ARTES, LETRAS E IDEIAS
Entrevista
Fernando Ribeiro
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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2372. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
Kenji Mizoguchi
e o advento do mal
CAMILO PESSANHA
PORTUGAL PARA QUÊ?
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DA ILHA DESERTA AO CRUZEIRO DO SUL
GUERREIROS, SANTOS, POETAS Carlos Morais José
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crise que Portugal atravessa no momento actual não é de hoje, de ontem, nem mesmo de anteontem. O país arrasta-se anemicamente há pelo menos um século e meio, como a “geração perdida”, de Antero e Eça, mostraram e os seus sucessores confirmaram. Um dos aspectos interessantes da literatura portuguesa é que inclui em si mesma uma profunda reflexão sobre Portugal e o ser português que, infelizmente, os políticos não lêem, não consultam, não ligam. Para mim, a emergência dos economistas como líderes de opinião e outorgados de capacidade decisória tem constituído parte fundamental da ruína do país. A quem pensa restou, muitas vezes ao longo do século XX, incluindo os anos da democracia, abandonar o país e pregar noutras freguesias. A apatia geral que domina um país “sem fibra, nem chama”, sem alma nem objectivos, permanece até aos nossos dias, tendo bebido de um fatalismo que muitos confundiram com fado, tendo comido de uma preguiça que amiúde foi tomada pela distinção de um dolce far niente. E assim chegámos ao estado em que hoje se encontra a nação. É pois hora de olhar para outro lado. De procurar o Portugal que repousa sonolento nas melhores páginas da nossa literatura, que se sustenta exilado pelo mundo. O professor brasileiro Paulo Franchetti é um dos maiores especialistas em Camilo Pessanha e, através da sua aquilatação com Fernando Pessoa, consegue no texto que aqui publicamos proporcionar-nos um trajecto do pensamento do poeta de Macau, no qual Portugal surge desvendado em filigrana, como só o sabe fazer a poesia. Pessanha assume uma posição que tem tanto de interessante como de sintomática. Aliás, o próprio poeta se entenderá a si próprio como sintoma (ou será saint homme, como quer Lacan?) do país. A sua alma “inerme” representará, de algum modo, a alma desse Portugal despojado e sem espaço na actual geografia deste e dos mundos a haver. Vale a pena percorrer os traços detectados por Paulo Franchetti e, sobretudo, vale a pena pensar porque razão nos contentamos em viver com os olhos nos chãos quando nos olhos dos nossos mortos se reflectem “as estrelas”. Sejamos pois “guerreiros, santos, poetas”. Haverá ele outro modo de ser português?
UMA LEITURA DO MOTIVO DAS NAVEGAÇÕES NA POESIA DE CAMILO PESSANHA
Paulo Franchetti
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AMILO Pessanha nasceu em 1867, em Coimbra, e faleceu em 1926, em Macau. Desde 1894, quando foi para o Oriente exercer a profissão de professor e de advogado, poucas vezes retornou à terra natal. Quando o fez, foi sempre por breves períodos de descanso ou longos estágios de cura de doenças. Não participou, assim, do meio literário português, antes viveu bastante isolado, correspondendo-se esporadicamente com alguns amigos mais próximos e enviando de vez em quando versos para publicarem em jornais ou lerem nos cafés. Apenas em 1920, seis anos antes de sua morte, uma amiga e admiradora publicou uma colectânea de seus poemas: o volume intitulado Clepsydra. Não obstante o isolamento e o pouco cuidado do poeta no que diz respeito à publicação e conservação de seus versos, a poesia de Camilo Pessanha exerceu considerável influência sobre a geração de escritores que, no começo do século
XX, marcou profundamente a literatura portuguesa. Na verdade, desde os anos 10, Pessanha já era um poeta cultuado nos círculos mais intelectualizados da boémia portuguesa, onde seus versos circulavam de mão em mão, em manuscritos ou em cópias feitas a partir das declamações de Carlos Amaro. Dentre os novos poetas que coleccionavam cópias de poemas de Pessanha, um chegou a planejar a inclusão de todos os poemas conhecidos no malogrado número 3 da revista Orpheu, como forma de os preservar e divulgar. Dessa intenção nos restou uma carta muito significativa, que não sabemos se chegou a ser remetida, nem se teve resposta. Nela, dizia Fernando Pessoa que certa vez tinha ouvido Pessanha declamar alguns versos num café, e que guardara daquela “hora espiritualizada uma religiosa recordação”. Por fim, afirmava que os versos de Pessanha, que sabia de cor, constituíam para si uma “fonte contínua de exaltação estética”.[2] Um outro documento, menos conhecido, mostra muito eloquentemente a importância de Camilo Pessanha para o
poeta da Tabacaria. Trata-se deste apontamento solto, encontrado no espólio do autor e que aqui cito em transcrição de Teresa Sobral Cunha: “CAMILO PESSANHA 11 Nov. 1934 A cada um de só três poetas, no Portugal dos séculos dezanove a vinte, se pode aplicar o nome de «Mestre». São eles Antero de Quental, Cesário Verde e Camilo Pessanha. Concordo que (outros) se lhes anteponham quanto ao mérito geral; não concordo que algum outro se possa antepor a qualquer deles nesse abrir de um novo caminho, nesse revelar de um novo sentir que em matéria literária propriamente constitui a mestria. É mestre quem tem que ensinar; só eles na poesia portuguesa desse tempo, tiveram que ensinar. O primeiro ensinou a pensar em ritmo; descobriu-nos a verdade de que o ser imbecil não é indispensável a um poeta. O segundo ensinou a observar em verso; descobriu-nos a verdade de que o
ser cego, ainda que Homero em verdade o fosse e Milton se em verdade o foi, não é qualidade necessária a quem faz poemas. O terceiro ensinou a sentir veladamente; descobriu-nos a verdade de que para ser poeta não é mister trazer o coração nas mãos, senão que basta trazer nelas os simples sonhos dele.” Estas palavras que não são nada bastam para apresentar a obra do enorme poeta Camilo Pessanha. O mais, que é tudo, é Camilo Pessanha. Como vemos pela data do apontamento, Pessanha permaneceu uma referência para Pessoa até o final da vida. Mas, mesmo que nesse texto apareça junto com dois outros poetas, é claro que Pessanha não era uma referência apenas, entre outras. Mesmo que essas outras sejam apenas duas e a ambas também seja dado o epíteto de “mestre”. É que não me lembro de ter visto em qualquer anotação de Pessoa um registo de admiração tão incondicional por outro poeta português. A frase final, “o mais, que é tudo, é Camilo Pessanha”, sempre me causa impressão. Mas sobretudo o que mais intriga nessa nota é mesmo a data. Se formos consultar a cronologia de Fernando Pessoa, veremos que esse texto foi escrito justamente às vésperas da publicação da Mensagem. Quer dizer, Pessoa estimava o valor do poeta da Clepsydra quando se ocupava dos últimos acertos no seu poema dedicado às navegações, no qual procede a uma reflexão bastante cerrada sobre o sentido da história da nação. E nesse momento tão especial, o que Pessoa veria em Pessanha? Apenas aquele que ensina a “sentir veladamente”? Ou haveria na poesia da Clepsydra alguma coisa que tivesse atraído novamente a atenção de Pessoa e motivado, assim, a redacção da nota e do julgamento que vai nela? Foi essa a pergunta que me fiz, quando me propus a preparar esta comunicação, e para responder a ela é que agora vamos percorrer alguns textos de Camilo Pessanha: aqueles justamente em que o tema se aproxima, de alguma forma do da Mensagem. Mais especificamente, estaremos interessados aqui em ler aqueles textos em que encontramos algum tipo de reflexão sobre a Pátria e algum tipo de intertexto com a obra paradigmática de Luís de Camões, em que as navegações e a identidade nacional portuguesa aparecem, de uma vez para sempre, indissoluvelmente ligadas. Não é só na poesia, nem só como intertexto que Camões comparece na escrita de Camilo Pessanha. Na verdade, é dedicado ao poeta quinhentista um dos seus mais interessantes textos em prosa: uma conferência pronunciada em 1924, em Macau, no 12 de Junho. Trata-se de um discurso interessante e apaixonado, lido, segundo depoimentos de época, com interrupções, pois o poeta foi várias vezes tomado por acessos de choro... Numa das passagens mais notáveis, diz-
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-nos Pessanha que Camões deve sobretudo ser lembrado como a personificação do patriotismo e da força de vontade, pois esteve em Macau e ali manteve acesa a chama da poesia e o amor da terra distante. Já os homens do XIX – os pigmeus, que à distância contemplam o vulto heróico de Camões, diz o poeta – não têm a energia do homem antigo. Os descendentes modernos do grande vate, entre os quais o poeta logo se oferece como
– e da derrocada do império. Macau é, assim, tanto o testemunho de um grande esforço de conquista, quanto da falta actual da energia que conduziu à conquista. Nada mais justo, portanto, segundo uma lógica poética, que seja Macau também o lugar de culto de Camões, que afinal é o único fruto perene do esforço heróico daqueles séculos de ouro.[3] Mas ao montar essa equação, em que a cada momento na história da nação cor-
Depois da luta e depois da conquista Fiquei só! Fora um acto antipático! Deserta a Ilha, e no lençol aquático Tudo verde, verde, — a perder de vista. Porque vos fostes, minhas caravelas, Carregadas de todo o meu tesoiro? – Longas teias de luar de lhama de oiro, Legendas a diamantes das estrelas! Quem vos desfez, formas inconsistentes, Por cujo amor escalei a muralha, – Leão armado, uma espada nos dentes? Felizes vós, ó mortos da batalha! Sonhais, de costas, nos olhos abertos Refletindo as estrelas, boquiabertos... exemplo típico, o que fazem é se deixar absorver pelo exotismo das novas paisagens e costumes. Como são fracos, logo deixam de situar-se espiritualmente em Portugal e por isso estiolam-se, sentem desaparecer rapidamente as fontes da sua inspiração e terminam esmagados pelos horrores do clima tropical. A conferência é tensa e dolorosa. Disposto a contrapor o Portugal antigo ao moderno, a via que escolhe é a comparação entre dois poetas que viveram em Macau. De um lado, estão Camões e o ápice da civilização portuguesa; do outro, Pessanha e a extrema decadência em que mergulhara o país. De um lado, o homem que compôs a epopeia da raça; de outro, o que não conseguiu sequer publicar ele mesmo um livro com os seus poemas. Na sequência do texto, Pessanha vai afirmar que, não obstante o facto de Macau ser agora apenas um “aluído padrão de velhas glórias”, é ali, naquele canto da China que se pode melhor cultuar a memória de Camões. O motivo disso, diz, é que Macau é um símbolo simultaneamente da mais alta glória – porque é o local mais distante a que chegaram os portugueses
responde um tipo de poeta, Pessanha acaba por fazer, da sua obra, uma espécie de equivalente da obra de Camões. É como se se apresentasse como o Camões possível nos tempos da decadência, uma espécie de anti-Camões. Portanto, seja anti, seja super, o modelo insubstituível do poeta moderno é o autor de Os Lusíadas, que se apresenta assim como referência inarredável. Naturalmente, é na poesia de Camilo Pessanha que as navegações, isto é, o diálogo com o seu cantor, comparecem de modo mais forte e impressionante. Há vários poemas de Pessanha que, de uma forma ou de outra, poderiam ser alinhados a partir dessa característica. Para respeitar os limites e a natureza desta intervenção, entretanto, vamos ler apenas dois. O primeiro deles é o que começa pelo verso: “Depois da luta e depois da conquista”. Desde o primeiro momento, percebemos que podemos discernir nesse poema dois registos bem distintos. Por um lado, temos aqui um eu que nos fala, de forma mais ou menos alegórica, da decepção inerente a toda tentativa de realização de um desejo. Por outro, as images/stories
Os descendentes modernos do grande vate, entre os quais o poeta logo se oferece como exemplo típico, o que fazem é se deixar absorver pelo exotismo das novas paisagens e costumes.
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e símbolos de que se vale para fazê-lo fazem presente um conteúdo histórico que não é nada neutro em Portugal: conquista, ilha, muralha, caravelas e tesouros refluem para um fundo mítico que percorre toda a cultura moderna portuguesa e teve sua expressão máxima no poema camoniano. Quero dizer, pela forma como se apresenta, o poema opera uma forte identificação entre elementos do passado histórico e do passado pessoal. Mas devemos observar a especificidade desta formulação simbólica, que se encontra também em outros autores do período (António Nobre, principalmente). O que me parece mais notável nesse poema é que não fica claro qual é o ponto de vista principal e qual o secundário, isto é, qual o plano alegorizante e qual é o plano alegorizado. Desse procedimento, resulta aquela superposição, muito sensível na poesia do final do século XIX em Portugal, do destino pessoal do poeta e do destino colectivo da nação. Quero dizer: temos aqui mais um exemplo da particular assimilação, em Portugal, dos estilemas do Decadentismo. De facto, todo o estado de espírito décadent tem um sentido muito específico, quando expresso em língua portuguesa no final do século XIX. Quando Verlaine dizia, instalado no coração da França: “Je suis l’Empire à la fin de la décadence” – ele frisava, pela contraposição de sua forma de sentir ao sentimento geral do homem comum, instalado na sua inabalável crença no progresso contínuo da civilização, que o poeta e a arte estavam mesmo à rebours, nadavam contra a corrente triunfante no tempo, lutavam contra ela, em nome de outros valores que se sentiam ameaçados. Mas quando Nobre ou Pessanha falavam em decadência, e expressavam aquele estado de espírito desistente e langoroso que se convencionou chamar de Decadentismo, o sentido social de suas palavras era profundamente diferente. Ecoavam eles, ao assumir os estilemas e as formas de sentir do Decadentismo, as mais profundas comoções da inteligência e da sociedade portuguesa, iniciadas com a constatação da decadência nacional nas conferências de 1870, e levadas à potência máxima nos meses que se seguiram ao Ultimatum de 1890. É por isso que Nobre vai poder terminar o António – seu poema mais ostensivamente trabalhado nessa direcção, em que é insistente o contraponto entre o dentro e o fora, a vida íntima do poeta e a vida geral da nação – com esta frase sinistra: Moço Lusíada! criança! Porque estás triste, a meditar? [...] Vês teu país sem esperança Que todo alui, à semelhança Dos castelos que ergueste no Ar? Memória colectiva e memória individual convergem nessas estrofes: a história de vida do indivíduo e a da nação são símbolos intercambiáveis. Um diz o outro, reflecte-se no outro, explica-se por ele a nível imagético.
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Também no soneto de Pessanha, que vimos comentando, coincidem os dois níveis de reflexão. E se é verdade que Pessanha nunca é tão clara e minuciosamente confessional como Nobre, nem por isso o poema deixa de ter dois registos simultâneos. Por um lado, lê-se o poema perfeitamente numa clave de abstracção, como meditação generalizada a partir de uma experiência de decepção: trata ele, nessa chave, do descompasso entre o sonho, que gera a busca, e a realidade conquistada. No intervalo entre a projecção idealizada do desejo e a concretude que pode ser, por fim, apreendida, cresce a frustração, a decepção. A única forma de conservar intacto o ideal, dessa perspectiva, é não realizá-lo, isto é, suspender o desejo, interromper a acção. A frustração prévia decorrente dessa estratégia – quer dizer, a assunção de que é impossível conquistar o ideal buscado – é na verdade uma defesa contra a frustração maior, real e inevitável. Daí o símbolo dos mortos da batalha, considerados felizes por morrerem, por terem paralisada a sua acção no momento em que apenas vislumbravam o objecto irreal de seu desejo. Lido dessa forma, o poema é uma meditação sobre o descompasso entre os móveis e o resultado da acção dos homens, que termina por aquela paradoxal afirmação da morte como estado de felicidade. Antes de prosseguir no comentário desse poema, talvez valha a pena referir que essa maneira de conceber a morte é recorrente na poesia de Camilo Pessanha. Comparece, para citar só um exemplo, num outro poema bem conhecido, o que começa por “Porque o melhor, enfim,/ É não ouvir nem ver...”, em que o anseio maior do poeta é por estar morto e enterrado, sem sentir nada, indiferente ao que se passa do lado de fora da tumba. O ideal de felicidade é, como no soneto que vimos comentando, negativo: E eu sob a terra firme, [...] Muito quietinho. A rir-me De não me doer nada. Como podemos perceber, nesses dois poemas a felicidade provém da supressão dos motivos da dor, da eliminação da vulnerabilidade do sujeito. Não é algo positivo, que se obtenha pelo esforço ou pela sorte. Não é satisfação. Pelo contrário, é uma condição negativa. No soneto, os olhos abertos não retêm o ideal, apenas o reflectem. Desaparece justamente a angústia de apreensão que se encontra magnificamente expressa em outros versos lapidares de um dos sonetos mais célebres do autor: “Imagens que passais pela retina / dos meus olhos, porque não vos fixais?” Na lírica de Camilo Pessanha, as images/stories que fluem incessantemente são fonte de dor, motivo de angústia. A sua ausência, por outro lado, também é
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vazio e dor: quando as images/stories já não fluem pelos olhos, tornam-se eles áridos desertos, espelhos inúteis sem possibilidade de redenção. Apenas na morte, na supressão do desejo, os olhos podem reflectir a realidade e o ideal sem dor, sem vontade de apreensão e de paralisação do fluxo que por eles passa. Por isso, como em outro lugar já tentei indicar, não me parece inteiramente certo dizer que Pessanha busca, como certo Pessoa depois buscará talvez, uma espécie de inconsciência consciente de si mesma, como remédio impossível para o dilaceramento existencial. Em Camilo Pessanha, não parece tratar-se nunca da consciência da inconsciência, esse paradoxo tão pessoano. Tratar-se-ia, antes, de um outro paradoxo, o da sensação de insensibilidade. Ao longo dos versos de Camilo Pessanha, o que se percebe é um anseio pela eliminação da vontade, pela eliminação dos sentimentos que se vão associando às sensações, numa clave talvez próxima do que é proposto como estratégia de ascese por Schopenhauer e pela leitura novecentista do budismo indiano. Entretanto, voltando ao poema em pauta, o que é realmente notável é como toda a reflexão de Pessanha vem vazada em símbolos tradicionais da literatura e da história de Portugal. Quero dizer: mesmo lendo o poema num registo de reflexão íntima, a imagética tradicional está presente, participa do registro da emoção pessoal. O que, porém, é mais interessante nesse poema é o facto de que, a partir de uma só palavra, evoca-se todo um universo literário e ideológico que passa a funcionar como um baixo contínuo, a permear todas as demais inflexões do poema. Refiro-me, é claro, à Ilha, aí grafada com maiúscula. Creio que é bastante sensível que essa Ilha deserta ecoa, por contraste, a Ilha dos Amores camoniana. No poema quinhentista, como sabemos, após a descoberta e a conquista a armada encontra a Ilha, prémio da alta façanha, onde os argonautas se deleitam com as ninfas e contemplam a máquina do mundo. No soneto de Pessanha, por outro lado, o prémio da conquista é também a Ilha. Mas trata-se de uma ilha deserta, e não há afinal prémio algum, mas apenas perda. A conquista, ela mesma, recebe uma qualificação forte: um acto de oposição de sentimentos, de antipatia, e não de correspondência, de consonância entre a vontade do homem e a dos deuses, como no poema camoniano. A Ilha de Pessanha, de onde o poeta vê apenas o vasto mar, desabitado a perder de vista, está mais próxima, na geografia espiritual, de uma outra ilha dos amores: o cemitério pedregoso que Baudelaire retratou em Un voyage à Cythère. Entretanto, no poema de Pessanha não há crime, nem castigo violento. Ao acto antipático da conquista sucede apenas a solidão desabitada, a perda dos tesouros acumulados e o reconhecimento da fatuidade de todos os esforços. O desejo de morte, que comparece no final, não tem qualquer caráter punitivo. É antes evasivo, um an-
San Gabriel (No quarto centenário do descobrimento da Índia)
I Inútil! Calmaria. Já colheram As velas. As bandeiras sossegaram Que tão altas nos topes tremularam, – Gaivotas que a voar desfaleceram. Pararam de remar! Emudeceram! (Velhos ritmos que as ondas embalaram). Que cilada que os ventos nos armaram! A que foi que tão longe nos trouxeram? San Gabriel, arcanjo tutelar, Vem outra vez abençoar o mar. Vemnos guiar sobre a planície azul. Vemnos levar à conquista final Da luz, do Bem, doce clarão irreal. Olhai! Parece o Cruzeiro do Sul! II Vem conduzir as naus, as caravelas, Outra vez, pela noite, na ardentia, Avivada das quilhas. Dir-se-ia Irmos arando em um montão de estrelas. Outra vez vamos! Côncavas as velas, Cuja brancura, rútila de dia, O luar dulcifica. Feeria Do luar, não mais deixes de envolvê-las! San Gabriel, vem-nos guiar à nebulosa Que do horizonte vapora, luminosa E a noite lactescendo, onde, quietas, Fulgem as velhas almas namoradas... – Almas tristes, severas, resignadas, De guerreiros, de santos, de poetas.
seio pela aniquilação porque ela significa a forma possível de resistência do ideal, preservado do choque com a realidade. Embora este soneto não se preste a uma leitura alegórica cerrada, é bastante sensível a forma pela qual nele se confluem, por meio da simbólica das navegações, a trajetória nacional e a percepção do destino individual do poeta. No que diz respeito estritamente à visão de Pessanha do que teria sido a grande epopeia da nação portuguesa, parece também claro que o soneto aponta numa determinada direcção. A julgar pela imagem com que se encerra, a dos mortos reflectindo nos olhos as estrelas, podemos pensar que o que permanece da grande aventura, no grave momento histórico por que passa Portugal, é o móvel da acção e da conquista. São as formas inconsistentes, entrevistas no calor da batalha, com a espada entre
os dentes, o que o poeta lamenta perder. No âmbito das images/stories do soneto, não parece haver qualquer expectativa da retomada da acção: valoriza-se aqui apenas retrospectivamente o móvel da empresa e inveja-se os que morreram ainda de posse dessa força que, na personagem que nos fala neste soneto, já não existe senão para lamentar o bem perdido. Não temos qualquer indicação de quando teria sido composto esse soneto. Não podemos, portanto, saber qual a sua posição temporal em relação a um outro poema bastante similar na imagética: o díptico de sonetos intitulado San Gabriel, publicado em 1898, para celebrar o quarto centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia.[4] Do ponto de vista da articulação das ideias, entretanto, San Gabriel representa uma continuação do movimento reflexivo
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presente em “Depois da luta”. Com mais ênfase na história coletiva, e sem apresentar de modo tão notável aquela sobreposição do individual e do nacional, o poema começa justamente pela constatação de uma energia interrompida e de um esforço frustrado. Publicado num jornal especial dedicado à efeméride, em Macau, San Gabriel é uma celebração. Como celebração, o poema se deixa ler por referência à viagem de 1488: iniciando in media res, surpreendemos a nau capitânea, que dá título ao díptico, no centro de uma calmaria. Uma voz que se articula em primeira pessoa do plural inicia então uma prece, que se estenderá por todo o resto dos versos, dirigida ao arcanjo que tem o mesmo nome da nau. Atendida a prece com a brisa nova que põe a frota em movimento, a voz se ergue mais uma vez e roga que a viagem seja levada a bom termo. Entretanto, ao longo do poema algumas palavras e images/stories vão como que minando a leitura feita num registo puramente celebratório: a insistência na retomada de um movimento (“vem outra vez abençoar o mar”, “vem conduzir as naus [...] outra vez”, “outra vez vamos”) começa, também por influência do cenário onírico e um tanto feérico, a se deixar ler como repetição de uma acção já praticada no passado. Quero dizer: a voz que nos diz “nós” começa a deixar-se ler como parte de um tempo outro, que não o da viagem histórica de Vasco da Gama. Assim também o final do primeiro soneto: trata-se ali de uma conquista, mas não de uma conquista qualquer, parcial e terrena. A conquista propiciada pela intercessão do Arcanjo é final e tem como objeto o Bem e a luz. Que seja esse Bem logo modalizado como ideal inatingível (“doce clarão irreal”) e simbolizado no Cruzeiro do Sul já é uma outra questão. O que importa agora é observar como essa navegação outra, que se propicia pela intercessão do Arcanjo, se processa já num outro plano: sobre a ardentia, com as velas banhadas pela lua, navega-se agora já não mais em direção à Índia, mas em direção a essa estranha nebulosa que derrama sua luz
láctea sobre a noite, clareando-a, como se fosse uma espécie de aurora. Prosseguindo nessa via de leitura, vai-se tornando cada vez mais forte o registo alegórico. É agora possível ver, na cena inicial da calmaria e da desistência, uma representação do moderno Portugal da época do Ultimatum. Abatidos, exaustos, refletem os novos navegantes sobre as reviravoltas da história e se indagam sobre o sentido que teve aquele trajeto subitamente paralisado: Que cilada que os ventos nos armaram! A que foi que tão longe nos trouxeram? Dessa perspectiva, o que se está celebrando não é a viagem que o Gama fez, e sim a viagem que, desde o Gama, se está fazendo e agora se redimensiona e se dirige para um novo porto: nem se trata mais de buscar os tesouros do Oriente, mas sim de reencontrar as almas fortes da nação, e com elas o motivo e a força que embasaram a conquista histórica. Embora esse díptico esteja, do ponto de vista do emprego da imagética tradicional, bastante próximo do soneto que comentamos anteriormente, é bastante sensível que os dois poemas apresentam diferenças notáveis de enfoque do papel do ideal e da possibilidade da conquista. Enquanto no primeiro soneto não se apresentava nenhuma perspectiva de superação do impasse entre o ideal almejado e a fatal decepção que era a posse, no díptico essa perspectiva se delineia com bastante vigor: é preciso retomar o movimento, o impulso em direcção à descoberta, mas num plano outro, em que o objectivo a alcançar já não pertence a este mundo, ou seja, não pode jamais ser objecto de conquista. Não é mais preciso, portanto, invejar os mortos da batalha, que reflectiam nos olhos as estrelas inatingíveis. A irrealidade do Bem almejado, ou seja, a impossibilidade de sua realização, de sua consecução, projectam-no na distância infinita: é a constelação do Cruzeiro do Sul que agora é o objectivo dessa nau que só pode mesmo navegar em sonho e nunca atingir o porto desejado. Cons-
Macau é um símbolo simultaneamente da mais alta glória – porque é o local mais distante a que chegaram os portugueses – e da derrocada do império. Macau é, assim, tanto o testemunho de um grande esforço de conquista, quanto da falta actual da energia que conduziu à conquista. Nada mais justo, portanto, segundo uma lógica poética, que seja Macau também o lugar de culto de Camões, que afinal é o único fruto perene do esforço heróico daqueles séculos de ouro cientes da impossibilidade da conquista, os novos argonautas navegam apenas pelo impulso de navegar, pelo desejo de se dedicar à busca do que é inalcançável. Já os que os precederam, e desapareceram antes do momento em que se ergue a voz reflexiva – os mortos da batalha –, não são mais invejados, nem apresentados como felizes buscadores de uma ilusão. O que os eleva e distingue é o facto de terem pautado a sua vida pelo ideal – são guerreiros, santos e poetas. Mas nem para esses existe qualquer triunfo ou realização, excepto a de habitarem essa estranha nebulosa que se desloca com o horizonte, a guiar a trajetória dos novos argonautas que só podem almejar, afinal, a imitá-los na forma do esforço e não no seu objectivo, sob pena de também se tornarem, como as velhas almas namoradas, tristes e resignados ao fracasso. Em termos históricos, a alegoria se deixa ler mais ou menos como: é preciso aprender com o primeiro fracasso, e redimensionar a ação, retomando, em outro nível, os objectivos e as forças que moveram os antigos descobridores, mas sem esperança de qualquer triunfo que não seja o pró-
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prio movimento e a própria busca do que já não se pode achar. Nesse momento, creio que para todos já se vai tornando sensível uma outra voz que se faz ouvir em continuação à de Pessanha, retomando essa ideia e com ela tecendo um novo diálogo. Sob os poemas de Pessanha aqui analisados, a voz de base era a de Camões. Mas por sobre o retábulo em que navega pela segunda vez a San Gabriel, o que ouvimos agora é a voz de Fernando Pessoa, que em Mensagem retomará o espírito desses sonetos comemorativos.[5] Aqui está, creio, a consonância que originou aquele apontamento de 1934, com que abrimos estas considerações. Mas já bem antes de a Mensagem se configurar como um poema nacional, Pessoa enveredava pelo caminho aberto por Pessanha, no final de um artigo sobre a nova poesia portuguesa que publicou na revista A Águia. Dizia aí o jovem poeta, meditando sobre a saída possível para a Pátria e para a cultura portuguesa: “E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova que não existe no espaço, em naus que são construídas ‘daquilo que os sonhos são feitos’. E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal ante-arremedo, realizar-se-á divinamente”.[6] É mesmo essa transposição de uma viagem marítima e carnal em uma fantasmagórica navegação entre as estrelas, com velas banhadas de luar, em busca da luz e do Bem, que vemos no San Gabriel de Pessanha e que nos parece, no que diz respeito à sua reflexão constante sobre as glórias e o futuro da Pátria de Camões, a sua mais impressiva e acabada realização. NOTAS: [1] Texto publicado originalmente no livro de actas do XVI Encontro de Professores Universitários de Literatura Portuguesa, 1997, Londrina.,1996. v. 1. p. 91-102. [2]. Fernando Pessoa. Carta a Camilo Pessanha. In: Páginas de Estética, Teoria e Crítica Literária. Lisboa, Ática, s/d, pp. 357-361. [3]. As grandes navegações portuguesas foram ainda objeto de outro texto em prosa de Camilo Pessanha, pouco anterior ao que vimos comentando. Trata-se de uma saudação a três aviadores portugueses que participaram do Raid Aéreo Lisboa Macau. Num breve comentário de jornal, associa o poeta aquele simples evento às proezas antigas e o toma como indicação de que o gênio nacional português não estivesse talvez desaparecido, mas apenas adormecido, em estado de latência. [4]. A respeito desses sonetos, v. Paulo Franchetti e Maria Helena N. Garcez. A viagem de Vasco da Gama na virada do século. In: Revista Estudos Portugueses e Africanos, nº 22. IEL/UNICAMP, 1993, pp. 51-64. [5]. No que diz respeito especificamente à aproximação entre esses sonetos e a imagética deMensagem, pode-se consultar com proveito o ensaio de António Quadros: “Pessanha e Fernando Pessoa: de ‘San Gabriel’ à ‘Mensagem’”, publicado no Jornal de Letras de 7 de agosto de 1990, p. 10. [6]. “A nova poesia portuguesa no seu aspecto psicológico”. In: A Águia, nº 12, II série.
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Quando começou o seu projecto musical, ainda com os Morbid God, depois Moonspell pensou que iria atingir o patamar que atingiu hoje? Não. Pura e simplesmente não pensávamos nem atingíamos esses moldes. Tínhamos uma ambição muito circunscrita ao nosso núcleo de ‘penfriends’, fanzines, editoras Underground, e era essa a cena onde queríamos marcar o nosso território. Acabámos por crescer juntamente com esta cena musical, ao principio muito específica mas sempre fervilhante. Já em 1992 recebíamos correspondência de sítios tão improváveis quanto a Malásia, Dubai, Leste da Europa. Apesar de o vosso estilo musical não ser de senso comum, o que significa para vocês os Moonspell serem a banda portuguesa mais conhecida no mundo actualmente? É apenas um facto. Outras bandas terão outros galões para puxar. Na verdade se há 500 concertos de bandas Portuguesas tocados no exterior pelo menos 100 são nossos. Em todo o caso, é uma perda de tempo estar com comparações. Nós investimos tudo no nosso trabalho, estamos de forma constante a procurar novas ideias para discos e digressões, gosto de pensar que tudo isto é resultado do nosso trabalho, qualidade e pertinência na nossa cena. Deixei-me de me interessar no que se diz em Portugal e em quem se coloca no pedestal. Uma coisa é estar nos jornais, outra é estar mesmo no palco, de verdade, em Beirute ou em Nova Iorque ou em Moscovo, a partilhar a nossa paixão com os nossos fãs em todo o mundo. Os Moonspell estão em estúdio. Para quando um novo álbum? Em 2012, primeiro trimestre. Já estamos a trabalhar nesta produção, em Outubro estará pronto e depois vamos pensar numa maneira sólida de o lançar e comunicar com o público. Os fãs questionam-se. Nunca esteve na vossa mente lançar um álbum do projecto “Sombra”? Fizemos ao contrario. Fomos para a estrada e vimos se as pessoas realmente queriam este projecto em disco, como uma lembrança positiva de um espectáculo que os desafiou e surpreendeu. A resposta foi um claro sim! E por isso iremos utilizar as gravações que fizemos em áudio e vídeo de algumas destas datas. Iremos editar mas só depois do próximo álbum ser editado. O projecto é para continuar? Sim. Ficámos com um formato alternativo, que nos permite tocar noutro tipo de ocasiões e espaços, porque não, alguns sítios especiais, ou monumentos nacionais. Estética e musicalmente é um dos objectivos deste Sombra. Resultaria, por exemplo, em espaços com a Quinta da Regaleira, em Sintra. Temos algumas ofertas para internacionalizar Paris, México mas sendo um espectáculo que reúne 13 pessoas em palco, torna-se complicado logisticamente. E os Daemonarch? Um projecto efémero? Sim. Um manifesto oculto, um projecto de
CO N V E R S AINAC ABADA
FERNANDO RIBEIRO, VOCALISTA DOS MOONSPELL
“LET’S
ROCK MACAU”
Gonçalo Lobo Pinheiro
É o vocalista de uma das bandas mais conceituadas da música portuguesa. Escreve poesia e considera uma “má anedota” a classe politica em Portugal. Para ele, o mercado metal na Ásia está em desenvolvimento e espera um dia vir a actuar em Macau. Até, porque agora, os Moonspell têm um formato alternativo – A Sombra - em som acústico que permite ser tocado noutro tipo de ocasiões e espaços, como o Festival da Lusofonia. À atenção do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais de Macau (IACM).
fantasia negra, mas uma memoria apenas. Não faz parte de nenhum plano futuro. Apesar das críticas dos fãs mais acérrimos, os Moonspell atingiram lugares de topo nas vendas em Portugal com os discos “Sin/Pecado” e “Darkness & Hope”. Não sendo álbuns comerciais, não seria essa a vertente de música mais indicada para abranger uma maior franja de público ou vocês são fidedignos às origens como se tem provado pelos últimos trabalhos? Usamos a metáfora da arvore inteira. Só ir pelas raízes é ficar estagnado. Nós percorremos o tronco, chegando ao fruto, à flor, à folha. Quando compomos, olhamos cada vez mais para o que fizemos e estas experiências são importantíssimas! A partir daí decidimos o que fazer, mais longe ou mais próximo de uma matriz que com o tempo fomos criando. Sempre fomos uma banda aberta a outros estilos que achamos consentâneos com o nosso, seja o Folk inicial ao industrial e claro, o rock gótico e ambiental. O resto é um voto de confiança que os fãs dão ou não. Isto é, acho perverso que um fã tenha a ânsia de mandar nos destinos musicais da banda. Se é fã foi porque em alguma altura nos deu esse voto de confiança. Há sempre a opção de o retirar mas no processo de composição a banda tentará renová-la mas sempre pelo desafio e surpresa, nunca pelo compromisso ou submissão. Não se aceitam encomendas nos Moonspell, isto é, não compomos com fãs no estúdio ou no processo. Há um espaço para todos e um tempo para tudo. Muitos fãs consideram o “Butterfly Effect” como o pior álbum dos Moonspell. Quer comentar? É natural por ser o mais diferente. É uma reacção que preferíamos ser outra mas isso não controlamos. Sabíamos que este disco iria dividir as águas. Em todo o caso, muita gente, eu inclusive, acha este disco intrigante e dedicaram muito tempo à sua exploração. Também é um elogio esta dedicação e tempo dispendido. Em todo o caso, é importante saber sobreviver às criticas, nós temos feito isso, melhor ou pior, mas cá estamos, com um entusiasmo brutal pelo novo disco. O resto é mesmo secundário, aprendi isso com os anos. Acha que alguns fãs pararam no tempo em só preferirem os Moonspell de 1994 e 95, especialmente com o Wolfheart e o Irreligious? As pessoas tem o direito à nostalgia. Nós temos concertos em que, especialmente, tocamos esses discos na íntegra. No entanto, nós temos direito a avançar, questionar, transformar, arcando com as consequências. É muito diferente estar e trabalhar no interior duma banda, e acompanhá-la como ouvinte, por muito atento que seja, não poderá nunca substituir a banda nas decisões musicais importantes. Pensar o contrario é um erro comum. Para quando uma digressão dentro de Portugal? Fizemos doze datas cheias com a digressão Sombra por todo o pais, Lisboa, Porto, Guarda, Leiria, Guimarães...foi, para
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nós, um feito pois digressões em Portugal é impossível para nós devido a um conjunto de factores faltosos, que variam desde a inexistência de salas ao facto de os Portugueses não terem hábitos de ir ver um espectáculo que não seja a um fim-de-semana, pois a tendência para os horários é terrivelmente prejudicial para o efeito, começar um show em Portugal às 21 horas é coisa rara. Por isso, vamos aproveitando as oportunidade que surjam e criando os nossos próprios eventos, como o metal Day na FIL o ano passado que juntou quatro mil pessoas em Lisboa. Ainda se levantam algumas dúvidas. Dentro do metal qual é o estilo no qual os Moonspell se encaixam? Metal gótico é a designação menos polémica. As nossas raízes são do Metal, mais underground dos anos 90, que tinha uma aspiração Avantgarde, bandas como Bathory, Celtic Frost, Tiamat, Samael.
México. O promotor não tinha reunido as condições necessárias para a realização do concerto e por isso a nossa equipa técnica decidiu cancelar. Nós estávamos a ter um lanche magnífico numa vila mexicana, tipo Zorro, com as melhores iguarias a serem servidas. Quando voltámos ao hotel, a mulher do promotor estava a bater à nossa porta, a implorar para tocarmos, nós nem sabíamos o que se passava! Entretanto chega à nossa crew e a assistente do promotor de toda a tour que nos mete a todos num autocarro para a Cidade do México. Já na viagem descobrimos que a nossa crew tinha sido como que raptada durante horas, que só se livraram porque um deles tinha um passaporte Americano, e que as pessoas se tinham revoltado contra o promotor e queimado um carro. Foi o nosso primeiro “riot”. No dia a seguir o promotor da Cidade do México organizou um autocar-
Depois fomos descobrindo bandas como Fields of the Nephilim, Type o Negative, que nos fizeram adicionar uma atmosfera mais romântica, mais dark à nossa música. Não negando estas e outras influências sempre lutámos por um som, um estilo mais particular que nos distinguisse dos demais e penso estarmos no bom caminho para que uma pessoa ouça uma música do próximo disco, antes de o conhecer, e diga isto é Moonspell! Parece simples, mas leva anos. Em quase 20 anos de carreira, centenas de espectáculos e uma dezena de discos editados haverá seguramente dezenas de episódios insólitos. Pode contar-nos algum que vos tenha marcado em particular? Há situações insólitas com certeza. Ao fim e ao cabo somos cinco Portugueses visitando países como a Guatemala ou a Bielorrússia. A primeira vez que fomos ao México, passando por toda a América Latina, tínhamos um concerto marcado para Morelia, a três horas da Cidade do
ro para os fãs de Morelia que finalmente nos viram no nosso primeiro concerto no México. Foi óptimo, todo muito punk, as pessoas ainda me cuspiam como forma de chegar a mim. Foi insólito, sujo, muito Machete! Várias bandas portuguesa têm actuado em Macau, em especial no Festival da Lusofonia. Este ano estiveram cá os Blasted Mechanism. Alguma vez receberam um convite para virem cantar a Macau? Estariam abertos a isso? Claro que sim. É importante mostrar que Portugal não é só folclore, fado e música ligeira. Era bom saberem que há bandas Rock e de Metal com projecção internacional vindas do nosso pais. Let’s rock Macau, anytime! Como está a cena metal na Ásia? Sempre tivemos seguidores muito irregulares no Japão, insuficiente para termos ido lá tocar. Mas ainda não desistimos! No Japão os gostos inclinam-se mais para outros estilos de Metal, mais clás-
sico, que o nosso. Temos é um feedback muito interessante de países como Índia, Dubai, Singapura, Malásia onde a cena Metal é muito forte e talvez com o novo disco possamos tocar nestes países. Vamos finalmente ao Líbano em Setembro, a cena Metal é muito propensa à globalidade. Estive em Xangai com o projecto ‘Amália Hoje’ na Expo e foi uma experiência excelente. Em termos de bandas pouco chega à Europa, há um fascínio underground por Japanese Rock, mas pouco mais que isso, uma curiosidade só para alguns, um nicho. O que é que anda a ouvir agora? Muito pouca coisa, visto estar em produção com Moon. Mas no carro tenho muito Metal Underground como Necromantia, Acheron, Thrash Metal antigo como Artillery e duas bandasportuguesas uma de Metal, Heavenwood, grande disco, e All Star Project uma excelente banda de Post Rock. E o que é que recomenda para se ouvir sempre? Type O Negative October Rust, Bathory Hammerheart, White Chalk Pj Harvey, In this light and in this Evening Editors, FResh Fruit for rotting vegetables Dead Kennedys. O Fernando Ribeiro também é um poeta com livros já editados. O que significa para si a poesia? Mais uma forma de expressão e de aquietar a mente. Tenho a sorte de poder ser editado e comunicar desta forma e só isso supera toda a minha expectativa. Mas não tenho planos nem ambição de escritor, sou, sobretudo, um músico de Metal e um letrista do estilo. Que poetas mais admira? Justo Jorge Padrón. É o único que considero perfeito. Está na sua mente escrever alguma narrativa ou vai ficar pela poesia? Acabei de editar um livro, “Senhora Vingança”, onde escrevi dois contos: um sobre um grupo de jovens vampiros que ajustam contas com a escritora de novelas de vampiros mais vendidas de sempre; e o outro sobre um assassino em série que caça políticos. Como músico que lhe apraz dizer acerca da conquista dos Homens da Luta no Festival da Canção deste ano? Como músico é impossível levar a sério o que o Festival da Canção e Eurovisão se tornou. É um espectáculo grotesco. Como amigo pessoal do Jel e simpatizante da luta, agrada-me esta exposição da mesma forma como me agrada qualquer pessoa que trabalhe no duro e tenha solidez no que faz (como é o caso) e consiga os seus objectivos, sejam em que área for. Tenho amigos na construção civil e fico orgulhoso quando fazem e têm bom trabalhos. O que não me agrada tanto é Portugal não perceber a ironia nem a piada e levar tudo demasiado a sério. O público em Portugal está a começar a ter
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horror a tudo quanto seja mais complexo, ou conceptual ou simplesmente artístico sem agenda politica. O projecto “Hoje” tem em mente novos trabalhos ou foi apenas o disco “Amália Hoje”? O projecto Hoje foi pensado pela Valentim de Carvalho, editora de sempre da diva do Fado, e depois concebido e composto pelo Nuno (Gonçalves), mentor dos The Gift. Ele convidou-me para fazer parte e achei a ideia tão sólida e ao mesmo tempo arriscada que aceitei de imediato. Apesar da critica cerrada e algum fundamentalismo absurdo por parte de algumas pessoas dos jornais e televisão, o público não só gostou como comprou mais de 70 mil cópias sendo este o disco mais vendido em Portugal durante quase dois anos, com as Tours todas que se seguiram, sete coliseus esgotados e um reconhecimento esmagador. Não hesito em dizer que esta teria sido a homenagem que a Dona Amália quereria, a homenagem do povo. Não as académicas, as institucionais, as réplicas. Tal como sempre dissemos, os Hoje não tem tempo de existir porque as nossas bandas, The Gift, Paulo Praça e Moonspell são e serão sempre prioritárias a qualquer projecto por muito sucesso que atinjam. Eu participo em diversos projectos, alguns nem chegam ao conhecimento do público mais massivo. Para o ano se houver tempo farei juntamente com o Pedro Paixão dos Moonspell e o Rui Sidónio dos Bizarra Locomotiva, um disco em torno da poesia de Miguel Torga, já fizemos um EP sob o nome de OR (Orfeu Rebelde) editado pela Optimus Discos, chamado Cada Som como um grito. Como é que o músico e poeta Fernando Ribeiro vê o estado económico, social e político a que Portugal chegou? Vejo que os políticos vedam ao cidadão qualquer hipótese de solução séria e comprometida ao mesmo tempo que não os permitem envolver-se na emenda dos seus erros, sem ser no papel de pagador de impostos. A classe politica é uma má anedota em Portugal, poucos são os representantes dignos desta classe, espera-se ansiosamente por uma renovação, onde caem os caciques e os delfins e entre gente séria, da nossa geração, que se tenha destacado com sucesso. Portugal tem tudo para ser uma referencia menos políticos com vontade. Alma Mater pode alegrar as hostes em tempo de crise? Todas as canções que saem agora em Portugal são escrutinadas à procura de uma mensagem de intervenção. A nossa intervenção é interior, a alma mater um canção de pura identidade, de não ter medo de fazer as coisas sozinhos. É um hino à resistência ao desgaste dos nossos sonhos. Se inspirar alguém, o privilégio é nosso. Uma mensagem para a comunidade portuguesa de Macau... Um forte abraço a todos! Visitem a nossa página oficial no Facebook: http://www. facebook.com/moonspellband. Esperamos visitar Macau e levar-vos um espectáculo grandioso de Metal Lusitano!
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E N S A I O S O B
Grand Lisboa
Jose Iu
Natural de Macau. Viveu em Lisboa, Portugal durante vários anos. Macau é uma terra mista de diversas culturas, ocidental e oriental. É uma fusão do passado, presente e futuro. Gostaria de mostrar nas presentes fotografias, como a sociedade macaense se transformou e adaptou com a indústria dominante: o Jogo. É quase omnipresente em todos os lados da nossa cidade.
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B R E A V I S Ã O
Na primeira versão do “Ensaio Sobre a Visão” vamos ensaiar Macau. Aqui, no complexo terreno percorrido pelos fotógrafos do território. Uma zona, uma rua, um edifício. A água que bebemos dentro de uma mão cheia de imagens. A Fotografia sem explicação, para que se compreenda o que é a Cidade. Esta cidade onde vivemos.
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P R I M E I R O B A L C Ã O
luz de inverno
Boi Luxo
AKASEN CHITAI, (STREET OF SHAME), 1956
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OS FILMES DE MIZOGUCHI QUE MAIS PRECISAMENTE SE CENTRAM EM FIGURAS FEMININAS, E HÁ MUITOS FILMES EM QUE ISSO ACONTECE, É IMPOSSÍVEL DE PREVER O QUE LHES PODE VIR A ACONTECER ASSIM QUE O FILME TERMINA. O mesmo não se passa em muitos filmes de muitos realizadores europeus. Nos filmes de Godard não há mistério quanto ao seu destino, as mulheres dos seus filmes, que são actrizes, ao terminar o filme vão para casa. As mulheres dos filmes de Fassbinder prolongam, com toda a certeza, o mesmo histerismo poético a que o ao mesmo tempo febril e melífluo realizador alemão as obrigara durante a rodagem dos seus filmes. As mulheres dos filmes de Pasolini são as mulheres todas porque não são verdadeiramente mulheres mas diáfanas encarnações do feminino nas suas mais diversas formas e são, assim, omnipresentes na ficção e na realidade. Neste filme de Mizoguchi, o seu último, estamos em Tóquio nos anos 50. Estes foram anos difíceis para grande parte da população. O cinema japonês retrata muitas vezes, ora de modo poético ora de modo brutalmente realista, as condições de vida a que a destituição do pós-guerra obrigou os habitantes das grandes cidades japonesas. A zona da cidade que aqui vemos descrita, o bairro vermelho de Tóquio, Yoshiwara, é uma zona rodeada de ilhas de pobreza. Discutia-se por esta altura uma proposta de lei que intentava ilegalizar a prostituição e é nesta indecisão e na discussão
das suas conveniências e inconveniências que conhecemos as várias prostitutas que trabalham no estabelecimento “Terra do Sonho”. Foram vários os filmes em que Mizoguchi - e muitos outros realizadores japoneses - se debruçou sobre este milieu, ou sobre situações em que mulheres se viram obrigadas a este comércio – desde Tokyo Koshin Kyoku, de 1929, a Orizuru Osen, de 1934, Maria no Oyuki, de 1935, Naniwa Hika, de 1936, ou Gion no Shimai, de 1936, e não se citam todos. Neste filme de 1956, a visão de Mizoguchi é, como em outros dos seus filmes e em filmes de outros realizadores sobre o mesmo tema, tomada de um equilíbrio familiar, distante de sentimentalismos mas muito próxima das figuras que retrata. É uma constante do cinema japonês, uma aproximação às figuras que nos faz quase esquecer o seu suporte, o cinema, uma aproximação que, tantas vezes independente de programas estéticos, se torna intensamente realista. O que este realismo tem de encantatório, quase de hipnótico, é que não se trata de um realismo “fixo” mas um realismo líquido, fluido, musical em algumas das suas passagens. Em Akasen Chitai são 6 as mulheres retratadas e esta profusão de imagens será uma das suas originalidades. Que não nos obrigue, assim, à concentração em apenas uma delas permite-nos manter uma distância observacional. O que Mizoguchi opera em nós é fazer-nos sentir uma casual familiaridade com estas mulheres, e quando o filme acaba elas não acabam - mesmo que a introdução da última delas, uma noviça na profissão, nos lembre que a sucessão dos ciclos elimina os seus elementos
MIZOGUCHI
mais inaptos. O último plano, protagonizado pela recém-chegada ao estabelecimento “Terra dos Sonhos”, é, contudo, o mais cruel e o único que nos faz sentir um receio frio. As mulheres são todas diferentes e a corporeidade que delas se desprende só poderia ter sido montada por um “homem que amava as mulheres”, como Mizoguchi. Como este gosto se poderia comparar ao de Imamura é uma história longa e deliciosa que ainda não está contada, como não está ainda contada a história da falta delas em Oshima ou a da estranheza (ou o medo) com que Kurosawa as utiliza. Donald Richie diz que o tema principal de Mizoguchi são as mulheres: “o seu estatuto, ou falta dele; as suas diferenças em relação aos homens; as suas relações com os homens; e as intricadas relações que existem entre as mulheres e o amor” (em A Hundred Years of Japanese Film, 2005). Uma das mulheres do filme é casada com um homem doente e dolente e tem um filho dele; uma tem um namoro com um homem cuja atenção não parece suficiente à sua futura felicidade; uma tem um filho que a renega (como em tantos outros filmes japoneses sobre mães); uma outra, Mickey, armada de pose e roupa ocidental, desarma com uma simplicidade cruel e minimalista a hipocrisia do pai que a visita na “Casa do Sonho”; Yasumi, a mais bela, usa, sábia e calculista, os seus encantos para retirar dos homens o que lhe convém e com o produto da sua sedução abrir o seu próprio negócio. Este não é um filme simpático para com os homens, como o não são outros do mesmo autor, este é um filme
onde os homens acabam sempre por protagonizar um ou outro tipo de traição que não os eleva mas os diminui. O brilho doméstico que destas mulheres irradia mais se destaca por este filme, onde raramente se vê o céu, se passar quase todo ele no interior de uma casa ou de uma rua, a Rua da Vergonha (título do filme em português). Esta casa e esta rua são também a protecção de que estas mulheres não desfrutam quando enfrentam o mundo e a sua exposição de hipocrisias. Que Mizuguchi estaria sempre em sua defesa não admira. Que o tenha feito de um modo tão moderno só poderia admirar quem não prestou atenção à música de Toshiro Mayuzumi com que o filme se inicia. Esta panorâmica da cidade de Tóquio só poderia augurar algo de decente. Esta decência num filme que podia ser sentimental, assenta também na natureza economicista das vidas aqui retratadas. É uma mecânica repetida à exaustão no cinema japonês em geral e muito em particular nos filmes que se prendem mais de perto com o período entre o final da guerra e a altura em que se estende de modo mais liberal a riqueza gerada pela furiosa recuperação económica do Japão. Vemos como nos filmes de Ozu as famílias que aí são mostradas pertencem a estações sociais cada vez mais elevadas. A mecânica fria da necessidade engendra um quadro preciso e de um desprendimento severo e será provavelmente por esta razão que neste filme nunca chove. Será também por essa razão que me não atrevo a confessar quanto este filme me perturba.
A MATANÇA
Antønio Falcão
próximo oriente
No outro dia apareceu uma máquina de escrever na televisão e uma das minhas filhas perguntou: “O que é aquilo?” - como se alguém pudesse fazer essa pergunta. “É um computador?” Se há quem não se lembre de máquinas de escrever, porque nunca olhou de perto para elas - porque deixaram de fazer parte do nosso tempo, porque já ninguém as usa, porque aqui não tenho nenhuma em casa -, também há quem nunca tenha visto, ou ouvido, tocar um disco de vinil de 78 rotações. O som perro, perdido na vertigem da velocidade. A agulha, demasiado concentrada em encontrar a sua linha, fugidia e em contra-mão. A magia do mecanismo, cheio de molas, de ruído e de poesia. E lembro-me bem. Isto acontecia em casa dos meus avós. Uma aparelhagem em forma de armário que se não olhássemos com atenção parecia esconder uma máquina de costura ou umas garrafas de uísque. Ficava no andar mais térreo, por baixo da casa onde se vivia. Aí escondia-se uma divisão, que dava para o pinhal inclinado, a que chamávamos a “Casa da Matança”. Além dos discos e da sua aparelhagem – e talvez uma grafonola - guardavam-se revistas do “Cavaleiro Andante” e puzzles de pinturas renascentistas italianas – como os “Três Reis Magos” de Benozzo Gozzoli – ou das carantonhas feias do Bosch. Estava sempre fresco e nos tempos livres jogávamos ao “Bom Dia Senhorita” com quinhentos mil baralhos de cartas incompletos. Mas nunca, que eu me lembre, apesar de também faltarem sempre peças aos puzzles, ali se fez uma matança. Para entrar na Casa da Matança era preciso encontrar a chave, que nem sempre estava no lugar – junto ao contador da electricidade ou numa das gavetas no pequeno armário cheio de pratos de barro, pendurado na parede. Por vezes, ela desaparecia. Depois disso era preciso abrir a porta a pontapé. Lá dentro, uma mesa redonda – vermelha? -, do lado esquerdo um armário baixo, com quatro portas e algumas gavetas, onde se arrecadava tudo que se deixava de usar; do outro, os discos e a sua nave espacial, que também abrigava uma telefonia. Botões soltos, muitas linhas no meio, com o nome das cidades de onde escorriam as ondas mais curtas. Foi aí que percebi a importância da música. Porque ao pegar numa mão cheia de discos, levando-os lá para fora, atirando-os para o infinito fundo da quinta, só porque me apetecia jogar ao “Frisbe”. Discos que pouca gente já ouvia - Modest Mussorgsky, Claude Debussy, Igor Stravinsky -, porque os tempos modernos tinham trazido as 33 rotações, mais lentas, menos longínquas. Os meus avós ficavam “piursos” como eu nunca vi. Porque não sabia que aquilo era uma máquina de escrever, que fazia parte da história, parte de todo o tempo – um poço de memória -, que se perdia ali numa brincadeira de criança. E como os discos não funcionavam como um “Frisbee”, ia buscar ainda mais – jazz, valsas, polkas. E mais e mais. Nos recantos daquela paisagem destruía o que nunca tinha vivido. Um mundo de figuras e de histórias que se escondiam entre as paredes da Casa da Matança. Hoje percebo porque tinha aquele nome. E sempre que lá vou olho para a terra, lá no infinito, à procura de um resto de vinil. E ainda vejo a cara da minha avó nesse preciso momento, misto de terror e de tristeza. Foi assim que começou a minha relação com a música.
ACASO ÉPICO
... A música (do grego, “a arte das musas”) é uma forma de arte que combina sons e silêncio seguindo, ou não, uma pré-organização ao longo do tempo. www.pt.wikipedia.org/wiki/musica
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T E R C E I R O O U V I D O
Hugo Pinto
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William Rauscher compara o ‘Acid House’ futurista e exótico de Charanjit ao que os Kraftwerk teriam feito se tocassem ao vivo no Taj Mahal. A ciência é pródiga em descobertas acidentais. Do telefone à penicilina, passando pelos raios X, não faltam exemplos de felizes acasos. Ainda que a música se preste como poucas actividades aos caprichos da sorte – se por bafejos entendermos que funcione a inspiração –, a verdade é que raramente ouvimos um “eureka” cantarolado. Estranho seria, não houvesse um problema generalizado de memória. A mesma memória que levou, por estes dias, um admirador de Brian Wilson a colocar na página do Facebook dedicada ao ‘Beach Boy’ a seguinte afirmação: “Brian Wilson inventou a música ‘indie’ quando cantou ‘sometimes, I feel very sad’”, (verso de “I Just Wasn’t Made for These Times”). Serve este intróito sobre acasos e memória para falar de “Ten Ragas To a Disco Beat”, disco do indiano Charanjit Singh. Um pouco de história: nos anos 60 e 70, Charanjit Singh foi um entre os muitos músicos que trabalharam nas bandas sonoras de Bollywood. Com a sua Charanjit Singh Orchestra ganhou uns trocos extra a animar casamentos, tocando os temas mais populares do momento e as músicas dos filmes da indústria cinematográfica mais prolífica do mundo. Em 1982, Charanjit decidiu dar uso ao
sintetizador e máquina de ritmos que recentemente comprara (Roland TB-303 e Roland TS-808). Em apenas dois dias gravou “Ten Ragas To a Disco Beat”, onde, num dizer simples, cruzou música tradicional indiana com a música que se ouvia nas discotecas do Ocidente. O álbum foi um falhanço comercial e cedo caiu no esquecimento. Vinte anos depois, o coleccionador de vinil Edo Bouman encontrou “Ten Ragas To a Disco Beat” numa loja de Nova Déli. Em declarações ao jornal The Guardian, Bouman recordou a experiência: “Quando cheguei ao hotel, pus o disco a tocar e fiquei fora de mim. A música soava a ‘Acid House’, parecia tocada por uns Kraftwerk ultra-minimais.” Mas, continua o Guardian, aquilo que mais impressionou Edo Bouman foi a data do disco – 1982 –, data que precedia em 5 anos aquele que era conhecido como o disco inaugural do ‘Acid House’ – o EP “Acid Tracks”, dos Phuture, lançado em 1987 pela mítica editora Trax Records, da cidade tida como o berço da música House, Chicago. Bouman foi à procura de Charanjit. Do primeiro encontro, em Mumbai, lembra-se que o indiano “estava surpreendido por eu conhecer o seu disco. Perguntei-lhe como tinha chegado à criação do som ‘acid’, mas ele não percebeu o que eu quis dizer. Não tinha
a noção do quão moderno era o disco que tinha criado.” E há tanto tempo que era preciso avivar a memória ou simplesmente iluminar a escuridão do desconhecimento. No ano passado, através da sua editora Bombay Connection, Edo Bouman voltou a colocar “Ten Ragas To a Disco Beat” na prensa e assim dar a conhecer ao mundo o fantástico senhor Charanjit. Na Internet, correram rápidos os rumores asseverando que a verdadeira identidade por detrás das dez músicas que misturam as clássicas ‘ragas’ indianas com as ondulações ácidas e hipnóticas dos sintetizadores e dos ritmos era o mago da electrónica Aphex Twin e não um indiano, hoje com 70 anos, que diz ter em “Ten Ragas To a Disco Beat” o seu melhor trabalho porque o único que fez a partir das suas próprias ideias. Não bastava ouvir para crer, era preciso ver. Na crítica que fez ao disco para o Resident Advisor, William Rauscher compara o ‘Acid House’ futurista e exótico de Charanjit ao que os Kraftwerk teriam feito se tocassem ao vivo no Taj Mahal. É uma bela imagem para ilustrar esta música que tem a aura certa dos predestinados e o misticismo que associamos às profundezas da Índia, onde os deuses, afinal, primeiro proclamaram “let there be House”.
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L E T R A S S Í N I C A S
WEN ZI 文子
A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS
Assim o crescimento de todas as criaturas era como vapor erguendo-se. CAPÍTULO 151 Lao Tzu disse: a alimentação é a base do povo, as fundações da nação são o povo. Por isso, os líderes humanos seguem as estações dos altos céus, conformam-se aos padrões da terra em baixo e empregam as forças da humanidade que está pelo meio. E, desse modo, a miríade de seres cresce e prolifera. Na Primavera, abatem-se as velhas árvores; no Verão colhem-se os frutos; no Outono armazenam-se as nozes; no Inverno recolhe-se lenha. São estas as coisas para sustento do povo, para que não lhe faltem provisões, para que não mingue e morra. Havia leis de antigos reis para que não se cercassem as manadas para obter os animais crescidos, para que não se secassem lagoas para apanhar peixe, para que não se queimassem os bosques para caçar. Antes da estação própria, não se deviam colocar armadilhas pelos ermos, nem redes nas águas. Antes da queda das folhas não se procedia a abates nas florestas, nem se queimavam os campos antes dos insectos entrarem em hibernação. As fêmeas prenhas não eram abatidas, não se apanhavam os ovos dos pássaros, não se pescavam peixes com menos de um pé de comprido, os animais domésticos com menos de um ano não eram comidos. Assim o crescimento de todas as criaturas era como vapor erguendo-se. Este era o modo dos antigos reis se adaptarem às estações, de cultivarem a plenitude, de enriquecerem seus países, de fazerem seu povo lucrar. Esta via não é vista pelos olhos nem caminhada pelos pés; se quiseres beneficiar o povo, não te esqueças do coração e o povo terá, naturalmente, o bastante. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho
O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han. A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.
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O L H O S A D E N T R O
EXPOSIÇÃO DE GÉRARD HENRY NO ARMAZÉM DO BOI Filipa Queiroz
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“DESENHAR É UMA ESPÉCIE DE MEDITAÇÃO SILENCIOSA”
O autor e jornalista francês Gérard Henry expõe pela primeira vez em Macau os seus “apontamentos visuais”
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IZ QUE É “BASICAMENTE UM ESCRITOR”. TENTOU UNS SARRABISCOS NA INFÂNCIA MAS ACABOU POR GUARDAR OS CADERNOS DE DESENHO NA GAVETA E FICAR-SE PELOS BLOCOS DE LINHAS. Escreveu, escreveu, publicou textos no “Le Monde Diplomatique”, no “La Soer de l’Ange”, até que “uma história de amor que começou na Normadia” o trouxe até ao Oriente. Chegou a Hong Kong em 1981. Desde então é correspondente da Rádio Suisse Romande na RAEHK, escreve sobre arte e cultura para o “China Perspectives” e publicou um livro: “Chroniques Hongkongaises”. Em 1999 recebeu o grau de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras pelo governo francês. Quase sem dar conta, o desenho voltou. Convencido pelo cartoonista Zunzi e o pintor Wong Yan-kwai fez a sua primeira pequena exposição em Hong Kong. O director do Armazém do Boi estava atento. “Frank Lei ouviu falar da exposição, viu alguns desenhos e há nove meses convidou-me para expor em Macau”, disse em entrevista ao Hoje Macau. O resultado foi “Paisagens Interiores”, que inaugura amanhã no espaço cultural à Avenida Coronel Mesquita. Terapia em desenho Gérard Henry gosta de retratar pessoas mostrando o seu ambiente pessoal. O lugar onde vivem, o sítio onde trabalham, os projectos, a personalidade impressa nas quatro paredes. “Ao descrever cada detalhe, livro, objecto, decoração, sinto que me aproximo do mundo real interior da pessoa.” E exemplicou. “Um dia uma amiga que vive em Montmartre (Paris) viu um dos meus desenho de interiores e gosta tanto que propôs emprestar-me o seu apartamento por uma semana, durante as suas férias, com a condição de
que eu desenhasse cada um dos seus quartos, cada uma das suas paredes.” O artista desenhou. No final teria o retrato de Laurence através dos detalhes de cada uma das divisões da sua casa. ”Através dos desenhos podia-se perceber que ela viajava muito, que gostava de livros de fotografia, plantas e jóias. Para ela, os desenhos comportavam muito da sua vida e eu vou mostrá-los aqui pela primeira vez, em Macau.” Paredes meias Apesar de ser a primeira vez que expõe na RAEM, a cidade não é estranha a Gérard Henry. Mas já foi mais familiar. “Gosto de Macau, é uma cidade fabulosa na história que carrega, tantos destinos de pessoas diferentes”, descreveu, não resistindo a acrescentar que considera que Macau já foi mais fascinante do que é agora. “Antes da transição tinha uma personalidade multicultural forte, uma gastronomia rica misturado com as tradições portuguesa, africana e indiana. Agora acho que com a grande invasão dos chineses do continente a cidade está a perder essa identidade tão rica”, apontou. Henry admite que já desenhou Macau, mas pouco. “Para desenhar preciso de ficar mais tempo num local e aguardar o desejo. Quero fazê-lo por prazer apenas e não fiquei tempo suficiente quando cá estive”, explicou, ao mesmo tempo que confessa que recomeçou a desenhar quando descobriu que quando o faz esquece tudo ao seu redor. “É uma espécie de meditação silenciosa.” A terapia que lhe permite suportar o reboliço de Hong Kong. “É uma cidade inspiradora mas que consome as pessoas, tens de ser cauteloso se quiseres manter o seu espaço mental intacto e manteres-te criativo.” Henry usa a escrita e o desenho para a captar, para imprimir no papel as impressões do que vê e do que sente. Anotações visuais que o público de Macau pode ver a partir de amanhã no Armazém do Boi, até 26 de Junho.
20 5 2011
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À S U P E R F Í C I E
A volta ao dia em oitenta mundos
Carlos Picassinos
OS HOMENS COM QUALIDADES A instituição universitária monopoliza a instância de legitimação dos saberes ao passo que a sabedoria popular, o senso comum, “o saber de experiência feita” próprio das idades maiores e da velhice aparecem impugnados pela suspeita tecnocrática dominante
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O PRINCÍPIO DESTE MÊS, O CONSELHO DA EUROPA FEZ PUBLICAR UM RELATÓRIO SOBRE A CONVIVÊNCIA NO CONTINENTE INTITULADO “CONVIVÊNCIA: COMBINAR A DIVERSIDADE E A LIBERDADE NA EUROPA DO SÉCULO XXI”. O documento resultou do trabalho de um grupo de sábios criado por Thorbjøn Jaglan, secretário geral da organização, e do qual fazem parte nomes como o ex-ministro dos Estrangeiros alemão, Joschka Fischer, a ex-comissária europeia Emma Bonino ou Javier Solana, ex-responsável pelas Relações Exteriores da União Europeia. A preceder a publicação, os autores fizerm publicar um texto na imprensa europeia (em Portugal, não dei por ele) em que defendiam uma inevitabilidade como destino: a diversidade e hibridez de identidades. Afirmavam, piedosamente, que uma Europa que acolha a diversidade e a existência de uma multiplicidade de identidades “não é negativo, em absoluto”; “se se pode ser afro-americano ou italo-americano porque não um europeu turco-alemão, norte-africano-francês ou asiático-britânico?” Para responder como aquele spot publicitário, ou mais meridianamente, como um desses vulgares eleitores médios da extrema direita governamental da Holanda, Dinamarca, Itália, Áustria, Finlândia ou Hungria, poder podia, mas não era a mesma coisa. E a mesma coisa é esta Europa acossada pela crise humanitária e de imigração no norte de África, a depressão económica e o recrudescimento dos valores da xenofobia, do racismo, da homofobia ou da misoginia, da paranóia securitária. São valores em alta que a classe política ou as instâncias na-
cionais de representação não conseguem obviamente contrariar. Mas o que me interessa aqui não é tanto destacar o mérito deste documento mas a presença no grupo de sábios dessa figura do intelectual público corporizada pelo historiador, jornalista e colunista do “The Guardian”, Timothy Garton Ash. Provavelmente, como ninguém, e com a visibilidade de poucos, talvez com Bernard Henri-Levi (BHL), Ash protagoniza hoje nos seus escritos, na sua influência, mas sobretudo, na amplitude das suas opiniões, uma ideia (ou, pelo menos um simulacro, mas isso era outra conversa) de espaço público e axiologia europeus. Podiamos conta-los pelos dedos, talvez o citado BHL, em França, Savater, em Espanha, ou Bobbio, em Itália, Havel, ou outros, aquelas figuras públicas que ao longo da sua intervenção cívica souberam emancipar-se de uma esfera estritamente académica ou, funcional, para se afirmarem junto dos cidadãos como indivíduos dotados de reconhecidas qualidades cívicas, intelectuais e morais. Gente com bravura e de um inabalável liberdade crítica face às
modas, aos poderes ou às represálias. Em suma, gente, capaz de constituir-se como reserva ética de uma comunidade. Ora o que aconteceu foi que os intelectuais, orgânicos ou não, públicos ou menos, simplesmente despareceram em parte incerta, consumidos na fogueira das vaidades mediáticas, das redes sociais ou da blogosfera. Não existe gente com a autoridade ética de Camus, Sartre, Milosz, Cioran, Beauvoir, ou, na lusitânia, de Rodrigues Lapa, Jaime Cortesão, Alçada Baptista, António José Saraiva, Assis Pacheco, Natália Correia, e tantos outros por essa lusfonia fora. Hoje, o espaço público português - que se confunde com o espaço mediático – valoriza, em exclusivo, os homens pragmáticos que a academia produz. Mais do que nunca, a instituição universitária monopoliza a instância de legitimação dos saberes ao passo que a sabedoria popular, o senso comum, “o saber de experiência feita” próprio das idades maiores e da velhice aparecem impugnados pela suspeita tecnocrática dominante. Daqui a importância de recuperar a figura do pensador emancipado e do discurso capaz de se impor - concorde-se ou não com ele como referente culto, fundamentado, decente e esclarecido contrariando a ideologia partidista e “tudológica” que coloniza o chamado jornalismo de opinião, o táxi ou a taberna. Não se trata de endeusar a figura do intelectual público nem de lhe atribuir o estatuto de oráculo infalível. Nem tão pouco de dizer como disse John Maynard Keynes do encontro com Ludwig Wittgenstein na estação ferroviária de Cambridge: ‘Deus já chegou. Veio no comboio das 5h15”. Trata-se, simplesmente, de reabilitar as vozes sem dono e de elogiar aqueles homens (e as mulheres) com qualidades.
20 5 2011
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À S U P E R F Í C I E
Hoje não saio de casa! Ring Joid
Ontem dei boleia ao Presidente. Sim, esse mesmo, o Presidente da República. Fomos os dois a uma cerimónia, o povo e outras personalidades ilustres, em luto. Depois, à saída – eu, o cidadão anónimo – vejo-o a dirigir-se a mim. Eu a olhar para trás, a ver se estava mais alguém, e ele, como quem traz água no bico: “O senhor dá-me boleia?” Nós ali especados para os lados do Chile. Não lhe disse que não, apesar de não o gramar nem um bocadinho. Dispensada a companhia que me tinha conduzido, lá veio. Passei para o volante com o PR ao meu lado, no banco da frente, com o cinto posto. “Temos air-bag não se preocupe, senhor presidente.” Estava com pressa e viemos os dois aos trambolhões, mesmo de cinto, pelos Mártires da Pátria acima. “Trate-me por Aníbal”, disse ele, cordialmente. Eu sabia que vinha mais do que isso. A meio caminho, ao largo do Miguel Bombarda, sai-se com esta: “Oiça, preciso de um favor seu...” Quando um presidente fala – e ainda pede favores - mais vale ouvir tudo de uma vez, sem responder, não vá ficar amuado. E continuei em silêncio, à espera que um semáforo dobrasse de cor: “Troque o seu corpo pelo meu.” - atirou por fim. Já tinha arrancado e quase chocava com uma motoreta da Telepizza que ia a passar. O Presidente tem aquele jeito de falar que dá pena. Um pouco a engasgar-se, um pouco aflito. Nunca se sabe se o que diz é a sério ou a brincar. O que é certo, é que junto ao Tejo já me tinha convencido, a decidir trocar o meu corpo. Com o dele. A ideia mais imbecil que alguém pode alguma vez ter na vida. “Precisava de dar umas voltas, distrair-me. Entrar numa loja e comprar uns discos”, oiço. “Uns filmes. Fumar uns cigarros, meter-me com umas miúdas. Sem ninguém atrás de mim, a chatear-me. A pedir autógrafos e reformas antecipadas. Sabe como é...” E eu a encolher-me ao volante. “Olhei para si ao longe e pensei: ‘ali está o corpo ideal para o meu anonimato’, para isso tudo que lhe estou a explicar.” Para isso e muito mais, pensei eu. “Não me leve a mal a franqueza”, confessou-me ainda, como se já fossemos grandes amigos. Foi a última palavra que ouvi da sua boca. Depois ela passou para mim. Uma dentadura lassa. Uns lábios finos. Uma dificuldade em pronunciar certas letras. Um horror. Agora, já lá vão mais de vinte e quatro horas desde que nos separámos. O meu corpinho nem vê-lo. Não saí de casa, nem ontem, nem hoje. Não recebi telefonema algum, como ficou combinado. “São só umas horas, não se preocupe”. Nem do Palácio de Belém, nem do Colombo. Nas notícias já disseram que o Presidente anda desaparecido, que foi raptado ou assim. Entrevistaram a mulher e os filhos, já a limpar uma lágrima do olho. Um assunto de Estado. Tudo maluco, tudo alerta. As forças armadas com caras feias já todas com a mostarda no nariz, a caminho de Badajoz. Ou de Teerão. Porra! Nem consigo olhar-me ao espelho, com medo de o partir. “O senhor dá-me boleia?” Porque é que não bati no homem da Telepizza? Nem um telefonema... E eu sem sair de casa, dentro deste corpo de Cavaco Silva, sem nada que possa fazer com ele. Ainda para mais já cheiro mal. Não tive coragem de me despir e muito menos de tomar banho. E ele a divertir-se. Sei lá aonde. “O senhor dá-me boleia?” Às vezes consigo ser mesmo muito estúpido!
OS CONCERTOS DOS SÁBADOS DE TARDE, NO GINÁSIO DA ESCOLA
António MR Martins
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STÁVAMOS NA DÉCADA DE SETENTA… Depois de deixarmos os frondosos anos sessenta, repletos de novidades no tocante à música em geral, apesar da negrura que ambientava o tristonho semblante da população portuguesa, onde o estado novo e a sua mão ditatorial iam deixando as suas últimas impressões digitais. Tinham passado os movimentos “hyppie” e o “Woodstock”. A luz sucedânea deu ao conhecimento novos efeitos de vida e novas melodias inesquecíveis, onde foram referência os seguintes intérpretes: - Joan Baez, Bob Dylan, Jim Morrison, Janis Joplin, The Eagles, Procul Harum, Cat Stevens, Creedence Clearwater Revival, Staus Quo, Alice Cooper, Pink Floyd, não esquecendo The Beetles, entre tantos outros. Por cá as rádios transmitiam a música possível, e permitida pelo governo de então, António Calvário, Madalena Iglésias, Artur Garcia, Paula Ribas, Maria de Lurdes Resende, Tristão da Silva, Carlos Ramos, Fernando Farinha, Tony de Matos, Hermínia Silva, Alfredo Marceneiro, Francisco José, Simone de Oliveira, eram algumas das vozes que se faziam ouvir, para além da maior, Amália Rodrigues, entre muitos mais. Enormes vozes, efectivamente, mas sofrendo da nostalgia subjacente ao que lhes era permitido fazer e apresentar. Entretanto, na sombra, outros nomes iam aparecendo na sua irreverência, com a carga de trazerem consigo a mensagem do não à guerra em África (no denominado Ultramar, de então) e um novo tipo musical, a balada de intervenção. Aí muitos nomes ficaram na história da música portuguesa, cantando belos poemas, onde a nova palavra crítica, ou luta social, fazia parte do conteúdo das suas canções. Foi no início da década de setenta, com um pouco de brandura surgido na ditadura de Marcelo Caetano, bem diferente de Salazar, que, embora às escondidas, foram surgindo publicamente muitas dessas “figuras”, que vinham lutando pela sua música, na clandestinidade, em prol da conquista da liberdade, que viria a acontecer a 25 de Abril de 1974.
Foi nesse desenrolar que os habituais concertos dos sábados de tarde, que ocorriam no velho ginásio da Escola Comercial Patrício Prazeres, se foram alterando nos seus elementos. Os primeiros abordavam a música clássica e tinham como mentor o maestro José Atalaya, que tentava ensinar a forma de ouvir a criação de compositores diversos, como Betthoven, Liszt, Strauss, Mozart e tantos outros. Com a chegada de novos professores, alguns com sentido progressista, para a época, trazendo novas ideias e com diferentes ideais, estes concertos passaram a ter novos intervenientes, os “baladeiros”, os homens da luta com as palavras e a música. Nomes como José Afonso, Padre Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Carlos Alberto Moniz, Maria do Amparo, José Jorge Letria, Vitorino, Janita Salomé, lembro-me de os ver por lá, mas havia outros. Então esperávamos, ansiosos, pelo tão aguardado sábado e era uma autêntica corrida para o velho ginásio da escola, onde se encontrava um palco para encenação e apresentação de peças de teatro (que servia para os cantores), e nos íamos sentando pelo chão (havia algumas cadeiras para os primeiros a chegar), mesmo à sua frente. O acesso a esses concertos era feito pela aquisição de um bilhete que tinha o custo de 5$00 (cinco escudos). Tais bilhetes, numerados, eram do tipo dos livros de rifas que os alunos costumavam utilizar para fazer vários sorteios a fim de ganharem algum dinheiro para as festas dos finais de ano. Lembro-me que o ginásio se enchia e que muitos de nós vínhamos cantarolar muitas das cantigas para o exterior, não sabendo, às vezes, muitos do seu significado. Foram, no entanto, momentos fascinantes e de grande empatia geral. Sei que os concertos não chegaram a ser mais que cinco ou seis, porque proibidos depois, e que nos muros da escola, durante uns tempos, passaram a constar frases ameaçadoras, de que todos nos interrogávamos, sem descortinar o efectivo sentido.
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