz alegria; 2. prêmio por uma boa notícia (ambas concepções são bíblicas) – besorat iyov – notícia trágica; ish besorá – pessoa que traz uma notícia que envolve alegria. Segundo o dicionário eletrônico rav milim, besora é – notícia importante que transmitimos ou recebemos, principalmente alegre; boas notícias. Habessorá – é o Evangelho, doutrina de Jesus trazida nos livros do Evangelho. 3


Na tradição bíblica, o Deus de Israel é também um Deus da guerra, que concede vitória a seu povo e derrota aos inimigos. Mas quando os termos da aliança com Deus deixam de ser cumpridos, Israel é entregue a invasores hostis. Fora da moldura bíblica e depois de um longo exílio, o Estado de Israel se funda como um estado judeu em 1948. País multicultural, suas bases foram e são constituídas por diversos grupos de imigrantes judeus de diferentes origens nacionais, étnicas e linguísticas. Israel é um país nacional judaico e a minoria árabe, que corresponde a cerca de 19,7 % da população israelense[4] representa uma minoria político-nacional, além de étnica (o Israel Central Bureau of Statistics inclui no senso os árabes que não têm cidadania isralelense, que totalizam 250.000 em Jerusalém Oriental e 19.000 drusos nas Colinas de Golan). Com base nesse modelo de fundação, os árabes israelenses, como etnia, estão em constante atrito com o país em que vivem por não poderem compartilhar da identidade nacional judaica e do consenso nacional em temas essenciais para a existência do Estado de Israel. Como se sabe, o Estado se funda num território em que árabes e judeus conviviam sob o Mandato Britânico e os árabes, ao não aceitar a resolução da ONU( Resolução das Nações Unidas da Assembléia Geral 181, em novembro de 1947) relacionada à divisão do território, propiciam a deflagração da Guerra de 1948, que se iniciou com a invasão das tropas do Líbano, Síria, Iraque, Egito, Transjordânia, Arábia Saudita e Iêmen. Israel declara sua independência e agrega parte do território que constituiria o Estado Palestino, e um grande número de residentes palestinos deixa esses teritórios ou é deles expulso. Cerca de 156.000 árabes permaneceram em Israel e os árabes israelenses são descendentes dessa população. A notícia (besorá) de guerra a que o título do romance se refere Segundo o dicionário even shoshan, besorá, em ugarítico, bassrát; em aramaico, bushra, bishara. 1. notícia geralmente boa (Samuel 2 18, 25; mishná - massechet brachot 9, 2; Bialik , Kumi) 2. prêmio por boa notícia (Samuel 2 4, 19) besorat iyov Lit. Moderna– (com base nas duras notícias que Jó recebeu) expressão usada para notícias trágicas (Hazaz, Daltot 201; Taberski, Lapidim 225). Ish besorá – pessoa que traz uma notícia alvissareira (Samuel 2 18, 20); yom besora (Reis 2 7, 9) dia em que chegou uma boa notícia. 4

Israeli Central Bureau of Statisctics, 2007.


tem a ver com os campos de batalha bíblicos, mas também e principalmente com conflitos mais recentes. Para se proteger do pensamento onipotente e simplista que classifica os opositores árabes e israelenses em bons e maus, engessando em estereótipos sem saída o drama de uma região conflagrada, e também para traduzir a discussão política em literatura, Grossman arma um painel da sociedade israelense através do processo de singularização[5], isto é, a massa de idéias abstratas que compõe o pensamento político e o pensamento filosófico ganha concretude nos laços de amizade, amor e ódio, que unem e separam os personagens em sua trajetória[6]. É no âmbito de uma família e suas ramificações que se tramam os traçados do destino de personagens nomeadas que amam, sofrem, se frustram, morrem, e é a partir delas que vão se delineando também as reflexões político-filosóficas que lentamente desenham um estágio do conflito arábe-israelense. A história, entretanto, nunca é o cenário; ela permeia a narrativa, a mente das personagens e a tessitura moral do livro. Como na Bíblia hebraica, é dentro do grupo familiar que os problemas se armam e desarmam. No romance, a família em foco se dispersa com a separação de marido e mulher, mas ainda assim gira como uma elipse, sem se desfazer. Orah é a protagonista do romance, secundada por Avram. Seus nomes são primordiais: Avram é o nome do patriarca do judaísmo antes da aliança com Deus, e Orah é uma derivação feminina de “luz” ( do hebraico Or), o primeiro elemento criado por Deus no livro Gênesis. Por temer receber a notícia da morte do filho mais moço, Ofer, 5 No ensaio “Individual Language and Mass Language” (In Writing in the Dark.[ Translated from Hebrew by Jesica Cohen] New York: Farrar, Straus and Giroux, 2008, p.85) David Grossman refere-se àquilo que liga o escritor à literatura – “… the secret is that literature can repeatedly redeem for us the tragedy of the one from the statistics of the millions. The one about whom the story is written, and the one who reads the story.”

No artigo “Um mundo cada vez mais estreito” ( Jornal O Estado de São Paulo. Caderno Aliás, J3, 20 de maio de 2007), David Grossman trata do estreitamento da linguagem num país em guerra permanente. A linguagem transforma-se num emaranhado de clichês que desembocam numa “ dicotomia absoluta, falaciosa e sufocante.” A complexidade humana fica reduzida a uma divisão de papéis: ser vítima ou agressor, “sem ter uma terceira alternativa, mais humana.”

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que se apresentou como voluntário para uma arriscada operação do exército israelense em represália a um dos atentados da região, a mãe decide passar um tempo caminhando pela Galiléia, norte de Israel, em companhia de Avram, amigo e ex-amante. Trata-se de uma jornada programada para ter sido feita com seu filho Ofer que, na última hora, comunica à mãe sua adesão militar. Ela então leva consigo Avram e a caminhada sem rumo e aleatória traz à tona a memória de uma amizade, amores, laços familiares e o entendimento do que ocorreu com cada um dos componentes dessa história. Orah equilibra-se no vértice de um triângulo amoroso ladeado por Avram e Ilan. Os três se conheceram ainda jovens, num período em que, doentes, estavam internados no setor de isolamento de um hospital. Ligada amorosamente aos dois, Orah casa-se com Ilan, mas não abdica da amizade com Avram que, na verdade, é o pai de seu segundo filho, Ofer. Por outro lado, os dois homens são muito amigos um do outro, ainda que opostos. A opção de Orah por se casar com Ilan, entretanto, mantém viva a potencialidade amorosa no outro extremo do triângulo, fazendo a amizade resvalar para o amor e viceversa. Também no triângulo amoroso o autor lida com uma relação ambígua, não definida de modo absoluto, pois a escolha de um, não tira de cena as possibilidades amorosas com o outro. Assim, inclusive a triangulação amorosa se insere no território da “iminência”, aberta para o que está por vir. No período em que Avram foi convocado pelo exército e severamente torturado pelos egípcios na guerra de Yom Kipur, em 1973, a consequência dessa experiência, para ele, foi viver a partir daí uma vida de abandono, negação, frustração e niilismo. Orah e Ilan se revezam para cuidar dele. Desmemoriado, aniquilado física e emocionalmente e impossibilitado de relacionar-se sexualmente com mulher, Orah ajuda-o a superar o problema, mantendo uma relação com ele, e engravida. Tem o filho que é criado por Ilan, que retorna ao casamento. Depois de crescidos os dois filhos, o casal se divorcia, restando a Orah ser a mãe de dois rapazes em Israel, país em que os jovens servem o exército durante três anos e, para eles, morrer com uma bomba é um dever banal, diante da opção bem pior


de que essa bomba exploda dentro de um ônibus, matando a muitos. Numa situação de conflito duradouro, como conciliar as preocupações individuais de uma mãe que, afinal, prefere a companhia do filho vivo a perdê-lo em missão patriótica? Como manter uma luta pacifista, se aqueles com quem se está empenhado em fazer a paz são os mesmos que podem atirar contra si e contra seus filhos? Orah, cujo nome alude à luz, não consegue encontrar em si a luz da razão necessária para entender essa demanda da realidade e foge. A luz que carrega, entretanto, ilumina os caminhos tortuosos da subjetividade. Grande parte do romance é dedicado à fuga, e é aí, nesse território descentrado, que se recompõem e se apresentam os episódios da narrativa antes lançados no vazio. É aí, ainda, que Orah revela sua força, pois enfrenta a guerra e o medo, enxerga as divisões internas de Israel e as suas próprias; o casamento e a separação; o passado e a recuperação de um fio de sentido para a vida, através do encontro com a natureza e a recuperação do diálogo. Os temas das conversas entre Orah e Avram são fundamentais, pois eles não temem chegar ao limite de si mesmos, enquanto atingem fora de si os limites geográficos da terra de Israel. É nesse limiar que Avram e Orah se descobrem a si e ao outro e à sua condição de israelenses exilados de modo irreversível. Viver em Israel é viver em exílio permanente, pois se está sempre fora da normalidade, sempre na iminência de acontecimentos violentos. É também no fim da terra conhecida, na fronteira com o inimigo, que se podem restaurar alguns caminhos há muito bloqueados. “Andavam a esmo, nesta ou naquela direção, e ela se perguntava se ele compreendia que estavam se desorientando intencionalmente, de modo que não pudessem encontrar o caminho de volta.” (p.156)

Na fuga de Orah e Avram, há o deslocamento do espaço em que viviam e uma suspensão do tempo presente, projetando-se a volta ao passado. Avram não conhece seu filho – Ofer – e Orah apresenta-o contando com detalhes sua história desde o dia do nascimento até


o momento em que é convocado para a missão no exército, na qual ele corre riscos e a mãe teme por sua morte. Ao apresentá-lo, vêm a reboque todos os membros da família, pois só é possível contar alguém em interação com o outro. Orah torna a privilegiar Avram no triângulo amoroso e é ele o seu interlocutor na maior parte do romance. A ele ela relata o seu modo de vida com o marido, o nascimento dos filhos, o modo de ser de cada um, com ênfase em Ofer, sua separação, além de outras revelações, como aquela que informa que Ilan, pondo em risco a própria vida, foi atrás de Avram na zona de combate para salvá-lo, quando este foi preso e torturado pelos egípcios. O relato de Orah serve para trazer ao leitor as partes do romance que ficaram à sombra. Ao exílio de um espaço e de um tempo que se comprimem, sobrepõe-se o caminho na natureza, espécie de rota de fuga dos precipícios e borrascas da mente. Assim cria-se uma tensão entre o que se representa e o que fica velado, entre o articulado e o silenciado. Algo fica de fora, em suspenso, para abrir caminho para o que se está construindo nessa (romântica?) fuga à natureza. Fora dos antigos parâmetros, a caminhada pela Galiléia também se insere no registro da “iminência”; sem cálculo, ela se faz ao acaso; a volta ao passado que se aciona, entretanto, tem o seu roteiro arqueológico, e abre uma fresta para o leitor enxergar o amadurecimento do par de amigos/amantes, a luta que travam para não deixar corromper os seus corações, não amesquinhar os sentimentos e, sem ilusões, entender o que se passou e passa com eles e entre eles.

Se é verdade que a parte da caminhada na Galiléia se alonga em demasia, constituindo mesmo uma falha do romance, a conclusão vai sendo adiada e apenas se esboça um fim; praticamente o livro não conclui. O silêncio final (não se sabe se Ofer morreu ou não, por exemplo; se Orah e Avram ficarão juntos, etc), alude ao que não se sabe, ao que não dá para dizer, e também indica que não importa fechar o enredo, lembrando que apenas a morte é o grande fecho.


O que define esse modo de formulação estética é uma espécie de unidade entre o pensar e o fazer: o escritor não sabe a solução senão quando termina a obra – ela é a resposta à indagação que a fez nascer. Se o escritor já soubesse a resposta antes de completar a obra, ela seria desnecessária. Neste caso, a indagação sobre a linha sinuosa da vida não pede uma resposta completa. Ele está voltando à vida [a fala de Orah refere-se à recuperação de Avram], ela diz a si mesma em voz alta, esta caminhada simplesmente o está trazendo de volta para a vida. E o que isso tem a ver comigo? E que lugar eu vou ter na vida dele quando a viagem terminar, se é que terei algum?

É a morte que marca o livro desde o início; Adah, a melhor amiga de Orah, morre num acidente ainda jovem. A presença da amiga morta acompanha Orah que dá ao seu primeiro filho o nome Adam, um eco de Adah. É o medo da morte do filho o responsável pela fuga de Orah. A morte não escolhe idades. Atinge velhos, jovens, crianças. Também não existe idade para os personagens fantasiarem a própria a morte por atentado. A vizinhança com os árabes em geral e com os palestinos, em particular, e a situação de conflito da qual não se consegue sair, compõem o imaginário de todos e de cada um. Avram adolescente, internado no hospital, conta a Orah uma de suas histórias inventadas: um menino como ele, deitado num hospital, sobe no telhado levando fósforos consigo. No meio da escuridão faz sinais para os aviões do inimigo, pois ele quer que eles venham e o explodam. (cf. pp. 49 e 50) Ele não aguenta viver na expectativa de que essa possibilidade se realize. Para Ofer criança, ainda, a descoberta da desproporção entre israelenses e árabes, e a posição geográfica do Estado de Israel entre tantos inimigos deixa-o assustado e inconformado. Mas nos dois exemplos trata-se de árabes genéricos que soam na tecla do estereótipo do inimigo. É distinto o modo como Sammy é apresentado. Árabe israelense, motorista da família há vinte e um anos, ele é um personagem que interage com os demais, estabelecendo laços de amizade. Ele era visto “quase como da família”(p.55), o que


equivale dizer que ele não era da família. Ele é o “outro”, que Orah estima e se empenha em aceitar. Assim, os dois trocam confidências e ele lhe conta dados de seus laços familiares, as relações complexas entre os diversos clãs em Abu Gosh, onde vive, as intrigas no conselho municipal da região, e também sobre a mulher que amava desde quando tinha 15 anos, mas com a qual não se casou, pois foi obrigado a desposar uma prima, Inaám, com quem teve quatro filhos (p.59). Sammy partilha com muita proximidade da vida da família. Foi ele que trouxe Ofer, bebê recém nascido, da maternidade para casa. Era ele o responsável por levar e trazer as crianças da escola. Aos filhos já adolescente, ele ia na madrugada buscá-los das baladas e festas. E agora, é ele que conduz, sério, insultado e a contragosto, Ofer e a mãe para a região do Monte Guilboa, ponto de encontro dos militares convocados para uma ação de emergência contra os palestinos. A estreita amizade entre o árabe e a família israelense sinaliza para o final de uma história de antagonismos que poderia ser positiva. Por outro lado, se o final não for positivo e a situação se inverter e ela, Orah, estiver no lugar dele, Sammy, e ele no lugar dela? Essa possibilidade indesejada está à espreita no pensamento das personagens (cf. p. 61). O motorista árabe era tão adaptado a Israel que passava por israelense. Os meninos só se deram conta de que o “seu Sammy” era árabe, uma vez que ele conduziu a família ao aeroporto para buscar o pai- Ilan -que voltava de viagem e, na barreira da entrada, os guardas levaram-no por meia hora e quando ele voltou, pálido e banhado de suor, recusou-se a contar o que havia sucedido. Simplesmente disse: …eles ficaram o tempo todo dizendo que eu sou um árabe de merda, e eu dizia, vocês podem estar jogando merda em mim, mas isso não faz de mim um árabe de merda. (p.63)

Por outro lado, Sammy era capaz de descartar o sotaque israelense que o identificava como “ um de nós” e passar a usar um arabismo proposital, que se insinuava em sua fala para se opor a Orah, como ocorre nessa passagem:


Vocês, despejou ele pelo espelho retrovisor, vocês estão sempre procurando uma história em cada coisa! Seja para um programa de telefison ou um filme nos bestivais de vocês, não é mesmo? Orah se encolheu como se tivesse levado um tapa. “Vocês”, foi dessa forma que ele a tratou, “bestivais”, ele disse, descarregando contra ela um sotaque de palestinos dos territórios, que ele sempre ridicularizava…(p. 110)

O que está em jogo, aqui, são várias identidades culturais relacionadas a pertencimentos múltiplos, simultâneos e também conflitantes, obrigando o sujeito a fazer escolhas, como ocorre com Sammy, quando um grupo de colonizadores, que tinha planejado explodir um carro bomba ao lado de uma escola em Jerusalém Oriental, foi pego e um deles descreveu na televisão como tinham “ajeitado” o carro, por fora e por dentro, para ficar de acordo com “ o gosto árabe”. Numa viagem de rotina, Orah nota o revestimento novo do carro de Sammy, que a observa e comenta: Orah não acha bonito, não é mesmo? Ela disse que, de forma geral, não apreciava muito revestimentos de pelo animal, nem mesmo de imitações de pelo, e ele riu: não gosta, para você certamente isto é gosto de árabe, não é? (p.68)

Como se vê, a identidade define-se de acordo com o papel que se assume numa rede ininterrupta de relações e jogos de poder.[7] A consciência de ser um sujeito híbrido provoca o sentimento culposo de dupla lealdade. Quando os árabes estão sendo atacados, Sammy se solidariza com eles, mas ele precisa dos israelenses para sobreviver. Do outro lado, impregnado pela idéia de defesa da pátria, instado pela mãe a ir passear ao menos dois dias na Galiléia antes de se apresentar no exército, Ofer, já homem e consciente da situação em que vive, lhe responde: “mãe, não é uma brincadeira, é uma guerra” (p.72) Como poderia ele permanecer em casa ou passear pela Galiléia com a mãe, enquanto todos seus companheiros estivessem em combate? Cf. Stuart Hall. A identidade cultural na pós- modernidade. Rio de Janeiro: DP&A editora. 2005, p. 21.

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Durante os três anos que durou seu alistamento, ele tinha estado em barreiras e patrulhas, levando pedradas de garotos nas aldeias palestinas e nos assentamentos. Como não voltar para o exército, quando todos estão indo? Há uma medida ética que se mantém no comportamento tanto do árabe, como do jovem israelense; dos dois lados, a solidariedade é com os seus pares, conforme se pode observar nessa passagem: Sammy ligou o rádio. Galei Tzahal – a emissora do exército-, em edição extra, transmitia um discurso do primeiro ministro. O governo de Israel está determinado a eliminar a ameaça mortal de seus inimigos, dizia ele, e nestes momentos somos obrigados a lembrar que na luta diante de um inimigo que não tem escrúpulos ou critérios morais, nós temos o direito, para proteger nossos filhos – Sammy girou rapidamente o botão de sintonia, mudando para uma emissoria árabe cujo locutor lia um apaixonado manifesto sobre um fundo de música militar.(pp. 147-148)

Orah e Sammy estão no interior do automóvel e ela pede que ele mude de estação e ele não obedece. Segue-se uma projeção do interior de Orah, dada por um discurso indireto livre: Sua garganta latejava e queimava de tão seca, e a idéia de que acabaria por vencê-lo, de que o faria dobrar-se à sua vontade, não lhe era menos difícil do que a vontade de o subjugar, e oxalá pudesse parar aqui, nesse exato momento, e também apagar tudo, tudo que acontecera hoje, você simplesmente saiu de si, ela pensou e, afinal, o que foi que ele fez para que você o atormente desse jeito, o que foi que ele fez, diga, além de existir? (p.149)

Já a escrita do autor procura contemplar os dois lados alternados, situando o conflito num lugar de refúgio onde se permanece ou dele se sai, como a fita de Möebius que traça um circuito infindável de retorno. O ciclo escrita e mundo acolhe a vida recuperando-a no narrado. Efetua-se uma triagem do material da realidade, reordena-se seu encadeamento e sua cronologia para restituir o desvelamento de


uma verdade que só vem à tona na forma da ficção. É complexa a escrita deste romance construído em diferentes escalas. Ele vai do texto sincrônico que limita a perspectiva do relato, pois é escrito ao mesmo tempo da ocorrência, ao texto com uma dobra a mais que se volta à memória, através da qual se recupera um trajeto de vida em perspectiva. Nos dois casos, os narradores nunca são unívocos. O narrador em terceira pessoa intercala em sua fala a das personagens, orquestrando numa multiplicidade de vozes o discurso indireto livre; por outro lado, o discurso das personagens em primeira pessoa intercala relatos em terceira pessoa, numa imagem invertida em relação ao tipo de escrita anterior. Nos dois casos, há sempre mais de uma voz. É importante ressaltar a estrutura linguística do romance, pois o foco narrativo funciona sempre como o signo algébrico de uma intenção, já que a imagem de um determinado tipo de ordem é insinuada ao leitor que se defronta com a narrativa em teceira ou primeira pessoa. Marcado pela convenção, o uso da terceira pessoa manifesta formalmente o fato romanesco, a segurança de uma fabulação verossímil. Numa tentativa de destruir a convenção, mas criando outra, a primeira pessoa envia a narrativa ao falso natural de uma confidência. Ambas as formas são signos de um pacto inteligível entre leitor e autor[8]. No caso da escrita do romance em questão, o jogo dialógico pressupõe a voz de sujeitos intercambiantes, rompendo uma possível fala autoritária que seria aquela que mantém em blocos estanques e distantes um do outro o discurso do narrador e o das personagens. Essa dialogia aponta para a importância do diálogo entre as personagens e, por extensão, entre os grupos em conflito. A palavra “paz” mantém-se elíptica no relato, embora ela esteja sempre no seu horizonte. Mas o que se quer dizer com essa palavra? Ausência de conflito? Esquecimento? Perdão? Ou cansaço, exaustão, esvaziamento do rancor? Se paz é vitória, é a vitória de um lado. É isso que paz significa para uns, enquanto para os outros, paz quer Cf. Roland Barthes, degré zéro de l’écriture (Paris, Seuil, 1972, pp. 29 e segs.)

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dizer derrota. Em relação ao conflito, o que uns entendem como luta contra o colonialismo, outros entendem como terrorismo. A Independência de Israel, comemorada na data da fundação do estado pelos israelenses, é referida pelos árabes como Nakba (A destruição) Enquanto uns dizem que dão, outros entendem que tomam, como se pode observar na fala de um homem com quem Orah e Avram cruzam em sua jornada: “... e malditos sejam os árabes, tudo que demos a eles nunca é o bastante, eles só pensam em nos matar, Esaú odeia Jacó”. (p.187)

Mais “mostrando” que “contando”, esse romance polifônico inicia com os três adolescentes Orah, Avram e Ilan no Hospital, durante a Guerra dos Seis Dias. As falas deles são diretas, com pouca participação de um narrador de apoio. O mundo desde cedo tem um rosto feroz e a juventude aparece como uma crua iniciação aos olhos maravilhados e intrépidos dos três adolescentes Seu aprendizado será um treino para suportar a brutalidade do mundo. Cabe ao leitor ir juntando os dados da apresentação cênica e puxar os fios para a outra parte que virá, onde prepondera o discurso em terceira pessoa, que acolhe o discurso das personagens em geral. Passaram-se trinta e cinco anos, Avram foi prisioneiro na Guerra do Egito, enquanto Ofer se apresenta como voluntário para lutar contra a Segunda Intifada. Esta parte dura até o momento em que Orah e Avram partem para a Galiléia. Ali, o discurso é em terceira pessoa onisciente seletiva, isto é, o narrador enxerga dentro dos dois personagens escolhidos, permitindo, ainda, a interferência de seus discursos. Nessa última parte, há um desdobramento que gera dois outros autores: Avram e Orah, dobrando narrativas dentro da narrativa maior. Orah escreve no diário partes da história que conta a Avram, e este conta que também escreve. Estamos todos enredados em fios múltiplos e a expectativa é a de que a ficção redima, proteja Ofer de uma morte pressentida. Emissora, Orah recusa o papel de receptora; se não fosse encontrada, a comissão do exército que daria a notícia da morte de seu filho Ofer, teria que calar e a impossibilidade de transmissão


seria o fator de proteção de seu filho. Contar a morte equivaleria a dar-lhe concretude. O movimento da protagonista é o de impedir que essa notícia se efetive pela falta do interlocutor. Se é verdada que a paz entre duas partes em conflito não ocorre se uma delas não concordar ou se recusar a discutir o assunto, o mesmo não acontece com a morte, destino de todos nós. No início da viagem, Orah tem um pesadelo, em que três homens fardados vão a sua casa, batem na porta “e o oficial mais velho se encosta nela com todo seu peso como se estivesse considerando seriamente derrubá-la e apresentar a notícia à força, custe o que custar. Ele olha para seus colegas desorientado, pois estava claro que algo ali estava em desacordo com as normas do ritual, e que sua vontade e interesse profisisonal, sua vontade essencialmente lógica de dar a notícia e de livar-se dela, vomitá-la de dentro e, acima de tudo, transferi-la o mais rapidamente possível a quem de direito segundo a lei e o destino, isto é, em tal-e-tal hora em tal-e-tal lugar o seu filho Ofer, que estava em missão numa operação – essa vontade deles aqui se depara com uma outra força totalmente inesperada, de igual intensidade, que era a absoluta não vontade de Orah de receber das mãos deles a notícia, ou de a acomodar de qualquer maneira, ou ao menos de reconhecer que a notícia era para ela.” (pp 158159)

O pesadelo dialoga com o conto de Kafka “Uma mensagem Imperial”, em que o Imperador, no leito de morte, segreda a seu súdito uma mensagem que deveria chegar ao seu destino, o que não ocorre, pois o narrador é um terceiro que desconhece o teor da mensagem. No pesadelo, o receptor recusa-se a receber a mensagem. No conto, a mensagem não pode chegar, porque ela é desconhecida. O sentimento de absurdo relaciona os dois relatos, mas a vigília recoloca a personagem em outro patamar: na natureza. Aos seus olhos sempre há uma paisagem, o dorso de colinas, uma cor do campo, uma cachoeira, que se liga na memória às descobertas da infância e representa o momento perfeito, fora do tempo e da história. Junto com ele, porém, surge outro elemento: o vestígio de um fato completo e irrevogável. Um ato de violência, um abandono, um gesto de desprezo, uma lembrança que não pode ser apagada.


Orah quer escapar das responsabilidades da história. Ela crê, por exemplo, que o conflito árabe- israelense não lhe diz respeito. Mas a guerra povoa toda parte e sua fuga, neste sentido, é ilusória. Num plano mais amplo, entretanto, há um ganho na fuga, porque ela constrói uma interlocução profunda com Avram e isso lhe traz força e entendimento do mundo e de si. Bem à sua frente, entre dois rochedos inclinados, vislumbra-se uma faixa verde do morro banhada de sol, e eles dois ali, imersos nas sombras, sombras demais./.../ Ele está meio adormecido, Avram murmura, não sei por quê, não entendo o fim, e aí você vem para mim, e pede que eu ajude você. Sim, ela sussurra. E nós dois temos que levá-lo a algum lugar, diz Avram, não sei para onde, não entendo por quê. E nós o seguramos juntos, entre nós, o tempo todo. Ele parece que precisa que nós dois o levemos até lá. Aonde? Não sei. O que há lá? Não sei. É bom? Orah sussurra, desesperada. Lá é bom? Eu não sei. (pp. 642-643)

Pode-se depreende deste final que embora os movimentos do romance apontem para a aspiração de uma vitória contra a negatividade, para uma conquista prática em que a morte fique afastada e se transformem os termos do conflito árabe-israelense, isso está fora do alcance da literatura. Esta consegue ampliar a consciência do leitor, sensibilizá-lo e fazê-lo entender coisas só possíveis de serem apreendidas pela arte. A rendição à objetividade, fenômeno histórico do pós guerra, surge num período em que falha, no homem, a confiança para direcionar o curso das coisas, não por ele ser o sobrevivente de uma derrota pungente, mas, antes, por ver que os conflitos prosseguem por força própria e integram um conjunto tão conplexo que o esforço mais heroico só pode ser aplicado à tentativa de compreendê-lo, e pensar em saídas e soluções.


No romance, é o fluxo da subjetividade que prorrompe e parece querer inundar tudo, contestar a cidadania do homem num mundo apenas objetivo para fazê-lo navegar no rio ininterrupto do monólogo interior. O escritor se precipita na cratera da alteridade. É o diálogo, a interlocução, que pode oferecer algum tipo de saída e propiciar o verdadeiro engajamento histórico. Não é possível permanecer fora da história. Quanto mais o mundo se configura aos nossos olhos como insensato e feroz, mais o homem tem que fazer o que está ao seu alcance para acrescentar à realidade sua marca humana. A realidade da violência, da explosão, do atentado, da barbárie de nosso século está na mente de todos. O autor não é partidário da violência, mas incorpora esse cenário de massacre como o cenário natural do istarelense contemporâneo. As perguntas que Tolstói e Dostoievski se colocaram quanto ao mal de seu mundo que parecia à espera de uma recomeço, tornaramse bem mais angustiantes desde que o caminho da civilização desembocou numa sequência de massacres que não faz menção de chegar ao fim. O humanismo de nosso tempo teve que enfrentar o desafio do terror que lhe foi lançado pelos bombardeios atômicos, os campos de concentração, as câmaras de tortura que ainda hoje existem em diferentes lugares do mundo. Apesar do esforço em não fechar os olhos diande das piores imagens, com o tempo, essa postura não estará se transformando em hábito, indiferença, pobreza moral? O romance termina com os caminhantes Orah e Avram abraçados. Sopra uma brisa e com ela o aroma de za’atar se soma a outros aromas e impregnam o ar. O za’atar, condimento da comida árabe, faz parte do ar que se respira. Se a literatura não consegue dissolver os problemas da realidade, nem mesmo explicá-los, ela é um desses denominadores comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem, dialogam e aprendem aquilo que partilham como seres humanos, o que permanece em todos para além do amplo leque de diferenças que separa uns e outros. Nada defende melhor os seres vivos contra a estupidez dos preconceietos, do racismo, da xenofobia, do sectarismo


político ou religioso, ou dos nacionalismos discriminatórios, do que a comprovação constante que costuma aparecer na grande literatura: a igualdade essencial de homens e mulheres em todas as latitudes, e a injustiça representada pelo estabelecimento entre eles de formas de discriminação, sujeição ou exploração. Para completar o círculo de sua expressividade, é o leitor que rompe o circuito fechado da linguagem e outorga sentidos que, sem ele, poderiam permanecer invisíveis. É ele que completa e anima os planos do diálogo, identificando e espelhando de fora os múltiplos caminhos do romance.

*** Na contracapa da edição brasileira do livro A mulher foge[9], David Grossman conta ao leitor que começou a escrever este livro em 2003, meio ano antes do término do serviço militar de seu filho mais velho, Yonatan, e meio ano antes do alistamento de seu filho mais novo Uri. Este acompanhou o desenvolvimento do livro através da ação das personagens – “O que você armou para eles esta semana?” Era sua pergunta constante. Uri passou a maior parte de seu tempo de serviço nos territórios ocupados, em patrulhas, vigílias, emboscadas e barreiras, e compartilhava ocasionalmente suas experiências com o pai. Em 12 de agosto de 2006, nas últimas horas da segunda guerra do Líbano, Uri foi morto no sul desse país. Seu tanque foi atingido por um míssil durante o processo de resgate de outro tanque atingido. Junto com ele, morreram todos os membros da equipe que ali se encontravam. O livro já estava então escrito, mas o eco da realidade ficou impresso em seu último esboço. Assim, por caminhos obscuros, os acontecimentos ricocheteiam da realidade para a ficção. Em que medida, entretanto, a notícia da morte do filho, anteriormente divulgada pela imprensa, não funciona para alavancar a venda do Na edição israelense, o mesmo texto do autor está estampado no fecho do romance e não na quarta capa, que é assinada por Menahem Péri. 9


livro ou para buscar a adesão sentimental do leitor? Por outro lado, num romance polifônico, a voz do autor é uma voz que adiciona mais uma dobra ao relato e lhe acrescenta espessura, ainda que confirme com um exemplo da realidade que a literatura não salva, como todos os narradores deste romance tanto desejaram.



Révolutions: a poética de um eterno exílio? reflexões sobre le clezio Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha[1] “... o homem deve escolher entre ser história e ter história, entre identificar-se com a própria situação ou dela fazer um trâmite para atingir a origem, entre renunciar à verdade ou dar revelação irrepetível a ela.”[2]

Révolutions, obra de Le Clézio escrita em 2003, apresenta uma nova versão da escritura poética do autor. Compartilhando com seu leitor uma perspectiva memorialística-ficcional do seu percurso pessoal - alimentado de aventuras e buscas ancestrais - o autor revolve sombras, supostas intimidades e lembranças, em um processo contínuo de deslocamento, presença, ausência e acomodações existenciais. Os vivos e os mortos, os continentes e ilhas, mares e oceanos, ontem e hoje, noite e dia, transformam-se em material de um quebra-cabeças enigmático, cuja grande lição é a busca de uma identidade reconhecida a partir dos acréscimos e lacunas desenhadas, por um lado, pelas heranças multi-étnicas e renovadas por uma individualidade sempre apaziguada pela lucidez e sensibilidade. Por outro lado, essas mesmas heranças permitem ao escritor a recusa às experiências cômodas de uma sociedade que coexiste com caladas interrogações sujeitando o homem a um existir sempre equivocado sócio- culturalmente. Partindo desses componentes ficcionais, este estudo pretende investigar as questões sócio-ideológicas-culturais que traduzem o Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha é professora do Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

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2 PAREYSON, LUIGI. Verdade e Interpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005. P. 9. Os grifos, constantes desta citação, são do próprio autor.


discurso e a dimensão identitária, deste heróico sujeito[3] – misto de narrador, protagonista, intérprete e tradutor de leituras construídas por uma sensibilidade revivida e ficcionalizada na memória e na solidão de uma cegueira iluminada mas, sempre, brotada deste emaranhado tecido multi referencial e pos-colonialista. A obra é composta de sete capítulos– “Une enfance rêvée” (Uma infância sonhada), “Rumeurs de guerre” (Rumores da guerra), “ Le bout du monde” ( O fim do mundo), “Mariage des âmes” (Casamento de almas), “Jamaica”(Jamaica); “Une frontière” (Uma fronteira), “Retour à Èbene”(Volta a Ébano) – que, ritualísticos ou iniciáticos, correspondem, na verdade, a etapas de um drama recortado e angular, da reconstrução de uma epopeia familiar e de um olhar que se constrói sob a memória do Outro. Esse Outro que, no entanto, é um Si Próprio, elemento e consistência atualizadas de um conteúdo e saga familiar, arquetípica, que preenche as identidades buscadas, substancializadas por esse processo de duplicação e diálogo. No primeiro capítulo, ao longo de, aproximadamente, 85 páginas, o leitor se depara com o personagem-escritor(?) principal, um Jean adolescente, situando sua experiência de vida a partir de uma demarcação espaço-temporal – La Katativa, “tout un monde[4]” (um mundo inteiro) – nome mágico da residência outrora grandiosa,visitada todos os dias por Jean e onde habitava Tia Catherine. Esta levava uma vida solitária e, mesmo cega, sabia, instintivamente, a hora da chegada de Jean, dando início, ou recuperando, um minucioso ritual diário, do qual faziam parte a cerimônia do chá, o “pain perdu” (pão amanhecido) e as longas histórias, lembranças de Maurice e dos 3 Ver, sobre esse aspecto, FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura: globalização, pós-modernismo, identidade. São Paulo: Studio Nobel, SESC. 1997, p. 87, que afirma:”Se a vida cotidiana se dá em torno do mundano, do ordinário, daquilo que é assumido sem o maior exame, então a vida heróica aponta para a rejeição que ela manifesta em relação a essa ordem, aplicada à vida extraordinária, que não somente ameaça a possibilidade de retorno às rotina cotidianas, como também implica por em risco a própria vida.”

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LE CLÉZIO, J-M G. Révolutions. Paris, Gallimard. 2003. p.14.

Todas as referências a esta obra, a partir desta indicação bibliográfica, serão anotadas, salvo informação contrária, pela abreviatura R. seguida do nº da página. As traduções, de minha responsabilidade, se seguirão a cada citação)


ancestrais, que se misturavam aos sabores e odores reinaugurados pela memória desvelada e revisitada de energias sempre renovadas. Nessas visitas “ritualísticas”, em um espaço mágico de aprendizagem, o personagem organiza o patrimônio do passado resgatado por Catherine que, buscando em sua inesgotável memória e em um tom quase sempre feérico ( Autrefois, à Rozillis, quand j´avais ton âge[5] ../ Há muito tempo atrás,em Rozillis,quando eu tinha a sua idade) estabelece com este personagem um contrato de confiança não somente testemunhal mas existencial, cuja senha confirma a orientação para a base de uma experiência de analogias, nas quais a temporalidade, a historicidade conduzem à rememoração mas também à consciência e à interiorização, configurando assim uma memória que ultrapassa a pre-reflexão, e devolve ao Outro uma coesão narrativa e uma coesão de vida. Elle avait choisi Jean pour lui donner sa mémoire. Elle avait des trésors inépuisables, pas seulement des mots, mais des choses ausssi, des bouts d´os, des cailloux, des pièces limées, des scories qu´elle extrayait du fond de ses tiroirs pour les montrer un par un, comme s´ils étaient autant des clefs aux mystères du passé.[6].(Ela tinha escolhido Jean para dar-lhe sua memória. Ela tinha tesouros inesgotáveis, não somente de palavras, mas também de coisas, pedaços de ossos, pedras, peças limadas, escórias tiradas do fundo das gavetas para serem mostradas, uma por uma, como se fossem também chaves para os mistérios do passado)

Ao mesmo tempo, Jean se organiza nessas memórias duplamente construídas – no seio da lembranças de Catherine, no processo de fabulação e oralização, muitas vezes em língua créole, recebido pelo personagem e, finalmente, pelas escolhas sensíveis e ficcionalizadas que o narrador privilegia, dividindo com o leitor o seu peso e suas contribuições para a formação deste patrimônio dinâmico que se delineia na experiência identitária e cultural deste processo ritualizado. 5

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Sob esse aspecto, Gilles Deleuze[7] esclarece que a fabulação criadora, entendida como libertação, não avaliza a conservação do vivido, sendo, nesse caso, uma potência de criação. Portanto, ao voltar para o passado, a fala ou a escrita fabulatória não atualizam o vivido, isto é, o presente que se tornou passado, mas o incorporam, favorecendo uma outra concepção de Passado, Presente e Futuro e de suas relações – virtuais ou reais. É, nesse viés fabulatório e ficcional, que se pode entender a relação de Jean com Catherine. Esta propõe, de forma intuitiva e enigmática, não uma verdade a ser revelada, mas sim um efeito de verdade a ser criado pela capacidade de fabulação e de sensibilização de seu ouvinte. Ou, como afirma Pimentel[8] “È porque somos capazes de ficcionar, de criar perceptos e afectos, de criar mundo, que estamos sempre em devir, em constante transformação”. Compreende-se, nesse momento, não só o título deste capítulo, baseado em uma “Enfance rêvée”, justificando, por um lado, as questões e fatos incorporados à memória coletiva de Catherine, mas, ao mesmo tempo, acabam por se transformar em um ponto de vista de uma memória coletiva que se realiza em dupla construção: primeiramente, as lembranças privilegiadas pelas reminiscências atualizadas e, em um segundo momento, a transformação dessas rememorações em um discurso apreendido pelo narrador, fazendo então que esse processo intersubjetivo, ancorado na memória, dê uma “coesão narrativa” a uma “coesão de vida”[9], acabando, em última análise a delinear uma consciência temporal e histórica que o próprio narrador preserva e que o personagem adiciona à sua experiência de sujeito inscrito em um presente e em um futuro, como Lembra Ricoeur: “En efecto, era importante situar la sequencia a La que están 7

DELEUZE, Gilles. O que é a Filosofia. São Paulo: Editora 34, 1992. p.23

PIMENTEL, Mariana. “Da memória à fabulação: por uma serialização do passado” In: “Gândara : Literatura e violência“. Cátedra Padre Antônio Vieira de Estudos Portugueses Rio de Janeiro n. 2 2007, P.215 a 223.

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RICOEUR, Paul. La lectura del tiempo pasado: memória y olvido. Madrid: Ediciones de La Universidad Autónoma de Madrid. 1999, P. 20 9


dedicados estos estúdios [..]sobre el télon de uma dialéctica más amplia, la de la conciencia histórica, em la que el pasado no se encuentra separado del futuro, dando por supuesto que el adjetivo “histórico” no califica uma ciência determinada, la ciência histórica, sino la condición humana, o, como suele decirse, su historicidad. ?Por qué llevar el marco de la discusión más allá del problema del “carácter pasado” del próprio pasado ?Porque todos los términos de la secuencia mencionada tienen que ver com el pasado y este solo adquiere el doble sentido de “Haber sido” y de no ser ya” en su relácion com el futuro. [...] toda la terapêutica de la memória herida descansa en esa priorid de la relación del presente com el futuro em lugar de com el pasado”[10]

Explica-se, inicialmente, a pretensa ordem “desordenada” de uma percepção do passado rememorado, já incorporada a um presente que, no entanto, busca subsistir – transformar-se em futuro? - pela reordenação das raízes familiares mais primitivas e de seu constante interrogar, interrogando as razões e sentidos intuídos pelas inúmeras mudanças e buscas ancestrais, durante séculos, que culminaram com o estabelecimento da família em Maurice (Autrefois, à Rozillis...,) a posterior falência e o retorno a Nice, universo ainda distante e, entretanto, raiz sólida de uma identidade sempre transitória, e de um espaço sócio-político cultural não reconhecido. Compreende-se, ainda, que o personagem, nesse caso, vê-se acuado entre mundos dialéticos e mesmo antinômicos, uma vez que, por um lado, mantémse dentro de um cotidiano “real”, pontuado de racionalidade e de exercícios coercitivos impostos pela sociedade e, por outro lado, essa mesma lucidez permite-lhe transitar para um outro universo, igualmente coeso, no qual a sensibilidade, a emoção e a fabulação inerentes à condição humana desenham um outro projeto de existência substantiva, suportada pela busca de uma identidade familiar, a garantir, nas suas raízes, as condições culturais e existenciais que fortalecem o “seu” futuro. Aliás, Catherine, nesse jogo interpretativo das memórias familiares e ancestrais, de um passado temporalmente distanciado, mas significativamente reatualizado, antecipa e delega ao personagem, 10

RICOEUR, Paul.Idem, P. 23


quase profeticamente, a condição de “escolhido”, de continuador desta geração e desta família que um dia buscara fortuna no estrangeiro, até aportar nas Ilhas Maurício, onde se estabeleceu por duas gerações. “Elle le lui disait parfois, sur un ton enjoué, mais il savait bien que la légèreté était feinte. ‘n´oublie pas, tu es un Marro, de Rozilis, comme moi, tu descends de Marro qui a tout quitté pour s´installer à Maurice, tu es du même sang, tu es lui. [.... ] C`est lui qui est en toi, qui est revenu pour vivre en toi, dans ta vie, dans ta pensée. Il parle en toi. Ce que je te dis ne compte pas, parce que c´est lui qui te parlera. Si tu écoutes bien, tu l´entendras. Pour moi c´est fini, la vie a été trop longue, je ne peux plus l´entendre, j´ai trop de souvenirs, trop de chagrins, j´ai été obscourcie par la vie, mais toi, tu es libre, Jean, c`est toi qu´il a choisi’ .”[11]( às vezes, ela lhe dizia, em um tom brincalhão,de uma fingida leveza, ´não se esqueça, você é Um Marro, de Rozillis, como eu, você descende de Marro que deixou tudo para se instalar em Maurício, você édo mesmo sangue, você é ele... É ele que está em você, que voltou para viver em você,na sua vida, no seu pensamento. Ele fala em você. O que eu digo não conta porque é ele que lhe falará. Se você ouve bem, você o escutará. Para mim, acabou-se. A vida foi extremamente longa, nãoposso mais escutálo, tenho lembranças demais,dores demais, fui escurecida pela vida, mas voce, você é livre, Jean, você é o escolhido.)

Tal compromisso é, simbolicamente, selado pela oferta – retirada de um baú de tesouros e guardados – de um pequeno livro usado, Grammaire de langue latine, no qual a inscrição: Jean Eudes Marro, Le bon enfant, août 1788, (Jean Eudes Marro, o bom guri, agosto de 1788) recupera a figura emblemática do primeiro antecessor a cruzar fronteiras em busca de novas paragens e, ao mesmo tempo, reatualiza sina de toda a família em busca de um novo território emocional e identitário, que venha a contribuir coma formação e consolidação deste novo percurso familiar e garantidor de raízes sólidas que, por sua vez, venham a acolher a nova e plural feição. Dessa forma, em um movimento constante de “allé et retour”, de revivescência e apagamento das histórias-estórias reunidas por Catherine e reatualizadas na escritura ficcional de um narrador 11

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onisciente, múltiplo que, ao mesmo tempo, divide seu espaço com outras vozes e personagens atemporais, também seus conhecidos e também detentores de um saber ancestral, se mistura a evolução da presença-vida-história de Jean – testemunha e, repositório desta eternização de memórias mas, ao mesmo tempo, responsável pela construção e manutenção de um presente, o seu - em que se organizam as próprias lembranças e a visão de um mundo conturbado. Conturbado pelas urgências da modernidade e pela dolorosa transição social e desumanizadora, advinda dos conflitos do poder, da busca de identidade e, sobretudo, da necessidade de uma harmonia existencial, apaziguadora de dicotomias e ranços culturais. Cria-se, assim, um espaço de narrativas paralelas, cuja manipulação temática e temporal conduz o leitor a tornar-se também um tecelão e tramar um novo destino para as inúmeras referências e notações que se imbricam: desde a existência do primeiro ancestral, a buscar novas terras e novos caminhos, passando pelas aulas de Filosofia ou as amizades de um Jean, estudante adolescente ou desertor do exército por não se prestar lutar na guerra da Algéria, ou estudante de Medicina na Inglaterra, ou, como servidor temporário no México, a cumprir, depois de formado, o seu serviço militar. Ou, finalmente, como eterno nômade que vai a Mauricio buscar as origens da família, reconstruindo os mesmos caminhos guardados pela memória de Catherine – e dos quais era um repositório - e, em contrapartida, buscando identificar-se com algo que lhe preenchesse as lacunas da própria história-estória individual, sempre caleidoscópica, sempre recortada e plural. Compreende-se aqui que esta multiplicidade - refletida pelo comportamento de um Jean sempre incomodado, sempre insatisfeito com seu lugar no mundo, sempre interrogando os recursos e processos globais que homogeneízam as diferentes manifestações culturais, transformando-as em “glocais”[12] - determina, em última análise, a concretização de uma narrativa ímpar, a refletir um conceito mais 12 FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura: globalização, pósmodernismo, identidade. São Paulo: Studio Nobel, SESC. 1997, p. 162, que emprega o neologismo como uma junção dos termos global e local, para se obter uma mistura destituída de uma identificação própria.


global do moderno. Este, em vez de preocupar-se com as sequências históricas de transição da tradição para a modernidade e a pósmodernidade, focaliza “a dimensão espacial e o relacionamento geográfico entre o centro e a periferia, nos quais as primeiras sociedades multirraciais e multiculturais se encontravam na periferia e não no centro. A diversidade cultural, o sincretismo e o deslocamento ocorreram inicialmente lá. As interdependências e o equilíbrio de poder, que desenvolveram entre Estado-Nação como a Inglaterra e a França e as sociedades coloniais, constituem um aspecto importante, ainda que negligenciado, da modernidade.”[13]

Afirma-se, nessa viagem ao interior das identidades e referências construídas, o papel das narrativas orais. Catherine, por exemplo, com a voz da memória, ratifica esse cruzamento e sua importância que, igualmente, vão transferir a Jean um novo olhar sobre o individualismo e a coletividade, sobre o local e o global, sobre, ainda, a razão e a emoção: “Est-ce que je t´ai dit que j´avais appris à parler aux plantes?” La tante Cathérine était si loin de tout ce qui se passait. Les nouvelles qu´elle entendait à la radio la rendaient furieuse, “Des guerres, j´en ai trop vu, disait-elle. Celle de 1914 m´a pris mon frère, celle de 1940 ma soeur, qui est morte parce qu´il n´y avait plus rien à manger à Paris”. Elle croyait au droit des peuples à disposer d´eux-mêmes, elle détestait l´impérialisme anglais et le colonialisme français. [14] (“Eu te contei que aprendi a conversar com as plantas?” A tia Catherine estava longe de tudo que acontecia. As notícias que ela ouvia no rádio, deixavam-na furiosa. “guerras, já vi demais, dizia ela. Aquela de 1914 tirou-me meu irmão, aquela de 1940 a minha irmã, que morreu porque não havia mais nada para comer em Paris”. Ele acreditava no direito dos povos para se organizarem e escolherem por eles mesmos, ela detestava o imperialismo inglês e o colonialismo francês.)

Este é um momento de cruzamento de elementos políticos e 13

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culturais, nos quais se pode reconhecer a interação das fronteiras e dos limites. De um lado, a fronteira político-ideológica, que nega os regimes de governo vivenciados e suas tristes consequências; de outro lado, seus limites e interferências na configuração de um projeto existencial de sobrevivência física e identitária, no qual a experiência cotidiana está pautada por uma não escolha, por um doloroso constrangimento – resultado e, ao mesmo tempo, razão desta inadequação cultural e ontológica a macular o exercício, identitário, estrangeiro e estranho, de estar-no-mundo que não reconhece. Para esse reconhecimento, é preciso redefinir a noção de cultura e sociedade por meio de um foco nos momentos ou processos produzidos na articulação das diferenças culturais. Tal reconhecimento seria um processo performático, ou seja, dinâmico e interativo, não pré-estabelecido pela tradição e pela fixidez da idéia de cultura como herança imutável, mas sustentado por um patrimônio constantemente em transformação, que aposta na adequação à complexidade e, ao mesmo tempo, à fluidez da vida contemporânea. Tal dinamismo, imposto por um comportamento social aparentemente híbrido e desordenado - que a própria narrativa insiste em recuperar pela manutenção de histórias-estórias familiares e individuais fundidas em um tempo histórico igualmente superposto e desorganizado – induz à compreensão dos conflitos identitários não como uma tentativa de ruptura ou como uma opção excludente de outras vivências significativas mas como uma oportunidade de voltar ao passado, lá se municiando de uma substância e de uma adesão ao mundo familiar, que permita a esse personagem-viajante, suprir-se de raízes, de alimentos e de forças ontológicas, primitivas e ancestrais. Jean, vencidas as inúmeras peripécias ou ritos de passagem que se impuseram a sua formação de ser social e cidadão do mundo, ser nômade e culturalmente plural, busca o conteúdo do Outro (seja individual, seja cultural) para conhecer e assimilar sua alteridade não pela exclusão e o não-entendimento, ou rejeição do entendimento, mas, sim, pelo apaziguamento das inúmeras interferências e condições que ai se dialogam.


Aliás, o próprio casamento de Jean com Mariam, uma refugiada algeriana que, assim como ele, busca fincar raízes em outro espaçotempo que lhe reconheça, é um símbolo emblemático de uma simbiose e de uma assunção desta condição nômade e plural, que determinam a tessitura de um novo recorte existencial, costurado em uma acomodação das categorias e condições rígidas de modelos e padrões excludentes e ocidentalizados. Talvez por isso, ou em conseqüência da busca e imposição de um apagamento de fronteiras, limites identitários e nacionalidades, o casal parte em viagem: Le voyage à Maurice, c´était un peu leur lune de miel. Jean avait parlé d´Oran, pour voir la vieille ville, et la grande avenue où Mariam avait perdu ses pains. Mais elle n´a pas voulu. Peu-être que´elle n´est pas prête à regarder son passé en face. Ou elle a peur que les militaires là-bas lui enlèvent son passeport français.[15] (A viagem a Maurício era como uma espécie de lua de mel. Jean tinha sugerido Oran, para ver a cidade velha e a grande avenida onde Mariam tinha perdido seus pães. Mas, ela não quis.Talvez por não estar pronta para encarar seu passado. Ou, então, ela tem medo que os militares de lá lhe retirem seu passaporte francês.)

Maurício – não mais um não-lugar, mas sim a ilha original, o tesouro escondido e o mundo a descobrir – torna-se o alvo desse périplo físico e, ao mesmo tempo, interior, povoado de cheiros, lembranças adquiridas e fabricadas, a desenharem uma cartografia sensível, plena de referências e sentidos reatualizados pela memória de Catherine, arquivados pelo desconforto existencial de Jean – guardião responsável deste patrimônio eternizado na lembrança e na subsistência. Para ele, Maurice, c´était plus facile. C´est neutre. Il n´y reste plus personne du nom de Marro. Juste des fantômes, mais le soleil, l´éclat des plantes et l´indépendance toute neuve doivent bien venir à bout des fantômes.[16] (Maurício era mais fácil. É neutro. Não existe mais 15

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ninguém com o nome de Marro. Somente os fantasmas, mas o sol, o brilho das plantas e a nova independência devem acabar com os fantasmas)

O eterno exílio se dilui: Maurício, o retorno às origens. A viagem, a busca infinita, a condição original revisitada, se somam para a construção de um novo patamar: aquele do homem que se reconhece pela memória ancestral, juntando, tal como um quebra-cabeças, as peças de seu retrato, de sua condição individual de sujeito contemporâneo e, ao mesmo tempo, símbolo de lacunas sociais, afetivas, culturais, psicológicas e existenciais. Jean parte em busca de um conteúdo maior e significativo de sua existência ao atender, preenchido de sol, de luz e de um calor tropical inebriante, intuitiva e sensivelmente, ao chamado da terra de seus ancestrais: “Au fond du ravin la chaleur est étouffante. C´est un lieu perdu, séparé da la Maurice actuelle, si différent, Jean a le sentiment de voir avec les yeux de son aïeul ce qu´il a regardé il y a cent cinquante ans quand il est venu ici à la recherche du lieu de sa thébaïde. Um monde encore intact, ou il pouvait oublier avec Marie Anne et ses enfants la vindicte et la médiocrité, et sans doute son échec à faire fortune ..”[17] (No fundo do vale o calor é escaldante. É um lugar perdido, separado da ilha Maurício atual, muito diferente; Jean tem a impressão de ver com os olhos de seu antepassado o que ele olhou a cento e cinqüenta anos atrás, quando ele veio aqui à procura do lugar de sua solidão. Um mundo ainda intacto, onde ele poderia esquecer, com Marie Anne e suas crianças, a vingança e a mediocridade e, sem dúvida, seu fracasso em fazer fortuna... )

Lá, Jean se depara com um estado original, recupera suas impressões e raízes mais profundas – guardadas pelo olhar de Catherine e pela sua presença, revigorante e curativa: “Dans le silence, l´eau fait un bruit continu, très doux, très puissant. Jean est arrivé au Bout Du Monde, c´est ici que Catherine venait autrefois. Il lui semble sentir sa présence près de lui, entendre le bruit de ses pas. [...] Maintenant Jean s´arrête, le coeur battant, la tête pleine de vertige. Il est à l´endroit exact ou la vie de Catherine 17

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s´est interrompue, comme si elle y avait laissé une partie d´ellemême. Ce jour fatal du 1er. janvier 1910 quand avec sa famille elle a été chassée du paradis.”[18] ( No silêncio, a água faz um barulho contínuo, muito doce, muito vigoroso.Jean chegou ao Bout du Monde; é aqui que Catherine vinha antigamente. Parece-lhe sentir a presença dela perto dele, escutar o barulho de seus passos.[... ] agora, Jean pára, com o coração batendo forte, a cabeça cheia de vertigens. Ele está no exato lugar onde a vida de Catherine foi interrompida, como se ela tivesse deixado ali uma parte dela mesma. Este dia fatal do 1º de janeiro de 1910, quando, com sua família, ela foi expulsa do paraíso)

A vertigem cede lugar a uma condição de êxtase e alumbramento que, completando os ritos de passagens individuais, concretiza, por extensão, o novo homem que dali renasce: “Jean brûle de soif. Il s´est penché sur l´eau noire, Il a bu en écartant les feuilles et les herbes. Il est resté longtemps couché sur la roche tiède, jusqu`à ce que l´ombre tourne et emplisse de nouveau le ravin. Alors il remonte la rivière jusqu´au pont du chemin de fer. Un bus l´a ramassé un peu plus tard et, tandis qu´il descend la route cahoteuse vers Mahébourg, il se sent heureux et libre, comme si l´eau du bassin du Bout du Monde l ´avait lavé.” (Jean queima de sede. Ele se agacha na água negra, bebe-a entre as folhas e ervas. Deita-se longamente sobre a rocha morna, até que a sombra gire e preencha novamente o vale. Então, ele sobe novamente o rio até o ponto da estrada de ferro. Um ônibus o recolhe mais tarde e, enquanto volta para Mahébourg, ele se sente feliz e liberto, como se a água da bacia do Bout du Monde o tivesse lavado.)

O batismo, a purificação, fazem parte de um ciclo de consumação de um projeto de busca de origens, de reatualização das memórias ancestrais e, sobretudo, de reconhecimento de si próprio. Os rituais de passagem e, ao mesmo tempo de iniciação, apontam para um processo especular, de busca de conteúdo, sentido e identidade que apagam, no tempo e no espaço, as diferentes categorias, recuperando, em contrapartida, os espelhos já embaçados pelo tempo e pela distância e que, entretanto, prometem uma possibilidade de salvação 18

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de si, do Eu sujeito e do Outro que lhe habita e, ao mesmo tempo, justificando o perpétuo nomadismo que o constragimento existencial impôs. Assim, paira a última pergunta: Ce qui a été peut-il être encore? Peut-on vivre à la fois dans plusieurs temps? [19](Aquilo que foi pode, ainda, ser? Pode-se, ao mesmo tempo, viver em muitos tempos?) Tal preocupação encontra seu eco e sua resposta na contínua peregrinação de Jean. Agora, fortalecido e alimentado de uma nova – mas ancestral e primitiva – substância, Jean se dispõe a buscar, no cartório da cidade, indícios de sua família, do nome que carrega e que, como depositário, poderá, ao mesmo tempo, espelhar, garantir e eternizar: “Le premier tome n´a rien donné. Jean ouvre le deuxième, où sont recensés les transferts de sepulture. En 1847, le cimetière central de Port Louis a été déplacé pour la construction des bâtiments de l´Administration, et toutes les tombes transférées à l´ouest. Et là, tout un coup, à la deuxième page, Jean voit le nom de Marro. Écrit sans prénom, sans date, sans qualité. Juste ceci:Marro. Et le chiffre 337, le numéro de la concession.” [20]( O primeiro livro não tinha nada. Jean abre o segundo, onde estão anotadas as transferências de sepulturas. Em 1847, o cemitério central de Port Louis foi deslocado para a construção dos edifícios da Administração e todos os túmulos transferidos para oeste. E então, inesperadamente, na segunda página, Jean vê o nome Marro. Escrito sem prenome, sem data, sem qualidade. Somente isso: Marro e o nº 337, o número da concessão)

A resposta a todas as perguntas irrespondidas, a todas as dúvidas acumuladas; todos os medos ou lacunas se transformam e se resolvem pela última etapa desta via crucis da modernidade: Jean reencontra a lápide com o nome Marro: “Au centre de la dalle, gravé au ciseau, encore très lisible malgré le temps et l´abandon, Il y a juste le nom MARRO. Jean n´avait pas esperé pierre plus simple et plus belle pour Jean Eudes et Marie Anne. 19

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Cette grande dalle noire posée sur la terre, éclairée par la lumière du soleil, avec le vent de la mer qui froisse le feuillage des arbres alentour. Comme s´il n´y avait personne avant, personne après eux. C´est une impression mystérieuse et simple à la fois. C´est ici, sous cette dalle, et nulle part ailleurs, que survit le rêve de Rozillis.”[21] (No centro da pedra, entalhado,mas ainda lisível apesar do tempo e do abandon, tem somente o nome MARRO. Jean não tinha esperado lápide mais simples e mais bela para Jean Eudes e Marie Anne. Essa grande lápide negra, colocada sobre a terra, clareada pela luz do sol, com o vento que escorrega na folhagem das árvores próximas. Como se não tivesse ninguém antes, ninguém depois deles. È uma impressão simples e misteriosa ao mesmo tempo. É aqui, sob essa lápide, e não mais em outro lugar, que sobrevive o sonho de Rozillis.)

E compreende então que um ciclo identitário se completa e se consuma pelo reencontro e revivescência das raízes mais profundas e mais simbólicas, que determinam esse reconhecimento do Outro e de si próprio neste Outro, garantindo, inclusive, a possibilidade de sonhar e de se manter acima da constrangedora realidade. Aqui, um nome – MARRO – resiste ao tempo, às intempéries físicas, sociais, morais, e passa a marcar, ainda que numa conjuntura relacional, uma identidade e uma diferença que se distanciam dos padrões cristalizados dos desenhos representativos da contemporaneidade. Tais padrões se perpetuam em um tempo atemporal e em um espaço igualmente significativo mas, nesse momento, a-histórico, porque é pluridimensional, multisimbólico e, sobretudo, pleno de uma substância universal e sensível – que apazigua as contradições e as lacunas nascidas das incessantes buscas pelos outros espelhos quebrados; estes que espelham uma imagem caleidoscópica, sempre recortada, em construção e em sentido também plural. Nesse momento, a visão tradicional de individualidade é diluída em favor de um deslocamento de realidades sonhadas e perseguidas; estas, ainda que apontem para um estranhamento social – assim como Jean, que sempre experimentou um grande desconforto face às instituições mais rigorosas e padronizadas – apontam também 21

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para o desmoronamento das fronteiras entre o público e o privado, o social e o individual, revelando, assim, aquilo que está oculto por sua própria ausência. Assim, compreende-se, por consequência, o reconhecimento da diferença e das diversidades culturais, em oposição a um universo cultural organizado e mantido pela tradição que, no entanto, desconhece a cultura e as manifestações do homem como legítimas presenças da ambivalência, das fronteiras sutis e subjetivas do exercício humano de se identificar cultural e socialmente. Assim, a perpetuação deste dinamismo e deste constante recomeçar tem para sua existência, a permanência do próprio ritual de busca e interrogações, de viagens e de nomadismo, de exílios e de cidadania, como a assegurar a permanência dos laços e traços familiares a partir de um investimento e de aposta na memória sempre alimentada pelos desígnios de uma sacralização atualizada na outorga das identidades até então reconhecidas, até então mantidas pelo exercício de um viver renovado. Por isso, talvez, o narrador interrompa essa história-estória não como um fim, mas como outra possibilidade de perpetuação, com outra vida a projetar os sonhos adormecidos de Marro, que sobrevivem em Rozillis. “Cette nuit, dans la petite chambre blanchie à la chaux où le vent agite le tulle, Jean et Mariam feront l´amour très doucement, très longtemps, jusqu´à toucher ce point, ce tressaillement lumineux que personne ne peut expliquer et que les vivants atteignent quelquefois, et qui scelle leur futur. Plus tard, longtemps après, Mariam dira que c´est le moment ou Jemima-Jim est né, l´instant qui a tout commencé, quand est apparu un visage nouveau sur ee courant de leur histoire. (Esta noite, no pequeno quarto clareado pelas velas, onde o vento agita os telhados, Jean e Mariam vão fazer amor docemente,por muito tempo, até tocar aquele ponto, aquele êxtase luminoso que ninguém pode explicar e que os vivos, algumas vezes, atingem e que sela seus futuros. Mais tarde, muito tempo depois, Mariam dirá que foi nesse momento que nasceu Jemima-Jim, o instante em que tudo começou,quando apareceu um novo rosto no caminho desta história.)

Jemima-Jim, futuro filho de Jean e Mariam, receberá, ele também,


a tarefa de garantir a identidade e o destino de seus ancestrais e de, por ele próprio, construir sua história, também intemporal, também simbólica e ritualística como os mitos e símbolos que, por ele, serão revisitados. Inconcluindo essas anotações, a epígrafe que anuncia esse texto, agora tem seu sentido, sua justificativa e sua força regenerativa que fortalece o homem e sua história, fortalecendo também suas verdades e suas revelações. Jean, ao ser feito história, escolheu também ter história e fez dela uma apaixonada busca das origens; uma revelação única e “irrepetível” de seu estar e permanecer, eternamente, no mundo. Provavelmente, uma nova viagem, um novo nômade, um eterno exílio...

referÊncias biblioGrÁficas DELEUZE, Gilles. O que é a Filosofia. São Paulo: Editora 34, 1992. FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura: globalização, pós-modernismo, identidade. São Paulo: Studio Nobel, SESC. 1997, LE CLÉZIO, J-M G. Révolutions.Paris, Gallimard. 2003. PAREYSON, LUIGI. Verdade e Interpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005 PIMENTEL, Mariana. “Da memória à fabulação: por uma serialização do passado” In: “Gândara : Literatura e violência“. Cátedra Padre Antônio Vieira de Estudos Portugueses Rio de Janeiro n. 2, 2007. RICOEUR, Paul. La lectura del tiempo pasado: memória y olvido. Madrid: Ediciones de La Universidad Autónoma de Madrid. 1999.


O SUÍÇO HUGO LOETSCHER, 1979: Um olhar pós-colonial sobre o brasil? Celeste Ribeiro de Sousa[1]

Um poUqUinho de história O modelo canônico proveniente do âmbito dos Estudos Culturais de língua inglesa, relativo às investigações literárias coloniais e pós-coloniais, baseado na existência de uma resistência ao colonialismo e de uma emancipação pós-colonial, não pode ser aplicado, sem mais, ao caso da literatura em idioma alemão. Primeiro, porque a aquisição de colônias por parte da Alemanha deu-se em circunstâncias diferentes e, segundo, porque a perda das colônias por parte da Alemanha também se deu em outros contextos. Além disso, há países de fala alemã (Suíça, Áustria), sem contar outros países que fazem, da língua, um uso regional, que nada têm a ver com laços coloniais/pós-coloniais e, sim, com um processo complexo de desagregação/agregação de grupos de um mesmo idioma na formação de estados/nações. A Suíça, por exemplo, separou-se do Sacro Império Germânico em 1291 e a Áustria, em 1806. Muitos alemães nem acreditam, ou, por motivos que não cabem neste ensaio, recusam-se a acreditar, que a Alemanha tenha participado da história colonial europeia, considerando a literatura produzida sobre tal temática em idioma alemão como algo ocasional e marginal. De fato, a Alemanha só passa a ter colônias, na acepção canônica do termo, tardiamente em relação ao Reino Unido (e também em relação a Portugal, à Espanha, à Bélgica e à França), isto é, ao final do século XIX, quando a Prússia, sob a orientação de Bismarck, assumiu as rédeas da política do Celeste Ribeiro de Sousa é professora do Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Alemã da Universidade de São Paulo (USP).

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II Império alemão com Guilherme I à frente. Em certa medida, as colônias entraram no império alemão, não por grandes interesses econômicos, mas sobretudo para alinhar o país com as demais potências vizinhas, para satisfazer, por assim dizer, a vaidade da classe comercial. Por exemplo, o negociante Ludertiz, da cidade de Bremen, compra, em 1882, terrenos na África. Em 1883, o Império assume a proteção da região, que passa a ficar conhecida como Sudoeste Africano (Namíbia), tornando-se, em 1884, pelo Tratado de Berlin, que oficializa a divisão da África entre as potências europeias, colônia da Alemanha. Em 1884, o viajante e explorador Gustav Nachtigal consegue direitos de soberania sobre o Togo e os Camarões, também na África. O Império assume em seguida as regiões como colônias. Em 1885, a “Sociedade Alemã África Oriental” compra grandes faixas de terra ao sultão de Tanganica/Zanzibar. Logo essas regiões também se tornam colônias alemãs. Com a derrota na Primeira Guerra Mundial, a Alemanha é obrigada, a título de pagamento da dívida da guerra, a entregar suas colônias à Bélgica, à França e ao Reino Unido. O império colonial alemão tem, portanto, curta duração, de 1884 a 1918, e não sofre processos de descolonização. Porém, isso não significa o fim da ideologia colonizadora na Alemanha, que passa a surgir romantizada, configurada como uma “missão dos alemães”, em obras para adultos e jovens. O livro Volk ohne Raum (Povo sem espaço) de Hans Grimm, de 1926, chega a dar o mote para a política expansionista de Hitler. Não se trata, agora, de reconquistar as perdidas colônias na África, mas de recuperar, para o Terceiro Reich, outras “colônias” mais antigas, fundadas na Europa do Leste. Com efeito, durante a Idade Média, a Alemanha (conhecida à época como Sacro Império Romano e Sacro Império Romano Germânico, isto é, do reinado de Carlos Magno ao de Carlos IV) destaca-se por seus movimentos de expansão rumo aos povos eslavos, erguendo nos Balcãs uma “muralha humana” a deter o avanço dos muçulmanos sobre os cristãos. A Alemanha também está presente nas cruzadas e em Jerusalém. Depois da Guerra dos Trinta Anos, a Alemanha oferece um mercado nada desprezível


para as mercadorias provenientes das colônias. Após a descoberta da América, os alemães engajam-se igualmente em empreitadas coloniais: A família Welser de Augsburg (e também os Fugger), por exemplo, colonizam vastas regiões da Venezuela durante a primeira metade do século XVI, com autorização de Carlos V. Mas não é só: Ambrosio Alfinger, Federmann, von Speyer e von Hutten chegam a comandar um esquema de colonização nas regiões sul-americanas produtoras de ouro. Assim, quando a Alemanha/Prússia adquire suas colônias africanas não é bem uma novata em assuntos de colonização. Na verdade, tal ideologia é cultivada da Idade Média ao Terceiro Reich. Nos anos sessenta, o movimento estudantil, com seus protestos contra a guerra no Vietnã, aponta os holofotes para a problemática colonial/pós-colonial, desencadeando a publicação de narrativas engajadas no assunto. Tais textos não só tentam superar o passado colonial e fascista, como também procuram flagrar relações neocolonialistas entre Primeiro e Terceiro Mundos. Desde então, um sem número de escritores passa a deslocar-se a países do Terceiro Mundo para observar in loco tais problemas. Surgem narrativas de viagem, textos ditos “pós-coloniais”, (mas também literatura focada em temas de migrantes, de fugitivos, de asilados provenientes do Terceiro Mundo, pois já se condidera que o Primeiro Mundo está no Terceiro, assim como o Terceiro está no Primeiro). Objetiva-se desconstruir preconceitos sobre as culturas estrangeiras, tornar as relações entre Norte e Sul, entre Primeiro e Terceiro Mundo menos conflituosas. Escrevem, entre outros, Günter Grass, Hans Chistoph Buch, Bodo Kirchhoff, Uwe Timm, Hubert Fichte e Hugo Loetscher sobre a Índia, o Caribe, a África, a América Latina, o Brasil.

Um poUco de teoria Os Estudos Pós-Coloniais na Germanística surgem tardiamente. Os primeiros textos são produzidos pela Germanística desenvolvida nos USA - a Germanística americana -, e são equacionados dentro de


uma tradição teórica fortemente orientada pela hermenêutica e pela análise do discurso. Traçando um breve panorama geral do movimento dos Estudos Pós-Coloniais na Alemanha, podem-se observar 3 momentos: O primeiro é assinalado pela tradução para o alemão, em 1979, do livro de Edward Said Orientalism, levada a cabo por Susanne Zantop, uma germanista alemã radicada nos USA (Darthmouth). Segue-se, da mesma Susanne Zantop, o seu próprio livro Colonial fantasies. Conquest, Family, and Nation in Precolonial Germany, 1770–1870, publicado em 1997, e traduzido para o alemão como Kolonialphantasien in vorkolonialen Deutschlands – 1770-1870 em 1999, na linha de Mary Louise Pratt[2]. Em 1998, vem a lume uma coletânea de 16 ensaios, editada pela própria Susanne em conjunto com Sara Friedrichsmeyer e Sara Lennox, com o título Imperialist Imagination: German colonialism and its Legacy. É um momento de acentuado caráter político. Objetiva-se chegar a uma abrangente crítica da cultura e da dominação, partindo-se do colonialismo como um discurso hegemônico e de dominação das nações ocidentais. O assassinato de Susanne Zantop em 27 de janeiro de 2001, interrompeu sua investigação e sua linha de pensamento. Um segundo momento, quase concomitante ao primeiro, também na linha de Mary Louise Pratt, é assinalado pelos trabalhos publicados na Alemanha, de outro germanista alemão, radicado nos USA (St. Louis), Paul Michael Lützeler: Der postkoloniale Blick. Deutsche Autoren berichten aus der Dritten Welt, de 1997 (O olhar pós-colonial. Autores alemães dão notícias do Terceiro Mundo); Schriftsteller und ‘Dritte Welt’. Studien zum postkolonialen Blick (Escritores e o Terceiro Mundo. Estudos sobre o olhar pós-colonial), de 1998 e Postmoderne und postkoloniale deutschsprachige Literatur, de 2005 (O Pós-modernismo e a literatura pós-colonial de língua alemã). Esta tendência volta-se para o que seria uma função dupla do “olhar pós-colonial”, isto é, para a autorreflexão e para a polifonia, Mary Louise Pratt é a primeira estudiosa a ler as narrativas de viagem de Alexander von Humboldt (1769-1859) de uma (controversa) perspectiva pós-colonialista em “Alexander von Humboldt and the reinvention of América”. PRATT, 1992, p. 111-243. 2


sem nunca deixar de lado os processos estéticos nos textos. Tanto a postura de Zantop, como a de Lützeler constituem, de certa forma, já uma variante do Pós-Colonialismo canônico, pois considera, como pós-coloniais autores de língua alemã que nunca viveram em colônias ou ex-colônias, nunca sofreram a experiência dos processos de dominação, que lhes é estranha. São autores que viajaram a países do chamado Terceiro Mundo, um dia colonizado, e dele fazem relatos. Trata-se de textos que, em grande parte dos casos, apresentam interfaces com as narrativas de viagem e com as configurações do exótico. Neste último livro de Lützeler, são trabalhadas narrativas que tematizam, por exemplo, o Haiti, Porto Rico, o Brasil, a Argentina, a Índia. Em nenhum destes livros há menção, por exemplo, à literatura produzida em língua alemã na Namíbia, embora Thomas Keil a tenha investigado sob a perspectiva colonial/pós-colonial e publicado, em 2003, sua tese sobre o assunto. Os casos controversos da literatura da imigração durante o Segundo e o Terceiro Reich, e mesmo durante e depois da Idade Média, são tocados apenas de passagem. Afinal, pelo jus sanguinis, todos os alemães e seus descendentes fora do Reich continuavam a ser considerados alemães e cidadãos do império. Escreveriam eles literatura de imigração? Seria esta uma literatura colonial? Ou póscolonial?[3] Considera o teórico Lützeler, em 1998, na introdução à coletânea de ensaios Schriftsteller und “Dritte Welt”. Studien zum postkolonialen Blick, que, nas últimas décadas, os escritores de língua alemã (também impulsionados pelo apelo do turismo de massas) viajam aos países do dito Terceiro Mundo para dele se aproximarem e, assim, poderem contribuir para a superação do distanciamento entre esse Terceiro Mundo e o Primeiro, tanto no campo da política, da cultura, da sociedade, como no da ecologia. Queriam entender o Outro, não É importante apontar a existência de uma dissertação de Mestrado sobre a literatura do Banato, região situada entre a Romênia, a Sérvia e a Hungria, outrora ocupada/colonizada pelo Sacro Império Romano Germânico. Tratase de um estudo de caso: GEZELMANN, Tereza. – “Em busca da terra natal”: idílio e utopia na obra de Adam Müller-Guttenbrunn. Dissertação de Mestrado em Literatura Alemã, FFLCH-USP, 2006.

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a partir da antiga postura colonial superior, sapiente, exploradora e missionária, mas com um olhar aberto, curioso, solidário e crítico. Lützeler volta a enfatizar em 2005, no livro Postmoderne und postkoloniale deutschsprachige Literatur, depois de discorrer sobre as primeiras três fases principais dos Estudos Pós-Coloniais, isto é, depois de comentar, entre outros, a obra e a posição de Edward Said, de Homi Bhabha, de Gayatri Chakravorty Spivak e de Mary Louise Pratt, que há nas teorias do polêmico Pós-Colonialismo dois aspectos dominantes a observar: o aspecto descritivo e o aspecto programático. O aspecto descritivo abrangeria a constatação e a penetração analítica das relações que surgiram entre países colonizados outrora (ou ainda hoje) e países colonizadores; o aspecto programático marcaria as metas políticas associadas à superação de estruturas coloniais, velhas e novas, e às relações de poder entre o Primeiro e o Terceiro Mundo, entre o Norte e o Sul, entre racismos e preconceitos culturais. Ambos os aspectos, o analítico e o operativo constituiriam o cerne do Pós-Colonialismo. O Pós-Colonialismo teria, portanto, o intuito de descolonizar o que um dia foi/é colonizado.[4] A partir de 2000, outras variantes do canônico Pós-Colonialismo surgem e os conceitos de “colonialismo”, “descolonização” e “póscolonialismo” se abrem, perdendo a referencialidade geográfica para se instalarem na cultura. Em 2004, por exemplo, Alexander Honold e Klaus Scherpe, de Berlim, publicam Mit Deutschland um die Welt Eine Kulturgeschichte des Fremden in der Kolonialzeit (Com a Alemanha ao redor do mundo. Uma história cultural do exótico durante a época colonial). Trata-se de variantes voltadas para o exame da configuração linguística dos movimentos migratórios em âmbito global, decorrentes do antigo colonialismo, para o intercultural, impregnado 4 Como curiosidade para reflexão sobre os polêmicos Estudos Pós-Coloniais, observe-se que o vocábulo “colonialismo” deriva de “colonizar”, que, por sua vez, remete à matriz verbal latina colo, colere, que significa “cultivar e habitar”, explicando-se as duas acepções pelo fato de, nos primórdios, só a agricultura tornar os homens sedentários. Por detrás do vocábulo “colonizar” surge, então, todo um arco semântico associado ao cuidado, à melhora da terra, à alimentação, sobrevivência, subsistência, ao bem-estar. O posterior sema negativo de “explorar”, que lhe é agregado, não deixa de ser também uma “colonização” do significado original!


de metamorfoses da tópica do exotismo. Há como que uma redescoberta crítica da história colonial alemã e de uma história cultural mais ampla do colonialismo europeu. Variantes há também que focalizam a análise de narrativas que tematizam a diversificação multicultural crescente dentro da sociedade de idioma alemão. É um discurso pós-colonial intracultural, orientado para o estudo das alteridades, como projeções do próprio, e para os hibridismos, como no caso, por exemplo, da literatura turco-alemã. Mas o alcance dos Estudos Pós-Coloniais também ultrapassa o literário e chega a outras mídias: revistas, museus ou bens materiais como objetos coloniais, os quais podem ser lidos no sentido do conceito de cultura enquanto texto, na busca de um diálogo com as teorias da transculturalidade. Do ponto de vista institucional, os Estudos Pós-Coloniais na Alemanha estão centrados na Universidade de Trier, no “Das Centrum für Postcolonial und Gender Studies – CePoG” (Centro de Estudos PósColoniais e de Gênero), fundado em 2005, com o objetivo de alargar os limites do cânone eurocêntrico nas investigações propostas, mas a ênfase recai sobre “Gender Studies”. Nos últimos anos, têm sido publicadas inúmeras coletâneas e anais sobre o Pós-Colonialismo na literatura e na cultura de língua alemã, em que se observa também a procura de um diálogo com a história. Resumindo: Se, no começo, são consideradas as produções literárias de escritores oriundos de países (outrora) colonizados, como era o caso dos países pertencentes à Commonwealth, a darem conta de suas experiências entre duas civilizações/culturas, ou seja, a darem testemunhos de casos de afirmação de identidade, de hibridismo cultural e linguístico, logo o interesse intelectual pela temática se expande para outros países e passa a abranger também todos os testemunhos que tematizam o colonialismo. A literatura produzida por minorias e por estrangeiros passa a aparecer no horizonte dos Estudos Pós-Coloniais, provocando fusões entre o discurso pós-colonial e o discurso multicultural. Assim, no centro das atenções desta área de estudos passa a estar, de um lado, a literatura produzida durante o tempo colonial e, de outro, a discussão


das obras literárias que veiculam relações (quer neocoloniais, quer emancipatórias) entre o “Terceiro” e o “Primeiro Mundo” e todos os seus desdobramentos.

o caso loetscher, segUndo reinhard andress Em março de 2006, Reinhard Andress, norte-americano, apresenta uma comunicação no Congresso Latino Americano de Germanistas, em Havana, com o título “Hugo Loetschers Wunderwelt. Eine brasilianische Begegnung. Der exemplarische postkoloniale Blick” (“Mundo dos milagres. Um encontro brasileiro”, de Hugo Loetscher. O olhar pós-colonial exemplar), publicada depois nas Atas do Congresso, em CDROM. Trata-se de um estudo do livro do suíço Hugo Loetscher (1929-2009), publicado em 1979 sobre o Brasil, mais precisamente o Nordeste brasileiro. A palavra “exemplar” chama a atenção, porque induz a crer que o olhar pós-colonial pode ser delineado e precisado com rigor. O terminus “olhar pós-colonial” remete para o estudioso Paul Michael Lützeler, cujas posturas teóricas foram usadas no ensaio e, como anteriormente mencionado, já constituem variantes do que originariamente se conhece como Pós-Colonialismo, que, por sua vez, nunca chegou a ser precisado, embora, nas narrativas em que ele se faz presente, duas constantes se pressuponham: de um lado, a existência de uma relação de poder entre dois grupos (povos), um hegemônico, outro subalterno; de outro lado, a existência de um movimento de emancipação do grupo subalterno em relação ao hegemônico. Como os primeiros estudiosos do assunto a causar celeuma (Edward Said, Homi Bhabha, Guaitiri Spivak) falavam/falam de seus próprios lugares de origem, ainda hoje e outrora colonizados, (Palestina e Índia), não só o ensaio do norte-americano Andress, como também o fato de ser Hugo Loetscher um suíço a escrever sobre o Colonialismo/Pós-Colonialismo no Brasil, podem parecer estranhos ao olhar brasileiro. De fato, a leitura do livro em questão, feita a partir da ótica brasileira pelo viés do Pós-Colonialismo, pode levar a outras conclusões.


Depois de uma introdução aos “teóricos” do Pós-Colonialismo, Andress pontua a postura de Lützeler e sua definição de “olhar póscolonial” como aquele oriundo dos escritores que viajam ao Terceiro Mundo para aprender a ver e a entender o Outro e, através de seus textos, a cooperar com uma melhor compreensão das relações entre este “Terceiro Mundo” e o ”Primeiro” nos âmbitos da política, da cultura, da sociedade e da ecologia, sem perspectivas coloniais missionárias, de exploração, de superioridade, ou de maior saber, mas com um olhar, aberto, curioso, solidário e simultaneamente crítico, um olhar pós-colonial. A seguir, apresenta o escritor Hugo Loetscher, tecendo uma longa lista de informações biobibliográficas, em que sobressaem não só o imenso interesse do escritor suíço pelo mundo de língua portuguesa, em particular do Brasil, como também as inúmeras viagens/visitas ao país e os vários textos que daí se originaram. Alude, depois, à gênese da obra, ao fato real que provocou o nascimento do texto: a cena de uma família nordestina pobre, rodeando um caixote de madeira transformado em caixãozinho, que expunha uma criança morta de uns três anos, chamada Fátima, tirando uma foto na praça central da cidade de Canindé. Cita outros três estudiosos da obra de Loetscher: a suíça Rosmarie Zeller, o norte-americano Romey Sabalius, o belga Jeroen Dewulf. Dos trabalhos redigidos em português do Brasil (Celeste Ribeiro de Sousa e Jael Glauce da Fonseca), não há notícia, como é de se esperar, por causa da barreira da língua. Andress declara que a sua abordagem pós-colonial do livro Wunderwelt. Eine brasilianische Begegnung é original e afirma também que a obra em pauta é uma ilustração exemplar do “olhar pós-colonial” de Lützeler, visto que abrange o entendimento de uma outra cultura que deve ser intermediada, a partir de uma postura de abertura, de sede de saber, de solidariedade e de crítica. O escritor suíço teria atingido essa meta através de um saber multifacetado, de uma multiplicidade de formas e de vozes narrativas e de refrações irônicas. Andress põe em evidência o fato de que Hugo Loetscher, sendo estrangeiro, poderia parecer colonialista com sua pretensão de completar de maneira fictícia a vida ceifada de Fátima em 1979, mas, na verdade, isto não se passa, porque, segundo


Loetscher declara em 2002, no ensaio “Die runde Sprache des Reisens” (A linguagem redonda das viagens), a visão da cena em que a criança morta é fotografada teria sido o motivo que o obrigou a ver o Nordeste de outro modo, como se ele fosse a criança morta. Comenta Andress que, assim, Loetscher passa a compreender o papel da seca no sertão, a medicina popular, as superstições, o papel da cachaça, os rituais fúnebres, a crença em milagres e em figuras lendárias como as de Lampião. Retomando a opinião de Dewulf, afirma que Loetscher ficcionalizou pouco, ao transferir os fatos reais para a narrativa, pois todos os fatos narrados são igualmente encontrados em outras fontes que o escritor leu: por exemplo, O quinze de Rachel de Queiroz, Medicina popular do nordeste de Eduardo Campos. Em seguida, Andress mostra como certos elementos de Wunderwelt (Mundo dos milagres) estão presentes em obras brasileiras. Por exemplo, o ritual fúnebre da criança Fátima em caixãozinho feito de caixote de madeira enfeitado com papel crepom tem importância, porque está relacionado com as ligas de camponeses no Nordeste do Brasil, que lhe atribuíam um valor simbólico, e que está documentado no livro do sociólogo brasileiro Josué de Castro, Une zone explosive: Le Nordeste Du Brésil. Assim, também é igualmente relevante a superstição de as crianças irem direto para o céu, uma crença oriunda da tradição cristã, disseminada na América Latina pelos jesuítas e que remonta ao Novo Testamento segundo Marcos, bem como o fato de que a criança deve ter uma mortalha bonita. Em seguida, Andress toca nos santos e milagres, peculiares ao Nordeste, singularizando a figura do Padre Cícero Romão Batista (1844-1934) em Juazeiro, aonde a mãe e a tia de Fátima peregrinam para obter cura para a menina. Pontua Andress que Loetscher certamente deve ter lido Padre Cícero, mito e realidade (1968) de Octacílio Anselmo. Continua Andress dizendo que a vida dura do sertão frequentemente vem associada a representações utópicas, apontando para a Nova Jerusalém, fundada em Canudos em 1893 por Antônio Conselheiro, isto é, Antônio Vicente Mendes Maciel (1830-1897), que, em 1894, já tinha atraído 35 mil pessoas para essa comunidade, destruída em 1897 pela jovem República brasileira,


implantada em 1889, que a via como ameaça, e da qual Euclides da Cunha tratou em Os sertões (1902), que Loetscher também leu. Igualmente, a presença de Lampião, ou seja, Virgulino Ferreira da Silva (1897-1938), muito querida e popular na literatura de cordel, é legitimada, na obra suíça sobre o Brasil, pela leitura que o escritor fez dos versos A chegada de Lampião no inferno de José Pacheco. Depois de mostrar que Loetscher preocupou-se, de fato, com o conhecimento profundo do Outro, neste caso o Nordeste do Brasil, Andress passa à análise da narrativa, anotando que o ritual do enterro constitui a ação externa da obra, em que são inseridas incursões/capítulos sem títulos, que dão conta de outras histórias da região, permeadas de conhecimentos prévios (de história, de política, de economia, de sociologia, de filologia) e de vivências do escritor, que se “anula” atrás de vários pontos de vista e formas narrativas (relatos, estatísticas, ensaios, literatura de cordel, prosa literária), uma polifonia. Sobre essas estratégias poéticas, Andress busca explicação numa entrevista de Loetscher concedida em 1997: O escritor tivera a intenção de dar forma às várias linguagens do Nordeste, às suas várias vozes. Wunderwelt (Mundo dos milagres) não seria tanto sobre o destino de Fátima, mas, sobretudo, uma narrativa de uma conditio humana, de uma situação sociocultural que, não só a menina morta, mas o público leitor de alemão deveria conhecer. Nas palavras de Andress, a perspectiva soberana do narrador poderia até soar mais sapiente (“besserwisserisch”) ao seu leitor, mas o fato de se dirigir de modo fictício a uma criança aborta a possibilidade de ofender o leitor. Também poderia considerar-se certa ingenuidade na estratégia do diálogo com uma criança morta; no entanto, o estratagema literário serviria para amenizar o distanciamento criado pelas reflexões intelectuais. A solidariedade de Loetscher para com o povo nordestino ficaria igualmente visível no final da narrativa, na cena do bordel, em que as perspectivas do estrangeiro, do eu-narrador e do próprio autor fundem-se numa só, na de uma personagem que segura no colo a criança filha da prostituta, com quem o engenheiro se encontra. Andress toca ainda na ironia que permeia a narrativa: segundo o


próprio escritor (2001), sua ironia consiste em uma conscientização contínua, de que não há identidade entre a nomeação de uma coisa e a coisa em si. Por fim, ilustra a ironia no próprio título da obra, na palavra milagre, aplicada ao âmbito religioso e econômico, desmascarando ações escusas aí embutidas, que têm a ver com colonialismo, moralismo. Por tudo o que é apontado, o texto constituiria uma narrativa pós-colonial exemplar.

hUgo loetscher, 1979: Um olhar pós-colonial sobre o brasil? Continuando a olhar o romance suíço sobre o Brasil, publicado em 1979, da mesma perspectiva teórica, é mister chamar a atenção para o fato de o eu-narrador-personagem estrangeira declarar, nas páginas 12 e 140, ter feito a viagem ao Brasil com o objetivo explícito de, por capricho (“aus Laune”), visitar a sala dos milagres da Basílica de São Francisco em Canindé, no Ceará. Narra sua chegada à praça da cidade, ao hotel miserável em que se hospeda, depois de ter começado in medias res com a cena de uma família circundando um caixãozinho com uma criança morta sendo fotografados. Conta, em seguida, que decide acompanhar o enterro e, nesse percurso, entabula um diálogo com a criança morta, que se revela, na verdade, um longo monólogo. Com esta estratégia de, numa hora derradeira, mostrar à defunta o país que não chegou a conhecer, levanta várias imagens do sertão e do Brasil – uma sociedade predominantemente muito pobre e sem grande futuro, com movimentos rebeldes fracassados, como o do Antônio Conselheiro e do Beato Lourenço e, mais tarde, a coluna Prestes, igualmente frustrada. Nesta estratégia, também é possível perceber que a intenção deste eu-narrador-personagem estrangeira persegue os vestígios de colonização/neocolonização do Brasil. No texto suíço, à criança morta, que assinala o início da narrativa, sobrevive outra, no final do texto, mas num bordel indigente de beira de estrada, filha de uma prostituta, a fechar uma última esperança em um possível processo de emancipação civilizatória. A narrativa


desenvolve-se em 162 páginas, praticamente, entre a cena da fotografia junto ao caixão na praça da cidade e a cena do enterro no cemitério local. A carga poética experimentada durante a leitura do texto advém da contínua tensão resultante do entrechoque dos dois planos significativos evocados pela palavra “milagre”, presente no título, que surge como caracterizadora par excellence do Brasil. Tratase da tensão exercida pelo eixo sintagmático da língua, forçando a atualização do campo semântico do vocábulo “milagre” à área econômica, sobre o eixo paradigmático, portador da carga semântica tradicional da palavra em pauta, ligada ao plano da religião. Da ambiguidade produzida pelo confronto das duas esferas significativas – o velho milagre religioso (não mensurável) e o novo milagre econômico (mensurável) – emerge a ironia que permeia a obra. Essa macrotensão irônica alimenta-se da configuração do povo ingênuo e explorado e da representação da classe rica e muito rica, da classe dos exploradores, quer nacionais, quer estrangeiros. A sustentar essa macrotensão, entretanto, há uma miríade de microtensões outras. Um dos exemplos assenta sobre um paralelismo construído entre o processo de beatificação do Padim Ciço, uma figura central na religiosidade popular da região, e o desenvolvimento comercial ímpar, prodigioso, que se faz em torno dele: Quando o Padrinho chegou à cidade, havia apenas doze casas de pedra e vinte barracos de pau-a-pique e, no último, morava uma meretriz. Logo a região se expandiu para todos os lados. Os primeiros prédios surgiram, no meio deles, uma instituição financeira. Havia mais de uma torre de igreja. Os metodistas tinham também um lugar de reunião, os adventistas e os espíritas, e também os protestantes vieram. Pois aqui aconteceu um milagre. Quando o Padrinho estendeu a hóstia à sua empregada numa sexta-feira, esta coloriu-se de vermelho na boca da mulher. [5] 5 “Als das Paterchen hergekommenwar, hatten hier gerade zwölf Steinhäuser gestanden und zwanzig Lehmhütten, und in der letzten hatte eine Mondäne gewohnt. Nun aber dehnte sich der Ort in alle Richtungen aus. Die ersten Hochhäuser erhoben sich, darunter eine Bank. Es gab mehr als einen Kirchturm. Auch die Methodisten besaßen ein Versammlungslokal, die Adventisten und


A figura do Deus absconditus, sempre presente no processo do milagre, figura em princípio protetora, toma a forma concreta do lucro, também venerado; mas, ao invés de a todos proteger em plano de igualdade, começa de modo sutilíssimo a estabelecer diferenças entre os mais e os menos espertos. A tensão irônica é às vezes cômica, desencadeando um sorriso nos lábios do leitor; outras vezes é quase lírica; outras vezes, trágica, provocando dor. Não há como não sorrir diante da figura da parteira, enlouquecida pela ação da indústria da seca, correndo pelas ruas cortando o ar com uma tesoura aberta. Corre atrás de cintos, tranças, fitas elásticas e tudo o que lhe pareça um cordão umbilical. Não há como não ficar enternecido com a imagem criada em torno dos úteros maternos, os últimos lugares do Nordeste a reterem a umidade, no tempo da seca. Mas é doído saber, pelo olhar do eunarrador-personagem estrangeira, que a pobre mulher, por causa de sua loucura, fora marginalizada pela família, fora espancada para fora dos botecos, e só não fora presa, porque a prisão não tinha mais vagas. É preocupante saber que, em época de seca, em que as condições de sobrevivência ficam suspensas, mulheres engravidam! Dói, eu diria humilha, a proposta da criação de bonecas para Fátima com os objetos da sala de ex-votos: pernas, braços, cabeças, corações, etc. Dói (e humilha), igualmente, a sugestão para criar o museu da cidade: o museu da lata com pratos de lata, copos de lata e outros utensílios igualmente de lata. Materiais de plástico teriam de ser descartados por falta de adequação. Ao se perseguir a construção da ironia nas sentenças acima mencionadas, observa-se que, ao enunciar fatos autocompreensíveis (a parteira fazendo loucuras, a gravidez das mulheres, a montagem das bonecas da criança, a criação de um museu) e ao introduzir esses fatos em molduras contextuais inusitadas, não esperadas, o autor logo alcança a suspensão do ritmo da leitura de seu leitor. Spiritisten, und auch die Protestanten waren gekommen. Denn hier war ein Wunder geschehen. Als das Paterchen seriner Haushälterin an einem Freitag die Hostie reichte, färbte sich diese im Mund der Frau rot.” LOETSCHER, 1980, p. 50. Trad. FONSECA, 2003, p.38.


Em outras palavras: a compreensão automática do texto deixa de ocorrer. O leitor (de língua alemã) é obrigado a percorrer a distância propositalmente criada entre a enunciação e o seu contexto para, literalmente, descobrir e identificar, por si, possíveis liames entre um e outro. Neste movimento de procura e descoberta, faz-se o conhecimento, objetivo que o narrador tem em mente ao lançar mão de tal figura de retórica, nascida no campo das metáforas limítrofes. Os gestos de loucura, a princípio semelhantes aos do palhaço no circo, a evocar momentos de descontração e bem-estar infantis, na verdade, sinalizam uma tragicidade intensa, a exclusão da parteira da sociedade, a falta de solidariedade, a insensibilidade humana na comunidade Nordestina. A imagem da barriga grávida é um ícone provocador de toda ordem de bons sentimentos e suaves emoções; associada ao ambiente da seca, passa a transmitir irresponsabilidade, ignorância, animalidade. A figura da criança abraçada a uma boneca também configura uma imagem despertadora de um mundo inocente, mas quando a boneca passa a ser constituída de membros artificiais que simbolizam acidentes e sofrimentos, o que emerge é uma miséria engrandecida e gritante. A sugestão de criar um museu em Canindé faz o leitor europeu pensar num lugar onde se possam reunir, conservar, pesquisar e valorizar peças preciosas (artísticas, históricas, técnicas, etc.), testemunhas do valor da cultura local. No entanto, os objetos citados traduzem, ao contrário, a miséria extrema e o atraso intelectual da região. A imagem que se levanta do Nordeste é arrasadora. Não vem ao caso, aqui, discutir se se trata da verdade ou não. O que está criado na obra pertence ao plano literário, ao plano da ficção. Todo o conhecimento é, em diversos e variados graus, ficcional, porque criação do homem. Todo o conhecimento é filtrado pela subjetividade humana! A verdade é uma convenção, absolutamente necessária à vida civilizada, mas uma convenção. Cabe, talvez, perguntar das consequências da leitura de Wunderwelt (Mundo dos milagres) no leitor. Acho até mesmo pertinente incrustar aqui um testemunho de desdobramentos trágicos. Consta de 1968 o ano que não terminou, de Zuenir Ventura, que


[N]o último ano, o seu amigo Nélson Rodrigues transformara Pellegrino num perigoso e assíduo personagem de suas crônicas em O Globo – tão perigoso que mais tarde, em fevereiro de 69, ao prendê-lo, o Exército brasileiro prendeu não tanto o orador dos intelectuais, mas o “anti-Hélio” das crônicas, o “Dante brasileiro”, o homem que, com sua inteligência diabólica e seu poder verbal invencível, seria capaz de mover e comover as massas. Esta construção hiperbólica, que aos olhos dos militares acabou virando um retrato, nem mesmo o inventor Nélson pôde desfazêla junto a seus amigos de farda. VENTURA, 1988, p. 177.

Aliás, deste problema da generalização e iluminação do parcial, curiosamente, também o próprio Loetscher se queixa e, sobre isso, escreve o seguinte num ensaio: Ao escolher Zurique como palco, nosso autor configurava uma Zurique, que não se coadunava com as representações usuais. Ele recorda-se de ter lido, certa vez, numa recensão da Alemanha Federal, que se depreendia de um de seus livros haver também em Zurique um bairro operário. A ideia de que esta cidade abriga exclusivamente bancos parece totalmente disseminada. Para esclarecer este ponto, saiba-se que este autor mora no centro da cidade, nas proximidades de grandes bancos, mas ele mesmo não possui nenhum, sequer um pequeno. Esta Zurique, todos conhecem, fica às margens do lago, cantado por um Klopfstock e tematizado em poemas de C. F. Meyer. A cidade está debruçada sobre um rio, o Limmat, que, graças a literatos humanistas pode conferir à cidade a designação honrosa de “Atenas do Limmat”. Contudo, Zurique tem um segundo rio, o Stihl, e, do outro lado deste rio, estão os bairros pequeno-burgueses e proletários. Para o nosso autor, Zurique ficava, por sua própria experiência, perto deste Stihl.[6] Soweit unser Autor Zürich als Schauplatz wählte, stellte er ein Zürich dar, das nicht in die gängigen Vorstellungen paßte. Er erinnert sich, wie er einst in einer bundesdeutschen Rezension las, man erfahre aus einem seiner Bücher,

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daß es in Zürich auch Arbeiterviertel gebe. Der Gedanke scheint nun einmal verbreitet, daß diese Stadt ausschließlich Banken beherbergt. Um diesen Punkt zu klären: unser Autor wohnt mitten in der Stadt, in der Nähe von Großbanken, er selber hat keine, auch keine kleine. Dieses Zürich liegt bekanntlich am See, über den ein Klopfstock dichtete und über den C. F. Meyer Gedichte schrieb. Die Stadt liegt an einem Fluß wie der Limmat, die dank humanistischer Literaten der Stadt zu einem Ehrenyitel wie “Limmat-Athen” verhelfen konnte. Doch Zürich besitzt einen zweiten Fluß, die Stihl, und jenseits dieses Flusses finden sich die Kleinbürger- und


Voltando, porém, à perspectiva pós-colonialista de Lützeler, Loetscher preenche neste livro parte do mencionado aspecto descritivo do Pós-Colonialismo, o aspecto que contempla o esforço de aproximação ao Outro, o esforço de fazer conhecido um país quase desapercebido à época pela Europa de língua alemã, o esforço de pôr em evidência a opressão do povo espoliado, submetido, silenciado. Neste processo, Hugo Loetscher constrói várias imagens do Nordeste, que se estendem a todo o Brasil, sempre ilustrando a miséria e a ingenuidade populares, esbulhadas pelas classes governantes e capitalistas. Enquanto os governantes e os detentores do capital, quer brasileiros, quer estrangeiros, sempre são associados ao desfrute de privilégios, a salas de ar condicionado, a outdoors com anúncios neon de produtos de sua fabricação, a fraudes em eleições com nomes de mortos, o sofrimento do povo, dos operários, é mostrado no ciclo vicioso de sua insciência, de seu trabalho braçal, de sua pobreza e sua dependência, de seu temor a Deus. Esta oposição entre ricos e pobres, entre trabalhadores e patrões é trabalhada por um eu-narrador-personagem estrangeira desde o tempo da colonização portuguesa até a época de sua viagem à cidade de Canindé nos anos 70 do século passado. Por ele são selecionadas imagens dos nordestinos com seus costumes típicos, sua miséria e suas tragédias desventradas, tanto durante as secas, quanto durante as enchentes. Do tempo da República, são enumeradas ações tomadas pelo governo para solucionar o problema das secas. Ironicamente, o que realmente se faz é a criação de novos departamentos, novas comissões, a construção de represas para poucos, novas estradas, linhas férreas, telefone, envolvendo empresas estrangeiras e bancos, sediados em cidades grandes, cujo intuito é o lucro. A seca e as enchentes são transformadas em espetáculos pelos jornais e pela televisão. Em contraste com essas ações, que, na verdade, só Proletarierviertel. Für unseren Autor lag Zürich erlebnismäßig zunächst an dieser Stihl”. LOETSCHER, 1988, p. 44. Trad. da autora.


beneficiam os opressores/exploradores, os que têm o dinheiro, os agiotas, o eu-narrador-personagem estrangeira opõe a exploração do trabalho bruto dos desvalidos. Seu suor é aviltado nas chamadas frentes de trabalho; seu baixo poder aquisitivo é ignorado no forjamento da escassez de alimentos que leva à respectiva alta dos preços; sua reação/rebeldia a tais situações abusivas é punida com a prisão. A aproximação ao Outro, neste caso o Nordeste do Brasil, continua com a incursão do eu-narrador-personagem estrangeira pela história do Brasil, com a evocação do movimento (emancipatório) de Antônio Conselheiro, liquidado pelo governo com canhões alemães da marca Krupp, com a alusão ao Beato Lourenço e à sua comunidade comunista, à história do Geraldo Holandês, à história de Lampião, à Coluna Prestes, ao movimento de Francisco Julião. Em todas estas histórias, os pobres sempre acabam por levar a pior, são sempre esmagados pelas classes dirigentes, donas do capital. Contudo, na oposição essencial entre trabalhadores e patrões, o eu-narrador-personagem estrangeira também realiza a “penetração analítica nas relações que surgiram entre países colonizados outrora (ou ainda hoje) e países colonizadores”, como pressupõe a teoria aqui evocada, pois, à construção dessas imagens, segue-se invariavelmente um comentário (também irônico), que contém um “mais saber” crítico. Vejam-se alguns dos muitos exemplos, a seguir: Depois de declarar que, no tempo do império, durante a seca tudo se havia esgotado e até os escravos haviam fugido para o sul, o eu-narrador-personagem estrangeira acrescenta o comentário que alude aos interesses econômicos e políticos norteadores das ações: “Mas nem todos queriam banir e extinguir a seca, senão não haveria ninguém mais por lá, por quem valesse a pena voltar.”[7] Depois de colocar em evidência a publicidade de artigos de consumo, como colchões, carros, creme dental, geladeiras, vem o comentário irônico, a mostrar como os pobres em sua santa ignorância sustentam os ricos: “Aber alle mochten die Dürre nicht vertreiben und auslöschen, sonst wäre niemand mehr dagewesen, dessentwegen es sich lohnte wiederzukommen“. LOETSCHER, 1980, p. 23. Trad. FONSECA, 2003, p.17.

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Um céu cheio de chamarizes. Cristo abençoa a sua cidade com projetores de luz, e sobre o Rio brilha a estrela da Mercedes. E como todo o milagre, o outro milagre tem também seu poder de cura: lá existem cegos. Esses não vêem os arranha-céus e as instituições financeiras, o aço e o vidro, as ruas fechadas para pedestres e os clubes, nem os estacionamentos e nem as residências; só vêem as cidades cheias de barracões aumentarem. Os indigentes são recolhidos e levados a celas individuais, para se curarem de sua mancha cega. Alguns que chegaram à prisão andando com as próprias pernas, tomaram um choque com o milagre, e depois disso necessitaram de uma bengala. [...] Milagre atrás de milagre: a ceia milagrosa dos cinco mil em um país com mais de cem milhões. [...] Um milagre do perdão: fica-se livre de dívidas antigas, adquirindo novas. Um milagre singular, mas um milagre, pelo qual não é preciso aguardar, e do qual é possível participar. Eles falam assim: vamos construir um bolo cada vez maior e mais alto, e quando alcançar o céu, vamos dividi-lo.[8]

É óbvia a alusão crítica à Ditadura Civil-Militar e à política econômica do então ministro Delfim Neto, autor da metáfora do bolo. O eu-narrador-personagem estrangeira, de fato, contempla o Brasil com um olhar aberto, curioso, solidário e crítico: constata as relações entre classes opressoras e oprimidas, as relações entre o Brasil terceiro-mundista e as metrópoles imperialistas, penetrandoas analiticamente. E vai além, adentrando o que Lützeler designou “Ein Himmel voller Lockvögel. Christus segnet im Scheinwerferlicht seine Stadt, und über Rio leuchtet der Stern von Mercedes. Und wie jedes Wunder hat auch das andere Wunder seine Heilung: Da gibt es Blinde. Die sehen nicht die Wolkenkratzer und die Bankhäuser, den Stahl und das Glas, die Fußgängerzonen und die Klubs, weder die Parkhäuser noch die Residenzen; die sehen nur, wie Barackenstädte größer werden. Diese Leidenden werden eingesammelt und in Einzelzellen gebracht, um sie von ihrem blinden Fleck zu heilen. Mancher, der auf zwei Beinen ins Gefängnis kam, wurde dort mit dem Wunder geschockt, so daß er hinterher einen Stock brauchte. [...] Wunder über Wunder: die wunderbare Speisung der Fünftausend in einem Land von über hundert Millionen. [...] Ein Wunder der Vergebung: es erlöst sich von alten Schulden, indem es neue macht. Ein einziges Wunder, aber eines, auf das man nicht warten muß, sondern an dem man sich beteiligen kann. Also sagen sie: Laßt uns einen Kuchen bauen, immer größer und höher, und wenn er bis zum Himmel reicht, werden wir ihn verteilen. LOETSCHER, 1980, p. 78. Trad. FONSECA, 2003, p.61.

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de aspecto programático do Pós-Colonialismo, ou seja, como se viu anteriormente, também alude a modos de superação destas estruturas envelhecidas e à superação de dependências de poder entre o Primeiro e o Terceiro Mundo, entre o Norte e o Sul, à superação dos racismos e dos preconceitos culturais. São do eu-narrador-personagem estrangeira os seguintes diagnósticos que apontam para soluções operativas: Por que tanta terra boa não poderia ser uma terra abençoada. Talvez seja o caso de falta de cooperação mútua. Não de associações entre amigos, mas de ligas de camponeses e sindicatos. De juntar os homens que não batem no peito com a mão, mas que votam com elas, que não rezam novenas, mas discutem, que não narram lendas antigas de Damião e de seus quatorze ajudantes, mas lendas sobre o futuro: De um trabalhador que tenha trabalho e, para o trabalho, um horário de trabalho. Que receba um salário que também seja pago. Um salário que dê para ter carne na mesa; para as crianças beberem leite e irem à escola. Que não seja castigado quando ficar doente ou sofrer um acidente. Que já aos quarenta anos, não seja um homem acabado. De um trabalhador que não só vá às peregrinações, mas faça piquete diante dos portões das fábricas. Que não só participe de procissões, mas também de passeatas, que não só carregue a bandeira de São Francisco e o baldaquim de todos os santos, mas também faixas com palavras de ordem. A lenda sobre um futuro contada, não por conselheiros como Antônio ou o beato Lourenço, mas por um Julião, por exemplo, que não fez sermões, mas análises; que não se baseia na Bíblia, mas na Constituição.[9] “Warum sollte soviel gutes Land nicht gelobtes Land werden. Man müßte sich vielleicht nur einmal mehr zusammentun. Nicht zu Bruderschaften, sondern zu Bauernligen und zu Gewerkschaften. Die Männer zusammenbringen, die nicht mit der Hand an die Brust schlagen, sondern mit ihr abstimmen, die nicht Novenen beten, sondern diskutieren, die nicht die alten Legenden von Damio und den vierzehn Nothelfern erzählen, sondern eine Legende der Zukunft: Von einem Arbeiter, der Arbeit hat und für die Arbeit eine Arbeitszeit. Der einen Lohn kriegt, der auch ausbezahlt wird. Ein Lohn, der dafür reicht, daß auch einmal Fleisch auf den Tisch kommt, die Kinder Milch trinken und in die Schule gehen. Der nicht bestraft wird, wenn er krank wird oder einen Unfall hat. Der nicht schon mit vierzig Jahren ein verbrauchter Mann ist. Von einem Arbeiter, der nicht nur auf die Wallfahrt geht, sondern vor den Fabriktoren Streikposten aufstellt. Der nicht nur an Prozessionen teilnimmt, sondern auch an Protest märschen, der nicht nur die Fahnen des heiligen

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É este mesmo eu-narrador-personagem estrangeira que denuncia a prisão de um operário. São dele as palavras explicativas: A primeira prisão aconteceu, quando alguém fez um pronunciamento diante de uma fábrica de algodão fechada: - a seca não havia sido feita pelo céu e sim pelos ricos; era só preciso ir aos clubes, onde os patrões, tomando uísque importado, combinavam com a seca os preços.[10]

É este mesmo eu-narrador-personagem estrangeira que despe o Padim Ciço de sua santidade popular ao declarar que “um desenho mostrava como ele falou para os camponeses que queriam se rebelar. Anunciou-lhes o desejo de Deus, e eles abandonaram a ideia de revolução. E havia uma foto dele sentado com os latifundiários”[11]. Ao mesmo tempo desacredita a religiosidade das pessoas, ou denuncia o mau exemplo seguido, flagrando o movimento de passagem de um milagre (religioso) a outro (econômico): O Padrinho nunca aceitou um tostão de alguém que buscasse ajuda”, acreditavam as duas mulheres. Por isso, outra pessoa teve de cuidar dos presentes. Essa era sua empregada. Não aquela com a boca que sangrava, essa morrera há tempos. No seu lugar, surgiu uma outra bem-aventurada. Recebia o dinheiro, as jóias e o gado e cuidava do legado e dos testamentos. Não tinha o milagre na boca, mas nas mãos. O gado proliferava maravilhosamente, as cercas delimitavam terras cada vez maiores. Quando o abatedouro foi construído, tornou-se sócia! E quando a luz elétrica chegou, não gritou simplesmente “luz! luz!”, comprou logo ações.[12] Francisco trägt und den Baldachin für das Allerheiligste, sondern auch Transparente und Spruchbänder. Die Legende von einer Zukunft, über die nicht Ratgeber wie Antonio oder der selige Lourenço berichten, sondern ein Juliao zum Beispiel, der nicht predigt, sondern analysiert, der sich nicht auf die Bibel stützt, sondern aufs Gesetzbuch.“ LOETSCHER, 1980, p. 94. Trad. FONSECA, 2003, p.73. 10 Als einer vor einer geschlossenen Baumwoll Fabrik eine Rede hielt: die Dürre werde nicht vom Himmel gemacht, sondern von den Reichen, man müsse nur in die Klubs gehen, wo die Patrons mit der Dürre bei einem internationalen Whisky die Preise absprächen, fand die erste Verhaftung statt. LOETSCHER, 1980, p.27-28. Trad. FONSECA, 2003, p. 20-21. 11 Da war eine Zeichnung, wie er zu Landarbeitern redete, welche sich erheben wollten. Er verkündete ihnen, was Gottes Wille sei, und so ließen sie den Aufstand bleiben. Und man sah ein Photo, auf dem er mit Großgrundbesitzern zusammen saß. LOETSCHER, 1980, p.52. Trad. FONSECA, 2003, p.41. 12

“Nie hat das Paterchen einem Hilfesuchenden auch nur einen Cruzeiro


Numa leitura assim de superfície, verificando a presença da(s) teoria(s) pós-colonialita(s) nesta narrativa de Loetscher, identificando as observações veiculadas pelo eu-narradorpersonagem estrangeira, suas tentativas de aproximação ao Outro, suas descrições, suas críticas, suas propostas, de fato, é possível identificar uma obra, que se poderia encaixar em tal âmbito, onde a intenção do autor parece ter sido expor ao mundo europeu de língua alemã a pobreza, a ignorância, a opressão sofrida pelo povo brasileiro temente a Deus, e pelo nordestino em particular, não a partir da antiga postura colonial superior, sapiente, exploradora e missionária, mas com um olhar aberto, curioso, solidário e crítico, embora o “mais saber”, frequentemente transmitido pelo viés da ironia, permita configurar um eu-narrador-personagem estrangeira paternalista, um eu-narrador-personagem estrangeira que expõe livremente suas ideias e análises feitas sobre o Brasil sem interlocutores, que lhe matizem o discurso. Olhando com mais atenção, percebem-se, na escolha dos fatos/fenômenos observados por esse eu-narrador-personagem estrangeira, silêncios que gritam. Por exemplo, a pouca voz dada às personagens brasileiras não é criticamente relevante. Têm voz, no texto de Loetcher, o fotógrafo, preocupado com as técnicas da foto; a mãe e a tia da criança, que, em geral, se entretêm com assuntos domésticos e/ou cotidianos; a voz do pai que se manifesta sobre a foto ou sobre o enterro, a voz do lojista que alude aos biscoitos, a voz das prostitutas atinente ao entorno imediato e mesmo a do engenheiro não vai além de banalidades. O “nós” do povo, que fala em discurso indireto livre, tem um discurso tão elevado, que não há identificação possível entre voz e sujeito emissor. É evidente que quem fala é o abgenommen”, wußten die beiden Frauen. So mußte sich auch jemand anders um die Geschenke kümmern. Es war seine Haushälterin. Nicht die mit dem Blutmund, die war längst gestorben. Na ihre Stelle war eine andere Selige getreten. Sie nahm das GEld entgegen, den Schmuck und das Vieh, und sie betreute die Legate und die Testamente. Sie hatte das Wunder nicht im Mund, sondern in den Händen. Das Vieh vermehrte sich auf wunderbare Weise, und die Zäune steckten immer größere Ländereien ab. Als das Schlachthaus gebaut wurde, beteiligte sie sich daran. Und als das Elektrische kam, rief sie nicht einfach “Licht! Licht”, sondern sie nahm Aktien darauf. LOETSCHER, 1980, p. 53. Trad. FONSECA, 2003, loc.cit.


eu-narrador-personagem estrangeira. As interpretações críticas das situações configuradas são feitas sempre pelo mesmo eu-narradorpersonagem estrangeira, na maioria das vezes também em discurso indireto livre. Ainda que o eu-narrador-personagem estrangeira, que em meio à narrativa chega a se confundir com o próprio autor, tenha lançado mão de observações feitas in loco em suas frequentes visitas ao Brasil, ainda que tenha realizado inúmeras leituras de obras da cultura brasileira que, em tese, lhe teriam oferecido autoimagens do país, ainda assim, tudo isso não deixa de passar pelo filtro da formação europeia do autor. O ponto de vista na obra, travestido de vários ângulos diferentes, a lembrar o pós-modernismo, é predominantemente do intelectual suíço. Afinal, não deixa de tratarse, aqui, de um processo tradutório, isto é, da tradução de uma realidade, enformada na variante brasileira da língua portuguesa, para a variante suíça do idioma alemão, que conforma o autor e suas circunstâncias. E as palavras explicativas de Ottmar Ette também podem iluminar este contexto. Diz ele: A boa tradução nem é traição, nem tampouco logro; paradoxalmente, é uma mentira, que traz à luz outras verdades, a saber, as verdades do Outro. É uma ponte a oferecer ao leitor, viandante entre dois mundos, chão firme sob os pés, mas sem que possa se fazer passar por continente e, portanto, sem poder ser territorializada.[13]

Numa narrativa, quanto mais assíduo é o ponto de vista do sujeito-narrador, tanto mais colonialista é o olhar, neste caso, o olhar sobre o Brasil. Neste livro de Loetscher, o sujeito a quem é dirigido o “diálogo/monólogo” está morto! Além disso, este olhar peremptório não só traduz os objetos observados; este olhar, ao dirigir-se, em última instância, a um público leitor - o de língua alemã –, acaba por colonizá-lo. 13 “Die gute Übersetzung ist weder Verrat noch Täuschung, sondern paradoxerweise eine Lüge, die andere Wahrheiten beziehungsweise die Wahrheiten des Anderen zum Vorschein bringt. Sie ist eine Brücke, die dem Lesenden als Wanderer zwischen zwei Welten festen Boden unter den Füßen gibt, ohne doch so zu tun, als wäre sie das Festland und damit territorialisierbar”. ETTE, 2005, p. 111. Trad. da autora.


Igualmente deve ser considerado o silêncio em torno de um outro Nordeste, que também existe. Haveria que mostrar a esperança no futuro brasileiro, não só através da criança no bordel paupérrimo, mas mencionando igualmente a transformação agrária, ocorrida no Vale do Rio Francisco, promovida nos últimos anos da década de 60 com técnicas de irrigação pública, pelo programa de modernização da agricultura com a Superintendência do Vale do São Francisco (SUVALE), e principalmente, com a criação da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF), ocorrida em 1974, cuja atuação passa a priorizar a agricultura irrigada, possibilitando colheitas bianuais de uvas, melões e de uma infinidade de outros produtos, para o mercado externo e interno, empreendimento bem sucedido e com muito bons resultados até hoje. O silenciamento desta parte “moderna” do Nordeste brasileiro ajuda a empurrar a obra de Loetscher para o âmbito das narrativas que exploram o exotismo negativo (a miséria). Há ainda o silêncio sobre as ações políticas do operário nordestino Luis Inácio da Silva, o Lula. Sua luta pela emancipação da classe operária não deve ser em hipótese alguma ignorada. Em 1977, Lula já havia obtido projeção nacional ao liderar a reivindicação da reposição aos salários do índice de inflação de 1973, com ampla cobertura na imprensa, ainda na vigência do AI-5. Em 1978, fora reeleito presidente do sindicato e começara a liderar as negociações nas greves de metalúrgicos de sua base, que passaram a acontecer em larga escala. Dizer como Adelaide Stooss em seu doutoramento, intitulado O espaço brasileiro e as (im)possibilidades utópicas nas obras de Stefan Zweig e Hugo Loetscher (p.330), que o autor suíço não tocou nesse assunto, talvez por receio de afrontar a ditadura, depois de sua má experiência com a ditadura de Salazar, é apequenar por demais o autor. Levando-se em consideração o “mais saber crítico irônico” e os silêncios analisados, esta narrativa de Hugo Loetscher, de uma perspectiva brasileira, pode ser deslocada para um outro patamar, para uma espécie de neocolonialismo, um neocolonialismo cultural


e ideológico de esquerda, de certo cariz europeu, que ignora os seus matizes brasileiros. Fontes bibliográFicas ANDRESS, Reinhard. Hugo Loetschers Wunderwelt. Eine brasilianische Begegnung: der exemplarische postkoloniale Blick. In: EMSEL, Martina & WOTJAK, Gerd (orgs.). Deutsch in Lateinamerika. Ausbildung, Forschung, Berufsbezug. Akten des XII. ALEG-Kongresses. Havanna/Leipzig: ALEG, 2006, CDROM. DUBIEL, Jochen. Dialektik der postkolonialen Hybridität. Die intrakulturelle Überwindung des kolonialen Blicks in der Literatur. Bielefeld: Aisthesis, 2007. ETTE, Ottmar. ZwischenWeltenSchreiben. Literaturen ohne festen Wohnsitz. Berlin: Kulturverlag Kadmos, 2005, p. 111. FONSECA, Jael Glauce. Mundo dos milagres.Um encontro brasileiro. In: FONSECA, Jael Glauce. Iconofilia e iconoclastia em Mundo dos milagres: um encontro brasileiro de Hugo Loetscher. Tese de Doutorado em Literatura Alemã, FFLCH-USP, 374 f., 2003. Anexo, p. 248 e seguintes. LOETSCHER, Hugo. Wunderwelt. Eine brasilianische Begegnung. Zürich: Ex Libris, 1980. LOETSCHER, Hugo. Vom Erzählen erzählen. Zürich, Diogenes, 1988. LÜTZELER, Paul Michael (ed.). Der postkoloniale Blick. Deutsche Autoren berichten aus der Dritten Welt. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1997.


LÜTZELER, Paul Michael (ed.). Schriftsteller und “Dritte Welt”. Studien zum postkolonialen. Tübingen: Stauffenburg, 1998. LÜTZELER, Paul Michael. Postmoderne und postkoloniale deutschsprachige Literatur. Bielefeld: Aisthesis, 2005. PRATT, Mary Louise. Imperial Eyes. Travel writing and transculturation. London and New York: Routledge, 1992, p. 111-243. SABALIUS, Romey. Eine postkoloniale perspektive. Hugo Loetscher: „Brasilien als Beispiel“. In: LÜTZELER, Paul Michael (ed.). Schriftsteller und “Dritte Welt”. Studien zum postkolonialen. Tübingen: Stauffenburg, 1998, p. 167-182. VENTURA, Zuenir. 1968 o ano que não acabou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. Meio eletrônico: DÜRBECK, Gabriele. Postkoloniale Studien in der Germanistik – Periodisierung und Perspektiven. In: http://www.literaturkritik. de/public/rezension.php?rez_id=11956&ausgabe=200806. Acesso em 21 de maio de 2010. GÖTTSCHE, Dirk . Postkolonialismus und Afrika-Diskurs in der deutschsprachigen Gegenwartsliteratur. In: http://netzwerk. postkoloniale-studien.av.literaturwissenschaft.uni-mainz. de/173.php. Acesso em 12 de março de 2010. KEIL, Thomas. Die postkoloniale deutsche Literatur in Namibia (1920 – 2000). In: http://elib.uni-stuttgart.de/opus/ volltexte/2003/1495/. Acesso em 15 de abril de 2010.


“LEARN YOUR ENGLISH” E PRATIQUE SEU SPANGLISH: LINGUAGEM E IDENTIDADE(S) EM PRODUÇÕES LITERÁRIAS DE AUTORES LATINOS NOS ESTADOS UNIDOS Giséle Manganelli Fernandes[1] Immigrants wrap their babies in the American flag, feed them mashed hot dogs and apple pie, name them Bill and Daisy, buy them blonde dolls that blink blue eyes or a football and tiny cleats before the baby can even walk, speak to them in thick English, hallo, babe, hallo, whisper in Spanish or Polish when the babies sleep, whisper in a dark parent bed, that dark parent fear, “Will they like our boy, our girl, our fine american boy, our fine american girl?” (In: Literature and Society, 2000, p.173-174)

O poema de Pat Mora transcrito acima traz reflexões importantes sobre os sentimentos dos imigrantes nos Estados Unidos. Os pais imigrantes educam suas crianças nascidas nos Estados Unidos com todo o patriotismo característico dos americanos, enrolados na “American flag”, alimentam seus filhos com comidas típicas, tais como cachorro-quente e torta de maçã, colocam-lhes nomes em inglês (“Bill and Daisy”), dão-lhes presentes clássicos daquele país. Porém, mas nada apaga a apreensão dos pais de que seu filho/ sua filha não seja aceito como um cidadão americano. Os filhos de 1 Giséle Manganelli Fernandes é professora do Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Estadual Paulista – Câmpus de São José do Rio Preto.


imigrantes podem, por várias gerações, ter essa percepção de não pertencerem completamente ao país em que nasceram. E os pais, mesmo com um inglês classificado como “thick”, falam essa língua com seus filhos, abandonando, em boa parte, suas línguas maternas. Torna-se interessante observar que a letra “A” da palavra “American” em “American flag”, na primeira linha, está em letra maiúscula; porém, as letras “as” em “american boy” e “american girl”, nas linhas 13 e 14, estão em letras minúsculas, mostrando uma não certeza dessa nacionalidade americana, em letra maiúscula como deve ser pelo padrão formal da Língua Inglesa, assim como a da bandeira. Pat Mora nasceu em El Paso, Texas, e o debate envolvendo fronteiras se faz presente em seus textos por meio da abordagem de aspectos históricos, mitológicos e linguísticos. Este capítulo traz, em seu eixo, escritores cujas produções literárias têm como foco questões de fronteiras (não físicas, nesse caso) que implicam viver entre línguas e buscar uma identidade. Por meio das análises dos textos, será possível observar como a situação dos latinos nos Estados Unidos pode ser pensada além de uma perspectiva pós-colonial. A escritora Julia Alvarez, em seu texto “Entre Lucas y Juan Mejía”, discute essa expressão dominicana que pode ser usada quando uma pessoa não tem uma “simple answer” (2011, p.1747-8), por exemplo, como “I’m fine” ou “I’m not feeling so good” (p.1748). Alvarez mostra como a origem da expressão perdeu-se no tempo, mas como a sensação de “being-in-the-middle”, que essa expressão carrega, está diretamente conectada à sua situação de ser uma “DominicanAmerican novelist” (p.1748). A autora ainda enfatiza sua condição de ter esse hífen e como ele é importante para o entendimento de sua história de vida. A proposta de Alvarez concentra-se em mostrar sua condição de estar em um lugar “in-between” (p.1749). A autora atribui ao hífen a qualidade de ser muito estimulante para uma escritora como ela, pois este é um lugar onde “two worlds colide or blend together” (p.1748). A questão do hífen é muito significativa, pois revela que o indivíduo


não consegue ter uma nacionalidade definida, não sendo nem um nem outro. A noção de estar “in-between” retrata o sentimento desses imigrantes e seus descendentes que anseiam ter o seu espaço reconhecido e respeitado. Eles buscam pertencer a um determinado lugar, algo difícil de ser concretizado. Em seu texto, a autora recorda-se de seus anos na escola americana na República Dominicana. Todos lhe diziam, “You have to learn your English” (2011, p.1748); porém, ela afirma ter feito “a poor job of it” (2011, p.1748) e sempre tinha de ir para as aulas no verão. Um dos fatos relevantes narrados por Alvarez era que eles viviam sob a ditadura de Trujillo e, seu pai, que já tinha sido exilado, ainda conspirava contra o ditador. Então, como a polícia secreta o estava perseguindo, eles foram para New York. Aí tem início o choque cultural que, a princípio, tinha seu encantamento (“I was silenced with astonishment,” 2011, p.1749); porém, com o tempo, ela passou a notar que não tinha mais uma língua de referência (“I began losing my Spanish before getting a foothold in English. I was without a language, without any way to fend for myself, without solid ground to stand on.”, 2011, p. 1749). Afinal, todos falavam Inglês ao seu redor e um Inglês que ela tinha de se esforçar para entender. Ao perceber o seu despreparo para aquela situação, Alvarez decidiu ler, estudar a língua (“I began studying words in a precise, self-conscious, intentional way, which is perfect training for a writer,”, 2011, p.1749), a escrever e, então, começou sua arte de escritora para colocar esses dois mundos em contato. Para Alvarez, escrever significa “A way of reconciling two cultures that mixed together in such odd combinations”, 2011, p.1749). Ao produzir suas obras, Alvarez mostra a perspectiva de quem faz parte de uma comunidade de indivíduos que não pertencem nem a um mundo, nem a outro; isto é, eles encontram-se “entre Lucas y Juan Mejía” (2011, p.1749). Ainda focalizando a produção de escritoras latinas, a portoriquenha Esmeralda Santiago narra a aventura da imigração da sua família para New York na obra When I Was Puerto Rican: A Memoir (1993).


A partir da discussão da diferença em saborear uma goiaba em Porto Rico, quando esse prazer lhe era permitido a partir do pé da fruta (“As children, we didn’t always wait for the fruit to ripen. We raided the bushes as soon as the guavas were large enough to bend the bench”, 2006, p.3), e a comparação com a sua vida nos Estados Unidos, onde ela tinha passado a ter de comprar a goiaba a “$ 1.59” cada, ela analisa o quanto o seu mundo havia se modificado: “The guava joins its sisters under the harsh fluorescent lights of the exotic fruit display. I push my cart away, toward the apples and pears of my adulthood, their nearly seedless ripeness predictable and bittersweet” (2006, p.4). Agora, a goiaba estava na “exotic fruit display”, portanto, não ser tratando mais de uma fruta local, mas sim estrangeira, como a própria Esmeralda, já adulta, se sentia nos EUA. A narrativa prossegue com a autora narrando as experiências de sua vida em Porto Rico e essa fase inclui as aulas de inglês na escola em Macún, com Miss Jiménez, pois Porto Rico tem a relação de Estado Livre Associado com os Estados Unidos. A professora de inglês apresenta um sotaque bastante acentuado do espanhol, como vemos na seguinte passagem: “Now gwee es-tody about the Jun-ited Estates gee-o-graphee” (2006, p.63). Na verdade, as aulas de inglês traziam em sua esteira uma série de implicações ligadas a procedimentos relativos a hábitos e costumes que eram ensinados a pais e filhos no centro comunitário. Em uma dessas reuniões, experts from San Juan and the Jun-ited Estates would teach our mothers all about proper nutrition and hygiene, so that we would grow up as tall and strong as Dick, Jane, and Sally, the Americanitos in our primers. (2006, p. 64). (grifo da autora)

Portanto, o padrão de desenvolvimento das crianças americanas seria o modelo a ser seguido pelas famílias de Macún. Contudo, os exemplos sobre nutrição oferecidos pelos experts americanos não se aplicavam diretamente à realidade dos alimentos disponíveis em Porto Rico. No quadro de um dos americanos ficava evidente a diferença de hábitos alimentares entre os dois locais:


There were carrots and broccoli, iceberg lettuce, apples, pears, and peaches. [...] There was no rice on the chart, no beans, no salted codfish. There were big white eggs, not at all like the small round ones our hens gave us. There was a tall glass of milk, but no coffee. […] There were bananas but no plantains, potatoes but no batatas, ceral flakes but no oatmeal, bacon but no sausages. (2006, p.66)

A situação complicou-se quando uma senhora da plateia indagou o expert: “‘But, señor,” said Doña Lola from the back of the room, ‘none of the fruits or vegetables on your chart grow in Puerto Rico.’” (2006, p.66). Diante do questionamento, o americano disse que as recomendações deveriam ser substituídas por alimentos locais, afirmação contestada algum tempo depois por um expert de San Juan. Então, “The mothers asked each other where they could get carrots and broccoli, iceberg lettuce, apples, peaches, or pears” (2006, p. 67). Ao final das apresentações, as mães receberam pacotes com cereais, pasta de amendoim e outras mercadorias, de acordo com o número de pessoas na família. Em um diálogo com seu pai, Esmeralda (ou Negrita, como o pai a chamava), pergunta-lhe sobre a relação de Porto Rico com os Estados Unidos, pois havia ouvido de Ignacio Sepúlveda que os americanos eram “imperialistas”. O pai explica como Porto Rico havia se tornado colônia dos EUA e vem à baila a questão da língua, como podemos observar na seguinte passagem: “Why do people call Americanos gringos?” “We call them gringos, they call us spiks.” “What does that mean?” “Well,” […] “There are many Puerto Ricans in New York, and when someone asks them a question they say, ‘I don spik inglish’ instead of ‘I don’t speak English.’ They make fun of our accent.” “Americanos talk funny when they speak Spanish.” “Yes, they do. The ones who don’t take the trouble to learn it well.” […] “That’s part of being an imperialist. They expect us to do things their way, even in our country.” (2006, p. 73, grifo da autora) .

E a menina associa o aprendizado da língua à aceitação da cultura e dos costumes americanos:


“If we eat all that American food they give us at the centro communal, will we become Americanos?” [...] “Only if you like it better than our Puerto Rican food” (2006, p. 74, grifo da autora)

Já morando em Nova York, Esmeralda questiona-se a respeito de sua identidade, ao perceber que havia dois grupos de porto-riquenhos na escola, e seus membros não se misturavam: os que tinham chegado há pouco tempo nos Estados Unidos e os filhos de Porto-riquenhos nascidos no Brooklyn. Novamente, o problema da língua surge como um fator primordial na afirmação identitária: […] The Brooklyn Puerto Ricans spoke English, and often no Spanish at all. [...] I felt disloyal for wanting to learn English, for liking pizza, for studying the girls with big hair and trying out their styles at home, locked in the bathroom where no one could watch. (2006, p.230)

Podemos notar que os descendentes de porto-riquenhos nascidos nos Estados Unidos já não têm uma forte conexão com Porto Rico e tampouco com o espanhol. Esmeralda, pertencente ao grupo dos recém-chegados, passa a querer integrar-se ao modo de vida na América e o aprendizado da língua inglesa é parte essencial desse processo. É interessante observar que ela se sente “desleal” por querer pertencer àquele novo lugar. Sua sensação de estar entre as duas culturas fica bastante acentuada; então, ela resolve encontrar formas para atenuar esse sentimento e, uma delas, passa pelo melhor conhecimento da língua inglesa. Portanto, Esmeralda toma o mesmo caminho que já mencionamos a respeito de Julia Álvarez: aprender a língua inglesa. Para melhorar o seu nível de desempenho em língua inglesa, Esmeralda decide ler mais livros e sua mãe lhe comprou um dicionário Inglês-Inglês. Ela narra o sucesso de seu esforço no trecho a seguir: “By my fourth month in Brooklyn, I could read and write English much better much better that I could speak it, and at midterms I stunned teachers by scoring high in English, History, and Social Studies.” (2006, p.237).


O destaque nos bons resultados escolares é valorizado pela mãe de Esmeralda, tendo em vista sua crença, transmitida aos filhos, de que “That’s what you have to do in this country,” [...] “Anyone willing to work hard can get ahead” (2006, p. 246). O American Dream permanece vivo no imaginário desses imigrantes e é constantemente alimentado pelos discursos dos políticos, nas comemorações cívicas e em outras ocasiões. Esmaralda, de certa maneira, alcança o seu “Sonho Americano”: forma-se em Performing Arts e obtém uma bolsa de estudos em Harvard. Em sua “Nota ao leitor”, a autora revela sua experiência em conversar com imigrantes que, depois de algum tempo vivendo nos Estados Unidos, retornam aos seus países de origem, para saber o quanto eles haviam mudado pela influência da cultura americana em suas vidas diárias: “they no longer fit as well in their native countries, nor do they feel one hundred percent comfortable as Americans” (2006, p.278). Ela também havia voltado a Porto Rico, porém, não se sentia mais Porto-riquenha. E, sem sombra de dúvida, a questão da língua marca de maneira vigorosa suas reflexões acerca de sua identidade: “Yet, in the United States, my darkness, my accented speech, my frequent lapses into the confused silence between English and Spanish identified me as foreign, non-American” (2006, p.278). Portanto, permanece a questão de viver “in-between”. A relação Porto Rico–Estados Unidos é bastante complexa, pois embora os porto-riquenhenos sejam cidadãos americanos pelo fato de Porto Rico ser um Estado Livre Associado dos EUA, eles são latinos e isso significa um problema de identidade tanto quanto para um mexicano ou um brasileiro. Em seu texto “Island of Lost Causes”, escrito na primeira metade da década de 1990, Esmeralda Santiago aborda essa questão política, pois haveria um plebiscito para decidir se Porto Rico deveria ser o 51º. Estado dos Estados Unidos, ou ser uma nação independente ou permanecer como Commonwealth. Santiago denuncia o plebiscito que, para ela, trata-se apenas de uma “illusion that deflects attention from the basic problems of the island” (2011, p.1715), e arrola os problemas sérios enfrentados por Porto Rico (desemprego, taxa


de homicídos, a urbanização que destruíra milhares de acres de agricultura). A autora não deixa de mencionar a questão da língua, que havia se tornado Spanglish: “a language so quicky becoming Spanglish that we have an inferiority complex about the purity of our spoken language” (2011, p.1715). E ela aborda com acuidade o cerne da ferida relativa à identidade Porto-riquenha: “We are born American citizens but harbor an intense Latin American identity” (2011, p. 1715). Essa divisão identitária reflete-se diretamente na atuação linguística do cidadão, promovendo alterações interessantes nas formas da língua original, como mostraremos adiante. Santiago firma sua postura no tocante a essa relevante matéria: In our hearts, we want to believe independence is the right choice, but our history forces us to see it as a lost cause. Still, we are not willing to give up so completely as to vote for statehood. It would be the ultimate statement of surrender. This is why so many Puerto Ricans will vote for the status quo. It fosters the illusion of choosing a destiny, neither capitulating nor fighting. But it continues to evade the question of who we are as a people. (2011, p. 1715-1716).

No plebiscito de 1993, a opção pela manutenção de Estado Livre Associado foi vitoriosa. Entretanto, o quadro mudou no referendo realizado em 2012, ocasião em que Porto Rico decidiu se tornar o 51º. Estado dos Estados Unidos. O Congresso americano ainda precisa aprovar essa decisão. Mesmo que essa nova situação se concretize, o problema identitário não será resolvido automaticamente. Outro autor nascido em Porto Rico, Tato Laviera, trata da mescla cultural e linguística em que vivem os Nuyoricans[2]. Em seu poema “my graduation speech”, Laviera expõe sua identidade dividida e como o inglês e o espanhol convivem em sua mente e em suas ações: “i think in spanish/i write in english” (2011, p.1400). No other artistic movement has drawn as much attention to the Puerto Rican experience in the United States than the Nuyorican Poets Cafe, in New York City. […] The Nuyorican poets views themselves as the voices of the people, representatives of those generations of Puerto Ricans born or raised in the United States who grew up straddling two cultures and languages and experiencing racism and poverty. (The Norton Anthology of Latino Literature, 2011, p. 1344-1345)

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Ele mostra a inquietação de um sujeito que, ao mesmo tempo, deseja voltar a Porto Rico, mas não tem segurança sobre sua adaptação àquele local novamente, pois se sente pertencendo aos dois lugares e a nenhum. Essa fragmentação aparece de maneira significativa na mistura das línguas que surge em “escribo en spanglish”. Ao jogar com seu próprio nome (“tato in spanish/’taro’ in english/ tonto in both languages”), o poeta mostra as diferentes pronúncias nas duas línguas e depois se classifica como “tonto” em ambas, revelando a sua identidade partida. Ele fica em um estado de atordoamento ao ter de “se dividir” entre “tato” para alguns e “taro” para outros. Sua percepção de não estar em lugar nenhum fica denunciada na indefinição de seus simples movimentos de ir e vir (“i don’t know if i’m coming/or si me fui ya”). Ele não sabe o significado do nome “Barranquitas” (uma cidade em Porto Rico) e tampouco o de caviar. A dúvida de se expressar em uma língua ou em outra permanece: “english or spanish/spanish or english/spanenglish”. Na verdade, ele não se sente competente em nenhuma das línguas: “hablo lo inglês matao/hablo lo espanñol matao/no sé leer ninguno bien” e chega à conclusão de que não sabe aquilo que fala: “¡ay, virgen, yo no sé hablar!” (2011, p.1401). A indefinição expressa por meio do uso da língua traz em si a instabilidade da identidade e a sensação de não pertencer a lugar nenhum. Zygmunt Bauman explica a questão da instabilidade identitária: Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age - e a determinação de se manter firme a tudo isso - são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade”. Em outras palavras, a idéia de “ter uma identidade” não vai ocorrer às pessoas enquanto o “pertencimento” continuar sendo o seu destino, uma condição sem alternativa. Só começarão a ter essa idéia na forma de uma tarefa a ser realizada, e realizada vezes e vezes sem conta, e não de uma só tacada. (2005, p.17-18)

Já no poema “AmeRícan”, Tato Laviera aborda a nova geração


“AmeRícan”, a qual se mostra inclusiva, pois ela “salutes all folklores/ european, indian, black, spanish/and anything else compatible” formando uma sociedade do tipo “you-name-it-we-got-it” (2011, p.1402). Essa geração que saúda a mistura de origens pode dar uma resposta mais aberta à condição de marginalidade imposta anteriormente a esses imigrantes, sendo, portanto, mais tolerante com a diversidade. Nesta mistura está a força desse grupo, pois eles “blend/and mix all that is good!” (2011, p.1403). Os “AmeRícan” promulgam “plena-rhythms in new york” (2011, p. 1402), isto é, a música folclórica de Porto Rico se faz presente no cotidiano da Big Apple por meio da influência dessa imigração. A definição do “ser AmeRícan” é apresentada como uma gama de muitas possibilidades: AmeRícan, defining myself my own way any way many ways Am e Rícan, with the big R and the accent on the í! (2011, p.1402)

Afinal, eles almejam definir seu “destino”, seu “way of life” (2011, p.1403). Obviamente, a língua tem um papel fundamental no processo de definição dessa “new america” (2011, p.1403) proposta pelo poema, tendo em vista que os “AmeRícan” falam “new words in spanglish tenements” (2011, p.1402). Na última estrofe, o poeta externa seu sonho de tirar o acento [í] da discussão e de poder orgulhar-se de se considerar americano, englobando as tradições de sua origem e a cultura de sua nova terra. Assim, ele será americano “[…] in the u.s. sense of the/ word, AmeRícan, America!” (2011, p.1403). Aqui reside o desejo de ter o respeito dado a qualquer cidadão dos Estados Unidos sem que sua latinidade seja um problema. Já a autora Chicana[3] Gloria Anzaldúa, em Borderlands/La The term “Chicano” was originally pejorative, used on both sides of the border to identify Mexican Americans of the lowest social class. Just as the once demeaning label “black” was appropriated and revalued by African Americans during the civil rights, black power, and black arts movements of the 1960s, so “Chicano” was embraced by Hispanic activists as a badge of pride, especially among university students and farm workers. By 1987, when the first edition of Gloria Anzaldúa’s Borderlands/La Frontera: The New Mestiza appeared,

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Frontera: The New Mestiza, trata da questão linguística focalizando a importância da legitimação das diversas línguas que ela fala (Chicano Texas Spanish, Tex-Mex e outras). Isso se constituiria em fator sine qua non para aceitar sua própria legitimação. Segundo a autora, “Ethnic identity is twin skin to linguistic identity-I am my language. Until I can take pride in my language, I cannot take pride in myself”(1999, p.81). Anzaldúa descreve seu contentamento ao ler “poetry written in TexMex for the first time” (1999, p.82), e sua experiência quando lecionava Inglês para alunos Chicanos no Ensino Médio, oportunidade em que introduziu secretamente autores Chicanos nas aulas. O diretor da escola a havia proibido de fazer isso, pois ela era “supposed to teach ‘American’ and English literature” (1999, p. 82). Anzaldúa ainda se recorda de sua batalha acadêmica para conseguir realizar pesquisa em Literatura Chicana no Doutorado, após discutir com “one advisor after the other, semester after semester” (1999, p.82). A autora explica como as Chicanas que cresceram falando Espanhol Chicano interiorizaram a noção de que sua língua se trata de um “español deficiente” (1999, p.80) e esse fato as faz ter “Low estimation of self” (1999, p.82). Elas encontram-se divididas porque falam inglês em várias ocasiões, mesmo entre elas, e temem ser consideradas “agringadas” por não falarem Espanhol Chicano. Porém, Anzaldúa esclarece que todas são Chicanas, uma não é mais Chicana que outra, mesmo falando somente inglês ou espanhol ou falando variantes do espanhol. Entretanto, a busca pela legitimação da língua é uma luta árdua pela busca de sua própria legitimação de identidade: “while I still have to speak English or Spanish when I would rather speak Spanglish, as long as I have to accommodate the English speakers rather than having them accommodate me, my tongue will be illegitimate” (1999, p.81). A incorporação do Spanglish aparece de forma bastante two more politically sensitive terms had been added to the sociocultural lexicon: “Chicana,” specifically identifying Mexican American women, particularly in light of their announced aims and the general interests of the Chicano Movement, and “mestiza,” describing Chicana women who are especially concerned with a heritage that is both Chicana and Native American. (The Norton Anthology of American Literature, volume. E ,2007, p. 2925)


proeminente em manifestações culturais recentes, como no Hip-Hop. Por exemplo, “Latin Lingo”, escrito por Senen Reyes, Louis Freeze e Lawrence Muggerud, tendo a performance de Cypress Hill, um grupo de Hip-Hop da Califórnia, expõe a difusão do Spanglish e traz à baila o surgimento do “funky bilingual”, uma nova experimentação artística, como podemos obsevar nos seguintes versos: Sen Dog is not kid of veteran I’m down, another fried hispano One of the many of the Latin de este año And I got plenty for the Jennies trying to hound dog But wait, they’re clownin’ on me cause of my language I have to tell ’em straight up, it´s called Spanglish Now who’s on the pinga tha gringo Tryin’ to get paid, from the funky bilingual (2011, p. 2485)

Partindo das reflexões aqui apresentadas acerca da relação linguagem-identidade presente em textos literários produzidos por um grupo tão heterogêneo, cabe-nos agora pensar se a situação dos latinos nos Estados Unidos poderia ser examinada sob um ângulo pós-colonial. Nesse caso, tomemos as palavras de Hugo Achugar a fim de trazermos esse assunto polêmico para o debate: Mais prudente seria assinalar que a partir do, ou no, Uruguai – ou a partir do Rio da Prata e, também, a partir do sul do Brasil – os termos da discussão sobre o pós-colonialismo e a subalternidade não têm o sentido que a academia norte-americana ou o novo Commonwealth teórico pensa que têm, ou que deveriam ter, para o conjunto da América Latina. Entre outras, pelas razões que oferece Jorge Klor de Alva quando disse que “é errôneo caracterizar as Américas após as guerras de independência como pós-coloniais. Em suma, as Américas não forma Ásia nem África; México não é Índia, Peru não é Indonésia e os latinos nos Estados Unidos – embora tragicamente perseguidos por uma vontade de exclusão – não são argelinos” (Klor de Alva, 1992) . (2006, p.63)

Portanto, a produção literária dos latinos nos Estados Unidos demanda análises “para além do pós-colonialismo”. Afinal, suas questões identitárias devem ser investigadas de acordo com suas


origens históricas e a realidade no território dos EUA, local em que recebem influência do modo de vida daquele país, mas também inserem seus costumes naquela sociedade, ocasionando, assim, uma troca cultural frequente.

REfERêNcIAS BIBLIOGRÁfIcAS ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura. Trad. Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. ANNAS, Pamela, ROSEN, Robert. Literature and Society. 3rd. ed. New Jersey: Prentice Hall, 2000 ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. 2nd. ed. San Francisco: Aunt Lute, 1999. BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. BAYM, Nina (General Editor) The Norton Anthology of American Literature. volume E. New York: W. W. Norton & Company, 2007. SANTIAGO, Esmeralda. When I Was Puerto Rican: A Memoir. Cambridge, MA: Da Capo Press, 2006. STAVANS, Ilan (General Editor) The Norton Anthology of Latino Literature. New York: W. W. Norton & Company, 2011.



PÓS-COLONIALISMO NA ESPANHA: MANUEL RIVAS E A ESCRITURA DA ALTERIDADE Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento[1]

Do máis aló da gorxa, dun profundo e misterioso fol, saíannos sons que debiamos matar.[2] Manuel Rivas

Começamos por buscar esclarecer o sentido que atribuímos, neste artigo, à expressão pós-colonialismo. Pensamos usá-la, aqui, ao considerar a semelhança de procedimentos ocorrida na discursividade europeia sobre o Oriente, que catalogava e classificava o “outro” dentro de parâmetros delimitativos, com o objetivo de “conter a radical diferença tornando-a assimilável à realidade europeia” (ÁLVARES, 2000, p.7) e o procedimento adotado pelo franquismo, que buscava homogeneizar a Espanha, pois a queria unida e grande, modelo para o mundo. Um desses procedimentos foi reprimir fortemente qualquer diferença que escapasse aos rigorosos padrões morais, políticos e religiosos preconizados pela ditadura do General Franco. Ao tomar a expressão literária do Pós-Franquismo como uma manifestação Pós-Colonial, nela reconhecemos uma resposta ao padrão centralizador, hegemônico e procuramos dialogar com a voz das minorias, da alteridade, expressa em catalão, basco ou vasconço e galego, por exemplo, e que, marginalizadas e proibidas pela ditadura franquista, tornaram-se, na Espanha, o veículo para a implementação de uma política identitária e reivindicadora do direito à diferença. Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento é professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF).

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2 Em português: De mais além da garganta,/ de um pofundo e misterioso fole,/ saíam-nos sons que devíamos matar. (Tradução da autora).


Com isso, procuramos trazer à tona a questão relativa a outras formas de dizer o mundo, outras línguas que funcionam como ponte, da margem ao centro, línguas maternas de diversas regiões que, mais que descentralizadas, foram silenciadas em determinados períodos históricos da Espanha, especialmente no período em “as águas negras de pós-guerra”, para usar uma expressão de Luis Landero (2001, p. 65) ditava a ferro e fogo as regras. Para fazê-lo, visitaremos algumas questões específicas e complexas da Espanha para deternos, por fim, na expressão narrativa de um escritor bilingue, que opta por escrever em galego, sua língua materna, com total consciência das limitações que essa escolha impõe. Trata-se de Manuel Rivas (*1957), escritor, jornalista, ensaísta e poeta que, a seu tempo, nos fornecerá os elementos necessários para corroborar e exemplificar nosso ponto de vista. É necessário dizer que, se sua obra não corre o mundo em galego, ela tampouco ficou circunscrita aos limites geográficos e linguísticos da Galiza: a obra de Rivas tornou-se conhecida mundialmente, alcançando um êxito incontestável, e foi traduzida ao espanhol por Dolores Vilavedra, galega ela também. Poucas são as traduções feitas diretamente do galego, como ocorreu aqui no Brasil, onde a tradução espanhola de um de seus mais conhecidos livros de contos erra ao traduzir as mariposas do título em espanhol/castelhano: La lengua de las mariposas, por mariposas, quando sabemos que se trata de borboletas, em português. E no original galego o título é: A língua das bolboretas (1995), tal como seria em português caso tivesse havido uma tradução direta do galego. Leia-se, a esse respeito, o comentário de Lagares: “Este último é o título de um conto que deu origem a um filme espanhol chamado La lengua de las mariposas (1999), mal traduzido no Brasil por A língua das mariposas”. Essa questão entra aqui apenas para esclarecer uma das múltiplas faces da complexidade linguística existente na Espanha[3]. Cabe deixar claro que, entre as vozes marginalizadas, entre os muitos outros que podemos trazer à cena, sobrevive a questão do Para aprofundamento do tema, indicamos a leitura de “Escritores com a língua de fora: a cultura galega entre duas fonias, de Xoán Lagares, 2008, pp. 227-238.

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poder, ou, pelo menos, uma vontade intrínseca de afirmação que, em lugar de aproximar os diferentes, os descentrados, alimenta um certo preconceito, nascido quase sempre do desconhecimento. Não será isso o que está implícito na resposta e comentário feito por George Steiner na entrevista concedida a Juan Cruz, do jornal espanhol El País? A uma pergunta do jornalista, a que responde com um “quizá”, um sugestivo talvez, Steiner propõe mudar de assunto e comenta: “ [...] me disseram que há uma universidade na Espanha em que é obrigatório falar em galego”, ao que Juan Cruz responde: “Como é obrigatório na Catalunha compartilhar o catalão com o castelhano”. A resposta de Steiner foi veemente: “Não me compare o catalão ao galego! O catalão é um idioma importante, com uma literatura impressionante. Mas o galego por que há de ser obrigatório em uma universidade?[4] (El País, 24/08/2008).

Não sendo espanhol, Steiner, um dos maiores comparatistas do mundo, expressa um juízo de valor sobre uma das línguas da Espanha e se equivoca duas vezes: a primeira, porque, ainda segundo LAGARES (2008, p. 2) “em nenhuma universidade galega é obrigatório falar em galego. A situação é exatamente a contrária. Como vem acontecendo durante séculos, há um evidente desequilíbrio entre a frequência total de uso do galego, que (ainda) é língua majoritária na Galiza, e a sua ínfima utilização no âmbito universitário”. O segundo equívoco é o cometido quando, para enaltecer a qualidade da literatura catalã, se esquece da riqueza literária do galego-português, língua de importantes obras líricas na Idade Média, obscurecida durante o Século de Ouro, e que tem na data emblemática de 1863, ano da publicação de Cantares gallegos, de Rosalía de Castro, o primeiro livro impresso escrito inteiramente em galego, o marco de seu ressurgimento. O galego conta com uma expressiva e rica produção literária, boa parte da qual foi e continua a ser produzida no período 4 Em espanhol: “Quizá. Pero, cambiando de tema, me han dicho que hay una universidad en España en la que es obligatorio hablar en gallego. Igual que es obligatorio en Cataluña compartir el catalán con el castellano. ¡Pero no me compare el catalán con el gallego! El catalán es un idioma importante, con una literatura impresionante. Pero el gallego ¿por qué ha de ser obligatorio en una universidad?” 2008.


que, na Espanha, sucede à longa ditadura franquista (1939-1975) até os nossos dias e que estamos considerando como um período póscolonial. São inúmeras as atitudes e situações que nos remetem à homogeneização, ao silenciamento do diferente e à imposição de um modelo centralizador, colonizador. Em consequência, o período que se lhe segue, o da redemocratização, reconduz ao lugar de origem muito do que havia sido deslocado para centralizar o poder. Essa recondução não ocorreu sem alguma dificuldade inicial, naturalmente: não se cicatrizam feridas da noite para o dia, especialmente na Espanha, um país multiétnico, plural cuja História não se conta em poucas linhas e no qual o multilinguismo é uma realidade. Em sua História estão aferradas as raízes de uma idiossincrasia complexa, de um multiculturalismo que esclarece as diferenças e está na origem de uma certeza: a identidade cultural espanhola não é única, são muitas, afirmação que provoca dissensões, pois há, ainda hoje, por parte até mesmo dos próprios espanhóis, certa dificuldade para compreender a Espanha como um todo no qual a unidade se faz na diversidade.

PONTUANDO ALgUMAS qUESTõES Esse país plural, em que a língua do Estado é o espanhol /castelhano, goza hoje da liberdade de expressar-se em várias “línguas co-oficiais”, algumas das quais, como o basco, o catalão e o galego podem ser usadas por qualquer cidadão para dirigir-se ao Parlamento Europeu que, por sua vez, deverá responder na língua em que foi contatado[5]. Mas é o espanhol/castelhano, a que transita por todo o país e pelo mundo, com a marca histórica do processo colonizador interno de Castela, consolidado com a conquista de Granada, em 1492, além das conquistas ultramarinas que, a partir, também, de 1492, levaram-na de Castela à América, Ásia e África. O poder político ganhou força com a consolidação do castelhano como língua oficial de todo o país, embora tenham-se mantido vivas 5

Trata-se de uma decisão da Mesa do Parlamento de 3 de julho de 2006.


outras línguas pouco conhecidas fora da região onde são faladas. LAGARES, no artigo já referido, após citar um pensamento de Bourdieu com relação ao multilinguismo, afirma que nossa própria noção de língua talvez proceda da ideologia que nasceu com o Estado-nação moderno. Essa língua que é, por antonomásia a língua nacional, identifica-se com um modelo escrito que as gramáticas e dicionários descrevem e registram, e que estende sua influência entre os falantes de um mesmo país através da imprensa, da educação e da administração pública ( 2008, p.2).

A questão espanhola, com relação às palavras nación e nacionalismo, está no centro de inúmeras discussões e tem sido tema de muitos livros e artigos, além de dissensões internas. Um desses artigos, de MALDONADO GAGO, intitula-se: “España, una nación de naciones” (1995, pp. 22-33). O título já sugere ao leitor não enfronhado no tema a questão da pluralidade; mostra que a expressão aponta para o caráter multicultural da Espanha e, faz uma série de considerações sobre a complexidade da questão que extrapola nosso propósito neste artigo, uma vez que não temos como um de nossos objetivos aprofundarmo-nos na complexidade dos nacionalismos espanhóis. Leva-nos a roçar rapidamente, esse tema o fato de que, durante a guerra civil espanhola, a palavra nacional ganhou um novo significado ao ser usada como uma espécie de selo por aqueles que se levantaram contra o governo republicano, eleito em 1936. Nacionalistas e Republicanos tornaram-se os protagonistas da fratricida guerra civil espanhola que, ao longo de três anos devastou o país. A vitória dos nacionalistas, chefiados pelo General Francisco Franco, em 1939, foi celebrada em um território destroçado onde imperavam a fome, o silêncio, a tuberculose e cuja paz decorrente do fim do conflito era, na verdade, a paz dos cemitérios[6]. Dentro dessa moldura, o sentido da palavra nacionalista desliza e se contamina com os procedimentos do grupo a que servia de O conto Cabeza rapada, obra de 1958, de Jesús Fernández Santos, recupera fielmente a atmosfera do período em causa. 6


bandeira, apontando para um sentido que envolvia, também, a ideia de autoritarismo, dogmatismo, opressão. Morto Franco, em fins de 1975, tem início o trânsito do autoritarismo centralista ao autonomismo democrático, um tema a que nos referimos para encaminhar nossas reflexões, outro item complexo da História recente da Espanha que tampouco pode ser tratado “a la ligera”. Para confirmar o que dizemos, veja-se o que ocorreu recentemente nos Tribunais Superiores espanhóis, fato cuja importância ilustra nossa afirmação: trata-se do julgamento a que foi submetido o Juiz Baltazar Garzón e que dividiu uma vez mais aquele país, ao expor, de maneira inequívoca, a ferida aberta do franquismo. Para especialistas, como o professor de Direito Penal da Universidad de Barcelona, Joan Queralt, o caso Garzón significa “que Franco não morreu”, como lemos na entrevista concedida ao jornal O Globo (15/05/2010, p. 35). Do mesmo modo reage Gabriel Pernau no jornal digital El Periódico. O jornalista encerra seu texto: “Franco contra Garzón”, com a frase: “Qué frágil es, a veces, la memoria”. (20/05/2010)[7]. Como vemos, trata-se de um tema ainda em carne viva, a quase quatro décadas da morte de Franco[8]. Que teria levado um governo integrado por generais nascidos em diversas regiões da Espanha, e não apenas em Castela - como o próprio General Franco, natural de Ferrol, na Galiza, e cuja língua materna era o galego - a impor o castelhano como única língua a ser ensinada nas escolas, e a reprimir fortemente as línguas regionais? A resposta ao fato de que a unificação linguística da Espanha no franquismo, não foi ato de um castelhano imperial, ardente defensor da língua de Castela talvez repouse no objetivo de integrar a Espanha, mantendo-a “una, grande, libre”[9], como no lema do franquismo. O sonho da unidade nacional buscou apagar os traços identitários In: http://www.elperiodico.com/default.asp?idpublicacio_PK=46&idioma =CAS&idnoticia_PK=715230&idseccio_PK=1006

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8 Indicamos para os que se interessem pelo tema , o livro de Jesús Laínz: Adiós, Espana: verdad y mentira de los nacionalismos, publicado em Madrid, pela Editora Encuentro, 2004. A obra discute a questão dos nacionalismos com cuidadoso equilíbrio e isenção. 9

Em português: “Una, forte, grande”. (T.da A)


culturais e as características específicas de cada região da Espanha. A intolerância com relação ao diferente está marcada historicamente, ao longo dos séculos, por inúmeros atos, como a expulsão dos hispano-árabes e dos hispano-judeus, em 1492, do território unificado pelos Reis Católicos, O sonho da unidade imperial de Castela provavelmente inspirou a ditadura franquista em seu empenho para apagar a diversidade. Vale recordar aqui alguns procedimentos relativos à castelhanização da Espanha durante o franquismo: a fobia contra as línguas que não o castelhano se representava nos cartazes que proliferavam pelos lugares públicos e nos transportes, onde se podiam ler mensagens como: “Español, habla la lengua del Imperio”, “Los españoles, que hablen español”, “Sana y noble advertencia: ¡hablad castellano!”[10]. Em um texto ministerial de 1943, dirigido à educação das crianças, lia-se o ardor religioso e pátrio que orientava as determinações de então: Escutem bem, isto é para sempre, crianças espanholas: aquele de vocês que esquecer sua língua espanhola ou a trocar por outra deixará de ser espanhol e cristão! Por traição contra a Espanha e pecado contra Deus! E terá que fugir da Espanha! E quando morrer, sua alma traidora irá para o inferno! (LAÍNZ, 2004, p.293) (T. da A.)[11].

Manuel Rivas, no poema intitulado Fonema, expressa lírica, mas duramente, o que lhes custava às crianças, na escola, a imposição de uma outra língua. Transcrevemos seus versos: Do máis aló da gorxa, dun profundo e misterioso fol, saíannos sons que debiamos matar. Repitan: Em português: “Espanhol, fale a língua do Império”; “Os espanhóis, que falem espanhol”; “Sã e nobre advertência: falem castelhano!” (T. da A)

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No original: Escuchad bien esto y para siempre, niños españoles: ¡El que de vosotros olvide su lengua española o la cambie por otra dejará de ser español y cristiano! ¡Por traición contra España y pecado contra Dios! ¡Y tendrá que escapar de España! ¡Y de cuando muera, su alma traidora irá al infierno! (In LAÍNZ, p. 293.)

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Los pajaros de Guadalajara tienen la garganta llena de trigo. Pero Lolo o do Rito dicía que Los pajaros de Juadalagara tienen la jarjanta llena de trijo e o mestre dáballe un pao. A min custoume algún traballo dicir sen respirar que había plantas monocotiledóneas pero non din sabido de que familia era se é que a tiña o toxo que douraba os montes de Galicia.[12] (In: O pobo da noite, 1987, p.135)

Ao transformar em poesia o medo e o sofrimento que a castração linguística lhes impunha, Manuel Rivas faz-nos pensar no fragmento de Barthes em que, retomando Lacan, a propósito de Sade, afirma: “nenhum objeto está numa relação constante com o prazer”. E faz o comentário: “Entretanto, para o escritor, esse objeto existe; não é a linguagem, é a língua, a língua materna.“ Barthes prossegue: “O escritor é alguém que brinca com o corpo da mãe [...]; para o glorificar, para o embelezar ou para o despedaçar, para o levar ao limite daquilo que, do corpo, pode ser reconhecido.” E declara:” eu iria a ponto de desfrutar de uma desfiguração da língua, e a opinião pública soltaria grandes gritos, pois ela não quer que se ‘desfigure a natureza’. ”(1973, p. 50). O medo se faz presente inúmeras vezes na obra de Rivas, uma sombra intensa como pegada ao corpo da qual não conseguem se livrar. A personagem de “A língua das bolboretas”, o pequeno Moncho, ao chegar pela primeira vez à escola não consegue controlar o medo. É assim que nos conta o que sentia: “O medo, como um rato, roíame os adentros”; (1995, p. 23). Não se lembra sequer de seu nome. E, sem poder conter-se, urina-se de medo: “E meixeime. Non me meixei na cama senón na escola”[13]. Outra personagem, o narrador do conto 12 Em tradução livre da autora para o português: Do mais profundo da garganta, / de um profundo e misterioso fole, /saíam-nos sons que devíamos matar./ Repitam:/Los pajaros de Guadalajara tienen la garganta llena de trigo./ Mas Lolo o do Rito dizia/que Los pajaros de Juadalagara tienen la jarjanta llena de trijo/e o mestre lhe batia com a palmatória. A mim me custou algum trabalho dizer sem respirar/que havia plantas monocotiledôneas/ mas não devia saber de que família era/ se é que a tinha/ o tojo que dourava os montes da Galiza. 13

Em português: “E urinei-me. Não me urinei na cama, mas na escola”


“A duración do golpe”, ainda que longe da Galiza, em Nova York, ao responder sobre a sensação que sentia então, afirma que não é de vergonha, mas de medo. E prossegue: “¿Medo? Si, isso é medo. Si, estou lonxe, a salvo, pero a sensación é medo. Medo em cada neurona, em cada célula do corpo[14]”. (2002, p. 94). Devemos esclarecer que, por outro lado, o governo franquista afrouxou aos poucos a dura lei da língua única e antes de sua morte Franco assinou, em maio de 1975, um decreto no qual concedia certa liberdade para que se estudassem outras línguas. Observe-se que os procedimentos adotados para silenciar ou apagar as diferenças, a tentativa de transferir paradigmas foi ineficaz. A repressão linguística, apesar dos abrandamentos ocasionais e do decreto de 1975, acentuou e revitalizou o sentimento de apego regional, um nacionalismo situado no extremo oposto ao cunhado pelo franquismo. Na Espanha da redemocratização ocorre o que lemos em COUTINHO, quando trata dos descentramentos ocasionados “pelo abalo sofrido pela dicotomia estabelecida tradicionalmente entre Literaturas Nacionais e Comparada” (1996, p. 69), pois os escritores das regiões subordinadas ao poder central passam a expressar a pluralidade de caminhos pelos quais “empreendem uma viagem de descoberta sem marcos definidos” (1996, p.71). Observamos na pós-ditadura franquista a emergência dos “loci” de enunciação que surgem não no Terceiro Mundo, como analisa MIGNOLO, mas nas regiões espanholas que, como vimos, foram forçadas a calar ou a ocultar sua língua primeira para abraçar a língua do Império, o castelhano (1996, p. 7)[15]. No pós-franquismo, essa foi a forma de manifestar oposição ao regime ditatorial, especialmente na Catalunha, País Vasco e na Galiza. A hegemonia do castelhano na expressão literária cede passo a obras (Tradução da autora). Em português: Medo? Sim, isso é medo. Sim, estou longe, a salvo, mas a sensação é medo. Medo em cada neurônio, em cada célula do corpo. (Tradução da autora)

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15 Para mais informações sobre o silenciamento e a revitalização das diferentes línguas regionais e suas implicações, ver Guillermo Dupuy, in Libertad Digital de 25 de marzo de 2010.


na língua primeira de cada uma dessas regiões. Com tal opção, os escritores questionam, implicitamente, a primazia do espanhol/ castelhano, uma atitude política na assunção de uma identidade nacional e cultural que, se em alguns pontos pode ser coincidente, tem também suas inúmeras especificidades, o traço característico local usado para dar maior vigor às vozes minoritárias, até há pouco tempo silenciadas. Elas querem fazer ouvir/ler a outra voz, a voz da alteridade que conta o cotidiano ficcionalizado de seu locus, dando-o a conhecer, mostrando a face de seu lugar e um outro modo de expressar o ser desse lugar. A emergência desses loci de enunciação inverte a imagem anterior que anulava sua pluralidade. Ao lançar um olhar para a História da Espanha, veremos que a expansão castelhana (não dissemos espanhola) integrou reinos, condados, califatos, reinos de taifa, ducados etc, do que resultou a configuração território-geográfica e linguística que conhecemos hoje como Espanha. Contribui para esclarecer o que vimos desenvolvendo, a afirmação de MIGNOLO, quando trata dos séculos XVI e XVII: “Itália, Espanha (ou Castela) e Portugal eram o coração da Europa” (1996, p. 9, T.da A.)[16], usando um termo que Hegel finalmente aplicou à Inglaterra, França e Alemanha do princípio do século XIX. (1996, p. 9).

AO gALEgO O qUE LHE é DEVIDO. Optamos por colocar, no centro de nossa reflexão, a literatura produzida em uma das atuais comunidades autônomas da Espanha: a Galiza, orgulhosa de sua origem celta, de sua língua galega e da riqueza de uma cultura que, antes que espanhola, considera galega. Tínhamos uma motivação pessoal: o interesse pela lírica medieval galego-portuguesa, pelas cantigas de amor e de amigo muitas das quais se perderam e de que há documentação nos Cancioneiros de Colocci-Brancucci, da Vaticana, da Ajuda e de Baena. No Cancioneiro No original: “Itália, España (o Castilla) y Portugal eran el corazón de Europa” 16


de Baena, todas as obras são escritas em língua galega ou portuguesa, segundo o Marqués de Santillana informa em sua Carta-Proemio ao Condestável de Portugal[17]. Intrigava-nos o fato de que uma língua com uma literatura de tamanha relevância cultural e política, cultivada pelo rei Alfonso el Sabio, que em galego escreveu ou mandou escrever as Cantigas de Santa Maria, no século XIII, tenha silenciado repentinamente, como aconteceu no período conhecido, na historiografia galega como “Séculos Escuros”, do XVI ao XVIII. Havia a curiosidade de encontrar a razão pela qual a voz poética de uma mulher, Rosalía de Castro surge, em 1863, após esse longo silenciamento, expressando-se em galego. Percebíamos a existência de uma luta idiomática suficientemente forte para que o galego deixasse de ser ensinado nas escolas, fosse considerado menor, percebido pela burguesia urbana como língua de paletos, de camponeses, de gente do mundo rural. Enquanto isso, o castelhano se impunha, havendo até mesmo a ilusão/percepção/ mito de que falar espanhol/castelhano assegurava uma situação social superior. Ao contrário, o galego não era língua de futuro, na luta pelo poder que se travava entre as duas línguas. Cabe citar aqui a observação de Casanova sobre o que ocorre atualmente nas regiões em que há questões semelhantes: Hoje os sinais objetivos da situação política e literária do árabe com respeito ao francês na Argélia, do gikuyu com relação ao inglês no Quênia, do gaélico com relação ao inglês na Irlanda, do catalão (ou do galiciano[18]) com relação ao castelhano na Espanha, ou seja, ao mesmo tempo, o estatuto oficial, o número de locutores, a importância no sistema de ensino, o número de livros publicados, o número de escritores que optaram por escrever nesta língua, etc, permitem avaliar e analisar o estado exato das relações de dominação lingüística e literária em cada um desses países (2002, p.334).

Apesar da busca da imposição do estereótipo colonizador que se fortaleceu durante o franquismo, da preeminência cultural de outras línguas que vimos ser abraçada por George Steiner, entre outros, na tentativa de descartar a importância do galego, observamos uma 17

Disponível em www.dim.uchile.cl/ãnmoreir/escritos/siglo_oro/troca

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Galiciciano - galego


atitude consciente pelo reconhecimento de seu valor literário, que repudia e nega o poder do colonizador e reivindica a visibilidade e o direito de fazer literatura. Temos consciência de que há muito a aprofundar nesta questão, mas nos importa aqui, sublinhar, com Casanova, que em certas regiões dependentes politicamente, mas com forte autonomia cultural, dentro das quais se desenvolvem movimentos de nacionalismo [...] cultural e político, como a Irlanda do final do século XX, a Catalunha de hoje, [e incluiríamos aqui a Galiza de hoje], a Martinica...é possível de fato descrever a emergência de um espaço literário relativamente autônomo.” (2002, p.336, pé de página).

Isabel Castro Vázquez chama a atenção do leitor para um comportamento cultural que, diferentemente da resistência, não busca um enfrentamento defensivo, mas pretende subsistir dentro de uma realidade colonial opressiva, mantendo a maior fidelidade possível ao que lhe é próprio (2007, p. 15). A escritora nos aponta a resposta àquela pergunta que nos fazíamos com relação às razões do silenciamento do galego em séculos passados, ao indicar que, sob os Reis Católicos, procedeu-se à “doma e castração do Reino de Galiza” (2007, p.22)[19] e prossegue confirmando que essa situação colonial que durou centenas de anos é conhecida como os “séculos escuros”, para Castro Vázquez uma expressão que destaca o desconhecimento e a repressão que envolveu a cultura galego-portuguesa na Galiza. Comenta a crítica em questão que durante esse período ”a língua e a cultura se mantiveram muito conectadas com o mundo rural, a natureza, a família e a tradição oral” (2007, p. 23).[20] Apenas no século XIX, com Rosalía de Castro, a literatura e cultura galegas voltarão a ter protagonismo oficial, o que não é suficiente para tirá-la da situação colonial em que se encontra, e que será acentuada durante a longa noite do período franquista, época associada a uma No original galego: “doma y castración del Reino de Galicia”. Segundo informa Castro Vázquez, trata-se da “frase escrita pelo cronista oficial do reino, Jerônimo Zurita, fillo do médico do rei de Aragón, don Fernando (nota de pé de página que mantivemos no original galego por sua fácil compreensão em português).”

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No original: “[...] a língua e a cultura mantivéronse moi conectados co mundo rural, a natureza, a família e a tradición oral” (T da A).

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total prostração econômica e de maciça emigração. Com a transição para a democracia, criou-se, segundo Castro Vázquez, o Estatuto de Autonomía pelo qual tantos intelectuais lutaram desde o século XIX. Porém estes processos, de acordo com Rivas, foram muito elitistas e não contaram com o povo, fato corroborado pelo pouco conhecido aqui no Brasil, e um dos mais lidos escritores galegos da atualidade, Suso del Toro, que descreve a Galiza como “una anomalia histórica consentida propiciada pela democracia espanhola”. [21] (2007, p.23)[22].

MANUEL RIVAS E A ESCRITURA DA ALTERIDADE Na apresentação do colóquio internacional ocorrido em março de 2010, na Sorbonne, Paris IV, intitulado: “Deux voix de la littérature galicienne contemporaine”, e dedicado a Manuel Rivas e a Suso del Toro, lemos que no contexto multicultural e pluringuístico da indiscutível explosão literária da Espanha, parece “particularmente interessante estudar a criação literária proveniente de regiões em que o eco editorial tem, ainda uma ressonância menor em relação ao de outras autonomias[23]”. E citam-se as cifras que evidenciam a primazia do catalão, com 15,5% dos livros editados na Espanha, enquanto 2,1% dizem respeito à produção em basco, 2,4% em galego e 1,8% em outras línguas, segundo cifras oficiais da Federación de Gremios de Editores de España. A todo esse esclarecimento inicial, segue-se o comentário: “Mesmo se neste panorama editorial, os 21 No original:”o Estatuto de Autonomia pólo que tantos intelectuais loitaram xa desde o século XIX. Porén, estes procesos de acordo com Rivas, foron moi elitistas e non contaron co pobo, o cal corrobora Suso de Toro describindo Galicia como ‘uma anomalía histórica consentida propiciada por la democracia española [...]” . (T da A)

Para maiores informações sobre este tema de tanta mportância para Galiza, ver Castro Vázquez, Op. Cit., e Suso del Toro Santos :.Nunca mais, Galiza à intemperie. Vigo: Xerais, 2002. 22

No original: “Dans ce contexte multiculturel et plurilinguistique, il semble particulièrement intéressant d’étudier la création littéraire en provenance de régions dont l’écho éditorial a encore une résonance moindre par rapport à celle d’autres autonomies”. Disponível na internet: http://www.crimic. paris-sorbonne.fr/composantes/rivas.pdf Consulta em 03 de junho de 2010.

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livros publicados em castelhano ocupam o lugar mais alto, escritores que se expressam em uma das outras línguas oficiais do país chegam a se impor, não somente em sua esfera de origem, mas também no plano nacional” (2010)[24] ao que acrescentaríamos: e internacional, uma vez que há obras de Manuel Rivas traduzidas a dez idiomas. Se a língua e a cultura galega mantiveram-se vivas, embora confinadas na oralidade durante o longo processo colonizador que sofreram durante séculos (e ainda sofrem segundo alguns autores), Manuel Rivas não perde a oportunidade de afirmar, nas inúmeras entrevistas concedidas e em alguns de seus textos, que aprendeu dos que escreviam no ar, dos narradores orais. Rivas escreve em galego, segundo revela nas entrevistas, porque é uma língua do lar e da rua, evoca cores, cheiros e sensações muito pessoais, já que não é uma língua estudada na escola ou em um prédio oficial. “A chamada língua materna sobreviveu, com efeito, como um fio de leite”, escreve Rivas em artigo no El País Digital (1997)[25]. Em entrevista mais recente a um jornalista português, em 2009, o escritor faz considerações que nos fornecem dados interessantes sobre sua percepção da Galiza, sobre como considera suas personagens e o que é, para ele, o ato de escrever. Transcrevemos a pergunta do entrevistador e a resposta de Manuel Rivas: Na sua obra As Chamadas Perdidas[26] (composta por contos passados na Galiza), as personagens são fortes e com esperança. É essa a imagem que quer transmitir da Galiza? Sim. Para mim a Galiza é uma metáfora do mundo, mas não quero contar histórias que sejam só galegas. As pessoas não são 24 No original: “Même si dans ce panorama éditorial, les livres publiés en castillan tiennent le haut du pavé, des écrivains s’exprimant dans l’une des autres langues officielles du pays parviennent à s’imposer, non seulement dans leur sphère d’origine mais aussi sur le plan national”. Disponível na internet: http://www.crimic.paris-sorbonne.fr/composantes/rivas.pdf Consulta em 03 de junho de 2010. 25 No original: [...] “la llamada lengua materna sobrevivió, en efecto, como un hilo de leche” (T. da A). La Galicia Emergente, publicado no El País Digital de 27 de outubro de 1997. Disponível na Internet: http://www.udel.edu/ leipzig/texts4/ela27107.htm Consulta 07/06/2010 26

Chamadas=telefonemas


estereótipos, nem cromos folclóricos. São histórias de pessoas de hoje e o que há é uma vontade de nos levantarmos contra tantos golpes. São histórias de subsistência e de existências. São pessoas marcadas pela adversidade, que não se aguentam porque lhes falta o ar, parece que já não se levantam, mas fica a vontade de resistir e essa força contra a fatalidade tem que ver com o próprio modo de escrever. As palavras também tentam levantar-se do chão. O acto de escrever, por muito pessimista que o escritor seja, é um acto de esperança. O brilho da caligrafia é impulsionado por um electrão.[27] (2009)

Em entrevista mais recente, de fevereiro de 2010, na RTVE, concedida a David Cantero, entre muitas outras revelações, Manuel Rivas comenta o que representa, para ele, o ato de escrever. Afirma que isso tem muita relação com a condição de galego, um emigrante, uma vez que o ato de escrever é como um ato de migração, um movimento em que se podem viver outras vidas e criar outros seres, estar em outros territórios. O escritor vê a identidade galega como a de um povo que tem como o ponto alto de sua cultura integrar e escutar tudo o que vem de fora pelos caminhos da emigração. O pensamento de Manuel Rivas, que nos interessa muito de perto, é o de que se escreve para cruzar fronteiras, não para fechá-las, ressaltando que esse é um dos aspectos positivos da cultura galega, uma vez que “a experiência que têm o galego da sua própria realidade é muito cosmopolita”[28]. A questão da intensa emigração está fortemente presente na obra de Manuel Rivas que considera que “Galiza é aldeia global faz tempo. Pela intensa emigração durante dois séculos e até ontem mesmo. E pelo trabalho nos mares[...]”[29]. (Apud Castro Vázquez, 2007, p.37). A diáspora provocada pelos processos colonizadores que levaram mais de dois milhões de galegos nos séculos XIX e XX à América, depois à Europa e a outras cidades da Espanha cunhou a frase de O fragmento está no original. Disponível na Intefnet, na página de PortaLivros: http://portalivros.wordpress.com/2009/03/16/ Consulta em 07/06/2010 27

28 No original: “a experiencia que tem o galego da súa propia realidade é moi cosmopolita” (Rivas, in Castro Vázquez, p. 38).

No original: “Galicia é aldea global desde jai tempo. Póla intensa emigración durante séculos, e ata onte mesmo. E pólo traballo nos mares[...]”

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Rivas: “Galicia é máis Galicia cando é todos os mundos” (Apud Castro Vázquez, 2007, p. 37). Se lhe perguntam a Rivas se se considera galego ou espanhol, responderá com uma crítica a essa formulação, pois nela vê uma “espécie de escolha contraditória”. Sua resposta seria outra pergunta, dentro do tema da partilha de identidades: Por que não se poderia ter ao mesmo tempo uma identidade multiétnica? É o que percebemos em suas declarações e comentários, em seus textos, enfim. Rivas discute a visão estereotipada, monolítica, do que é “ser espanhol” que, em geral, apaga a diversidade cultural, aquela característica múltipla a que se referiu, em prol de uma visão centrada apenas em um modo de ser, em geral irradiado por Castela por razões históricas cuja discussão ultrapassa os limites deste artigo[30]. Os ressentimentos se acentuaram durante o franquismo, com atitudes autoritárias e excluidoras, como a lei do ensino, por exemplo. Talvez por isso mesmo, a guerra civil e o franquismo funcionam como excelente moldura para as histórias de Rivas. O escritor esclarece que nasceu em um longuíssimo pós-guerra, na verdade, um período de continuação da guerra que levou muito tempo para “curar”. Um de seus contos se intitula: “A duração do golpe”[31] (2002, p. 91-98) e nele o narrador afirma: “Tiñamos unha urgencia. Isso era o que nos facía distintos. O enfrentamento côa dictadura ia alén da política. Era unha cuestión personal.”[32] (2002, p.92). Manuel Rivas integra o grupo de escritores que, no fim do século XX, começos do XXI revisita o tema da guerra civil e da ditadura franquista, talvez porque, como afirma na longa e esclarecedora entrevista concedida a David Cantero, “o esquecimento faz parte da memória” e em seus esclarecimentos ele deseja vencer, com seus relatos, essa espécie de “amnésia patológica” ao trazer de volta o que ele chama de “nuestra guerra de Troya contemporánea” e esclarece que a memória e a escritura nos 30 Deixamos aqui a indicação da obra de Julián Marías, intitulada Ser Espanhol, publicada pela Planeta. Seria interessante fazê-la dialogar com o pensamento de Manuel Rivas. 31

No original: A duração do golpe.

No original: “Tínhamos uma urgência. Isso era o que nos tornava diferentes. O enfrentamento com a ditadura ia além da política: era uma questão pessoa”. 32


impulsionam para a frente. Percebemos nessa observação o alerta de Rivas para que não se esqueça o que ocorreu ali, já que, segundo afirma, a guerra civil foi o primeiro período da segunda guerra mundial. Conclui afirmando que, na Espanha, se viveu a derrota da Humanidade. Essa será, possivelmente, uma das razões que levam Manuel Rivas a valer-se da guerra civil e/ou da ditadura franquista como moldura para suas histórias, nas quais conta o que aconteceu com aquelas pessoas que sofreram os horrores da guerra, tiveram suas vidas amputadas, o tempo de suas vidas amputado e/ou conheceram de perto a dor. Na reflexão que faz sobre esse tema, durante uma entrevista, comenta Rivas: “Na Antiguidade, pensavam que era possível curar o corpo, mas a sombra podia seguir doente. Eu creio que vi essa sombra doente na Espanha. Além disso, se houvesse que inventar um cenário próximo, impossível fazer algo tão próximo, porque a Guerra Civil foi a metáfora de todas as guerras. Todo o planeta se sentiu parte dessa história . O que aconteceu ali anteontem, aconteceu nos Balkans, no Timor. Por isso a guerra nos interpela. Eu não julgo. Mas creio que nos desperta perguntas”.[33]. Assim é Manuel Rivas, o escritor gallego que escreve sua obra literária em sua língua materna, pois, segundo afirma a David Cantero, “tener uma lengua propia es como tener en su interior um bosque autóctone”( rtve.es, 2010). Rivas não se diz nacionalista, mas internacionalista, desfruta contando e escutando histórias, e sua vida tem a vocação do relato poético, Segundo sua visão, devemos caminhar para um mundo de identidades compartilhadas, sentir os problemas da humanidade que nos rodeia pois como ser universalista sem perceber isso? Por essa visão internacionalista, de quem se sente parte da humanidade (não é isso o que afirma ao referir-se às identidades compartilhadas?), Rivas caminha na contramão do No original em espanhol: “En la Antigûedad, pensaban que era posible curar el cuerpo, pero la sombra podia seguir enferma. Además, si hubiera que inventar um escenario próximo, imposible hacer algo tan limite, porque la Guerra Civil fue uma metáfora de todas lãs guerras. Todo el Planeta se sintió partícipe de esta Historia. Lo que pasó allí anteayer, pasó em los Balcanes, en Timor. Por eso la guerra nos interpela. Yo no la juzgo. Pero creo que nos despierta preguntas”. (10/02/2010, rtve.es)

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comentário de Casanova com relação aos escritores que escrevem em sua própria língua, que como sofrem com a marginalidade mecânica e o afastamento ao qual sua língua nacional (e materna) os condena, convertem-se a um dos grandes idiomas literários. Casanova cita o exemplo de Nabokov, Kundera, Beckett que, sem terem sido obrigados, em algum momento de sua trajetória, adotam uma das grandes línguas literárias mundiais. (2002, p. 338-339). Na verdade, Manuel Rivas, embora expressando-se na língua materna, conseguiu entrar no mercado global, sem deixar de expressar-se em uma língua considerada minoritária, anulando a ausência da voz imposta pelos que controlam o poder e o discurso. Desse modo, consegue deslocar e dar voz aos silenciados pelos que detinham voz e poder, sem abrir mão de uma consciência identitária especificamente galega, alcançando o global a partir do local. Suas palavras se expandem, em círculos concêntricos, como costuma dizer, tal como a luz do Farol de Hércules que alcança a todos os navegantes que por ali passam, sem escolher, sem discriminar. Para Rivas, a literatura é uma luz com memória, não discrimina, é para todos, como a luz do Farol (rtve.es, 2010). Manuel Rivas, na mesma entrevista recém-citada, revela que seu interesse é a ótica cultural, uma vez que serve para construir pontes e passagens, abre caminhos para o outro, serve para fazer “contrabando” no melhor sentido. E comenta: “É preciso fazer passar livros, cultura, filmes pela fronteira. No mesmo espaço geográfico é absurdo que uma linha administrativa separe as pessoas”.

PALAVRAS FINAIS O crítico catalão Jordi Gracia, en Los nuevos nombres: 1975-2000, Primer Suplemento, da coleção dirigida por Francisco Rico: Historia y crítica de la literatura española, comenta com lucidez quão espinhosa e controvertida é a definição da literatura espanhola atual. No prólogo a Los nuevos nombres, Gracia sublinha que a “literatura na Espanha é, também, a narrativa de escritores catalães, vascos e galegos como


Quim Monzó, Bernardo Atxaga e Manuel Rivas, entre outros”. (2000, p. 8). Nossa pesquisa sobre o “pós-conialismo franquista” nos conduziu à obra de Manuel Rivas, romancista, poeta, jornalista, ensaísta que escreve, como Rosalía de Castro, em sua língua materna e também se propõe a resgatar o verdadeiro espírito do povo galego, com palavras que, tal como afirma, têm o poder de chispas e podem contar-nos sobre uma existência. Liberado de todas as opressões do franquismo, em um momento novo em que o hispanismo começa a assumir uma lógica plural, Manuel Rivas, constrói uma rica obra convencido de que a literatura não muda o mundo, mas pode mudar-nos a nós mesmos. Com este artigo, sinalizamos para os novos estudos que vão ganhando espaço na atualidade, ao discutirem a dificuldade para encontrar um nome que dê conta de toda a produção literária atual em contraposição ao fechado rótulo de Literatura española, enquanto sugerem, neste momento da Espanha redemocratizada, expressões como Literaturas de España, ou Literaturas en España, mais de acordo com a pluralidade franqueada pela nova democracia. REFERÊNCIAS BIBLIOgRÁFICAS ÁLVARES, Claudia. Teoria Pós-Colonial. Uma abordagem múltipla. In: MIRANDA BRAGANÇA e COELHO PRADO (Org.). Revista de Comunicação e Linguagens. Tendências. Lisboa, N°28, Relógio d´ Água, 2000, p.221-233. BARTHES, Roland. O prazer do texto. Tradução: J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1973. CASANOVA, Pascale. A república mundial das letras. Tradução: Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. CASTRO VÁZQUEZ, Isabel. Reexistencia. A obra de Manuel Rivas. Vigo: Xerais, 2007. COUTINHO, Eduardo. Literatura comparada, literaturas nacionais e o questionamento do cânone, In: REVISTA BRASILEIRA de Literatura Comparada. Rio de Janeiro, . N°3, Abralic, 1996, pp.67-73.


FERNÁNDEZ SANTOS, Jesús. Cabeza rapada. In: Cabeza rapada. Barcelona: Seix-Barral, 1998 (Biblioteca de bolsillo). LAÍNZ, Jesús. Adiós, España: verdad y mentira de los nacionalismos. Madrid: Encuentro, 2004. LAGARES, Xoán Carlos. “Escritores com a língua de fora. A cultura galega entre duas fonias”. In: SANTOS, A, C. dos, ALMEIDA C., PONTES JR. G. (orgs.). Relações Literárias Internacionais II: Interseções e frições entre fonias. Rio de Janeiro: De Letras / EDUFF, 2008, pp. 227-238. MIGNOLO, Walter. La razón postcolonial. Herencias coloniales y teorías postcoloniales. In: GRAGOATÁ: A condição pós-colonial. Niteroi, N° 1, EdUFF, 1996, pp. 07-29. RIVAS, Manuel. La lengua de las mariposas. In ¿Qué me quieres, amor? Trad. Dolores Vilavedra. 8.ed. Madrid: Santillana, 2001. RIVAS, Manuel. Que me queres, amor? Vigo: Galaxia, 1995. RIVAS, Manuel. As chamadas perdidas. Vigo: Xerais, 2002. RIVAS, Manuel. O pobo da noite. Vigo: Xerais, 1998, p. 135. RIVAS, Manuel. O lapis do carpinteiro. Vigo: Xerais, 1991. DOCUMENTOS ELETRÔNICOS ANTERO, David. Entrevista a Manuel Rivas para a RTVE. Disponível em http://www.rtve.es/mediateca/videos/201002210/entrevistamanuel-rivas/689625.shtml Consulta em 20 de maio de 2010. COLLOQUE International en Sorbonne deux voix de la littérature galicienne contemporaine Manuel Rivas y Suso del Toro. http://www.crimic.paris-sorbonne.fr/composantes/rivas.pdf

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EM BUSCA DE RAÍZES GEOGRÁFICAS E ESPIRITUAIS: O SUJEITO DIASPÓRICO NO SÉCULO XXI. Mail Marques de Azevedo[1] As palavras proféticas de W.E.B. Du Bois - “O problema do século XX é o problema da linha da cor” - ressoam ainda mais fortes no século XXI, quando o sujeito diaspórico de pele escura continua na busca de um lugar de pertença, tema dominante na chamada literatura pós-colonial. O lócus do romance de estreia da anglo-jamaicana Zadie Smith, Dentes brancos (2000), é o mundo multicolorido, multirracial e plurilinguístico do distrito londrino de Brent. O conto alegórico “Ayoluwa, a alegria do nosso povo”, de Conceição Evaristo, escritora mineira conhecida pela celebração de suas raízes afro, dá vida a uma comunidade negra mítica que se regenera, após um longo período de esterilidade, com o nascimento de uma criança. As duas narrativas se encontram em um ponto comum: a focalização de personagens diaspóricos de cor, embora em diferentes estágios do processo pós-colonial. Este trabalho examina na prosa irreverente e humorística de Smith, e no texto poético da escritora brasileira, o papel da literatura como mediação. O termo designa na teoria pós-colonial o papel da literatura como comentário ou defesa de um determinado ponto de vista, bem como de crítica e resistência a problemas decorrentes do processo colonizador europeu: diáspora, deslocamento, perda de identidade, racismo, opressão econômica e desvalorização cultural, que atingem particularmente o homem de cor. Os termos correlatos pós-colonial, pós-colonialismo, póscolonialidade, largamente empregados nos meios acadêmicos, sofrem o problema da imprecisão semântica, concretizada já no prefixo “pós”, cuja acepção de “o que vem depois” está em Mail Marques de Azevedo é professora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Literára do Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE).

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desacordo com o âmbito do campo de estudo, que engloba todo o processo de colonização. A imprecisão se estende ao objeto e aos métodos da crítica e das teorias ditas pós-coloniais. Estudiosos, críticos e analistas, canônicos e emergentes, localizados nos centros definidores ou ex-cêntricos, enfocam o problema, na busca de definições de objeto e métodos. Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin demonstram no seminal The Empire Writes Back (1989) uma agenda para os estudos pós-coloniais em inglês e definem seu objeto: Usamos o termo pós-colonial para cobrir toda a cultura afetada pelo processo do imperialismo, do momento da colonização até o dia de hoje. Sugerimos também que é o termo mais apropriado para a nova critica cross-cultural que emergiu nos últimos anos e para o discurso em que se constitui. Neste sentido este livro se ocupa do estado do mundo durante e após o período da dominação do imperialismo europeu e os efeitos nas literaturas contemporâneas. (Ashcroft et al., 1989, p. 2)

Seis anos mais tarde, em 1995, os autores reiteram o conceito amplo expresso no termo, mas ressaltam a importância de não se dissociar a ideia de “colonização” do termo “pós-colonial”, empregado cada vez mais indiscriminadamente para descrever uma variedade surpreendente de práticas culturais, econômicas e políticas, com o risco de perder seu significado efetivo. De fato, os críticos da abordagem pós-colonial apontam na homogeneização decorrente do aparato analítico empregado o risco de que “pós-colonialismo” se torne mais um método totalizador. Para Jonathan Hart, uma dificuldade no trabalho daqueles como Ashcroft, Griffiths e Tiffin, especialmente criativos e imaginativos, é que culturas diversas em todos os aspectos, como a Índia e o Canadá começam a ficar parecidas como exemplos da imaginação póscolonial (Apud MAKARIK, 1997, p.156). Os três autores representam a geração mais jovem de estudiosos da Commonwealth Literature, isto é, a literatura feita no império britânico, reconhecida já no inicio dos anos cinquenta como uma


subseção da literatura inglesa. A teoria e a prática dos estudos literários da Commmonwealth Literature refletiam as ideias humanistas e do New Criticism, das décadas de 1930 e 1940, e se empenhavam em demonstrar que a literatura das antigas colônias era dotada das mesmas qualidades duradouras e universais dos trabalhos canônicos da literatura inglesa e fazia parte da Great Tradition (usando o termo de F.R. Leavis). Os críticos e teóricos pós-coloniais, ao contrario, concentramse mais diretamente, e mesmo exclusivamente, nas condições históricas, literárias, estéticas e políticas regionais que produzem uma determinada obra literária. Para Ella Shohat, o prefixo “pós” em “pós-colonial” faria mais sentido como “seguindo”, “indo além”, como comentário de certo movimento intelectual, do que como sequência a certo ponto na história – o colonialismo. Neocolonialismo seria, então, uma forma de engajamento politicamente mais ativa, no modo de tratar a situação dos países neocolonizados. Seria, portanto, um movimento para além de um mapeamento de poder entre “colonizador-colonizado” e “centro-periferia” relativamente binarístico, fixo e estável. (1992, p. 102). A abordagem pós-colonial das obras do corpus toma, necessariamente, neste trabalho, em virtude de suas características particulares, um rumo que vai além das dicotomias já padronizadas. Quanto à crítica pós-colonial, igualmente ampla é a definição de Bart Moore-Gilbert que a vê como “conjunto de práticas de leitura mais ou menos distintas (...) voltadas principalmente para a análise de formas culturais que medeiam, desafiam ou examinam (...) relações de domínio e subordinação” (Apud HUGGAN, 2001, p. 12). Relações essas que “têm raízes na história do moderno colonialismo e imperialismo europeu, mas que são ainda aparentes na era atual do neocolonialismo”. O espaço temporal de séculos é superado apenas pela amplitude espacial do processo imperialista, que abrange a quase totalidade do mundo moderno, se considerarmos seus pólos opostos: o dominador e o dominado. A seguirmos Moore-Gilbert, justifica-se a inclusão dos textos selecionados para o corpus deste trabalho como objeto da crítica pós-


colonial. O imperialismo europeu tomou formas diversas em tempos e locais diferentes, daí a procedência de colocarmos lado a lado textos díspares, para um estudo que vai “além dos pós-colonialismos e dos pós-nacionalismos”. No entanto, paralelamente à afirmação da amplitude de seu campo de estudo, os teóricos do pós-colonialismo, já lhe estabelecem exceções. Embora teoricamente todas as culturas que foram colônias das nações europeias possam ser tratadas como pós-coloniais, há casos especiais. Não se costuma categorizar como pós-colonial a literatura da Irlanda, não obstante o status de servidão do país na estrutura política do Reino Unido, até as primeiras décadas do século XX. A literatura dos Estados Unidos, provavelmente em virtude de sua atual posição de poder no concerto internacional de nações, também não é objeto dos estudos e teorias pós-coloniais. O mesmo se dá no tratamento da literatura produzida no Brasil que, como todas as literaturas latino-americanas, ao menos em parte por causa da língua em que foram escritas, são geralmente consideradas apenas em seu próprio contexto com pouca conexão com as culturas pós-coloniais em inglês ou francês. Na realidade, os luminares da teoria pós-colonial, Edward Said, Gayatri Chakravorty Spivak e Homi Bhabha, concentraram suas pesquisas na literatura das ex-colônias inglesas. O respeitado precursor dos estudos póscoloniais, Frantz Fanon, chegou a conclusões sobre o caráter extremo da alienação colonial da pessoa, em seu trabalho como médico psiquiatra no mundo dividido da Argélia francesa. Não há como discutir, porém, que as consequências da opressão imperialista assumem os mesmos aspectos em todos os povos e regiões, em todas as culturas e línguas. A diáspora dos povos africanos – os “imigrantes” involuntários da expansão europeia para além-mar – está na base das histórias de vida de Zadie Smith e de Conceição Evaristo, bem como na construção de suas personagens em seus respectivos enclaves étnicos. No conto alegórico de Evaristo, não há personagens individualizadas, mas um conjunto de traços e qualificações que caracterizam a comunidade como um todo e fazem dela a protagonista da narrativa. Resistente diante do sofrimento, sábia, forte e paciente, a comunidade enfrenta uma crise de esterilidade física da mãe-terra,


quando se rompe o ciclo de morte e renascimento que comanda a natureza: E então deu de faltar tudo: mãos para o trabalho, alimentos, água, matéria para os nossos pensamentos e sonhos, palavras para as nossas bocas, cantos para as nossas vozes, movimento, dança, desejo para os nossos corpos (. . . ) O milagre da vida deixou de acontecer também, nenhuma criança nascia e, sem a chegada dos pequenos, tudo piorou. (. . . ) agora nenhuma família mais festejava a esperança que renascia no surgimento de sua prole. (EVARISTO, 2005: p. 35; 37)

No significado alegórico do conto está representada a esterilidade da vida do homem negro, que carrega até hoje as marcas da escravidão e da opressão do imperialismo europeu, ainda aparentes na era atual do neocolonialismo. De fato, a problemática da posição do sujeito colonial e pós-colonial, - e nisso os críticos estão de acordo -, é o que mais se aproxima de um tópico prioritário ao qual se poderia subordinar a teoria pós-colonial. Independente da idade, o indivíduo diaspórico olha para o passado a fim de reconhecer o que sobrevive dele no presente: Os mais velhos, acumulados de tanto sofrimento, olhavam para trás e do passado nada reconheciam no presente. Suas lutas, seu fazer e saber, tudo parecia ter se perdido no tempo (...) Todos estavam enfraquecidos e esquecidos da força que traziam em seus próprios nomes. As velhas mulheres também. Elas, que sempre inventavam formas de enfrentar e vencer a dor, não acreditavam mais na eficácia delas próprias. Deslembravam a potência que se achava resguardada a partir de suas denominações. (EVARISTO, 2005, p. 36)

O significado de Omolara, o nome da responsável pelo parto de Bamidele, corresponde à sua função de presidir aos nascimentos: “E no momento exato em que a vida milagrou no ventre de Bamidele, Omolara, aquela que tinha o dom de fazer vir as pessoas ao mundo, a conhecedora de todo ritual do nascimento, acolheu a criança de Bamidele” (EVARISTO, 2005, p. 38).


A questão das posições do sujeito, em todas as suas manifestações, levou estudiosos do pós-colonialismo a se utilizar com frequência da contribuição de críticos afro-americanos, especialmente bell hooks e Henry Louis Gates, Jr. Gates defende o conceito de que “raça” é um construto social - sendo blackness uma posição do sujeito em relação ao culturalmente dominante - e não uma categoria biológica ou essencial. De fato, a ancestralidade negra é assumida com orgulho pelos escritores afro-descendentes. Evidente no texto de Evaristo, a importância da tradição cultural é algo em comum com escritores afro-americanos, para quem os membros mais velhos das comunidades fornecem a conexão com as raízes de seu povo. À semelhança dos anciãos da tribo, cabelhes a tarefa de preservar a sabedoria ancestral e instruir as novas gerações. Afirma Toni Morrison, prêmio Nobel de 1993, que um dos traços distintivos da literatura afro-americana é a presença de um ancião. “E esses ancestrais não são apenas os pais, são uma espécie de pessoas sem idade, cuja atitude em relação às personagens é benevolente, instrutiva e protetora, e que transmitem uma sabedoria própria” (MORRISON, 1986, p.340). Na análise dos textos, a posição do sujeito diaspórico, foco principal deste trabalho, é examinada no relacionamento mais restrito do indivíduo com a ambientação física, psicológica e cultural. Em espectro mais amplo, analisam-se as relações persistentes de desigualdade ─ social, política, econômica ─ no quadro da sociedade multicultural que habita um dos centros irradiadores da cultura branca europeia, sob o foco da apropriação da cultura das minorias como representação do “exótico”, cuja valorização estética põe em relevo seu caráter de objeto de curiosidade. O exotismo do romance de Zadie Smith ─ uma mélange de etnias, religiões e culturas diversas ─ é certamente uma das razões do sucesso de público e crítica do livro, bem como da disputa entre editores para publicá-lo. A jovem autora recebeu um adiantamento de 250000 libras por um trabalho ainda não concluído e tornou-se alvo da atenção da mídia, fascinada com os detalhes de seu background “etnicamente interessante”. Na opinião de jornalistas, Zadie Smith


é o perfeito pacote para o exercício do marketing literário: jovem, inteligente, atraente, com opiniões muito firmes sobre vários assuntos e representante de uma Grã-Bretanha multicultural. A projeção de Zadie Smith como personalidade da mídia chegou aos meios oficiais: na divulgação do censo de 2001, em que foram expandidas as categorias de cidadãos britânicos com ascendentes raciais diversos, Smith foi mencionada como exemplo do perfil demográfico em transformação da Grã Bretanha e como símbolo das autodefinições de um novo país. No processo de elucidar as possíveis conotações do termo póscolonial, deparamo-nos com a complexidade da palavra “cultura” que codifica várias questões filosóficas fundamentais. No estudo seminal sobre a ideia de cultura, na obra homônima, Terry Eagleton afirma que “a cultura não é mais, no sentido exaltado de Matthew Arnold, uma crítica da vida, mas a crítica de uma forma de vida dominante ou majoritária por parte de uma forma de vida periférica”. Teríamos, então, a alta cultura, que Eagleton grafa com inicial maiúscula, e a cultura como identidade, grafada com minúscula. À Cultura ─ etérea e indefinida ─ desagradam o sectarismo e o caráter excessivamente mundano da cultura que, por sua vez, condena o desinteresse da Cultura. O colonialismo, portanto, é um encontro da Cultura, um poder universal, difuso e instável, com a cultura, um estado de ser que é provinciano e que anseia por uma habitação local (EAGLETON, 2005, p. 71). É esse o quadro que se percebe na Willesden Green criada por Zadie Smith para abrigar o mundo multicultural de Dentes brancos, formado por paquistaneses, hindus, chineses, jamaicanos, árabes, cujos destinos vêm desembocar ali, deixando para trás raízes geográficas e espirituais. “What is past is prologue”: a citação de The Tempest, epígrafe do romance evidencia a importância da préhistória das personagens, o legado de suas origens e a questão de como chegaram até o presente, ao mesmo tempo em que fornece o esquema para o desenvolvimento do enredo. O romance narra a saga de várias gerações que abrange o século vinte, mas atinge as raízes mais remotas do quebra-cabeças cultural


de seu background: as personagens vão e vêm entre Bangladesh, Bulgária, Jamaica, Itália e Escandinávia, mas todos se reúnem nas ruas da Londres de Zadie Smith. Envolve três famílias ─ os Joneses, casal misto, ele inglês e ela, jamaicana; os Iqbals, de Bangladesh, e os judeus-católicos, os Chalfens ─, que vivem nas proximidades, e cuja localização geográfica comum se sobrepõe a heranças culturais díspares e liga seus destinos. Se postulamos que em “Ayoluwa” o papel de protagonista é desempenhado pela comunidade, em Dentes Brancos, a função se distribui entre os membros da geração mais jovem dos três grupos familiares, que estabelecem a conexão entre as famílias. A análise do modo característico como enfrentam a complexidade do ambiente multicultural de Willesden Green, que se repete dentro de casa, ilustra um dos temas centrais do romance: o legado do império, a reunião de imigrantes nos velhos centros imperiais, e a conseqüente constituição de sociedades multiculturais. Produto da união do tímido, apagado e ineficiente Alfred Archibald Jones e da exuberante Clara Bowen, Irie é a alma do grupo de adolescentes que inclui os gêmeos Millat e Magid Iqbal e Joshua Chalfen. A meio caminho da narrativa, o grupo é apanhado fumando maconha no pátio da escola. Como castigo, Irie e um dos gêmeos, Millat, devem reunir-se na casa dos Chalfen para estudar sob a supervisão de Joyce Chalfen, uma entusiata mater famílias, que se mostra encantada com a tarefa. Recebe os dois jovens com entusiasmo e para pô-los à vontade afirma que o filho caçula (de 6 anos) gosta muito de estrangeiros e “acha os estrangeiros realmente estimulantes,” “principalmente estrangeiros morenos. “Não é, Oscar?” “ ─ Não, não gosto─ confessou Oscar, cuspindo na orelha de Irie. ─ Detesto estrangeiros morenos.” Interrompendo o retrato satírico dos Chalfens, o narrador embarca em uma digressão sobre imigração e multiculturalismo: Era o século dos estrangeiros, morenos, amarelos e brancos. Era o século do grande experimento imigrante. Só assim tarde do dia,


ao entrar num playground, a gente topa com Isaac Leung ao lado do tanque de peixes, Danny Rahman no gol do futebol, Quang O’Rourke jogando basquete e Irie Jones cantarolando uma canção. Crianças com o nome e o sobrenome num conflito direto. Nomes que ocultam em si um êxodo em massa, navios e aviões apinhados, desembarques mal recebidos, exames médicos. (SMITH, 2003, p. 317-318)

Irie Jones, que herdou a pele escura da mãe jamaicana, sente-se uma intrusa quando põe os pés na casa dos Chalfens. Parece-lhe estar entrando furtivamente na Inglaterra, como se estivesse usando “o uniforme ou a pele de outra pessoa”. As características físicas fazem de Irie, “uma estranha em uma terra estranha”, o foco da alienação multicultural (Idem, p. 319). A recepção entusiasta do romance de estreia de Zadie Smith, - visto como um dos primeiros fenômenos editoriais do século XXI - incluiu inúmeras entrevistas com a jovem autora de 25 anos, que tiveram como efeito colocar em relevo questões autobiográficas em relação ao romance. Analistas apontaram paralelos com sua personagem Irie, enquanto outros discordaram, afirmando que faltava ao romance a introspecção característica da obra autobiográfica. A relativa juventude da autora, seu background racial misto – pai inglês e mãe jamaicana – e sua ligação com os locais de Dentes Brancos, onde viveu, foram objeto de exame minucioso. São evidentes os paralelos da vida de Zadie Smith com o lócus do romance; o que é perfeitamente compreensível em uma obra da juventude, mas é preferível observá-lo sob a ótica de comentário sobre situações que Smith pode ter vivenciado ou apenas testemunhado. Sem dúvida há semelhanças entre a vida de Smith e aspectos de sua personagem Irie: os pais multirraciais, um pai mais velho e, em especial, a localização em Willesden Green, com destaque para a cor local e a vibração de suas comunidades de imigrantes. O panorama que Smith delineia do bairro ─ uma cacofonia de lojas e curry, salões de cabeleireiros baratos, restaurantes e açougues de higiene discutível, destinados a atender às particularidades dos diferentes grupos étnicos ─ lembra a riqueza de detalhes da Londres de Charles


Dickens e a descrição pós-moderna da megalópole de Martin Amis. O dono do açougue Hussein-Ishmael, que se chama Hussein-Ishmael, trava diariamente uma batalha sangrenta contra os pombos: ”A merda não é a merda (este era o mantra de Mo), o pombo é a merda”. É sua tarefa autoimposta livrar deles o local, brandindo da janela um cutelo, na tentativa de “parar a torrente de gotejamento purpúreo”. É um arremedo do críquete, o jogo tradicional dos ingleses, adaptado pelo imigrante, que incentiva o rebatedor: “─ Você taí na posição de defesa, cara. Tá pronto?” Abaixo dele, na calçada, estava Varin, um rapaz hindu extremamente obeso em uma equivocada experiência como trainee para a escola que ficava na esquina, olhando para cima como se fosse um enorme balão de desânimo sob o ponto de interrogação da pergunta de Mo. Era trabalho de Varin subir com grande dificuldade numa escada de mão e recolher pedaços grudados de pombos numa sacolinha de plástico do Kwik Save, amarrar as alças da sacola e jogá-la na lata de lixo no outro lado da rua. (SMITH, 2003, p. 17)

É ainda na análise dos protagonistas que se detecta a visão crítica da autora sobre o mundo pós-colonial e pós-nacional em que situa sua narrativa. O racismo, embora diluído nos personagens e atenuado pelo tom humorístico e satírico do narrador, é parte da realidade interna do romance. É o racismo que impulsiona Millat a protestar contra Os versos satânicos e a juntar-se ao grupo radical que promove a queima da obra “herética” de Salman Rushdie. Mas é o humor que satiriza o radicalismo do grupo de jovens fundamentalistas islâmicos, autodenominado Keepers of the Eternal and Victorius Islamic Nation, cujas iniciais formam a palavra nada agressiva KEVIN. Millat tenta seguir estritamente as regras do grupo, renuncia a todos os vícios ocidentais – fumo, drogas, bebida e mulheres -, e dedica-se à leitura assídua do Alcorão, mas não consegue livrar-se do refrão do sucesso musical de seus heróis do rock “As far back as I can remember, I always wanted to be a gangster” , que modifica para “As far back as I can remember, I always wanted to be a Muslim”. Para Samad Iqbal, a conservação da fé e das tradições ancestrais


é sinônimo de sobrevivência e informa sua decisão de enviar um dos filhos gêmeos, Magid, para ser educado em Bangladesh, no seio da família. O plano, no entanto, lhe sai às avessas e ele se queixa amargamente a Irie: O que eu mandei para casa me volta um pukka sahib inglês, um advogado de terno branco, com aquela peruca idiota. O que ficou aqui é um terrorista fundamentalista assalariado de gravata borboleta verde. Às vezes me pergunto por que me incomodar.” (SMITH, 2003, p. 407)

“O fundamentalista de gravata verde” não sabe qual é o livro a ser queimado, ─ que o contexto permite identificar como Os versos satânicos de Salman Rushdie ─ nem por que foi condenado como blasfêmia ao islamismo. Com um pé em Bangladesh e outro em Willesden Green, nada disso faz sentido para ele. Nesse romance, localizado na metrópole imperial, Rushdie emprega a palavra blasfêmia repetidas vezes, nos trechos sobre os migrantes, para se referir ás atitudes opostas nas relações interculturais: assimilacionista ou conservadora e radical. Mais do que uma representação deturpada do sagrado pelo secular, a blasfêmia para Homi Bhabha “é um momento em que o assunto ou o conteúdo de uma tradição cultural está sendo dominado ou alienado, no ato da tradução”. Bhabha desenvolve o conceito na análise do livro: Em vez de deturpar o Corão, o pecado de Rushdie reside na abertura de um espaço de contestação discursiva que coloca a autoridade do Corão dentro de uma perspectiva de relativismo histórico e cultural. Não é que o “conteúdo” do Corão seja diretamente contestado; ao revelar outras posições e possibilidades enunciativas dentro do quadro de leitura do Corão, Rushdie põe em prática a subversão de sua autenticidade através do ato de tradução cultural ─ ele reloca a “intencionalidade” do Corão repetindo-a e reinscrevendo-a no cenário do romance das migrações e diásporas culturais do pós-guerra. (BHABHA, 2001, p. 309-310)

De fato, o vínculo religioso, cuja autenticidade os fundamentalistas


muçulmanos lutam para preservar, com sacrifício da própria vida, o que relativiza o sacrifício de vidas alheias, é o traço de união mais importante, senão o único, entre grupos étnicos e culturais radicalmente diversos. Alsana Iqbal, desesperada com o perigo que representam para Magid, em Bangladesh (ex-Paquistão do Leste, ex-Índia, ex-Bengala) os motins e atrocidades que fatalmente se seguiriam ao assassinato de Indira Ghandi, vitupera o marido, que lhe aconselhara defender a própria cultura e impedir ofensas à sua religião; “─A minha própria cultura? E, por favor, me diga o que ela é. ─ Você é bengali. Aja como uma”. Para pesquisar o que significa “ser uma bengali”, Alsana consulta o volume BÁLTICO ─ CÉREBRO da Reader´s Digest Encyclopedia que lê em voz alta: A grande maioria dos habitantes de Bangladesh compõe-se de bengalis, que são em grande parte descendentes de indo-arianos que começaram a migrar do Oeste para o país há milhares de anos e que, em Bengala, mesclaram-se com grupos indígenas de vários troncos raciais. Entre as minorias étnicas, encontram-se os chakma e os mogh, povos mongolóides que vivem na região das colinas Chittagong; os santal, descendentes sobretudo de migrantes da atual Índia, e os bihari, muçulmanos não-bengalis que migraram da Índia após a divisão. (SMITH, 2003, p. 233)

Alsana, a voz cômica da razão em Dentes Brancos, conclui que é mais fácil encontrar o saco sobressalente certo para o aspirador do que uma pessoa pura, uma fé pura, na face da terra; como indoariana, pode considerar-se ocidental, apesar de tudo, usar minissaias de couro e ouvir as músicas de Tina Turner (Id., Ibid.). O termo multicultural aplicado a uma sociedade indica, em certo sentido, apenas que se trata de uma sociedade constituída por um número de culturas diferentes. Entretanto, citando Terry Eagleton, “ela é também uma entidade transcendente chamada sociedade, que não aparece em parte alguma como uma cultura específica, mas que é a medida e a matriz de todas elas” (2005, p. 71). Em comunidades menores, a exemplo dos bairros multiculturais de Londres, são os vizinhos mais próximos, e não uma racionalidade universal, que hostilizam os grupos minoritários de características físicas ─ pele


escura, olhos orientais ─ e culturais diversas da sua. É o racismo que precipita a mudança da família Iqbal da parte leste de Londres para Willesden, como reflete Alsana Iqbal: Willesden não era tão bonito quanto Queens Park, mas era bonitinho. Não dava pra negar. Não era como Whitechapel, onde aquele maluco E-knock ou coisaparecida fez um discurso que eles tiveram de se esconder no porão, enquanto moleques chutavam as vidraças com suas botas ferradas. Rios de sangue silly-billy nonsense.(SMITH,p. 62-63)

Para os Iqbal a retórica incendiária do político fascista Enoch Powell sobre “rios de sangue”, em 1968, tem um impacto real. No entanto, a voz inconfundível de Alsana reinterpreta a violência em tom humorístico, ao invés de submissão medrosa, o que se repete com outros personagens em incidentes diversos. Smith recusa-se a pregar uma mensagem antirracista em Dentes Brancos, preferindo transformar racismo em “silly-billy nonsense”, o que não significa falta de engajamento. O fato de rir do absurdo do racismo representa já uma posição política. A visão otimista de Smith do multiculturalismo londrino tem o seu reverso em algumas representações da sociedade britânica contemporânea. A questão das origens e do país natal é recorrente no romance. A caminho de uma visita programada pela escola, as três crianças barulhentas, Irie, Magid e Millat, ouvem a censura racista habitual dos passageiros do ônibus, quando se precipitam para a saída e puxam várias vezes o cordão da campainha: “’Se quer saber,’ disse um dos passageiros, ‘todos eles deviam voltar para seu próprio ...” O refrão mais velho do mundo é abafado pelo contínuo toque da campainha e pelo sapatear selvagem das três crianças. Mais do que disputa entre nacionalismo e multiculturalismo, a cena demonstra o conflito de gerações, que se evidencia quando as crianças chegam a seu destino. O senhor de idade, J.P. Hamilton, para quem trazem presentes do Festival da Colheita, mostra-se surpreso ao ver “três crianças de pele escura” à sua porta. Com relutância, permite que entrem, mas logo começa a contar histórias de suas experiências no


Congo, matando “negros”, à luz refletida no “brilho do branco” de seus dentes. Faz pouco da ideia de que o pai dos gêmeos tivesse servido no exército britânico. As crianças fogem perseguidas pelas lembranças do velho e suas exortações para que escovem bem os dentes. O único traço físico de cor branca nas raças escuras, a brancura dos dentes, que dá título ao livro é, portanto, um símbolo negativo da relação entre o homem de cor, como estereótipo da inferioridade, e o homem branco, na atitude também estereotipada de domínio hierárquico incontestável. “Os três visitantes pardos” saem correndo, “ tropeçando em si mesmos, para chegar a um dos pulmões da idade, algum lugar onde fosse possível respirar livremente” (SMITH, 2003, p. 173). Magid e Millat, os paquis, resolvem o problema da rejeição tomando os caminhos opostos percorridos por tantos outros, antes e depois deles: o da assimilação da cultura-sociedade, ou o da resistência violenta. As opções não são tão claras para Irie, cujas possíveis raízes culturais se esfumam em um passado remoto. A mãe, Clara Jones nasceu na Jamaica, tipo de colônia classificada pelos analistas como maioria alienada, em que o colonizado constitui a maioria, mas não tem acesso à região ancestral, de onde foi deslocado. Ademais, essa maioria vem de inúmeras regiões ancestrais, de tradições nativas distintas. A diversidade de culturas e a falta de acesso às comunidades de origem evidentemente alteram e restringem a relação com qualquer tipo de tradição nativa nessas colônias (HOGAN, 2000, p. 317). É significativo considerar que, em circunstância nenhuma, Irie Jones se julga com o direito de assumir a metade inglesa de sua herança genética. É impedida pelo aspecto físico: a pele escura, os cabelos rebeldes e encarapinhados e a voluptuosidade dos quadris volumosos. O primeiro passo, inevitavelmente, é a tentativa de dominar os cabelos. Passa o dia inteiro em um salão, onde gasta seu pouco dinheiro, penosamente economizado, para satisfazer o desejo impossível de cabelos lisos de movimentos suaves, com que sonham todas as cabeças femininas do bairro. Na luta contra a


“teimosa determinação dos foliculos africanos crespos“, decidida a se apresentar naquele mesmo dia a Millat com a nova cabeleira presa num coque, Irie despreza os avisos da cabeleireira e o resultado final são negalhos vermelhos agarrados ao couro cabeludo, dolorosamente queimado de produtos quimicos (SMITH, 2003, p. 235). Rebelde e determinada, uma jovem de seu tempo, Irie é dominada, no entanto, pela nostalgia do lar ancestral, ao descobrir nos guardados da avó uma gravura da Jamaica, um lugar com o qual se identifica: (...) e imaginou que o aroma da banana-da-terra a remetia a algum lugar do passado a algum lugar quase fictício, porque nunca estivera lá. (...) Ela reivindicava o passado – a versão dela do passado (...) Então era dali que ela vinha. Tudo aquilo pertencia a ela, por direito hereditário (...) Porque pátria é uma das palavras de fantasia mágica, como unicórnio, alma e infinito. (SMITH, 2003, p. 388)

O encadeamento de palavras transcendentes atribuídas a Irie enfatiza a função relevante do personagem de representar as ansiedades da juventude e das comunidades de imigrantes. É por meio dela que se articulam muitas das opiniões expressas no romance, o que dispensa comentários intrusivos da voz narrativa. “Alma” e “infinito” traduzem a visão otimista de Smith, que se repete na representação positiva, embora irônica, do melting pot. Quando o patriarca Iqbal vai protestar contra o tratamento da questão religiosa, na escola dos filhos, a diretora detalha com orgulho o calendário multicultural da instituição: Estou certa de que o senhor já percebeu que a escola reconhece uma grande variedade de eventos religiosos e seculares, entre eles o natal, Ramadan, /o ano novo chinês, Diwali, Yom Kippur, Hanukkah, o aniversário de Haile Selassié, e a morte de Martin Luther King. O Festival de Verão faz parte do projeto da escola de compromisso com a diversidade religiosa, Sr. Iqbal. (SMITH, 2003, p.131)

A mistura incongruente é um retrato satírico do que se chama no romance de “tolerância impositiva”, virtude praticada especialmente


pelos Chalfen, Marcus e Joyce, o terceiro grupo familiar, que não ocupa lugar tão extenso na narrativa, mas cujo papel é relevante, em especial como elemento catalisador das reações entre os jovens protagonistas, principalmente entre Irie e Millat. O marido, um cientista judeu, e a mulher, ex-católica de formação (e ex-sujeito póscolonial irlandês), escritora de livros de jardinagem, embora sem ligações religiosas, criam um credo secular próprio, de superioridade intelectual e tolerância que se pode dizer impositiva. A solene divulgação dos resultados da pesquisa de Marcus Chalfen ao público ─ no capítulo final, intitulado “Camundongos e memória” ─ fornece o ensejo para uma tentativa de ataque terrorista de Millat e a rejeição de Joshua das diretrizes do credo paterno. A leitura de Dentes Brancos como romance pós-colonial, e a ideia de Zadie Smith como autora “etnicamente interessante,” representam o risco de transformar o multiculturalismo em uma commodity estética. É a atração do exótico que Graham Huggan discute em The Postcolonial Exotic: Marketing the Margins (2001) e que fornece um esquema informativo para visualizar as representações póscoloniais de Smith. Huggan desenvolve o conceito de “exótico”, por meio do exame de vários teóricos, como “modo particular de percepção estética” percepção que torna estranhos pessoas, objetos e lugares, ao mesmo tempo em que os domestica, e que consegue fabricar otherness mesmo enquanto afirma render-se ao mistério intrínseco do diferente e curioso. Kwame Anthony Appiah relata que, em um encontro de curadores do Centro de Arte Africana em Nova York, David Rockefeller se pronunciou sobre o grande valor “estético” de uma máscara senufo como “objetos que acho que seriam atraentes para usar numa casa ou num escritório”, ligado em seu modo de pensar ao valor de mercado “as melhores peças têm saído por preços altíssimos”. O propósito de Appiah é deixar claro que “David Rockefeller está autorizado a dizer qualquer coisa sobre a arte da África por ser um comprador e por estar no centro, ao passo que Lela Kouakou” [membro do Conselho relegado a opinar apenas sobre a arte de seu povo, os baúle], que meramente produz arte e


vive na periferia, “é um africano pobre cujas palavras só vêm ao caso como parte da mercadologização” (1997, p. 95). O exemplo ilustra e confirma o conceito. O jogo entre otherness e familiaridade, representando o que é simultaneamente estranho e doméstico, sugere que a leitura do romance pelo viés do exotismo seria producente. Huggan debate quais são as implicações quando a marginalidade cultural passa a ocupar o centro (como acontece com o sucesso retumbante de Dentes Brancos). Se o exotismo chegou ao “centro” continua a derivar-se das margens culturais, ou talvez mais propriamente, de um discurso comodificado de marginalidade cultural. É o caso da Cultura apossando-se de produtos da cultura, explicitamente valorizados por suas propriedades de “resistência”, como meio de se autofortalecer. Como parte da conceituação do exótico, Huggan investiga o que ele chama de “marginalidades encenadas” de escritores como Rushdie, Hanif Kureishi e V.S. Naipaul. Considerando Smith de uma perspectiva teórica semelhante, verifica-se como as inscrições irônicas desses escritores sobre a recepção das culturas pós-coloniais podem ser compreendidas como uma estratégia paradoxal ao mesmo tempo de aceitação e resistência, um argumento favorável tanto para o sucesso comercial como de crítica da jovem autora, e para a repercussão duradoura do romance além do simples entusiasmo provocado pelo tema multicultural. A evidente intertextualidade em Dentes Brancos, nas referências implícitas a vários autores, mas principalmente a Salman Rushdie, ─ o que Smith reconhece em entrevistas à imprensa ─, segue uma linha já explorada por seus “mestres”. Como Rushdie, a romancista coloca seus personagens na cidade grande, confirmando a afirmativa de Homi Bhabha, referindo-se ao romance colonial localizado nos velhos centros imperiais: É para a cidade que vêm os migrantes, as minorias, os diaspóricos para mudar a história da nação (...) é a cidade que fornece o espaço no qual identificações emergentes e novos movimentos sociais do povo são encenados. É ali que, em nosso tempo, a perplexidade do viver é experimentada com mais profundidade. (2001, p.295)


Smith nega, no entanto, ter sido diretamente influenciada por Rushdie. Enredos complexos e por vezes não-realistas, características estruturais de Dentes Brancos, são recorrentes no romance pósmoderno e não indicam especificamente sujeição a Rushdie. A influência perceptível do autor indiano está no registro brincalhão das palavras cunhadas por Smith, nas cadências rítmicas da combinação de termos provenientes de diferentes culturas. Essas palavras portmanteaux, legado também de Lewis Carroll─ que Smith reconhece na introdução escrita para uma edição de 2001 de Through the Looking Glass e What Alice Found There ─, lembram a gíria marcante das ruas de Mumbay na fala das personagens de Rushdie e sua técnica de criar neologismos emendando palavras. Em Dentes Brancos, Alsana zomba dos portentosos discursos do marido sobre a queda do muro de Berlim, com uma torrente de frases que lembram uma Inglaterra anterior à sua, transcritas do original inglês, para conservar o ritmo e as correspondências sonoras da fala da personagem: “And who does he think he is? Mr Churchill-gee? Original whitecliffdover pienmash jellyeels royalvariety british bulldog, heh?” (SMITH, 2001, p. 200). A análise proposta neste trabalho, do ponto de vista da literatura pós-colonial como mediação, coloca em relevo sua função de resistência e de crítica, explícita na narrativa curta de Conceição Evaristo, ambivalente nas 500 páginas do romance de Zadie Smith. O foco no problema da identidade grupal ameaçada mostra semelhanças e contrastes no tratamento dado pelas autoras ao personagem diaspórico, no mundo mitológico da primeira e no retrato de uma realidade atual, na narrativa longa de Smith. Para a comunidade negra de Evaristo, o afastamento das raízes ancestrais significa esterilidade e morte. O personagem Irie de Zadie Smith, porta-voz das opiniões do grupo multicultural de Willesden Green, ao contrário, revolta-se contra o peso da tradição. O bateboca incessante dos dois clãs, Iqbals e Joneses, no ônibus que os leva para a conferência de Marcus Chalfen, provoca na adolescente uma explosão de ira, em que os compara às famílias “normais” que estão no veículo:


─ Que existência pacifica. Que alegria deve ser a vida delas. Abrem uma porta e tudo o que tem atrás dela é um banheiro ou uma sala de estar. Só espaços neutros. E não este labirinto interminável de cômodos presentes e cômodos passados e as coisas ditas dentro deles anos atrás e a velha merda histórica de todo mundo em todos os lugares. Não cometem constantemente os mesmos erros antigos (...) os maiores traumas da vida delas são coisas como colocar um carpete novo. Pagar contas. Consertar o portão. Não se importam com o que os filhos façam na vida, desde que sejam razoavelmente saudáveis, entendem? Felizes. E cada porra de dia não é essa desmedida batalha entre quem elas são e quem elas deveriam ser, o que elas foram e o que elas serão. (...) Nada de mesquita. Talvez uma igrejinha. Quase pecado nenhum. Montes de perdão. Nada de sótão. Nada de merda no sótão. Nada de segredo guardado. Nada de bisavós. Aposto vinte libras esterlinas agora que Samad é a única pessoa aqui que sabe qual é a medida das calças do bisavô dele. E sabem por que ninguém mais sabe? Porque não tem a menor importância. (SMITH, 2003, p. 492-493)

A vida das novas gerações do romance é afetada, e mesmo definida, pelo modo de viver de seus pais e avós. A revolta do personagem é uma indagação: “É possível romper com o passado e recomeçar?” O denouement parece indicar que sim. Como no conto de Evaristo, aguarda-se o nascimento de uma criança, o símbolo convencional de recomeço e redenção. Irie sabe que está grávida, mas é impossível determinar a identidade do pai: Magid ou Millat (por quem está apaixonada)? Como será indicada a categoria racial dessa criança nos formulários do censo britânico? Cabe a Irie a responsabilidade de amarar as pontas soltas, no fecho do romance. Smith lhe atribui uma visão otimista de um tempo ideal: “Numa visão, Irie viu uma época, uma época não muito distante desta, em que as raízes não terão mais importância porque não podem porque não devem porque são muito extensas e são muito tortuosas e estão enterradas fundo demais” (SMITH, 2003, p. 504). Independente de tradições de raça, cultura e religião, as pessoas sabem o que querem para ser felizes: Elas sabem o que querem, sobretudo as que viveram neste século, forçadas a sair de um espaço para ir para outro espaço como o sr.


De Winter (nome de nascimento, Wojciech), recebendo um novo nome, uma nova marca, a resposta a toda enquete nada nada espaço por favor espaço nada por favor nada espaço (Id., p. 496)

No entanto, “para satisfazer a curiosidade de jovens mulheres profissionais entre dezoito e trinta e dois anos”, Smith apresenta, na última página, um instantâneo do que poderia acontecer dali a sete anos: em uma praia do Caribe, Joshua, Irie, [que se tornou amante de Joshua], a filhinha sem pai, “livre como Pinóquio, um fantoche de que se cortaram os cordões que o ligavam ao pai”, e Hortense, a avó jamaicana, “uma intimidante senhora testemunha-de-jeová”, convivem com o cenário deslumbrante em perfeita harmonia. A voz narrativa desfaz a ilusão de imediato: “Mas, sem dúvida, contar histórias extravagantes como essas e outras semelhantes seria difundir o mito, a mentira deslavada de que o tempo é sempre passado e o futuro, perfeito” (SMITH, 2003, p. 517). A leitura de Dentes Brancos como romance pós-colonial coloca em relevo seu caráter de mediação, como proposto, e em campos diversos. As referências intertextuais que parecem incluir Zadie Smith no grupo de elite dos escritores pós-coloniais consagrados ─ Rushdie, Naipaul,.Kureishi ─ localizam-se de preferência no mecanismo de criação de neologismos, e não na estrutura literária. A jovem autora argumenta que, da mesma maneira que não se cogita de atribuir filiação racial e cultural aos escritores brancos, tais parâmetros não deveriam ser utilizados na análise crítica de obras de escritores com raízes coloniais. O conceito blackness, como quer Louis Gates, Jr, é apenas indicativo da posição do sujeito em relação ao culturalmente dominante e não de categoria biológica. A Cultura dominante, porém, continua a ser branca, embora seja capaz de superar preconceitos, quando é de seu interesse assimilar o que o outro tem de valioso e, como argumentamos, de exótico: Marcus Chalfen descende de imigrantes judeus (via Polônia), mas o seu estranho experimento genético, o Camundongo do Futuro, é alvo do interesse da comunidade científica. Que a conferência seja perturbada pelos protestos ruidosos de um grupo de “senhoras


testemunhas-de-jeová, todas ostentando ferozmente uma peruca”, que cantam a plenos pulmões, é uma sátira à prepotência criadora de Marcus Chalfen e aos malabarismos multiculturais dos Joneses, Iqbals e Chalfens. Apesar de inconsistências de definição e de metodologia, é indiscutível que o conjunto dos estudos pós-coloniais — teoria e critica – provou ser uma força catalisadora para algumas das produções intelectuais mais estimulantes do presente. No caso deste trabalho, forneceu importantes parâmetros para a análise de formas culturais que medeiam, desafiam ou examinam relações de domínio e subordinação na natureza do sujeito diaspórico no século XXI.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APPIAH, Anthony Kwame. Na casa de meu pai. A África na filosofia da cultura. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. ASHCROFT, B. et al. The Empire Writes Back. Theory and Practice in Post-Colonial Literatures. London and New York: Routledge, 198 BHABHA, H.K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. EAGLETON, T. A idéia de cultura. Trad. Sandra Castello Branco. São Paulo: Ed. UNESP, 2005. EVARISTO, Conceição. ”Ayoluwa, a alegria do nosso povo” In. Cadernos Negros 28. São Paulo: Quilombhoje: Ed. dos Autores, 2005. HOGAN, Patrick Colman. Colonialism and Cultural Identity. New York: State University of New York Press, 2000.


HUGGAN, Graham The Postcolonial Exotic: Marketing the Margins. New York: Routledge, 2001. MAKARIK, Irena. R. (Ed.) Encyclopedia of Contemporary Literary Theory. Approaches, Scholars, terms. Toronto: University of Toronto Press, 1997. MORRISON, Toni. Rootedness: The Ancestor as Foundation. In: EVANS, Mari (Ed.) Black Women Writers (1950-1980): A Critical Evaluation. New York: Anchor Press, Doubleday, 1984. 339-345 SHOHAT, Ella. Notes on the “Post-Colonial”. Social Text, 1992, n 31 32, p. 99-113. SMITH, Zadie. White Teeth. New York: Vintage, 2001. SMITH, Zadie. Dentes brancos. Trad. José Antonio Arantes. São Paulo: Cia das Letras, 2003.


PÓS-NACIONALISMO NA VIDA E OBRA DE SEAN O’FAOLAIN Munira H. Mutran[1] Aos 75 anos de idade fica difícil continuar fingindo que você realmente não é responsável por aquilo em que se transformou. Fintan O’Toole

A epígrafe, retirada do livro The Ex-Isle of Ireland, é uma maneira espirituosa de sugerir que em 1996 “não era mais possível culpar o colonialismo britânico, pesadelo de um passado envolto na escuridão, pelos problemas do país (1998, p. 11). Consequentemente, continua o crítico, “setenta e cinco anos após a assinatura do Tratado Anglo-Irlandês que criou o Estado Independente em 6 de dezembro de 1921, a Irlanda perdeu um dos ingredientes essenciais de sua caracterização política e cultural” (1998, p. 11). Fica, portanto, difícil, segundo O’Toole, e também do ponto de vista de vários historiadores, invocar os conflitos com os ingleses ao longo de 800 anos de colonização para justificar todos os males da Irlanda, cuja condição como colônia da vizinha Grã-Bretanha, e depois num contexto pós-colonial, é bem distinta daquela de outros países. Em The Empire Writes Back, publicado em 1989, mas considerado ainda um clássico sobre a prática e a teoria pós-colonial, enquanto se discutem as questões referentes a países da África e do Caribe, à Índia, ao Canadá, aos Estados Unidos, à Austrália e à Nova Zelândia, são esparsas as referências à Irlanda. O livro talvez antecipe o raciocínio de Fintan O’Toole ao mencionar “certas civilizações que caíram na armadilha de Maniqueísmos políticos” (1989, p. 22) e ao formular perguntas como “Por que deveriam as sociedades pós-coloniais continuar a envolver-se com a experiência do Império? Se todas as sociedades Munira H. Mutran é professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês da Universidade de São Paulo (USP).

1


pós-coloniais discutidas já alcançaram a independência política, por que o problema da questão colonial é ainda relevante?” (1989, p. 6). Alguns anos depois da publicação do livro, em uma palestra na Universidade de New South Wales, Austrália, Bill Ashcroft, um dos autores de The Empire Writes Back, usou a Irlanda para responder à pergunta: “Quais serão os caminhos que o campo [de Estudos PósColoniais] irá trilhar no próximo milênio?” (p.1) Advertindo que a Irlanda seria apenas ocasionalmente mencionada, mas que estaria implicitamente presente em sua apresentação, ele a iniciou: O exemplo da colonização irlandesa é particularmente significativo para os estudos pós-coloniais devido a sua complicada e persistente demonstração de problemas culturais envolvendo o nacionalismo cultural. Acredito que o exemplo irlandês será para a teoria pós-colonial mais significativo ainda porque proporciona um dos mais complexos espaços de debates sobre a autenticidade cultural, a identidade nacional e seu lugar na resistência póscolonial (p. 1)[2]

Mais recentemente, o crítico e historiador Terence Brown demonstra desejo de compreender a questão. Em The Literature of Ireland – Culture and Criticism (2010) Brown lança um olhar ao seu livro Northern Voices: Poets from Ulster, de 1975, para refletir sobre suas muitas referências a expressões como “condição colonial” e “dominação colonial”; ele surpreende-se com a maneira pela qual usara a palavra “colônia” naquela época e quão pouco tentara entendê-la então. Hoje, ele tende a usá-la de maneira parcimoniosa “preferindo pensar a experiência irlandesa do século XX relacionada com o colapso do imperialismo europeu após a Grande Guerra” (2010, p. 10). Embora não fosse muito comum, a atitude de questionamento do significado da colonização surgiu logo depois da assinatura do Tratado de 1921, e da Guerra Civil, em 1922. Sean O’Faolain, escritor e crítico, foi um dos primeiros a desenvolver o que muito mais tarde 2 De cópia da palestra proferida por Bill Ashcroft, “Ireland, Post-Colonial Transformation and Global Culture” em UNSW, 1998. Todos os trechos foram traduzidos pela autora deste artigo.


foi chamado de revisionismo, uma interpretação pós-nacionalista da história irlandesa. Muitos intelectuais irlandeses reconhecem a importância de O’Faolain no surgimento do Revisionismo Histórico. Em “The Counter Revival: Provincialism and Censorship 1930-1965” Terence Brown registra o grande mérito e influência da revista The Bell, organizada por O’Faolain em seus seis primeiros anos, e lembra que o tema central dos editoriais da publicação era a ideia da Irlanda “como um país a iniciar sua história criativa no fim da história revolucionária” (…..., p. 92). Em “Challenging the Canon: Revisionism and Cultural Criticism”, Luke Gibbons começa sua discussão citando O’Faolain como precursor da “virada revisionista”: Embora seja verdade que o revisionismo tenha aguardado a década de 1970 para fazer sentir seu impacto na vida irlandesa, os primeiros grandes desafios às ortodoxias do renascimento nacional datam, não da década de 1960, mas das décadas de 1930 e 1940, dos escritos de O’Faolain e de outros ligados à revista The Bell (fundada em 1940), e às publicações da Irish Historical Studies (IHS) revista de 1938 que empenhou-se para que os estudos da história irlandesa alcançassem o rigor do nível internacional (…, p. 562).

A mudança de atitude em relação à questão irlandesa pode ser vista em três momentos da vida de O’Faolain, relatados em “A Portrait of the Artist as an Old Man”, um de seus ensaios autobiográficos. Num olhar retrospectivo, aos 76 anos, o escritor definiu a Irlanda no início do século XX: Nasci em 1900 em um lugar inexistente. Isto é, nasci na Irlanda que naquela época era um país que não existia politicamente, culturalmente e psicologicamente. Tudo que havia era um bastardo pedaço do Império Britânico, e eu, nele, súdito da Coroa, como qualquer contemporâneo da Jamaica, ou de Barbados, da Índia ou da África, Trinidad ou Malta (1976, p. 10).

O maior trauma de sua visa, continua O’Faolain, aconteceu em 1916 quando ele experimentou “a perturbadora experiência de receber subitamente como presente um país cujo nascimento


deveria, supostamente, apagar em definitivo todos os valores sociais com os quais vivera seus primeiros 16 anos.” (1976, p. 11). Sabemos que na sua juventude, O’Faolain participou ativamente da luta contra o invasor inglês, ligando-se à Gaelic League e ao IRA, mas desiludiu-se com o movimento revolucionário durante a Guerra Civil; reconsiderou, então, os ideais nacionalistas, e refletiu sobre seus perigos e incertezas. Sua experiência do período de 1918 a 1924 é assim relembrada: “Foi um dos períodos mais plenos de êxtase de minha vida, quando todos os problemas morais desvaneceram-se no fogo do patriotismo” (1976, p. 16). Em contraste com a exaltação juvenil, aos 76 anos O’Faolain percebe como mudou: “Agora, para mim a Irlanda merece minha atenção somente enquanto parte do mundo. Não restou em mim o menor vestígio de patriotismo” (1976, p. 18). Para compreender como a mudança de visão efetuou-se, é preciso examinar a obra de O’Faolain; nos romances, nos contos ou nas biografias, que possuem acentuado ingrediente autobiográfico, ou nos livros de viagem e textos autobiográficos, ele esforçou-se para ver com olhos críticos o mundo a sua volta, nas décadas de 1930, 1940 e 1950. Em seu primeiro livro de contos, Midsummer Night Madness, título que é alusão explícita a Shakespeare e tem o desvio de “dream” para “madness”, palavra que representa o período que vai de 1918 – 1922, o binarismo colonizador / colonizado é substituído pelo autêntico desejo de ver a questão irlandesa sob outro prisma. A longa história colonial da Irlanda está repleta de reações ao “domínio estrangeiro”; durante os oito séculos como colônia alternaram-se fases de relativa submissão com outras de revoltas sangrentas (1798, 1848, 1916) através dos movimentos como Irish Volunteers, Irish Republican Brotherhood, United Irishmen, Fenian Brotherhood, Sinn Fein e outros. Na literatura, as baladas nacionalistas – “The Wearing of the Green”, “Shan Van Vocht”, “The Croppy Boy” a poesia, o romance e o teatro exaltam as bipolaridades: irlandês / estrangeiro, opressor / oprimido. E então, em “Midsummer Night Madness” o jovem rebelde irlandês, narrador dos outros contos da coletânea, ao esconderse na casa semi-destruída de um inglês – vê as xícaras quebradas,


pires lascados, a roupa puída – sinais da decadência e da infelicidade do velho, envolvido na luta quase milenar, sem saber porquê. Ele também vê as vizinhas inglesas, acompanhadas do pai quase cego, pedindo abrigo na casa, pois a deles havia sido incendiada no meio da noite: E quando as duas solteironas entraram timidamente, olhando, assustadas de um lado para o outro, seguidas pelo pai, […] eles mais pareciam gansos aterrorizados do que seres humanos capazes de tomar conta de si mesmos (1970, p. 44).

Tanto o jovem rebelde sem nome quanto Henn, de Henn Hall, contrastam com outro revolucionário irlandês, o cruel, astuto e vingativo Stevey Long. Em outro conto ele é capturado, foge da prisão após conquistar a amizade e confiança do carcereiro inglês, prometendo que o ajudará a voltar para a Inglaterra; ao fugirem, pede que um de seus companheiros mate o inglês “pois havia dado sua palavra de honra que ele próprio não o faria”; deserta do exército revolucionário para divertir-se em Cork, entra numa casa (cenário de “The Bombshop”, também parte da coletânea de 1932) e rouba joias e moedas de uma caixa. Ironicamente, é condenado à morte, não por ser um revolucionário, mas como simples ladrão e assassino da dona da casa, que havia falecido de morte natural. Esses exemplos são suficientes para demonstrar que a questão irlandesa deixou de se restringir ao “ódio aos ingleses” e “admiração pelos nacionalistas rebeldes”. É de se notar, ainda, o uso da ironia ou até de toques de humor na abordagem das relações entre ingleses e irlandeses. Em “Lilliput” (alusão a Swift), durante o toque de recolher, os Black and Tans percorrem as ruas espalhando o terror enquanto os moradores se trancam em suas casas, assustados; lá fora, porém, uma cigana acompanhada das duas filhas pequenas grita insultos à polícia e a todos. Em Vive Moi! (1967), O’Faolain lembra que “Lilliput” foi seu primeiro conto (publicado em 1926 no The Irish Statesman) e que o escreveu como “uma nota de rodapé marginal a “The Troubles” (1967, p. 193). Tendo presenciado o incidente, ele narra: “enquanto o resto de Cork se encolhia na cama para evitar as balas dos Black and


Tans, essa mulher destemida era […] uma Gulliver feminina.” (1967, p. 194). O último conto do volume resume as ideias de O’Faolain sobre o nacionalismo: em “The Patriot” o velho professor, exausto, doente, mas ainda inflamado pela “causa” não mais consegue reavivar em Bernard os sentimentos patrióticos; numa clara alusão a Cathleen ni Houlihan (1901), de W. B. Yeats, peça de exacerbado nacionalismo em que o noivo tudo abandona para seguir a velha Cathleen (a Irlanda), o jovem rebelde de O’Faolain sente piedade pelo “patriota” que vê pela janela percorrendo as ruas em busca de seus ideais, mas fecha a cortina, voltando-se para sua noiva. No segundo volume de contos, A Purse of Coppers (1937), a mais importante narrativa, “A Broken World”, mostra a Irlanda como um prato quebrado, não só geograficamente, norte e sul, mas como a sociedade que emergiu da revolução, no Free State, dividida dos ingleses mas formada de irlandeses e anglo-irlandeses, seres fragmentados, que buscam uma identidade. Compreender o que é ser irlandês é tentar entender a outra metade do prato e reconhecer a metade dos ingleses, parte indissolúvel da textura e da formação da nacionalidade irlandesa. Para se auto-definir tornou-se imperativo definir a outra metade. No novo cenário pós-tratado destacam-se duas atitudes: uma, sempre hostil ao invasor odiado, e outra, que busca maior entendimento de situação tão complexa e contrapõe o senso crítico à emoção. Além de expor a questão irlandesa na ficção de 1930 e 1940, O’Faolain produziu um conjunto de obras que interrogam o passado remoto, a época colonial e o seu presente. An Irish Journey (1940) contém um mapa da Irlanda, norte e sul, e ilustrações de paisagens pelo pintor Paul Henry. Semelhante a tantos outros livros que narram viagens realizadas pela Irlanda como The Irish Sketch Book (1843) de W. M. Thackeray, Brendan Behan’s Island. An Irish Sketch Book (1962), uma paródia do livro de Thackeray por Behan, e A Tourist’s Guide to Ireland (1929), de Liam O’Flaherty, o objetivo de O’Faolain não é a viagem como turismo, mas uma indagação sobre o país e sua história. Em Naas, por exemplo, “o exército britânico deixou


sua marca” (1940, p. 6). Registrando os sinais do passar do tempo e das mudanças na paisagem e na sociedade, O’Faolain convida o leitor a ver um dos locais visitados como “um manuscrito da história irlandesa, manchado, rasgado e apodrecido nas margens” (1940, p. 168). Certos lugares contam sua história: “Cada milha vencida nesta península é uma milha de tempo. Os anos deslizam em direção ao passado. Em Dunquin já sinto a presença do século XVIII” (1940, p. 139). Na viagem, as marcas da História – a Grande Fome, os nomes de clãs desaparecidos, resquícios de Cromwell e de “The Penal Laws”, os fortes dos antigos reis de Leinster, a aparência triste das casas, as igrejas e castelos em ruínas, as cidades esvaziadas pelo exílio levam O’Faolain a pensar que “os irlandeses têm um longo caminho da História para registrar e assimilar” (1940, p. 16) pois você poderia seguir o curso da história política da Irlanda nos nomes de ruas: King Street, Gladstone Street, O’Connell Street [...] e nos nomes das grandes mansões, agora destruídas. Apesar da intensa beleza do país, o viajante percebe a tristeza e desesperança das pessoas, sua pobreza e solidão: devem as cidades menores e os povoados tornar-se meros funis através dos quais os campos se esvaziam via cidades maiores para metrópoles? (1940, p. 26).

O mergulho no passado mostra ao viajante a mudança nos nomes de ruas, e nos lembra de um processo inverso registrado em Translations (1980), de Brian Friel, quando os ingleses rebatizaram rios, estradas, lagos, montanhas com nomes não-gaélicos; agora, “um fanático local da Gaelic League (há um em cada cidade depois da revolução) faz o novo batismo de Barrack Street, Artillery Quay, King Street, Prince Albert Street” (1940, p. 60) como se fosse possível apagar as marcas da invasão. Ironicamente, O’Faolain faz uma analogia às avessas com os Estados Unidos: “Isso me lembra o Quadrângulo de Yale University, modelado segundo um Quadrângulo de Oxford: árvores centenárias transplantadas da noite para o dia; musgo plantado nos telhados” (1940, p.60). Mesmo durante a “viagem” ao passado O’Faolain está consciente do perigo de tentar interpretar os fatos históricos: “não há pior


sentimentalismo do que o sentimentalismo de desejar reescrever a história” (1940, p. 158), observa ele. Muito mais tarde, em uma de suas cartas, comentou a viagem de 1940 observando que “as impressões mudam com o passar do tempo porque outras coisas intervêm – a economia, a política, o maior conhecimento dos problemas do país” (2005, 34). O’Faolain concluiu An Irish Journey com uma dúvida sobre o futuro: “que tipo de Irlanda eu encontraria se, daqui a dez anos ou mais, empreendesse uma nova viagem pela Irlanda” (1940, p.308). Entretanto, na década de quarenta ele continuou insistindo, em entender sua identidade e o caráter nacional irlandês. The Story of Ireland (1943) contém novamente o mapa da Irlanda, uma cronologia histórica e ilustrações variadas dos camponeses de Galway, de The Rock of Cashel, do castelo de Kerry, de torres e cruzes medievais, e de outros lugares ou de pessoas representativos de outras eras. Como se tomasse um companheiro de viagem pela mão, O’Faolain o convida a “mergulhar de um tempo para outro tempo como um golfinho” pois “a mistura dos séculos é uma das características da Irlanda” (1943, p. 10) e a pensar que a História também é feita por figuras marcantes. Ele exemplifica: “se pensarmos em termos de personalidades, o século XVI pertence à O’Neill” (1932, p. 32). O autor está reforçando, nessa afirmação, o retrato biográfico de The Great O’Neill que ele publicou em 1942. Por que essa figura é tão importante quando se discute a colonização da Irlanda e representa, no olhar de O’Faolain, todo o século XVI? Nas palavras do biógrafo, O’Neill era “tão fechado quanto uma concha [...] quem nele confiasse plenamente, confiava num camaleão perdido em seu labirinto” (1970, p. 78). Como no caso de Edmund Spenser, que recebeu a incumbência da Rainha Elizabeth I de colonizar uma região da Irlanda, e desperta a imaginação de O’Faolain, O’Neill o deixa perplexo. Não se pode deixar de dizer que O’Faolain tenha tido uma visão otimista ou rósea a respeito do passado, pois em sua obra é aguda a percepção do intenso sofrimento do povo irlandês durante a ocupação britânica – a morte de uma língua e de uma cultura no contato com o invasor e as terríveis consequências da pobreza, como o exílio,


a fome, a diminuição da população. No entanto, ele não permite que sua visão seja restrita e acrítica; na verdade, reflete sobre a inevitável anglicização do país. Em The Great O´Neill, tal fenômeno é um dos temas centrais, mostrando o líder, pertencente à mais antiga tradição gaélica, sendo educado na corte inglesa dos 9 aos 18 anos e, portanto, consciente das diferenças de língua, de civilização, de costumes, de tradições, entre seu mundo e o deles. O’Neill, exemplo vivo da absorção da cultura britânica pelos irlandeses, seria um dos primeiros, de acordo com O’Faolain, a enfrentar a lenta porém inexorável anglicização do povo irlandês. Inspirado pela biografia de O’Faolain, Thomas Kilroy escreveu a peça The O’Neill (1995) cujo principal foco de interesse está no processo de assimilação do líder, detentor de dois nomes: para os ingleses era o “Earl of Tyrone”, título que lhe fora conferido pela Rainha; para seus conterrâneos era “The O’Neill” que herdara de seus ancestrais. Em uma das cenas de maior impacto da peça de Kilroy, o Bardo, representando a tradição que está sendo destruída pelo invasor, e O’Neill, o último de tal tradição, apresentam suas visões: BARDO: O que era bom para seu pai e para o pai de seu pai deveria ser bom para você [...] que deforma seus ossos para chegar a uma nova forma. O’NEILL: Desejo ser um homem moderno, Poeta, incorporando em mim algo de que sinto falta, fazendo perguntas o tempo todo para que sejamos melhores. (1995, p.29)

No diálogo mencionado percebem-se diferentes modalidades de absorção: para o Poeta é um processo doloroso, brutal: para O’Neill, o encontro com outra cultura, embora conflituoso, é uma forma de enriquecer a experiência. Depois das publicações mencionadas, O’Faolain continuou a interrogar o passado em outras biografias e em The Irish (1949), descrito pelo autor como uma reflexão não só sobre os acontecimentos políticos mas principalmente “uma história criativa do desenvolvimento da mente de uma raça […] ou, relevando os termos pomposos e amplos demais, a história do desenvolvimento de uma civilização nacional” (1949, VII). Em The Irish, O’Faolain afirma que deseja percorrer o caminho


para: as Raízes; o Tronco; os Seis Galhos”, e revelar “o complexo processo de assimilação, ao fim do qual a Irlanda com suas próprias e distintas qualificações, entrou no grande fluxo geral da cultura europeia” (1949, VII). Vê-se, pois, que a abordagem que O’Faolain fez da colonização e do nacionalismo é, segundo ele próprio, diferente do “conceito nacionalista, quase todo ele um conceito político, da Irlanda sempre em luta com inimigos estrangeiros; pessoalmente, vê o Nacionalismo somente do ponto de vista da civilização […] que não vê o impacto de todas as influências estrangeiras em um campo político ou de batalha, mas um campo de batalha em que a mente de uma raça é forçada a cada novo instante a lutar de novo consigo mesma” (1949, VII). Suas reflexões sobre Anglofilia e Anglofobia o levam em “Past tense”, editorial de The Bell, de dezembro de 1943, a apontar os rumos que ele desejava para si e para a Irlanda, ao definir o “pensamento tradicional” e uma “nova modalidade de pensamento”: Nosso pensamento tradicional preocupava-se tão somente com nossos problemas locais, todos ele essencialmente do século XIX. Desde essa época, mudou nosso status e mudou o mundo, consideravelmente, mas aquelas modalidades de pensamento ainda sobrevivem. Hoje, o verdadeiro patriota irlandês é aquele que vê a Irlanda como um homem moderno, e como um cidadão do mundo que, por acaso, mora neste canto do universo (1943, p. 191).

Estaria O’Faolain, propondo além do revisionismo, ao insistir na inserção da Irlanda no conjunto das nações e em sua internacionalização, o tema que hoje ocupa grande parte da crítica, o da globalização? Quanto aos rumos que a produção literária de O’Faolain tomou, eles são coerentes com suas ideias. Tendo seguido passo a passo as mudanças na história da Irlanda, ele acaba deixando para trás os conflitos restritos às questões pós-nacionalistas para desenvolver uma nova temática; nas coleções de contos I remember! I remember! (1961) e Foreign Affairs (1976), e em seu melhor romance, And Again? (1979) lida com os temas do tempo e da memória, da solidão,


das relações humanas, e estabelece diálogos intertextuais com a ficção europeia, como em seu conto “The Wings of the Dove” (1982), uma reescritura do romance homônimo de Henry James. Ao aceitar o desafio de transformar o romance em conto moderno, cujo cenário é a Londres de 1970, com personagens ingleses e norte-americanos, O’Faolain abandona a cena irlandesa dos anos 40 e 30, saindo, como desejava, de seu “pequeno canto do universo” e entrando no “grande fluxo da cultura europeia”. REFERêNCIAS BIBLIOgRáFICAS ASHCROFT, Bill, Gareth Griffiths and Helen Tiffin. The Empire Writes Back. Theory and Pratice in Post-Colonial Literature. London: Routledge, 1989. BROWN, Terence. The Literature of Ireland. Culture and Criticism. Cambridge: University Press, 2010. BROWN, Terence. “The Counter Revival: Provincialism and Censhorship 1930-65”. In The Field Day Antohology of Irish Writing. FRIEL, Brian. Translations. In Selected Plays. London: Faber and Faber, 1984. GIBBONS, Luke. “Challenging the Canon: Revisionism and Cultural Cristicism”. In The Field Anthology of Irish Writing. KILROY, Thomas. The O’Neill. Loughcrew: Gallery Books, 1995. MUTRAN, Munira. H Org. Sean O’Faolain’s Letters to Brazil. São Paulo: Humanitas, 2005. O’FAOLAIN, Sean. Midsummer Night Madness and Other Stories. Harmondsworth: Penguin, 1982 (volume 1)


O’FAOLAIN, Sean. The Heat of the Sun. Harmondsworth: Penguin, 1984 (volume 2) O’FAOLAIN, Sean. Foreign Affairs and Harmondsworth: Penguin, 1986 (volume 3)

Other

Stories.

O’FAOLAIN, Sean. Stories. Harmondsworth: Penguin, 1970. O’FAOLAIN, Sean. “A Portrait of the Artist as an Old Man” In Irish University Review. A Journal of Irish Studies. Ed. Maurice Harmon. Vol 6, number I, Spring 1976. O’FAOLAIN, Sean. An Irish Journey. London: Longmans, 1940. O’FAOLAIN, Sean. The Great O’Neill. A Biography of Hugh O’Neill. Cork: Mercier Press, 1970. O’FAOLAIN, Sean. The Story of Ireland. London: William Collins, 1943. O’FAOLAIN, Sean. Vive Moi! An Autobiography. London: RupertHart Davis, 1967. O’FAOLAIN, Sean. The Irish. A Character Study. New York: The Devin-Adair, 1949. O’FAOLAIN, Sean. “Past Tense”. In The Bell. Vol. 7, nº 3 Dec. 1943. O’TOOLE, Fintan. The Ex-Isle of Ireland. Dublin: New Island Books, 1998.


Quando o ‘outro’ é um irmão: considerações sobre a representação contemporânea do ‘judeu oriental’ na literatura hebraica do século 21 Nancy Rozenchan[1] Judeus conhecidos como “orientais”, “mizrahim” em hebraico, são aqueles provenientes primordialmente de países árabes, do norte da África à Ásia. São uma presença forte em Israel e, como tal, gozaram de um registro constante, ainda que, de início, modesto, na literatura, no teatro e no cinema do país. Hoje, a literatura escrita por eles e sobre eles aponta para um dos segmentos mais importantes da escrita hebraica. O conceito de judeu oriental não é necessariamente natural, pois excetuando uma língua comum, mas com variantes, dos países de onde provieram, do Marrocos ao Iraque, serviu em princípio para se contrapor a uma classificação que atendia os judeus provenientes da Europa Central e Oriental, falantes das diversas línguas europeias e da língua judaica, iídiche, que praticavam as culturas dos respectivos países, a par da judaica. Os judeus se estabeleceram em países de fala árabe há mais de dois milênios. Quando surgiu o Estado de Israel, em 1948, a maioria deles mudou-se para lá. Estas ondas imigratórias estiveram vinculadas ao anseio pela terra dos antepassados e foram também motivadas por acontecimentos político-históricos nos países de origem, que os obrigaram a partir. Pelo seu número, destacam-se entre estes os provenientes do Marrocos e do Iraque. A principal dificuldade enfrentada pelos imigrantes a Israel em especial na década de 50, quando as maiores massas começaram a chegar, e em particular pelos provenientes dos países árabes, 1 Nancy Rozenchan é professora do Programa de Pós-Graduação em Língua Hebráica, Literatura e Cultura Judaicas da Universidade de São Paulo (USP).


foi o conceito de “cadinho de fusão”, a concepção forçada de forjar o israelense médio, com a imposição de abdicar de símbolos e valores tradicionais que trouxeram consigo, com a intenção de que absorvessem valores e símbolos da sociedade em que passaram a viver e à qual deveriam se fundir, intensificada pelo conceito de “anulação da diáspora”, o apagamento das características particulares trazidas dos países de origem. A par da aplicação deste princípio, houve uma ingerência intensa, forçada, em todos os âmbitos da vida dos imigrantes, desde o fato de serem direcionados a localidades de moradia em lugares específicos, geralmente em condições muito precárias, isolados dos eixos principais da vida do país, até os ramos de atividades a que foram encaminhados e interferência em hábitos pessoais. Esta imposição de nivelar todos os israelenses, despojandoos de suas características particulares, levou a um acúmulo de dificuldades e afetou de algum modo o respeito pela estrutura familiar tradicional, fortemente centrada na figura patriarcal e ancorada no respeito às tradições religiosas. A sociedade receptora, constituída em sua maioria pelos israelenses de origem europeia, referia-se a estes imigrantes, cuja cultura era considerada inferior à cultura ocidental predominante no país, como “primitivos”. Muitas formas de expressão depreciativas foram emitidas em relação a estes imigrantes; estes as interpretaram como demonstração de discriminação e racismo que causaram uma reação de insatisfação; “mizrahi” era uma expressão vista como pejorativa e, em pouco tempo, causou uma erosão nos relacionamentos entre as diversas comunidades do país. O menosprezo no relacionamento com os novos imigrantes afetou a vida dos mizrahim mais do que a pobreza que perdurou por décadas. As desigualdades comunitárias em Israel transformaram-se em discriminação, criou-se tensão, animosidade, um clima de suspeições mútuas. Do ponto de vista destas comunidades orientais, muitas vezes os seus membros sentiram-se infelizes ante a dificuldade de substituir um padrão existencial que até há pouco os satisfazia, por outro não ansiado e opressor. Estudos culturais recentes entendem que esta etapa inicial no relacionamento político e intercomunitário


pode ser definida por conceitos pertinentes ao colonialismo, que, como é óbvio, não trata neste caso de um relacionamento entre dois povos, mas de camadas diversas de uma mesma nação. O outro é um “irmão”. Judeus mizrahim, em particular os de origem marroquina, já desde o final da década de 50 e de forma mais nítida a partir da década de 70, promoveram manifestações de protesto contra a sua situação, de “outro”, de subalterno. Hoje judeus mizrahim de todas as origens e seus descendentes representam cerca da metade da população de Israel. O estudo de sua consubstanciação é um tema que alguns definem como pós-colonialista, já que aborda uma relação de insuficiência representacional, uma incapacidade crônica dos sujeitos exporem sua própria narrativa sobre os fatos, mesmo que estes sujeitos não sejam pertencentes a um povo sob domínio. Estudos pós-coloniais neste contexto justificam-se quando se constata os não-lugares dos subalternos nas narrativas oficiais. Nas últimas duas décadas, questões referentes aos judeus orientais vêm sendo estudadas por pesquisadores de ramos diversos das ciências sociais e estudos culturais, e vários deles se servem de conceitos que compõem estudos do pós-colonialismo, assunto que por si atingiu a cultura israelense com grande atraso. Quanto tal ocorreu, intelectuais que trataram do tema conduziram as teorias que compuseram o pensamento de Said, Bhabha, Gayatri Chakravorty Spivak e outros para questões locais pontuais, quais sejam relações judeus/palestinos – assunto que não será abordado aqui - relações da maioria judaica ashkenazita [europeia] /judeus procedentes de países de fala árabe ou orientais, os mizrahim e vivência e adaptação a novos padrões. Como se pode imaginar, mudanças de postura têm reflexo na representação literária, que hoje é grande; e mesmo que nenhuma obra de ficção seja capaz de indicar de forma ampla a maioria das novas colocações de análise e definição, é importante ter conhecimento da leitura contemporânea que se faz da sociedade mizrahit. Intelectuais israelenses têm procurado desenvolver alternativas


para o discurso hegemônico relativo aos orientais e à sua historiografia canônica, ao compor uma epistemologia diferente na questão da orientalidade judaica, proporcionando pontos de vista amplos com relação à experiência oriental em Israel. Os orientais em Israel são um público que foi incluído no coletivo judaico sionista, mas também excluído do acesso ao centro; foi enviado para a periferia e empurrado para as margens. Sua situação é de hibridismo e isto também se expressa na identidade de orientais que querem estar “dentro”, mas também por aspectos que permanecem “fora”. As vozes orientais independentes, caladas, em grande escala, pela hegemonia sionista ashkenazita, contam atualmente com grandes espaços capazes de lhes proporcionar expressão. O debate sobre orientais não é um tema novo, e um dos resultados destes estudos expressa-se no desejo de estabelecer uma alternativa para três gerações de estudos na questão oriental em Israel, baseada em três enfoques teóricos: o enfoque da modernização e do cadinho de fusão que prevaleceu nas décadas de cinquenta e sessenta, constituído sobre a ideia da negação da diáspora [“o oriente como problema”], os enfoques críticos, neomarxistas e outros [“o oriental como vítima”] que surgiram na década de setenta e os enfoques pós-sionistas [“o oriental como barreira para a paz”, dos novos historiadores], sendo que este último não estará presente no material que abordaremos. São três as etapas da escrita ficcional dos judeus orientais. Os autores da primeira etapa que, já no país de origem, o Iraque, escreviam em árabe, foram aqueles que deram início, na década de 60, aos escritos em hebraico, em que começaram a apontar as agruras e dificuldades de terem de conviver com uma nova sociedade com a qual não conseguiram ter a mesma afinidade como com aquela onde cresceram e se formaram e que, em geral, não abandonaram de forma espontânea. Ao mesmo tempo, passaram a observar com olhar crítico as próprias mazelas e a delatá-las. Aquele que se propõe a ocupar-se das expressões da cultura dos mizrahim encontra-se diante de uma situação difícil, pois a tal política de “cadinho de fusão” e negação da diáspora, mesmo não vigindo mais,


já fez o estrago, exterminando grande parte da cultura levada a Israel de diversos países; a segunda dificuldade é que foram justamente os membros da segunda geração, os primeiros nascidos em Israel, que ajudaram a destruir o legado. Os membros desta geração, produto da educação nacional sionista que propugnou a negação da diáspora judaica, negaram os seus pais, zombaram de seu tradicionalismo e costumes autênticos e empenharam-se em lhes impor a israelidade convencionada de então. Estes se sentem culpados agora ante a repulsa que manifestaram em relação aos pais e o vazio que deixaram para a terceira geração. A literata Iafa Berlovitz considera que os membros da segunda geração, com a sua dose de culpa, assumiram uma tarefa difícil: não só reconstituir e recompor os fragmentos culturais que restaram, mas também lutar pelo seu lugar na cultura do país, ou seja, instituir em Israel um novo orientalismo judaico que represente uma alternativa competitiva para a israelidade prevalente. Assim, escritores e intelectuais têm se empenhado num trabalho intelectual centrado nas questões “o que é o orientalismo judaico” e “o que é a cultura oriental judaica”[2], que tem levado a coletar e a localizar materiais relevantes no passado e no presente, ler, interpretar, dar significado aos mesmos. Na literatura, embora cada autor se expresse de forma particular, o número crescente de obras publicadas vem cumprindo o papel de conduzir a temática à centralidade da vida cultural. Escritores nascidos em Israel, de famílias provenientes do Egito, Pérsia, Iêmen, Marrocos, Líbia, Tunísia, Síria e Iraque, todos com excelente formação cultural, ao contrário da geração de seus pais, são os mais destacados que escrevem sobre judeus orientais em Israel e também sobre a vida nos países de origem de seus antepassados, saudosos de uma vivência que só conheceram através de relatos e histórias. Sobressaem-se as temáticas dos processos de apagamento da identidade e do processo de repulsa e aniquilamento da família 2 BERLOWITZ, Iafa. Lehapes shivui mishkal al lahav hataar, o mahi kriá mizrahit [Procurar equilíbrio sobre o gume da navalha, ou o que é leitura oriental]. Haaretz, 09/11/2004. Disponível em: http://www.haaretz.co.il/hasite/pages/ShArtPE. jhtml?itemNo=499416&contrassID=2&subContrassID=12&sbSubContrassID=0 Acesso em 10/12/2009.


e das raízes. De algum modo, todos da segunda geração sentiram a mesma dor de uma forma ou outra. Os personagens são pessoas que vivem à margem do fluxo principal da vida do país. Talvez eles devam simplesmente ser denominados de sobreviventes, pessoas que lutam pelo sustento, pelas coisas mais básicas da vida. Houve um grande empenho por parte dos mizrahim de se transformarem em israelenses, de integrar-se e apagar as raízes dos respectivos pais. Supressão da identidade anterior, cancelamento dos pais, desenraizamento, retorno e redenção são uma constante nesta escrita. E, em um total hibridismo de temáticas, impossível de desenvolver aqui, agregam em uma obra dois ou mais assuntos candentes relacionados a questões sociais ou políticas, gênero, religião, opções sexuais. O mesmo se dá com o hibridismo das identidades por países de origem. Destaco aqui o nome de Sara Shilo, premiada pelo seu primeiro e único romance, Shum gamadim lo iavou[3]. Filha de pai sírio chegado a Israel ainda na década de 30, e mãe proveniente do Iraque, que viveu nas maabarot, precárias moradias transitórias, mesmo não tendo sofrido quaisquer restrições do ponto de vista econômico e educacional, ao contrário, era filha de uma família abonada, também não deixou de sentir na própria pele as discriminações por ser uma mizrahit. Sara Shilo resolveu muito jovem trocar de ambiente e no serviço paramilitar decidiu ir a uma cidade em desenvolvimento, Maalot. O seu livro traz uma família de origem marroquina que vive em uma aldeia sem nome junto à fronteira norte do país, em que os habitantes sofrem a ameaça de foguetes “Katiusha” e de ataques terroristas. Maalot pode ser vista como modelo. A cidadezinha, cujas primeiras populações na década de 50 foram marroquina e romena, que passou por um grande ataque terrorista em 1974 e que, em 2006, na segunda guerra do Líbano, foi atingida por mais de 600 “Katiuchas”. A vida dos membros da família Dadon, em constante risco, e de seu ambiente, é trazida através de quatro monólogos: da mãe, Simona, e de quatro de seus seis filhos, dois, de 13 e 9 anos, que se manifestam SHILO, Sara. Shum gamadim lo iavou [Nenhum duende vai aparecer]. Tel Aviv: Am Oved, 2006. A autora nasceu em 1958. 3


pela fala do menor, o mais velho, de 19, e a filha, um pouco mais nova. Algumas das concepções de Gayatri Spivak, originárias em parte de sua vinculação com a obra de Derrida, e adotadas como leitura obrigatória no pensamento pós-colonial, colaboram para o nosso enfoque da obra de Shilo: a subalternidade e a desconstrução. A autora indiana focou em seus trabalhos principalmente a representação do excluído e a fala do subalterno, com a grande problemática da representação do estrangeiro, minoritário ou reprimido e, daí, ao pilar constitutivo de sua teoria, o trabalho pioneiro de uma historiografia indiana do subalterno. Quanto à desconstrução, Spivak acompanhou o desenvolvimento do conceito a partir de Derrida, passando pela leitura de Fredrick Jameson e estabeleceu que Um dos imperativos peculiares da prática desconstrutiva é fixar a olhar crítico não especificamente na suposta identidade dos dois pólos de uma oposição binária, mas na agenda ético-política oculta que impulsiona a diferenciação entre os dois. Isto é, de fato, como a prática desconstrutiva está sempre consciente do momento histórico avaliador.[4] [5]

Segundo Fabio Akcelrud Durão, em “Da politização da desconstrução” em Gayatri, a promessa do trabalho de Gayatri Spivak é aliar a indecibilidade linguística a uma plataforma de liberação: politizar a desconstrução, situando-a em um horizonte concreto de lutas e reivindicações, ao mesmo tempo em que textualiza a política, 4 SPIVAK, Gayatri C.. A Critique of Postcolonial Reason: Towards a History of the Vanishing Present. Cambridge e Londres: Harvard University Press, 1999, p. 332. 5 Longe de significar destruição e exclusão, a “desconstrução”, empreendida por Jacques Derrida (1971), de textos fundamentais para a cultura ocidental, consiste em “denunciar num determinado texto (...) aquilo que é valorizado e em nome de que e, ao mesmo tempo, em desrecalcar o que foi estruturalmente dissimulado nesse texto”, “a leitura desconstrutora é colocada como a leitura descentrada que, portanto, anula o centro como lugar imóvel e fixo”, conforme esclarece o Glossário de Derrida, organizado por Silviano Santiago, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976, p. 17.


questionando suas aspirações de univocidade da linguagem e presença de sentido.[6]

Os textos de Spivak destacam a posição da mulher como sujeito subalterno; a autora indiana argumenta que “não existe um espaço de onde o sujeito subalterno [gendrado] possa falar... O sujeito subalterno feminino não pode ser ouvido ou lido... O subalterno não pode falar”.[7] Pensando com Spivak, por meio do desenvolvimento de suas teorias, não se chegará na obra de Shilo a uma elaboração de uma historiografia total do subalterno, ou seja, do mizrahi, ou da mulher mizrahit, algo que só se pode esperar levando em consideração um conjunto amplo de obras. Mas as falas da família Dadon exploram a dor da indecibilidade particular de cada um deles e expõem os meios de cada membro desta família desamparada de se defrontar com a vida e respectivo universo sobrecarregado, que a potência ou impotência individual não são capazes de vencer, ainda que, ao menos nas falas dos filhos, na medida do possível, esteja configurado um horizonte de lutas e reivindicações que satisfazem amplamente a busca e a localização do caráter mizrahi na geração contemporânea. A escolha da forma monológica serve à única possibilidade de confronto com o mundo, pois não há com quem falar, não há interlocutor disponível nem ninguém interessado em ouvi-los. E ainda, a partir desta forma, o fato de não haver uma expectativa quanto à criação de uma situação que proporcione uma saída, não significa que cada um deles não esteja lutando. A primeira fala é de Simona Dadon, a mais contundente, derrotista, se se considera que ela prefere morrer, e vitoriosa, pois afinal ela consegue dar o seu grande grito, mudo e sem ouvintes, que seja. DURÃO, Fábio Akcelrud Durão. Da politização da desconstrução em Gayatri Spivak. Revista de Letras, S. Paulo, vol. 49 n. 2, jul/dez 2009, p. 289301. Disponível em http://seer.fclar.unesp.br/index.php/letras/article/ viewFile/2054/1682 Consultado em 25/03/2010. 6

SPIVAK, Gayatri C.. Can the Subaltern Speak? in NELSON, C., GROSSBERG, L. (eds.), Marxism & The Interpretation of Culture. Londres, Macmillan. 1988, p. 271-313; 1985, p. 129-160. Disponível em http://www.mcgill.ca/files/ crclaw-discourse/Can_the_subaltern_speak.pdf Acessado em 30/03/2010.

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Com a morte inesperada do marido, o “rei do faláfel”[8], ela perde a sua condição de esposa e mulher privilegiada na sociedade fechada em que vive, composta de imigrantes como ela. Ela pertence a um universo em que as mulheres eram basicamente as subalternas. Como evento excepcional, o amor e boa convivência com o marido fizeram dela uma “grande dama” dentro do contexto da cidadezinha em desenvolvimento. Bonita, amada, amando, com o marido que, às escondidas, chegava a ajudar na arrumação doméstica, ela atinge o auge de sua ascensão com a celebração do bar-mitsvá[9] do filho mais velho, em memorável celebração, dois dias antes da morte do marido. Não que a sua existência até então não tivesse sofrido graves percalços. Ao dar à luz no terceiro parto a um menino com deficiências físicas, tinha passado a sofrer uma muda imputação de culpa por isto, subjetiva em relação ao próprio pensamento, e objetiva, ao verificar que o marido passa a se ausentar, a visitar mais a mãe, ou seja, a sogra dela, para se afastar da visão do filho e da genitora do mesmo. A ação do romance, em todos os monólogos, se passa em uma mesma noite e na madrugada seguinte, quando são disparados foguetes contra a cidade. A cidade fica às escuras. Todos deveriam estar em abrigos contra ataques de foguetes, mas não é o que ocorre, cada um estará em um local diferente. Durante poucas horas, cada um deles, em escalas diferentes entre os disparos mortíferos, repassa a sua vida e a história da família; de todas as falas chega-se à constatação que cada um é só, está só, mesmo fazendo menção aos membros da família, e que é desta forma que enfrentará o medo e o perigo constantes na vida israelense retratada. Seis anos se passaram desde a morte do marido de Simona, seis anos em que ela não conversou com ele. No dia seguinte é o dia do aniversário da morte dele. E quando caem os foguetes, ela se encontra no campo de futebol da cidade e é ali, ante a morte, que ela, num verdadeiro libelo feminista, repassa os fatos e sentimentos de sua vida, desde a vinda ao novo país, o amor, até o mais improvável dos 8

Bolinho de grão-de-bico.

Celebração da maioridade religiosa, comemorada quando o menino completa treze anos.

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eventos, descobrir-se grávida, pouco depois da morte do marido. Sob o peso da tradição trazida do Marrocos, a mãe merece todo o respeito; a viúva jovem, por sua vez, deixa de ter um status, sua posição tornase inferiorizada, o luto deverá ser perene, ela não é a chefe da família. O filho mais velho que, segundo a tradição religiosa, acabara de chegar à maioridade e à idade da responsabilidade, assume, em parte, o papel do pai: não deixará que os irmãozinhos gêmeos que nascem sejam órfãos, sinônimo de desprotegidos, possível alvo de abusos; assim, ele passa a dormir com a mãe para ajudá-la com os recémnascidos e passa a ser considerado o pai dos mesmos. É óbvio que um relacionamento espúrio com a mãe paira no ar e será somente no último monólogo que a filha, Eti, comentando com todas as palavras o boato do relacionamento do irmão com a mãe, se prepara para colocar o assunto em pratos limpos com a mãe, a quem informará de sua intenção de dizer aos pequenos que agora estão com quase seis anos, que Itsik não e o pai deles e que a foto que pende na parede não é do avô e sim do pai dos mesmos. Em Eti, única filha entre os seis irmãos, consubstancia-se, como no irmão mais velho, a vinculação da indecibilidade linguística a uma plataforma de liberação: além de se preparar para proclamar as verdades, é destacado sempre que a linguagem de Eti é escorreita, ao contrário dos demais familiares que falam a linguagem incorreta da rua, eventualmente mesclada com expressões do árabe judaico marroquino; ao pautar-se pela forma de expressão de uma famosa locutora de rádio, de forma inconsciente Eti assume a posição de mulher com voz pública. É apenas no momento em que pensa que estará diante da morte que Simona se propõe a falar com o falecido, e em meio às reflexões expor a sua situação, as suas agruras, sua situação de subalternidade. Fala para si, para as próprias pernas, para o ar; pergunta-se como foi que se transformou de “nossa Simona” em “Simona das tarefas”. Ainda que, enquanto caem os foguetes, ela, desabrigada, lembra que deixou comida pronta para os filhos, preocupa-se se eles teriam tido tempo de comer, Simona, ante a falta de melhores perspectivas em sua existência, deseja a morte. Tinham sido anos de humilhação, de não ser ninguém após a morte do marido, pois, como viúva, em


homenagem ao morto, ela também deve ser considerada morta, de não poder continuar a manter a posição de que usufruíra, desdenhada pelos cunhados, humilhação no trabalho com os bebês na creche, de ter sido obrigada a “vender” o voto nas eleições para poder gozar de melhores condições de moradia enquanto outros, tendo uma voz masculina na família, se mudavam para outras cidades, de usar a fala marroquina abominada pela sua superiora que era proveniente da Europa, de sequer programar e nem levar em consideração a celebração do bar-mitsvá do filho Itsik – Isaque – o portador de deficiência física, enfim de viver uma vida de subalternidade. São colocações objetivas correntes na sociedade a que ela estava vinculada, ou subjetivas, pois não é de forma automática que Simona pode passar a ter uma vida liberal. Estes pensamentos mesclam-se às suas reflexões sobre o papel da mulher, a liberação do seu corpo quando passa a ser viúva, ainda que não signifique que ela poderá voltar a ser a mesma Simona de antes, a vida rompida não pode ser reparada. Todos me dizem: basta, passaram seis anos, deixe o luto. Você pode usar a cor [de roupa] que quiser. E eu não quero. Quem são eles para me dizer quando devo usar cores? Quem são eles para me dizer quando acaba o luto? Vocês têm que me ouvir, uma vez vocês precisam me ouvir quando estou de noite no campo de futebol, no meio das Katiushas: Simona não está de luto pelo marido. Simona não está de luto pelo marido. Simona está de luto pela vida dela que foi cortada em duas partes. Isto não entra na cabeça de vocês? Ainda não chegou o fim do luto de Simona pela vida dela. Daqui a um instante a vida de Simona vai acabar e o luto dela acabará dentro da terra. [p. 45]

Da bolsa, Simona saca uma faca que guardara da festa da maioridade do filho, e refletindo sobre o cemitério e o aniversário da morte de Massaud, tira a aliança, faz um buraco na terra com a ajuda da faca e deixa que o último elo com a vida anterior caia ali. Em poucos instantes ela já não será capaz de dizer onde jaz a aliança. É um novo dia. A linguagem – um local da luta no discurso pós-colonial, de acordo


com Gayatri Spivak – é também a força dos filhos de Simona; todavia eles ainda são muito jovens e suas palavras não têm a capacidade de vencer a situação de subalternidade a que a mãe também não se sobrepôs. A segunda parte do livro de Shilo traz a fala de Dudi, de nove anos, com quem interage o irmão Itsik, que entende bem o que significa ser responsável pela própria segurança no universo sem esteios em que vive, mas enxerga o mundo e seus perigos de forma fantasiosa. Fãs de cinema, após assistirem o filme Kes que dá lastro a este monólogo[10], Itsik – com um objetivo único em sua existência restringida pelos problemas físicos - toma a decisão de se defender e de defender os seus dos possíveis ataques terroristas árabes adestrando e preparando um falcão para este fim. Incapaz de agir sozinho, precisa contar com a ajuda do irmão, Dudi, que não age de boa vontade, pois precisa praticar pequenos furtos para que o irmão realize o seu intento. Itsik não confia em ninguém; não há pai, não há autoridade e subentende-se, o país também não cuida de sua população. Obviamente, treinar um falcão para o fim a que se propôs não é o modo de se proteger no país. Ante as Katiushas, Dudi, lembrando que é o dia em devem ir ao cemitério, proclama seu amor e respeito pelo pai, repetindo incessantemente que não mais irá roubar. Nada mais pode fazer além de repetir, pai, pai, pai. Itsik, renegado, sente que não atingirá a maioridade oficial; ou seja, a sua maioridade não será comemorada. Talvez o gesto ousado de salvar os irmãos supra esta deficiência. Kobi, o filho mais velho, representa igualmente um papel complexo neste universo de subalternidade. Também nele verificase a concepção de Gayatri Spivak referente à indecibilidade e a uma plataforma de liberação. Entre o fato de assumir na prática o papel de pai dos irmãozinhos gêmeos antes dos catorze anos, de deixar de chamar Simona de mãe, quando o papel dela na família é parcialmente desqualificado, e o fato de ter descoberto que há um outro modo de viver em Israel se sair da 10 Kes é um filme inglês de 1969 do diretor Ken Loach e do produtor Tony Garnett. É baseado no romance A Kestrel for a Knave [Um falcão para um valete - Um companheiro engenhoso e sem caráter], de Barry Hines, nascido em Barnsley; publicado em 1968.


cidadezinha que ele passa a abominar, precisa lutar consigo próprio para priorizar os vários anseios que vão desde a intenção de ajudar os familiares, juntando dinheiro para comprar um apartamento em outra cidade, salvar a família preparando um armário-esconderijo em casa com estratagemas para escapar a algum ataque terrorista, ou cuidar de si mesmo, arrumando uma mulher estrangeira, que não falará língua compreensível alguma, para se casar. Excetuando o armário onde os pequenos gêmeos se esconderão durante o ataque de foguetes, nenhum dos seus conhece ou participa dos seus planos. É um amigo que lhe sugere casar com uma estrangeira, pois esta, expressando-se em outra língua, não irá entrar em contendas com a sua mãe, é com um funcionário árabe que ele guarda o dinheiro que economiza e será, no momento de pânico, na busca deste funcionário na aldeia árabe próxima, que ele se dará conta de que os árabes, também calados, sofrem igualmente um amargo quinhão por viverem naquela região. Suas casas, nenhuma das quais é acabada, assim como as suas aldeias, não estão livres de sofrer um ataque de foguetes e sequer têm abrigos para enfrentá-los. E para sobreviver, precisam do emprego na cidade judaica, mesmo que tenham que pagar comissões e subornos para consegui-los. Kobi é o agente deste estratagema que lhe é outorgado/imposto. Nos estudos das teorias pós-coloniais, levados a efeito em especial na Índia, há referência frequente ao processo de enunciação de discursos de dominação, quando se estabelece que o lugar do subalterno nessa teorias é o da sua impossibilidade de agir ou como um trabalhador consciente de sua situação de classe ou como incapaz de gerir as demandas de modernização dos novos Estados nacionais. Decorre daí, porém, uma avaliação de que se pode repensar a história de um ponto de vista dos subalternos, que não são fundamentalmente pessoas que são incapazes de oferecer um modo de ler a história diferente daquele dos relatos da elite. Por meio destes outros leitores, é possível explorar as fissuras do discurso dominante de forma a produzir uma narrativa diferente. Estas considerações vêm a propósito de um detalhe do monólogo de Kobi.


Dois dias após a maioridade religiosa de Kobi, a cidadezinha é visitada pelo líder de extrema direita Meir Kahana [1932-1990]. Insuflado pelo palavreado a respeito do carismático líder, Kobi, de treze anos, que sequer entende do que se trata, sentindo-se agora um rei com seus novos trajes e festa que fora oferecida em sua homenagem, desobedece ao pai, leva e oferece águas e refrigerantes para a comitiva; a seguir é recompensado por uma bênção do famoso rabino que o deixa eufórico. Poucos momentos depois, fica-se sabendo da morte repentina de Massaud, encontrado caído no chão no seu local de trabalho. A morte do pai é o motivo da derrocada da família. A causa da morte permanecerá desconhecida; é no final do último monólogo, que é o da filha Eti, que se resumem as possíveis causas, depois de retomar a visita de Kahana à cidade e suas posições políticas a favor de um Israel grande e exclusão dos árabes. Massaud teria morrido pelo óleo da fritura ou por uma picada de vespa? Por causa da faca que tinha na mão ou por causa da queda? Teria sido o coração ou uma queimadura? Voltando ao ponto de partida da desgraça na família e às origens na cultura proveniente do Marrocos, a resposta definitiva é fornecida segundo os conceitos dos ancestrais: na opinião da viúva Simona, Massaud teria sido atingido por um mau olhado. Kobi, por sua vez, pouco se importa com os sonhos de um grande Israel; tornou-se tão materialista como muitos dos outros habitantes veteranos do país. De retrato em negativo interiorizado da identidade do dominante, trata de adotar uma identidade hegemônica. O leitor pode tender a apor o choque/morte de Massaud em sequência à sua ira por ter de servir através do filho imaturo às ideias extremistas do famoso líder à própria percepção de impotência ante a atitude do filho que como que passa a seguir um novo [pai] herói. As novas leituras da realidade, da historiografia tanto do filho como do pai, ainda não estão totalmente afinadas com a realidade. Sob algum aspecto pode-se considerar que a morte do pai ocorre porque o seu papel de pai para o filho que adquiriu maioridade é deixado de lado, substituído pelo Rav Kahana. O livro de Sara Shilo insinua várias leituras possíveis. A perda do pai da família, e o desleixo a que esta é relegada por parte da família


patriarcal do falecido representa também o abandono que o governo devota a ela; a morte do marido representa para Simona uma autodescoberta: dispensada de sexo, procriação, partos, cuidado direto dos filhos [na narrativa os filhos cuidam uns dos outros], viuvez, ela percebe a liberação da opressão masculina. Entretanto, a falta de opção de se libertar da vida mirrada no bairro pobre e ameaçado, conduz Simona ao desejo desesperado de que um dos foguetes inimigos a mate. Uma leitura deste livro é também uma leitura da israelidade oriental/mizrahi existente com que escritores contemporâneos estão reconstituindo/elaborando a identidade desta grande parcela da população sufocada pela sua própria história de vida no país. Várias das principais correntes da cultura israelense contemporânea como um todo são o resultado do processo vigente entre artistas mizrahim de retomar o seu passado para criar uma cultura nova única. As formas de complexidade envolvidas na recriação de identidade e de transmissão de diferentes versões do passado e presente situam os escritores mizrahim nos debates em pauta nos mais diversos países, em torno de tradições culturais tais como árabes, africanas, indianas, afro-americanas, latino-americanas e caribenhas, minorias inseridas nas diversas culturas nacionais que as abrigaram.

reFerÊncias biblioGrÁFicas BERLOWITZ, Iafa. Lehapes shivui mishkal al lahav hataar, o mahi kriá mizrahit [Procurar equilíbrio sobre o gume da navalha, ou o que é leitura oriental]. Haaretz, 09/11/2004. Disponível em: http://www.haaretz.co.il/hasite/pages/ShArtPE.



O discursO dialógicO de Margaret atwOOd eM NegociaNdo com os mortos Sigrid Renaux[1] Como Margaret Atwood menciona em sua Introdução a Negotiating with the dead: a writer on writing (2002)[2], esta obra surgiu das Conferências de Empson – criadas na Universidade de Cambridge em homenagem ao crítico literário Sir William Empson –, a fim de oferecer, num “fórum único para escritores famosos e acadêmicos de reputação internacional”, a oportunidade de “explorarem de modo acessível temas de abrangência literária e cultural”(NM, p.5). Por esta razão, o tom leve, irônico e coloquial – tão característico da prosa ficcional, não ficcional e da poesia de Atwood – que perpassa as seis conferências •

reforça a acessibilidade com que ela discute o ato de escrever (NM, p.17) e as três perguntas feitas com maior frequência aos escritores[3], tanto pelos leitores quanto por eles mesmos: Para quem você escreve? Por que você escreve? De onde vem esse impulso? (NM, p. 19); potencializa, consequentemente, as questões abordadas nas conferências, como a identidade do escritor, o discurso e a consciência dupla dos escritores[4], o conflito entre arte, comércio e poder, o triângulo escritor/ livro/ leitor e os caminhos labirínticos da jornada narrativa, (NM, p.26);

1 Sigrid Renaux é professora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE).

Negociando com os mortos: a escritora escreve sobre seus escritos. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. Todas as referências a esta obra serão apresentadas pelas iniciais NM, seguidas do número da página.

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Remetendo, entre outras, às indagações de Sartre em Que é a Literatura?

Na tradução de Lia Wyler, usou-se “leitores” em vez de “escritores”, o que, evidentemente, deturpa o sentido da frase.

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e, ao mesmo tempo, projeta ainda mais a agudeza de espírito com que faz uma releitura da colonização, ao redefinir, subverter e desconstruir – através de estratégias discursivas como a ótica paródica e a ironia – os conceitos fixos de eurocentrismo, cânone literário e essencialismo, entre outros.

Essas estratégias, pelo fato de serem compartilhadas pelo pósmodernismo e pelo pós-colonialismo, merecem, entretanto, uma ressalva: como Linda Hutcheon já havia ressaltado em “Circling the Downspout of Empire”, apesar de haver uma importante diferença entre o pós-colonial e o pós-moderno – a arte e crítica pós-coloniais têm uma agenda política distinta e muitas vezes uma teoria de agência que lhes permite ir além dos limites pós-modernos, de desconstruir ortodoxias existentes, para entrar na esfera de ação social e política – mesmo assim há uma sobreposição considerável em suas preocupações formais (como o “realismo mágico”), temáticas (em relação à história e à marginalidade), e estratégias discursivas, (como a ironia e a alegoria), todas compartilhadas pelo pós-moderno e pelo pós-colonial, mesmo que as finalidades com que essas estratégias são usadas possam diferir (HUTCHEON, 1995, p. 130-131) (minha tradução). Esta pesquisa pretende, portanto, discutir algumas dessas questões abordadas nas conferências e, por conseguinte, verificar como as práticas do pós-modernismo e do pós-colonialismo usadas por Atwood •

não só se sobrepõem, ao Atwood apontar para “novos parâmetros de crítica literária e social, baseadas na relativização e na pluralidade” (BONNICI, 2005, p.45-6); mas simultaneamente lhe permitem ultrapassar os limites do pós-moderno e do pós-colonial, ao ainda abrir – como teoriza Hena Maës-Jelinek a respeito de “escritores criativos” (e, portanto, incluindo Atwood como romancista) – “novas perspectivas até na crítica,


em grande parte porque sua imaginação e pensamento originais os liberam das elaborações racionais da crítica acadêmica, enquanto seus pontos de vista são geralmente inspirados pela própria prática da literatura. (...) Salman Rushdie, Wole Soyinka, Caryl Phillips e Wilson Harris, os escritores mais prolíficos de ensaios críticos, expressaram insights únicos de literatura e sociedade sem recorrer à teoria”(JELINEK, 2008, p. 88-9) (minha tradução). Pontuando apenas algumas dessas ultrapassagens, constatamos:

I - A subversão dA crítIcA AcAdêmIcA: Atwood já anuncia, na Introdução: Penetrando o labirinto, que não tem “teorias literárias ou planos abstratos ou declarações ou manifestos”, como os ouvintes ou futuros leitores gostariam de receber, pois sua “gaveta das teorias e manifestos” estava “vazia” (NM, p.17). E, como ressalva adiante, “não sou acadêmica nem teórica de literatura e quaisquer ideias do gênero que tenham vagueado por este livro aqui chegaram pelos modos de escrever normais, que lembram os das gralhas: furtamos coisinhas brilhantes e com elas construímos a estrutura dos nossos ninhos desarrumados.”(NM, p.19). Deste modo, subverte não apenas o papel da crítica acadêmica, com suas “elaborações racionais”, mas também a ideia de que deveríamos esperar dela própria, Atwood, conceptualizações e teorizações a respeito da arte de escrever, como o fizemos a respeito de grandes romancistas que foram também teóricos do romance como Henry James, entre outros. Ao afirmar que essas teorias que eventualmente penetraram no livro aí chegaram “pelos modos de escrever normais”, ela dá uma torção irônica não só ao comparar a um furto o uso “normal” que fazemos da intertextualidade (“essas coisinhas brilhantes” que outros escreveram), mas ao nos comparar, como críticos, às gralhas (“jackdaws”) – simbólicas de ignorância, vaidade, conceitos vazios, idiotice e furto (VRIES, 1974, p.275) –, por


nos apropriarmos dos textos dos outros para com eles construirmos uma estrutura para nossas idéias desorganizadas. Entretanto, ela mesma se contradiz ao fazer essas afirmações, visto que seu livro revela, a cada página, a erudição e a abrangência de suas referências, ecléticas com certeza – como convém a uma escritora pós-moderna e pós-colonial –, camufladas sob uma aparência de anti-academicismo, pois essas “coisinhas brilhantes” furtadas, nada mais são do que sua re-escrita de textos que abarcam desde o herói sumério Gilgamesh – “primeiro escritor” (NM, p. 217) – a Michael Ondaatje, entre centenas de outros. Esta atitude anti-acadêmica é novamente confirmada no Prólogo, ao Atwood afirmar que, ao converter as seis conferências em textos escritos, procurou manter “o tom coloquial, embora admita ter excluído algumas piadas mais infames” (NM, p. 25). E, igualmente, dentro de seu estilo “low profile”, ao confessar que “a natureza variada das citações (...) é uma característica de minha mente e, apesar de todos os esforços para torná-la mais arrumada, não houve muito que eu pudesse fazer. As excentricidades de gosto e julgamento são minhas”(NM, p.25).

II - A releIturA dA sItuAção colonIAl cAnAdense e do eurocentrIsmo: Apesar de o 1º. Capítulo “Orientação: Quem você pensa que é? O que é “um escritor” e como vim a ser escritora?”, ser o mais autobiográfico, pois nele Atwood descreve e comenta seu aprendizado como escritora – lembrando A Portrait of the Artist as a Young Man de Joyce, mas em tom humorístico – e fala “das várias expectativas e ansiedades projetadas no papel do Escritor”(NM, p. 122), ela ao mesmo tempo faz uma releitura da “situação colonial” do Canadá na época em que se formou e começou a escrever, ao levantar, a partir de epígrafes, a preocupação dos escritores com a problemática da literatura e com a situação do poeta canadense: ao E.K. Brown afirmar, em 1943, que “a uma colônia falta a energia espiritual para transcender a rotina


(...) porque não crê suficientemente em si mesma...” e Milton Wilson, em 1958, que “o poeta canadense tem todos os modelos na própria lingua (para não falar em outras) à sua disposição, mas não possui a consciência surda de que está competindo com eles” (NM, p. 29-30), ambos já estavam revelando sua percepção do eurocentrismo que ainda dominava o Canadá daquela época, como também quanto esta mentalidade colonial afetava a própria criatividade dos escritores, incapazes de ultrapassar os modelos de seus antecessores ou de sentir “a ansiedade da influência” proposta posteriormente por Harold Bloom. Como Atwood complementa essas reflexões, ao comentar o romance The Woman in the Dunes de Kobo Abé, Nenhum escritor sai da infância para um ambiente incorrupto, isento de preconceitos contra escritores. Todos nos deparamos com numerosas ideias preconcebidas sobre quem somos ou deveríamos ser, o que é um bom texto e que funções sociais são ou deveriam ser preenchidas pelo que é escrito. Todos desenvolvemos as próprias ideias sobre o que estamos escrevendo com relação aos preconceitos. Quer procuremos atendê-los, nos rebelemos ou encontremos outros que os usam para nos julgar, eles afetam nossa vida como escritores. (NM, p. 33)

Esses preconceitos, gerados pelo colonialismo e eurocentrismo, são em seguida apontados por Atwood em relação à sua própria infância e adolescência, e às leituras que fazia, ao lembrar que havia lido as obras completas de Poe aos dez anos, pois “Poe fazia parte da biblioteca da escola, porque não falava de sexo e, portanto, era considerado próprio para crianças” (NM, p.40). Deste modo, Atwood desmistifica e desconstrói irônicamente a posição fixa e preconceituosa que o “establishment” escolar tinha a respeito dos livros que os alunos deveriam ler: se Poe era considerado próprio para crianças apesar de seus contos serem de terror, por outro lado os alunos já reagiam a esta imposição, ao lerem às escondidas livros proibidos como Forever Amber e Peyton Place. Mais ainda, Atwood revela que


o currículo era decididamente britânico, e também decididamente pré-moderno. (...) As aulas focalizavam os textos e somente os textos. Aprendemos a decorar esses textos, analisar sua estrutura e estilo e fazer resumos da obra, mas nenhuma era colocada em seu contexto histórico ou biográfico. Imagino que isso resultasse do New Criticism, embora ninguém mencionasse esse termo; e ninguém falava sobre o processo de escrever ou a profissão de escritor – como algo que gente real fizesse.

É nesse contexto “britânico e pré-moderno”, limitado e limitador, no qual as obras eram descontextualizadas historica e biograficamente e não se discutia o ato de escrever em si – questão que os Formalistas Russos já antecipavam, na segunda década do século XX, ao teorizarem sobre a da arte de escrever como “procedimento” ou “processo”[5] – , que Atwood se pergunta: “Em tais condições, como foi que me tornei escritora?”(NM, p.42) Seu questionamento prossegue, ao apresentar a imagem convencional de como se constroi um escritor – nas biografias, é comum haver um momento decisivo na infância que vaticina a carreira do futuro artista ou cientista ou político. A criança deve ser pai do homem e se não é, o biógrafo fará uma certa colagem e lhe dará uma imagem diferente, para fazer tudo dar certo. Desejamos muito acreditar em um universo lógico.

– e compará-la à sua própria biografia, ao afirmar: “quando relembro a vida que levei até começar a escrever, não encontro nela nada que justifique a estranha direção que tomei; ou nada que não pudesse ser encontrado nas vidas de muitas pessoas que não se tornaram escritores” (NM, p.44). Deste modo, após re-escrever “The Child is father of the Man” de Wordsworth (VIZIOLI,1988, p. 48) como “The child must be father to the man”[6] (minha ênfase) a fim de comprovar que, se não o for, o biógrafo certamente conseguirá atar todos os elos, ela põe em xeque não apenas a “validade” das Ver, entre outros, Viktor Chklovski, “A arte como procedimento”. IN: Teoria da literatura: Formalistas Russos. Porto Alegre: Globo, 1971. 5

6

No original inglês, p. 15.


biografias e dos biógrafos, que admitem “colagens”[7]; questiona simultaneamente a afirmação “desejamos muito acreditar em um universo lógico” o próprio conceito de essencialismo, ou seja, “a possibilidade de representar a verdadeira essência das coisas, as qualidades invariáveis e fixas de algum ser ou conceito” (BONNICI, 2005, p. 26), ao desarticular o binarismo conceitual “lógico-não lógico” do mesmo. Também a questão do cânone literário, estabelecido pela cultura dominante, é questionado por Atwood, ao comentar, a respeito dos escritores que ela e seus colegas “artísticos” – os “merdísticos”[8]– liam, que “o interesse dos artísticos não era a literatura canadense, ou pelo menos de início; como todos os outros, eles mal sabiam de sua existência” (NM, p.47). Em contrapartida, os interesses deles, além dos autores norte-americanos, visavam a Europa: Beckett, Camus, Sartre, Kafka, Brecht, Pirandello, entre outros, eram “nomes mágicos”. Curiosamente, como Atwood continua, “para um país que era supostamente uma colônia – ainda – tão firmemente presa nas garras culturais de um império britânico decadente, os autores britânicos tinham pouca presença”(NM, p. 48), pois “o verdadeiro impacto britânico era sentido através de um programa de rádio subversivo”, The goonshow, estrelado por Peter Sellers (NM, 49). Se em 1957, quando Atwood, aos dezessete anos, entrava na Universidade de Toronto, o “centro” – este “conjunto de valores fixos, homogêneos e estáveis” (BONNICI, 2005, p.19) – continuava sendo o Império Britânico, o fato de os estudantes “artísticos” terem mais admiração pelos escritores europeus do que pelos britânicos e por um programa de rádio subversivo, já demonstra que o binômio centro-margem não funcionava mais como deveria. Ou seja, Atwood está questionando o cânone literário através da dicotomia centro/ margem, visto que as “garras culturais” tradicionais da Inglaterra, também historicamente construidas, não estavam mais causando impacto no Canadá da década de 60, ao se tornarem “ambivalentes e instáveis”(BONNICI, 2005, p. 19). 7

Como a “biografia romanceada”, entre outros.

8

Os “artsy-fartsies” no original inglês.


E são exatamente “os outros”, os “artísticos”, os rejeitados, que admiravam os escritores vanguardistas europeus mas que não se encaixavam no modelo esperado de estudante universitário normal, a quem Atwood dedica este livro, deste modo também desconstruindo – como já o havia feito em relação ao Prólogo – a dedicatória canônica que esperamos encontrar num livro, oferecido agora àqueles que são rejeitados pelos “normais”. O tema da desconstrução/subversão do colonialismo e consequentemente do binômio centro-margem volta à tona, ao Atwood descobrir que havia atividades literárias em curso, que existiam poetas no Canadá, em pequenos blocos e até mesmo em escolas – o que nos remete à situação marginalizada que a literatura afro-brasileira ainda experimenta em nosso país, se bem que por outras razões – e, além disso, que críticos como Northrop Frye provocavam comoção até no exterior. Como ela comenta, perceptivamente, “Foi Frye quem fez uma afirmação revolucionária – revolucionária não somente para o Canadá, mas para qualquer sociedade, particularmente uma sociedade colonial: ‘o centro da realidade está onde a pessoa acontece estar, e sua circunferência é aquela que a imaginação da pessoa consegue explicar’”(NM, p. 51-2). Deste modo, já na década de 50, Frye antecipadamente subverte o conceito historicamente construído de centro-margem que a teoria pós-colonial irá questionar, como também “põe em xeque o próprio conceito de centro, ao situar o mesmo no local onde a pessoa “acontece estar”, e não mais num país hegemônico. O comentário de Atwood sobre esta subversão conceitual de Frye – “(Então a pessoa [para estar no centro] não precisava ser de Londres nem de Paris nem de Nova York!)” (NM, p. 52) – , bem revela sua atitude de irônica surpresa diante da percepção da “deslegitimação da autoridade” desses centros, antes pontos irrefutáveis de referência. A postura de Frye também antecipa em quatro décadas a explanação de K.A.Appiah em “Is the Post- in Postmodernism the Post- in Postcolonial?” (1991), de que o “pós” em pós-colonial, como comenta Frank Nilton Marcon,


não é apenas um ‘pós’ de superação de etapas, mas é um ‘pós’ do gesto de abrir espaços’, por ser posterior a algo mas também por rejeitar os aspectos ‘de’ algo. Não significa que uniformemente as sociedades coloniais ou tradicionais ultrapassaram o ‘colonialismo’. Significa que esta é uma condição de posturas intelectuais, estéticas, políticas e econômicas marcadas pela deslegitimação da autoridade, poder e significados produzidos pelos impérios ocidentais. (MARCON, www. nuer. ufsc. br/ artigos. htm)

III - A desconstrução/reconstrução dA Arte de escrever: Ao direcionar suas reflexões ao tema da “escrita como arte, e ao escritor como herdeiro e portador de uma série de pressupostos sociais sobre a arte em geral e sobre a escrita em particular”, apontando assim para a responsabilidade do escritor, Atwood afirma, primeiramente, que a arte de escrever se distingue da maioria das outras pela “sua aparente democracia (...), sua acessibilidade a quase todas as pessoas como um meio de expressão” (NM, p. 54). Entretanto, essa aparente democracia é em seguida desconstruida, pois mesmo que “a maioria das pessoas acredita secretamente que elas próprias guardem um livro dentro de si”, pois muitos “passaram por uma experiência sobre a qual outros gostariam de ler”, “isto não é o mesmo que ‘ser escritor’”. Sua insólita comparação do ato de escrever com a de um coveiro – “qualquer um pode cavar um buraco no cemitério, mas nem todo mundo é coveiro” – comparação que ela própria considera “sinistra”, e que nos remete inconscientemente à cena do coveiro em Hamlet – na realidade é muito mais pertinente e profunda do que parece à primeira vista: pois para ser [coveiro] é preciso muito mais energia e persistência. Além disso, dada a sua natureza, é uma atividade profundamente simbólica. Como coveiro (...) carrega-se nos ombros o peso das projeções de outras pessoas, dos seus medos e fantasias,


ansiedades e superstições. Representa-se a mortalidade quer se goste ou não. (NM, p.55)

É este papel simbólico que Atwood transfere em seguida para “qualquer papel público, inclusive o de Escritor, com E maiúsculo”, mesmo que o “seu significado – seu conteúdo emocional e simbólico – vari[e] com o passar do tempo” (NM, p.55), confirmando e recontextualizando assim o teor do ensaio de Eliot, “Tradição e Talento Individual”: A tradição (...) envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico (...); e o sentido histórico implica a percepção, não apenas da caducidade do passado, mas de sua presença; o sentido histórico leva um homem a escrever não somente com a própria geração a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura européia desde Homero e, nela incluída, toda a literatura de seu próprio país têm uma existência simultânea e constituem uma ordem simultânea. (...) Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos. não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos. (ELIOT, 1989, p. 39) (Minha ênfase).

A questão do título e subtítulo do livro de Atwood, portanto, remete, por um lado, a esta relação necessária que Eliot estabelece entre um poeta ou artista com os poetas e artistas que o precederam, situando-o “para contraste e comparação, entre os mortos” a fim de podermos melhor estimá-lo; por outro, ela já está prefigurada neste primeiro capítulo, através da figura simbólica do coveiro, e do sentido que Atwood dá ao título, pois, como ela explica no capítulo final A descida: Negociando com os mortos, O título deste capítulo é “Negociando com os mortos” e a sua hipótese é que não apenas alguns, mas todos os escritos do gênero narrativo, e talvez até tudo que se escreva, seja no fundo motivado pelo medo e a fascinação diante da mortalidade – por um desejo de empreender a arriscada viagem para os Infernos e dali trazer algo ou alguém ao regressar” (NM, p. 196-7).


Amplia e aprofunda assim esta relação eliotiana, ao lançar a hipótese de que não apenas nós, leitores, precisamos situar o poeta/ artista entre os poetas/artistas que o precederam mas que os próprios escritores desejam estabelecer contato com os poetas mortos, a fim de “trazer algo ou alguém ao regressar”. Estabelece então, numa pergunta retórica, uma premissa de trabalho: “por que escrever, mais do que qualquer outro meio de expressão ou arte, estaria tão estreitamente vinculado a nossa própria ansiedade e respeito pela própria extinção final?”(NM, p. 198) Como ela mesma responde, Ir ao país dos mortos e trazer de volta à terra dos vivos alguém que estava lá – é um desejo humano muito profundo, embora seja também algo rigorosamente proibido. Mas é possível conceder uma espécie de vida a quem escreve. Jorge Luis Borges em seus Nove ensaios dantescos, propõe uma teoria interessante: toda a Divina Comédia (...) foi composta por Dante para poder entrever a falecida Beatriz e trazê-la de volta à vida em seu poema. É porque escreve sobre ela, e somente por isso, que beatriz pode voltar a existir novamente na mente do escritor e do leitor. (NM, p. 213) (ênfase minha)

Esta concepção borgiana é então retomada e desenvolvida por Atwood, ao afirmar: Ninguém torna a voltar para casa novamente, disse Thomas Wolfe; mas de certo modo voltamos, quando escrevemos sobre isso. (NM, p. 214). (...) Todos os escritores aprendem com os mortos. Enquanto continuamos a escrever, continuamos a explorar o trabalho dos escritores que nos precederam; ao mesmo tempo nos sentimos julgados e responsabilizados por eles. (...) Porque os mortos controlam o passado, controlam a histórias, e também certas verdades (...); portanto, se formos nos aventurar na narrativa, teremos de lidar, mais cedo ou mais tarde, com essas camadas anteriores do tempo. Mesmo que o tempo seja o de ontem apenas, já não é hoje. Não é o agora em que estamos escrevendo. Todos os escritores têm de passar do agora para o era uma vez; todos devem ir daqui para lá; todos devem descer até o lugar em que as histórias estão guardadas; todos devem cuidar para não serem capturados e imobilizados no passado. E todos precisam furtar


ou recuperar, dependendo do ponto de vista. Os mortos podem guardar o tesouro, mas ele será inútil se não puder ser trazido de volta à terra dos vivos e reingressar no tempo – o que significa entrar para o dominio do público, o domínio dos leitores, o domínio da mudança. (NM, p. 220-221)

Ao confirmar a obrigatoriedade do escritor de transitar temporal e geograficamente do mundo dos escritores vivos ao mundo dos escritores mortos, a fim de “furtar ou recuperar” os tesouros lá escondidos, pois eles só terão valor se puderem ser trazidos de volta e reingressarem no tempo, isto é, no domínio do público e, assim, da mudança – esta palavra seminal –, Atwood consegue portanto ir além das correntes culturais do pós-modernismo e do pós-colonialismo: sua perspectiva pragmática, abrangente e conciliadora não apenas desconstroi as “ortodoxias existentes” da crítica acadêmica, do colonialismo e do eurocentrismo, mas até as da arte de escrever, através das diferentes perspectivas que estabelece entre essas ortodoxias e seu próprio ponto de vista. Ao “propor um protótipo mais antigo [do que Virgílio] para o aventureiro aos Infernos como escritor – o já mencionado heroi sumeriano Gilgamesh”(NM, 216) – Atwood está também redimensionando o centro do “arcabouço cultural europeu” (BONNICI, 2005, p. 26) para incluir o do mundo oriental, confirmando assim a afirmação de Frye de que “o centro da realidade está onde a pessoa acontece estar, e sua circunferência é aquela que a imaginação da pessoa consegue explicar”. Simultaneamente, ela está exercendo, em seu discurso dialógico, a proposta de Harris e Soyinka por um “culturalismo cruzado”, que transcende as atitudes antinômicas de globalização x identidade nacional ou regional – ao ambos escritores chamarem a atenção, em sua crítica, a correspondências culturais racionalmente inexplicáveis e ao insistirem na natureza intuitiva da imaginação e em sua capacidade de conceber a humanidade em termos heterogêneos, (não apenas num sentido racial mas com referência a todas as espécies vivas), a fim de, nas palavras de Harris, “prevenir a morte da imaginação dentro das molduras da identidade dogmática e da


homogeneidade” (JELINEK, 2008, p.89-90). É este cruzamento de diálogos e culturas, entre escritores vivos e mortos, que Atwood negocia também com seus leitores, ao falar, ao longo da obra, “do ofício de escrever”.

reFerêncIAs bIblIoGrÁFIcAs ATWOOD, Margaret. Negociando com os mortos: a escritora escreve sobre seus escritos. Trad. Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. ATWOOD, Margaret. Negotiating with the dead: a writer on writing. New York: Random House, 2002. BONNICI, Thomas. Conceitos-chave da teoria pós-colonial. Coleção Fundamentum n. 12. Maringá: Editora da UEM, 2005. ELIOT, T.S. Ensaios. São Paulo: Art Editora, 1989. Tradução, introd e notas de Ivan Junqueira. HUTCHEON, Linda. “Circling the Downspout of Empire”. IN: ASHCROFT, B., GRIFFITHS, G., TIFFLIN, H., eds. The Post-colonial studies reader. London: Routledge, 1995. P. 130-135. MAËS-JELINEK, Hena. “Literature and Criticism: New perspectives?” IN : ZACH, Wolfgang & KENNEALLY, Michael, eds. Literatures in English. Priorities of Research. Tübingen: Stauffenburg Verlag, 2008. MARCON, Frank Nilton. “Estudos pós-coloniais em reflexão”. http://www.nuer.ufsc.br/ artigos. htm. VRIES, Ad de. Dictionary of Symbols and Imagery. Amsterdam: North-Holland, 1974.


WORDSWORTH, William. Poesia selecionada. Trad VIZIOLI, Paulo. Ed. Bilíngue. São Paulo: Edições Mandacaru, 1988.



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