h - Suplemento do Hoje Macau #1

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h artes, letras e ideias

PARTE integrante DO HOJE MACAU Nツコ 2307. Nテグ PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

Bento de espinosa

a テュntima liberdade estranho

Pu Songling, o cronista do

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Wen Zi | A forma e o

Ser


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Provérbios da sabedoria popular chinesa Selecção e tradução de Luís Sá Cunha Vale mais acender uma pequena luminária do que maldizer a escuridão * Mil recordações não valem um pensamento * Quem não pode pagar com a bolsa paga com o corpo * A sombra move-se segundo a vontade do sol * Qual foi o mais belo século da filosofia? Aquele em que ainda não havia filósofos. * Morrendo, a pantera deixa a pele, o homem a sua fama * Na morte,as mãos estão vazias * Os ratos conhecem bem o caminho dos ratos * Se os príncipes soubessem falar e as mulheres calar-se, os cortesãos dizer o que pensam e os criados silenciá-lo – todo o universo estaria em paz.

Descubra as diferenças Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta. Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência

ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro. Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País. A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas. Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar. Guerra Junqueiro, 1896

Gamasutra Mia Couto

A miséria é, infelizmente, fértil nesse paradoxo: em vez de produzirmos riqueza, produzimos ricos. Antes fossem ricos. Porque são apenas endinheirados. E endinheirados que não produzem. O Kamasutra não seria a prenda mais apropriada para a presente quadra. Nem sequer seria oferta original. Se é para dar um presente que seja algo que fale do gosto de nos darmos, da identidade de quem dá. Por isso, este Natal vou dar um livro que traduza a nossa originalidade e que, sendo publicação recente, cedo rivalizará com o célebre livro sobre os prazeres do amor. A longa lista de tentadoras posições sexuais do Kamasutra cedo ficará esquecida perante o rasgão criativo desta outra obra. Falo, é claro, do “Gamasutra, a infinita arte do gamanço”. Um manual ilustrado sobre a roubalheira como modo de viver. Começo deste modo, fazendo paródia junto à fronteira do solene e do sagrado. Não o faço gratuitamente. Tenho uma intenção. Entenderão ao lerem, se assim tiverem paciência. O melhor do Natal é a festa, a família, a sugestão de um mundo solidário. O tempo do verbo terá que ser, no entanto, alterado: o melhor do Natal já foi o Natal. Porque uma descarada subversão do espírito natalício foi convertendo em mercadoria e comércio aquilo que parecia ser generosidade pura e simples: darmo-nos nós, como somos, e tornarmo-nos mais próximos dos outros. Se ressuscitasse hoje, Cristo não teria que abordar apenas os vendilhões de um templo. O mundo inteiro é um bazar onde tudo se compra e se vende. Incluindo o chamado espírito natalício. Rectifico o início desta crónica: o melhor do Natal é o espírito do Natal. Esse espírito não resiste à manipulação oportunista que a imagem de um simpático mas estafado Pai Natal, vestido com as cores da Coca Cola, apenas confirma a lógica de lucro a que nem os mitos escaparam. Um dos piores tormentos dos novos tempos de Natal são as mensagens feitas a metro. Por via de email, de telefone celular, as mensagenzinhas entopem as caixas de correio e obrigam-nos a um exercício penoso de as apagar às dúzias. Corro o risco de ser ingrato. Mas eu peço aos meus amigos: não me enviem mensagens natalícias. Mandem-mas ao longo do ano, sobretudo, mandem-nas sem necessidade de data especial, com a originalidade e a graça que a verdadeira amizade requerem. A obrigação de trocar mensagens com amigos é algo de nobre. Mas também aqui aconteceu a banalização. Fórmulas repetidas, clichés sem gosto, fizeram da humana troca de emoções aquilo que os maus políticos fizeram ao discurso oficial: um desfile de frases feitas, em construção previsível, vazio de ideias, incapaz de comunicar ou de comover o

mais ingénuo dos cidadãos. Pediram-me há dias, num programa de televisão, que formulasse um desejo para o nosso país. A dificuldade primeira é escolher um único desejo quando os votos que trazemos são sempre múltiplos. Sentado ante a câmara de filmar demorei um tempo, navegando entre brumas e luzes. Acabei escolhendo uma meia fórmula, optei pelo seguro. Fiz mal. Porque o que mais queria ter formulado era uma espécie de antivoto. Ou seja, eu devia ter falado daquilo que eu não queria que acontecesse. Seria o meu voto pela negativa. Disse o que todos dizemos: que o ano próximo seja um momento de construção de riqueza. Mas de riqueza nacional. E não de uns poucos. A miséria é, infelizmente, fértil nesse paradoxo: em vez de produzirmos riqueza, produzimos ricos. Antes fossem ricos. Porque são apenas endinheirados. E endinheirados que não produzem. Faço aqui, pois, o voto pela via da negação: o que eu mais queria que deixássemos de ser. E escolho: que virássemos costas ao roubo. Já não falo da prática generalizada que tomou conta das colunas dos jornais. Não falo apenas desse roubo que se estende dos medicamentos, aos cabos de fibra óptica, dos passaportes ao carris de comboio, das condutas de combustível a painéis solares para fontes de água. Não falo só do furto que causa milhões de dólares de prejuízo a companhias de electricidade, telefone e águas. E que nos torna mais pobres a todos nós. Não falo sequer desse outro espantoso roubo que faz com que, na berma das estradas, se comece por roubar os pertences dos sinistrados em lugar de lhes prestar socorro. Falo de outra roubalheira que se infiltrou no tutano do nosso corpo enquanto nação: a ideia que roubar é legítimo por causa da pobreza. Ou por causa da escassez de tempo que o político tem por mandato. Ou por causa de qualquer outra razão. Falo de outros níveis de roubo: o roubo da esperança pelos políticos, o roubo da propriedade pública pelo gestor, o roubo da História e da memória por aqueles que se acham a geração de estreia nacional. Falo dessa roubalheira que é a corrupção, lenta hemorragia que nos pede insidiosa habituação. Falo do roubo do pensamento crítico por aqueles que fazem uso da ameaça velada, da censura subtil ou da arrogância e desprezo pelo debate aberto. Numa palavra, o roubo no nosso país já não é um simples somatório de casos policiais, uma onda crescente que se destaca de um mar são. O furto tornou-se numa cultura, num sistema. Tornou-se regra. Somos hoje um país em permanente assalto a si mesmo. E nenhuma nação, por mais bem que esteja no caminho do progresso, pode conviver com uma doença assim.


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Espinosa e a liberdade Carlos Morais José

A liberdade não é concedida por ninguém: enraíza-se nas profundidades do nosso ser, é imanente ao pensamento, isto é, ao grito do ser onde emerge a consciência da morte, por vezes, do sonho de um destino. A liberdade não é, por isso, decorrente uma vontade, de um poder, de uma lei. Ela é, em si mesma, a Lei, o Inconsciente e o Destino. Recusar isto é, liminarmente, recusar o homem. Baruch de Espinosa, judeu português, nascido em Amsterdão, em Novembro de 1632, filho de Miguel e Ana, que se haviam recentemente estabelecido na Holanda. Na sua casa falavase o Português. Aliás, Espinosa terá ocasião de contrariar, avant la lettre, a tenebrosa opinião de Heidegger, segundo a qual a filosofia só existe em grego clássico ou alemão. Em carta a Willem van Blijenburgh, refere o filósofo: “gostaria de escrever na língua na qual fui educado, talvez conseguisse expressar melhor o meu pensamento”. Ora a sua língua materna, segundo numerosos testemunhos, era o

linguajar de Camões. Baruch percebia com certeza o exponencial poder da nossa língua, nomeadamente a distinção entre “ser” e “estar” e todos os possíveis derivados desta equação, para a riqueza de um vocabulário filosófico. Acima de tudo, a liberdade. Do mesmo modo que Epicteto, o filósofo-escravo, garantia ao senhor que ele não era em realidade o seu amo mesmo que lhe pudesse partir uma perna (o que o amo fez), também Espinosa não considerava que a liberdade é algo que alguém pode dar ou permitir. Não: a liberdade é intrínseca, imanente, ao ser humano, quer para tal se arranjem argumentos que incluam ou excluam a divindade. Espinosa, ao contrário de seu mestre Uriel da Costa (outro português), recusou renegar as suas ideias quando tal foi exigido pela sinagoga portuguesa de Amsterdão. Uriel aceitou a punição dos crentes, permitindo que todos pisassem o seu corpo estendido na entrada do templo. Baruch preferiu mudar de cidade e cingirse a um estóico recolhimento, onde a liberdade

proporcionada pela República o protegia da fúria das várias Igrejas. Poliu lentes toda a vida, como se esse trabalho fosse uma metáfora do seu percurso intelectual, no qual se exigia um constante aperfeiçoamento, decorrente do uso da Razão e da Inteligência, nunca contrariando os seus ditames, mesmo quando a sua vida correu perigo. Curiosamente, não foi nenhuma das globalizações que imprimiu nos povos o conceito de liberdade. Este já lá estava. Como estava a música, a poesia, as expressões plásticas e a utopia. É isso que, quase candidamente, Espinosa explica. Que a liberdade não pertence a este ou àquele regime, que ninguém a outorgou à Humanidade, não é uma dádiva dos deuses ou de Deus. A liberdade é parte interior da nossa condição e isto é incontornável. Hoje este discurso faz mais sentido que nunca. No Egipto, na Tunísia, em Portugal e na China. Por nós, aqui estamos e – ó demência das demências! – ela continua a passar por aqui.

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PREFÁCIO do Tratado das Autoridades Teológica e Política Bento de Espinosa

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e os homens pudessem, em todas as circunstâncias, decidir pelo seguro, ou se a fortuna se lhes mostrasse sempre favorável, jamais seriam vitimas da superstição. Mas, como se encontram frequentemente perante tais dificuldades que não sabem que decisão hão-de tomar, e como os incertos benefícios da fortuna que desenfreadamente cobiçam os fazem oscilar, a maioria das vezes, entre a esperança e o medo, estão sempre prontos a acreditar seja no que for:, se têm dúvidas, deixam-se levar com a maior das facilidades para aqui ou para ali; se hesitam, sobressaltados pela esperança e pelo medo em simultâneo, ainda é pior; porém, se estão confiantes, ficam logo inchados de orgulho e presunção. Julgo que toda a gente sabe que é assim, não obstante eu estar convicto de que a maioria dos homens se ignoram a si próprios. Não há, com efeito, ninguém que tenha vivido entre os homens que não se tenha dado conta de que a maior parte deles, se estão em maré de prosperidade, por mais ignorantes que sejam, ostentam uma tal sabedoria que até se sentem ofendidos se alguém lhes quer dar um conselho. Todavia, se estão na adversidade, já não sabem para onde se virar, suplicam o conselho de quem quer que seja e não há nada que se lhes diga, por mais frívolo, absurdo ou inútil, que eles não sigam. Depois, sempre por motivos insignificantes, voltam de novo a esperar melhores dias ou a temer desgraças ainda piores. Se acontece, quando estão com medo, qualquer coisa que lhes faz lembrar um bem ou um mal por que já passaram, julgam que é o prenúncio da felicidade ou da infelicidade e chamam-lhe, por isso, um presságio favorável ou funesto, apesar de já terem se enganado centenas de vezes. Se vêem, pasmados, algo de insólito, crêem que se trata de um prodígio que lhes revela a cólera dos deuses ou do Númem sagrado, pelo que vão aplacar com sacrifícios e promessas tais prodígios constitui um crime aos olhos desses homens submergidos na superstição e adversários da religião, que inventam mil e uma coisas e interpretam a nature-

za da maneira mais extravagante, como se toda ela delirasse ao mesmo tempo que eles. Tanto assim é, que quem nós vemos ser escravo de todas as superstições são sobretudo os que desejam sem moderação os bens incertos. Todos eles, designadamente quando correm perigo e não conseguem por si próprios salvarse, imploram o auxílio divino com promessas e lágrimas de mulher, dizem que a razão é cega porque não pode indicarlhes um caminho seguro em direcção às coisas vãs que desejam, ou que é inútil a sabedoria humana; em contrapartida, os devaneios da imaginação, os sonhos e as extravagâncias infantis, parecemlhes respostas divinas. Até julgam que Deus sente aversão pelos sábios e que os seus decretos não estão inscritos na mente, mas sim nas entranhas dos animais, ou que são os loucos, os insensatos, as aves, quem por instinto ou sopro divino os revela. A que ponto o medo ensandece os homens! O medo é a causa que origina, conserva e alimenta a superstição. (...) Se esta é a causa da superstição, há que concluir, primeiro, que todos os

é difícil conseguir que eles persistam numa só e na mesma superstição. Precisamente porque o vulgo persiste na sua miséria é que nunca está por muito tempo tranquilo e só lhe agrada o que é novidade e o que ainda não lhe enganou, inconstância essa que tem sido a causa de inumeráveis tumultos e guerras atrozes. Na verdade, não há nada mais eficaz que a superstição para governar as multidões. Por isso é que estas são facilmente levadas, sob a capa da religião, ora a adorar os reis como se fossem deuses, ora a execrá-los e a detestálos como se fossem uma peste para todo género humano. Foi, de resto, para prevenir este perigo que houve sempre o cuidado de rodear a religião, fosse ela verdadeira ou falsa, de culto e aparato, de modo a que se revestisse da maior gravidade e fosse escrupulosamente observada por todos. Entre os turcos, isto foi tão bem sucedido que até o simples discutir eles consideram crime, deixando a inteligência de cada um ocupada com tantos preconceitos que não há mais lugar na mente para a recta razão, nem sequer para se duvidar.

Numa República livre, seria impossível conceber ou tentar algo de mais deplorável, já que repugna em absoluto à liberdade comum sufocar com preconceitos ou coartar de algum modo o livre discernimento de cada um. homens lhe estão naturalmente sujeitos (digam o que disserem os que julgam que ela deriva do fato de os mortais terem todos uma qualquer ideia, mais ou menos confusa, da divindade); em segundo lugar, que ela deve ser extremamente variável e inconstante, como todas as ilusões da mente e os acessos de furor; e, por último, que só a esperança, o ódio, a cólera e a fraude podem fazer com que subsista, pois não provém da razão, mas unicamente da paixão, e da paixão mais eficiente. Daí que seja tão fácil os homens acabarem vítimas de superstição de toda espécie quanto

Se, efectivamente, o grande segredo do regime monárquico e aquilo que acima de tudo lhes interessa é manter os homens enganados e disfarçar, sob o especioso nome de religião, o medo em que devem ser contidos para que combatam pela servidão como se fosse pela salvação e acreditem que não é vergonhoso, mas sumamente honroso, derramar o sangue e a vida pela vaidade de um só homem, em contrapartida, numa República livre, seria impossível conceber ou tentar algo de mais deplorável, já que repugna em absoluto à liberdade comum sufocar com pre-

conceitos ou coarctar de algum modo o livre discernimento de cada um. E no que diz respeito aos conflitos desencadeados a pretexto da religião, é evidente que eles surgem unicamente porque se estabelecem leis que concernem matéria de especulação e porque as opiniões são consideradas crime e, como tal, condenadas. Os seus defensores e prosélitos são, por isso, imolados, não ao bem público, mas apenas ao ódio e à crueldade dos adversários. Porque se o direito estatal fosse de modo a que os factos fossem incrimináveis, mas as palavras fossem impunes, semelhantes conflitos não poderiam jamais invocar qualquer espécie de direito, nem as controvérsias se converteriam em sedições. E já que nos coube em sorte esta rara felicidade de viver numa República, onde se concede a cada um inteira liberdade de pensar e de honrar a Deus como lhe aprouver e onde não há nada mais estimado nem mais agradável do que a liberdade, pareceu-me que não seria tarefa ingrata ou inútil mostrar que esta liberdade não só é compatível com a liberdade e paz social, como inclusivamente, não pode ser abolida, sem se abolir, ao mesmo tempo, a paz social e a piedade. (...) Inúmeras vezes fiquei espantado por ver homens que se orgulham por professar a religião cristã, ou seja o amor a alegria, a paz, a continência e a lealdade para com todos, combateremse com tal ferocidade e manifestarem quotidianamente uns para com os outros um ódio tão exacerbado que se torna mais fácil reconhecer a sua fé por estes do que por aqueles sentimentos. De facto, há muito que as coisas chegaram a um ponto tal que é quase impossível saber se alguém é cristão, turco, judeu ou pagão, a não ser pelo seu vestuário, pelo culto que pratica, por frequentar esta ou aquela igreja, ou finalmente porque perfilha esta ou aquela opinião e costuma jurar pelas palavras deste ou daquele mestre. Quanto ao resto, todos levam a mesma vida. Procurando então a causa deste mal, conclui que ele se deve, sem sombra de dúvidas, a considerarem-se os cargos da Igreja como títulos de nobreza, os seus ofícios como benefícios, e consistir a religião, para o vulgo, em cumular de honras os pastores. Com efeito, assim que começou na Igreja este abuso, logo se apoderou dos piores homens um enorme desejo de exercerem os sagrados ofícios, logo o amor de propagar a divina religião se transformou em sórdida avareza e ambição; de tal maneira que o próprio templo degenerou em teatro onde não mais se veneravam doutores da Igreja mas oradores que, em vez de quererem instruir o povo, queriam era fazer-se admirar e censurar publicamente os dissidentes, não ensinando senão coisas novas e insólitas para deixarem o vulgo maravilhado. Daí o surgirem grandes contendas, invejas e


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ódio, que nem o correr do tempo foi capaz de apagar. Não admira, pois, que da antiga religião não ficasse nada a não ser o culto externo (com que o vulgo mais parece adular a Deus do que adorá-lo) e a fé esteja reduzida a crendices e preconceitos. E que preconceitos estes, que de racionais transformaram os homens em irracionais, que lhes tolhem por completo o livre exercício da razão e a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, parecendo expressamente inventados para apagar em definitivo a luz do entendimento! A piedade, ó Deus imortal, e a religião consistem em mistérios absurdos e são os que condenam em absoluto a razão, os que tem aversão e rejeitam o entendimento como coisa corrompida por natureza, são esses, suprema iniquidade, que passam por possuir a luz divina. Certamente que, se eles tivessem uma centelha que fosse da luz divina, não andariam tão cheios de soberba idiota e aprenderiam a honrar a Deus e distinguir-se-iam uns dos

estes escolhidos por ele, isto é, se foi por terem pensamentos sublimes acerca da natureza e de Deus ou em virtude apenas da sua piedade. Resolvidas estas questões, facilmente pude concluir que a autoridade dos profetas só tem algum peso no que diz respeito à vida prática e à verdadeira virtude. Quanto ao resto, pouco nos interessam suas opiniões. Foi a partir daí que tentei averiguar por que motivo se designaram os hebreus por eleitos de Deus. E como visse que isto signifique apenas que Deus escolheu para eles uma certa região do mundo onde pudessem viver em segurança e comodidade, conclui que as leis reveladas por Deus a Moisés não eram senão o direito particular do Estado hebraico e, por conseguinte, ninguém, a não ser os judeus, lhe estava sujeito. E mesmo estes, só enquanto durasse o referido Estado. Depois, para saber se podia concluir da Escritura que o entendimento humano está por natureza corrompido, fui investigar a religião católica, ou seja, a lei divina revelada

Essa mesma liberdade pode e deve ser concedida, sem que isso lese a paz social e o direito das autoridades soberanas, e que, pelo contrário, não pode ser suprimida sem graves riscos para a paz e em detrimento de todo o Estado.

outros pelo amor, da mesma forma que se distinguem agora pelo ódio. Nem perseguiriam com tanta animosidade os que não partilham da suas opiniões; pelo contrário, sentiriam piedades deles ( se é, de facto a salvação alheia e não a própria fortuna que os preocupa). Além disso, se realmente tivessem alguma luz divina, ela ver-se-ia pela sua doutrina. (...) Reflectindo sobre tudo isto - a saber, que a luz natural é, não só desprezada, mas até condenada por muitos como fonte de impiedade; que as invenções humanas passam por documentos divinos e a crendice por fé; que as controvérsias dos filósofos desencadeiam na Igreja e no Estado as mais vivas paixões, originando os ódios e discórdias mais violentos, que facilmente arrastam os homens para sublevações e tantas outras coisas que seria longo descrever aqui- fiquei seriamente decidido a empreender um novo e inteiramente livre exame da Escritura, recusando-me a afirmar ou admitir como sua doutrina tudo o que dela não ressalte com toda a clareza. Com esta precaução, elaborei um método para interpretar os Livros Sagrados e, uma vez na posse dele, comecei por perguntar, antes de mais, o que é a Profecia, como se revelou Deus aos profetas, porque foram

a todo género humano pelos profetas e pelos apóstolos, seria diferente daquela que a luz natural também ensina: e em seguida, se os milagres acontecem ao arrepio da ordem natural e provam a existência e a providência de Deus de maneira mais certa e mais clara do que as coisas que entendemos clara e distintamente pelas suas causas primeiras. Mas como não encontrasse, naquilo que a Escritura expressamente ensina, nada que não tivesse de acordo com o entendimento ou lhe repugnasse, e como, por outro lado, visse que os profetas só ensinavam coisas extremamente simples e acessíveis a todos, além de recorrerem ao estilo e à argumentação que melhor pudessem incitar os ânimos da multidão à devoção para com Deus, fiquei completamente persuadido de que a Escritura deixa a razão em absoluta liberdade e não tem nada em comum com Filosofia, assentando, pelo contrário, cada uma delas nas suas próprias bases. (...) Passo em seguida a analisar os preconceitos que surgem pelo facto de o vulgo (sujeito à superstição e preferindo relíquias do passado à própria eternidade) adorar os livros da Escritura em vez do próprio Verbo de Deus. Depois, mostro que o Verbo de Deus revelado não consiste em determinado número de livros, mas sim num conceito sim-

ples da mente divina revelada aos profetas, a saber, obedecer inteiramente a Deus, praticando a justiça e a caridade. E provo que esta doutrina é ensinada na Escritura de maneira adequada ao poder da compreensão e às opiniões daqueles a quem os profetas e os apóstolos costumavam pregar a palavra de Deus, de modo a que os homens a pudessem aceitar integralmente e sem qualquer repugnância. Uma vez assim apresentados os fundamentos da fé, concluo, finalmente, que o conhecimento revelado não tem outra finalidade senão a obediência e que, tanto pela finalidade como pelos fundamentos e pelo método, ele é completamente diferente do conhecimento natural, não tendo nada em comum com este, pois cada ocupa a sua área sem que o outro se insurja e sem que nenhum tenha de considerar subordinado. Como, além, disso, os homens são por temperamento bastante diferentes, e como uns preferem esta, outros aquela opinião, inspirando a uns sentimentos religiosos o que a outros só provoca escárnio, concluo ser necessário deixar a cada um a liberdade de julgar e a possibilidade de interpretar os fundamentos da fé segundo a sua maneira de ser, e não se ajuizar de ninguém, a não ser pelas suas acções, conforme piedosas ou

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ímpias. Só assim poderão todos obedecer a Deus de livre e inteira vontade e dar valor apenas à justiça e a caridade. Após evidenciar a liberdade que a lei divina revelada concede a cada um, passo a outro aspecto da questão, o qual consiste em mostrar que essa mesma liberdade pode e deve ser concedida, sem que isso lese a paz social e o direito das autoridades soberanas, e que, pelo contrário, não pode ser suprimida sem graves riscos para a paz e em detrimento de todo o Estado. Para demonstrar esse ponto, começo, porém, pelo direito natural do indivíduo, que vai até onde for o seu desejo e o seu poder, sem que alguém esteja, com base em tal direito, obrigado a viver a mando de outrem e sendo, em vez disso, cada um o responsável pela sua própria liberdade. A seguir, mostro que, em realidade, ninguém renuncia a esse direito, a não ser que transfira para outrem o poder de se defender, e que, nesse caso, aquele para quem todos transferiram o direito de viver à sua vontade e, ao mesmo tempo, o poder de se defenderem possui necessariamente um direito natural absoluto. Demonstro então que os que detêm o poder supremo a tudo o que estiver em seu poder e são os únicos responsáveis pelo direito e pela liberdade, ao passo que os outros devem fazer tudo de acordo apenas com o que eles determinam. Todavia, como ninguém pode privar-se a um ponto tal do seu poder de se defender que deixasse de ser um homem, resulta daí que ninguém pode ser absolutamente privado do seu direito natural e que os súbditos mantêm, quase como um direito da natureza, alguns privilégios que lhes não pode ser recusado sem grave perigo para o Estado e que, ou lhes são tacitamente concedidos, ou eles estipulam expressamente com aqueles que detém o poder. (...) É isto, leitor filósofo, o que submeto aqui à tua apreciação, na esperança de não ser mal acolhido, tendo em conta a importância e a utilidade do tema. (...) Não convido, no entanto, o vulgo, nem aqueles que compartilham das suas paixões, a lerem este livro. É preferível que o desprezem a que me aborreçam com interpretações tendenciosas, como costumam fazer sempre, não aproveitando eles nem deixando que aproveitem os que poderiam filosofar mais livremente se a tanto os não impedisse o julgarem que a razão deve ser serva da teologia: porque a estes, ainda tenho, efectivamente, esperança de que a obra venha a ser de extrema utilidade. E posto que a muitos talvez falte o vagar ou a paciência para ler tudo, vejome obrigado a prevenir, aqui como no fim deste tratado, que não escrevi nada que de bom grado não submeta ao exame das autoridades soberanas da minha Pátria: se elas acharem que algo do que eu digo vai contra as leis deste país ou é prejudicial aos interesses da colectividade, retiro o que disse. Sei que sou homem e poderei ter-me enganado; mas fiz todo possível para que isso não acontecesse e, sobretudo, para não escrever nada que não esteja em conformidade absoluta com as leis da pátria, a piedade e os bons costumes.


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WEN ZI 文子

A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS

O espaço entre o céu e a terra é o corpo de um ser, tudo no universo é a forma de um ser. Capítulo 135 Lao Tzu disse: Yin e yang moldam miríades de seres – todos nascidos de uma energia. Quando os corações dos que estão alto e dos que estão baixo se apartam, a energia evapora-se. Quando os soberanos e os ministros não se encontram em harmonia, os cinco cereais não amadurecem. Frio na Primavera, flores no Outono, trovão no Inverno e geada no Verão são os resultados de energia destrutiva. O espaço entre o céu e a terra é o corpo de um ser, tudo no universo é a forma de um ser. Assim, aqueles que compreendem a sua natureza essencial não podem ser ameaçados pelo céu e pela terra. Aqueles que compreendem as correspondências não podem ser confundidos por coisas estranhas. Os sábios conhecem o remoto através do próximo, considerando miríades de léguas uma e a mesma coisa. Quando a energia se evapora no céu e na terra, a cortesia, a justiça, a modéstia e a consciência não se estabelecem e todos abusam uns dos outros – no seio do vago indistinto ainda estão presentes violência e crueldade. Quando a modéstia e a consciência declinam, a sociedade acaba por degenerar. E então surge muita procura e pouca oferta, todos trabalhando duramente sem conseguirem ganhar a vida o bastante. A populaça é pobre e miserável e surgem ira e conflito. É por isto que a humanidade é valorizada. As pessoas são vis e desiguais, grupos e facções pelejam por seus interesses, os corações regurgitam maquinações e elaborados enganos. É por isto que a justiça é valorizada. Homens e mulheres se misturam indiscriminadamente. É por isto que a cortesia é valorizada. O sentido da essência e da vida é desordeiro, desarmonioso quando pressionado pela necessidade. É por isto que a música é valorizada.. Assim, a humanidade, a justiça, a cortesia e a música são meios de remediar a decadência – mas não são caminho para um governo abarcante. Se fores realmente capaz de empregar a iluminação espiritual para apaziguar a terra, de modo a que a mente regresse à sua origem, a natureza do povo será boa. Quando a natureza do povo é boa, o yin e yang do céu e da terra concordam com ela e a protegem. Então, há bens suficientes e povo se encontra bem aprovisionado. Atitudes de ganância, maldade, ira e conflito não podem nele surgir. A humanidade e a justiça não são empregues, mas a Via e a sua virtude apaziguam a terra e ninguém se dá à ostentação. Assim, só depois da virtude declinar se veste o povo de humanidade e justiça. Só depois de perdida a harmonia embeleza o povo a música. Só depois do comportamento social se tornar dissoluto adorna o povo sua aparência. Por isso, só depois de conheceres a virtude da Via saberás que de nada vale praticar a humanidade e a justiça; só depois de conheceres a humanidade e a justiça saberás que de nada vale cultivar ritos e música. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han. A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.


Viúvo Falhado Pu song ling (1640-1715)

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l e t r a s s í n i cas

Sou o fogo de luz moribunda que o duende disputa aos pirilampos de outono.

Gravemente doente, Geng, o 18º, de Xincheng, chegou à conclusão de que não se levantaria mais. Abriu o seu coração à esposa: “ A nossa separação definitiva está para breve. Só de ti depende manter a viuvez ou tornar a casar depois da minha morte. Peço que me faças saber a tua vontade.” A esposa guardava silêncio. Ele insistia. Ela não dizia palavra. Ele acrescentou: “ Sem dúvida que seria melhor permanecer viúva, mas tornar a casar está na natureza das coisas. Fala claramente: não me sentirei ferido. Vou separar-me de ti: se guardares viuvez o meu coração encontrará reconforto. Tornar a casar seria a ruptura, eu te esqueceria. - Não temos mais provisões em casa, replicou num tom desolado a mulher, mesmo em vida não conseguias encher a dispensa. Com que poderia eu manter a viuvez?” Ao escutar estas palavras, Geng agarrou-lhe firmemente o braço e, num derradeiro rosnido murmurou-lhe: “cruel” e despachou a alma. Era impossível abrir-lhe a mão. A mulher desatou a soluçar. A gente da casa acudiu. Dois homens abriram-lhe os dedos, mas apenas um a um e de viva força. Inconsciente da sua própria morte, Geng viu sair de sua casa uma dezena de pequenas viaturas, cada uma levando dez pessoas e tendo, colados dos lados, uns quadrados de papel onde figuravam listas de nomes. Ao vê-lo, um dos cocheiros instou-o a subir. Geng constatou que no interior da carruagem já se encontravam nove viajantes e que ele seria o décimo. Viu também que o seu nome estava no fim da lista. A carruagem avançava aos trambolhões e com um ruído ensurdecedor. Mas para onde? Geng não fazia a mínima ideia. Pouco depois chegaram algures. Escutou as pessoas exclamar: “ É a terra da nostalgia do país natal!”. Geng perguntava-se o que significaria este nome. Depois, ouviu o cocheiro dizer fortuitamente: “Já decapitámos três hoje.” Novo choque para Geng, que prestava agora uma atenção maior às conversas: tratavam-se sobretudo de coisas do outro mundo. “ Ter-me-ei transformado em fantasma?” Por fim começava a perceber. De súbito, compreendeu que já não tinha de se preocupar com a família, excepto a sua velha mãe privada de qualquer sustento depois de a sua esposa se tornar a casar. Este pensamento arrancou-lhe lágrimas involuntárias. Algum tempo depois, viu um terraço de várias toesas de altura em redor do qual circulava uma turba de viajantes. Aqueles que tinham uma saca à cabeça e grilhetas nos pés subiam e desciam, sacudidos por soluços. Escutando as pessoas, ficou a saber que se tratava do Terraço do Último Olhar sobre a terra natal, de que tinha ouvido falar em vida. Ao chegar perto desta construção, todos desceram da carruagem mas a confusão instalou-se quando se puseram a subir

para dentro novamente. Chicoteando uns e pontapeando outros, o cocheiro apenas deixou Geng em paz, instando-o a subir lá acima. Só atingiu o topo do terraço depois de vencer inúmeras curvas. Levantando a cabeça, vasculhava a distância quando viu diante dos olhos as portas e pátios da sua casa, embora o interior dos quartos permanecesse indistinto, como numa bruma. Uma insuportável tristeza o assaltava. Voltou-se para ver um homem que lhe perguntou o seu nome. . Geng deu-lhe todos os detalhes. O homem revelou que era um artesão da região de Donghai (1). Vendo como Geng chorava, perguntou-lhe o que o preocupava tanto. Geng tudo lhe contou. O artesão propôs-lhe que fugissem, saltando do terraço. Geng temia ser perseguido pelas autoridades infernais. O artesão assegurou-lhe que nada aconteceria. Mas Geng preocupava-se também com a queda de uma tal altura. O artesão convidou-o a segui-lo sem se preocupar com nada. Saltou primeiro. Geng seguiu-o e tocaram os dois o chão sem problemas, felizes de nada sentirem. Geng encontrou a carruagem estacionada no mesmo sítio. Puseram-se os dois a correr quando se lembrou que o seu nome estava ainda na lista lá colada. Talvez isso o denunciasse? Fez meia volta e, com os dedos molhados de saliva, apagou-o e voltou a correr para o seu companheiro, ofegando de bocarra aberta. Em breve, chegava à entrada da aldeia. O artesão acompanhou-o até ao quarto onde, de repente, viu o seu próprio cadáver e acordou, regressando à vida! Sentia-se estafado e sedento. “ Água!”, gritou. As gentes da casa, assustadas, levaram-lhe de beber. Geng deve ter bebido mais de cem litros. De súbito, soergueu-se e, com forçados gestos de boa educação, saiu. Ao regressar, deixou-se tombar exausto e imóvel. Este estranho comportamento desconcertava toda a gente de tal modo que se interrogavam se ainda estaria vivo. O facto é que não detectavam qualquer outra anomalia. Geng contou tudo o que lhe sucedera quando, mais tarde, lhe fizeram perguntas mais precisas. -“ Porque tornaste a sair? - Para dizer adeus ao artesão. Porque bebeste tanta água? - Bebi por dois. Por mim e pelo artesão.” Serviram-lhe um caldo fortificante e, em poucos dias, estava recomposto. Tomou uma tal aversão à sua esposa que nunca mais partilhou o leito com ela. NOTAS: 1. Actual região do distrito de Tancheng no Shandong. Tradução de Rui Cascais

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No primeiro “Ensaio Sobre a Visão” vamos ensaiar Macau. Aqui no complexo terreno percorrido pelos fotógrafos do território. Uma zona, uma rua, um edifício. A água que bebemos dentro de uma mão cheia de imagens. A Fotografia sem explicação, para que se compreenda o que é a Cidade. Esta cidade onde vivemos.

e n s a i o so b


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re a v i são

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mercado vermelho

Manuel Cardoso é um fotógrafo macaense que cedo pegou numa máquina e lhe aprendeu os truques todos. Durante quase 30 anos foi fotógrafo oficial do Poder, acompanhando para cá e para lá os últimos governadores portugueses. Hoje, com 62 anos, continua a calcorrear as ruas e os becos que conhece como as palmas das suas mãos. As mãos que nunca largaram a exuberância das suas lentes. Que contagiaram todo o seu olhar. A Cardoso – como é conhecido – oferecemos a zona do Mercado Vermelho.


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p r i m e i r o b a l cão

luz de inverno

Boi Luxo

Offside, 2005,

Jafar Panahi

O núcleo central do filme é como uma peça de teatro. Passa-se num mesmo local e em torno de um conjunto de conversas. A rapariga inocente não consegue entrar no estádio e é levada para uma zona por trás das bancadas onde se encontram outras 4 raparigas vigiadas por um grupo de militares. Cada uma tem uma pequena estória para contar e em todas há um entusiasmo solar e patriótico pelo futebol.

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ntem, dia 10 de Fevereiro de 2011, começou mais uma edição da Berlinale (Festival Internacional de Cinema de Berlim). Entre os vários acontecimentos planeados para o festival conta-se uma série de iniciativas conducentes a chamar a atenção para a situação de Mohammad Rasoulof e Jafar Panahi, este último um dos nomes mais conhecidos da Nova Vaga Iraniana e recipiente do Urso de Prata em 2006 exactamente a propósito do filme aqui em questão. O título do filme, Offside, parece quase uma premonição: a 20 de Dezembro de 2010 Jafar Pahani foi condenado a uma pena de prisão de 6 anos e encontra-se impedido desde então de realizar qualquer filme, escrever argumentos, exercer qualquer actividade política, dar entrevistas à comunicação social e abandonar o Irão durante um período de 20 anos. Mohammad Rasoulof foi também condenado a 6 seis anos de prisão. O regime tem tido ao longo da sua história graus de intenção censória diferentes e é característica vincada e conhecida do cinema iraniano contemporâneo o modo elegante, quase dançante, como tem contornado as suas intolerâncias e não tem desistido de as denunciar. Este vosso jornal, sempre cuidado na permanente ilustração dos seus atentíssimos leitores lembra que se celebra precisamente

hoje, dia 11 de Fevereiro de 2011, o 32º aniversário da Revolução Iraniana. A concepção, montagem, produção e realização de Offside são de Jafar Panahi e a ideia em torno da qual o filme gira é inesquecível: em Teerão um grupo de raparigas dispõem-se a assistir a um importante jogo de futebol entre o Irão e o Barém. Este jogo decide a qualificação ou a desqualificação do Irão para o Campeonato do Mundo de Futebol de 2006, na Alemanha. No Irão as mulheres não podem ir ao futebol. Só disfarçadas de homem algumas bravas iranianas conseguem entrar no estádio. Apercebemo-nos, nas movimentadas cenas que mostram a aproximação ao estádio, que há vários tipos de disfarçadas: as mais profissionais e habituadas e as mais inocentes. A rapariga que começamos por acompanhar é uma inocente e quando a vemos pela primeira vez é também através de um gesto cheio de inocência, através do olhar de um rapaz que descobre com surpresa que uma das passageiras do autocarro que se dirige ao estádio é uma rapariga. A câmara movese, à mão, com um olhar documental, perseguindo o que interessa – o medo e a candura. O filme foi quase todo rodado durante o jogo real e no próprio local, com actores não profissionais. Em redor do estádio e do importante jogo há um clima de suspeição, mercado negro e aproveitamento dos que mostram desvantagens mas Pahani filma tudo isto

com humor e elegância e com uma imparcialidade cuja importância se tornará mais visível com o desenrolar da estória. O núcleo central do filme é como uma peça de teatro. Passa-se num mesmo local e em torno de um conjunto de conversas. A rapariga inocente não consegue entrar no estádio e é levada para uma zona por trás das bancadas onde se encontram outras 4 raparigas vigiadas por um grupo de militares. Cada uma tem uma pequena estória para contar e em todas há um entusiasmo solar e patriótico pelo futebol.

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pequeno espaço em que estas são detidas pelos soldados transforma-se num pequeno campo de futebol que é a imagem do próprio Irão, com as suas defesas e os seus ataques industriosos mas por vezes ineficazes. As cinco miúdas (depois 6 porque se lhes junta uma outra colorida transgressora que se transvestira de soldado) são guardadas por um grupo de soldados, simplórios de aldeia obrigados ao serviço militar, sensíveis aos seus argumentos mas inflexíveis no cumprimento das ordens superiores. Estes quase que se sobrepõem ao interesse que as raparigas protagonistas necessariamente suscitam. É através deles (e não tanto das raparigas urbanas) que nos chega de modo manso o eco dos equívocos que a ignorância promove. É através das suas figuras muito provincia-

nas mas honradas que nos atingem os ventos dos lugares que são longe e das montanhas que ficam para lá da soberba citadina – o imenso Irão. Muitas vezes os soldados não têm resposta para as perguntas atrevidas das miúdas da cidade e, no fundo, aqueles parecem genuinamente preocupados em garantir a decência e a honradez das meninas (que podiam ser suas filhas ou irmãs, como é referido várias vezes) através da intransigente separação dos sexos. Que a presença da câmara se não tenha imposto a tudo isto é um tributo à sua vontade de inocência e à limpeza do programa realista iraniano contemporâneo. Esta acompanha os protagonistas desta pequena estória como se espreitasse por cima dos seus ombros, cautelosa para se não evidenciar mas decidida em não perder nenhum pormenor da estória. Que à medida que a estória evolui evolua também o entendimento mútuo entre as detidas e os militares é um tributo à imensa capacidade de compreensão de Panahi. Ps.: O Irão qualificou-se para o Campeonato do Mundo de Futebol de 2006 mas acabou por perder quaisquer hipóteses de passar à segunda fase após ser derrotado, primeiro pelo México, e depois por Portugal. Conseguiu, no entanto, registar um ponto ao empatar com Angola no seu último jogo. Não se sabe quantas mulheres iranianas assistiram, disfarçadas de homem, ao jogo que decidiu a qualificação.


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terce i ro o u v i d o

Em pena

próximo oriente

Antønio Falcão

A banda sonora de uma longa marcha

Como os Pixies, os Kordan nasceram no berço das drag-queens e nos bares cheios de vida de Porto Rico. Dizem que os cometas duram 80 anos a regressar à Terra para aí acender a sua chama. Este surgiu dez anos depois e deixou cair Arthur, Liz e Gabo nas vibrações dos estrados onde se destruíam com fervor o rock indie por entre as raves mais que longas da ilha das Caraíbas. Ao virar do milénio partem para o continente e espalham-se como uma epidemia, vivendo aqui e ali, de uma sede que se entorna pelos ouvidos. Os anos a passar em flecha. Uma direcção que se toma de um trago. Com o fim da década a chegar juntam-se em Brooklyn e aí surgem com um nome. Na forja trazem a poeira das estrelas, as marcas dos saltos – saltos de tempo, saltos de portos ricos – e vozes que vêm de longe. Uma guitarra, um baixo e um sintetizador. Jake junta-se na bateria, quando começam a gravar. No final de 2008, são escolhidos a dedo e vão com os Cut Copy, uma banda australiana, de Minneapolis a Toronto e de novo a Nova Iorque. No verão do ano seguinte gravam o primeiro EP: Nation Fantasy, do qual recebem louvores da verve especializada. A estreia da banda anuncia o seu idioma e uma fonética marcada por visões futuristas, a uma velocidade captada em fast-forward nas luzes de uma metrópole que não é de tempo nenhum. A que soam os Kordan? A um pouco de New Age, a um pouco de Joy Division, uma electrónica cheia de fado, como uma banda japonesa a chocar na distorção do submundo de Berlim nos anos 80. E as festas e as luzes da discoteca. Esta é a nostalgia de uma época que deixou de existir. Um mundo de influências que se espalha em redor e que continua em queda e que mais uma vez mata a sede, aqui e ali. “Longing” é o termo inglês para aquilo o que não se consegue explicar por palavras: a saudade, como dizem. É este o nome do disco longa duração dos Kordan. Apresentado em 2010, “The Longing” recorre às mesmas teclas que pisam as cordas com os seus saltos, onde já não se vislumbra Porto Rico. Apenas as vozes num corredor sem fim e as pancadas do ruído. São os mesmos hologramas de uma memória que não se quer adaptar à realidade. Que corre sem forma dentro de nós. Uma realidade que não é esta nem a que está para vir. Mas que espera apenas pelo regresso do cometa.

Kordan

Arthur Eisele (voz e guitarras) Gabo Rodriguez (baixo) Liz Reboyras (voz e sintetizador) Jake Chudnow (bateria) Brooklyn City | www.kordan.tv

Hugo Pinto

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Na década que recentemente terminou, foi a armada chinesa de artistas plásticos que impressionou o Mundo. No caso da música, a revolução tem tido menos impacto além fronteiras, mas nem por isso menos força.

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urante dez meses, semana após semana, embarcou-se numa viagem radiofónica seguindo as coordenadas dos novos territórios da música alternativa feita na Ásia. Sempre à procura da nova música num velho Mundo, em busca de um próximo Oriente. Foi esse o mote para as escolhas musicais que ainda perduram no éter cibernético (as 37 edições de “Próximo Oriente” podem ser escutadas aqui: www.mixcloud.com/proximo_oriente/ ou na página electrónica da Rádio Macau), e assim será na colaboração que agora começa com este jornal. Frank Zappa disse uma vez que “falar sobre música é como dançar sobre arquitectura”. Parece difícil, mas não será impossível. No entanto, fazendo das palavras do lendário músico um sábio e avisado conselho, serão evitados por aqui demasiados contorcionismos e malabarismos que desviem a atenção do principal: a música. Para chegar a esse bem essencial propõe-se uma incursão panorâmica aos contextos em que se faz muita da mais excitante música dos nossos dias, trazendo para grande plano os principais actores do que está a acontecer neste nosso próximo Oriente. Mesmo ao mais incauto dos distraídos não deve passar despercebida a efervescência criativa que alastra em todo o Continente Asiático. Na década que recentemente terminou, foi a armada chinesa de artistas plásticos que impressionou o Mundo, tornando-se a face mais visível de novas gerações de talentos de diferentes expressões. No caso da música, a revolução tem tido menos impacto além fronteiras, mas nem por isso menos força. Na República Popular, longe vão os dias em que Cui Jian deixou o lugar de trompetista na Orquestra Sinfónica de Pequim para assumir a paternidade do rock no Império do Meio.

Foi em 1989 que Cui lançou aquele que ficou para a história como o primeiro disco de rock gravado na China: “新 长征路上的摇滚” (“Rock ‘N’ Roll On The New Long March”). Premonitório e auspicioso título. Como nas inúmeras estatísticas do crescimento económico chinês (que entretanto deixaram de espantar), é sem surpresa que vemos hoje que os últimos 20 anos foram um incessante desfiar do imenso novelo do rock e afins, com a multiplicação de bandas e artistas, não só em Pequim e Xangai, mas também nas restantes províncias. Um fenómeno que talvez se explique por ter nascido tardio, como se um gigante desperto de um sono milenar tentasse agora com avidez recuperar o passo e o tempo perdidos. Preservadas as devidas diferenças, há pontos de contacto entre o que acontece actualmente na China e o que acontece noutros países asiáticos que também vivem novas realidades sócio-económicas, como os casos das Filipinas, Indonésia ou Malásia. À margem desta explosão relativamente recente está o Japão. No contexto regional, o País do Sol Nascente tem já uma longa história de movimentos alternativos aos dominantes produtos massificados das indústrias culturais. No Japão, é proverbial a calorosa receptividade de que gozam os produtos culturais estrangeiros, mas mais interessante é verificar como as influências são apropriadas, como o “japanese touch” funciona seguindo o princípio de que “nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. São, portanto, dois os grandes paradigmas que nos guiam à partida para uma viagem rumo ao Próximo Oriente: de um lado, a nova, alternativa e independente China; do outro, o constantemente renovado Japão, país de contrastes profundos, tradicional e moderno, ordeiro e rebelde. No entanto, ambos mais, muito mais, do que se pode dizer numas quantas palavras. Siga a música.


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c i d a d e s i n v i s í ve i s

metrópolis

Tiago Quadros*

Um gato chamado Mimesis C

onsiderado um dos maiores desafios arquitectónicos, a concepção de um museu pode invocar o espaço envolvente, estar condicionada a um edifício preexistente ou constituir oportunidade para a criação de espaços alternativos e surpreendentes, merecedores de maior atenção por parte dos públicos do que o próprio conteúdo acolhido. Pode o conceito arquitectónico sobrepor-se à funcionalidade do museu? Qual a função dos museus na actualidade? Como olhamos para eles? Como os utilizamos? Da autoria de Álvaro Siza, com Carlos Castanheira e Jun Sung Kim, o Museu Mimesis, construído na cidade de Paju, a Noroeste de Seul, nasceu de um gesto. Segundo Carlos Castanheira: “O arquitecto Siza desenhou-o de uma só vez, quase sem tirar o lápis do papel. Recordei-me então de uma história que me contaram há muito tempo… Era uma vez um imperador chinês que gostava muito de gatos e lembrou-se de chamar o pintor mais conceituado do império para lhe desenhar um gato. Ao artista agradou-lhe a ideia e prometeu que iria trabalhar no assunto. Passou um ano e o imperador lembrou-se que o pintor ainda não tinha entregue o desenho do gato. Chamou-o: Qué do gato? Está quase, está quase! disse o artista. Passou mais um ano e outro, e outro, e a cena repetia-se. Passados sete anos a paciência do imperador esgotouse e mandou chamar o pintor. Qué do gato? Já passaram sete anos, prometeste, prometeste e ainda não vi gato nenhum! O pintor pega numa folha de papel de arroz, num tinteiro de tinta da china e num daqueles pincéis que só existem no oriente e... Num gesto elegante e sublime desenha um gato, que não era um gato mas o gato mais belo que jamais foi visto. O imperador ficou extasiado, deslumbrado, e perante tanta beleza, não se esqueceu (coisa que hoje em dia deixou de ser hábito) de perguntar ao artista quanto queria por tão belo desenho. O pintor pediu uma soma que espantou o Imperador. Tanto dinheiro por um desenho que tu fizeste em dois segundos, à minha frente! disse o imperador. Pois é Excelência, mas andei sete anos a desenhar gatos, disse o pobre do pintor.” O volume edificado, definido por superfícies curvas em betão branco, desenvolve- se em torno de um pátio, aberto num dos extremos. “O edifício assume fachadas contidas quando orientado para as construções adjacentes e formas livres na direcção da avenida principal e do rio Hangang, que faz fronteira com a Coreia do Norte. Numa interpretação simbólica, as superfícies curvas que assinalam a entrada parecem receber de braços abertos os visitantes das duas Coreias.” O Museu Mimesis contempla panos de vidro, mais ou menos amplos, no piso térreo, que acolhe a recepção, as áreas de mostras temporárias e a cafetaria, e revela um carácter hermético no mezanino, que recebe os espaços administrativos e a loja

do museu, e no piso superior, que recebe a colecção permanente. A iluminação natural e artificial das áreas expositivas é, na maior superfície, superior e indirecta. Na cave ficam os arquivos e as zonas técnicas, “talvez uma extensão do espaço expositivo, que já é hábito nos museus de Álvaro Siza.” Os interiores são dominados pelo branco, das paredes e do tecto, e pela cor de mel da madeira de carvalho que veste os pavimentos, excepção feita ao piso da entrada, revestido a mármore branco de Estremoz. De acordo com Carlos Castanheira: “O Mimesis é um gato. Um gato enrolado e também aberto, que se espreguiça. Está lá todo, basta ver, rever. Os colaboradores não percebiam, no início, que aquele esquisso, o gato, era, é um edifício. Eu já vi muitos desenhos de gatos, deslumbro-me sempre, não me habituo, quero ver mais gatos, mais esquissos de gatos, pois já se passaram muitos sete anos.” Mimesis é destinado a uma colecção particular de Arte Contemporânea. Instala-se a suspeita de que o fenómeno dos museus enquanto edifícios de arte se reduz à sua – espectacular – concha arquitectónica que, de acordo com uma moda recente, é tratada como arte, como uma escultura. Teremos regressado à psicofísica, que Ozenfant e Jeanneret usaram como ponto de partida, sob o título Sur la Plastique, em que as estruturas arquitectónicas actuam sobre a alma humana com uma precisão mecânica? E onde fica a arte? É evidente que o edifício museu enquanto “catedral dos nossos dias” e o museu enquanto instituição dedicada à arte representam dois universos distintos. Também neste caso funcionam os mecanismos da oferta e da procura. E o que terá provocado este boom de museus? No mínimo é questionável se a proliferação de museus se justifica de facto – ou exclusivamente – pelo fluxo de visitantes e pelo interesse pela arte. “A arquitectura de Siza não tem o carácter auto-referente do minimalismo, está próxima dos problemas, sugere-se cheia de nervo existencial. É, também como resultado da pressão historicista dos anos 80, uma arquitectura multipolar embora nunca explicitamente ecléctica ou resultante de qualquer colage.” Na Coreia do Sul, “à margem mas centralmente”, como refere Jorge Figueira, Álvaro Siza mantém-se fiel aos pressupostos ideológicos que determinam o processo histórico da arquitectura moderna. Siza permite-se integrar as “dúvidas” no projecto, dando à gramática moderna matizes e nuances que lhe ampliam o alcance contextual e identitário. Sobre Siza, Távora disse um dia que “desenhava como um anjo”. Sobre Mimesis dir-se-ia que Siza eleva e suspende, fazendo o mundo gravitar para o interior da sua arquitectura. *Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa


A volta ao dia em oitenta mundos

Carlos Picassinos

Não é de espantar o facto do comércio paralelo de alfarrabistas florescer. É porque quem os frequenta não é, apenas, um bando caído de nostálgicos vencidos da literatura

Os livros ensinam a cair L

embro-me do filme, e já agora do romance de Ray Bradbury, cada vez que entro num alfarrabista, frequento uma feira de livros usados ou me deixo enganar pelas pequenas tendas de livros subterrâneas que as editoras organizaram em várias estações do metropolitano de Lisboa como forma de escoar as sobras e os excessos armazenados. Lembro-me dessa utopia negativa de Bradbury/Truffaut como sinal de homenagem a estas casas que, apesar dos tempos, sempre resistem e conseguem fixar uma turba de clientes que buscam ali o que já cada vez menos conseguem nas insuportáveis multinacionais do livro a funcionar em tudo o que é centro comercial do Minho ao Algarve. Claro que aqueles pequenos templos com perfume a papel velho e usado vão fazendo caminho e negócio à custa desta espécie de saudosismo cultural ou conservadorismo cultural, como também já lhe ouvi chamar, de quem despreza a banalidade mercantil que assaltou as livrarias convencionais. Certo que as grandes superfícies são ainda – e como não? - o monopólio de novidades e actualidades indispensáveis a quem pretende estar a par do que se vai produzindo no ensaio, no romance, na poesia ou na biografia, por exemplo. Não é de espantar o facto deste comércio paralelo de alfarrabistas, mercados e bancas de metro conseguir, apesar de tudo, florescer. É porque quem os frequenta não é, apenas, um bando caído

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à super f í c i e

de nostálgicos vencidos da literatura, mas a reserva de uma cultura e civilização que ou era livresca ou não era. Não se trata de qualquer presunção ou elitismo despropositado mas simplemesmente de gente que encontra nestes espaços, semi-secretos ou subterrâneos, um qualquer espírito do lugar que nas grandes superfícies comerciais, ou mesmo, em casas ainda vagamente reputadas, se perdeu irremediavelmente. Além de pechinchas ou exemplares únicos. O passeio a antiquários vale pelo prazer da escrita antiga, do perfume amarelo, da edição rara ou fora de catálogo. Um valor fetichista compensado, porém, no ponto de fuga que esta prática significa de um mercado cada vez mais avesso à publicação de grandes (e pequenos) textos estruturadores do saber e do conhecimento, da sensibilidade ou da educação sentimental, movido que está pelo singelo critério da economia. Foi para capitalizar este segmento de leitores que a editoras decidiram descer ao metro. Apesar do aspecto desolador daqueles espaços, eles não deixam de ser uma epifânia feliz para o apressado viajante urbano que, incauto e suspenso nas alfições do dia, se pode redimir naquele mar de letras esquecidas. Na verdade, raramente o faz. Os clientes são escassos. É pena porque, tal como nos alfarrabistas lá na superfície, também estes prisioneiros do subsolo acumulam, separando o trigo do joio, farrapos de textos fabulosos. Não é preciso mencionar os monstros universais, os surrealistas, os Pachecos que ali secretamente convivem; ou as grandes e pouco lidas biografias de outro grande como Sartre escrita por um

menor que o pretende igualar, como Bernard Henri-Levi; nem falar dos Borges daqueles livros de capa negra, forma estranha e página azul, ou das letras revolucionárias de editoras perdidas lá atrás como a Ulmeiro, ou da Celta e da Moraes. Muitas vezes basta escolher um pequeno livro, ao acaso, como me aconteceu com “Urzes” de Manuel Hermínio Monteiro, para constatar a maravilha de alguns desses textos do subterrâneo. “Urzes” reúne farrapos de dias passados, crónicas de mais ou menos duas décadas de vida do antigo editor da Assírio&Alvim. E basta observar os magníficos nomes dos capítulos em que o livro se vai dissolvendo: “Altas Giestas Brancas”, “Grilos, Ralos e Noitibós”, “Japoneiras”, ou “Jacarandás, Madressilvas e Jasmins”. Uma escrita elegante e quase sempre cheia na defesa dos livros, na admiração por escritores e poetas; prosas perfumadas de mulheres, cidades e campos do Alentejo, da Beira ou do Minho, povoados de letras telúricas. E Lisboa, quantas Lisboas?! Há ali tiradas inebriantes. Frases assim que resgatam: “Disseste cheira bem. Que charuto é esse? E eu nada. Silêncio. Na verdade, por melhores que sejam as suas qualidades, o que é um fumo de um qualquer charuto ante um grande amor? Talvez a leve penugem de um anjo que docemente se solta e suspende para poisar no coração dos amantes”. Bastariam letras como estas urzes. Ou aquelas outras de Luíza Neto Jorge: “O poema ensina a cair/ sobre os vários solos/desde perder o chão repentino sobre os pés como se perde os sentidos numa queda de amor...”. Bastaria o poema ensinar a cair e estaria o dia completo.

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Caligae Sofia Pinto Correia Melo Mil passos dou até chegar a ti. E mais mil até atravessar o céu. Outros mil e avanço. Mil passos até ao rio. Homem dizem. Mil passos percorro de sandálias já milenares. Atravesso a ponte derrubada para que o inimigo não atravesse o rio. Homem dizem. Duas pontes. Muitas outras. Pedras marcadas pelo tempo. Atravesso o planalto. O pasto. O bosque. Por cima de mim as folhas de bronze do Outono na província murmuram canções antigas. Bronze na minha bolsa. Bronze na minha pele de sol e lua no caminho desde o coração do império. Até aqui. Até a ti. Percorro os mil passos que faltam. Com as mãos tacteio as letras na pedra esculpidas a maço, doridas, intemporais que dizem mais mil passos e mais palavras. Daqui a ti são mais mil passos. Casas de pedra. Ficarei aqui esta noite e outras que virão. Levarei dias e mais dias e noites e mil passos e mil passos mais até ti. Levo bronze na minha bolsa, já to disse e uma missiva vinda de longe, do coração do império. A minha vista abarca agora o rio, as aldeias, a estalagem. Os cavalos, os caminhantes vão a meu lado. Vêm. Vão. Mil passos e chego mais perto. Vi as minas, as cidades, os monumentos. Vi pedras e pedras e pedras. Vi palavras nelas. Um novo caminho. Uma nova era. Quando chegar a ti. Depois de mil passos mais, beijarei o seio de bronze e descansarei no teu alpendre, dar-te-ei notícias do império mas regressarei por este mesmo caminho. Esta estrada sinuosa mas hábil. Engenhosa e bela. Regressarei pelos séculos, mil passos. Mil anos. E mais mil. E chegarei a ti. Com pó nas sandálias já milenares, folhas de bronze no cabelo e na bolsa e palavras doridas de pedra. Quase no final da terra, quase no final do império porque ele é quase toda a terra, chegarei. A ti. A Geira ou Via Nova, era a Estrada Militar Romana número XVII do Itinerário Antonino, que ligava Bracara Augusta a Astorga. A sua construção data do século III e dos seus iniciais trezentos quilómetros, restam trinta intactos no Parque Nacional Peneda-Gerês, propostos a Património da Humanidade. Os Marcos Miliários, ao longo de todo o caminho ainda lá se encontram. Na pedra, estão esculpidas as indicações dos domínios e épocas dos imperadores, número das estações e as distâncias a Roma. Distam uns dos outros mil passos, cerca de mil e quinhentos metros. [Sofia é arqueogenealogista na Milha XXXII]

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Outros anjos, outras histórias Rodrigo Barros «We must destroy the aesthetic consciousness if we want to have access to the truth of art.» Jean Grondin in The philosophy of Gadamer Durante a licenciatura em antropologia veio-me parar às mãos um texto de Jean Grondin sobre Gadamer. Aí dei com a frase acima citada que me interrogava e seduzia. Se à época não sabia bem o que me estava a dizer, intuitivamente transcrevia-a para um pequeno bloco de capa dura. «Temos que destruir a consciência estética se queremos aceder à verdade da arte.» No essencial, esta frase soava-me bem. Era uma bela frase. Intuitivamente parecia-me haver ali algo de muito importante que eu não percebia muito bem. Chego ao presente e embarco num mestrado de dois anos. Qual Ismael a bordo do Pequod reencontro com esperança e algum temor o mesmo professor que perseguia a reformulação da antropologia. E agora, a frase já não me parecia assim tão intrigante. De repente havia novos sentidos, novos significados que articulavam e respondiam a algumas das inquietudes que vivem no reino do quase debaixo da língua. Regresso à verdade da arte que se sugere estar condenada. Podemos conhecer-lhe a verdade mas não chegamos à sua verdade. Que verdade é esta? Porque é que a antropologia está em crise? O que se perdeu? Mais, porque não fazer regressar do seu quase exílio a mãe de todas as ciências? Assiste-se a um grande ruído e isto tem implicações na vida de todos nós. A emergência do espectáculo e do consumo lançaram um véu – uma burka – sobre a realidade. Voltar a questionar o que é afinal essa coisa, a realidade, que é tantas coisas como pessoas nesta terra, não é uma questão despicienda. No seu entendimento: «A filosofia não dá dinheiro, não serve para nada». [Rodrigo foi ao Éden e foi mordido pelas cotovias]

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Íntima revolta

Ciúmes

O fim do jogo

António MR Martins

Almada Negreiros

Ring Joid

As normas foram alteradas. Não foi necessário marcar assembleia para as tornar diferentes. Agora estão mais justas, mais coerentes e mais humanas. São as minhas. Não, não é presunção ou saliência. É simples coerência. Tanta discussão, tanta disparidade, tanta incongruência, tanta animosidade. É chegado o momento de intervir e fazer alhear os preconceitos e as teses pessoais do ponto de partida para uma outra posição, um outro estado e uma outra forma de agir. Neste último caso, a minha. É óbvio que descortino que muitos de vós ficarão atónitos e estupefactos, outros colocarão interrogações e outros, ainda, rematarão com o significado utopia para estas decisões. É elementar a consideração descabida de crédito e a inoperância desenvolvida, a espaços por uns, e regularmente por outros. Todavia a estratégia a partir deste momento será bem diferente. Aliás será igual a nada. A nada porque não existe. Em mim só existe a palavra. Mas essa palavra não é só minha. É tua, é vossa. Ela é de todos vós, aliás é nossa. Não me peçam meças, não fundamentem pensamentos tornando-os vivos na prática, não interajam uns com os outros. Deixem-se estar quietinhos, arrumadinhos e não pensem. Pensar pode alimentar egos, mas por vezes também os seca, indefinidamente. Sei que não é clara a minha ideia, também não a tenho. Sei que o amortecer pode levar ao desfalecer, mas não renego este pressuposto. O amor é o melhor da vida! Amem-se, como nunca o fizeram. Devorem-se mutuamente, se dois, ou colectivamente, se um todo. A vida é súbita. A palavra efémera, só que regressa cada vez que quisermos. Fiquem bem! Eu estou com dúvidas e fico-me por aqui!

Pierrot dorme sobre a relva junto ao lago. Os cisnes junto a ele passam sede, não o acordem ao beber. Uma andorinha travessa, linda como todas, voa brincando rente à relva e beija ao passar no nariz de Pierrot. Ele acorda e a andorinha, fugindo a muito, olha de medo atrás, não venha o Pierrot de zangado persegui-la pelos campos. E a andorinha perdiase nos montes, mas, porque ele se queda, de novo volta em zig-zags travessos e chilreios de troça. E chilreia de troça, muito alto, por cima dele. Pierrot já se adormecia, e a andorinha em descida que faz calafrios pousou-lhe no peito duas ginjas bicadas, e fugiu de novo. De contente, ergueu-se sorrindo e de joelhos, braços erguidos, os seus olhos foram tão longe, tão longe como a andorinha fugida nos montes. De repente viu-se cego - os dedos finíssimos da Colombina brincavam com ele. Desceulhe os dedos aos lábios e trocou com beijos o aroma das palmas perfumadas. Depois dependurou-lhe de cada orelha uma ginja, à laia de brincos com jóias de carmim. Rolaram-se na relva e uniram as bocas, e já se esqueciam de que as tinham juntas... - Sabes? Uma andorinha... E foram de enfiada as graças da ave toda paixão. Pierrot contava entusiasmado, olhando os montes ainda em busca da andorinha, e Colombina torceu o corpo numa dor calada e tomou-lhe as mãos. Havia na relva uma máscara branca de dor, e a lua tinha nos olhos claros um olhar triste que dizia: Morreu Colombina!

No supermercado. - Esta fruta está podre? - Pergunta um homem à mulher da «Fruta Estragada». - Sim, as mangas estão completamente podres. - Parece, mas não cheiram a isso. Essa é a diferença. - Tanto quanto posso ver não está longe de lá chegar. E têm um odor bastante desagradável. - Veja, esta não cheira nem a podre nem a rançoso como devia. Onde está o seu chefe? Quero fazer uma reclamação. - E estica a manga até à senhora da fruta. - Não é preciso dar-me isso. Senhor, eu conheço a qualidade da minha fruta. Há muito tempo! Você não vê estes vermes? - Aponta a mulher. - Não vê que isto já está bastante alterado? E o aroma... cheira a ratos mortos. Só não vê quem não quer. A mim só me parece um rato encontrado num esgoto imundo, morto há muitos dias. - A mulher usava luvas amarelas e uma pequena máscara azul. Sobre a máscara havia uma etiqueta transparente a dizer: “Vai-te lixar!” - Provavelmente, pode até ter cheiro de ratos, mas na verdade deviam cheirar a vómito de porco ou a urina de galo. Essas são as normas. Isto assim está errado. Estas mangas não deviam estar aqui. Isto é mau para os clientes e quero reclamar. O melhor seria chamar o Conselho de Consumidores. - O homem estava já com um fio de mostarda a cair-lhe do nariz. - Também não é preciso fazer uma fita dessas, homem. Estamos a tentar o melhor que pudemos. - Vá lá, podiam fazer muito melhor. Não vê que está a ser desonesta e se quiser posso processá-la? - Está bem, olhe para estas maçãs cheiram a merda. Merda da verdadeira. E têm um sabor tão horrível como o cadáver de um monge velho a apodrecer há dez anos. - De repente, os olhos do homem iluminam-se. Todo ele parecia mais vivo. Diria-se até, mais atraente. - Hmmm, é verdade, desta vez não estou a ser enganado. Esta fruta está realmente podre e nojenta. E parecem tão agradáveis estas maçãs. Veja, estão cheias destes bichos com milhões de patas. Muito obrigado. Por favor, dê-me meio quilo! Não preciso de um saco é para comer aqui mesmo.

[António arrumou o avental de poeta e pôs a outra cassete a tocar.]

[Foi assim que Almada viu a andorinha voar para o conto de Oscar Wilde]

[Ring viu tudo isto a acontecer no mercado local]

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11 2 2011

n o f i m do m u n d o

Humor ou Barbárie Kiko Amat

os sete pilares da sabedoria

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Arte da fuga

Recentemente, estava no elevador do meu prédio, fingindo ser uma pessoa como qualquer outra e entabulando uma conversa pueril com uma vizinha (…), quando esse diálogo inane para o tema das creches O meu filho entrou, o seu não, blá-blá, projecto pedagógico, bli-blu (meu Deus, poder-se-á morrer de aborrecimento?), e de repente a minha boca – sem consultar meu cérebro – saiu-se com esta para a vizinha: “Na creche pública que queríamos, uma criança só entra se for leproso, disléxico ou tuberculoso. Estamos a pensar mutilar o nosso. “ A minha vizinha, ao ouvir isto, ficou lívida, a sua tez acinzentouse e a boca abriu-se-lhe como um parque de estacionamento e só conseguia balbuciar um “mas… mas…mas… mutilar não, enquanto a extremidade do seu lábio superior tremia como um toldo de caravana ao vento. E só respirou aliviada quando eu, igualmente boquiaberto, percebi que ela não tinha reparado no tom humorístico e rematei: “Estava a brincar, minha senhora”. E, então, a lancinante verdade do que tinha acontecido bateu-me na testa com a força de uma centena de menires. Damos por certa a existência do sentido de humor, mas a verdade é que falta a muita gente. E essa carência, esssa menos-valia, (porque é uma menos-valia, senhores: o não-humorismo como primeiro sintoma palpável de loucura congénita), explica uma apreciável quantidade das tragédias que ocorreram ao longo da história. Desculpar-me-ão se pareço dogmático (e um pouco demagógico), mas não foi justamente a completa falta de sentido de humor e inexistente capacidade de rir de si mesmo e do próprio país, um dos alicerces dos totalitarismos do século XX? Não diriam que se algo definia as actividades e soluções mais finais do Terceiro Reich era que ninguém ria? São capazes de imaginar Goering, Hitler e Hess a partirem-se de riso e a bater vigorosamente nas coxas por algo que não fosse uma piada relacionada com o genocídio racista? Com efeito, se algo partilham todos os pais da pátria, salvadores maoistas ou “sturmtruppers” de camisas castanha é a completa ausência de sentido de humor no seu ideário. Não há risos em Estalinegrado, em Auschwitz-Birkenau, no golpe de estado franqista de 1936, no Grande Passo em Frente ou nas últimas eleições para o Parlamento catalão. Quase todas as coisas historicamente perniciosas para a Humanidade (como o partido nacional-socialista alemão, Vargas Llosa ou os Radiohead) partilham entre si a absoluta ausência de humor, de divertimento ou ironia nas suas acções e atitudes. Humor 4 - Terror 0 Porque, na verdade, o humor é o contrário do mal: o humor é o antídoto contra a igno-

rância, o horror e a barbárie. Nada desarma mais o mal do que rir na sua cara. Porque o riso, senhores, tem poder. O humor é uma arma e, por isso, muitos literatos e satíricos o usaram na suas obras. Mesmo assim, nada interessa mais aos “catedráticos” do que extrair o humor dos clássicos: a Alta Literatura cimenta-se em reverência, gravidade e escultural circunspecção. Para eles, o humor é uma parvoíce sem sentido, um disparate anti-artístico, anedota de taberna: a verdadeira arte é o trágico, o épico, solene, ou simplesmente não é. Tratem de entendê-los: se começassem a admitir que Shakespeare é essencialmente um escritor humorístico (há que entender Hamlet como uma farsa, grotescamente excessivo) ou que Kafka foi um dos maiores escritores cómicos do século XX, quem sabe o que teriam de admitir por fim? Que o humor é, de facto, a pedra angular da literatura mais importante desde 1605? Não, como argumentou Casavella, os “catedráticos” estavam mais interessados em se tornar Kafka numa “espécie de pseudomístico amargurado, isto é, neles mesmos. “ O humor não convém. O humor não interessa. Os grandes escritores não são humoristas e, no caso de o serem, é essencial lobotomizar a sua leitura para remover qualquer assomo de humor. A visão de Alta Cultura é uma visão franciscana: rir é para os tolos, rir deforma as feições, rir não é santo. Mas um rápido olhar para os cumes palavra escrita demonstra o contrário: são humorísticos Quevedo, Cervantes, Larra, toda a literatura picaresca, os satíricos britânicos ou americanos (Defoe, Swift, Twain ...), Lewis Carrol, Oscar Wilde... De facto, se escavarmos nas fundações da literatura britânica, percebemos que todos os autores clássicos partilham uma pose de ironia e sátira, mesmo aqueles que se tem tentado sepultar no Mausoléu dos Autores Severíssimos: Samuel Pepys, Horace Walpole, Coleridge, Samuel Butler... Mas admitir isso seria, como dissemos, fatal. (…) Os tontos que riem Os tontos não riem. É, na verdade, ao contrário: o humor é o mais definitivo sinal de uma inteligência cristalina, de uma clarividência intensamente humana, uma palpável ausência de medo. O riso salta por cima do terror, domina a angústia, eleva-nos, protege-nos e, ao mesmo tempo, torna-nos mais próximos. O riso é um dos melhores veículos de empatia; o humor, a melhor maneira de fazer um protesto ou comentário político, para transmitir uma mensagem profunda, de torná-la inesquecível e de a arrancar à gravidade académica, ao politicamente correto, ao nihilismo. O riso é a nossa Kalashnikov, e a seriedade, com os seus ares, o nosso inimigo.

Os piratas que operam no Índico alargaram francamente a sua área de actuação, tornando assim mais difícil o trabalho dos vasos de guerra que os perseguem e a segurança das suas possíveis presas. Como estrategas, os homens da caveira mostram-se dignos alunos de um Sunzi, espalhando as suas forças por mais de 2,5 milhões de milhas quadradas, de modo a confundir o inimigo.

O daimon veste nada

Não é verdade que um nada de pensamento seja um pensamento de nada... se pensarmos bem no assunto. Pensar o nada é já pensar qualquer coisa – o conceito de nada; um nada de pensamento será rigorosamente nada. Ou não? Um nada de pensamento poderá ser um tudo, em contexto zen, por exemplo? Dá que pensar, mesmo que não sirva para nada. Para a semana: o pensamento do vazio ou o vazio do pensamento.

no melhor dos mundos

“Quando não souberes o que fazer, é melhor ficares quieto”, reza numa sabedoria qualquer. Tomás Campanella, na sua passagem por Macau, terá comentado algo sobre o clima: “A inclemência da sombra obriga à inércia dos homens”. Gravada em lage pétrea, a sentença por aqui pairou até se sumir no olvido.

Discurso do séquito

“Quando um homem corteja uma mulher, se ela diz que não, a coisa demora um mês, se ela diz que sim, demora quinze dias”. Poderá ser verdade, sobretudo porque estamos perante um maravilhoso ser, com outra noção do tempo, que, como diz Oscar Wilde, “demora 42 anos a chegar aos 30”.

McBeto Homem de teatro, Jean Cocteau

dizia da verdade: “É nua demais! Não excita os homens!” Mas que desfila, afinal, no palco? Em bom rigor, grandes arquétipos. Em maus tempos, as comédias. Não sabemos se o teatro já não é o que era, mas sabemos que o teatro nunca foi o que era.

Rigor Mortis Jean Jacques Rousseau

morreu devido às maselas sofridas num choque ocasional com um grand-danois, numa esquina de Paris. Ao acidente, seguiu-se uma comoção cerebral, da qual o filósofo nunca recuperou. Não há notícia do cão ter sofrido qualquer ferimento ou traumatismo.

Traduttore, tradittore

Hoje apresentamos uma interessante tradução que demonstra a proximidade fáctica de duas línguas: – Nei hai ni-tou, nei hai ko-tou! (cantonense na variante da avenida Horta e Costa, Macau) – ‘Tás aqui, ‘tás ali! (português de bairros límitrofes de certas cidades lusitanas)


G a l e r i a da L i v r a r i a P o r t u g u e sa 11 d e F e v e r e i ro a 4 d e M a r ç o , 2011


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