PARTE integrante DO HOJE MACAU Nツコ 2312. Nテグ PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
artes, letras e ideias
h
O regresso do comunismo
18 2 2011
h 2
i d e i a s f o r t e s
Vem aí a O que História? falhou Carlos Morais José
Álvaro Cunhal
P
que fracassou não foi o ideal comunista, mas um “modelo” de sociedade que em aspectos fundamentais se afastou de tal ideal. Não foram apenas “erros humanos”, embora também o tenha havido, mas uma concepção, uma prática política e um exercício do poder que de facto se afastaram do ideal comunista. Afastaram-se no que respeita à questão central do poder e do seu exercício, substituindo-se o poder dos trabalhadores, o poder popular, por um poder fortemente centralizado cada vez mais distante das aspirações, participação, intervenção e vontade do povo. Afastaram-se no que respeita à democracia sempre justamente proclamada como elemento e valor integrante da sociedade socialista, mas que depois de uma fase revolucionária sofreu na sua vertente política graves limitações de carácter repressivo e infracções à legalidade. Afastaram-se no que respeita às estruturas socioeconómicas e ao desenvolvimento económico com a centralização e estatização excessivas, a eliminação de outras formas de propriedade e
oucos termos têm sido tão indevidamente apropriados, utilizados e espoliados, como comunismo. Simultaneamente esperança e maldição, liberdade e opressão, arma das massas e ideologia de Estado, a palavra comunismo surgiu durante o século XX pintalgada de variadas cores, associada às mais díspares situações. E, neste sentido, aparentemente perdera grande parte do seu fascínio, sendo tomada como algo de um passado amiúde sinistro, sem poder real nas sociedades do século XXI. Como diz Zizek, todos implicitamente acreditamos no “fim da História”. Contudo, o advento do neoliberalismo, o alargamento do fosso entre ricos e pobres, as constantes crises do modelo capitalista e recentes fenómenos sociais relacionados com as novas possibilidades de comunicação, fizeram renascer um novo interesse pelo pensamento de Karl Marx, não apenas na sua vertente crítica mas procurando também uma releitura que permita fugir às armadilhas passadas. Ironicamente, durante o século XX o marxismo foi espartilhado em dois campos: instrumentalizado, conjurado, pelos macro-poderes centralistas ou refugiado em cátedras universitárias inócuas, onde é reduzido a um modelo de análise do qual é extirpado o conteúdo pragmático e revolucionário, aproveitando algumas noções, nomeadamente a causalidade estrutural da instancia económica, na medida em que podem constituir um confortável quadro teórico que ilumina de sentido qualquer facto emergente mas desvirtuado do seu sentido crítico original. Somente o seu papel prático nos movimentos revolucionários lhe fez justiça, mas para ser quase sempre depois subjugado à máquina de um Estado – que abominava – em nome de um centralismo económico – que nunca propôs. É, evidentemente, contra a própria exigência teórica ficar amarrado a um pensamento construído em condições sociais e políticas do século XIX: a metamorfose é uma qualidade que Marx reconhece no capital e, como diz Lyotard, “corre-se o risco de salvar o referente material ao mesmo tempo que o sistema teórico”. Não a uma teoria geral da História e do Homem, sim a uma teoria crítica, não referenciada a uma metanarrativa ou à metafísica, tendo em consideração os trajectos do pensamento materialista neste século. Em 2009, uma conferência em Londres reunia nomes como Slavoj Zizek, Alain Badiou, António Negri, Michael Hardt, ...., sob o tema “A Ideia de Comunismo”, dando corpo ao interesse que a questão tem suscitado. Sob a diversidade de posições, denota-se o mesmo paradoxal interesse: recusar o fim da História. Irónico, n’est-ce pas? Século XXI. O que é, o que vai ser, o comunismo? Tem lugar no mundo das novas tecnologias ou só tem lugar no mundo das novas tecnologias, tornando-se premente, urgente, necessário? Como hipótese, como ideia, como arma ou como chavão?
O
Alain Badiou a hipótese comunista
A felicidade é uma ideia fundamental Eduardo Febbro | CubaDebate
Um “modelo” fracassou. Mas o ideal comunista continua válido, vivo e com futuro. de gestão, o desprezo pelo papel do mercado e a desincentivação do empenhamento e produtividade dos trabalhadores. Afastaram-se no que respeita à natureza e ao papel do partido comunista, em que se verificou igualmente uma direcção altamente centralizada e burocratizada, o distanciamento progressivo dos trabalhadores e das massas populares, a fusão e confusão das funções do partido e do Estado e a imposição administrativa de decisões tanto no partido como no Estado. Afastaram-se no que respeita à teoria, por um lado pela cristalização e dogmatização do marxismo-leninismo, por outro lado pela revisão e abandono de princípios essenciais — num caso e noutro pela sua imposição como ideologia de Estado. Estas considerações são de particular importância não apenas para a análise histórica dos acontecimentos, mas como experiência que se impõe assimilar para a definição mais rigorosa dos objectivos futuros dos comunistas para a construção do socialismo. Em terceiro lugar, uma tão grave situação exigia não apenas a correcção de erros pontuais, mas mudança radical nas orientações e uma real reestruturação da sociedade no plano económico, social e político. Consolidando as grandes conquistas revolucionárias, restabelecendo o poder político do povo, instaurando efectivamente a democracia no Estado, no partido e na sociedade, superando a estagnação, aproveitando as potencialidades do sistema sócio-económico muito longe de estarem esgotadas, — impunhase promover a renovação criativa e o reforço da sociedade socialista. Um “modelo” fracassou. Mas o ideal comunista continua válido, vivo e com futuro.
A
lain Badiou. A sua obra, extensa e sem concessões, abarca uma crítica ao que Alain Badiou chama “o materialismo democrático”, quer dizer, um sistema humano onde tudo tem um valor mercantil. Badiou não renunciou nunca a defender um conceito que muitos crêem queimado pela história: o comunismo. Badiou fala, dito de outra maneira, da “ideia comunista” ou da “hipótese comunista” não propriamente do sistema comunista em si. Segundo o filósofo francês, tudo o que estava na ideia comunista, a sua visão igualitária do ser humano e da sociedade, merece ser resgatado. A ideia comunista “ainda está, historicamente, nos seus inícios”, diz Badiou. Defende um princípio básico de nossa inscrição na existência, do qual se desprendem
também nossos compromissos políticos: uma vida sem ideias não é uma vida. A verdadeira pergunta da filosofia consiste em saber o que é uma vida verdadeira, o que é viver, o que é o destino. Mas a filosofia deve aportar respostas mínimas a estas perguntas. Minha resposta, que é simultaneamente uma hipótese e uma conclusão, é que a verdadeira vida é uma via que aceita estar sob o signo da ideia. Dito de outra maneira, uma vida que aceita ser outra coisa que uma vida animal. Em todas as situações sempre persiste a vontade de querer algo e essa vontade só tem sentido em relação com uma vontade de transformação. Como se inscreve essa ideia da ideia em plena ditadura do que você chama “o materialismo democrático”? Em suma, como existir, com
que ideia, em um mundo onde tudo tem forma de produto? Esse é o principal problema da vida contemporânea. Estabeleceu-se um regime de existência no qual tudo deve ser transformado em produto, em mercadoria, incluídos os textos, as ideias, os pensamentos. Marx tinha antecipado isto muito bem: tudo é mensurável segundo seu valor monetário. O que é então uma vida sob o signo da ideia em um mundo como este? Faz falta uma distância com a circulação geral. Mas essa distância não pode ser criada apenas com a vontade, é necessário que algo aconteça connosco, um acontecimento que nos leve a tomar posição frente ao que ocorreu. Pode ser um amor, um levantamento político, uma decepção, enfim, muitas coisas. Ali se põe em jogo a vontade para criar um mundo novo que não estará à disposição do mundo tal como ele é, com sua lei de circulação mercantil, mas por um elemento novo de minha experiência. É um dos poucos pensadores que ainda defendem isso que você chama “a ideia comunista”. Apresenta o comunismo como uma ilusão actual. Sei muito bem que algumas tentativas que se reivindicaram comunistas fracassaram porque não conseguiram criar o mundo novo que pretendiam e terminaram provocando danos consideráveis e situações terríveis. Temos duas opções: ou dizemos que essa hipótese comunista de um mundo que não estaria regulado pela mercadoria, o produto, não pode ser realizada, então nos resignamos ao mundo tal como é; ou mantemos a hipótese comunista. Se a mantemos também há que conservar a palavra. Se da experiência histórica tiramos a conclusão de que é preciso abandonar a palavra, isso seria um retrocesso não necessário. Podemos fazer nosso próprio balanço do que ocorreu no século XX a partir da possibilidade de redefinir o que é o comunismo como possível porvir. Essa é minha escolha. Sei que se trata de um trabalho longo que requer muita reflexão e que será mais mundial do que antes. A primeira batalha consiste em manter a força e o significado dessa palavra. O que se pode recuperar, o que se pode voltar a ler, do que foi com todo um naufrágio real na prática do comunismo? Que mensagem ainda existe na ideia comunista? Creio que podemos voltar ao que o comunismo queria dizer não só para Marx mas para muitos revolucionários do século XIX. Para eles, o comunismo tinha um sentido comum que era a ideia de uma sociedade extraída do princípio do interesse, quer dizer, uma sociedade que não está governada pelo facto de que um homem persegue o seu interesse mas pela ideia da associação dos homens. É essa associação que define os projectos ou as metas colectivas. No século XX, essa ideia converteu-se na de um Estado todo poderoso que resolve todos os problemas apresentados à sociedade. Entre a definição do século XXI e a do XX há uma enorme distância. O que ocorreu entre as duas? A obsessão do poder. As organizações operárias, militantes, revolucionárias, que tinham sido esmagadas várias vezes no século XIX obcecaram-se com a ideia do poder e a pergunta “como vencer?”. Houve duas alternativas a essa convicção: estão os que se uniram à democracia parlamentar ordinária com a ideia de vencer fazendo-se eleger. Mas, claro, foram eleitos e não mudaram nada, o mundo continuou a ser o mesmo. Do outro lado, estão os que se lançaram na organização da sublevação armada. Mas, lamentavelmente, fizeram-no mediante a militarização violenta da acção política que desembocou em Estados militarizados que resolviam os problemas com a violência. Chegamos
h
18 2 2011
i d e i a s f o r t e s
de alguma maneira a um final porque nem a hipótese da via pacífica e eleitoral, nem a hipótese de um aparato estritamente militar encarregado de resolver os problemas políticos conduziram ao comunismo segundo o sentido original do termo. E o problema da acção política actual é totalmente obscuro. Assistimos a uma mundialização capitalista desenfreada e nela as forças políticas dão mostras de mais debilidade do que de força. Seja qual for a situação mundial em que nos encontremos, na África, no Médio Oriente, na Ásia, na América Latina ou nas democracias ocidentais, enfrentamos a mesma indolência, a mesma selvajaria, a mesma impunidade, a mesma assimetria por parte dos poderes, a mesma violência. Estou profundamente convencido de que a forma na qual a sociedade está organizada em escala planetária alenta e cria estímulos à violência. A razão principal radica em que, para o sistema, a realidade humana é a competição. A ideia de Hobbes segundo a qual o homem é um lobo para o homem constitui a convicção profunda de nossa sociedade. Por essa razão gera violência constante: a sociedade dá o di-
Em minha opinião estes já tinham morrido há muito. A sua experiência já não tinha mais força, já não propunha nada de novo à humanidade. O certo é que o desaparecimento completo de tudo isso foi vivido pelo capitalismo liberal como uma vitória que lhe abria o espaço do mundo inteiro para expandir-se. As formas de violência e de cumplicidade intelectual com essa violência desenvolveramse muito. Creio que isto se iniciou nos finais dos anos 1970. A nova figura fundamental é que a opinião, em vez de estar drasticamente dividida, é maciçamente consensual. Este resultado muda o horizonte, a perspectiva de um filósofo. O filósofo é aquele que sempre luta contra as opiniões dominantes, quer dizer, as opiniões do poder. Hoje o combate é muito mais complexo e singular do que o dos anos 1960. Naqueles anos os filósofos críticos e comprometidos politicamente dominavam o cenário intelectual. Isso pertence ao passado. Hoje são os cães de guarda dos que mandam. Durante os anos Bush, estivemos numa combinação extraordinária de violência e de mentiras. No fundo, os ocidentais, inclusive a população, foram culpados porque aceitaram
Podemos voltar ao que o comunismo queria dizer para muitos revolucionários do século XIX: a ideia de uma sociedade extraída do princípio do interesse reito geral para que, em seu próprio interesse, se pise os demais. A imprensa mais ordinária faz o elogio dessa violência. Os jornais falam de como tal banco esmagou outro, como as pessoas foram expulsas, etc., etc. Isso, dizem, é a vida, a competição. Mas é preciso pagar o preço. Enquanto não enunciamos que as sociedades devem ser construídas com base na associação e não na competição, permaneceremos no elemento primordial da violência. Não digo que a violência vai desaparecer. A sociedade estimula sistematicamente a violência e logo se vê obrigada a combate-la com uma repressão terrível. Como a violência está constantemente incitada, é preciso um aparato policial para controlá-la. O resultado é que terminamos agregando à violência social a violência do Estado. Devemos mudar os pilares da existência colectiva. Mas o ser humano é capaz de outra coisa diferente de toda essa violência: é capaz de entrega, de amor. Tem uma dupla capacidade. Pode ser um animal de competição mas também um animal altruísta, interessado na acção colectiva, capaz de encarnar ideais, pode ser um namorado ou um cientista desinteressado. Saber que aspecto do ser humano alentamos é uma decisão fundamental. No seio dos sistemas políticos ocidentais há algo que se degradou profundamente no último quarto de século. Essa evolução drástica está perfeitamente retratada nos seus livros: “O Primeiro Manifesto pela Filosofia”, dos anos 1980, e o “Segundo Manifesto”, publicado no ano passado. O Primeiro Manifesto recolhe as últimas esperanças do mundo de antes. Mas nos últimos vinte anos houve coisas essenciais que mudaram, entre elas a hegemonia do capitalismo liberal competitivo e violento. Interveio também outra coisa: uma sorte de clara cumplicidade com esse sistema por parte dos intelectuais, inclusive os franceses. Foi uma forma de dizer que não se pode fazer nem esperar outra coisa, que o mundo natural é assim. Isto acelerou-se com o desaparecimento da União Soviética e dos Estados socialistas.
tudo isso. É preciso sair disto. A humanidade não poderá continuar nesse caminho, sob pena de ir rumo a sua eliminação. Trata-se de reconstruir uma visão do mundo e da ação afastada deste horror. A tecnologia faz parte também desta sociedade, desta violência. As novas tecnologias instauraram uma sorte de ilusão igualitária, que é muito chata, que parece dizer em filigrana: já que estamos conectados, todos somos iguais. Porém, não há nada mais virtual que essa igualdade. A realidade está presente, as diferenciações são patentes, o pensamento tecnológico contaminou o pensamento humano. A tecnologia é a realização de uma ideologia que existia antes. Creio que é a ideologia que cria a tecnologia, e não ao contrário. Esta falsa concepção da igualdade é muito antiga. A desigualdade actual considera de forma abstracta que os diferentes indivíduos são iguais. Pretende-se fazer crer que os indivíduos têm a seu alcance o mesmo sistema de possibilidades. As pessoas não têm a mesma realidade, mas se argumenta que contam com as mesmas possibilidades. É a mitologia com a qual se dizia que nos Estados Unidos o vendedor de jornais pode converter-se num milionário e, por conseguinte, é igual a qualquer milionário. Com esse argumento, a única diferença radica em que um realizou a possibilidade de ser milionário e o outro não. Há então uma concepção tradicional e falaz da igualdade própria ao mundo burguês e competitivo. Todos podemos competir! Essa é a igualdade competitiva. Mas penso que a tecnologia da Internet e a conexão universal são a realização material e tecnológica dessa ilusão igualitária. Essa ilusão está muito ligada ao materialismo democrático porque inclui a ideia de que todas as opiniões valem e são iguais. Estamos conectados e o que eu digo vale tanto como o que outro diz! Desde que as coisas circulem, elas têm valor. Isso é falso. O real continua a ser violentamente desigual, competitivo, brutal, indolente. Não basta ter uma máquina na qual possamos dizer o que pensamos para aceder à igualdade. Na realidade, quanto mais se expande esse
3
tipo de igualdade ilusória, menos poder têm as pessoas. No mundo competitivo a igualdade é sempre artificial. E essa igualdade artificial pode ser uma igualdade tecnológica justamente porque a tecnologia é um artifício. É um dos poucos filósofos contemporâneos que introduziu na sua reflexão algo único, quer dizer o amor. Repete frequentemente que é preciso reinventar o amor. Como se faz isso? O amor é um gesto muito forte porque significa que é necessário aceitar que a existência de outra pessoa se converta numa nossa preocupação. A minha ideia sobre a reinvenção do amor quer dizer o seguinte: uma vez que o amor se refere a essa parte da humanidade que não está entregue à competição, à selvageria; uma vez que, em sua intimidade mais poderosa, o amor exige um tipo de confiança absoluta no outro; uma vez que vamos aceitar que esse outro esteja totalmente presente em nossa própria vida, que nossa vida esteja ligada de maneira interna a esse outro, pois bem, já que todo isto é possível, isto nos prova que não é verdade que a competitividade, o ódio, a violência, a rivalidade e a separação sejam a lei do mundo. O amor está ameaçado pela sociedade contemporânea. Essa sociedade bem que gostaria de substituir o amor por um tipo de regime comercial de pura satisfação sexual, erótica, etc. Então, o amor deve ser reinventado para defendê-lo. O amor deve reafirmar seu valor de ruptura, seu valor de quase loucura, seu valor revolucionário como nunca o fez antes. Não se deve deixar que o amor seja domesticado pela sociedade atual que sempre busca domesticá-lo-. Em outros tempos, as sociedades clericais e tradicionais buscaram domesticá-lo pelo matrimônio e a família. Hoje procura-se domesticar o amor com uma mescla de pornografia livre e de contrato financeiro. Mas devemos preservar a potência subversiva do amor e afastá-lo dessas ameaças. E isso é extensivo a outras coisas: a arte também deve afastar-se da potência do mercado, a ciência igualmente. Ali onde há um pensamento humano activo e desinteressado há um combate para libertá-lo dos interesses. - O que resta a um casal enamorado num mundo como este? A revolta, a música, a poesia, o sexo, a indiferença, a violência, a sabedoria? Quais são os eixos de uma emancipação positiva em face desta máquina infernal que é o mundo? - Na situação de crise e de desorientação actual o mais importante é manter as mãos sobre o leme da experiência que estamos a realizar, seja no amor, na arte, na organização coletiva, no combate político. Hoje, o mais importante é a fidelidade: num ponto, ainda que seja apenas um, é preciso tratar de não ceder. E para não ceder devemos ser fiéis ao que ocorreu, ao acontecimento. No amor é preciso ser fiel ao encontro com o outro porque vamos criar um mundo a partir desse encontro. Claro, o mundo exerce uma pressão contrária e nos diz “cuidado, defenda-se, não se deixe abusar pelo outro”. Com isso está a dizer “voltem ao comércio ordinário”. Então, como essa pressão é muito forte, o facto de manter o leme voltado para o rumo, de manter vivo um elemento de excepção, já é extraordinário. É preciso lutar para conservar o excepcional que nos ocorre. Depois veremos. Dessa forma salvaremos a ideia e saberemos o que é exatamente a felicidade. Não sou um asceta. Não sou a favor do sacrifício. Estou convencido de que se conseguimos organizar uma reunião com operários e pomos em marcha uma dinâmica, se podemos superar uma dificuldade no amor e nos reencontramos com a pessoa que amamos, se fazemos uma descoberta científica, então começamos a compreender o que é a felicidade. A felicidade é uma ideia fundamental.
18 2 2011
h 4
i d e i a s f o r t e s
Eric Hobsbawm uma conversa sobre marxismo e a nova Esquerda
Marx incontornável
Tristram Hunt /The Observer
, Norte de LonH dres, a ambição marxista continua viva na casa de Eric Hobsbawm. Nascido ampstead Heath
em 1917 (em Alexandria, no então protectorado britânico do Egipto), mais de 20 anos após a morte de Marx e Engels, não conheceu nenhum dos dois pessoalmente, como é óbvio. Mas ao conversar com Eric na sua arejada sala, recheada de fotos da família, honras académicas e uma vida de objectos culturais, fica uma sensação quase palpável de conexão com aqueles homens e a sua memória. De repente, a crítica de Marx à instabilidade do capitalismo desfrutou de um ressurgimento. “Ele está de volta”, bradou o “The Times” no Outono de 2008, com as bolsas de valores a caírem, os bancos a serem sumariamente nacionalizados e o presidente Sarkozy de França a ser fotografado a folhear “O Capital” (cuja afluência de vendas o catapultou para o topo da lista dos “best-sellers” alemães). Até o Papa Bento XVI foi levado a reconhecer em Marx uma “grande habilidade analítica”. Marx, o grande ogre do século XX, via-se ressuscitado em universidades, reuniões empresariais e redacções. Tristram Hunt – No cerne deste livro, há um sentimento de vingança? De que mesmo que as soluções outrora oferecidas por Marx possam já não ser relevantes, ele fez as perguntas certas sobre a natureza do capitalismo e de que o capitalismo que emergiu nos últimos 20 anos é tal qual o que Marx pensava nos anos 1840? Eric Hobsbawm – Sim, há com certeza. A redescoberta de Marx neste período de crise do capitalismo deve-se a ele ter previsto muito mais sobre o mundo moderno do que ninguém em 1848. Isso é, penso eu, o que tem atraído a atenção de vários novos observadores para o seu trabalho – paradoxalmente, antes entre empresários e comentadores financeiros do que entre a esquerda. Lembro-me de me aperceber disso por volta do 150º. aniversário da publicação de “O Manifesto Comunista”, quando na esquerda não estavam a ser feitos grandes planos para celebrar a data. Descobri, para meu espanto, que os editores da revista [de bordo] da United Airlines queriam ter algo sobre o Manifesto. Então, um pouco mais tarde, estava a almoçar com [o financista] George Soros, que perguntou: “O que pensas sobre Marx?” Mesmo que não tenhamos concordado em grande parte, ele disse-me: “Há definitivamente algo neste homem.” Fica com a sensação de que o que pessoas como Soros apreciam em parte em Marx é a forma como ele descreve tão brilhantemente a energia, iconoclastia e potencial do capitalismo? Que essa é a parte que atraiu os directores que voam na United Airlines? Penso que foi a globalização, o facto de que ele ter previsto a globalização, pode dizer-se uma globalização universal, incluindo a globalização dos gostos e tudo o resto, que os terá impressionado. Mas penso que os mais inteligentes também vi-
ram uma teoria que também permitia um tipo de desenvolvimento irregular da crise. Porque a teoria oficial nesse período [finais dos anos 1990] descartava teoricamente a possibilidade de uma crise. E essa foi a linguagem de “um fim para os altos e baixos” e de ir-se para lá do ciclo dos negócios? Exactamente. O que aconteceu dos anos 1970 em diante, primeiro nas universidades, em Chicago e em toda a parte e, por fim, a partir de 1980 com Thatcher e Reagan foi, suponho, uma deformação patológica do princípio do livre mercado por trás do capitalismo: a economia de mercado pura e rejeição do estado e da acção pública, que penso que nenhuma economia no século XIX praticou verdadeiramente, nem mesmo os EUA. E foi em conflito com, entre outras coisas, a maneira como o capitalismo realmente funcionou na sua era mais bem sucedida,
Global [Europa Ocidental e América do Norte] que fez avançar esse ultra-extremo fundamentalismo de mercado. Inicialmente, parece ter funcionado muito bem – pelo menos no velho Noroeste – embora desde o início fosse possível observar que na periferia da economia global ela criava terramotos, grandes terramotos. Na América Latina, houve uma enorme crise financeira no início dos anos 1980. No princípio dos anos 1990, na Rússia, havia uma catástrofe económica. E então, à medida que nos aproximamos do fim do século, houve esse enorme, quase global, colapso indo da Rússia à Coreia [do Sul] Indonésia e Argentina. Isso começou a fazer as pessoas pensarem, parece-me, que haveria uma instabilidade básica no sistema, que tinham anteriormente rejeitado. Houve algumas sugestões de que a crise a que assistimos desde 2008 na América, Europa e Grã-Bretanha não era tanto uma crise do capitalismo em si, mas do
políticas do “crash”. No seu livro, deixa cair por terra a insistência em se olhar para os textos de Marx como se oferecessem um programa político coerente para os dias de hoje, mas onde acha que o marxismo como projecto político se situa agora? Eu não acredito que Marx alguma vez tenha tido, por assim dizer, um projecto político. Politicamente falando, o programa específico de Marx era que classe trabalhadora deveria constituir-se num organismo com consciência de classe e agir politicamente para conquistar o poder. Além disso, Marx muito deliberadamente deixou isso vago, devido à sua antipatia por coisas utópicas. Paradoxalmente, diria mesmo que os novos partidos foram em grande parte largados ao improviso, para fazerem o que pudessem, sem quaisquer instruções efectivas. Aquilo sobre que Marx escreveu abrange pouco mais do que ideias ao estilo “clause IV” sobre propriedade pública, nada suficientemente perto de fornecer uma orientação a partidos ou ministros. A minha opinião é de que o modelo principal que os socialistas e comunistas do século XX tinham em mente era o das economias de guerra dirigidas pelo estado da I Guerra Mundial, que não era particularmente socialista mas oferecia alguma orientação sobre como uma socialização poderia funcionar. Não o surpreende que as esquerdas mar-
Os problemas básicos do século XXI requerem soluções com as quais nem o mercado puro, nem a democracia liberal pura podem lidar de forma adequada. entre 1945 e início da década de 1970. Com “bem sucedida”, referes-te à elevação do nível de vida nos anos do pósguerra? Bem sucedida na medida em que tanto alcançou lucros como assegurou algo como uma população politicamente estável e socialmente satisfeita. Não era o ideal, mas era, por assim dizer, capitalismo com um rosto humano. E considera que o interesse renovado por Marx foi também ajudado pelo fim dos estados marxistas/leninistas? A sombra leninista foi afastada e foi possível regressar à natureza original dos escritos de Marx? Com a queda da União Soviética, os capitalistas deixaram de ter medo e nessa medida tanto eles como nós pudemos realmente olhar para o problema de uma forma muito mais equilibrada, menos distorcida pela paixão do que antes. Mas foi mais a instabilidade desta economia neoliberal globalizada que penso que começou a tornar-se tão evidente no final do século. Repare, de certa forma, a economia globalizada era efectivamente executada pelo que podemos chamar de Noroeste
capitalismo financeiro do Ocidente moderno. Entretanto, o Brasil, a Rússia, a Índia e a China – “BRIC” – estão a ver as suas economias crescer em modelos cada vez mais capitalistas ao mesmo tempo. Ou é esta simplesmente a nossa vez de sofrer a crise que eles tiveram há 10 anos? O crescimento real dos países BRIC é algo que tem acontecido nos últimos 10 anos, 15 anos no máximo. Portanto, nessa medida, pode dizer-se que foi uma crise do capitalismo. Por outro lado, penso que há um risco em assumir-se, como fazem os neoliberais e defensores do livre mercado, que há apenas um tipo de capitalismo. O capitalismo é, se quiser, uma família, com uma variedade de possibilidades, do capitalismo de estado de França ao mercado livre da América. É, portanto, um erro acreditar que a ascensão dos países BRIC é simplesmente a mesma coisa que a generalização do capitalismo ocidental. Não é: a única vez que eles tentaram importar o fundamentalismo de mercado livre foi para a Rússia o que redundou num falhanço absolutamente trágico. Levantou a questão das consequências
xista ou social-democrata tenham falhado em explorar a crise dos últimos anos politicamente? Estamos aqui sentados cerca de 20 anos após o declínio de um dos partidos que mais admira, o Partido Comunista de Itália. Não o deprime o estado actual da esquerda na Europa e não só? Sim, claro. De facto, uma das coisas que tento mostrar no livro é que a crise do marxismo não é só a crise do ramo revolucionário do marxismo do ramo social-democrata também. A nova situação na nova economia globalizada acabou por matar não apenas o marxismo-leninismo mas também o reformismo social-democrata – que era essencialmente a classe trabalhadora a exercer pressão sobre os seus estados nacionais. Mas com a globalização, a capacidade dos estados em responderem a essa pressão efectivamente diminuiu. E assim a esquerda recuou sugerindo: “Vejam, os capitalistas estão bem, tudo o que precisamos fazer é deixá-los fazer tanto lucro quanto puderem e ver se garantimos a nossa parte”. Isso funcionou quando parte dessa fracção resultou na criação de bem-estar social, mas a partir da década de 1970, isso já não funcionava e o que se tinha de fazer na altura foi, com efeito, o
18 2 2011
h
i d e i a s f o r t e s
que Blair e Brown fizeram: deixá-los fazer tanto dinheiro quanto possível e esperar que o suficiente vá pingando para fazer o nosso povo viver melhor. Então havia aquela barganha faustiana de que durante os bons tempos, se os lucros eram saudáveis e o investimento podia ser garantido para a educação e saúde, não fazíamos muitas perguntas? Sim, desde que o nível de vida melhorasse. E agora com os lucros a desaparecer, estamos a lutar para obter respostas? Agora que estamos a ir por outro caminho nos países ocidentais, onde o crescimento económico está relativamente estagnado, ou mesmo em declínio, então a questão das reformas volta a tornar-se muito mais urgente. Vê como parte do problema, no que diz respeito à esquerda, o fim de uma classe trabalhadora consciente e identificável, que era tradicionalmente essencial à política social-democrata? Historicamente, é verdade. Foi em redor dos partidos das classes trabalhadoras que os governos e reformas social-democratas cristalizaram. Esses partidos nunca ou raramente foram completamente classe trabalhadora. Eram, em cerda medida, sempre alianças: com certos tipos de intelectuais de esquerda, com minorias, religiosas e culturais, possivelmente muitos países com diferentes tipos de trabalhadores pobres. Com excepção dos Estados Unidos, a classe trabalhadora manteve-se como um bloco maciço e reconhecível durante muito tempo – certamente até bem dentro dos anos 1970. Penso que a rapidez da desindustrialização neste país tem sido infernal não só para o tamanho mas também, se quisermos, para a consciência da classe trabalhadora. E não há país actualmente onde a classe trabalhadora industrial pura seja em si mesma suficientemente forte. O que é ainda possível é que a classe trabalhadora forme, por assim dizer, o esqueleto de movimentos mais amplos de mudança social. Um bom exemplo disso, à esquerda, é o Brasil, que tem um caso clássico de um partido trabalhista de final de século XIX baseado numa aliança de sindicatos, trabalhadores, pobres em geral, intelectuais, ideólogos e vários tipos de esquerdistas, que produziu uma notável coligação governante. E não se pode dizer que seja uma coligação mal sucedida após oito anos de governo com um presidente cessante com taxas de aprovação de 80%. Hoje, ideologicamente, sinto-me mais em casa na América Latina porque se mantém como a parte do mundo onde as pessoas ainda falam e conduzem as suas políticas na língua antiga, na linguagem do socialismo, comunismo e marxismo dos séculos XIX e XX. Em termos de partidos marxistas, algo que sobressai muito fortemente no seu trabalho é o papel dos intelectuais. Hoje, vemos grande euforia em universidade como a sua em Birkbeck, com reuniões e comícios. E se olharmos para os trabalhos de Naomi Klein ou David Harvey ou para o desempenho de Slavoj Zizek, há verdadeiro entusiasmo. Está animado com estes intelectuais públicos do marxismo de hoje? Não tenho a certeza de ter havido uma grande mudança, mas não há dúvida: perante os cortes do actual governo irá haver uma radicalização dos estudantes. Isso é uma coisa pelo lado positivo. No lado negativo, se olharmos para a última radicalização maciça de estudantes, em 1968, não chegou a ser tanto assim. De qualquer forma, como eu
pensava na altura e ainda penso, é melhor ter os jovens homens e mulheres a sentirem que estão à esquerda do que tê-los a sentir que a única coisa a fazer é conseguir um emprego na bolsa de valores. E acha que homens como Harvey e Zizek têm um papel útil a desempenhar nesse sentido? Creio que Zizek tem sido justamente descrito como um “performer”. Ele tem esse elemento de provocação que muito característico e ajuda a interessar as pessoas, mas não tenho a certeza de que as pessoas que estão a ler Zizek estejam a ser levadas a repensar os problemas da esquerda. Deixe-me mover-nos do Ocidente para o Oriente. Uma das questões urgentes que levanta no seu livro é se o Partido Comunista Chinês poderia evoluir e responder ao seu novo lugar no cenário global. Esse é um grande mistério. O comunismo acabou, mas um importante elemento do comunismo mantém-se certamente na Ásia, ou seja, o partido comunista de estado a dirigir a sociedade. Como é que isso funciona? Na China, há, penso eu, um mais elevado grau de consciência da potencial instabilidade da situação. Há provavelmente uma tendência para fornecer mais espaço de manobra para uma crescente classe média intelectualizada e para os sectores educados da população, que, afinal, serão medidos em dezenas, possivelmente centenas de milhões. Também é verdade que o Partido Comunista da China parece estar a recrutar uma liderança em grande parte tecnocrática. Mas como é que se junta isso tudo, não sei. Uma coisa que penso ser possível com esta rápida industrialização é o crescimento dos movimentos trabalhistas, e até que ponto o PCC encontra espaço para as organizações trabalhistas ou se as considerará inaceitáveis, da mesma forma como considerou as manifestações da Praça de Tiananmen, é incerto. (...) O título do seu novo livro é “Como mudar o mundo”. No último parágrafo, escreve “a superação do capitalismo continua a soar plausível para mim”. Essa esperança está intacta e é ela que o mantém hoje a trabalhar, a escrever e a pensar? Não existe esperança intacta nos dias de hoje. “Como mudar o mundo” é um relato do que o marxismo fez fundamentalmente no século XX, em parte através dos partidos sociais-democratas não derivado directamente de Marx e de outros partidos – partidos trabalhistas e de operários, etc. – que permenecem no governo e partidos de potencial governo por toda a parte. E segundo, através da Revolução Russa e todas as suas consequências. A memória de Karl Marx, um profeta desarmado a inspirar grandes mudanças, é incontornável. Estou muito deliberadamente a não dizer que não há perspectivas equivalentes agora. O que estou a dizer agora é que os problemas básicos do século XXI requerem soluções com as quais nem o mercado puro, nem a democracia liberal pura podem lidar de forma adequada. E nessa medida, uma combinação diferente, uma outra mistura de público e privado, de acção e controlo do estado e liberdade teria de ser organizada. O que iremos chamar a isso, não sei. Mas pode muito bem não ser mais capitalismo, certamente não no sentido em que o conhecemos neste país e nos Estados Unidos.
5
Os quatro antagonismos Slavoj Zizek
E
m contraste com a imagem clássica dos proletários que não têm “nada a perder além dos seus grilhões”, o que nos une é o perigo de perdermos tudo: nosso meio ambiente, nosso património genético e a possibilidade de comunicarmos livremente. Num magnífico texto curto, “Notas de um Publicista” - escrito em Fevereiro de 1922, quando os bolcheviques, depois de, contra todas as expectativas, vencerem a guerra civil, precisaram de recuar, adoptaram a Nova Política Económica e admitiram uma liberdade de acção muito mais ampla para a economia de mercado e a propriedade privada -, Lenine usa a analogia de um alpinista obrigado a retroceder na sua primeira tentativa de chegar a um novo pico para descrever o que significa o recuo num processo revolucionário, e como pode ser levado a cabo sem, oportunisticamente, trair a causa: “Imaginemos um homem que escala uma montanha muito alta, íngreme e até então inexplorada. Vamos supor que ultrapassou dificuldades e perigos inéditos, conseguindo atingir um ponto muito mais alto que qualquer um dos seus antecessores, mas que ainda não chegou ao cume. Ele vê-se numa posição em que não é só difícil e perigoso prosseguir, na direcção e pelo trajecto que escolheu, mas positivamente impossível”. Seria mais que natural, para um alpinista nessa posição, escreve Lenine , passar por “momentos de desânimo”. E o mais provável é que esses momentos se tornassem mais frequentes e difíceis caso ele pudesse escutar as vozes dos que se encontram ao pé da montanha, e “por um telescópio, a uma distância segura, acompanham sua perigosa descida”: “As vozes que vêm de baixo ressoam com alegria maldosa. Nem se preocupam em ocultá-la, riem com gosto e exclamam: “Ele vai cair de uma hora para outra! E é bem-feito para esse lunático!” Felizmente, prossegue Lenine , nosso excursionista imaginário não tem como escutar as vozes dessas pessoas. Se ouvisse, “é provável que o deixassem nauseado, e a náusea, dizem, não ajuda ninguém a manter a lucidez
mental e os pés firmes, especialmente em altitudes elevadas”. Mais adiante, Lenine aborda a situação que a recém-nascida República soviética enfrentava naquele momento: “O proletariado da Rússia atingiu uma altitude gigantesca em sua revolução, não só em comparação com 1789 [tomada da Bastilha] e 1793 [execução de Luís XVI, proclamação da República e Terror], mas também com 1871 [Comuna de Paris]. Precisamos avaliar o que fizemos e deixamos de fazer, da maneira mais desapaixonada, clara e concreta possível. Se o fizermos, conseguiremos conservar a lucidez. Não sofreremos de náusea, ilusões ou desânimo.” E conclui: “Estão perdidos os comunistas que imaginam ser possível levar a cabo uma tarefa tão memorável quanto a construção das fundações da economia socialista (especialmente num país de pequenos camponeses) sem cometer erros, sem recuos, sem numerosas alterações do que ficou incompleto ou foi feito da maneira errada. Os comunistas que não têm ilusões, que não se entregam ao desânimo e preservam sua força e flexibilidade para “começar do começo” repetidas vezes, para dar conta de uma tarefa extremamente difícil, não estão perdidos (e muito provavelmente não haverão de perecer).” Eis Lenine no que melhor tem de beckettiano, prefigurando a frase de Worstward Ho [Rumo ao Pior]: “Tente de novo. Fracasse de novo. Fracasse melhor.” A sua conclusão - começar do começo - deixa claro que não está a falar de simplesmente reduzir a velocidade e consolidar o que foi realizado, mas de descer todo o caminho de volta até o ponto de partida: deve-se começar do começo, não do ponto alcançado na tentativa anterior. Nas palavras de Kierkegaard, um processo revolucionário não é um progresso gradual, mas um movimento repetitivo, um movimento de repetir o começo e voltar a repeti-lo muitas vezes. Onde nos encontramos hoje, depois do désastre obscur de 1989? Como em 1922, as vozes que vêm de baixo ressoam à nossa volta com Continua na página seguinte
18 2 2011
h 6
i d e i a s f o r t e s
Continuação da página anterior alegria maldosa: “Bem-feito para esses lunáticos que tentaram impor sua visão totalitária à sociedade!” Outros tentam ocultar seu regozijo maldoso, gemem e erguem para o céu os olhos cheios de dor, como se dissessem: “Como nos faz sofrer ver nossos medos justificados! Como era nobre sua visão de criar uma sociedade justa! O nosso coração batia em uníssono com o vosso, mas a razão insistia em dizer-nos que os seus planos só podiam acabar em miséria e em novas restrições à liberdade!” Ao mesmo tempo em que recusamos qualquer acordo com essas vozes sedutoras, precisamos definitivamente começar do começo - não para continuar a construir com base nas fundações da era revolucionária do século XX, que durou de 1917 a 1989, ou, mais precisamente, 1968 - mas descer de volta até o ponto de partida e escolher outro caminho. Mas como? O problema definidor do marxismo ocidental tem sido a ausência de um sujeito revolucionário: como é que a classe trabalhadora não completa a sua passagem de classe em si a classe para si e não se constitui como agente revolucionário? Foi essa pergunta que forneceu a principal raison d’être para que o marxismo ocidental recorresse à psicanálise - evocada para explicar os mecanismos libidinais inconscientes que impedem o surgimento de uma consciência de classe, e que estão inscritos no próprio ser, ou na situação social, da classe trabalhadora. Dessa maneira, a verdade da análise socioeconómica do marxismo foi posta a salvo: não havia razão para ceder terreno a teorias revisionistas envolvendo a ascensão das classes médias. Por esse mesmo motivo, o marxismo ocidental envolveu-se também na procura constante de outros, que pudessem desempenhar o papel de agente revolucionário, como um actor substituto que está a postos para ocupar o lugar da classe trabalhadora indisposta: os camponeses do Terceiro Mundo, os estudantes e intelectuais, os excluídos. É possível, também, que essa busca desesperada pelo agente revolucionário seja a forma assumida pelo seu oposto exacto: o medo de encontrá-lo, de reconhecê-lo onde ele já se agita. Esperar que outro trabalhe no nosso lugar é uma forma de racionalizar a nossa inactividade. É contra esse pano de fundo que Alain Badiou sugeriu a reafirmação da hipótese comunista. Ele escreve: “Se precisarmos abandonar essa hipótese, então não valerá mais a pena fazer nada no campo da acção colectiva. Sem o horizonte do comunismo, sem essa Ideia, nada no devir histórico e político tem qualquer interesse para um filósofo. No entanto, prossegue Badiou: “Aferrar-se à Ideia, à existência da hipótese, não significa que sua primeira forma de apresentação, tendo como foco a propriedade e o Estado, precise permanecer inalterada. Na verdade, o que cabe a nós filósofos como tarefa, e até mesmo obrigação, é ajudar no surgimento de uma nova modalidade de existência da hipótese comunista.” É preciso tomar cuidado para não ler essas linhas à maneira kantiana, concebendo o comunismo como uma Ideia reguladora, e ressuscitando assim o espectro do “socialismo ético”, que tem a igualdade como sua norma ou a priori. Em vez disso, é preciso observar a referência precisa a um conjunto de antagonismos sociais que gera a necessidade do comunismo: a boa e velha ideia marxista do comunismo não como um ideal, mas como um movimento que reage a contradições reais. Tratar o comunismo como Ideia eterna implica que a situação que o gera não é menos
eterna, e que o antagonismo ao qual o comunismo reage sempre estará presente. E a partir daí estaremos a um passo apenas de uma análise desconstrutiva do comunismo como um sonho de presença, um sonho que se alimenta da sua própria impossibilidade. Embora seja fácil rir da ideia de Francis Fukuyama do “fim da História”, hoje a maioria é fukuyamista. O capitalismo liberal-democrata é aceite como a fórmula finalmente encontrada da melhor sociedade possível. Tudo que se pode fazer é torná-lo mais justo, tolerante e por aí afora. E uma pergunta simples, mas pertinente, surge aqui: se o capitalismo liberal-democrata é, senão a melhor, mas a menos pior das formas de sociedade, por que não simplesmente resignar-nos a ele de um modo maduro, ou mesmo aceitá-lo sem restrições? Por que insistir, contra ventos e marés, na hipótese comunista? Não basta permanecer fiel à hipótese comunista: é preciso localizar na realidade histórica antagonismos que transformem o comunismo numa urgência de ordem prática. A única questão verdadeira dos dias de hoje é a seguinte: será que o capitalismo global contém antagonismos suficientemente fortes para impedir a sua reprodução infinita? Quatro antagonismos possíveis se apresentam: a ameaça premente de catástrofe ecológica; a inadequação da propriedade privada para a chamada propriedade intelectual; as implicações socioéticas dos novos desenvolvimentos tecnocientíficos, especialmente no campo da engenharia genética; e por último, mas não de importância menor, as novas formas de segregação social - os novos muros e favelas. Devemos notar que existe uma diferença qualitativa entre o último, o abismo que separa os excluídos dos incluídos, e os outros três, que se referem aos domínios do que Michael Hardt e Antonio Negri chamam de commons [aquilo que é comum a todos, que é público] - a substância compartilhada do nosso ser social, cuja privatização é um acto violento ao qual se deve resistir, se necessário, pela força. Primeiro, existem os commons da cultura, as formas imediatamente socializadas do capital cognitivo: basicamente a linguagem, nosso meio de comunicação e educação, mas também a infraestrutura compartilhada, como os transportes públicos, a electricidade, os correios etc. Se Bill Gates conseguisse o monopólio, teríamos chegado à situação absurda em que um determinado indivíduo deteria a propriedade privada do software que constitui a trama da nossa rede básica de comunicação. Segundo, existem os commons da natureza exterior, ameaçada pela poluição e a exploração - do petróleo às florestas, e passando pelo próprio habitat natural. Em terceiro, os commons da natureza interior, o património biogenético da humanidade. O que todas essas lutas têm em comum é a consciência do potencial destruidor - ao ponto da autoaniquilação da própria humanidade - se a lógica capitalista levar à apropriação desses commons. E é isso que favorece a ressurreição da noção de comunismo: ela nos permite ver a apropriação paulatina dos commons como um processo de proletarização no qual os excluídos perdem a sua própria substância; um processo que é mais uma forma de espoliação. A tarefa, hoje, é renovar a economia política da espoliação - por exemplo, a espoliação dos anónimos “trabalhadores do conhecimento” pelas empresas nas quais trabalham.
O problema definidor do marxismo ocidental tem sido a ausência de um sujeito revolucionário: como é que a classe trabalhadora não completa a sua passagem de classe em si a classe para si e não se constitui como agente revolucionário?
Contudo, é apenas o quarto antagonismo, o dos excluídos, que justifica o termo comunismo. Não existe nada mais privado do que uma comunidade estatal que perceba os excluídos como uma ameaça, e se preocupe em mantê-los à devida distância. Noutras palavras, nessa série de quatro antagonismos, o crucial é o que se dá entre os incluídos e os excluídos: sem ele, todos os demais perdem
o gume subversivo. A ecologia transforma-se num problema de desenvolvimento sustentável; a propriedade intelectual, num complexo desafio para as leis; a engenharia genética, numa questão de ordem moral. Pode-se lutar com sinceridade pelo meio ambiente, defender uma noção mais ampla de propriedade intelectual, ou se opor ao patenteamento de genes, sem confrontar o antagonismo entre incluídos e excluídos. Mais ainda: algumas dessas lutas podem ser formuladas em termos dos incluídos ameaçados pela poluição dos excluídos. Dessa maneira, não alcançamos uma autêntica universalidade, mas só interesses “privados” no sentido kantiano. Empresas como a Whole Foods ou a Starbucks continuam a usufruir de boa reputação entre os liberais, embora ambas combatam os sindicatos. O segredo delas é a venda de produtos com certo matiz progressista: grãos de café comprados a preços compatíveis com o “comércio ético, justo e solidário”, o uso de dispendiosos veículos híbridos etc. Em suma, sem o antagonismo entre os incluídos e os excluídos, podemo-nos encontrar num mundo em que Bill Gates é o maior dos filantropos, combatendo a pobreza e a doença, e Rupert Murdoch é o maior dos ambientalistas, mobilizando centenas de milhões de pessoas através do seu império mediático. O que é preciso acrescentar, indo além de Kant, é que existem grupos sociais que, por conta de não ocuparem um lugar determinado na ordem “privada” da hierarquia social, surgem como representantes directos da universalidade: são o que Jacques Rancière chama de “parte de parte alguma” do corpo social. Toda proposta política de carácter genuinamente emancipador é gerada pelo curto-circuito entre a universalidade do uso público da razão e a universalidade da “parte de parte alguma”. Esse já era o sonho comunista do jovem Marx - reunir a universalidade da filosofia com a universalidade do proletariado. Desde a Grécia Antiga, temos um nome para a intrusão dos excluídos no espaço sociopolítico: democracia. A noção liberal predominante da democracia também trata dos excluídos, mas de modo radicalmente diverso: concentra o foco na sua inclusão como vozes minoritárias. Todas as posições devem ser ouvidas, todos os interesses levados em conta, os direitos humanos de todos precisam ser assegurados, todos os modos de vida, todas as culturas e todas as práticas respeitadas, e assim por diante. A obsessão dessa democracia é a protecção de todos os tipos de minorias: culturais, religiosas, sexuais etc. A fórmula da democracia, aqui, consiste na negociação paciente e no compromisso. O que se perde nela é a universalidade corporificada nos excluídos. As novas medidas políticas de carácter emancipador não serão mais produzidas por um determinado agente social, mas por uma combinação explosiva de diversos agentes. Em contraste com a imagem clássica dos proletários que não têm “nada a perder além dos seus grilhões”, o que nos une é o perigo de perdermos tudo. A ameaça é sermos reduzidos a um sujeito cartesiano abstracto e vazio, privado de todo o nosso conteúdo simbólico, com nossa base genética manipulada, vegetando num meio ambiente inabitável. Essa tríplice ameaça transformanos a todos em proletários reduzidos a uma “subjetividade sem-substância”, como define o Marx dos Grundrisse . A figura da “parte de parte alguma” nos confronta com a verdade da nossa posição. E o desafio ético-político é nos reconhecermos nessa imagem.
18 2 2011
h
l e t r a s s í n i c a s
WEN ZI 文子
A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS
Os corações são verdadeiros e pacíficos, as obras são simples e sem adorno.
Capítulo 136 Lao Tzu disse: Uma ordem social calma e clara caracteriza-se por harmonia e tranquilidade, sobriedade e simplicidade, serenidade e liberdade relativamente à agitação. Internamente unido à Via, externamente se conformando à justiça, o discurso é breve e lógico, a acção é álacre e sensível. Os corações são verdadeiros e pacíficos, as obras são simples e sem adorno. Não há calculismo no início, nem querela no fim. Estática quando calma, activa quando estimulada, [a ordem do social] forma uma continuidade com o céu e a terra, mostra a mesma vitalidade de yin e yang. A sua unidade se harmoniza com as quatro estações, a sua claridade é mais brilhante do que o sol e a lua. Aqueles que evoluem ao longo da Via são verdadeiramente humanos. A maquinação, o ardil, a fraude e o engano não se fazem transportar nos corações da gente e, assim, o céu a cobre com virtude e a terra a sustenta com conforto. As quatro estações não perdem a sua ordem, o vento e a chuva não causam estragos, o sol e a lua irradiam sua luz clara e calmamente e as estelas não se desviam do seu curso. Isto é aquilo que a claridade e a calma iluminam. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho
O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han. A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainanzi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.
7
18 2 2011
h 8
e n s a i o s o b
ilha verde
Na primeira versão do “Ensaio Sobre a Visão” vamos ensaiar Macau. Aqui, no complexo terreno percorrido pelos fotógrafos do território. Uma zona, uma rua, um edifício. A água que bebemos dentro de uma mão cheia de imagens. A Fotografia sem explicação, para que se compreenda o que é a Cidade. Esta cidade onde vivemos.
Antønio Falcão
é filho de pais alentejanos e talvez por bem ao que vinha. Um bilhete de ida, u Não sabe bem porque foi ficando. Mas d visto de outra forma. Talvez por isso te de uma câmara escura, por detrás de um porto seguro. Na Ilha Verde encontrou a vistas da habitação social embrulhadas n sim, mas muito pouco. O bom da histór
isso o tempo corra em si de outra maneira. A Macau chegou em 1994, sem saber uma mala na mão e o desoriente a entrar à pressão do lado da humidade relativa. de passo em passo os anos foram escorrendo, um atrás do outro. O tempo sempre enha ganho algum equilíbrio ao conseguir congelá-lo. Num momento só. Dentro ma confusão de lentes. 16 anos depois a fotografia continua a ser a brevidade de um a sucata de um território que, apesar da mudança, permanece sempre igual. Com as num infinito número de barris de combustível, que vem sabe deus de onde. Verde ria é que fotógrafo conseguiu pôr os pés fora de Macau.
h
18 2 2011
b r e a v i s ã o
9
18 2 2011
h
10
p r i m e i r o b a l c ã o
luz de inverno
Boi Luxo
A propósito de Óscares quase na semana deles
Os anos 90 são a década em que se assiste à diversificação e a um deslumbramento mais diversificado. Zhang Yimou, com um filme produzido na China e outro em Hong Kong, tem dois filmes nomeados, em 1990 e 1991, e um filme de Ang Lee (Formosa) é nomeado em 1994. Em 1993 são nomeados os filmes acima referidos. Nenhum deles ganhou algum prémio, ao contrário do que aconteceu em Cannes no mesmo ano (mas isso fica para a próxima semana)
N
o ano de 1993, entre os filmes nomeados a concurso ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro contavam-se 3 filmes extremo asiáticos: Farewell my Concubine, Hong Kong, de Chen Kaige, The Scent of the Green Papaya, vietnamita, de Trân Anh Hùng e o filme formosino The Wedding Banquet, de Ang Lee (autor que repetiu nomeações em 1994 e em 2000 a propósito, respectivamente, de Eat Drink Man Woman e Crouching Tiger Hidden Dragon – este último vencedor). Foi o único ano em que isso aconteceu e pode dizer-se que foi mais ou menos por esta altura, já lá vão quase 20 anos, que o cinema desta zona do mundo se começou a afirmar de um modo mais definitivo a nível internacional. Foi a partir desta altura que os prémios atribuídos em Hollywood, em Veneza, em Berlim ou em Cannes a filmes extremo asiáticos deixaram de ter um aspecto étnico e de ser uma obrigação, e pode dizer-se que é por esta altura que o cinema extremo asiático deixou de ser apreciado com condescendência. 1947 foi o ano em que pela primeira vez foi atribuído um prémio americano nesta categoria, sendo o filme recipiente desta distinção Shoeshine, de Vittorio de Sica, uma antevisão do que viria a acontecer ao longo destes mais de 60 anos – um domínio esmagador do cinema europeu. No entanto, o que aqui nos traz são aqueles filmes do extremo oriente que para esta categoria foram nomeados e/ou premiados. Pode dizer-se que as nomeações e os prémios atribuídos em Hollywood e nos chamados festivais de cinema de categoria A são os de maior consequência. São 13 os festivais que se incluem nesta categoria, mas são naturalmente os de Veneza, Berlim e Cannes que têm uma repercussão mais sonora a nível do grande público – um fenómeno que será mais importante hoje em dia, numa altura em que o acesso aos filmes em circulação e aos resultados e peripécias dos festivais é cada vez mais fácil e mais veloz.
Não admira que durante os anos 50 tenha sido o Japão o único país asiático a ter sido nomeado/premiado, uma vez que se trata do único com uma indústria de cinema suficientemente sólida, à altura, para o conseguir. Foi mesmo a década em que o cinema asiático recebeu mais prémios em Hollywood, através apenas do concurso do Japão, que se viu reconhecido como vencedor em 1951, 1954 e 1955. A carreira asiática nos Óscares, contudo, não é de um brilho que ofusque. Nos anos 60, 70 e 80 são nomeados 10 filmes asiáticos – todos japoneses – mas nenhum é premiado. De qualquer modo, percebe-se que em termos de exposição internacional o Japão é o único país desta zona a ver a luz de um sol já nascido. Os anos 90 são a década em que se assiste à diversificação e a um deslumbramento mais diversificado. Zhang Yimou, com um filme produzido na China e outro em Hong Kong, tem dois filmes nomeados, em 1990 e 1991, e um filme de Ang Lee (Formosa) é nomeado em 1994. Em 1993 são nomeados os filmes acima referidos. Nenhum deles ganhou algum prémio, ao contrário do que aconteceu em Cannes no mesmo ano (mas isso fica para a próxima semana). Na primeira década do século XXI as distinções não são também muitas: 4 nomeações (2 para o Japão, 1 para a China e 1 para a Formosa) resultam em dois Óscares – um para Crouching Tiger, Hidden Dragon (Ang Lee, Formosa, 2000) e um para Departures (Yojiro Takita, Japão, 2008), dois filmes que eu, pessoalmente, me inclino a esquecer, do primeiro tendendo a valorizar apenas o seu papel enquanto propaganda de um género chinês nostálgico maior (os especialistas asiáticos deste mesmo género apenas esboçaram um sorriso condescendente) e do segundo lembrando pouco, talvez lembrando que os rituais da morte japonesa, decentemente filmados, não poderiam deixar de agradar. A conta final apenas vem colocar a ásia extrema na posição de seguidora do cinema de corpo ocidental mas não lhe confere um lugar
muito privilegiado (23 nomeações e 5 Óscares). 15 dessas nomeações e prémios dizem respeito ao cinema japonês, em grande parte nas décadas em que este começou a ser conhecido internacionalmente. Um observador mais atento reparará na ausência de Oshima, Imamura, Mizoguchi, Ozu, Masumura, Shindo ou Suzuki da lista de nomeações, assim como reparará que de entre os outros nomeados asiáticos se conta um realizador muito ocidentalizado, Ang Lee; um outro que é porventura o realizador chinês com maior importância histórica no que respeita ao lançamento do cinema chinês na esfera internacional, mas que ultimamente se transformou numa espécie de animador de Jogos com Fronteiras (Zhang Yimou); Chen Kaige – a quem não tenho nada a apontar e cujo elogio, sendo incontornável, tem linhas que necessitam de mais tempo para precisar, e um realizador vietnamita bastante ocidentalizado, com um pendor para um tipo de quadro que não choca e é necessário e com um sentido finíssimo do ritmo - Trân Anh Hùng – mas que ainda não provou ter-se tornado em um nome de referência. O último prémio asiático, no entanto, não faz esquecer que não há actualmente no Japão nenhum grande herói internacional da realização. Não há hoje em dia nenhum realizador japonês de fama internacional que tenha atingido a notoriedade de Kurosawa, Mizoguchi, Oshima ou Ozu. Em Kitano continuamos a perceber a ausência de uma autoridade de Estado de que o cinema japonês já foi capaz. Em Takashi Miike é necessário censurar a tendência que o cobre e que o obriga a exibir o choque em detrimento da terrível finura de que já o vimos ser capaz. Hirokazu Koreeda não é um nome que excite internacionalmente qualquer tipo de reacção, mesmo que alguns dos seus filmes tenham despertado alguma curiosidade ou afecto (Nobody Knows, Maborosi, Still Walking, After Life, por exemplo). Hayao Miyzaki pertence a um tipo de produção (a animação) que o coloca num lugar excêntrico a estas considerações.
Para um país que produz tantos filmes, e fálo agora com uma prodigalidade a que se não assistia desde os anos 50, há um déficit grande de heróis. O Japão é, creio, o quarto produtor mundial de filmes depois da Índia, dos E.U.A. e da China e se mais de 50% dessa produção é de filmes de animação, sobram ainda muitas produções que o não são. Se alguém quiser ver neste estado de coisas, nesta desinternacionalização do cinema japonês, nesta falta de peso, um sinal de uma decadência do Japão, não serei eu que o vá contradizer. Retornando ao historial dos Óscares, detectam-se, assim, 3 fases no que respeita ao reconhecimento do cinema da ásia extrema. Uma primeira fase totalmente dominada pelo Japão, em termos de nomeações e prémios; uma segunda fase, nos anos 90, que pertence ao reconhecimento da diversidade e qualidade do cinema asiático extremo pelo concurso de filmes provenientes da China, da Formosa e de Hong Kong, e uma terceira fase, a actual, em que permanece um afastamento do que de mais importante se faz na Ásia, e onde se manifesta um desconhecimento de uma cinematografia muito pujante, a sul coreana, que nunca viu sequer qualquer nomeação, ou a ausência de um nome querido dos circuitos europeus, Apichatpong Weerasethakul. Este historial é de certo modo repetido, nas suas primeiras fases, pelo historial dos 3 festivais europeus de maior influência, acima referidos. Mas esse será um regard que será feito na próxima semana. Ps.:Tratando-se este de um jornal em português, a título de curiosidade mórbida informe-se que são poucos os filmes nomeados em que se fala português. Apenas um vencedor, o de 1959, é um filme nesta língua, Orfeu Negro, um filme do realizador francês Marcel Camus, feito no Brasil, uma adaptação da lenda grega de Orfeu e Eurídice filmada numa favela do Rio de Janeiro durante um Carnaval (foi igualmente Palma de Ouro em Cannes), a observar por otakus lusófilos.
Os domadores de vermes Antønio Falcão A pergunta não é estapafúrdia de todo e faz-se de uma assentada: o que há melhor do que o primeiro álbum dos Grinderman? Só mesmo o segundo disco dos Grinderman. E daqui pode-se pegar na resposta e fazer a questão ao contrário. A réplica será sempre a mesma, a fórmula toca de um lado e do outro. Grinderman é uma banda de cinquentões cheios de raiva, que respiram som e fúria mesmo enquanto estão a dormir. Nick Cave, Martyn P. Casey, Warren Ellis e Jim Sclavunos. Em comum os Bad Seeds. Segundo rezam as crónicas, as sementes ruins não eram suficientes. Era preciso mais electricidade, mais palavreado, mais noites perdidas para remoer a vertigem dos pesadelos. Mas não é preciso ir mais longe, o passado fala por si. Sclavunos, o baterista, o único americano do quarteto, ganhou o travo no underground nova-iorquino. Logo no início, em 1978, três bandas: The Gynecologists, Teenage Jesus and the Jerks e Beirut Slump. A estrada estava feita. Nos 80’s um pé nos Sonic Youth, dez anos depois nos The Cramps juntandose à banda de Cave em 1996. Casey, o inglês, iniciou-se nos The Nobodies e tornou-se notado na banda australiana The Triffids, em 1992 após o desmoronamento do grupo, com a morte do seu líder, David McComb, junta-se aos Bad Seeds. Apanhando o comboio no álbum Henry’s Dream. Ellis, multi-instrumentalista, começou a crescer de forma torta no dia em que se juntou ao projecto do compatriota Nick Cave. Estávamos em 1995. A história dos Grinderman deu-se quando Cave pegou numa guitarra e começou a compor, coisa que nunca tinha feito antes com este instrumento. Da sua maneira rudimentar de tocar despontam sons crus e agrestes, muito para lá da selvajaria imposta pelos Bad Seeds. Daí para o estúdio foi apenas um passo. O primeiro compasso solta-se na Primavera de 2007, com os hits No Pussy Blues e Get It On. Os Grinderman nasciam. A partir daí as centrais eléctricas de todo o mundo tinham mais uma razão para se preocuparem. O campeonato estava muito mais aguerrido. Em Setembro do ano passado surge a segunda aparição. Mas aí o cenário já é outro. Nessa altura os pastorinhos já estavam todos cá em baixo a uivar. Para ouvir “Worm Tamer”, “Heathen Child” e tudo o que venha a seguir.
Grinderman
Nick Cave (voz, guitarra eléctrica, teclas) Warren Ellis (guitarra, violino, bouzouki, vozes) Martyn Casey (baixo, vozes) Jim Sclavunos (percussões, vozes) Electricidade de garagem I www.grinderman.com
h
18 2 2011
t e r c e i r o o u v i d o
próximo oriente
Hugo Pinto
11
O exemplo T(h)ree
E
m Maio do ano passado foi lançado ao público em Macau e Hong Kong e agora teve edição oficial em Portugal, cumprindose assim o desígnio primeiro de juntar os três territórios. Refiro-me ao disco “T(h)ree - New Musical Roots From Portugal, Hong Kong and Macau”. Relembro: é um projecto que envolve 33 bandas, um total de 100 músicos e 17 temas, todos criados à distância por parelhas que a intuição e o trabalho do produtor David Valentim juntaram. Músicos tocando e trocando ideias com músicos que, na maioria dos casos, nunca viram e nem sequer tinham ouvido. Do inicial “blind date” a coisa evoluiu até uma relação que solidificou nos tais 17 temas: 17 viagens cruzando a distância entre dois continentes, sintonizando sons de diversos géneros e estilos, aliando talentos de veteranos e de promessas; 17 viagens na companhia de Balla, A Naifa, Hipnótica, O Monstro, Evade, Unixx, Winnie Lau e muitos outros. Outros mundos finalmente encontrados. Esta heterogeneidade que se saúda sempre é em si mesma um extraordinário mérito deste projecto - um mérito que se traduz na riqueza musical, mas também na riqueza da experiência.
Num tempo em que nos levam a acreditar que o mundo inteiro está ao alcance de um clique, num tempo em que em vez de um mundo temos uma “aldeia global”, a iniciativa de fazer um disco “à distância” entre músicos separados em diferentes pontos do geográficos é um exercício de resistência aos equívocos de que o mundo ficou mais pequeno por causa da globalização e de que a própria globalização é um dado adquirido, uma espécie de direito natural, automático e instantâneo. “T(h)ree” mostra-nos que o mundo é ainda o lugar de sempre: o mesmo planeta, a Terra com as mesmas geografias, latitudes e longitudes. Tudo permanece longínquo numa distância real, física e imutável, e só haverá “globalização” se houver esta distância - a distância que apenas pode ser virtualmente diminuída.
Além da Taprobana Outro mérito desta iniciativa é o seu pioneirismo. No final de 2006, o Goethe-Institut patrocinou um programa de intercâmbios entre produtores de música electrónica oriundos da Alemanha e de vários países do Sudeste Asiático e da Oceânia. A Alemanha foi o primeiro centro nevrálgico da música electrónica e nos últimos anos voltou a assumir esse papel, com Berlim uma vez mais transformada
no “sítio” onde é preciso estar no mundo da “elektronische musik”. Consciente desse imenso capital, o Goethe-Institut tomou a iniciativa e estendeu a diplomacia cultural à “club culture” e ao Extremo Oriente, o “Novo Mundo” do nosso tempo. Projectos deste tipo são, felizmente, cada vez mais frequentes, mas não posso deixar de notar quão longe estamos de os imaginar a nascerem em Portugal, onde ainda se “refunda” o Instituto Camões e se entretêm a implementar essa peregrina ideia chamada “acordo ortográfico”. Mesmo contando os séculos de relações com este lado extremamente oriental do mundo, aqui, Portugal continua a ser um país vagamente presente, com poucas políticas ou acções consequentes de promoção do intercâmbio cultural além da “Língua”. Resta a boa vontade individual de cada um que decide deitar mão à obra e dar novos mundos ao mundo. Foi isso que se fez com esta iniciativa chamada “Three”. Apesar das distâncias, dos entraves, das dificuldades e do apoio que faltou, ou por causa disso tudo – resistir pode ser força motriz –, um projecto raro viu a luz do dia. E isso, para quem gosta de música e, mais do que tudo, horizontes largos, é uma excelente notícia que devia deixar-nos agradecidos e a chorar por mais.
18 2 2011
h
12
c i d a d e s i n v i s í v e i s
o espaço e o risco
Mário Duque
Invólucros I
nvólucros de edifícios são transições entre interior e exterior e por isso desempenham um papel particularmente importante na organização de “territórios”. Num contexto físico o invólucro é o dispositivo que permite modificar as condições naturais em que o meio se nos apresenta, nomeadamente os elementos do clima. Num mundo continuamente urbanizado permite estabelecer a transição entre o espaço privado e o espaço urbano, demarca propriedade e define níveis de privacidade. Também por isso se lhe acrescem funções estéticas e culturais. Os invólucros são também os elementos da construção que mais contribuem para a identificação do objecto arquitectónico e que são mais portadores da marca do seu autor. Postos em contexto, é também o elemento que mais contribui para a paisagem da cidade. É por isso uma das componentes construtivas a que recorrentemente se dedica particular atenção. Determinados partidos de concepção, tais como, a aparência exterior da arquitectura dos edifícios dever reflectir a sua vida interior ou a sua forma corresponder à sua função, são condições para serem asseguradas na definição dos invólucros desses edifícios. Desde que as fachadas dos edifícios deixaram de assegurar o suporte das cargas passaram também a ser designadas antes por “cortinas” ou “peles”. Inicialmente eram lisas e frequentemente estéreis e foi isso que marcou a paisagem urbana ao longo de várias décadas do séc. XX. Recentemente a superfície dessas “cortinas” ou “peles” – o mesmo é dizer a sua constituição – tornou-se objecto preponderante de investigação. Tal ênfase nessas superfícies é também muitas vezes apontado de superficialidade, quando o invólucro do edifício tornar-se um mero artifício de embalagem, se bem que é sempre difusa a linha que separa uma “pele” com sentido, de uma embalagem ornamental. Mesmo na época alta do modernismo, marcada pela procura da verdade e clareza nas opções das componentes construtivas, esse desígnio nem sempre era preenchido. À medida que as exigências técnicas crescem em complexidade e em resultado de orientações cada vez mais rígidas no que respeita à conservação de energia e ao balanço térmico dos edifícios, os seus invólucros evoluíram também para sistemas de componentes múltiplas que raras vezes são expressão do que se passa no seu interior. Mas também, hoje em dia,
um edifício dificilmente pode reflectir na sua fachada o seu uso, quando esses usos se alteram várias vezes no ciclo de vida dos edifícios, ou quando os programas funcionais desde início se definem flexíveis para poderem acomodar usos diferentes a qualquer momento. A resposta dos arquitectos a essas novas modalidades e usos na geração da informação revela-se também diversa. Alguns adoptam componentes intensas como são intensos os usos desses edifícios, recorrendo a informação imagética vibrante e colorida, em suportes serigrafados ou animada em ecrãs iluminados, outros contemplam a qualidade dos materiais antigos em acabamentos neutros – pedra maciça, betão à vista, madeira sem acabamento aparente ou alvenaria de tijolo – como chamada de atenção ou demonstração da realidade que é a presença física e sólida de um edifício, num mundo que progride em virtualidade. Entre estes extremos emergiu outra opção igualmente contemporânea: O invólucro do edifício como uma “pele” reagente que se revelou ser a componente essencial num conceito de conservação de energia. Isso compreende o emprego de elementos, tais como, estores, telas e grelhas, fixos e móveis, superfícies de vidro compostas em camadas múltiplas, equipadas com dispositivos de corte térmico, sombreamento, atenuação de encadeamento e reflexo, encaminhamento de iluminação natural, tudo para gerar ganhos de energia e assim fazer face à crescente escassez de matérias primas e ao aumento se emissões de CO. Essa é também a resposta que reúne aspectos que são atribuição das disciplinas da arquitectura, consubstanciando ideias de arquitectura que se fundam no sentido da vida contemporânea, sendo a arquitectura, ela própria, suporte dessa contemporaneidade. A ideia da “pele” dos edifícios reforça também a ideia do corpo arquitectónico como organismo, embora abstracto. Nos edifícios, de entre as muitas funções que se desempenham com elevado nível de elaboração, a função e o condicionamento do seu invólucro, à semelhança do corpo dos humanos, não só é sinónimo de expressão cultural e de relação social, mas também de bem estar e de saúde. Naquilo que a arquitectura nos assiste, a “pele” dos edifícios será sempre a nossa segunda pele. Face a toda esta realidade emergente, por demais patente nesta Exposição Universal de Xangai, o tema dos invólucros dos edifícios afirma-se hoje com particular preponderância no curso da história da arquitectura, abrindo caminhos de experimentação, desafiando limites e questionando muitos dos acertos tradicionais, com novos conceitos e materiais.
escritos de passagem
Ana Paula Dias
Macau é uma casca. Penso que é preciso muito tempo para saber o que lá está dentro. Podia ser um caso de amor. Mas o amor deve ter uma profundidade mais profunda que a dos aterros, que a da terra que foi roubada ao rio e sobre a qual se construiu o admirável mundo novo dos casinos - deslumbrantes, imensos, impactantes, mas assentes num chão que não existe.
made in china Um instantâneo de Macau Macau (em chinês: 澳門; cantonês: Oumun; pinyin: Àomén) é uma Região Administrativa Especial da República Popular da China desde os primeiros momentos da madrugada do dia 20 de Dezembro de 1999. Antes desta data, Macau foi colonizada e administrada por Portugal durante mais de 400 anos e é considerada o primeiro entreposto, bem como a última colónia europeia na China. In Wikipedia
T
alvez primeiro seja o calor. Para quem gosta dele. Envolve-nos mal pomos o pé fora do jetfoil, como um abraço confortável e húmido que se cola à pele. É um calor denso e pesado, que não dá tréguas, que entra na respiração e parece conseguir chegar até à alma. Claro que há quem não o suporte. Comigo foi o reencontro com uma sensação perseguida, entrevista, de outras terras e lugares com os quais o primeiro embate é físico e só depois racional. A seguir talvez seja o movimento incessante, qualquer coisa que pulsa duma vitalidade colorida, simultaneamente berrante, suja, kitsch e harmoniosa. Os milhares de néones, a desordem barroca do inexistente ordenamento territorial, os prédios e lojas encavalitados, as ruas labirínticas. As ruas por detrás das ruas principais a levar-nos de imediato para um território obscuro, mais silencioso, mais cinzento. Os rostos inexpressivos, as pessoas que passam por nós lado a lado nem curiosas, nem hostis, que apenas parecem não nos ver. Deambula-se facilmente por esta cidade com essa sensação de estar noutra dimensão, paralela e, como tal, impenetrável. E talvez esse seja o segundo trunfo de Macau – a liberdade de pisar um chão ao mesmo tempo familiar e estranho. Porque a sensação é de familiaridade, não haja equívocos. A calçada portuguesa, da qual só nos apercebemos ao fim de algum tempo, de tão próxima, a toponímia feita de palavras conhecidas e por vezes um pouco
h
18 2 2011
à s u p e r f í c i e
deslocadas, como se tivessem deslizado de outro tempo e chegado até aqui ao século vinte e um como ecos dessa errância histórica de centenas de anos que nos está nos genes. Palavras que escorregaram e se instalaram à sua maneira ingénua, desconcertante, arcaica nas tabuletas, nos anúncios, mesmo nos serviços públicos, nos domínios institucionais. Palavras portuguesas. Talvez ainda sejam os portugueses que aqui vivem, portugueses ilhéus duma pátria idealizada ou mítica. Portugueses que falam em eles e em nós e que não são uma coisa nem outra, conformados à geografia da terra, parecidos com as tais palavras extemporâneas que povoam as ruas. Que comem bacalhau e saudade em restaurantes portuguesíssimos com bandeiras do sporting ou do benfica e ao fim de vinte anos de permanência continuam a detestar a comida local que nunca provaram. Mais uma vez, surpreendentes na sua generosidade, por vezes manhosa, interesseira, mas que está lá. Que fazem questão de acolher, «ensinar» quem chega, avisar sobre as perfídias da terra. Portugueses que dificilmente voltarão a viver em Portugal, que dificilmente serão felizes noutro local, que usam o verbo ir e raramente o verbo voltar. Podem ser os souvenirs locais, os muito típicos galos de Barcelos e os pastéis de nata egg tarts que consta serem péssimos. O cheiro doce e intenso em algumas ruas, um cheiro indecifrável a coco, os numerosos vãos de escada onde se vendem espetadas com pedaços de comida que oscila à vista entre o vegetal e o animal, tudo cozido no mesmo caldo espesso e intenso. De novo a tentação, a hesitação entre a repulsa e a prova. As pessoas a comerem na rua a toda hora, o exotismo hábil dos pauzinhos, a delicadeza de alguns sabores, a beleza de algumas composições gastronómicas. O luxo dos muitos restaurantes, o típico das barraquinhas de rua. Ou a luz. A luz que não é luminosa a maior parte das vezes. Baça. Baixa. Uma luz sem horizonte, sem espaço. Que às vezes pesa, que às vezes oprime amareladamente o peito. Dizem
que chega a haver quarenta e cinco dias seguidos sem sol, só este contínuo manto nevoento que às tantas parece um sonho onde tudo flui fantasmagoricamente, silenciosamente e o coração começa a bater mais devagar, como nos contos de fadas em que o tempo se suspende na imobilidade do presente. Podia ser um caso de amor. Mas Macau é também a proliferação ad nauseam das coisas acessíveis. Coisas. Objectos. Novidades. Brinquedos. Coisas que se coleccionam compulsivamente, que se adquirem, todos os dias, continuamente – porque são acessíveis. Porque são novidade. Que não se usam? Que não se desfrutam? Que não nos fazem falta? Que se têm para estarem à mão, para sabermos que estão ali quando as quisermos? Que se vão juntando até já não sabermos quais, quem, como são, qual a sua individualidade, porque nos aproximámos delas em primeiro lugar? São as compras e o consumo, é a evidência do que dizem os economistas, os jornais ou as notícias sobre a liderança económica da China no cenário mundial. O que não deixa de ser irónico se pensarmos que o país se chama República Popular da China e tem um regime comunista. Esta insaciedade é histórica, sociológica ou é estrutural, o mundo a caminho de lado nenhum? Talvez Macau seja uma alegoria ou uma metáfora. É de certeza. Vai-se a gongbei, passa-se para a China como se diz por cá e compram-se todos os livros, todos os dvd’s, todas as malas, sapatos, relógios, telemóveis de todas as marcas de todos os últimos modelos em todas a cores e tamanhos. Made in China. Igualzinho ao original, se é que o original existe. Volta-se carregado. Volta-se mais vazio? Macau é uma casca. Penso que é preciso muito tempo para saber o que lá está dentro. Podia ser um caso de amor. Mas o amor deve ter uma profundidade mais profunda que a dos aterros, que a da terra que foi roubada ao rio e sobre a qual se construiu o admirável mundo novo dos casinos - deslumbrantes, imensos, impactantes, mas assentes num chão que não existe.
13
18 2 2011
h
14
Túlio Vargas Dois Cartões Postais Sebastian Spini Se a escrita de cartas se equipara à construção laboriosa de um romance, ou de qualquer peça literária de maior fôlego, exigindo que o remetente domine algumas das regras básicas do funcionamento da máquina que engendra a narrativa e cujo objectivo é a sujeição total do leitor ao que lhe é narrado, a exigência da sua atenção total, o cartão postal é apenas um fragmento de um discurso maior e contínuo, discurso esse do qual é separado pela intervenção do remetente de cartões postais -uma entidade distinta do remetente de cartas - e cuja primeira regra é a descontinuação da continuidade. Posto isto, posta também a minha inabilidade de olhar para além da próxima colina com verdadeira curiosidade, - uma condição fundamental no surgimento do romancista ou do epistolarista, por oposição ao postalista - venho por meio deste informá-la que me metamorfoseei num feroz postalista, satisfeito com os fragmentos que encontro do meu lado da colina, e os quais deste modo passarei a comunicar-lhe. - À Mãe, aos quatro de Novembro de 1934, Montes Claros Chegámos ao restaurante à hora marcada. O careca ergueu um dedo para o dono. Mais um!, disse ele e apontou depois para mim. Agora é que o senhor me estragou a noite, exclamou o gordo, que se postou a coçar a cabeça, onde restavam ruínas daquilo que em tempos teriam sido abundantes caracóis, estruturas frágeis mas trabalhadas com esmero. Acariciavaas, pensativo, um homem que gostava de agradar aos clientes. Resolveu o problema da forma mais simples, mandando trazer mais uma cadeira e rearranjando os sendeiros de que dispunham os seus garçons, dificultando-lhes os passos mas sentando-nos, apesar de tudo, com o que a mim me pareceu grande conforto. Ao Senhor Júlio Vargas, meu irmão, por ocasião de um jantar em Belo Horizonte, aos 19 de Fevereiro de 1941.
[Sebastian assina com o nome “Rodrigo Martins”]
r
Eles também precisam de patroa Rodrigo M. Deus Sempre olhei com fascínio para os piropos. Tenho-os em conta de património não edificado da nossa secular cultura. Às vezes encosto-me junto a um bom estaleiro de obras e fico ali à espera que o piropo aconteça. E que coisas já ouvi eu! Não sabia que as flores andavam, não tenhas medo de ser feliz e o mais tradicional ò boa! Isso é só teu? O interesse na coisa é bem maior que etnológico. Mete antropologia, psicologia clínica e até um pouco de desassossego. É improvável mas, em cada uma daquelas cenas, fico sempre à espera, com grande ansiedade, que uma das visadas se vire para trás e responda: sim! É tudo meu! Anda cá e possui-me que eu não tenho medo de ser feliz. Adorava. Adorava ainda mais saber se alguns daqueles galifões já sacou mais que um dedo esticado à conta do galanteio. No entanto, diz o bom senso, que é escusado perguntar-lhes pela taxa de sucesso. A verdade é que a possibilidade de arranjar patroa, com um piropo, é quase tão grande como a hipótese de pescar um espadarte no Rio Trancão. Sabendo isto, o que move pedreiros, estivadores e taxistas, para além do amor à arte? As teses divergem. Clínicos defendem que o piropo causa um certo apaziguamento da tensão sexual, própria de ambientes com excesso de testosterona. Ou seja, galar gajas boas previne que os pedreiros acabem a olhar uns para os outros enquanto objectos de desejo. Ao invés, académicos evolucionistas, atribuem ao piropo o mesmo papel que a cauda tem no pavão ou que os cornos têm no veado: demonstrações exteriores de aptidão sexual. Nesta lógica de ter a virilidade na ponta da língua, entre o fazia e o acontecia, o taxista que um dia gritou pela janela que curvas! E eu sem travões! era macho, humorista e rabejador, tudo ao mesmo tempo. A tese faz algum sentido. O pombo incha o papo, o pavão mostra a cauda o político exibe a importância, o advogado mostra o dinheiro e o estivador manda a bujarda. Todos fazemos o que podemos para impressionar. Na prática nem somos muito diferentes dos pedreiros, só não temos é tanta graça. [Rodrigo foi repescado do altar de uma igreja]
a
i
o
High Tech Racing
Espaço Soma
Coelhinhos
Ring Joid
Aldous Huxley
Harold Pinter
Hoje peguei no telefone e fiz uma pista no HTR. Uma pista cheia de curvas e contra curvas. O HTR é um simulador de slot-cars, daqueles à moda antiga. Um manípulo na mão para acelerar e os carros eléctricos sobre um carril lá embaixo, numa pista que se vai montando como bem nos apetecer. O meu médico diz que fazer uma pista com muitas curvas é sintoma de depressão. É sintoma de que as coisas não estão bem. E ele tem razão. Mas não pude evitá-lo. Era uma pista linda. Começava com uma longa recta, como se fosse uma sinfonia. Um fio que se desenrola para ganhar balanço até chegar ao que vem a seguir, de rompante, e que não é mais do que um obstáculo. O meu afunilava a largura das quatro vias deixando espaço para uma só viatura. Depois seguiam-se curvas e mais curvas, para um lado e para o outro, sem parar. Um exagero. Muito poucas rectas, a não ser para ganhar mais balanço para um loop que havia a meio. E mais curvas e contra curvas. Largas e apertadas, até se unirem com a outra ponta do circuito, fechando-o, para que tudo faça sentido e possa existir. Para que se torne jogável. Para que eu me torne jogável, existindo. O meu médico diz-me: “Mande-me tudo o que fizer”. E eu, foi o que fiz. Mandei imprimi-la, coloquei-a dentro de um envelope e fui à estação dos correios para a enviar. Não gosto de emails. Dizem-me que é muito mais fácil, mas eu digo que não, que não é nada fácil. Que é uma coisa horrível, enviar um email.
– Acredito bem que é alguma coisa! – respondeu o administrador. – Os homens e as mulheres precisam de que se lhes estimulem de vez em quando as cápsulas supra-renais. – Como? – perguntou o Selvagem, que não compreendera. – É uma das condições da saúde perfeita. Foi por isso que tornámos obrigatórios os tratamentos de SPV. – SPV? – Sucedâneo de Paixão Violenta. Regularmente, uma vez por mês, irrigamos todo o organismo com uma torrente de adrenalina. É o equivalente fisiológico completo do medo e da cólera. Todos os efeitos tónicos provocados pelo assassínio de Desdémona e pelo facto de ser assassinada por Othello, sem nenhum dos seus inconvenientes. – Mas os inconvenientes agradam-me. – Mas não a nós – volveu o administrador. – Nós preferimos fazer as coisas com todo o conforto. – Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o autêntico perigo, quero a liberdade, quero a bondade, quero o pecado. – Em suma – disse Mustafá Mond –, você reclama o direito de ser infeliz. – Pois bem, assim seja! – responde o Selvagem em tom de desafio. – Reclamo o direito de ser infeliz.
Perguntam-me muitas vezes como nascem as minhas peças. Não sei dizer. Nem sou capaz de resumir nenhuma das minhas peças, só sei dizer: foi isto o que aconteceu. Foi isto que disseram. Foi isto o que fizeram. A maioria das peças nasce de uma frase, uma palavra ou uma imagem. À palavra junta-se quase de seguida uma imagem. Vou dar dois exemplos de duas frases que me vieram à cabeça de forma inesperada e a que logo se seguiu uma imagem, que eu depois segui. As peças são O Regresso a Casa e Há Tanto Tempo. A primeira frase de O Regresso a Casa é: “O que é que fizeste à tesoura?”. A primeira frase de Há Tanto Tempo é “Escuro”. Em qualquer dos casos, eu não tinha mais informações. No primeiro, era evidente que alguém estava à procura de uma tesoura e perguntava pelo seu paradeiro a outra pessoa, de quem suspeitava tê-la roubado. Mas eu sabia, de alguma maneira, que a pessoa a quem a pergunta era feita se estava nas tintas para a tesoura e até mesmo para quem lhe fazia a pergunta. «Escuro» achei que era a descrição do cabelo de alguém, o cabelo de uma mulher, e era a resposta a alguma pergunta. Em qualquer dos casos, senti-me obrigado a prosseguir. Isto passou-se visualmente, numa gradação muito lenta, da sombra para a luz. Quando começo uma peça, chamo sempre A, B ou C às minhas personagens. Na peça que viria a ser O Regresso a Casa, vi um homem entrar numa sala despojada e fazer uma pergunta a outro homem mais novo que estaria sentado num feio sofá a ler um jornal de apostas de cavalos. Tinha a ideia que A seria um pai e B seu filho, mas não tinha qualquer prova. Isso, no entanto, seria confirmado daí a nada quando B (que viria a ser Lenny) diz a A (que viria a ser Max), «Pai, importas-te que eu mude de assunto? Queria fazer-te uma pergunta. O que comemos ao jantar, como é que se chamava? Que nome é que dás àquilo? Porque é que não compras um cão? És um cozinheiro de cães. A sério. Achas que estás a cozinhar para a matilha de cães.» Ou seja, a partir do momento em que B chama «Pai» a A, pareceu-me aceitável que fossem pai e filho. Claramente, A é também o cozinheiro e a sua arte não parecia ser muito apreciada. Quereria isto dizer que não havia mãe? Não sabia. Mas, como disse para comigo na altura, os nossos princípios não sabem como serão os nossos desenlaces.
(Nunca enviei um email. E nem vou enviar!) Dias depois dou com o número do meu médico a tocar. Diz-me o que eu já sabia que ia dizer. Que tenho de relaxar, que tenho de viajar mais e possivelmente mudar de hábitos. “Mudar radicalmente de vida!”, exalta-se ele ao telefone, como se aquilo fosse uma grande novidade. E eu respondo-lhe: “Não, Doutor. O que se passa é que nesse dia estava desesperado, muito desesperado”. “Porquê?” – atavia-me ele. “Olhe, porque na verdade nada faz sentido.” E então para sair disto faço curvas e contra curvas, para que tudo se torne ainda mais difícil. Mas muito mais legível e que se resolve apenas com o acelerar. Por isso o HTR é a melhor das terapias. (Mas seja como for. Ninguém me vai convencer a enviar um email.)
[Nas horas vagas Ring é motorista de carros de aluguer]
[Aldous morreu uma hora e dez minutos antes do assassinato de John F. Kennedy na sua aldeia perto de Guildford, em Inglaterra]
[Harold gostava de encontrar os dias felizes]
X
O FOsso
Carlos Morais José
Tema recorrente e dramático deste novérrimo Macau: o fosso entre rico e pobres. Pois que se alarga, berram uns. Pois que não queremos saber, sussurram outros. Mas, bem vistas as coisas: Que fosso é este? Que fauna o habita e sobre que medita?, pergunta o Velho da Penha, o tal do cajado e do bornal, enquanto joga o sudoku no Etc. & Tal. Era o jogo, senhores, era o jogo, o que ele mais adorava. Mas a cidade na mesma não ficava. Não, que americano come que nem leão. E ninguém se lembrou disto. E vai daí o Evaristo, que é bom merceeiro, deixou que muitos, demais, fossem para o tal galheiro, esse sítio inominável e sem malandro prestável. Que chatice!, garantem uns, coçando o respectivo lugar com redobrado fervor. Que maçada!, explicam os outros, “é do doutor!”, não se ralando nada. Quem se rala é sempre o mexilhão, uma das espécies que habita no pontão, esse, onde o mar sempre se esfrega, qual maluca insistente, alheia a tanta refrega. “Pr’a mixilhão, não há tostão; vai todo pr’ó comilão”, reza a ladainha, que não é tua nem minha, mas do povo, que remata: “Chupa ovo!”. Agora é tarde demais e está o fosso aberto. É tal o cheiro que sobe que só quem vive lá perto, aguenta tal fedor. É por amor, garantem, por amor ao patacum, ao que cai das mesas largas, pr’ós que andam a carpir magro jejum. “Como cumprir o programa?”, pensa o gordo na cama, entre voltas e travoltas. Basta dar algum à tia e logo nos cai do céu a sociedade da harmonia. “E se não for assim?”, reclama o pessimista. “Vai mas é dar volta à pista e ouvir o Grande Prémio, que já que não há pão, haja circo, haja carne pr’ó carneiro, disfarçado de leão”. Ele há muitos, com coragem, que pr’ó fosso atravessar, logo aprendem a nadar, com os olhos postos na margem. Mas não basta a viagem, que a água tem muito bacilo e é preciso contar com a fome do crocodilo. Que há tantos nesse fosso, que é debalde o esforço pr’á margem dos ricos chegar. Vais mas é parar ao mar, esse Mar da Solidão, onde não há milhão, nem recompensa qualquer. Come a sopa de colher, bate na tua mulher e não te queixes da vida que é mais triste que comprida. Estou ali a ouvir um sapo: ao pescoço um guardanapo, pela mão moça solteira. É dia de bebedeira, já garante com rancor. E na água separada, bolsa posta de pescada: ao chefe declara amor. “Claro, senhor doutor, pois que tendes mui razão. Aquele ali é um cão, vede como alucina”, diz do fosso, que confunde com a piscina. De tal modo o fosso é grande, difícil de atravessar, que não basta barco a remo, tem de aprender a remar. E depois de muito curso, afinal volta pr’a trás, prepara novo discurso, que em terra de casineiro, só não vence quem for urso. “Barco-dragão, barco-dragão, traz-me aqui um pataco”, reza a velha coitadinha, já sem comida no prato. Já sem comida no prato e pouca luz na cozinha, reza a velha ladainha. “Não faz mal, não faz mal, deixa apagar o farol, temos um novo sol, que lá da China, com tanto dinheiro, ilumina. “E vai tudo à procissão, do jornal que dá milhão, que o pobre não interessa: a comida na travessa, ainda chega pr’a mim. “Sou de fomeca sem fim, de barriga insaciável, mas garanto a toda a gente: está aqui um homem prestável. “Pau para toda a colher, só quero flutuar e no fosso navegar, ‘té vestido de mulher, se o chefe a isso obrigar: o que eu quero é navegar.” Navegar é preciso, viver não é preciso, já lá dizia o Narciso, que engolia o sorriso, à vista da outra margem. Não passava de miragem, de lugar de perdição. Olha ali aquele milhão, vem na minha direcção, vou-lhe já deitar a mão. É assim a vida no fosso, um lugar de muito esforço, sem apelo nem agravo. Ele há uns que têm tudo, para os outros nem um avo. Boa noite senhoras e senhores. Um santo fim de semana para todos, para os uns e para os outros.
h
18 2 2011
n o f i m d o m u n d o
os sete pilares da sabedoria
15
Arte da fuga
Os dirigentes do Médio Oriente andam preocupados. E o mundo também. Democracia ou califado? Ou uma democracia califal? Ou ainda: um califa democrata? Enfim, uma cáfila de sugestões que certamente deixarão o leitor mais rassuré do que antes. Enquanto os velhos autocratas e suas cortes tremem nas tripeças, pelas ruas semeiase revolução. Para saber no que vai dar não me digam que temos de recorrer ao velho Lampedusa.
O daimon veste nada Como o prometido é
de vidro: o pensamento do vazio ou o vazio do pensamento. Se deixares cair o pensamento ao chão, o que observarás não é o vazio, mas os seus cacos. Ora como tornar inteligíveis cacos de vazio? Eis como se forma toda uma escolástica para meditar nesta questão. Será então o pensamento do vazio, um vazio de pensamento? Não, se nos referirmos ao conceito e o coisificarmos. E um vazio de de pensamento, será um pensamento do vazio? Porra, lá esbarramos nós com o zen manel.
no melhor dos mundos Quando Marx,
em suas deambulações asiáticas, passou por Macau, terá sentenciado: “Mas que raio de democracia popular é esta aqui na Praxis do Leal Senado? Ora mais-valia que tivessem dado ópio ao povo”. Foi então que se iniciou a exploração do jogo, depois continuada por marxistas americanos e chineses.
Discurso do séquito “Vamos acabar com esta
impossível relação e nunca mais nos veremos”, diz ela. “Bom o mundo é pequeno”, responde ele “Sim, o mundo é pequeno mas Xangai é muito grande”. É por estas e por outras que o mundo está perdido. Aliás, oferece-se uma recompensa a quem o encontrar .
Rigor Mortis As leis anti-semitas do governo
colaboracionista de Vichy obrigavam todos os judeus a apresentarem-se às autoridades. Henri Bergson não precisava de o fazer porque a sua reputação de filósofo e Prémio Nobel isentavam-no. Mas ele fez questão de se colocar na fila com os outros. E, nessa espera, apanhou um resfriado e morreu.
Traduttore, tradittore
Caríssimos leitores, estamos hoje perante uma extraordinária tradução do Inglês para o Português, cuja repercussão na Literatura, no Pensamento e na Boémia, é indesmentível: – For old times sake! – ‘Pelo saké dos velhos tempos!
Ă€ venda na Livraria Portuguesa