h - Suplemento do Hoje Macau #13

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h ARTES, LETRAS E IDEIAS

PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nツコ 2386. Nテグ PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

DELEUZE/DERRIDA

A PROXIMIDADE DA MORTE


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DERRIDA E O GALO DE BARCELOS

o mundo do sujeito e do objecto. Há algo de selvagem e poderoso num tal empirismo transcendental. Não será, decerto, o elemento da sensação (empirismo simples), uma vez que a sensação não é mais que um corte na corrente de consciência absoluta. Trata-se, antes, por muito próximas que sejam duas sensações, da passagem de uma à outra como devir, como aumento ou diminuição de potência (quantidade virtual). Será porventura necessário, desde logo, definir o campo transcendental através da pura consciência imediata sem objecto nem eu, enquanto movimento que não começa nem acaba? (mesmo a consciência espinozista da passagem ou da quantidade de potência faz apelo à consciência).

Carlos Morais José

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uem olhar com a atenção para a fotografia que compõe a capa deste “h”, verificará que no canto inferior direito se encontra, sobre uma mesa, um Galo de Barcelos. Que significa este facto? Que o filósofo francês se encontrava em Portugal? Que lá estivera e trouxera um souvenir? Que um amigo o importunara oferencendo-lhe o galináceo? E depois uma outra ordem de interrogações: Conhecia Derrida a lenda justiceira do bicho? Tê-la-á analisado, quiçá desconstruído? O que poderá representar a historieta, à luz de uma reflexão semiológica a estranha historieta? Ou ainda outra: Teria Derrida uma simpatia por Portugal, pela afabilidade das gentes e a tranquilidade dos mores? Poderá o filófoso ter tido um amor português, uma amante morena, vestida de negro, como a Catarina de Dominique Le Roux, encontrada ao crepúsculo à beira de uma falésia, afinal símbolo das artes, das magia e o desespero de um povo escolhido e perdido? Terá visitado Belmonte? Perante um facto inusitado, dezenas de questões emergem, em profundidade ou inscrevendo-se em filigrana, sobre a sua razão de ser, os motivos que provocaram este quase abstruso fenómeno. É só um Galo de Barcelos... E a morte? Como falar do inintelígivel, do inefável, do absurdo de conhecer o infinito e limitado se crer? Como abordar a questão que, a um tempo, nos determina a humanidade e condena à errância? No texto deleuziano, na sua densidade formal, coloca-se oportunamente a questão da Vida, pois nunca esta é tão intensamente sentida, dizem, como quando o sujeito a sente periclitante e fugaz. Uma vida que, em sentido espinosista, supera os limites do indivíduo, na medida em que ela lhe revela o seu ser ficcional e a sua verdadeira dimensão, em rede, com essa Natureza a que chama Deus. Depois existe aquele resto, aquela intimidade de um sujeito burilado pela civilização e pela cultura, sob as quais permanece e arde, num silêncio demoníaco e privado. Já Derrida, em formato de entrevista, fala do terror de qualquer filósofo: não cumprir o que toda a filosofia, desde Sócrates promete, a saber, uma boa morte. Pois para que serve o pensamento se não para “aprender a morrer”? E confessa, talvez exausto, não estar verdadeiramente preparado para enfrentar o fim, como se dissesse a si próprio que haveria sempre mais para saber e aprender, o caminho interminável que levou Fausto a vender a alma. Qual de nós está realmente preparado para aceitar com tranquilidade o seu próprio desaparecimento? Parece que a Vida, finalmente o grande mistério, na sua positividade, teima em lutar cegamente por si mesma, quase nos dando o garante, na sua cegueira por vezes absurda, de que partimos para um lugar que não há.

GILLES DELEUZE

A imanência, uma vida…

Este é o último texto do filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995). Foi publicado na revista Philosophie, meses antes do seu suicídio. Aqui, pela primeira vez, traduzido em Português.

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que é um campo transcendental? Distingue-se da experiência na medida em que não reenvia a um objecto nem pertence a um sujeito (representação empírica). Deste modo, apresenta-se como pura corrente de consciência a-subjectiva,

consciência pré-reflexiva impessoal, duração qualitativa da consciência sem eu. Pode parecer curioso que o transcendental se defina através de tais dados imediatos: poderíamos falar de empirismo transcendental, por oposição a tudo o que constitui

Mas a relação do campo transcendental com a consciência é apenas de direito. A consciência não se torna um facto sem que um sujeito seja produzido ao mesmo tempo que o seu objecto, fora de campo e surgindo como “transcendentes”. Ao contrário, na medida em que a consciência atravessa o campo transcendental a uma velocidade infinita por toda a parte difusa, nada há que a possa revelar1. De facto, ela só se exprime enquanto se reflecte num sujeito que a reenvia a objectos. É por isso que o campo transcendental não se pode definir pela sua consciência coextensiva, mas subjaz a toda a revelação. O transcendente não é o transcendental. À falta de consciência, o campo transcendental definir-se-ia como um puro plano de imanência uma vez que escapa a toda a transcendência do sujeito como do objecto2. A imanência absoluta está nela mesma: não está numa coisa qualquer, localizada numa coisa qualquer, não depende de um objecto nem pertence a um sujeito. Em Spinoza a imanência não está na substância, mas a substância e os modos estão na imanência. Quando o sujeito e o objecto, que caem fora do plano de imanência, são tomados como sujeito universal ou objecto quaisquer aos quais a imanência é ela própria atribuída, verifica-se toda uma desnaturação do transcendental que não faz mais que redobrar o empírico (assim em Kant), e uma deformação da imanência que se encontra então contida no transcendente. A imanência não está ligada a uma Qualquer coisa como unidade superior a todas as coisas, nem a um Sujeito como acto que opera a síntese das coisas: é quando a imanência não é mais imanência a outro que não ela própria que podemos falar de um plano de imanência. Tal como o plano trancendental não se define pela consciência, o plano de imanência não se define por um Sujeito ou um Objecto capazes de o conter. Diríamos da pura imanência que ela é UMA VIDA, e não outra coisa. Ela não é imanência à vida, mas a imanência que não está em nada é ela própria uma vida. Uma vida é imanência da imanência, a imanência absoluta: ela é potência e beatitude completas. É na medida em que ultrapassa as aporias do sujeito


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e do objecto que Ficthe, na sua última filosofia, apresenta o campo transcendental como uma vida, que não depende de um Ser e não está sujeita a um Acto: consciência imediata absoluta cuja própria actividade na reenvia mais a um ser mas não cessa de se colocar numa vida3. O campo transcendental torna-se então um verdadeiro plano de imanência que reintroduz o espinosismo no mais profundo da operação filosófica. Não foi uma aventura semelhante a que sucedeu a Maine de Biran, na sua “última filosofia” (aquela que estava demasiado fatigado para levar a cabo), quando descobriu sob a transcendência do esforço uma vida de imanência absoluta? O campo transcendental define-se por um plano de imanência e o plano de imanência por uma vida. O que é a imanência? uma vida… Ninguém melhor do que Dickens narrou o que é uma vida, considerando o artigo indefinido como índice do transcendental. Um canalha, um mau carácter desprezado por todos encontra-se às portas da morte e eis que aqueles que o tratam manifestam uma espécie de dever, de respeito, de amor pelo mínimo sinal de vida do moribundo. Todos se ocupam com salvá-lo, até ao ponto que no mais profundo do seu coma o vilão sente algo de doce penetrá-lo. Mas, à medida que regressa à vida, os seus salvadores tornam-se mais frios e ele redescobre toda a sua brutalidade, a sua malvadez. Entre a sua vida e a sua morte, há um momento que não é mais do que aquele de uma vida brincando com a morte4. A vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal, e contudo singular, que lança um puro evento liberto dos acidentes da vida interior e exterior, ou seja, da subjectividade e da objectividade do que acontece. “Homo tantum” de quem todos se comiseram e que atinge uma espécie de beatitude. Trata-se de uma ecceidade, que não é mais individuação mas singularização: vida de pura imanência, neutra, para lá do bem e do mal, pois apenas o sujeito que a encarnava no meio das coisas a tornava boa ou má. A vida de tal individualidade apaga-se em favor da vida singular imanente ao homem que já não tem nome, apesar de não se confundir com qualquer outro. Essência singular, uma vida… Não seria necessário conter uma vida no simples momento em que a vida individual enfrenta a universal morte. Uma vida está em toda a parte, em todos os momentos que atravessa este ou aquele sujeito vivo e que medem os objectos vividos: vida imanente levando os acontecimentos ou singularidades que nada mais fazem que actualizar-se nos sujeitos e nos objectos. Esta vida indefinida não tem ela própria momentos, por próximos que sejam uns dos outros, mas apenas entre-tempos, entre-momentos. Ela não regressa nem se sucede, mas apresenta a imensidade do tempo vazio onde vemos o evento ainda por vir e já chegado, no absoluto

Esta vida indefinida não tem ela própria momentos, por próximos que sejam uns dos outros, mas apenas entre-tempos, entre-momentos. Ela não regressa nem se sucede, mas apresenta a imensidade do tempo vazio onde vemos o evento ainda por vir e já chegado, no absoluto de uma consciência imediata.

de uma consciência imediata. A obra romanesca de Lernet Holenia coloca o acontecimento num entre-tempo que pode engolir regimentos inteiros. As singularidades ou os eventos constitutivos de uma vida coexistem com os acidentes da vida correspondente, embora não se agrupem ou se dividam da mesma forma. Comunicam entre si de uma forma totalmente diferente dos indivíduos. Parece mesmo que uma vida singular pode passar ao lado de toda a individualidade, ou de qualquer concomitante que a individualize. Por exemplo, as crianças muito pequenas são todas parecidas e são desprovidas de individualidade: mas apresentam singularidades, um sorriso, um gesto, uma careta, eventos que não são caracteres subjectivos. As crianças muito pequenas são atravessadas por uma vida

imanente que é pura potência, e mesmo beatitude, através dos sofrimentos e das fraquezas. As indefinições de uma vida perdem toda a indeterminação na medida em que preenchem um plano de imanência ou, o que resulta exactamente no mesmo, constituem elementos de um campo transcendental (ao contrário, a vida individual permanece inseparável das determinações empíricas). O indefinido enquanto tal não marca uma indeterminação empírica, mas uma determinação de imanência ou uma determinabilidade transcendental. O artigo indefinido não é a indeterminação da pessoa sem ser a determinação do singular. O Uno não é o transcendente que pode conter a própria imanência, mas o imanente contido num campo transcendental. O Uno é sempre o índice de uma multiplicidade: um acontecimento, uma singularidade, uma vida… Podemos sempre evocar um transcendente que caia fora do plano de imanência própria desse plano5. A transcêndencia é sempre um produto de imanência. Uma vida só contém virtuais. É feita de

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virtualidades, eventos, singularidades. Aquilo a que chamamos virtual não é algo falho de realidade mas algo que se empenha num processo de actualização seguindo o plano que lhe dá a sua realidade própria. O evento imanente actualiza-se num estado de coisas e num estado vivido que fazem com que se dê. O próprio plano de imanência actualiza-se num Objecto e num Sujeito aos quais se atribui. Mas, por pouco separáveis que sejam da sua actualização, o plano de imanência é ele próprio virtual, enquanto que os eventos que o povoam são virtualidades. Os eventos ou singularidades dão ao plano toda a sua vitalidade, tal como o plano de imanência dá aos eventos virtuais uma plena realidade. O evento considerado como não actualizado (indefinido) não é falho de nada. É suficiente colocá-lo em relação com os seus concomitantes: um campo transcendental, uma plano de imanência, uma vida, singularidades. Uma ferida incarna-se ou actualiza-se num estado de coisas e num vivido; mas ela é em si própria um puro virtual no plano de imanência que nos envolve numa vida. A minha ferida existia antes de mim…6. Não uma transcêndencia da ferida como actualidade superior mas a sua imanência como virtualidade sempre no cerne de um meio (campo ou plano). Há uma grande diferença entre os virtuais que definem a imanência do campo transcendental e as formas possíveis que as actualizam e a transformam em qualquer coisa de transcendente. NOTAS 1. Bergson, Matiére et Mémoire: “como se reflectissemos sobre as superfícies a luz que delas emana, uma luz que, propagando-se sempre jamais tivesse sido revelada”, Oeuvres, PUF, p.186 2. Cf. Sartre, La Transcendance de L’Ego, Vrin: Sartre propôe um campo transcendental sem sujeito, que reenvia a uma consciência impessoal, absoluta, imanente, em relação à qual o sujeito e o objecto são “transcendente” (p. 7487) – Sobre James, cf. a análise de David Lapoujade, “Le flux intensif de la conscience chez William James”, Philosophie, nr.46, Junho de 1995. 3. Já na Segunda introduçào à Doctrine de la science: “a intuição da actividade pura que não é nada de fixo, mas progresso, não um ser, mas uma vida” 9 p.274, Oeuvres choisies de la philosophie première, Vrin). Sobre a vida segundo Fichte, cf. Initiation à la vie bienheureuse, Aubier (e o comentário de Gueroult, p.9) 4. Dickens, L’ami commun, III, ch. 3, Pléiade 5. Mesmo Husserl o reconhecia: “O ser do mundo é necessariamente transcendente à consciência, mesmo na evidência originária, e aí permanece necessariamente transcendente. Mas isto nada altera ao facto de que toda a transcêndencia se constitui unicamente na vida da consciência, como inseparavelm ente ligada a essa vida…” (Méditations cartésiennes, Ed. Vrin, p.52). Este será o ponto de partida do texto de Sartre. 6. Cf. Joe Bousquet, Les Capitales, Le Cercle du livre.


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A ÚLTIMA ENTREVISTA DE JACQUES DERRIDA

“Não aprendi a aceitar a morte”

Jean Birnbaum In Le Monde A partir do Verão de 2003, a sua presença passou a manifestar-se como nunca. Não só assinou várias obras novas, como correu mundo para participar nos numerosos colóquios internacionais organizados em torno do seu trabalho – de Londres a Coimbra passando por Paris e, ultimamente, pelo Rio de Janeiro. Foi-lhe também consagrado um segundo filme (Derrida, por Amy Kofman e Kirby Dick, depois do belíssimo D’ailleurs Derrida, de Safaa Fathy em 2000) e ainda diversos números especiais, nomeadamente do Magazine littéraire e da revista Europe, para além de um volume dos Cahiers de l’Herne particularmente rico em inéditos, cujo lançamento se espera no próximo Outono. Tudo isto é imenso, num só ano e, apesar disso, você não se esconde, você está… ... Diga-o, estou muito perigosamente doente, é certo, e a passar por um tratamento terrível. Mas deixemos isso, se o quiser, não estamos aqui para um relatório de saúde – público ou secreto… Seja. No seio deste encontro, façamos um regresso a Spectres de Marx (Galilée, 1993). Obra crucial, livro-etapa, todo ele consagrado à questão de uma justiça por vir, e que se abre com o enigmático exórdio: “Alguém, eu ou você, avança e diz: gostaria, por fim, de aprender a viver.” Mais de dez anos depois, onde se situa hoje, relativamente a esse desejo de “saber viver”? Aí, trata-se sobretudo de «uma nova internacional», subtítulo e motivo central do livro. Para além do “cosmopolitismo”, para lá do “cidadão do mundo” assim como do novo Estado-nação mundial, esse livro antecipa todas as urgências “altermundialistas”. Nas quais acredito e que surgem mais claramente neste momento. Aquilo a que chamava uma “nova internacional” imporia, afirmava eu em 1993, um grande número de mutações no direito internacional e nas organizações que regulam a ordem do mundo (FMI, OMC, G8, etc., e sobretudo a ONU, à qual seria pelo menos necessário mudar a Carta, a composição e o lugar de residência – o mais longe possível de Nova Iorque…) Quanto à fórmula que você cita (“aprender, por fim, a viver”), ela surgiu-me depois de terminado o livro. De facto, ela joga, mas seriamente, com o seu senso comum. Aprender a viver, é amadurecer, e também educar. Apostrofar alguém para lhe dizer “vou ensinar-te a viver”1, o que significa, por vezes sob um tom de ameaça, vou formar-te, ou seja endireitar-te. Por outro lado, e o equívoco desse 1NT- Questão, aqui, de o leitor manter presente que, na língua francesa, o verbo ‘apprendre’ tem a duplicidade de sentidos ‘aprender’ e ‘ensinar’.

jogo interessa-me sobremaneira, esse suspiro abre-se a uma interrogação mais difícil: viver, será que isso se aprende? Se ensina? Poderemos aprender, por disciplina ou por aprendizagem, por experiência ou por experimentação, a aceitar, ou melhor, a afirmar a vida? Através de todo o livro ressoa essa inquietude da herança e da morte. Ela atormenta também os progenitores e os seus filhos: quando te tornarás tu responsável? Como responderás tu, por fim, pela tua vida e pelo teu nome? Então, bom, para responder, eu, sem mais desvios à sua pergunta, não, nunca aprendi a viver. Nem por sombras! Aprender a viver, isso deveria significar aprender a morrer, a tomar em conta, para a aceitar, a mortalidade absoluta (sem salvação, nem ressurreição, nem redenção) – nem para si nem para o outro. Desde Platão, trata-se da velha injunção filosófica: filosofar é aprender a morrer. Eu acredito nessa verdade sem nela me fixar. Cada vez menos. Não aprendi a aceitar a morte. Somos todos sobreviventes em prorrogação (e do ponto de vista geopolítico de Spectres de Marx, a insistência estende-se sobretudo a um mundo mais desigual que nunca, aos milhões de vivos – humanos ou não- a quem são recusados os elementares “direitos do homem”, que datam de dois séculos atrás e que se enriquecem sem cessar, e deveras o direito tem uma vida digna de ser vivida). Mas eu continuo ineducável quanto à sabedoria do saber morrer. Ainda não aprendi ou adquiri nada a esse respeito. O tempo da prorrogação retrai-se de forma acelerada. Não apenas porque sou, com os outros, herdeiro de tantas coisas, boas ou terríveis: com cada vez maior frequência, os pensadores a que me encontrava associado morrem. Tratam-me como sobrevivente: o último representante de uma “geração”, grosso modo, a dos anos 1960; o que, sem ser rigorosamente verdadeiro, não só me inspira objecções mas sentimentos de revolta um pouco melancólicos. Como, por

acréscimo, certos problemas de saúde se tornam prementes, a questão da sobrevivência2 ou da prorrogação, que sempre me assombrou, literalmente, a cada instante da minha vida de forma concreta e incansável, assume outro tom neste momento. Sempre me interessei por essa temática da sobrevivência, cujo sentido não se acrescenta ao viver e ao morrer. Ela é originária : a vida é sobrevivência. No sentido comum, sobreviver significa continuar a viver, mas também viver depois da morte. A propósito da tradução, Walter Benjamin sublinha a distinção entre “überleben”, por um lado, sobreviver à morte, como um livro pode sobreviver à morte do autor, ou uma criança à morte dos progenitores, e, por outro lado, “fortleben”, “living on”, continuar a viver. Todos os conceitos que me ajudaram a trabalhar, em especial o de traço3 ou o do espectral, estavam ligados ao “sobreviver” como dimensão estrutural. Ela não deriva nem do viver nem do morrer. Não mais do que aquilo a que chamo “luto originário”, que não espera a morte dita “efectiva”. Você utilizou a palavra “geração”. Noção de uso delicado, que inúmeras vezes lhe surge sob a pena: como designar aquilo que, em seu nome, se transmite de uma geração? Essa palavra, utilizei-a aqui de forma um pouco cobarde. Pode ser-se o contemporâneo “anacrónico” passada ou por vir. Ser fiel 2 NT- Literalmente, e talvez com maior precisão, poderia traduzir-se o substantivo ‘survie’ por ‘sobrevida’. 3 NT- Recordar que em Derrida, ‘traço’ (trace) deve ler-se como ‘ inscrição’, ‘marca’, ‘rasto’, ‘pegada’. Prefere-se a tradução ‘ traço’ pelo simples facto de ser este vocábulo e conceito mais originário e inclusivo, ou seja, é o traço que faz a marca, a inscrição, não vice-versa.

àqueles que são associados à minha “geração”, fazer-se guardião de uma herança diferenciada mas comum, isso significa duas coisas: antes de tudo, ater-se, eventualmente contra tudo e contra todos, às exigências partilhadas, de Lacan a Althusser, passando por Levinas, Foucault, Barthes, Deleuze, Blanchot, Lyotard, Sarah Kofman, etc. ; sem mencionar tantos pensadores, escritores, poetas, filósofos, psicanalistas, felizmente vivos, dos quais herdo também, assim como outros sem dúvida no estrangeiro, mais numerosos e por vezes mais próximos ainda. Designo assim, por metonímia, um ethos de escrita e de pensamento intransigente, ou se se quiser, (Hélène Cixous alcunha-nos de “incorruptíveis”), sem concessões mesmo em relação à filosofia, e quem não se deixa assustar pelo que a opinião pública, os média, ou o fantasma de um leitorado intimidante, nos poderia obrigar a simplificar ou a recalcar. Donde o gosto severo pelo refinamento, pelo paradoxo, pela aporia. Esta predilecção é também uma exigência. Ela alia não somente aqueles e aquelas que evoquei de forma um pouco arbitrária, quer dizer, injustamente, mas todo o meio que os sustentava. Tratava-se de uma espécie de época provisoriamente encerrada, e não simplesmente desta ou daquela pessoa. Portanto, é necessário salvar ou fazer renascer isso a todo o custo. E hoje em dia a responsabilidade é urgente: ela clama por uma guerra inflexível à doxa, àqueles a quem se chama de “intelectuais mediáticos”, a esse discurso geral formatado pelos poderes mediáticos, eles próprios nas mãos dos lobbies politico-económicos, e, frequentemente, também editoriais e académicos. Sempre europeus e mundiais, claro. Resistir não significa que se deva evitar os média. É necessário, quando possível, desenvolvê-los, ajudá-los a se diversificarem, chamá-los a essa mesma responsabilidade. Ao mesmo tempo, não se deve esquecer que, nesta época “feliz” de outrora, nada era, por certo, irónico. As diferenças e os diferendos faziam furor nesse meio que era tudo menos homogéneo como aquilo que se poderia agrupar, por exemplo, numa designação débil do género “pensamento 68” cuja palavra de ordem domina frequentemente, hoje em dia, a imprensa e a universidade. Ora, mesmo se essa fidelidade assume por vezes a forma da infidelidade ou do desvio, é necessário ser-se fiel a essas diferenças, quer dizer, continuar a discussão. Eu próprio continuo a discutir – Bourdieu, Lacan, Deleuze, Foucault, por exemplo, que continuam a interessar-me muito mais que aqueles em torno dos quais a imprensa se reune hoje em dia (salvo excepções, como é óbvio). Mantenho vivo esse debate, para que jamais se aplane, nem se degrade em denegrimentos. Aquilo que disse da minha geração vale claramente para o passado, da Bíblia a Platão, Kant, Marx, Freud, Heidegger, etc. Não desejo renunciar ao que quer que seja, não o posso fazer. Sabe, aprender a viver é sempre narcísico: desejamos viver tanto quanto pos-


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sível, salvarmo-nos, perseverar, e cultivar todas as coisas que, por infinitamente maiores e poderosas que sejam, fazem, ainda assim, parte deste pequeno “eu” que devassam de todos os lados. Pedirem-me que renuncie ao que me formou, ao que tanto amei, é pedirem-me que morra. Nessa fidelidade, há uma espécie de instinto de conservação. Renunciar, por exemplo, a uma dificuldade de formulação, a uma dobra, a um paradoxo, a uma contradição suplementar, poque isso não vai ser compreendido, ou melhor porque tal jornalista que não sabe ler, nem mesmo ler o título de um livro, crê compreender que o leitor ou o auditor não compreenderá e que o Audimat ou o seu ganha-pão sofrerão por isso, é para mim uma obscenidade inaceitável. É como se me pedissem que me vergasse, que me sujeitasse – ou que morresse de estupidez. Você inventou uma fórmula, uma escrita da sobrevivência, que convém a essa impaciência da fidelidade. Escrita da promessa herdada, do traço salvaguardado e da responsabilidade confiada. Se eu tivesse inventado a minha escrita, tê-lo-ia feito como uma revolução interminável. Em cada situação, é necessário criar um modo de exposição adequado, inventar a lei do evento singular, ter em conta o destinatário suposto ou desejado; e ao mesmo tempo ambicionar que essa escrita determine o leitor, o qual aprenderá a ler (a “viver”) isso, que não estava habituado a receber. Esperamos que renasça, determinado de outro modo: por exemplo, esses enxertos sem confusão do poético no filosófico, ou certas formas de usar as homonímias, o indecidível, astúcias da língua, que muitos lêem confusamente ignorando a sua necessidade propriamente lógica. Cada livro é uma pedagogia destinada a formar o seu leitor. As produções de massas que inundam a imprensa e a edição não formam os leitores porque supõem, de forma fastasmática, um leitor já programado. Mesmo que acabem por formatar esse destinatário medíocre que postularam em avanço. Ora, por questão de fidelidade, como você disse, no momento de deixar um traço, posso apenas deixá-lo disponível para seja quem for: não o posso endereçar singularmente a ninguém. De cada vez, por muito fiel que se queira ser, estamos a caminho de trair a singularidade do outro a quem o endereçamos. A fortiori, quando escrevemos livros de uma grande generalidade: já não sabemos com quem falamos, inventamos e criamos silhuetas, mas no fundo isso já não nos pertence. Orais ou escritos, todos esses gestos nos deixam, põem-se a agir independentemente de nós. Como máquinas, ou melhor, como marionetas – explico-me melhor em Papier Machine (Galilée, 2001). No momento em que deixo (publicar) o “meu” livro (algo a que ninguém me obriga), torno-me, aparecente-desaparecente, como esse espectro ineducável que nunca aprendeu a viver. O traço que eu deixo

Eu continuo ineducável quanto à sabedoria do saber morrer. Ainda não aprendi ou adquiri nada a esse respeito. O tempo da prorrogação retrai-se de forma acelerada. significa-me ao mesmo tempo a minha morte, por vir ou já chegada, e a esperança que ele me sobreviva. Isto não é uma ambição de imortalidade, é estrutural. Deixo um pedaço de papel, parto, morro: impossível sair desta estrutura, ela é a forma constante da minha vida! De cada vez que deixo partir algo, vivo a minha morte na escrita. Prova extrema: expropriamo-nos sem saber a quem exactamente a coisa que deixamos é confiada. Quem vai herdar, e como? Será que sequer haverão herdeiros? É uma questão que nos podemos colocar hoje mais do que nunca. Que me ocupa sem cessar. O tempo da nossa tecno-cultura mudou radicalmente a este respeito. As pessoas da minha “geração”, e a fortiori as mais antigas, estavam habituadas a um certo ritmo histórico: acreditava-se saber que tal obra poderia ou não sobreviver, em função das suas qualidades, durante um, dois, veja-se, como Platão, vinte e cinco séculos. Mas hoje a aceleração das modalidades de arquivo mas também a usura e a destruição transformam a estrutura e a temporalidade da herança. Para o pensamento, a questão da sobrevivência assume de futuro formas absolutamente imprevisíveis. Na minha idade, estou preparado para as hipóteses mais contraditórias a esse respeito: tenho simultaneamente, peço-lhe que acredite, o duplo sentimento que, de um lado, para o dizer sorrindo e sem modéstia, ainda não me começaram a ler, que se existe, por certo, muitos leitores excelentes (algumas dezenas no mundo, talvez), no fundo, é mais tarde que tudo isso terá uma possibilidade de aparecer; mas também que, de outro lado, quinze dias ou um mês depois da minha morte não restará mais nada. Excepto o que é guardado para o depósito legal de biblioteca. Juro-vos que acredito sincera e simultaneamente nestas duas hipóteses. No coração dessa esperança, está a língua, e sobretudo a língua francesa. Quando o lê-mos, sente-se em cada linha a intensidade da sua paixão por ela. Em Le Monolinguisme de l’autre (Galilée, 1996), você chega ao ponto de se apresentar ironicamente

como o “o último defensor e ilustrador da língua francesa”... Que não me pertence, apesar de ser a única que “tenho” à minha disposição (ainda!). A experiência da língua é, claro, vital. Mortal, portanto, nada de original nisso. As contingências fizeram de mim um judeu francês da Argélia da geração nascida antes da “guerra da independência”: tantas singularidades, mesmo entre os judeus e entre os judeus da Argélia. Participei numa transformação extraordinária do judaísmo francês da Argélia: mesmo os meus bisavós estavam ainda muito próximos dos árabes, pela língua, pelos costumes, etc. Após o decreto Crémieux (1870), no final do século XIX, a geração seguinte aburguesou-se : mesmo tendo-se casado quase clandestinamente nas traseiras de um tribunal de Argel por causa dos pogroms (em pleno caso Dreyfus), a minha avó criava já as suas filhas como burguesas parisienses (boas maneiras do bairro 16, lições de piano...). Depois seguiu-se a geração dos meus pais : poucos intelectuais, comerciantes sobretudo, modestos ou não, alguns dos quais exploravam já uma situação colonial fazendo-se representantes exclusivos de grandes marcas metropolitanas: com um pequeno escritório de 10 metros quadrados e sem secretária podia-se representar todo o “sabão de Marselha” no norte de África – simplifico eu. Depois foi a minha geração (uma maioria de intelectuais: profissões liberais, ensino, medicina, direito, etc.). E quase todos estavam em França em 1962. Comigo foi mais cedo (1949). Foi comigo que, exagerando um pouco, que os casamentos “mistos” começaram. DE forma quase trágica, revolucionária, rara e arriscada. E mesmo que ame a vida, a minha vida, amo o que me constituiu, e cujo elemento é a língua, esta língua francesa que é a única que me ensinaram a cultivar, a única língua também da qual me posso dizer mais ou menos responsável. Existe na minha escrita uma forma não diria perversa, mas um pouco violenta de tratar a língua francesa. Por amor. O amor em geral passa pelo amor da língua, que não é nem nacionalista nem conservador, mas que exige provas. E provações. Não se faz apenas seja o que for com a língua, ela pré-existe-nos, ela sobrevive-nos. Se afectamos a língua com alguma coisa, tem de ser de modo refinado, respeitando no irrespeito a sua lei secreta. Isso é a fidelidade infiel: quando violento a língua francesa, faço-o com o respeito refinado daquilo que julgo ser uma injunção dessa língua, na sua vida, na sua evolução. Não leio sem sorrir, por vezes com desprezo, aqueles que acreditam violar, sem amor, justamente, a ortografia ou a sintaxe “clássicas” de uma língua francesa, dando-se se ares de virgem de ejaculação precoce, enquanto que a grande língua francesa, mais intocável que nunca, os olha à espera do que se segue. Descrevo uma cena ridícula de forma um pouco cruel em La Carte postale (Flammarion, 1980). Deixar marcas na história da língua france-

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Aprender a viver é sempre narcísico: desejamos viver tanto quanto possível, salvarmo-nos, perseverar, e cultivar todas as coisas que, por infinitamente maiores e poderosas que sejam, fazem, ainda assim, parte deste pequeno “eu” que devassam de todos os lados. sa, eis o que me interessa. Vivo dessa paixão, senão pela França, pelo menos por algo que a língua francesa incorporou durante séculos. Suponho que se amo esta língua como à minha própria vida, e por vezes mais que qualquer francês original, é porque amo um estrangeiro que foi acolhido, e que se apropriou dessa língua como a única possível para ele. Paixão e lanço mais alto. Todos os franceses da Argélia partilham isso comigo, judeus ou não. Aqueles que vinham da metrópole eram também estrangeiros : opressores e normativo, normalizadores e moralizadores. Era um modelo, um hábito, tinha-se de se vergar a ele. Quando um professor chegava da metrópole com uma pronúncia francesa, achava-mo-lo ridículo! O lanço mais alto vem daí: só tenho uma língua, e ao mesmo tempo essa língua não me pertence. Uma história exacerbou em mim essa lei universal : uma língua não é coisa que pertença. Nem naturalmente nem por essência. De onde os fantasmas de propriedade, de apropriação e de imposição colonialista. Em geral, você tem dificuldade em dizer “nós” – “nós” os filósofos, ou “nós” os judeus, por exemplo. Mas, à medida que se desenvolve a nova desordem mundial, você parece mais e mais reticente em dizer “nós os europeus”. Já em L’Autre Cap (Galilée, 1991), livro escrito no momento da primeira guerra do Golfo, você apresentava-se como “um velho europeu”, como “ uma espécie de mestiço europeu”. Dois reparos: tenho de facto dificuldade em dizer “nós”, mas digo-o. Apesar de todos os problemas que me torturam a esse respeito, começando pela política desastrosa e suicidária de


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Israel – e de um certo sionismo (pois, aos meus olhos, Israel não representa o judaísmo, nem a diáspora nem mesmo o sionismo mundial ou originário que foi múltiplo e contraditório; existem fundamentalistas cristãos nos Estados Unidos que se dizem sionistas autênticos. O poder do seu lobby conta mais que a comunidade judaica americana, sem falar da saudita, na orientação conjunta da política amero-israelita – e, apesar de tudo isso e de tantos outros problemas que tenho com o meu ser “judeu”, nunca o negaria. Diria sempre, em certas situações, «nós os judeus». Esse “nós” tão atormentado está no centro daquilo que existe de mais inquieto no meu pensamento. Que nomeei sorrindo dificilmente de «o último dos judeus». Estaria no meu pensamento aquilo que Aristóteles diz profundamente da oração (eukhè): ela não é nem verdadeira nem falsa. É apenas, literalmente, uma oração. Em certas situações, portanto, não hesitaria a dizer « nós os judeus”, ou também “nós os franceses”. De seguida, desde o início do meu trabalho, e isso seria a “desconstrução” ela mesma, permaneci extremamente crítico em relação ao eurocentrismo, na modernidade das suas formulações, em Valéry, Husserl ou Heidegger por exemplo. A desconstrução em geral é uma empresa que muitos consideraram, a justo título, como um gesto de desconfiança em relação ao eurocentrismo. Quando nestes dias me acontece dizer “nós os europeus”, é algo de conjuntural e muito diferente: tudo o que pode ser desconstruído da tradição europeia não impede que, justamente por causa do que se passou na Europa, por causa das Luzes, por causa da dimensão desse pequeno continente e da enorme culpabilidade que desde aí transita (totalitarismo, nazismo, genocídios, Shoah, colonização e descolonização, etc.), hoje em dia, na situação geopolítica que é a nossa, a Europa, uma outra Europa mas com a mesma memória, poderia (em todo caso é o meu voto) reunir-se contra a hegemonia política Americana (relação Wolfowitz, Cheney, Rumsfeld, etc.) e contra um teocratismo arabo-islâmico sem Luzes e sem futuro político (mas sem negligenciar as contradições e heterogeneidades destes dois grupos e juntemo-nos àqueles que resistem dentro desses dois blocos) A Europa encontra-se na injunção de assumir uma responsabilidade nova. Não me refiro à comunidade europeia tal qual existe ou se desenha na sua actual maioria (neo-liberal) e virtualmente ameaçada por tantas guerras internas, mas de uma Europa por vir, e que se busca. Na Europa (geográfica) e para além. Aquilo que designamos algebricamente de «Europa» tem responsabilidades a tomar, pelo futuro da humanidade, pelo direito internacional – essa é a minha fé, a minha crença. E, aí, não hesitaria em dizer “nós os Europeus”. Não se trata de desejar a constituição de uma Europa que seria outra superpotência militar, protegendo o seu mercado e fazendo contrapeso aos restantes blocos, mas uma Europa que semearia os grãos de uma nova política altermundialista. Que, para mim, é a única possível. Ainda que os seus motivos sejam confusos, essa força está em marcha e creio que nada a deterá. Quando digo Europa, é isso: uma Europa altermundialista, transformando o conceito e a prática da soberania e do direito internacional. E dispondo de uma verdadeira força armada, independente da OTAN e dos EUA, uma potência militar que, nem ofensiva, nem defensiva, nem preventiva, interviesse sem demora ao serviço das resoluções por fim respeitadas de uma nova ONU (por exemplo, com toda a urgência, em Israel, mas também alhures). É também o lugar de onde

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gias de comunicação ou de estratégia militar, e essa deslocação coloca efectivamente em crise o velho conceito europeu do político. E da guerra, e da distinção entre o civil e o militar, e do terrorismo nacional ou internacional. Mas eu não acredito que seja necessário lançar-se contra o político. E o mesmo para a soberania, que creio ter algo de bom em certas situações, para lutar, por exemplo, contra certas forças mundiais do mercado. Aí também, trata-se de uma herança europeia que se deve ao mesmo tempo guardar e transformar. È o que digo em Voyous (Galilée, 2003), acerca da democracia como ideia europeia, que ao mesmo tempo nunca existiu de forma satisfatória, e permanece por vir. Com efeito, encontra-se sempre este gesto em mim, para o qual não tenho justificação última, a não ser que é o que sou, que é onde estou. Estou em guerra contra mim mesmo, é verdade, ninguém sabe até que ponto, para lá do que possam adivinhar, e digo coisas contraditórias, que são, digamos, em tensão real e me constroem me fazem viver e me farão morrer. Esta guerra, vejo por vezes como uma guerra aterrorizante e penosa, mas ao mesmo tempo sei que é a vida. Nunca encontraria a paz senão no repouso eterno. Por isso não se pode dizer que assuma esta contradição, mas sei também que é o que me deixa viver, e me faz colocar a questão, justamente, a que chamaria “como aprender a viver?”

podemos pensar melhor certas figuras da laicidade, por exemplo, ou da justiça social, enquanto heranças europeias. (Acabo de dizer “laicidade”. Permitam-me aqui um longo parêntesis. Ela não diz respeito aos véus na escola mas ao véu de “núpcias”. Apoiei sem hesitar com a minha assinatura a iniciativa bem vinda e corajosa de Noël Mamère, mesmo que o casamento entre homosexuais constitua um exemplo dessa bela tradição que os americanos inauguraram no século passado sob o nome de “civil disobedience”: não desafio à lei, mas desobediência a uma disposição legislativa em nome de uma lei melhor – por vir ou já inscrita no espírito ou na letras da Constituição. Assinei neste contexto legislativo actual porque me parece justa – pelos direitos dos homosexuais – hipócrita e equívoca no seu espírito e na sua letra. Se eu fosse legislador, proporia pura e simplesmente a desaparição da palavra e do conceito de “casamento” num código civil e laico. O “casamento”, valor religioso, sacral, heterosexual, com voto de procriação, de fidelidade eterna, etc., é uma concessão do Estado laico à Igreja cristã- em particular no seu monogamismo que não é nem judeu (só foi imposto aos judeus pelos europeus no último século e não constituía uma obrigação até há poucas décadas no Maghreb judeu) nem, sabemo-lo bem, muçulmano. Suprimindo a palavra e conceito de “casamento”, esse equívoco ou essa hipocrisia religiosa e sacral, que não tem cabimento numa constituição laica, podíamos substitui-los por uma união civil contratual, uma espécie de pacto generalizado, melhorado, refinado, suave e ajustado entre parceiros de sexo ou número não imposto. Quanto àqueles que desejam, no sentido estrito, ligar-se por «matrimónio» — e por quem o meu respeito permanece intacto — poderiam fazê-lo perante a autoridade reli-

giosa da sua escolha — ainda existem outros países que podem consagrar homosexuais religiosamente pelo casamento. Alguns poderiam unir-se de uma forma ou outra, ou das duas maneiras, outros de não se unirem, nem religiosa nem laicamente. Fim do parêntesis conjugal. Trata-se de uma utopia mas acredito nela). Aquilo a que chamo «desconstrução», mesmo quando é dirigida contra algo da Europa, é europeia, é um produto, uma relação a si da Europa, como experiência da alteridade radical. Desde a época das Luzes, a Europa autocritica-se permanentemente e, nessa herança perfectível, há uma possibilidade de futuro. Ao menos assim espero, é isso que alimenta a minha indignação perante os discursos que condenam a Europa definitivamente, como se não fosse mais que o lugar dos seus próprios crimes. Quanto à Europa, não se encontra em guerra consigo mesmo ? Por um lado salienta os atentados de 11 de Setembro com arruinando a velha gramática geopolítica das potências soberanas, assinando também a crise de um certo conceito político, que você define como propriamente europeu. Por outro lado, mantém-se preso a esse espírito europeu e a um ideal cosmopolítico de um direito internacional do qual, justamente, descreve o declínio. Ou a sobrevivência… É necessário “revelar” (Aufheben) o cosmopolítico (ver Cosmopolites de tous les pays, encore un effort !, Galilée, 1997). Quando se diz político, servimo-nos de uma palavra grega, de um conceito europeu que sempre supôs o Estado, a forma polis ligada ao território nacional e à autoctonia. Sejam quais forem as rupturas no interior dessa história, esse conceito do político permanece dominante, no próprio momento em que inúmeras forças estão prestes a deslocar-se: a soberania do Estado já não está ligada a um território, nem sequer as tecnolo-

Em dois livros recentes (Chaque fois unique, la fin du monde et Béliers, Galilée, 2003), você regressou a essa grande questão da salvação, do luto impossível, da sobrevivência. Se a filosofia pode ser definida como “antecipação inquieta da morte” (Donner la mort, Galilée, 1999), poderemos encarar a «desconstrução» como uma interminável ética do sobrevivente? Como já fiz lembrar, desde o início, e muito antes das experiências de sobrevivência que de momento são as minhas, assinalei que a sobrevivência é um conceito original que constitui a própria estrutura daquilo a que chamamos existência, o Da-sein, se quiser. Nós somos estruturalmente sobreviventes, marcas por essa estrutura do traço, do testamento. Mas, tendo dito isto, não gostaria de deixar espaço à interpretação segundo a qual a sobrevivência é mais do lado da morte, do passado, do que da ida e do futuro. Não, em todo o tempo, a desconstrução está do lado do sim, da afirmação da vida. Tudo o que digo desde Pas au moins (em Parages, Galilée, 1986) – acerca da sobrevivência como complicação da oposição vida-morte procede em mim de uma afirmação incondicional da vida. A sobrevivência, é a vida para lá da vida, a vida mais que a vida, o discurso que sustento não é mortífero. Ao contrário, é a afirmação de um vivente que prefere o viver e portanto o sobreviver à morte, pois a sobrevivência, não se trata simplesmente do que sobra, mas é a vida mais intensa possível. Nunca sou tão assombrado pela necessidade de morrer do que nos momentos de felicidade e alegria. Gozar e chorar a morte que atiça, para mim são a mesma coisa. Quando recordo a minha vida, tenho tendência a pensar que tive hipótese de amar mesmo os momentos infelizes da minha vida, e de os abençoar. Quase todos, talvez à excepção de um. Quando me recordo dos momentos felizes, também os abenço-o, claro, e ao mesmo tempo precipitam-me para o pensamento da morte, em direcção à morte, porque é passado, é o fim… Tradução de Rui Cascais


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AN FEI ( 280 - 233 A.E.C .) NASCEU NA FAMÍLIA REAL DO REINO DE HAN , NO CENTRO DA CHINA , DURANTE A FASE FINAL DO PERÍODO DOS ESTADOS COMBATENTES . Na sua formação foi determinante a influência de Xun Tzi um confucionista de grande relevo político à época . Para além deste mestre , a outra fonte para as suas teorias políticas foi , curiosamente , o " Dao De Jing " de Lao Zi , que Han Fei interpretava mais como um texto político do que como um guia místico , como pareceu ser prática subsequente e mesmo hodierna . Han Fei via o " Dao " como uma lei natural que todas as coisas e todos os homens estavam destinados a seguir . No entanto , o filósofo acabou por chegar a um pensamento em que o soberano era colocado no centro absoluto , controlando o Estado com a ajuda de três conceitos : poder ( !' shi !( ), técnica ( !' shu !( ) e as leis ( !' fa !( ). Este pensamento seria objecto de um radical refinamento ao longo da sua vida e obra . Han Fei assistiu ao gradual , mas constante , declínio do Estado Han e , em diversas ocasiões , tentou persuadir o rei a seguir políticas diferentes , apesar do monarca nunca ter ouvido os seus conselhos ( diz-se que Han Fei seria gago , o que se , por um lado , lhe dificultava a comunicação das ideias na corte , por outro , o terá levado a desenvolver aquele que ainda hoje é considerado como um dos mais brilhantes estilos escritos da China ). Com um desespero crescente , via como os políticos do seu tempo eram levados pelos filósofos Ru ( nome da escola confucionista ) e pelos seguidores de Mo Zi ( 490-403 a.c . Filósofo de estatura equivalente à de Confúcio . Recusava a ordem aristocrática . Preconizava uma certa noção de " Amor Universal ") que pregavam interminavelmente acerca das virtudes morais . Para além desta influência , que considerava perniciosa em extremo , os estados da sua época estavam à mercê de bandos de cavaleiros mercenários que a cada passo escarneciam e agiam contra as leis , acrescentando à

confusão da sociedade e dos regentes , como uma errante nuvem negra de anti-heróis pairando sobre todo um período histórico . Por fim , as obras de Han Fei acabaram por chegar ao centro de poder do Estado de Qin , onde pontificava aquele que viria a ser o Primeiro Imperador ( o imperador Huangdi ). No entanto , na corte Qin o filósofo foi rapidamente vítima de uma teia de suspeitas relacionadas com a sua origem no país de Han e consequente incapacidade natural de servir a outro senhor . Este clima conspiratório acabaria por conduzir Han Fei ao suicídio . O Legalismo da Dinastia Qin O ponto principal e básico de onde Confúcio e Mencius partiram assentavam numa visão do homem como fundamentalmente bom . Cada ser humano nascia com !' de !( ou " virtude moral ". Curiosamente , um dos maiores confucionistas da antiguidade , e mestre de Han Fei , Xun Zi ( 298 - 238 a.E.C .), acreditava exactamente no oposto : que todos os seres humanos nasciam fundamentalmente depravados , egoístas , gananciosos e cheios de luxúria . No entanto , esta não era uma visão inteiramente tenebrosa e pessimista da humanidade , pois Xun Zi acreditava , simultaneamente , que os homens poderiam ser tornados bons através da educação e da convivência social . O seu aluno Han Fei começou a pensar a partir do mesmo ponto , embora tenha chegado à conclusão de que os seres humanos são tornados bons pelas leis do Estado , uma ideia que viu um ressurgimento em pleno século XX como base do Maoísmo . Para o filósofo , a única forma de contrariar o egoísmo humano e a sua depravação era através do estabelecimento de leis que recompensassem abundantemente as acções , que beneficiassem os outros ( a comunidade , a sociedade ; o próprio Estado , na figura do soberano ) e punissem impiedosamente todas as acções que causassem mal aos outros ou ao Estado . Se para Confúcio o poder era algo para ser usado em benefício do povo , para Han Fei , o benefício do povo residia no

Rui Cascais

controlo sem restrições do egoísmo individual , mais uma característica recuperada , com consequências terríveis , no último século com o movimento da Revolução Cultural . Radical , Han Fei acrescentava que se não se puder confiar no próprio Imperador para se comportar à altura do interesse do seu povo , isto é , se se pode esperar egoísmo do próprio Imperador , é necessário que as leis tenham um carácter supremo acima mesmo do soberano . Idealmente , se as leis fossem suficientemente bem escritas e aplicadas com agressividade , não existiria necessidade sequer de liderança individual , pois as leis seriam só por si suficientes para governar o Estado . Mais um aspecto em directa oposição ao idealismo confucionista de uma condição social humana em que as leis não seriam necessárias . Quando os Qin ganharam poder imperial ao cabo de décadas de guerra civil , adoptaram as ideias dos Legalistas como a sua teoria política . Na prática isto significou apenas uma nova forma de totalitarismo uniforme . As pessoas eram obrigadas a trabalhar por períodos indefinidos em projectos do Estado ( aqui um sabor a Orwell , a Estaline , e aos campos de trabalho forçado das décadas de 50 , 60 e 70 na China ) um dos quais foi a construção de secções de muralhas defensivas , parte da Grande Muralha . Todos os tipos de discórdia com o governo passaram a ser objecto de pena capital . Todos os modos de pensamento alternativo , que os Legalistas entendiam como encorajando a tendência natural de fraccionamento da humanidade , foram banidos . Estas políticas acabariam por causar a queda da própria Dinastia Qin ao cabo de apenas catorze anos no poder . As revoltas locais não encontraram resistência por parte dos oficiais do governo , que temiam que os próprios relatórios sobre essas revoltas pudessem ser considerados como críticas ao governo e assim resultassem na sua própria execução . A corte só descobriu estes levantamentos quando era já demasiado tarde e , em termos gerais , os Qin caíram em descrédito por mais de dois milénios . Apesar de tudo isto , não é de facto sim-

ples desacreditar o Legalismo como apenas um curto , anómalo e desagradável período de totalitarismo na história da China . Os Legalistas estabeleceram formas de governo que influenciariam profundamente o futuro . Em primeiro lugar , adoptaram e colocaram em prática o idealismo de Mo Zi acerca do utilitarismo : as únicas ocupações a que o povo se devia dedicar deveriam ser aquelas que beneficiassem materialmente os outros , em particular a agricultura . A maioria das leis dos Qin foram tentativas de demover as pessoas de certas actividades inúteis tais como as Letras e a Filosofia . Este utilitarismo haveria de sobreviver como uma das correntes mais dinâmicas da teoria política chinesa até , e incluindo-a , à revolução Maoísta . Em segundo lugar , os Legalistas inventaram aquilo a que podemos chamar " o primado da lei ", ou seja , a noção de que a lei é superior a cada indivíduo , incluindo governantes . È a lei que deve governar e não os indivíduos , cuja autoridade se limita à administração da lei . Em terceiro lugar , os Legalistas aplicaram , quase como conclusão lógica , uma padronização uniforme da lei e da cultura . De modo a ser eficaz , a lei deve ser aplicada com uniformidade , ninguém deve ser punido mais ou menos severamente por causa do seu estatuto social . Esta noção de igualdade perante a lei permaneceria , com algumas alterações ( nomeadamente na questão religiosa , levantada sobretudo com o advento do budismo organizado na China ), um conceito central nas teorias chinesas de governo . Na sua busca de uniformização , os Qin levaram a cabo um projecto de padronização da cultura chinesa abarcando o sistema de escrita , o sistema monetário , os pesos e medidas , e os sistemas filosóficos ( o que conseguiram sobretudo através da destruição de escolas de pensamento rivais ). Tudo isto afectou profundamente a coerência da cultura chinesa e a centralização do governo . A dinastia que lhes sucedeu , a dos Han ( 202 a.E.C . ! V 9 a.E.C .), continuou esta tentativa de fusão de escolas rivais num processo conhecido por Síntese Han .


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Silo Automóvel da Praça Ferreira do Amaral Na primeira versão do “Ensaio Sobre a Visão” vamos ensaiar Macau. Aqui, no complexo terreno percorrido pelos fotógrafos do território. Uma zona, uma rua, um edifício. A água que bebemos dentro de uma mão cheia de imagens. A Fotografia sem explicação, para que se compreenda o que é a Cidade. Esta cidade onde vivemos.

Timóteo Fong

trabalha no centro da cidade e a fotografia consegue ser mais do que um hobby. Hábito seu é ter sempre uma máquina fotográfica à mão. O espaço que aqui apresenta é por si frequentado dia após dia, mas desta vez resolveu abordá-lo de outra forma e demorar-se mais no seu interior. Este é o resultado.

E N S A I O S O B


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luz de inverno

Boi Luxo

THE DAYS OF BEING WILD, 1990

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6 DE ABRIL DE 1960, 14.59 HORAS. ESTE É UM FILME QUE É SEMELHANTE A UM OUTRO FILME DE WONG KAR-WAI QUE SE TORNOU FAMOSO, IN THE MOOD FOR LOVE. Não se pretende dizer que há uma injustiça no modo como têm sido avaliados, apenas se pretende dizer que ver The Days of Being Wild depois de In The Mood for Love, e este foi realizado 10 anos depois, constitui como que uma pequena traição para com este seu segundo filme, primeiro filme a sério se pretendermos desvalorizar As Tears Go By como um produto onde não sobressaem ainda os traços que definirão mais tarde a personalidade de Wong Kar-wai como realizador. Se me atenho hoje a esta história é porque me percorre uma benévola tendência para a simplicidade e uma disposição juvenil. The Days of Being Wild será porventura o mais juvenil dos seus filmes se o encararmos como um retrato de percursos juvenis através de dias quentes e dolentes, que é uma maneira de o olhar tão possível como qualquer outra. Esta história despretenciosa (qualidade que se não aplica a todos os seus filmes) é perfeita para que se sustente que o cinema de Hong Kong, não sei porquê, é um cinema onde nada de muito sério pode alguma vez acontecer. Entendamo-lo assim, sem que isto signifique qualquer diminuição, e lembremos que em 1990 era necessário que o seu cinema se diversificasse, mesmo que essa diversificação passasse por uma nostalgia e uns diálogos que não se sabe bem para onde caminham. Na

WONG KAR-WAI

China, na mesma altura, Xie Fei fazia um filme que haveria de ser um dos primeiros filmes chineses a ser reconhecido e premiado num festival internacional, o de Berlim, Black Snow, um filme que está perto de ser um filme grande. A grandeza do cinema de Hong Kong no início dos anos 90 é não precisar muito disso, a grandeza do cinema de Hong Kong em 1990 é deixar-se espreguiçar, indolente, como este filme de Wong Kar-wai arrogantemente faz. Foi nesta altura que a China começou a ser uma potência no cinema e que o cinema chinês começou a ser conhecido e admirado internacionalmente, mas também foi por esta altura que se provou que Hong Kong não precisa disso (Ju Dou, o segundo filme de Zhang Yimou, é também de 1990). O primeiro amor desta história, ou o primeiro par desta história, é um par que fala do tempo, do tempo que passou desde que os dois futuros amantes se falaram a primeira vez - precisamente sobre o tempo e por ele obsessivamente rodeados. Da languidez dos bocados dos corpos que o realizador nos mostra desprende-se a liberdade de nos dar a pensar que ele não sabe bem o que está a fazer com a câmara e com os diálogos. Esta incerteza, ou este tipo de improvisão, adequa-se perfeitamente a um mês de Abril, que aqui não é sempre o mês mais cruel porque estamos nos trópicos. E porque, provavelmente, já estamos num outro mês. Por entre as histórias que este filme conta, e já vamos na segunda história de amor, ou no segundo par, são vários, para além das

referências óbvias ao tempo, os relógios que aparecem, relógios de pulso, despertadores e relógios de parede, estes últimos muitos, muito redondos e muito de época. Desculpa-se o excesso e o óbvio a este filme, como se lhe desculpa praticamente tudo nestes dias húmidos e inconsequentes, no derretimento destes interiores demasiado doces e bons, nas costas das actrizes que a humidade torna luzidias e nos cigarros fumados por Leslie Cheung, já defunto, no filme filho adoptivo de uma velha cortesã, dispensador de um tratamento que prende e repele as mulheres que se deixam seduzir pela sua pele. Como o fumo dos cigarros de Leslie Cheung as intensões deste filme perdem-se preguiçosamente no ar, inconsequentes ao ar húmido do verão sub-tropical. Quando Andy Lau aparece na história, polícia como é polícia um dos amantes de Chungking Express, é para disponibilizar o seu afecto incondicional à primeira amante do primeiro par do filme. Mas esta mulher de Macau, que é Maggie Cheung, pouco mais faz que deixar-se ser protagonista das cenas mais estilizadas do filme, debaixo de chuva e rodeada das cores pastosas e nostálgicas que Cristopher Doyle soube criar para Wong Kar-wai, nesta sua primeira contribuição para a atmosfera cromática que se tornaria na imagem de muitos dos seus filmes. Este filme já é In The Mood for Love e 2046, sem o ser. É de entre os três, contudo, o que dá menos a ver mas talvez seja aquele que promete mais, talvez aquele cuja ausência de um programa mais definido

o torne menos fechado em si e menos, como aconteceria após Chungking Express com os seus filmes, um filme da moda. Talvez este seja aquele em que as esquinas se encontram menos polidas e, por isso mesmo, aquele que espera ainda uma lapidação cada vez que o revemos. É-o também por ser um filme anterior à fama do seu realizador, que chegou rápida a lugares longínquos do seu ponto de partida, encantatória mas evanescente. Este segundo par, constituído por Maggie Cheung e Andy Lau, é o par do espaço como o primeiro par fora o par do tempo. É nos seus desejos que se define a nostalgia da fuga através da expressão da vontade simples dela de querer, quando criança em Macau, andar de carro eléctrico em Hong Kong, ou da vontade dele em querer partir como marinheiro para longe de Hong Kong. Simples desejos, cuja satisfação fácil os torna ainda mais singelos. O fim do filme é a parte em que o sedutor, Leslie Cheung, parte para as Filipinas para tentar encontrar a sua verdadeira mãe. Há umas cenas de violência e o reencontro com Andy Lau, agora devidamente marinheiro, muito longe de Hong Kong e muito longe de tudo e num tempo que é também outro tempo. E depois ? Depois nada. Wong Kar-wai é um realizador inofensivo, não há que ter qualquer receio em ver o seus filmes, passem-se estes na Argentina, em Hong Kong ou numa China mítica, ventosa e seca. Por todos eles passa uma humidade e uma temperatura que os torna imune a qualquer seriedade e os investe de uma imensa humildade.


DE LÍRIOS TIGRADOS NÃO É BEM O TERMO! Antønio Falcão Nos meandros do Centro Cultural existiam algumas dúvidas quanto à resposta afirmativa do público de Macau perante esta iguaria e, por isso, os organizadores não estavam totalmente confiantes quando convidaram os Tiger Lillies para tocar no território. “Demasiado excêntricos”, terão pensando. O certo é que a lotação do Pequeno Auditório esgotou dias antes e a plateia acompanhou com um degustado prazer as quase duas horas que compuseram o percurso entre “o bordel e o cemitério” deste trio britânico, pela primeira vez na foz do Delta. A veneta do grupo vem em grande forma da folia desajustada do seu vocalista, Martyn Jacques, que salta do acordeão para o ukelele como um génio endoidecido e depois para o piano conforme esfrega os olhos e lhe passa uma ideia pela fronte. “Ah!”, parece exclamar, lembrando-se da melodia que vem a seguir e da história de Jack, agora the Striper, onde se imiscuem animais em desuso e uma sorte de mulheres lânguidas. De resto, Martyn, em busca de uma descendência multiforme, deu-se ao trabalho de viver no primeiro andar de uma casa de alterne, no bairro londrino de Soho, encontrando aí o arrojo para as suas experiências musicais, vividas ou ouvidas, enquanto ia humedecendo a sua voz de falsete num estudo apurado, nos tempos livres da frequência de raparigas de má fama. “Perversões sexuais, a decadência do baixo-ventre, o horrendo, o macabro e o visceral”, são motes e sabores que contemplam a sua cantoria. Os Tiger Lillies vão buscar a sua inspiração num baú de coisas antigas, cheio de resquícios dos cabarés dos princípios do século passado, , quando ainda não existia nem cinema, nem telenovelas, e os automóveis pegavam à manivela à força de braço. Há quem use o termo “cigano” para os explicar. Mas é essa mesma manivela que põe os Lillies a tocar, enquanto o Tiger se perde com o russo Alexander Vertinsky - poeta, cantor, artista de cabaré... -, uma mistura de Vaslav Nijinsky com Charlie Chaplin, em grande nessa época aúrea, que encabeçou o inventário de inspirações deste frondoso tríptico. Aqui, não esquecer o casaco e as mangas do grupo: Adrian Huge (apelido adaptado do original “Hughes” com que nasceu, vá-se lá saber porquê...), na percussão e mercearias várias; e Adrian Stout, no contrabaixo e serrote, instrumento que adelgaçou com precisão, e ainda o “theremin”, um mecanismo musical patenteado em 1928 por Léon Theremin, outro russo, que amplifica a oscilação de determinadas frequências eléctricas. Divino! Talvez o Pequeno Auditório não tenha sido o lugar ideal para esta apresentação, um D. Pedro V versão XL, se houvesse, com um after-hours onde se misturasse toda a movida de Macau, por certo prolongaria a noite para lá de qualquer memória. Mas é o que temos e aquilo que tivemos foi muito bom. Parabéns ao Centro Cultural de Macau pela audácia. Em nome de uma audiência cada vez mais eclética e por certo ávida de presentes semelhantes, disposta a disparar em todas as direcções, deixo aqui os meus agradecimentos. Que venham mais! E mais e mais... TIGER LILLIES MARTYN JACQUES - voz, acordeão, piano, guitarra, harmónica, ukelele e banjo. ADRIAN HUGE - bateria, percussão e vozes. ADRIAN STOUT - Contrabaixo, serrote musical, theremin e vozes. www.tigerlillies.com

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T E R C E I R O O U V I D O

próximo oriente

Hugo Pinto

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THE CLASH “Tensão pré-milenar.” A expressão surgiu a caminho do final da década de 1990 e está cunhada num dos melhores discos daquele tempo, “Pre-Millenium Tension” (1996), de Tricky, o arauto que cristalizou o peso carregado pelos músicos que sucumbiram à claustrofobia e temores do “fim de século” (a propósito, veja-se “Fin de Siècle”, dos Divine Comedy - outro registo para as mesmas angústias). Na música de Tricky, os ritmos lentos e arrastados do trip-hop marcavam o passo da aparição de fantasmas e do relato de desesperos na primeira pessoa por parte de personagens que povoavam cenários marcadamente urbanos, futuristas e apocalípticos. O negrume era tal que o virar do século e dealbar de um novo milénio, sem Armagedão ou “bugs”, foi simplesmente um alívio. No curioso diálogo que a história (neste caso, da música) vai mantendo entre as suas fileiras, logo no início da nova era, isto é, do novo milénio, apareceu uma expressão que respondia à anterior e pesada tensão pré-milenar com proporcional dose de alívio descomprometido: “Electroclash”. Tudo começou em 2001, com o nome de um festival em Nova Iorque, mas cedo o termo atravessou o Atlântico, aterrando com estrondo na Europa. O Electroclash era a revisitação do retro-futurismo que, à data, ainda faltava explorar. Musicalmente, fundia a New Wave dos anos 1980 com diversos géneros de música electrónica, desde o Electro ao Hi-NRG, passando pelo Disco e pelo Punk. O verdadeiro “clash” das civilizações, portanto. Tão importante quanto a música era a estética, igualmente retro-futurista e inspirada na ficção científica “naïf” do tempo em que tudo era, ainda, possível e os computadores tinham nomes e falavam como as pessoas. Mas mais importante do que a música e a estética era a pose “arty” que sulcava as diferenças em relação à restante fauna da música electrónica. Humor, ironia, moda, snobismo, sexo e arte são elementos que, com o Electroclash, passam a ter lugar de destaque na pista de dança. Todavia, como se avisa no fabuloso e presciente nome de uma

certa banda inglesa dos anos 1980 - Pop Will Eat Itself -, o Electroclash acabou por se afogar no caldeirão sem fundo em que entretanto se tornara. Já num lume muito brando, hoje, o “melting pot” limita-se a um borbulhar tímido. Ocasionalmente, lá para os lados de Pequim, entra em ebulição. Quando, em 2001, nascia o Electroclash, LIman (Cao Pu) produzia para a chinesa Shanshui Records um disco de electrónica ambiental. Foi só mais tarde, em 2003, que LIman se voltou para a música de dança. Rapidamente, tornou-se num dos nomes obrigatórios da cena electrónica chinesa, pelos discos e remisturas que assinou, mas sobretudo pelas poderosas actuações ao vivo, onde é o protagonista de um circo que dá azo a toda a parafernália Electroclash: do visual extravagante e vagamente fluorescente à música sem espartilhos que tanto vai das explosões “grunge” à electrónica eufórica, tudo misturado (ou deverei dizer triturado?) com a sensibilidade “caterpillar” de um punk. Em 2010, na segunda edição do festival de música electrónica I.N.T.R.O., no bairro 798, em Pequim, o espectáculo de LIman foi, certamente, o ponto alto do evento para os seus muitos acólitos e para os incautos curiosos que se juntaram à festa que ia alta num dos palcos secundários do evento. O ritmo das batidas rápidas, contínuas e imponentes, rasgadas pelas linhas electrónicas, sintéticas e ácidas, tanto servia para saciar o apetite dos que fechavam os olhos em êxtase e dos que pulavam energicamente, como servia para que outros não deixassem de se espantar com o que a música faz às pessoas, por certo a categoria onde encaixam os muitos agentes da polícia (a maioria jovens) que fizeram uma pausa na ronda para apreciar o circo que LIman montou nas suas barbas. Mais um “clash” civilizacional, desta feita sem baixas a registar. O último disco de Liman, “Originalism” (2011), pode ser escutado aqui: http:// edge.neocha.com/places/beijing/liman-originalism/


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C I D A D E S I N V I S Í V E I S

metrópolis

Tiago Quadros*

MARGARIDA SARAIVA

CIDADES IMAGINÁRIAS E

M METROPOLIS, FRITZ LANG CONSTRÓI UM FILME DE PODEROSAS METÁFORAS ARQUITECTÓNICAS, CRIANDO UMA VISÃO DE UMA CIDADE FUTURA, ATRAVÉS DE UM ESQUEMA CLARO DE DIVISÃO VERTICAL ENTRE DOIS ESPAÇOS DISTINTOS E QUASE AUTÓNOMOS. O realizador austríaco ilustra medos e inquietações, atitudes ambíguas sobre a Cidade. Por um lado, a cidade subterrânea dos trabalhadores, representada pelo medo, sofrimento, sacrifício e tragédia – cidade de Maria -, e, por outro, uma cidade feita de jardins no alto dos arranha-céus – cidade de Freder – onde sobressai a serenidade, a simpatia, o sucesso e a beleza. A ideia para este filme surge em 1924, logo após a primeira visita de Lang a Nova Iorque que, acompanhado por Erich Pommer, tem o primeiro contacto com os arranha-céus, com a massa de luzes da Broadway e com todo o movimento frenético. Metropolis, como o próprio título indica, estava totalmente relacionado com a descrição de uma cidade moderna, ou seja, com a descrição da sua forma, traçando a imagem de uma época e de uma civilização. Esta cidade moderna, num certo sentido, uma invenção do celulóide, vendo-se através das suas partes, não é frequentemente o assunto explícito de um filme, mas como acontece em Metropolis, um fundo, um ambiente, talvez evidente em apenas algumas cenas mais descritivas e detalhadas. O mais importante, como Fritz Lang acabou por admitir, é a imagem visual do filme, o que ela pode provocar, mais do que propriamente o seu conteúdo social. Recordo o filme de Lang, tantas vezes visto e lido, a propósito do trabalho que Michael Lee, artista plástico que reside e trabalha em Hong Kong e Singapura, apresentou na Bienal de Singapura, que ocorreu entre Março e Maio deste ano. Em Office Orchitect, Lee assume criativamente o processo de desenho de arquitecturas imaginárias. O trabalho de Michael Lee reflecte visões muito difundidas de arquitecturas únicas, como a Città Futurista de 1914 de Antonio Sant’Elia, as cidades jardim dos arquitectos expressionistas alemães, e o Plan Voisin de 1922 de Le Corbusier. Preocupado com a relação entre desejo e espaço, Michael Lee interessa-se particularmente pela forma como as aspirações do homem podem conceber e afectar os ambientes arquitectónicos. Office Orchitect inclui maquetas de imóveis demolidos, bem como evoluções de construções antropomórficas futuras.

*Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa

Nesse sentido, a obra de Michael Lee apresenta-se como um ponto de partida para a deambulação entre imaginários. É-nos permitido observar mundos passados, negligenciados ou esquecidos, ou mundos novos, que se desligam completamente da nossa civilização apontando-nos ideias insólitas para o nosso futuro. De uma ou de outra forma, em Office Orchitect, Michael Lee fala sobre as “coisas que estão para acontecer”. Num momento em que se desenrolavam fervorosos debates arquitectónicos e urbanísticos sobre a monumentalidade e o papel dos arranha-céus, sobre as dicotomias cidade versus campo, industrialização versus agricultura, Frank Lloyd Wright desenvolveu entre 1932 e 1958 o projecto para a cidade de Broadacre. Tratava-se da sua versão para a cidade da idade da máquina, onde com a ajuda do automóvel e do telefone, o arquitecto conseguiria anular a barreira que separava a cidade do campo, tornando redundante e obsoleta a cidade industrial. Segundo o próprio Wright: “A cidade futura estará em todos os lugares e em nenhuma parte, e será uma cidade tão diferente da cidade antiga ou de qualquer cidade de hoje, que nós provavelmente não reconheceremos de forma nenhuma a sua vinda como cidade“. Em Metropolis, Lang, baseado em ideias do passado, traduz o triunfo das máquinas numa civilização eminentemente industrial, apresentando-nos um futuro desolador e preocupante. As respostas e reacções a este hino à máquina não tardaram a surgir. Just Imagine e Things to Come são disso exemplo, constituindo, de certa forma, alternativas ao pessimismo que Metropolis continha, abordando o futuro urbanismo de uma maneira bem mais optimista. Mas antes mesmo de Metropolis, também Han Werckmeister, em Algol, advertiu para os perigos vários e poderes malignos das máquinas, retratando a cidade futurista como uma cidade de arranha-céus onde o vício e o desespero dominavam a vida da maioria das pessoas. Aelita - Queen of Mars, produção soviética, retratava também uma cidade regida por uma classe ditatorial, onde um exército de escravos, em subterrâneos, constituía a força motriz do poder. A cidade imaginária foi desde sempre baseada e, por isso mesmo, reflexo do sonho, alimentando-se mutuamente, num ciclo complexo e interactivo. De certa forma, o sonho pode mover-nos para uma nova visão de cidade e de arquitectura. Intitulada Office Orchitect, a obra de Lee apresentada em Singapura consiste na apresentação do atelier e casa de um arquitecto fictício, de seu nome KS Wong, que é sério, trabalhador, e nas palavras de Lee, “altamente rigoroso”.


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À S U P E R F Í C I E

A volta ao dia em oitenta mundos

Carlos Picassinos

A vida imita a arte? Já foi assim, agora imita a televisão

MEU QUERIDO MÊS DE JUNHO A

VIDA IMITA A ARTE? JÁ FOI ASSIM, AGORA IMITA A TELEVISÃO. Estou sentado numa esplanada de café e, ao meu lado, o tom da conversa arrasta-me para dentro de um qualquer plot, mais ou menos, bufo de uma telenovela. A assertividade estridente, a infalibilidade dos argumentos, a retórica prepotente. “Ele que não se meta comigo!”. E as crianças, senhores! Tão hábeis em transformar uma plácida tarde de esplanada num ringue de chantagens e reivindicações não acalmam no respectivo pranto a benevolência da família também tolera seguindo-se, por isso, nova reivindicação, renovado pranto, e assim suscessivamente, sem cessar. Fecho o jornal, pago a conta e procuro outra esplanada. Mas não merece o esforço. Como naquele poema de Kavafis, para onde for a televisão há-de seguir-me. A família, a criança, a chantagem, a cedência. Não é só na esplanada. No jornal, a política também se faz desta lógica infantil. O senhor contente faz birra mas o senhor alegre não faz recua. Gente infalível e opinada que transpira razões e convicções; que à crítica ou ao sarcasmo responde com pelo na venta. “Ele que não se meta comigo!”, portanto. Felizmente há luar, e santos populares e festa rija. É verdade que ainda o santo não chegou ao adro e já a marcha está na rua. Pelo menos, em Lisboa. De manhã à noite há espectáculos nos transportes públicos, nos cinemas, nas pequenas agremiações de bairro. E quando digo de manhã à noite é mesmo de manhã à noite.

Passando, por exemplo, pelos elevadores, do Torel ou do Glória, por essas onze da manhã, é um sobe e desce de sons jazz, ou então, tomando o 15, o eléctrico que vai e vem do Castelo, trina-se o fado, com ginjas à viola e bocas lindas à guitarra. Apesar da crise, as ruas e miradouros andam cheios. Logo na abertura das festas, o Terreiro do Paço estava transformado num formigueiro atarefado em volta da prestidigitação da Companhia Puja. Os italianos fizeram das arcadas e do terreiro um teatro de sombras e ilusões, a partir do conto de Lewis Carrol, “Alice no País das Maravilhas”. Uma ocupação das ruas, como bem disse um dos membros da companhia para evitar que o espaço público seja apenas partilhado quando dos saldos ou das compras, ou dominado pelos automóveis. Do terreiro ao Rossio, surpresa: uma enorme tela que manchava o céu de amarelo precipita-se, vertiginosamente, sobre a massa cá em baixo emaranhando corpos e cabelos. Foi aí que o esforço geral de romper os nós se transformou num happening colectivo e numa metáfora de gente em busca da libertação, e de um espaço próprio, no anódino do espaço público. E vai ser assim ao longo do mês, supresas de rua, multidões dionisíacas, música popular, vinho e noite, marchas e manjericos, embriaguez de carnaval e de gente de igual para igual para igual. Porque é nesta dimensão que também se faz a democracia. Sobretudo assim, na rua, na festa, nos bailaricos. Os meninos não dançam?

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À S U P E R F Í C I E

escritos de passagem

Ana Paula Dias

SIQUIJOR – VISAYAS UNDERWATER WORLD This must be underwater love, The way I feel it slipping all over me. This must be underwater love, The way I feel it. (…) Follow me now To a place you only dreamt of, Before I came along. Smoke City, Underwater Love

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HEGAMOS ÀQUELA QUE OS ESPANHÓIS APELIDARAM ILHA DO FOGO, SIQUIJOR, A ILHA MÍSTICA DOS FEITICEIROS E DOS FENÓMENOS SOBRENATURAIS. A luz inunda o verão e o azul confunde-se numa mancha líquida e translúcida. As nuvens são aqui mais espessas do que em qualquer outro lugar, mas por detrás delas existe um olhar terno que separa a claridade da escuridão. Sob as águas infinitamente calmas do estreito de Cebu há um mundo multicolor de flores e pequenos peixes graciosos e o nosso corpo torna-se subitamente aquático, ficamos pertença daquele mar. Tornamo-nos peixes e nadamos fluidos por estes jardins do silêncio, seguimos como linhas paralelas sinuosas sem nos tocarmos e as nossas escamas delicadas iluminam este mar de corais sem abismos nem escuridões. É tudo luz. Dizemos Apo, o nome da outra ilha, uma mancha ténue avistada no horizonte. Aqui e agora tudo faz sentido e o mundo, com o seu peso de catástrofes, as suas crises e a sua vulnerabilidade, desapareceu. Podia ser esse o caminho que faríamos desde os longínquos Himalaias, desde o tempo das cinzas vulcânicas, dos terramotos e dos desastres nas minas até ao futuro. O futuro podia ser exactamente assim. Cheio de formas redondas, de peixes-borboleta e de estrelas-do-mar arroxeadas. De movimentos harmoniosos, lentos, imperceptíveis. De respirações subaquáticas e de grandes tartarugas indefesas que se movem pesadamente ao ritmo das correntes quentes do mar de Bohol. Quando estendêssemos os braços já não teríamos senão barbatanas, teríamos voltado ao elemento primordial e nem as cobras marinhas ou os pequenos barcos em forma de canoa com os seus estabilizadores toscos nos poderiam deter. Com as suas nascentes e rios entrevistos por entre a bruma, o futuro podia ser o monte Bandilaan a emergir no centro da ilha e os trezentos e sessenta graus do seu horizonte. Podia ser o verde imenso e diferenciado onde nós continuaríamos a ser peixes e não seriam as chuvas nem as trovoadas nocturnas, os troncos apodrecidos das árvores ou as grandes borboletas negras e um pouco sinistras que nos afastariam dos curandeiros e da sua magia poderosa. Continuaríamos a ser peixes quando nos amássemos e os nossos corpos deslizassem um sobre o outro novamente humanos e os nossos braços e pernas não fossem mais do que memórias das barbatanas e das escamas. O futuro podia ser assim.

Mas o homem vê. Vê sempre o mesmo azul imenso cheio de luz e transparência. O mesmo azul que é passado, presente e futuro nessa estrada tranquila ladeada pelo rio atravessado por pequenas pontes elevadas em arco e pelas casas de madeira no interior das quais se aninham sóbrios jardins de pedra.


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À S U P E R F Í C I E

COM A PALAVRA DE XAVIER ZARCO António MR Martins

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Ficar só assim Sofia Pinto Correia Melo Eu saltei.

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AVIER ZARCO, PSEUDÓNIMO LITERÁRIO DE PEDRO MANUEL MARTINS BAPTISTA, COIMBRA 1968. O poeta estabelece a palavra, a sua, nos caminhos de Santa Clara, pedaço de Coimbra (do outro lado do Mondego, do lado que é o seu), para onde escreveu um hino, até às fontes da discórdia e da razão, donde brotam todas as palavras nos mais variados registos, em águas de tanta revelação. Tem já vasta obra editada, sendo o seu primeiro livro “O Livro dos Murmúrios”, edições Palimage Editores, nascido em 1998 e no presente ano (2011), vê a sua primeira obra editada no Brasil, “Sonho de Benta de Aguiar seguido de Fragmentos de Hipocrene”, edições RG Editores. No meio de tudo isso há vinte e tantos livros dados à vida virtual e/ou ao papel. Venceu vários prémios e concursos literários, de âmbito nacional, sendo o mais recente o XII Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage, LASA Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão – 2010, com “Dizer do Pó”. Nesse trabalho, a páginas tantas escreve: “Do teu corpo nu que arde nos meus braços / ao pão que dorme em útero de fogo / tudo se rende ao gesto do amojo / tudo em casa se vela / à janela virada à primavera”, encerrando-o com o seguinte: “Depois de tudo resta-me o silêncio / entre dedos tecendo as palavras / impronunciáveis / como se o mundo fosse o regresso / eterno ao dizer do pó”. Participou, com a sua poesia, em diversas publicações afectas à escrita e à cultura em geral, cadernos, revistas, antologias e jornais, entre outras. A sua poesia foi definida pelo poeta asturiano José Luís García Martín como sendo de uma concisão enormemente sugestiva. Já o poeta brasileiro Álvaro Alves de Faria, também jornalista, sobre a sua obra referiu: “Maior que a vida para os poetas que tentam ainda viver, crença dos que ainda acreditam. O poema, enfim, existe. A poesia tem-se que descobrir em um tempo em que tudo é brutalidade”. E entre esta sede da descoberta da palavra no seu todo, ou em parte, contemplar a escrita de Xavier Zarco, lendo-a, é descobrir um pouco desse mundo e da sua sonoridade, é pautar esses parâmetros na desavença da própria mente, e na sua auto-descoberta, exteriorizando todo um pensamento de forma incisiva, filtrada e perspicaz. Este poeta joga com as palavras e elas se submetem a esse jogo desinteressadamente, mas felizes por serem bem tratadas e, sobretudo, enaltecidas. E, assim, vai criando a sua marca numa pertinaz envolvência onde determinados termos estão enraizados no seu preceito e na sua forma, como aglutinado sustentáculo e potenciador referenciado para o seu contínuo eclodir. Às vezes seco e outras cristalino, mas sempre com a mensagem presente. Dá vontade de dizer: - Quem escreve assim, é um senhor da palavra, um enorme poeta.

Obras do autor, Xavier Zarco: “O livro dos murmúrios”, Palimage Editores, 1998; “No rumor das águas”, e-book, Virtualbooks, 2002; “Acordes de azul”, e-book, Virtualbooks, 2002; “Palavras no vento”, e-book, Virtualbooks, 2003; “In memoriam de John Lee Hooker”, e-book, Virtualbooks, 2003; “Ordálio”, e-book, Virtualbooks, 2004; “Hino de Santa Clara”, DVD, Junta de Freguesia de Santa Clara, 2005 – Vencedor do Concurso para a Letra do Hino da Freguesia de Santa Clara, org.: Junta de Freguesia de Santa Clara; “O guardador das águas”, Mar da Palavra, 2005 – Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2004, org.: Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; “O ciclo do viandante”, e-book, Virtualbooks, 2005; “O fogo A cinza”, LASA, 2005 – Prémio de Poesia do Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage – 2005, org.: LASA – Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão; “Stanley Williams”, e-book, Virtualbooks, 2006; “À beira do silêncio”, e-book, Virtualbooks, 2006; “Monte maior sobre o Mondego”, e-book, ArcosOnline, 2006; Temas Originais 2010 – Menção Honrosa (poesia) no Prémio Literário Afonso Duarte – 2004, org.: Câmara Municipal de Montemor-o-Velho;

Disseste Salta! Endureceste o olhar Salta! Eu saltei fiquei a ver o teu olhar endurecer fiquei a ver as tuas noites claras e mais claros os dias o teu vulto já ao longe Salta! Endureceste o olhar e eu esperava-te em todas as outras noites as que virão porque Salta! Não sabes ainda que estarei em todos os sonhos em todos os lábios amargos na música em todas as esquinas das ruas que percorreres ficarei só assim a pairar porque Salta! Em todos os cantos da tua memória em todos os sons perseguirei todos os cheiros todas as peles. O olhar endurecido o olhar de tristeza

“Afluentes do poema”, e-book, Virtualbooks, 2006; “Trinta mais umas odes”, e-book, Virtualbooks, 2007; “Divertimento poético”, e-book, Virtualbooks, 2007; “Variações sobre tema de Vítor Matos e Sá: Invenção de Eros”, Edium Editores, 2007 – Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá – 2007 – org.: Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; “Poemas com rosto”, e-book, Virtualbooks, 2007; “O livro do regresso”, Edium Editores, 2008 – Prémio de Poesia Raul de Carvalho – 2005, org.: Câmara Municipal do Alvito; “Nove ciclos para um poema”, Edium Editores, 2008 – Prémio Literário da Lusofonia – 2007, org.: Câmara Municipal de Bragança; “Instantes de Actéon”, e-book, Virtualbooks, 2008; “Lições de Thanatos”, Edium Editores, 2008; “Uma serenata para Zara”, e-book, Virtualbooks, 2009; “25 cravos de Abril”, CGTP-IN 2009 – Menção Honrosa (Poesia) no 1º. Concurso de Conto e Poesia da CGTP-IN – 2007, org.: CGTP-IN; “Coimbra ao som da água”, Temas Originais, 2009; “Respirar das Sombras”, e-book, Virtualbooks, 2010; “Dizer do Pó”, LASA, 2010 – Prémio de Poesia do Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage – 2010, org.: LASA – Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão; “Sonho de Benta de Aguiar seguido de Fragmentos de Hipocrene”, RG Editores (Brasil), 2011.

Salta! Em todos os cabelos que tocares estarei em todos os pensamentos nas estradas nos caminhos no reflexo do vidro do espelho na chávena do café nas manhãs ficarei só assim a pairar na paragem do autocarro novamente nesta música no casaco ficarei só assim no cigarro estarei lá nas chaves que caem ao chão num telefonema esperado no fundo do copo despirás mil vezes o meu rosto despirás mil vezes o meu gesto Salta! E eu cairei parada. Mil vezes endureceste o olhar no fundo do copo nos lábios amargos na paragem do autocarro ficarei só assim a pairar em todos os cantos da tua memória nos jornais amanhã de manhã Salta! E o meu nome Ah! O meu nome!



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