Hoje Macau 9 Anos

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9º aniversário

Os 90 anos do livro que nunca existiu

António Patrício 80 anos depois


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II

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COD tem no prelo obra inédita de António Patrício No ano em que se comemora os 80 anos da morte de António Patrício, uma editora de Macau tem um prelo um volume de originais do poeta, dramaturgo e diplomata. A COD, dirigida por Carlos Morais José, e que agora conta nos seus quadros com Luís Sá Cunha, vai publicar “Fragmentos Poéticos”, uma colecção de aforismos inéditos de

António Patrício, com um prefácio de José Augusto Seabra. O livro, que conta ainda com um esboço biográfico-literário do autor e uma ficção sobre os seus últimos momentos em Macau (que hoje prépublicamos), deverá estar à venda no mês de Outubro, pretendendo a COD distribui-lo em Portugal e no Brasil.

Luís Sá Cunha Não teria desagradado a António Patrício a notícia da escala em Macau, que o Ministério intercalara no seu itinerário para Pequim. Decadente, embora, nos princípios do Século, Macau já era conhecida do poeta dos começos das suas errâncias diplomáticas em Cantão, como cônsul de 2.ª classe. E, Macau, mantinha o mesmo filtro encantatório que fascinava os visitantes, a Nápoles do Oriente, primeiro mestiço entregerado das núpcias China/Europa. Para ele, itinerário simbólico, ou vaticinado, em que um começo se encerra circularmente num final, desígnio de vida navegada em périplo perfeito, sempre sobre o mar, aquele mar que lhe era obsessão e fascínio, rota iniciática entre a perdição na terra e a ascensão a supernos pólos. Gostaria António Patrício de ficar alojado no Hotel Boa Vista; ali, enquadrado nos arcos da corredia varanda, envistada toda ao semilúnio da baía, reclinado na preguiceira, poderia longamente abandonar-se à estesia da paisagem: rever como o pastel ocre das águas diurnas se ensanguentava subitamente ao crepúsculo, como tocadas à vara de um Moisés, para logo reflectir a prata da lua no seu negro espelho. Cenário, talvez, inspirador de algum, novo, dos seus dramas estáticos? Ali, podia deixar a vista ser arrastada pelo moroso fluir das embarcações, dos chatos tancares aos

Os últimos momentos Ficção da derradeira noite em Macau juncos de velas fantasmáticas, a ir, a ir, armadas de mistério sem destino... Talvez pudesse, apurando o ouvido escutar: “Só, incessante, um som de flauta chora...” ou espantar os olhos na visão da enorme lanterna colorida de um “barco de flores” a incendiar a noite e as imaginações... Pensaria em Camilo Pessanha... Sair, logo de manhã: com solar júbilo iria peregrinar à Gruta de Camões, “o santuário pan-lusitano” do bardo da “Clepsidra”. Mas... chegado ao cais, logo foi acolhido por gente do Palácio do Governador, e informado de que tudo estava preparado

para o acolher e à esposa, Alice Minie Josephine d’Espinay, em aposentos de Santa Sancha, como era devido ao Ministro de Portugal em Pequim, “e uma distinta honra”. Também ali, sabia Patrício, havia varandim arredondado, alteado sobre as águas da baía... Não era, porém, apenas um grande diplomata que ia ser recebido no Palácio... Era também, e sobretudo, um grande poeta e admirável dramaturgo, assim pensava (e sentia) a anfitriã Maria Anna Tamagnini Barbosa, esposa do possante governador Tamagnini Barbosa, que há dias vivia na excitada expectativa do convívio com o poeta... Ela, também, às

musas dada, e já com alguma fama nos meios literários de Portugal, depois de publicação do seu livro “Lin-Tchi-Fa” (Flor de Lótus), em 1925, que atraíra os olhares elogiosos da crítica. Sim, Maria Anna esperava que António Patrício já lhe tivesse ouvido o nome, alguma referência, às mesas das tertúlias portuenses. Henrique Trindade Coelho, em crítica em “O Século” (de que era o director), superiorizava o livro de Maria Anna ao “Cancioneiro Chinês”, transcriação de António Feijó sobre o “Livro de Jade”, traduzido do chinês pela filha de Théophile Gautier. Era já um começo de consagração ou entrada no Parnaso, um livro onde era encomiada a autenticidade da vivência oriental plasmada nos versos, além da beleza formal dos cânones parnasiano-simbolistas. Sim, António Patrício já por certo lera ou vira estampado algum dos poemas reproduzido nas críticas, e a poderosa feição masculina do seu espírito por certo se inclinava sensivelmente ao eflúvio lunar e feminino da voz da Maria Anna: “Ah! Se eu pudesse como outrora ao luar Por esses lagos nos jardins dispersos Ir as folhas de lótus apanhar Para sobre elas escrever meus versos...” E o almejado encontro deu-se na magia do crepúsculo, num ritual de chá em debruço sobre as águas.... Estimulados pela mãe, acercaram-se


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hojemacau 9ºaniversário os filhos, para conhecerem “o grande poeta português” e a sua esposa, instruídos para lhe expressarem boas-vindas e questões elegantes, para lhe ouvirem revelações da terrível Guerra que ele vivera no coração da Alemanha... Ali se perfilaram como os tubos de uma flauta Artur Manuel, Mariano Alberto, Miguel Ângelo, Marco António e Alberto Manuel. Maria Anna ia informando o casal das coisas de Macau... da China também... Havia impaciência contida no esmero do código de maneiras... Ela ansiava ouvi-lo dizer qualquer coisa sobre sua poesia... ele era curioso de coisas, histórias, episódios de Camilo Pessanha no seu longo exílio em Macau, terminado com a sua morte havia quatro anos... Nervosa, embora, Maria Anna confiava na nobreza do poeta: sabia-lhe a fama de incontível irreverência e até a desbroncada crítica, sob a sua postura blasé e refinada de dandy. Um dia, contava-se na Bertrand, um escritor oferecera-lhe o livro acabado de publicar que fora incontinenti atirado para o caixote do lixo por António Patrício. Inquirido pelo autor, Patrício despejara-lhe: “É onde ele deve estar!” Ramada Curto, esse, era testemunha directa do que se passara consigo: sobre um livro que acabara de publicar perguntara-lhe Patrício se não tinha vergonha de ter escrito aquilo, chamando à peça “teatro para virgens de trinta anos e majores reformados”. Educado e diplomata, agudo observador, e sabedor dos momentos das entradas no teatro, Patrício desvaneceu-a subitamente: “Minha Senhora, nada mais encantaria a minha esposa e a mim mesmo neste momento que a graça da ouvir-lhe dizer algum dos seus delicadíssimos poemas...” Houve um suspenso, a mão de Maria Anna estremeceu ao súbito sacão do coração dentro do peito, surdiu mais ríspida a colherinha de prata na porcelana da chávena, onde o chá com coco incensava o momento. E começou: “Nos kakimonos, de papel pintado, Os dragões saltam, riem as carrancas, E entre as nuvens do fundo acobreado Os deuses montam em cegonhas brancas” Com o luar já luminante, fluía a poesia das noites orientais, lua e água face a face:

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III

aspirou ali um perfume oriental... Mas a atmosfera quieta estremeceu quando ele subitamente pediu um copo de água com impaciência... Veio a correr a água, ele bebe, a esposa refresca-lhe a fronte com um lenço embebido. Patrício recompõe-se, respira vagarosamente o ar atabafado, nunca se perde a compostura, centra de novo o laço, sim, um poeta deve entrar, até a porta do outro mundo, de casaca irrepreensível e luvas “só de trazer”, torna a respirar, e num fio de voz, olhos nas aves que desmaiavam com o sol: “Piai, gaivotas piai, piai; Falai das frotas Mortas num ai Raça de sombras que é hoje a minha reze às estrelas a ladainha: A ladainha dos teus heróis rosários mortos, de grandes sóis. S. Raphael S. Gabriel Rezai ó ondas a S. Miguel!” “E, à luz branca do luar, As tuas mãos transparentes Colheram um nenúfar A flor das águas dormentes” Densíssima, a humidade ia interpondo filtros de gaze à paisagem, mais e mais evanescente... O ar parecia soprado da forja de um vulcão... Mas Patrício, deliciado, escutava, as pálpebras semicerradas para absorver ainda mais concentradamente o cenário fantástico pela fresta dos olhos... Os juncos a fluir para o centro do horizonte, mariposas negras atraídas pelo sol poente... No rosto lunar de Maria Anna marmoreavam-se laivos de feliz triunfo... Era agora, por obséquio, a vez do ilustre convidado dizer também uns poemas... Sim, depois de Camões, Bocage e Camilo Pessanha, era sumo privilégio para os ares de Macau escutarem a música de António Patrício... Ele sorriu...

... De través, Alice d’Espinay espionava-o, inquieta, interpretava-lhe os mais pequenos gestos.... Ele, impecável dandy, começara a desmanchar o laço com a tenaz nervosa dos dedos... Ela sabia do desmaio dele no navio, da debilidade da sua saúde... A esbandalhar o laço, ele que sempre trazia um espelhinho sob o chapéu de coco, para repor, onde fosse, o laço na perfeição geométrica do colarinho... Patrício pensava: seria educado adiar a sua curiosidade sobre Pessanha, e então começou: “Somos navegadores para além da Morte: temos a Índia eterna de saudade rumando para sempre a nossa sorte. Ó grande mar espúmeo de bondade Que a nossa alma portuguesa aporte entre no Reino de Serenidade...” Foi com um sorriso que Maria Anna

Calou-se, a contemplar os canteiros de heliantos do jardim... Como girassol ao pôr-do-sol, pesada, a cabeça capitulou-lhe na haste do pescoço... Recolheram-no em pânico ao interior de Santa Sancha, gritaram à criadagem para vir abanar leques, chegou o médico, palpa o pulso, arvora ar catedrático... preopina diagnóstico contrastante com o do galeno do navio... Patrício reage... Adia-se o jantar. Há maior alarme na criadagem.... Retirado para um canto mais isolado, Patrício fascina-se na espúmea luarada a derramar-se pelas frestas da veneziana... “Ah, entrar no Além como uma onda!” A escoar-se no coração da noite, o sol, lá fora, arrastava a coroa dos girassóis...


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IV Jorge Carvalho Martins António Patrício nasceu no Porto, na Rua dos Caldeireiros, a 7 de Março de 1878 e faleceu em Macau a 4 de Junho de 1930, com 52 anos de idade. Foi na Foz do Douro que construiu o seu círculo de amigos e viveu os melhores anos da sua vida, aí regressando invariavelmente nos piores momentos: “Natural do Porto, passando na Foz as suas férias, de estudante primeiro, de diplomata quase sempre exilado, depois, foi por certo, em Portugal, neste mar de Carreiros, que seus olhos por mais longo tempo se ficaram... Estou a vê-lo, nas tardes quentes de Agosto, aparentemente desdenhoso a olhar o mar fixamente, a “beber azul”, a “embriagar-se de azul” - como dizia - num encantamento sensual, todo lírico, que ele teimava em encobrir, aparentando um sensualismo pagão que não sentia...”
Sua mãe, Emília Augusta da Silva Patrício, era doméstica. Seu pai, António José Patrício, era armador e possuía uma agência funerária no Porto. (...) Embora tenha vivido a sua infância sem dificuldades económicas, o mesmo não se pode dizer da sua vida afectiva, pois assistiu à morte de três irmãos menores, vitimados pela tuberculose: Fernando, Emílio e Mário.
O diplomata frequentou o Liceu Rodrigues de Freitas, no Porto, findo o qual se matriculou na Academia Politécnica do Porto, onde cursou Matemática, sem todavia concluir. Em 21 de Setembro de 1898 foi chamado para o cumprimento do serviço militar, ainda na sua cidade natal, tendo sido “apurado para os serviços auxiliares do exército em tempo de guerra.” Casou durante o primeiro semestre de vida militar, com Alice Minie Josephine d’Espiney, doméstica, do Porto, filha de pai francês e de mãe alemã (Bertha Elisabeth). Acrescente-se que Alice tinha ascendência aristocrática inglesa pelo lado paterno.
António Patrício foi pai ainda durante o ano de 1899. O seu primeiro filho chamava-se Emílio d’Espiney Patrício e seguiria igualmente a carreira diplomática. Entre 1899 e 1901 esteve em Lisboa, a frequentar a Escola Naval, mais atraído pelo mar do que pela farda, residindo na Rua da Cruz Vermelha na companhia de sua mulher. Em 1901 frequentou a Escola Médica do Porto, cidade onde regressara a pedido da mãe, em consequência da morte de seu irmão Mário. No seu círculo de

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António Patrício

Diplomacia e Literatura amigos já se contavam, entre outros, o escritor Fialho de Almeida, Augusto de Castro, futuro director do Diário de Notícias, António Carneiro, o pintor de Amarante e João de Barros, o amigo de sempre. A principal constante da sua juventude foi ter passado todo o tempo disponível a contemplar o mar, que banhava Leça da Palmeira e a Foz do Douro. No final do ano de 1906, ocorreria a morte do pai, numa altura em que se preparava para fazer uma visita a Madrid na companhia de um dos seus amigos íntimos, Manuel Laranjeira.
Tendo iniciado o curso de Medicina na Escola Médica do Porto, aos 23 anos de idade, viria a concluí-lo apenas em 8 de Janeiro de 1908, com a defesa da tese Assistência aos alienados criminosos, demonstrando o seu pioneiro interesse pela psiquiatria. O tema que escolheu permitiu-lhe fazer uma comparação entre as socialmente aceites “espoliações legais” e os incompreendidos furtos patológicos. Patrício, conhecedor dos estudos psiquiátricos que despontavam, faz uma interessante incursão introspectiva. Dois anos depois, reafirmaria a sua visão crítica das regulamentações sociais mais paradoxais (embora compreensíveis à luz dos valores e dos interesses que serviam): “A lei faz isto: que um homem passe com fome num pomar sem cravar os dentes num só fruto.”. António Patrício era um admirador do Dr. Júlio de Matos, que, após a implantação da República, viria a ser autor da reforma da assistência psiquiátrica em Portugal, em 1911. A opção temática da tese de Patrício prendese com a admiração pelo mestre e assenta que nem uma luva na sua personalidade, nas suas reflexões filosóficas, na profundidade humana com que caracteriza as personagens dos seus livros.
No entanto, as classificações que obteve nos exames das 13 cadeiras do curso, oscilaram

entre os medianos 10 e 12 valores. O diploma, passado em Outubro de 1909, com a classificação final de 13 valores, conferia-lhe habilitações para “exercer Medicina e Cirurgia”, que nunca terá exercido efectivamente, embora existam referências a um serviço de dois anos prestado no Hospital Psiquiátrico do Conde de Ferreira, no Porto. Não nos parece que Patrício tenha chegado realmente a valer-se profissionalmente das suas habilitações superiores, visto que solicitou à Fazenda Pública em 26 de Outubro de 1909 a confirmação do não exercício de trabalho remunerado, o que aquela repartição estatal deferiu. Um seu colega e amigo desses tempos, Amadeu da Cunha - que lhe ouvira ler o livro Oceano no seu quarto de estudante - corrobora esta nossa tese, não só do não exercício da medicina, como da total falta de motivação para tal: “E, assim ele apareceu um dia, médico. Jamais, contudo se experimentou a praticar a arte. Bastara-lhe presenciar sobre a mesa de mármore o desfazimento... E virou-se para a diplomacia. Acertava dessa vez.” .
Apoiado por José de Alpoim e estimulado e apdrinhado por Guerra Junqueiro, Patrício tentou a carreira diplomática, prestando provas no Ministério dos Negócios Estrangeiros para Cônsul de 2ª Classe a 15 de Dezembro de 1909. Embora os resultados tives-

sem sido publicados em Fevereiro de 1910, só entraria na carreira diplomática após a implantação da República, com a nomeação para o consulado de Cantão. Porém, antes de seguir para Cantão, foilhe confiada uma particularmente difícil missão que marcaria positivamente a sua carreira diplomática, em consequência da forma como a desempenhou. Trata-se da meritória acção que protagonizou na Corunha, conseguindo impedir o desembarque de um carregamento de armas destinadas aos monárquicos que conspiravam na Galiza, preparando aquela que viria a ser a primeira incursão couceirista no norte português. Permaneceu em Cantão entre Dezembro de 1911 e Outubro de 1913, data em que foi transferido para Manaus, como castigo pelo envolvimento com uma jovem de 18 anos, filha de uma influente família de Hong Kong.
Em Abril de 1914 foi colocado em Bremen, assumindo o seu posto seis meses mais tarde e onde ficaria retido até Fevereiro de 1917, em plena Guerra Mundial. Regressado a Lisboa, envolveu-se com Sidónio Pais, que fora Ministro Plenipotenciário em Berlim no início da Guerra e terá deixado premeditamente o cônsul em Bremen. Em consequência, seria afastado da diplomacia em 1918, pelo então Ministro dos Negócios Estrangeiros... Sidónio Pais. Recolheu à Foz do Douro e só retomaria a carreira no ano seguinte com a nomeação para Constantinopla, posto diplomático que se viu impossibilitado de assumir de imediato, sendo-lhe atribuída, no entretanto, uma missão em Atenas, onde viria a falecer o seu filho dilecto, vitimado pelo tifo, facto que marcaria profundamente Patrício durante o resto da vida.
Após mais de três anos na Grécia, regressou, de novo, à Foz do Douro para recuperar forças, até assumir o posto de Constantinopla em Setembro

de 1924, onde permaneceria, contrariado, apenas oito meses. No ano de 1925 exerceu o cargo de Ministro Conselheiro na Embaixada de Londres, posto o que ensaiou várias tentativas de obter um posto do seu agrado, preferencialmente na Europa, acabando, contudo, por ser nomeado para Caracas, onde tomou posse em Agosto de 1927. No ano seguinte seria chamado a Lisboa pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, já no cumprimento das medidas de Salazar no Ministério das Finanças. Exerceu então funções na Secretaria de Estado do Ministério dos Negócios Estrangeiros até à sua derradeira nomeação, em Março de 1930, para Pequim, cargo que não chegaria a assumir, por ter falecido três meses mais tarde em Macau, numa paragem solicitada pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros.
 Sobre António Patrício contam-se episódios curiosos que, provenientes ou não da imaginação dos seus admiradores, valerá a pena referir alguns, porque todos eles convergem na definição de um traço característico da personalidade do diplomata: uma desmesurada irreverência. Mitificação ou realidade, podemos descortinar, através desses episódios, o seu lado blasé, de resposta pronta à mais insólita ou imprevisível situação com que se confrontasse. Quando não gostava do trabalho de alguém, não lhe regateava críticas contundentes. Conta-se que Patrício se referia à escrita de Leonardo Coimbra como “legível, se ele não se esquecesse tão sistematicamente de empregar, nas suas orações, ora o sujeito, ora o predicado, ora os complementos - e por vezes, todos ao mesmo tempo. Outro exemplo, é da sua apreciação do teatro de Ramada Curto. É o próprio quem nos relata, no prólogo de um seu livro, a opinião de Patrício: “Pois o António Patrício - gentilíssimo amigo! - formava uma boa opinião a meu respeito, e como a formava, não hesitava em capitular de borracheiras, algumas das minhas peças de sucesso. Lembro-me que da “Noite no Casino”, por exemplo, ele me perguntava se eu não tinha vergonha de ter escrito aquilo, e chamava à peça teatro para virgens de trinta anos e majores reformados.”. 
Quanto à postura blasé por que era conhecido, conta-se que tinha um espelho no chapéu, que lhe permitia compôr o nó da gravata de cada vez que o tirava para cumprimentar alguém. Exagero


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V

Cidades onde Patrício viveu, na época em que o poeta ali estanciou ou não, o que é certo é que Patrício criou uma imagem mítica que associava a sua cuidada apresentação à sua forte personalidade: “O coco, a bengala janota, as luvas representativas, de homem fino, de dedos virginalmente espetados, luvas que não são de calçar, mas de trazer; a andaima impecável, trescalando a córte europeu, a sartor impertigado do Boulevard, descendente, em linha directa, dos fornecedores de Lausun, ou de Morny, - tudo nele fosforejava, reverberava, timpanizava esplendorosidade humorística, pletora sardónica, uma fresca e desenvolta plenitude de fonâmbulo dextro de ridículos... (...) Patrício, socialmente, foi sempre um vencedor! Desde os tempos do Porto, em que, estudando uma vaga e desdenhosa medicina, atordoava os Clérigos e estarrecia a Praça Nov com o seu dandismo estrídulo de tripeiro; seu panamá acintosamente à rastacuéro; sua dobra aguerrida nos pantalone dum imprevisto grão civilizado. (...) O seu convívio havia de, necessáriamente, ressentir-se desta infatigável benemerência dos fados; havia de contrair (era fatal) o tic de impiedade trocista, adunca, torsionária, com que ele perseguia, pele-mele, medíocres e balofos, moços de cego de má-ventura, nostálgicos e escorraçados dum outro mundo melhor...”.
 Quem assim o descreveu foi Carlos Parreira, redactor da Seara Nova, que tivera a oportunidade de acompanhar, nessa prestigiada revista, uma polémica em torno do inquérito literário dirigido por João Ameal no Diário de Notícias em 1929. Aliás, estes mesmos traços da personalidade do diplomata seriam acentuados por Augusto de Castro, um amigo de juventude: “Tinha no sangue a irreverência e a ironia. Ainda ele andava na Politécnica do Porto, já podia gabar-se de possuir a maior colecção de inimizades que um homem é capaz de reunir aos dezanove ou vinte anos.”. Finalmente, consta que o diplomata, mal regressou do exílio forçado de dois anos e meio na Alemanha durante a 1ª Guerra Mundial, terá entrado pelo gabinete de Sidónio Pais no Ministério dos Negócios Estrangeiros e o terá

esbofeteado. Aquela bofetada teve um preço muito elevado, como adiante veremos. O seu amigo João de Barros traçou um esclarecedor retrato da forte personalidade do diplomata-escritor: “A ironia acutilante da conversa de António Patrício - que tantas inimizades, ainda não inteiramente desarmadas, lhe trazia a cada passo - não era senão, afinal, o receio de deixar adivinhar a infinita impressionabilidade e o tumulto vibrante e quási febril da sua alma.”. Este mesmo escritor e amigo de sempre - a quem chamaram “irmão gémeo de António Patrício” - foi quem mais escreveu sobre a obra e melhor retratou o diplomata: “(...) do seu temperamento enérgico, por natureza incapaz de atitudes de renúncia, de fraqueza, de covardia, (há uma covardia mental e artística pior e mais nociva de que todas as outras), que o inibissem de sonhos e criações maiores.”.
A constante inquietação em que Patrício viveu - e em que se viu

obrigado a viver, em consequência da azáfama diplomática - criou “...a lenda dum António Patrício estrangeirado, irónico, sarcástico, desdenhoso de maneiras, e prodigiosamente irreverente - que anda ainda a correr mundo...”. Uma vez mais, João de Barros se vale do seu conhecimento íntimo dos sentimentos de Patrício para o recordar nos seus característicos inconformismo perante a vida e insatisfação face às suas criações literárias: “O seu insaciável amor da Vida, o seu constante anseio de evasão de todas as peias e limitações dos conformismos quotidianos, a sua paixão ingénita do mar e da aventura sempre renovada, o seu espírito em busca de perspectivas cada vez mais iluminadas, mais longínquas e mais difíceis de alcançar - quer no caminho da perfeição formal, quer no rumo abismal da emoção e do pensamento...”.
 (...) Se relacionarmos a produção literária de António Patrício com a

sua carreira diplomática, podemos sistematizar a capacidade criativa do escritor em quatro fases distintas e que, de alguma maneira, decorrem da sua actividade diplomática ou de acontecimentos marcantes da sua vida privada ocorridos durante o exercício dessas funções. (1905/1911) Deixando de parte os poemas de juventude, muitos dos quais permaneceram inéditos até 1905 - como o Infante, escrito aos 18 anos - vamos considerar este ano como o do arranque da sua carreira literária. Foi em Janeiro de 1905 que António Patrício publicou Oceano, o seu primeiro livro, com uma dedicatória “ao génio” de Fialho de Almeida e com poemas dedicados a António Carneiro, Manuel Laranjeira, Paulo Osório, Francisco Moreira, Júlio Abeilard e Mabel Silverton. Contudo, não era um desconhecido. O livro veio consagrar o prestígio de que

já gozava, particularmente nos meios intelectuais portuenses.
Patrício iniciava-se na escrita não sem receio da crítica. Os seus amigos dirigiram-lhe palavras de confiança e estímulo. Manuel Laranjeira escreveu-lhe uma carta de solidariedade, contra as críticas saídas no Porto, apesar de não serem desfavoráveis a Patrício: “Li duas apreciações sobre o teu livro (Diário da Tarde e Voz Pública) e por elas vejo que te têm afligido muito regularmente, meu pobre poeta. (...) Talvez as intenções dele fossem boas, como as de certos cães, que, quando nos fazem festas, nos sujam. Manda-os vadiar”. Efectivamente, as críticas, embora elogiosas para Oceano e para Patrício, não deixavam de fazer conjecturas de ordem estética e ideológica que o autor rejeitava. Foram os jornais republicanos os que mais se “esmeraram” no elogio consequência do prestígio de Patrício nesses meios - que inferiram abusivas “mensagens sociais” na sua obra: “O poeta canta, em algumas líricas adoráveis, os humildes, os vencidos, os fracos, os torturados, e em todo o caso o seu sentir é sempre dum requinte, duma aristocracia dominante”.
Fialho de Almeida dirige-lhe uma extensa carta do mesmo teor solidário da de Manuel Laranjeira, considerando que “Oceano é um livro de estreia muito belo” e procurando tranquilizar António Patrício. (...) Nesta fase, que antecede a carreira diplomática de António Patrício, foram publicados mais dois livros: a peça de teatro que o consagrou O Fim (1909) e o livro de contos Serão Inquieto (1910). Sobre estes dois livros, Manuel Teixeira Gomes opinaria, mês e meio antes da implantação da República: “Ambos os trabalhos ampliam o resplendor do seu belo nome, querido poeta, que eu muito simpáticamente admiro.”. Não deixa de ser curiosa a expressão “querido poeta”, visto tratar-se de uma peça de teatro e de um livro de contos. Mas, ao contrário do que hoje acontece - em que só se conhece o seu teatro - António PaContinua na PÁG. XI



clepsidra - 90 anos

hojemacau 9ºaniversário Carlos Morais José Comemora-se este ano o nonagésimo aniversário da publicação de “Clepsidra”, de Camilo Pessanha, poeta português que viveu e morreu em Macau, no ano de 1926. Sendo a sua obra incontornável na poesia de língua portuguesa – como destaca, por exemplo, Fernando Pessoa – ganha assim Macau um nome maior no contexto da literatura lusófona. A edição de “Clepsidra encontra-se, desde há algum tempo, envolto em polémica isto porque Camilo Pessanha teve muito pouco ou nenhum controlo sobre o volume editado em 1920, pelas mãos da sua amiga Ana Castro Osório e de seu filho João, em Lisboa. O poeta estava nessa altura em Macau, tendo deixado em Portugal alguns poemas, talvez desordenados. Paulo Franchetti, estudioso brasileiro da obra de Pessanha e reorganizador de “Clepsidra”, nos anos 90, afirma que “Não é mais possível dar crédito a todas as fábulas que se fizeram sobre a pouca preocupação de Pessanha com os seus poemas e com a publicação dos mesmos. Mas também não se pode ignorar que ele pouco se ocupou da publicação da Clepsydra, e que a sua responsabilidade nela é quase nula. Talvez não fosse preciso, mas lembremos ainda uma vez as condições em que o livro foi publicado: Pessanha deixou em Lisboa apenas uma pequena colecção de versos autógrafos reproduzidos «de memória» a que se juntaram textos outros de vária procedência para compor o volume, pois, segundo Castro Osório, o poeta nunca enviou os que teria prometido enviar. Tampouco se sabe que textos seriam esses que enviaria: se a versão definitiva dos que transcrevera ou se outros poemas, de que não se recordava por inteiro em 1916. Além disso, ao que tudo indica Camilo Pessanha nunca discutiu epistolarmente a edição e seguramente não viu provas — sendo-lhe

1920-2010 “Clepsidra” de Camilo Pessanha faz 90 anos

O livro que nunca existiu

Clepsydra é o nome de um livro que não existe. Paulo Franchetti enviados alguns exemplares do livro pronto (..). A edição de 1920, portanto, não tem exactamente o mesmo estatuto de um qualquer texto publicado em vida de um escritor, no sentido de ser a lição autorizada e a expressão da vontade de quem o escreveu. Pelo con-

trário, sabemos que, pelo menos quanto à ordenação de alguns poemas, a Clepsydra de 1920 não era fiel à vontade do poeta, expressa nas indicações de conjunto e sequência presentes nos autógrafos.” Se com alguma facilidade podemos pensar que

a vida de Camilo Pessanha se caracterizou pela estranheza — e para isso basta ter em consideração o seu progressivo distanciamento geográfico e quotidiano das suas raízes portuguesas — é o espanto que nos assalta quando temos em consideração o estabelecimento da sua obra poética. Raramente, na história da Literatura, sobretudo do século XX, deparamos com tamanha dificuldade em ter como assente e definitiva a versão final de uma obra literária. No caso do poeta da Clepsidra, são inúmeras as dúvidas, as versões, os poemas continuamente reescritos a cada autógrafo ou no momento seguinte à sua publicação. Quando, num determinado instante, se julga ter finalmente acesso em definitivo a um corpus poético, eis que do acaso ou do estudo, da investigação ou de um acontecimento singular, surgem novas dificuldades ou, simplesmente, outras descobertas, que tudo voltam a pôr em causa e fazem repensar, se não o conjunto da obra, pelo menos o estabelecimento definitivo de um texto que insiste em se querer em processo. Descortinar que versão de seus poemas o poeta abraçaria é percorrer um labirinto – de autógrafos, publicações em jornais e revistas, edições póstumas, rasuras, cartas, anotações cujo fio salvívico parece estar nas mãos de uma Ariadne amiga de folguedos cruéis. Um episódio é bem revelador deste imbróglio em que a obra de Pessanha se tornou. Trata-se do famoso Caderno Poético, onde o poeta colava poemas saídos na imprensa escrita, que de seguida transformava, introduzindo variantes formais e de conteúdo, ou no qual escrevia directamente versões novas de poemas. Este pequeno caderno de capa negra terá sido confiado pelo próprio, antes da sua morte, a Laura Castel Branco que, após o desaparecimento do poeta em 1926, compreenContinua na PÁG. viiI

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VIII -dendo o valor do que tinha em mãos, o entregou à guarda segura da Biblioteca de Macau. Em vão. Durante quatro décadas o precioso documento esteve desaparecido, ou por não haver ninguém que soubesse da sua existência ou por se ter perdido entre os volumes daquele depósito de livros. Foi preciso que, em 1967, durante a Revolução Cultural chinesa, cujos ardores também incendiaram as ruas de Macau, os Guardas Vermelhos invadissem a biblioteca dos “colonialistas” e atirassem uma série de móveis para a rua, pela janela de um primeiro andar. Uma secretária velha caíu com estrépito sobre o lajedo e logo se espatifou. De uma das gavetas rebentadas, saltou um caderno negro e oleoso que o director da Biblioteca, Luís Gonzaga Gomes, se apressou a recolher, ciente da importância daquele achado. Examinado o documento, logo se tornou patente que nele existiam novas versões de poemas que se julgavam definitivos, nas edições até então trazidas a lume da sua obra. No entanto, os compiladores preferiram, nalguns casos, ignorar esta descoberta e continuar a apresentar da obra do poeta versões que ele próprio desdenhara ou emendara. Aliás, muitas são as fantasias que se produziram em torno da própria produção da poesia em Camilo Pessanha. Uma das mais correntes – e mais falsas – indicia que o poeta não recorreria à escrita e que somente utilizaria a memória para compor e guardar os poemas. Sem pretender entrar aqui em polémica, basta ter consideração os inúmeros autógrafos e, principalmente, o cuidado quase fanático com que hoje constatamos que revia e tornava reescrever alguns dos poemas, para nos assegurarmos de que o seu método de trabalho era lento e exigente, o que implicou necessariamente o recurso ao papel. Ao lermos a crítica efectuada a um volume de versos de António Fogaça, publicada ainda nos seus tempos de estudante em Coimbra, verificamos que Pessanha salvaguarda ferozes critérios de exigência, certamente os mesmos que o levaram a reter a publicação dos seus versos em livro até uma idade tardia, talvez para não incorrer nos defeitos que ainda jovem apontava ao seu condiscípulo. Daí

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Duas páginas do Caderno Poético e uma página da Centauro, com emendas feitas pela mão do poeta

que sejamos levados a considerar que devemos tomar como versões definitivas as que mais tardias foram realizadas pelo poeta, frutos de um labor permanente sobre um texto que não cessava de se reconstruir e aperfeiçoar. Quando fizemos um levantamento dos livros existentes na Biblioteca Central de Macau, que tinham pertencido ao poeta, deparámos com um exemplar da revista Centauro, dirigida por Luís de Montalvor, o famoso número único da publicação, onde surgem, entre outros, poemas de Pessanha e de Fernando Pessoa. Este era o exemplar que lhe fora enviado de Lisboa e que deve ter chegado a Macau no próprio ano da sua publicação, ou seja, em 1916. Ao folhear as suas páginas, foi com emoção que demos com

as anotações e rasuras feitas nos poemas pela mão do poeta, modificações estas que são, afinal, as últimas versões conhecidas, feitas por ele próprio e sem intervenção de estranhos. Entendemos então divulgar essa descoberta em livro que foi editado em 2004 pelo Instituto Internacional de Macau. Atendendo ao intrincado deste processo e ao regular aparecimento de novos documentos, não acreditamos que se possa ainda hoje apresentar uma versão definitiva da poesia de Camilo Pessanha. E, tendo sido este o lugar por ele escolhido para viver e morrer, faria sentido que neste território, através de um estudo profundo e cuidado da sua obra, Macau prestasse uma verdadeira homenagem ao que foi, indubitavelmente, o seu maior poeta de língua portuguesa.


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hojemacau 9ºaniversário Camilo Pessanha Dos templos profanos portugueses dedicados ao culto da Pátria e ao culto do génio é sem dúvida um dos mais venerados o modesto jardim de Macau, chamado a Gruta de Camões. Nenhum português absolutamente, nenhum estrangeiro de mediana instrução, vem a Macau, mesmo de passagem, cujo primeiro cuidado não seja o de irem em romagem a esse recinto sobre cujo solo é tradição que pousaram os pés do poeta máximo de Portugal – um dos máximos poetas de todo o mundo e de todos os tempos –, enquanto o seu gênio elaborava algumas das estrofes de bronze de Os Lusíadas. E a nenhuma deixa de invadir, apenas transposto o vulgaríssimo portal de quintalejo suburbano, que dá acesso ao local, um sentimento dominador de religiosidade, a todos impondo silêncio, como se do lado de dentro das duas insignificantes umbreiras de granito estivesse aquela tela que existiu à entrada da cartuxa do Buçaco, onde a pintura de um frade fitava imperativa, com o seu olhar imóvel, os que se aproximavam, erguendo verticalmente diante da boca o indicador da mão direita. (...) Resta apenas ponderar se Macau, esta exígua península portuguesa do mar da China ligada ao distrito chinês de HeongShan, tem qualidades que a recomendem para assim andar associada à memória dessa epopéia e à biografia do poeta sublime que a cantou. Ora essas qualidades tem-nas Macau como nenhum outro ponto do globo. Macau é o mais remoto padrão da estupenda atividade portuguesa no Oriente nesses tempos gloriosos. Note-se que digo padrão, padrão vivo: não digo relíquia. Há, com efeito, padrões mortos. São essas inscrições obliteradas em pedra, delidas pelas intempéries e de há muito esquecidas ou soterradas,

Macau e a Gruta de Camões

que os arqueólogos vão pacientemente exumando e penivelmente decifrando, tão lamentavelmente melancólicas como as ressequidas múmias dos faraós. A fatalidade do determinismo histórico fez que a colonização portuguesa quase exclusivamente se desenvolvesse adentro dos trópicos, e, com exclusão de Macau, todas as colônias portuguesas, ou ex-portuguesas de clima relativamente temperado são situadas no hemisfério austral. Assim é Macau a única terra do ultramar português em que as estações são as mesmas da metrópole

e sincrônicas com estas. É a única em que a Missa do Galo é celebrada em uma noite frigida de Inverno; em que a exultação da aleluia nas almas religiosas coincide com o alvoroço da Primavera – Páscoa florida com a alegria das aves novas ensaiando os seus primeiros vôos; em que a comemoração dos mortos queridos tem lugar no Outono. Mais ainda: em Macau é fácil à imaginação exaltada pela nostalgia, em alguma nesga de pinhal menos freqüentada pela população chinesa, abstrair da visão dos prédios chineses, dos pagodes chineses,

das sepulturas chinesas, das misteriosas inscrições chinesas, destacando a cada canto em retângulos de papel vermelho, das águas amarelas do rio e da rada, onde deslizam as lentas embarcações chinesas de forma extravagante, com as suas velas de esteira fantasmáticas, e criar-se, em certas épocas do ano e a certas horas do dia, a ilusão de terra portuguesa. Quem estas linhas escreve teve, por várias vezes (há quantos anos isso vai!), deambulando pelo passeio da Solidão, a ilusão, bem vivida apesar de pouco mais duradoura que um relâmpago, de caminhar ao longo de uma certa colina da Beira Alta, muito familiar à sua adolescência. Ora a inspiração poética é emotividade, educada, desde a infância e com profundas raízes, no húmus do solo natal. É por isso que os grandes poetas são em todos os países os supremos interpretes do sentimento étnico. Toda a poesia é, em certo sentido, bucolismo; e bucolismo e regionalismo são tendências do espírito inseparáveis. Notáveis prosadores (basta lembrar, dentre os contemporâneos, Lafcádio Hearn, Wenceslau de Moraes e Pierre Loti) têm celebrado condignamente os encantos dos países exóticos. Poeta, nenhum. Os poucos que vagueiam e se definham por longínquas regiões, se acaso escrevem em verso, é sempre para cantar a pátria ausente, para se enternecerem (os portugueses) ante as ruínas da antiga grandeza da pátria e, sobretudo para dar desafogo à irremediável tristeza que os punge. E se na reduzida obra poética colonial desses escritores – Tomás Ribeiro, Alberto Osório de Castro, Fernando Leal (este último nascido na Índia, mas nem por isso menos exilado ali, português como era pelo sangue e pela educação) – se encontram dispersos alguns traços fulgurantes de exotismo, é só para tornar mais pungente pela evocação do meio hostil de inadequado pela sua estranheza à per-

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IX

feita floração das almas – a impressão geral de tristeza – da irremissível tristeza de todos os exílios. Veio toda esta divagação a propósito de dizer que ainda é Macau a única terra de todo o ultramar português em que se pode ter até certo ponto a ilusão de se estar em Portugal, essencial ao exercício por portugueses da sua especial actividade imaginativa... Para concluir, contra toda a tradição e contra toda a evidência histórica que tenha sido escrita ou concebida em Macau uma parte considerável da vastíssima obra poética de Camões? Seria verdadeira loucura. O génio de Camões, alimentado embora exclusivamente da seiva que trouxera da Pátria – da imagem viva da sua paisagem, da lembrança minuciosa e fiel dos seus costumes, da sua história, das suas lendas, das suas crenças, da sua cultura científica e literária –, teve pujança bastante para triunfar dos meios mais adversos, para resistir aos mais implacáveis fatores de perversão e de atrofia. As suas composições são datadas (indirectamente datadas) dos mais diversos pontos e dos mais inclementes climas – da África e da Ásia, por onde no século XVI se estendia o imenso império português e se despendia a exuberante energia da raça portuguesa. Muitas das obras-primas do seu lirismo, das mais tipicamente nacionais pelo acentuado tom elegíaco de que estão impregnadas, brotaram na Índia do seu coração saudoso: e uma delas, das mais comoventes e das mais conhecidas, nasceu entre essa penedia sinistra da costa do mar Vermelho, dessas nuas penedias incandescentes, que escaldam os pés de quem ali desembarca, e parecem, vistas a certa distância, formadas de escumalha de ferro. Mas a terrível acção depressiva do clima e do ambiente físico e social dos países tropicais, se não tiveram poder contra a assombrosa vitalidade

criadora do poeta máximo, têm-no todavia, não só para esterilizar em cada um de nós outros, os pigmeus que a quatro séculos de distância o contemplamos, o pouco de aptidão versificadora que algum tivesse, mas ainda para destruir, mesmo nos melhor dotados, a comezinha parcela de imaginação de que é indispensável dispor quem intente evocar a estatura do gigante, o seu esbelto perfil e a sua figura augusta. E, pois que Macau, não só pelas suas condições climáticas, mas também como mais remoto padrão da acção portuguesa na Ásia, é o palmo de terra mais próprio para essa evocação se fazer, natural é que, à semelhança do que sucedia com os mais célebres santuários pagãos, situado cada um deles em terra ilustrada por algum episódio da vida da divindade a que era dedicado, seja em Macau o santuário nacional – panlusitano – consagrado ao génio do poeta, e que a Macau a biografia deste particularmente se refira. É a Gruta de Camões, com o seu cenário irremediavelmente mesquinho – mas susceptível, apesar disso, de correcção em muitos dos seus defeitos –, esse lugar sobre todos prestigioso, dedicado ao culto de Camões, que é também o culto da Pátria. Culto e prestígio que não podem extinguir-se enquanto houver portugueses; e enquanto não se extinguem, há de ser verdade intuitiva, superior a todas as investigações históricas, que o maior génio da raça lusitana sofreu, amou, meditou, em Macau, aqui tendo composto, em grande parte, o seu poema imortal, e que o local predilecto aos devaneios do seu espírito solitário era essa colina, então erma, sobre o porto interior, junto das penhas com aparência de dólmen em cujo vão foi colocado há anos o seu busto, de proporções reduzidas, fundido em bronze. publicado no jornal “A Pátria”, Macau, 7 de Junho de 1924



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antónio patrício - 80 anos

Continuação da PÁG. V -trício era tratado por poeta.
A peça O Fim, editada entre o regicídio e a implantação da República, consubstancia a visão mística da queda apocalíptica da monarquia, de que fora arauto principal o poeta Guerra Junqueiro, Bardo oficial do republicanismo. Respirava-se já o fumo dos estampidos redentores. Esperava-se o fatal Dies Irae. A queda da monarquia previa-se próxima. Era uma questão de tempo e António Patrício - na esteia de Junqueiro - fez-lhe um funeral digno do temível dia do ajuste de contas. (...) Quanto a Serão Inquieto, António Patrício tem algumas passagens tão interessantes como desconhecidas. Num dos seus contos, intitulado “Diálogo com uma águia”, o autor tem um excerto absolutamente original. Patrício narra aqui o “segredo” das últimas palavras de Cristo na cruz, de que uma velha águia dizia ter sido testemunha e que consistia no facto de Ele ter morrido virgem, circunstância que teria originado grandes prejuízos ao mundo: “Disse o remorso de não ter vivido, a tristeza infinita, o desespero e o mal sem remédio de ser virgem, de morrer no corpo morto de uma árvore, único corpo que sentiu, o de um cadáver... (...) Queria largar a cruz p’ra poder dar-se, à terra desse cerro, a alguma forma, a um corpo de mulher, a alguém, a alguém...”. Mais adiante, neste Serão Inquieto, há uma compilação de aforismos, intitulada “Words...”, atribuídas a um tal “C.F.”, que Patrício apresenta do seguinte modo: “C.F., meu ex-condiscípulo, despediu-se de mim para casar, como outros se despedem para morrer. Casou depois de ter vivido intensamente, -- como outros se fazem morfinomanos ou alcoólicos: p’ra anular a sua inquietação, a sua febre, na sedativa estupidez da vida séria. Sentia-se sem saúde e sem coragem, quer p’ra viver a vida com nobreza, quer p’ra ir ao encontro do seu outono, morrendo a tempo -- como manda o meu filósofo. Foi há três anos. Nunca mais nos vimos. Soube depois, pelos jornais, que é deputado e, o que é melhor... ou pior, que vai ser par”. Este “C.F.” levou David Mourão-Ferreira a atribuir pioneirismo a António Patrício na criação de heterónimos, ainda antes daqueles que celebrizariam Fernando Pessoa: Menos que de

uma personagem, mais do que um pseudónimo, tais aforismos e anotações enquadram-se, afinal, num pré-pessoano esquema de heteronimia.”. Eis um desses curiosos aforismos de Patrício: “Os programas de governo estão para a política, como os dogmas para as religiões. Nem os primeiros interessam os partidários, nem os segundos os crentes.” .
Em 1911, António Patrício publicou o poema Estátua de Proa, que escrevera no ano anterior, exactamente um mês após o 5 de Outubro. Com o advento da República, Patrício ingressou na carreira diplomática alguns meses depois e interrompeu a sua actividade criativa, visto terem-lhe sido atribuídas missões na Corunha e a primeira colocação oficial em Cantão, onde se viu confrontado com cenários de guerra. (1912/1919) Em pleno exercício do seu cargo de cônsul de 2ª classe em Cantão, Patrício dá-nos conta da sua actividade literária. Escreve uma carta ao seu amigo Ramiro Mourão, onde refere que está a trabalhar numa peça de teatro, que viria a ser publicada em livro com o título Pedro o Cru. Nessa carta, tece considerações aos críticos literários da época, que só recordariam António Ferreira e a sua Castro, quando ele

publicasse o seu livro: “E tudo isto, menino, para que o A... (de F..., de F..., de F...!) seja glorificado, e eu ai! de mim! achado um imbecil pelas comissões paroquiais da literatura nacional!” . Em Setembro do ano seguinte acabaria de escrever a peça, enquanto decorria o inquérito a que foi sujeito em Cantão (entre Junho e Outubro desse ano), pelo seu envolvimento com uma jovem de 18 anos. Por esta altura, escreve uma carta a António Cândido, onde espelha o que lhe vai na alma: “O mundo está cheio de palavras.”. Logo no início da sua missão em Bremen, em Agosto de 1914, deixaria inacabado o Rei de Sempre - Tragédia Nossa, uma peça de teatro de que seria publicada póstumamente (37 anos depois!) um extracto, onde se descobre uma faceta desconhecida do autor, embora existente nas entrelinhas da sua poesia: o sebastianismo. Na Alemanha, em plena Guerra Mundial, escreveu, datado de Bremen, 14 de Dezembro de 1915, o poema Brancura, que viria a ser publicado na revista Atlântida e que nos dá uma ideia do estado de espírito de quem está por dentro de um conflito mundial: “A Morte pode vir. A terra é pura. / A neve já não baila pelo ar. / Lá abrem nesta mística brancura / as silenciosas fontes do luar...” .
 Em Abril de 1917 publicou mais

poemas na Atlântida. Começou a escrever Dinis e Isabel, que seria publicado em livro em 1919. O mais sintomático da sua propensão para a criatividade em tempos difíceis, é o facto de António Patrício ter adquirido um caderno de apontamentos, onde esboçou trabalhos literários a fazer, mal a Alemanha declarou guerra a Portugal. Nesse caderno registaria no dia 23 de Abril de 1916 a seguinte frase: “Shakespeare morreu a 23 de Abril há 300 anos”. Shakespeare foi uma das suas referências literárias de sempre. Ainda em 1917, regressado da Alemanha, publicou alguns poemas nos números de Abril, Julho e Dezembro da Atlântida, onde vê com pessimismo o destino português. Na primavera de 1918, já na situação de licença sem vencimento, imposta por Sidónio Pais, editou a peça Pedro o Cru e escreveu Judas. Ainda de licença, acabou de escrever Dinis e Isabel, que seria editado no final desse ano. Entretanto, em 1919, foi nomeado para o consulado de Constantinopla em Julho e promovido a Cônsul de 1ª Classe em Dezembro e, no ano seguinte, confiaram-lhe uma missão em Atenas, enquanto não era possível assumir a gestão do consulado turco. (1920/1928) Este longo interregno de 9 anos ficou irremediavelmente marcado pela morte do filho, ocorrida no final do ano de 1920, exactamente no dia seguinte ao da tomada de posse do cargo diplomático em Atenas. Desta terrível fase, do ponto de vista criativo, apenas se pode citar o seu último livro publicado em vida - D. João e a Máscara, que incluía Judas - editado no verão de 1924, intercalado entre o exercício da actividade diplomática em dois consulados, na Grécia e na Turquia. O interessante prefácio, que Patrício escreveu em Sintra no mês de Abril do ano da publicação do citado livro, é de puro pessimismo em torno da ideia de morte: “Só se vive na consciência, e a consciência só apreende morte.”. Este facto reflecte ainda o abalo provocado pelo falecimento do filho, António Patrício Júnior - a quem ele tratava carinhosamente por Tótóji - e a angústia que o acompanhou durante longos anos, muito provavelmente até ao fim da sua vida. O último livro de Patrício representou a excepção à quase inexistência de produção literária que se verificou desde 1920 até à data do seu falecimento. No ano da publicação de D. João e a Máscara,

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XI o autor escreve do seu posto na Turquia, uma desalentada carta a João de Barros, lamentando a sua incapacidade para escrever: “Tens escrito? Eu por mim, nem uma linha. Tenho uma obsessão única: partir, partir, partir. Queimei o que tinha de queimar: não posso mais: a minha solidão moral é absoluta.” .
Em 1927, depois de ter exercido funções nos postos diplomáticos do Pireu e de Constantinopla, preparou-se para partir para o seu novo posto na Venezuela, não sem uma breve espera por motivos de saúde. Demonstrando jà outro espírito, Patrício manda dizer de Caracas para o Ministro dos Negócios Estrangeiros que fora muito bem recebido na capital venezuelana, onde Eça de Queirós deixara o seu nome em alta consideração: “É ele, plenipotenciário póstumo, supremo.”. O posto de Caracas levantou-lhe a moral e abriu-lhe perspectivas para um novo fôlego literário. (1929/1930) O ano de 1929 marcou o seu regresso à actividade literária, sendo de referir, pelo seu inegável interesse, a resposta de Patrício ao inquérito literário de João Ameal no Diário de Notícias, em 11 de Abril desse ano. António Patrício, então em funções na Secretaria de Estado do Ministério dos Negócios Estrangeiros, deixou inacabadas, em Setembro desse ano, as peças O Auto dos Reis ou da Estrela, de cariz religioso, e A Paixão de Mestre Afonso Domingues, tendo por cenário o Mosteiro da Batalha. Para além daquelas obras, estava a trabalhar num romance - Teodora, Imperatriz de Bizâncio - a propósito do qual Teixeira Gomes lhe endereçou uma carta em que o felicitava pela tranquilidade finalmente encontrada, mas onde também profetizava a não conclusão do projecto, como infelizmente veio a acontecer, devido à sua morte prematura. A nomeação para novo posto diplomático, em Pequim, interrompeu a actividade literária do diplomata, que viajou para a China e acabou por falecer em Macau, sem ter tomado posse do seu cargo, nem concluído as obras que estava a escrever. (...) Este texto é um pequeno extracto - sem notas complementares - da obra António Patrício: Um Diplomata Republicano Liberal, Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 2000.



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