PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nツコ 2477. Nテグ PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
ARTES, LETRAS E IDEIAS
h NUNO BARRETO
O REGRESSO DO PINTOR
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Carlos Morais José
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OFÁ das Ilusões”, o terceiro livro da obra poética de Gonçalo Lobo Pinheiro, contém uma novidade radical em relação aos volumes que o precedem: ainda que o tema dominante continue a ser o amor, dá-se por uma mudança de conteúdo e de forma talvez motivada pelo autor permanecer agora em Macau. Este facto, talvez displicente para alguns, não deixa de se sentir para já nesta escrita que se altera e recria não somente do ponto de vista do ambiente envolvente mas, sobretudo, no conteúdo relacional que evoca. É essa diferença, restrita à viagem, que acaba por emergir nestes novos poemas de Gonçalo Lobo Pinheiro, como algo ainda confuso, subliminar, no limiar da consciência, mas que as palavras traem na sua ânsia de apreensão de uma nova e incompreensível realidade que assim assume
um paralelo com a distância fundamental que hoje pauta as nossas relações amorosas, sejam elas com uma mulher, uma cidade, uma cultura ou uma ocasião específica na qual o fascínio não nasce tanto da diferença quanto da possibilidade de reconhecimento de uma humanidade inalcançável mas próxima. A viagem assume assim na escrita de Gonçalo Lobo Pinheiro não o exotismo deslumbrado (felizmente!) mas a demanda de uma identidade que encontra na metáfora da realização amorosa a sua razão de ser, independentemente do espaço onde se explana e oferece. Por seu lado, Macau surge na sua poesia como espaço, mulher, página branca e disponível, na qual é permitido o sofrimento da escrita e a inquinação branda do espírito. Fundamentalmente, a cidade surge como reflexo narcísico do desatino de quem experimenta a dificuldade de se suster na espuma própria aos seus dias. Aliás, um sentimento que não tem relação imediata com a presença na diferença, na medida em que esta
se encontra radicalmente penetrada pela memória, os conceitos transmutados do Ocidente, aqui reforçados pelo confronto com a diferença, ainda que em princípio de erosão. Aqui se enraíza a originalidade e a voz singular que ressoa em e além desta poesia que, cremos, se encontra ainda em processo de afirmação. Já longe dos seus dois primeiros livros, sobretudo em termos de qualidade formal, Gonçalo Lobo Pinheiro encontra aqui neste “Sofá das Ilusões” o seu primeiro leito para um salto de uma escrita onde a viagem se efectua pela insensatez da experiência e onde o amor assume também ele um carácter quase meramente experimental. Macau continua assim a ser lugar de emergência da poesia portuguesa, como sempre o foi no passado, um lugar excelso de entendimento de um ser português que algures no espaço e no tempo se esvaiu e dissimulou para agora se reencontrar na sensibilidade inevitavelmente líquida e magoada do exilado.
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GONÇALO LOBO PINHEIRO
O LUGAR DAS ILUSÕES
DE LISBOA A MACAU Apesar dos condimentos desta valiosa obra poética, que vem acentuar a qualidade do autor, que muito aprecio, não me posso imiscuir dos laços que a ele me unem. Portanto torna-se mais difícil desenrolar opinião, sem o sentir desse facto que conflui nos neurónios do pensamento. Todavia há que continuar sem receios de poder ferir quaisquer susceptibilidades, de quem porventura não compreenda, a preceito, este dilema. Ao fim e ao cabo, e isso é que importa, é um prazer enorme ler Gonçalo Lobo Pinheiro, e este “Sofá das Ilusões” não foge a essa regra. Assim, concluo, que ser pai do Gonçalo será coisa de somenos importância, no contexto argumentativo para poder dissertar sobre este seu novo livro, construído entre dois espaços longínquos, Belas e Macau, apesar das temáticas que poderão ser abordadas e a abrangência da própria obra. Neste âmbito falar de forma escrita sobre a saudade não será efeito de ânimo leve, até porque ela é eminente entre os seres que ora interagem, mas sobretudo porque muitos dos poemas aqui apresentados também dela falam. Gonçalo Lobo Pinheiro refere, no início da obra, que muitos dos trabalhos incluídos neste livro foram escritos sentado no sofá, um de cada cor, entre essa enorme distância. Tal também se subentende pelo próprio título “Sofá da Ilusões”. É uma experiência que já tive, a metade, pois também já escrevi sentado no de cor laranja. Talvez seja inspirador aquele restrito espaço rectangular, pelo menos numa inspiração imbuída de saudade. Mas o autor é quem interessa neste caso, e não escreve só sobre ela, antes pelo contrário. Há a busca constante do sonho, onde as ilusões habitam, quiçá concretizáveis, ou não, mas esse pressuposto perspectiva tal ilação e assim ele agradece à própria vida, que lhe tem sido tão generosa em ilusões. Perante isso, o autor exterioriza um sentimento de desilusão pelo continuar de vida onde os factores politico sociais o alienaram da possibilidade de fazer valer as suas capacidades laborais, no seu verdadeiro país. Nesta caminhada da palavra, a sua, o poeta deambula também pela ruas da cidade, aquela que sempre foi sua, Lisboa, que ele adora e pela qual se apaixona à passagem de cada uma das suas esquinas. Sente-se essa profundeza no sentir e a sua incessante procura pela realidade de tais ilusões, quando lemos o seu texto “sem destino”: “hoje e sempre citadino/percorro esta calçada à portuguesa,/onde vagueio sem destino,/na busca incessante de alguma certeza.”. Mas neste livro também se escreve sobre o amor, corpos e sedução. Às vezes são palpáveis essas referências, embora indecifráveis, mas na maioria não o são. Então o poeta alude a conceitos metaforizados que tendem a interrogar ou perpetuar esses sentires, como desafogo natural de determinado estado interior ou como escape para uma fuga sem o amargo aperto da incapacidade corporal, para levar a cabo a resolução de tal desiderato. A poesia de Gonçalo Lobo Pinheiro é o rastreio do sentir do poeta, enquanto ser humano, registando um desenrolar límpido e consequente, permitindo que o leitor se deleite nos seus percursos, lendo-a e relendo-a. “Sofá das Ilusões” é uma colectânea de sensações aviltadas pelo rubro das memórias e pela saudade que elas fazem acondicionar, em atmosferas coniventes. O eu aqui é a relevância de todo esse sobe e desce do discernir e causa fundamental deste divagar na palavra. O autor assume-se e revela-se, embora quem o leia também possa sentir esses altos e baixos de um eu não consolidado, deixando-se, de certa forma, inebriar pelo carisma poético da presente obra. Ainda sobre a saudade não quero deixar de fazer referência ao último poema do livro “Se a saudade falasse”, destacando a parte seguinte: “Se a saudade falasse/ Serias sempre tu/Ocupante do meu sentimento,/Nas horas de longe e lamento/Porque te amo com tudo o que posso/E serei sempre, a todo o tempo,/Os passos firmes de alguém,/Envolto em ti, seriamente, mais ninguém.”. Resta-me registar o extraordinário valor literário da obra e a sagacidade criadora do poeta. São factores mais que relevantes para fazerem evidenciar o interesse à sua leitura que, aliás, verdadeiramente recomendo. Penso que está um pouco de quase tudo mencionado e eu termino salientando ter sido com enorme satisfação que pude interagir com as ilusões do poeta, antes de serem passadas a livro efectivo. Claro que a saudade andou de braço dado com as minhas palavras e com a leitura das suas, mas o agradecimento por poder entabular com a escrita do Gonçalo Lobo Pinheiro é inquantificável. António MR Martins
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NUNO BARRETO E OS OUTROS
Carlos Picassinos
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lançamento, esta semana, do livro “Arte Nova. China”, da autoria de José Drummond, sobre a produção artística contemporânea na China pós-maoísta a par da inauguração, amanhã, de uma mais do que justa exposição de homenagem ao pintor Nuno Barreto, constituem dois momentos importantes da vida cultural de Macau. Não pelos acontecimentos em si, ou pelo valor especificamente cultural que cada um apresenta, mas pela potência evocativa e deflagladora de uma história que persiste, apesar de tudo, em ficar esquecida, em não ser escrita nem contada. E, no entanto, trinta anos é muito tempo ou, no caso da produção artística local, o tempo suficiente para merecer uma reflexão e um discurso público, quando não mesmo, de uma historiografia plural e conflituante. Passados estes anos, seria fundamental produzir histórias da arte local capazes de propor novas leituras, de organizar narrativas e contra-narrativas sobre os artistas, as obras, as exposições, as instituições, as associações, as galerias, os festivais, os circuitos, os curadores (se os houve), as políticas (ou a falta delas), os públicos. Em suma, estudar e construir pensamento sobre as circunstâncias política e cultural que informaram a produção artística desses últimos anos do domínio português em Macau. Cruzar olhares, confrontar práticas distintas, gerar tensões. Tal como seria fundamental que nessa historiografia, e nos relatos sobre esse período, se optasse por uma atitude capaz de identificar alguma carga crítica emancipadora e enquadrar, estética e historicamente, os acontecimentos deste nosso presente partilhado. É nesse sentido que a exposição do IACM em volta dos passos de Nuno Barreto e do seu prolífico e desigual trabalho, em Macau, e em Portugal, é de uma oportunidade desmedida e de uma sensibilidade rara entre as instituições culturais (e cívicas) da RAEM. Iniciativas como esta deveriam desdobrar-se não apenas em volta de Nuno Barreto sobre quem está ainda muito por conhecer - sobretudo, entre os mais novos na RAEM - mas também em
redor daquela geração de artistas que medraram à sombra da academia de artes que Barreto inspirou. Um espaço e um momento que, ninguém questiona, deveriam assumir uma centralidade inquestionável na medida da excelência dos alunos que formou e que são hoje alguns dos artistas mais reconhecidos da RAEM. Falo de Nuno Barreto, como falaria de Mio Pang Fei, de Konstantin Bessmertny como de Ung Vai Meng, dos irmãos Carlos e Victor Marreiros como de toda a geração que se consolidou ao longo dos anos oitentae noventa. É claro que uma empresa do género deveria ser enquadrada numa política pública consistente que a cultura e����������������������������������� , em particular, a arte e os artistas de Macau raramente conheceram. Em vez dos famigerados e inconsequentes delírios em volta das indústrias culturais, valeria mais o Governo dirigir esforços para o conhecimento da história de macau. Mas para isso seria preciso a RAEM estar dotada de equipamentos e pessoal qualificado capaz de organizar e reflectir sobre o fenómeno da cultura local, e da contemporaneidade em geral, sem complexos patrióticos ou ansiedades neocoloniais. Justo é reconhecer que o exercício deste vazio não ��������������������������� é ������������������������� prática exclusiva do Governo. Também as universidades e instituições de ensino, os museus e galerias (que não temos), as próprias associações deveriam ter assumido a investigação destes temas como eixo central dos seus planos cientificos, no caso dos primeiros, ou como missão programática, no caso dos segundos. Se é certo que o problema da arte e da prática artística, em Macau, radica na ausência de ensino e de consciência crítica, não deixa também de ser o resultado de uma amnésia histórica que, aliás, não é específico da arte contemporânea. Costuma dizer-se dos portugueses que são tão obcecados com a História quanto distraídos com a memória. Mas esta não tem que ser uma fatalidade ou uma assombração herdada de quando os animais falavam. Por isso mesmo, é����������������������������������������� que seria bom trocarmos���������������� umas ideias sobre o assunto. Sobre Nuno Barreto e os outros.
Trinta anos é tempo suficiente para se elaborar uma reflexão e um discurso, senão mesmo, uma historiografia plural e conflituante sobre a arte contemporânea local.
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WEN ZI 文子
A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS
A Via das nações implica que os homens instruídos não ajam ardilosamente.
CAPÍTULO 168 Lao Tzu disse: A Via das nações implica que os dirigentes nunca dêem ordens cruéis; que os oficiais não mantenham uma burocracia complicada; que os homens instruídos não ajam ardilosamente; que os artesão não pratiquem ofícios decadentes; que os deveres sejam delegados sem alarido; que os instrumentos [musicais] sejam completos mas sem adorno. Não são assim as sociedades caóticas, onde aqueles que se dedicam ao activismo se elevam uns aos outros a altos postos e aqueles que se preocupam com a etiqueta uns aos outros se honram com artificialismo. Os veículos são extremamente decorativos, os instrumentos [musicais] são extravagantemente em-
belezados. Os materialistas esforçam-se pelo que é difícil de obter, considerando-o precioso. Os escritores perseguem a complexidade e prolixidade, considerando-as importantes. Devido ao sofismo, os assuntos são longamente analisados sem que se chegue a qualquer conclusão, o que não ajuda à ordem e fomenta a confusão. Os artesãos produzem trastes, levando anos a fazer coisas que nem sequer são úteis. Por isso, a lei de Shen-nung, o Génio Agricultor, dizia que se os homens que tivessem chegado à idade própria não lavrassem os campo o mundo passaria fome e que o mundo passaria frio se as mulheres, chegadas à idade própria, não tecessem. Como tal, lavrou ele próprio a terra e a sua mulher fez ela própria roupa,
para assim darem um exemplo ao mundo. O modo de liderar o povo não era dar valor a bens difíceis de obter, ou estimar coisas inúteis. Assim, se aqueles que lavram o solo não se esforçarem, nada haverá do que viver e, se aquelas que tecem as roupas não trabalharem, nada haverá com que vestir o corpo. A abundância ou a escassez dependem do indivíduo. Havendo abundante comida e vestimenta, a desonestidade não emerge; feliz e despreocupado, o mundo está em paz, nada restando à elite que fazer com suas estratégias; nada restando aos militaristas que fazer com seu poderio. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho
O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han. A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.
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PROVÍNCIA DE YUNNAN
Na fabulosa Lijiang António Graça de Abreu
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IAJO DE DALI PARA LIJIANG, TREZENTOS QUILÓMETROS POR UMA ESTRADA EM MAU ESTADO – LÁ POR BAIXO, POR VALES E TÚNEIS, EXISTE JÁ UMA NOVA AUTO-ESTRADA EM CONSTRUÇÃO –, SUBINDO PELAS MONTANHAS ATÉ AOS 3.100 METROS E DEPOIS DESCENDO PARA O EXTENSO PLANALTO ONDULADO E SINUOSO ONDE SE SITUA A CIDADE DE LIJIANG QUE ESTENDE O SEU CASARIO POR TERRAS A 2.450 METROS DE ALTITUDE. Estamos bem no norte da província de Yunnan, a duzentos quilómetros da fronteira com o Tibete. Por aqui não existem montes, nem serras, há montanhas e montanhas, infindáveis vales profundos, desfiladeiros e mais planaltos entre montanhas, e ainda mais montanhas por cima de outras montanhas. O alto Yangtsé passa também por aqui, no fundo de um canyon, rasgando a montanha há umas boas dezenas de séculos. Muito antes de chegar a Lijiang, aparecem no horizonte, por detrás do escuro dos cumes próximos, os picos nevados de Yulong Xueshan, ou seja a Montanha de Neve do Dragão de Jade, com o ponto mais alto a 5.550 metros, rodeado pelo maior conjunto de glaciares do hemisfério norte. Tudo a 20 quilómetros de Lijiang, em linha recta. Pode-se subir pelos fios suspensos nos ossos da montanha até aos 4.506 metros – dizem-me ser o mais elevado teleférico do mundo – mas a íngreme escalada não é conveniente para corações sensíveis à altitude. O ar rarefeito, a escassez de oxigénio podem provocar fulminantes ataques cardíacos, embolias cerebrais, etc. Chegada às alturas do planalto, a minha mulher de Xangai, nascida e criada na grande metrópole ao nível do mar, começa a sentir dores no coração. O motorista do carro que nos trouxe desde Dali passou meia viagem a meter-lhe medo com a altitude, as tonturas, as dores no peito, as mortes súbitas. A minha companheira já sente o coração virado do avesso, dói-lhe tudo, acima do estômago, abaixo do pescoço. Acredito que
seja psicossomático mas preocupo-me, vou ter de acautelar a estadia por estas paragens e não pensar em trepar pelas montanhas. Tenho, no entanto, quase a certeza que regressada a Xangai, na lisura das grandes planícies, tudo quanto é coração, diafragma e anexos da Wang Hai Yuan, minha esposa, voltará a funcionar em pleno. Já não vou poder subir até à cidadezinha de Zhongdian, setenta quilómetros a norte, rebaptizada como Shangri-la, a 3.150 metros de altitude, logo abaixo do Tibete 丽江Lijiang que significa “rio bonito”, é Património Mundial pela Unesco desde 1997. A cidade foi abalada por um tremendo terramoto em Fevereiro de 1996, 7,2 graus na escala de Richter, que provocou 300 mortos e 16.000 feridos. A parte nova do pequeno burgo sofreu enormes danos, mas a cidade antiga, com as casas e as empenas em madeira apoiadas em estruturas sólidas de pedra e adobe, -uma arquitectura velha de dez séculos --, permaneceu quase intacta, resistiu bem ao abalo sísmico. Tal facto despertou atenções por toda a China e foi também objecto de estudo por vários organismos internacionais. Gente da Unesco acabou por visitar Lijiang e, ano e meio depois do tremor de terra, a cidade foi declarada Património Mundial. E merece tal distinção. Estamos diante, dentro de um dos mais fascinantes lugares da China. As casas, todas de um ou dois pisos, começaram a ser construídas nas dinastias Song e Yuan (secs. XI a XIV). A arquitectura é singularíssima porque mistura estilos tibetanos, chineses e naxis, esta a minoria nacional mais presente na região. Lijiang foi, em tempos não muitos recu-
ados, um grande entreposto, um centro de comércio, de intercâmbio e trocas na chamada Rota do Chá. Daqui partiam grandes caravanas de cavalos transportando o chá de Yunnan e Sichuan para o Tibete e para a antiga Birmânia. O burgo antigo distribui-se por milhares de casas quadradas de madeira com dois sobrados e um vasto pátio interior. Fiquei alojado numa destas casas, adaptada a pousada, com apenas dez quartos nos dois pisos e o bonito nome de Hotel das Aves Migrantes. Que sensação óptima adormecer numa cama limpa nas faldas do Tibete rodeado da serena vetustez dos séculos! E, porque era a época baixa, paguei a enormidade de 60 yuans por noite, mais ou menos 8 euros, por um duplo confortável, com as camas aquecidas – estamos em Março de 2011, ainda faz frio --, e temos direito a quarto de banho privativo, sem pequeno almoço, mas com chamadas telefónicas para a China e internet grátis. Fiz o meu turístico negócio da China!... As ruas, muitas delas atravessadas por pequenos canais com água sempre a correr, estão pavimenta-
das com lajes de pedra de várias cores e não faltam lanternas chinesas penduradas em tudo quanto é casa e telhado, há lojas e lojas onde se vende um pouco de tudo, quinquilharia e peças de bom artesanato, roupa às toneladas, sedas, algodões, brocados, casacões para os invernos frios feitos com lã dos rebanhos da montanha, de excelente qualidade. As montanhas de Caxemira, do outro lado dos Himalaias, não estão longe…E há restaurantes quase porta sim, porta não, com pratos típicos dos naxis, comida estranha, exótica que não me entusiasmou sobremaneira. Na praça central, todas as noites encontram-se grupos de naxis, principalmente mulheres com os trajes da sua minoria que dançam num grande círculo. Qualquer pessoa pode entrar na roda e juntar-se à festa. Também todos os dias, às oito horas da noite, num típico e original teatro em madeira, acontece um concerto-espectáculo da responsabilidade dos vinte e quatro idosos membros da Orquestra Naxi de Lijiang. Têm entre 70 e 90 anos. Pendurados nas suas barbichas de velhos sábios e nas roupas coloridas
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de brocado tocam nos antiquíssimos erhu, suona, guzheng (violinos, flautas, harpas, marimbas) antiga música taoísta que dizem entroncar nas dinastias Han, Tang e Song (secs. I a XI). Alguns membros da orquestra, devido à provecta idade, ao cansaço dos anos, ao ritmo embalador do concerto, de vez em quando adormecem. O recital, mais para ver os velhos e a decoração original do interior do teatro do que para ouvir a música monótona e repetitiva, também deu para eu passar pelas brasas. Na saída noroeste da cidade velha de Lijiang, num dos edifícios já modernos, situa-se um Kentucky Fried Chicken. Passe a publicidade, recomendo vivamente. Não pelas tretas dos frangos fritos e similares, mas porque vendiam pastéis de nata quase iguais aos da velha casa dos Pastéis de Belém, na nossa Lisboa. Comprei quatro ou cinco, já tantas eram as saudades de um pastelinho de nata à portuguesa comido agora com prazer nestas terras dos confins da China. Não longe dos pastéis, encontro uma pracinha com uma estátua gigante de Mao Zedong,
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restos da loucura da Revolução Cultural, aí com uns vinte metros de altura, o braço direito do grande timoneiro levantado, acenando para o vazio. Para fechar a estadia em Lijiang fui até ao parque do Lago do Dragão Negro, uns dois quilómetros a norte da cidade. Sabia da sua existência há muitos anos e das espantosas fotografias que aí se tiram. A capa do meu segundo livro de poesia “China de Seda” é uma foto deste lugar que fui buscar à net em 2001. Chegou finalmente a minha vez de estar em Lijiang e fotografar tudo com os olhos, o coração e a câmara digital. As águas do lago espraiam-se abraçadas pela vegetação das margens. Ao fundo, pavilhões e torres reflectem-se nas águas azuis, paradas, tendo logo por detrás os picos imaculadamente brancos da neve em Yulong Xueshan, a montanha do Dragão de Jade. A água do lago corre depois para a cidade, com cascatas e pequenas pontes unindo o enrugar da terra. Aqui um homem, à deriva pelo mundo chinês, levitando no ar leve e depurado da manhã, acredita encontrar o Paraíso.
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P R I M E I R O B A L C Ã O
luz de inverno
Boi Luxo
A PROPÓSITO DE FAUSTO, 1994
Amanhã, sábado, dia 22 de Outubro, é apresentada em Macau a Sinfonia Fausto de Liszt, de seu nome completo Eine Faust-Symphonie in drei Charakterbildern. Cada um dos seus três andamentos desenha a figura de uma personagem da obra que Goethe dedicou à história do cientista alemão: Fausto, Gretchen e Mefistófeles. Alguns leitores lembrarão que Liszt compôs igualmente quatro valsas chamadas Mephisto, marca da sua propensão mefistofélica. Não admira. Esta história, a de Fausto, tem sido amplamente representada pela literatura e pela música instrumental e vocal - a sinfonia de Lizst é para tenor, coro masculino e orquestra. Entre as óperas conhecidas que a tenham utilizado existe a de Gounod e A Danação de Fausto, de Berlioz, que não sendo exactamente uma ópera como tal pode ser apresentada - e de onde Hergé retirou parte de uma ária, cantada várias vezes pela inigualável e divina Bianca Castafiore, diva conhecidíssima de muitos leitores, a ária da jóia de que faz parte a frase: ♪♫ ♪♫ Ah, je ris de me voir si belle en ce miroir ♪♫. Outros compositores se deixaram atrair por esta história, de Sphor a Schnittke, passando por Wagner, Schumann e Boito, todos estes devedores do poema dramático de Goethe. Também não admira que grande parte destes autores sejam alemães. A tradição fáustica é rica em toda a Europa, mas é muito provavelmente de origem germânica. É a partir dos Faustbuchs alemães, textos em que se retrata a vida de um possível Fausto histórico, alquimista e sodomita, que nasce a “faustiana” europeia. No entanto, foi um inglês quem, nos inícios do século XVII, compôs a primeira obra importante sobre este mito, Christopher Marlowe, autor da peça chamada Faustus. É, a par de Goethe, autor do longo poema sobre o mesmo tema, o artista que mais contribuiu para instituir definitivamente esta história
JAN SVANKMAJER
como tópico permanente da cultura ocidental. O romance de Thomas Mann, Faustus, não alcançou a fama das obras de Marlowe e Goethe mas o último filme de Sokurov, Faust, estreado apenas há cerca de um mês, é prova da permanência do mito na produção artística do ocidente. No cinema são duas as obras que mais importantemente fixaram a sua definição fílmica, o conhecido filme de Murnau (de 1926) e o filme de Jan Svankmajer. O lugar do filme de Sokurov neste corpus será também, certamente, de destaque. Em torno do Fausto histórico urdiu-se uma figuração que enfatiza a sua actividade alquímica e ligação ao oculto, os seus poderes objecto de larga especulação durante muitos anos – variando entre a denúncia da charlatanice à crença profunda no seu saber mágico e médico. O Fausto ficcional é um história sobre a velhice (ou o aborrecimento) e a impossibilidade da renovação, e igualmente sobre a falta de crença na fé e no conhecimento (na ciência). É a falha da ciência, mais que a falha cristã, que lança o Fausto de Murnau no desespero, em face do surto de peste que assola a sua cidade, e que o leva a convocar Mefistófeles depois da cena em que, irado e desiludido, queima, em sua casa, os livros do saber e de deus. A figura de Fausto ganhou uma fortuna geral, já que alguns dos seus temas são temas queridos à sensibilidade artística e intelectual da idade moderna. Ela mistura o desejo do conhecimento (que pode levar à glória e ao poder) com um desejo imenso de gozar a existência, um apetite pelo mundanal que se não viveu. Ao mesmo tempo, lembra que esta condição, obtida através de um pacto com o Diabo, tem uma duração limitada e um final necessariamente funesto. O tema é universal
e delicioso em vários dos seus contornos. Quem não desejou já vender a alma ao Diabo a troco da juventude, da glória e do poder que vem do conhecimento ? Svankmajer recupera a figuração do Fausto como mago em busca do ouro no tom das suas muitas e diversificadas animações, um tom em que a seriedade e o macabro vêm de par com um humor insistente, omnipresente. Este humor nasce também de uma estranheza e uma distância que só começámos a perceber melhor quando os regimes de leste abandonaram a tutela soviética e os seus filmes se tornaram mais conhecidos. É um humor que se constrói em staccato, lentamente, um humor que deixa ver, por trás da sua aparência acabada, as peças com que é formado, assim como na construção da animação podemos imaginar a colocação laboriosa dos objectos filmados, fotograma a fotograma. Não é apenas nesta actualização do mito que há um estrato humorístico que o percorre. Os mais atentos repararão que no terceiro andamento da sinfonia de Liszt existe uma veia marcadamente satírica. Este é um cinema opaco, subterrâneo e cuja vaidade absurdista só a alguns encantará. É sintomático que estes dois filmes, o de Murnau e o de Svankmajer, não andem muito longe do bizarro. A distorção a que o desespero e o desejo pelo poder e pela glória levam, infecta o comportamento dos Faustos de forma sinuosamente fatal. De Svankmajer não poderia esperar-se senão um produto barroco e convulsivo, uma narrativa curvilínea na sua ornamentação e descarada na forma como utiliza o som. É um produto em que o realizador checo usa, tal como nas animações que o celebrizaram, objectos e técnicas de vários tipos, especialmente a animação com barro e a animação de marionetas de madeira.
O uso das marionetas é um regresso ao tempo em que a história de Fausto era representada usando-as e usando-se de um tom também humorista que acompanha várias das actualizações do mito (Goethe terá inicialmente tomado contacto com a figura de Fausto através de espectáculos de marionetas). O anjo e o diabo do filme de Svankmajer são grandes bonecos de madeira, manipulados por um bonecreiro visível, cujas cabeças aparecem a rolar respectivamente por um jardim e por um bosque. Ao pobre checo aborrecido cabe escolher entre o Bem e o Mal. A nós cabe-nos seguir o espectáculo com a avidez de quem não sabe o que esperar, aturdidos pelo inesperado de cada cena e pelo som cavo e oco da madeira. Se o mito de Fausto exprime o desejo de uma viagem pela magia enquanto reacção ao racionalismo estéril do neo-classicismo, este encontra no filme de Svankmajer a sua expressão mais colorida mesmo que também muito dolorosa. Apercebemo-nos que Fausto não passa de um fantoche e que o seu poder de escolha é, afinal, muito limitado. Muito menos limitada é a imaginação febril e libertária com que Svankmajer agressivamente constrói este filme. É com uma expectativa infantil que esperamos para ver o que terá inventado Sokurov para nos divertir. Se foi pela música que se começou, pela música que se interpreta em Macau durante o seu Festival de Música, encerrem-se também estas breves considerações lembrando que em Novembro será apresentada a ópera Der Freischütz, onde vamos encontrar uma situação semelhante. Na ópera de Weber, Max, o protagonista atirador, precisa valer-se de umas balas mágicas para garantir o coração da mulher que ama, Agathe. Para isso é preciso entrar num pacto com um outro atirador que vendera a alma ao diabo. Um festival verdadeiramente diabólico. É tentador.
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próximo oriente
Hugo Pinto
REVOLUÇÃO CULTURAL 21 de Outubro de 1981. No mês de todas as revoluções, Pequim começava uma noite de quarta-feira banhada por sons e luzes que a capital do império do meio nunca antes imaginara ouvir ou ver. Passam hoje precisamente 30 anos desde que, pela primeira vez, um músico ocidental actuou na China comunista. A honra coube ao francês e pioneiro da música electrónica ambiental Jean Michel Jarre. Em cima do acontecimento, a Reuters difundia um telex logo a seguir ao histórico espectáculo. “A China viu hoje o seu primeiro concerto de rock electrónico”, começava a notícia da agência que descrevia a audiência “desorientada” e Jean Michel Jarre “encantado” por ter tocado em Pequim perante 15 mil espectadores que “aplaudiram ocasionalmente”, mostrando mais interesse no aparato visual dos inúmeros lasers do que na música estranhamente hipnótica. No curto despacho da Reuters, referência ainda para a debandada de quase metade da audiência que encheu o Ginásio dos Trabalhadores. Não porque não estivessem a gostar do concerto, mas porque os autocarros de Pequim terminavam as carreiras às dez da noite, ou seja, antes do final do espectáculo que começou às oito, tendo durado duas horas e 40 minutos. Quase três horas que foram antecedidas por um longo processo de negociação e preparação que se tornou mais fácil quando, ainda em 1981, a embaixada britânica na capital chinesa ofereceu à Rádio Pequim dois discos de Jean Michel Jarre, “Oxygene” e “Équinoxe”, que tornar-se-iam, assim, nas primeiras peças de música ocidental tocadas no éter comunista. O convite para que Jarre tocasse ao vivo na China veio pouco tempo depois. O compositor, acompanhado de pessoal da sua editora (Disques Dreyfus), fez várias visitas preparatórias a Pequim, mas nem por isso a noite da estreia ficou livre de imprevistos. A imensa parafernália tecnológica de Jean Michel Jarre era, afinal, demasiado potente para a instalação eléctrica do Ginásio dos Trabalhadores. Valeu o pragmatismo: conta-se que os oficiais chineses resolveram a questão cortando a electricidade na vizinhança do estádio enquanto o concerto decorria. Os efeitos especiais de luz e som, os incontáveis sintetizadores, osciladores e processadores eram (e são) a imagem de marca do futurista Jean Michel Jarre que, na China, utilizou pela primeira vez em palco um instrumento que, ainda hoje, é “exótico” – a harpa de laser, que consiste numa série de feixes de luz que reproduzem sons quando bloqueados. Mais um entre os muitos motivos de admiração para o público chinês. Quando chegou à China, o francês, filho
do compositor Maurice Jarre, tinha editado três discos que se vendiam aos milhões em todo o mundo. Para a fama planetária contribuía ainda a relação com Charlotte Rampling, a actriz inglesa que acompanhou o então marido nesta aventura chinesa. São célebres as imagens do mediático casal em improvisadas sessões de fotografia nas ruas de Pequim: duas figuras coloridas em evidente contraste com um fundo monótono, demasiado cinzento. Tinha sido há apenas 3 anos que a China começara o processo de reformas económicas que paulatinamente iam abrindo o país ao exterior. Depois do restabelecimento das relações diplomáticas com os Estados Unidos, depois da importação da Coca-Cola... a música electrónica de Jean Michel Jarre. Ao todo, o francês deu cinco concertos – dois em Pequim e três em Xangai, onde o músico recorda um público mais efusivo do que na capital. Transmissões na rádio e na televisão chinesas levaram os sons futuristas de Jean Michel Jarre a 500 milhões de pessoas em toda a República Popular. Em 1982, um duplo LP foi lançado com o
nome “Concerts in China”. Tratava-se do registo de um momento histórico para memória futura que chegou a número um no “top” de vendas português. “Concerts In China” é um dos pontos altos da electrónica progressiva e ambiental e também um dos primeiros exemplos de fusão de sonoridades ocidentais e orientais. Foi isso que Jean Michel Jarre fez, por exemplo, em “Jonques de Pecheurs au Crepuscule”, um tema tradicional chinês a que o francês juntou novos travos sintéticos e diferentes arranjos interpretados pela Orquestra Sinfónica do Conservatório de Pequim. Outros temas, como “Nuit a Shangai” ou “Orient Express”, reflectem inspiração sínica. Em 1982, estreou na estação televisiva britânica ITV o documentário “Jean-Michel Jarre - China Concerts 1981”, que apenas em 1989 foi editado em vídeo e, até hoje, permanece sem edição oficial em DVD. As imagens surgem como o complemento óbvio à audição do disco, e ajudam a dar forma ao imaginário que a música sugere. No entanto, apesar do som e da imagem, conceber o que a audiência de há 30 anos pensou e sentiu quando ouviu Jean Michel Jarre continua a ser um insondável mistério e um desafio ao mais criativo dos seres.
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metrópolis
Tiago Quadros*
DO CONTEXTO À FORMA A
FINALIDADE DE QUALQUER OPERAÇÃO ARQUITECTÓNICA CONSISTE EM “INTERVIR” NA SUPERFÍCIE DA CIDADE, PROLONGANDO NO ESPAÇO A QUALIDADE ARQUITECTÓNICA DO OBJECTO CONSTRUÍDO, ISTO É, DOTANDO-O DE RELAÇÕES URBANÍSTICAS. Contudo, o objecto arquitectónico deverá também possuir a força necessária para afirmar-se no contexto do pré-existente com vista a iniciar uma modificação ou a manter uma estabilização do seu contexto e mediante essa acção contribuir de forma substancial para a transformação urbanística do seu âmbito de influência. Construir um edifício novo na Praça do Tap Seac é um tema importante, não só no que se refere a questões especificamente arquitectónicas mas também à configuração urbanística e social do contexto em que se insere o novo edifício. No planeamento urbanístico intervêm dois aspectos fundamentais: a configuração geral do edifício e a sua relação com a arquitectura contextual. O Centro de Saúde do Tap Seac, concluído em 1991 pelo arquitecto Carlos Marreiros, foi o resultado de uma série prolongada de estudos. No decurso do processo de concepção Marreiros evitou a resposta mais fácil, esperada pelos responsáveis dos Serviços de Saúde de Macau: desenhar reproduzindo a “imagem” do pré-existente. Com efeito, a obra de Carlos Marreiros insere-se num conjunto de elevado valor patrimonial, onde se destacam serviços ligados à saúde, à educação, bem como o Arquivo Histórico de Macau. Este conjunto tem uma presença muito relevante na cidade, confrontando a Praça do Tap Seac em toda a sua extensão. Mas de que falamos quando falamos do Centro de Saúde do Tap Seac? Falamos de uma arquitectura ambientalmente integrada, embora reconhecível como pertencente ao seu momento histórico; esforçada em estabelecer continuidade entre o novo e o velho mediante uma investigação particular do lugar. Contudo, a continuidade que esta intervenção procura não é redundante nem tão pouco homogeneizadora. Marreiros desenha uma arquitectura de excepção que actua como agente de uma dialéctica reformadora e criativa. O projecto de Marreiros apoia-se numa ideia precisa. Parte de um todo, independente, que se concebe de forma consequente mas que se assume na sua forma definitiva apenas no contacto com o contexto em que se insere. Assim, parte da importância da obra de Carlos Marreiros reside no compromisso estabelecido com o princípio da continuidade diacrónica da forma da cidade. No Centro de Saúde do Tap Seac há uma vontade integradora que defende a coexistência harmoniosa entre o novo e o velho. A composição abstracizante de Marreiros dialoga com o existente, reconhecendo-se aliás, a sua génese formal no sólido conjunto edificado da zona de São Lázaro. Num contexto que se revela a partir de um “sistema de obras manufacturadas”1 a intervenção de Carlos Marreiros reconhece o tecido histórico, completa-o e, de certo modo, aperfeiçoa-o convertendo a heterogeneidade
desmembrada numa homogeneidade integradora. O Centro de Saúde do Tap Seac surge de uma espécie de empirismo geométrico conceptual, tão complexo e articulado quanto pleno de referências ao contexto urbano em que se insere. A obra de Marreiros parece resultar de um mundo de manipulações e jogos para se nos revelar objecto mágico, cristalizado no solo como uma composição metafísica, quase distante. Como já referimos, a obra de Carlos Marreiros procura a sua natureza abstracta nas pré-existências figurativas, culturais e naturais do contexto em que se insere. Contudo, essa construção acontece sem que se faça um mimetismo superficial e directo dos edifícios adjacentes. Marreiros estabelece uma invulgar simbiose com o contexto. Prolonga-o, valorizando-o mediante um esforço de indagação formal orientado a partir do contexto. Ao evitar uma repetição formal, Carlos Marreiros desenha um edifício contemporâneo. A morfologia e as cores utilizadas permitem a construção de um corpo autónomo e coerente. A propósito da arquitectura de Marreiros para o Centro de Saúde do Tap Seac poder-se-ia dizer que: “Não é antitipológica mas responde a impulsos culturais que transcendem a pequena cultura local; não é antihistoricista mas evita reproduzir a história; não representa um simples mimetismo, ainda que possa ter em conta os sentidos figurativos do contexto em que se insere. Apoia-se sempre numa reflexão intelectual e na observação das leis de formação da cidade.”2 Esta descrição, formulada por Francisco de Gracia procura sistematizar o que para o autor se entende por arquitectura contextual. Sem querermos usar a terminologia definida por Francisco de Gracia para categorizarmos a obra de Carlos Marreiros para o Centro de Saúde do Tap Seac, concluímos que tudo parece obedecer a uma cuidadosa dialéctica entre história e projecto, entre contexto e modificação. A obra de Marreiros marca, de certo modo, o limite intangível entre a adequação contextual e autonomia formal. Com o Centro de Saúde do Tap Seac Carlos Marreiros procura salvar o conflito entre a individualidade do objecto e as leis estabelecidas na construção da cidade. E é nesse instante que a dimensão da obra transcende o valor do acto criativo em si, para se revelar única, exemplar e eloquente.
Todas as imagens apresentadas foram retiradas do livro “Carlos Marreiros: Un Architetto fra due Culture” por Marco Imperadori, Arturo Montanelli e Giuliana Iannaccone, da editora BE-MA Editrice. *Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa 1 SEMERANI, Luciano (Dezembro de 1978). “Estructuras polifuncionales y expansión urbana” in 2G-Construcción de la ciudad - nº 12, p. 28. 2 DE GRACIA, Francisco (1992). Construir en lo construido: la arquitectura como modificación. Madrid: Editorial Nerea, p. 310.
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À S U P E R F Í C I E
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DESKER STREET João Corvo
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Ó, PARCIALMENTE REFEITO DAS IMPRESSÕES CAUSADAS PELO ENCONTRO COM PAULO E JOSÉ ANTÓNIO, DEI POR MIM PARADO E OFEGANTE, À PORTA DO SEGUNDO ANDAR DO ATELIER. Que trazia eu do meu primeiro encontro? Pensei em interrogar-me sobre o que estava para lá de cada... (seria ainda possível pensar o Atelier dividido em andares? ... ) espaço, mas não o farei. É meu dever, não tanto saber e compreender, muito mais relatar, ser perfeito no modo como vou desvendar segredos que este Atelier nunca teve; melhor, os que permanecerão ocultos. Não havia falta de material para um primeiro relatório. Até que ponto aquele tipo fugaz, de mãos sapudas e fato azul, não estaria já informado de tudo ou sequer o leria? Afinal, ele pode não passar de um mensageiro, um rapaz que leva e traz. Existirá outra gente que lê os meus relatórios. Terão dossiers alinhados numa prateleira onde figurarei primeiro como um número, depois com pseudónimo, nome de código, parte secreta de uma rede metediça e poderosa. Afinal ninguém me garantia que o meu contacto fosse mesmo do governo. Talvez um tipo qualquer a soldo, um gajo que vale tanto como eu, agora que trabalho para os mesmos patrões, ou seja nada. Serão coreanos, japoneses ou americanos (estes metem-se em tudo), que estarão por detrás do fato azul? Serão...os chineses? Quem serão os meus leitores? Querem qualquer coisa que não sabem o que é e eu procuro para eles não sei o quê: e é precisamente isto que faz sentido. A quem interessa uma escultura numa praça de Macau? Acreditaria estar perante a acção mesquinha de um escultor rival, que usasse a minha missão de criado para espiar pela casa da inimiga, para lhe cheirar os vícios e sugar a criação. O meu relatório será seco. Assim do género: ficai sabendo, senhores, que no primeiro andar do Atelier se fode continuamente, apenas com ligeiras interrupções para emborcar grandes golos de cerveja. Um pouco como por toda a cidade. Nada de novo, nada de mal, nada de monstruoso. Depois exagerarei, mais sério, quase grave: a Escultora precisa de extrair e consumir energia para lhe alimentar a imaginação e a distrair do cansaço: essa é a missão do Paulo e do José António, inesgotáveis fodilhões sem direito a descanso, só breves pausas sobre as costas das raparigas, ofegantes e suados (não dei por nenhum ar condicionado) depois de já míseras ejaculações. A cerveja era bebida perante o olhar de
uma câmara e eles voltavam-se de modo a que a marca fosse bem visível, finando todo aquele emborcamento com um sorriso. Para terminar a visão mitológica, freudiana: a Escultora é uma gorda imensa, esparramada num gigantesco sofá de veludo, uma espécie de Cronos feminino, continuamente canibalizando carne própria e alheia, devorando filhos e cadilhos, numa sofreguidão senil e monstruosa. Na entrada do segundo andar, hesitava em abrir a porta. Do outro lado chegava uma surdina de multidão trocando segredos. A porta rodava cava e solene nos batentes, as vozes mudavam em oração, em ladaínha. A sala era grande, estreita e comprida. Da entrada não distinguia o fundo, baço no escuro e oculto por grupos de vultos apinhados defronte a buracos que expeliam luz rosa fluorescente. Homens mudavam de grupo, iam e vinham pela sala, espreitando por momentos essas portas estreitas, fazendo comentários laterais, enquanto outros mais próximos pareciam aguardar a sua vez de entrar. Em parte alguma se viam mulheres. Avancei pela sala quando, mesmo antes de ter atingido a primeira abertura, ser abordado por alguém conhecido. O Atelier parecia-me estranhamente recheado de pessoas familiares, com quem eu passava alguma parte do tempo em que decidia ser sociável. Depois do Paulo e do José António, agora era o Artur. O Artur (tanto quanto eu sabia) era suposto ser funcionário público, com um divórcio e amparo de filha adolescente. A mulher fugira com um Gurkha. Para além de noites de bebedeira irascível e disparates, que alimentavam discussões fúteis até o sol afugentar os fantasmas, pouco sabia dele. Dessedentava o corpo em longos mal-entendidos junto de tailandesas ávidas de alguém para jantar. Imaginava (imaginem!) que o Artur era funcionário público. Seria um equívoco? Tal como os outros, trabalharia o Artur no Atelier? Qual seria a sua tarefa? Entretanto, ele quase me abraçava, segurando-me ao mesmo tempo pelos dois braços, exteriorizando alguma ironia e um cheiro intenso de after-shave. Foi quando reparei que toda a sala tresandava a odores fortes, um intenso guisado de maquilhagem e comida excessivamente condimentada. Predominava um fedor a pêssego azedo. Temi um vómito. O Artur agitou-me carinhosamente por dois segundos. Depois abriu um sorriso alvar na sua cara morena e disse perto do meu ouvido, num sussurro: «Bem-vindo João. Bem-vindo ao Atelier». Fiquei à espera. E ele, apercebendo-se de alguma indisposição da minha parte, prosseguiu: «Não te rales com nada disto. Não há problema... não há problema. Deves perguntar a ti mesmo o que faço eu aqui e se cá tra-
balho.». Artur mantinha estupefacto na boca um sorriso invariável, era costume, mas neste passo não se deteve e soltou um risote cacarejado. «Na verdade, não tenho de fazer nada, a não ser vir uma vez por dia a esta sala e fazer como os outros. Poucas indicações nos dão. Limitamo-nos a vaguear durante duas horas». Parou e olhou-me agora matreiramente. «E pagam-nos muito bem... o dinheiro é entregue à saída, o que é esperto da parte deles. Dão-me mais que na repartição», suspirou. «Enfim, não podia deixar de aceitar. Se calhar contigo passou-se a mesma coisa... », hesitou um pouco até lhe voltar o cacarejo, «e depois...» bom, voltamos ao mesmo pensei angustiado por memória de longas brancas que deixavam o Artur meio atónito a meio de uma frase, impossibilitando-lhe o raciocínio simples e o exercício vulgar da linguagem, « e depois...» (abanava a cabeça)... «depois...», vai sair, atrevi-me, «...temos este espectáculo». «Qual espectáculo?», perguntei baixinho olhando em volta. «Anda, vem ver, não custa nada». E puxou-me pelo braço sala adentro, até ao primeiro grupo de homens, especado diante da porta rosa fluorescente mais próxima. Eram apenas alguns metros, num asfalto preto e sujo. Por todo o lado se viam maços de tabaco amarrotados e beatas chupadas indiciando avidez. Compreendia agora que o segundo andar era um espaçoso corredor onde certamente estivera em tempos instalada uma linha de montagem. No negrume da sala brilhavam cigarros, clarões de instantâneo, até depois serem um rasto dos movimentos dóceis das mãos. Muitos daqueles homens vestiam djellabas brancas, subitamente rosas, sob a iluminação crua das portas. Deslizavam silenciosamente, sendo mais claro, apesar de sussurrado, o seu linguajar, pequenas discrepâncias sonoras, às vezes uma exclamação abafada, que perceptíveis os passos abafados pela vastidão de tecido. «Olha lá, ó Artur. Dão-lhes estas fatiotas à porta?», resolvi perguntar já enfastiado da mascarada. Gelou-se-lhe o rosto. Não pareceu ofendido, mas apanhado em falta. Lá conseguiu colar o mesmo sorriso, só um pouco mais amarelo, e limitou-se a dizer como quem não está muito interessado na conversa: «Não... eles são marroquinos...». Resolvi continuar com a brincadeira: «se calhar são ilegais...», disse, também a rir-me mas mansinho, para desdramatizar a situação. Teve algum efeito no Artur. Franziu o sobrolho e disparou: «Se calhar até são, mas eu não tenho nada a ver com isso. A eles, o Atelier não paga de certeza nem um décimo do que me pagam a mim, os cabrões!..Estejam pr‘aí a ver se me ralo». O Artur não gostava de se encontrar na mesma
situação, a ganhar o mesmo dinheiro que os marroquinos, ainda por cima ilegais... mas a maquia era boa, sadia, não lhe doía no ombro, nem na mão, só um pouco no orgulho de se ver assim ladeado de homens em djellaba que não conhecia de lado nenhum. Pelo centro daquele corredor (quase túnel) rastejava um líquido, vulgo água, sem cor, de encontro ao asfalto. Segui enquanto pude esse brilho até deparar com a porta luminosa, cercada de batinas cor de rosa agitadas à sua volta. «Vamos ver», murmurei, juntando o meu sussurro aos dos outros homens e sentindo nesse facto um conforto ausente há muitas luas. Artur olhava-me, de baixo para cima, fixado no seu esgar ridente, já vinco na face, ainda assim imperturbável. «Vamos. Mas antes...», começou ele. «Antes o quê?», cortei impaciente e dirigindo-me na direcção pretendida. «Calma, calma», disse ele, «deixa-me contar-te outra coisa». «Contas depois» e irrompi pelo meio de todos os que se agrupavam em frente à porta. Passava e sentia a macieza dos seus trajes; olhando para o chão não lhes via os pés e não me seria estranho se levitassem. Hesitei, muitas vezes, ao desviar um deles que não se apressava em ceder-me o lugar. As suas costas sombrias dispunham-se no meu caminho, recortes negros no rosa. A impaciência é irmã do desespero. E este de todas as maleitas. Furei como um boi por entre as sombras na direcção da luz. Ainda ouvi a voz do Artur ligeiramente mais alta que todos os murmúrios, quase gritada, talvez o eco da sua tentativa de me dizer qualquer coisa. Desta vez não fora devido ao seu costume de empatar as situações, de gostar de as prolongar, como se tivesse medo que o mundo acabasse ali mesmo ao sair de uma porta, ao rasgar de uma situação - e quisesse usufruir cada momento de segurança até tudo se resumir a uma dissolução em álcool ternurento ou agressivo. Desta vez o Artur quisera prevenir-me e não ser o inútil e chato Artur das romarias. Desta vez eu devia ter ouvido e voltado que fosse a cabeça para ver na sua expressão que era a sério. Teria visto derreter-se o seu sorriso, na ânsia de transmitir desgraça e eu teria acreditado. Na menor intensidade dos seus gestos, no seu olhar, eu descobriria uma anomalia, algo novo que me alertasse e tolhesse os gestos. Foi então que senti o primeiro golpe. Por sorte na cabeça e caí. A dor levou-me as mãos e os braços a protegerem-na da festa que se seguiria. Acabei deitado, as mãos no crânio, sovado por pés ferozes, até perder os sentidos. Mantive os olhos fechados; por isso, de tudo o que se passou, não guardo qualquer imagem: só um negro profundo e uma banda sonora de pontapés ecoando no meu corpo imóvel.