PARTE integrante DO HOJE MACAU Nツコ 2359. Nテグ PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
artes, letras e ideias
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Cidadão exemplar Carlos Morais José Faleceu esta semana o professor Vitorino Magalhães Godinho, um dos mais importantes historiadores portugueses do século XX. Contudo, a sua personalidade e saber extravasaram a área da História, invadindo outras Ciências Humanas, como a Sociologia, por exemplo, de que era professor catedrático na Universidade Nova de Lisboa. Para além do seu desempenho académico, Vitorino Magalhães Godinho celebrizou-se pelo seu alto sentido de cidadania, nunca se eximindo de opinar e criticar quando entendeu tal ser necessário. As suas opiniões e sentenças demonstram a extrema lucidez de um sábio e, ao mesmo tempo, o distanciamento fundamental, proporcionado pelo estudo, em relação à mera espuma dos dias, que tantos obnubila. Em 1989, tive a sorte de entrevistar Vitorino Magalhães Godinho para a revista Vida Mundial, nessa altura editada semanalmente com o jornal O Século. É essa entrevista que hoje aqui reproduzimos. Nela se espelha o homem, o cidadão, o historiador e o político. O homem preocupado com o futuro à medida do seu interesse e saber pelo passado. E nela surge também, como não poderia deixar de ser, em filigrana, Portugal, esse país “a haver”. Surpreendentemente para nós, ao lermos os seus comentários desse tempo sobre o estado das coisas, não podemos deixar de sorrir ao pensarmos, por um lado, como tudo não mudou, e por outro, como a crise que actualmente o país atravessa estava há muito tempo prefaciada para quem soubesse ler e interpretar os tristes sinais que os nossos políticos tão abundantemente davam. Fica, pois, aqui esta entrevista como uma última homenagem a um dos grandes portugueses do século passado, um homem que alimentou a sede de saberes de alunos, mestres e cidadãos. De homens destes sente falta um país que por agora se canta em tom menor.
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Vitorino Magalhães Godinho
“O medo instalou-se Carlos Morais José In Vida Mundial, 1989
– Depois de toda uma vida pautada por importante intervenções cívicas e políticas, em que participava activamente mesmo através de colaborações regulares em revistas e jornais, isto em mementos cruciais da vida política do País, neste momento encontra-se numa fase de recolhimento. Quer falar-me acerca disso? – Julgo que primeiro é necessário esclarecer a minha posição quanto aos deveres e responsabilidades da cidadania. Em democracia, todos têm direito a ser plenamente respeitados, e este é um princípio que deve ser lembrado porque, mau grado toda a retórica em torno dos direitos do homem, está a ser quotidianamente esquecido. Em contrapartida, todos devem assumir as responsabilidades pelo destino colectivo, isto é, todos os cidadãos devem empenharse na coisa pública, não apenas periodicamente, na realização dos actos eleitorais, mas no diaa-dia, participar na construção da Pátria e da Humanidade. Este é o princípio geral, mas que não deve confundir-se com a adesão a partidos políticos ou sindicatos. O que aconteceu em Portugal á que proliferaram os partidos: e aqueles que dominaram e dominam a cena política chamaram a si funções que não lhes cabiam. Houve uma hipertrofia dos partidos e dos sindicatos em todas as actividades políticas e sociais. Isso é mau, porque não existiu a contrabalançar a organização de acções cívicas, de comissões independentes que se pronunciassem com plena isenção, sem dever nada a ninguém, nem grupos de reflexão, o que levou partidos e sindicatos a renunciarem a esse trabalho que lhes competia igualmente, quer de formação da cidadania quer de estudo e meditação sobre as grandes soluções nacionais. O que aconteceu é que o medo se instalou na sociedade portuguesa, contrariamente a uma retórica dita optimista, que manifesta apenas a vontade de não ver a realidade em frente, mas não só o medo como a ambição. Só está protegido do medo e realiza a ambição quem pertence a um partido ou a um sindicato. Daí, a extrema dificuldade em criar os grupos de reflexão ou comissões cívicas
independentes. De modo que, quem pense ser necessário fazer ouvir vozes que não estão regimentadas, encontra-se sozinho e os cidadãos que estão sós acabam por ser cilindrados. Fecham-selhes as portas, não têm meios de chegar à opinião pública. Os dirigentes, que não deviam ocupar-se só dos negócios públicos, mas das grandes questões nacionais, fazem orelhas moucas. Essas vozes isoladas tendem a apagar-se e manter uma posição independente, o que se torna cada vez mais difícil. Não significa isto que renunciasse a fazêlo, mas vou dar-lhe a indicação daqueles passos que não tiveram expressão pública, precisamente porque há um abafar dos gritos das consciências individuais. As minhas iniciativas orientaram-se em vários sentidos: por exemplo, no da participação nos meios de comunicação social. Simplesmente, um programa que foi proposto à televisão, que constaria de uma série de sessões dedicados à formação cívica dos cidadãos e ais problemas do País, não teve seguimento; por outro lado, o «Diário de Notícias» propôs-me uma entrevista, mas depois declarou que não era possível realizá-la – sem dúvida terá sido objecto de pressões; o seminário «Expresso» chegou a fazer-me uma entrevista, mas não a publicou, certamente porque iria beliscar os Berlusconi e os aprendizes de Duce da nossa terra. De modo que, hoje, quem queira apresentar à população portuguesa ideias e problemas, posições críticas – e, como dizia o meu mestre Vieira de Almeida, se a crítica tiver de ser destrutiva pois que o seja, a construção vem depois de demolição – não tem essa possibilidade. O que não significa que eu não tenha feito outras tentativas em campos que considero importantes. Um deles é a investigação científica e várias propostas foram feitas. Algumas delas acabaram, por ser agarradas por outros, que participando das mafias instaladas conseguem realizá-las. Ainda agora se fala se um Instituto de Civilizações Orientais e Africanas cuja criaçãoA ideia figura no meu livro “Um Rumo para a Educação”, foram buscá-la, mas depois realizaramna de forma inócua. Além destas propostas, bati-me pela instituição de um grande centro de História dos Descobrimentos e da Expansão. Neste momento, era a
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em Portugal” prioridade das prioridades para a cultura portuguesa, face a todos os movimentos existentes não só em Espanha como em Itália, em França, na Holanda e em muitos outros países. Simplesmente, os nossos dirigentes não percebem o interesse da investigação científica nem da criação cultural, deleitam-se no vaudeville de comemorações de terceira ordem, não sendo capazes de compreender que as comemorações sérias têm que ser preparadas a longo prazo e devem resultar do trabalho de investigação científica. O Governo não deu apoio à criação desse instituto. É possível que outros, ligados a essas mafias de mercearia da cultura que hoje imperam entre nós, venham a realizar qualquer coisa de semelhante, embora talvez não saibam bem que objectivos lhe atribuir. Fala-se muito de Pátria e de patriotismo, mas, quando se trata do prestígio verdadeiro de Portugal no mundo, nada faz para o garantir. – Como vê o lugar de Portugal na corrida das comemorações dos Descobrimentos que, como febre, ocorre em vários países da Europa? – Eu não gostaria muito de me alongar nesse aspecto, porque penso que há problemas de fundo mais importantes. No entanto, trata-se de um conjunto de sintomas que nos ajudam a um diagnóstico da situação portuguesa. Normalmente as comemorações são ou um meio de formação cívica em relação a um projecto futuro – cimo foram as de 1880, relativamente a Camões, que vieram a desembocar no movimento republicano – ou são maneiras de escamotear os problemas, ou até de substituir a investigação histórica por um conjunto de mitos, lendas e fábulas que se julga serem úteis para as classes dirigentes. É o caso, actualmente: os nosso dirigentes nem sabem quantos séculos de Descobrimentos comemoram e, por outro lado, quiseram entrar numa competição em vez de assentarem as bases para uma renovação dos estudos que dizem respeito às navegações, às conquistas e à colonização... – Desculpe, mas competição com quem?... – Competição com espanhóis e italianos, essencialmente. – Houve uma proposta da parte de Espanha para uma comemoração conjunta... – Sim, mas nós não temos espe-
cialistas e a primeira coisa seria apercebermo-nos que a grande geração – Duarte Leite, Jaime Cortesão, Teixeira da Mota, David Lopes e tantos outros – desapareceu, e que temos de formar gente nova que trabalhe com isenção, sem atitudes chauvinistas, que são sempre deslocadas, sem ceder a esse aliciamento de servir os poderes constituídos, criando novas alusões e fábulas. A única coisa que devíamos fazer era criar um Instituto de História dos Descobrimentos e da Expansão, sem à partida haver logo uma despesa de dez mil contos em automóveis para os directores. Por
nas grandes iniciativas, como seja a Comissão Europeia de História da Expansão, da Fundação Europeia para Ciência. Portugal mantém-se à margem ou às participações não têm qualquer significado. Hoje não temos entre nós, a não ser o professor Luís de Matos ou um ou outro jovem, investigadores de craveira preparados para participar nesse movimento mundial. O que se tem feito até hoje é para deitar fora. É vergonhoso verificar que a única obra editada pela Imprensa Nacional que segue critérios minimamente científicos de estabelecimento de texto é a colectânea de trabalhos
mos de ter em conta a evolução das estruturas sociais globalmente consideradas, isto é: os valores antigos ruíram, foram esquecidos e não houve a capacidade de inventar novos valores. Temos, por um lado, a família. As relações conjugais e sexuais perderam a obediência a certas normas que existiam e pode dizer-se que a família deixou de exercer as funções que lhe cabiam outrora, entre elas a de educar os mais novos. A família demitiu-se, o que teve como resultado não a liberdade dos jovens mas o andarem à deriva. Isto porque a criatividade não surge senão depois e graças a muito
O que aconteceu é que o medo se instalou na sociedade portuguesa, contrariamente a uma retórica, que manifesta apenas a vontade de não ver a realidade em frente, mas não só o medo como a ambição. Só está protegido do medo e realiza a ambição quem pertence a um partido ou a um sindicato. outro lado, teríamos de ter um bom comissariado para organizar a participação na Exposição de Sevilha, o que também não se fez. Só mais tarde deveríamos pensar em comemorações. Neste momento trata-se de festarolas de aldeia sem qualquer espécie de significado e a verdade é que nos ridicularizámos aos olhos de todo o muno e não participamos
de fontes sobre a China de uma filóloga italiana. – Já que falámos da importância da formação das novas gerações, gostaria que me fizesse o seu diagnóstico da situação no que diz respeito aos processos educativos, quer a nível institucional, da escola, quer ao nível individual, da família... – Penso que, antes de mais, te-
trabalho e autodisciplina, tem que ser conquistada conscientemente. Demissão da família, uma juventude abandonada, por outro lado os próprios pais ainda mais desorientados que os filhos. Por outro ainda a escola que abdicou também de educar. Tornouse simplesmente num órgão de transmissão de conhecimentos, de ensino e não de formação da
pessoa humana. Os professores passaram a ter medo dos alunos, classificar com benevolência porque eles próprios são em geral, mal formados, incompetentes e não querem ser julgados. Precisam de benevolência dos alunos para se manterem nos lugares visto que não realizam uma obra sólida e segura. Daí também que a escola deixasse de ser um lugar de vivência, de encontro, como apesar de tudo foi. Eliminaram-se as possibilidades reais de actividades escolares cariadas, orientadas para a formação cívica, que prolonguem a simples aula. Portanto, estamos com uma crise de instituições pela incerteza quanto aos objectivos do sistema escolar. A escola deixou de ser um centro de cultura e a investigação científica, essa, anda pelas ruas da amargura. – No entanto, não lhe parece que o esboroamento dos valores se encontra relacionado com o facto de vivermos numa democracia que torna ausente a necessidade de luta e empenhamento cívico, ainda por cima não participativa? – Eu penso que não é a democracia que o provoca mas sim a ilusão da democracia. Lutou-se para que os direitos jurídico-políticos garantissem a vida quotidiana dos cidadãos no respeito pela sua integridade e liberdade. Entendeu-se que tudo isso era democracia formal, sendo indispensável completá-la por um conjunto de direitos económicos, sociais e culturais. O que é certo é que, à medida que a evolução se processava, também formais, perderam conteúdo real e a democracia tornou-se numa forma política onde é cada vez mais difícil de viver. Se, aparentemente, os regimes totalitários acabaram com a Segunda Guerra Mundial, o problema número um que enfrentamos é o do neofascismo camuflado, como um neosalazarismo sem Salazar e sem sequer um candidato a ditador com a envergadura de Salazar. – Como é que se vê esse ressurgimento? – Isso é o resultado de um desconjuntar da Nação portuguesa frente a um mundo moderno que por todos os lados a penetra, assedia e levanta desafios para que não está preparada. Eu diria que há, por um lado, a persistência de estruturas e mentalidades arContinua na página seguinte
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caizantes que conservam uma extrema rigidez bloqueando as possibilidades de abertura face a um mundo em mudança rápida; por outro lado, há uma falsa modernização que, na realidade, acaba por manter esse antigo regime porque entra em enxurrada sobre o País, subverte-o, mas não passa de uma série de cópias desgarradas do que vem de sociedades diferentes e da subordinação a interesses transnacionais. De modo que não é uma transformação estrutural do País, nem os nossos Governos sabem minimamente o que seja uma transformação estrutural. Como terceiro ponto temos uma incapacidade, que se tem sucessivamente agravado, de definir e aplicar políticas de transformação estrutural e modernização efectiva. Não há uma formulação clara das questões nacionais, nem apontam directrizes para resolver os problemas. Aceita-se o que nos vem a esmo, sem critério nem filtragem. Os Governos têm uma acção formal-jurídica: elaboramse e promulgam-se muitas leis, regulamentos, decretos, portarias, mas a transformação das atitudes e maneiras de proceder dos homens não se dão, não há condutas efectivas de regulação, Por exemplo: agravam-se as penas por infracção ao Código da Estrada sem que tenhamos preparado nem os condutores, nem os peões, nem os agentes da autoridade que deveriam estar encarregados de orientar, guiar e não apenas punir. Outro exemplo, o ensino universitário. Fazem-se leis ditas de autonomia que no fundo criam uma burocracia delirante que hipertrofiou as reitorias, de tal modo que professores e alunos passam a vida em reuniões dos vários Conselhos e não a trabalhar. Isto é característico de um País onde se continua a julgar qua a missão do Governo é legislar e não criar comportamentos, condutas, possibilidades efectivas de actuação, mentalidades adequadas às novas situações. Temos a sociedade desconjuntada e daí o grande perigo do neofascismo, porque o funcionamento dos órgãos de soberania dependem de partidos compostos pelos Beni-Sim-Sim, de que tanto se falou quando foi da Argélia, aqueles que aprovam tudo. Por outro lado, o sindicalismo é uma forma de expressão de interesses meramente imediatos, de busca da facilidade não da mudança efectiva da sociedade. É outro meio que completa e se harmoniza com o capitalismo selvagem dos grandes mamutes internacionais que hoje nos dominam. Temos uma governação que se caracteriza pelo seu analfabetismo cultural. Seria escandaloso se não nos tivéssemos
Na realidade temos cada vez mais Estado e pior Estado. É o Estado-Vampiro que suga o dinheiro dos cidadãos, que depois é distribuído não se sabe como, mas no fundo não serve para melhorar o nível de vida nacional. habituado a ele. E não há política sem cultura: a política é que entra na cultura e não ao contrário. Depois, esta governação não assimilou o espírito democrático... – Refere-se ao actual Governo? – Refiro-me em especial ao actual Governo, mas é um processo que já vem detrás. A governação ou é o laxismo ou o autoritarismo ineficaz. De facto, não se pode dizer que seja democrático, tem-se com razão acusado o exercício do poder de arrogância – e eu diria também petulância balofa –, característica de quem não está à altura do lugar que ocupa. Um Governo que nunca ouve críticas, não é capaz de reflectir sobre elas, nem reconhece os erros, não tem autoridade. O governante tem de saber pedir desculpas. Isso é sinal de fraqueza ou de pendor totalitário extremamente perigoso. Não se mudam as pessoas que se revelaram incompetentes ou que falharam: isso é outro sinal de fraqueza. Temos o caso da maior parte dos Ministérios. Não se aceita a discordância sem a diferença. Houve um ministro que prometeu palmatoadas a um presidente de câmara, isto é imaturidade. Há, de facto, muito espírito infantil nos nossos grupos dirigentes e
esse devia ser imediatamente demitido. Outro caso é a expulsão de Carlos Macedo, um dos fundadores do PSD, é, sem dúvida, uma pessoa de grande seriedade, com a visão política que não têm aqueles que o demitiram, apenas por discordar e dizer aquilo que toda a gente dizia, pensava e continua a pensar. Ao que ele revela recebendo ameaças em relação a entrevistas que venha a dar. A governação não tem ideias coerentes, sob o pretexto de que as ideologias morreram abandonamse as ideias e cai-se no chamado pragmatismo, que não tem nada a ver com o pragmatismo filosófico de um William James e de outros: é apenas uma designação para as actuações desconexas que se tomam sempre que surge alguma dificuldade, sem obedecer a nenhum plano de conjunto. Veja o conjunto de medidas destinadas a conter o consumo: nenhuma delas preparadas, algumas delas catastróficas, como as que impedem os cidadãos de terem acesso a bens essenciais. Sem sequer se ter pensado que Portugal é o País de mais baixo nível de consumo na Europa. Pelo contrário, a transformação económica deveria jogar na promoção do poder
de compra. Não é por caso que a tónica é posta na internacionalização económica: houve um ministro que, aos empresários americanos, disse «come to Portugal and make money», como se Portugal fosse a árvore das patacas para os estrangeiros. Essa internacionalização não é a formação da Europa que queremos, que essa é a Europa cultural, da cidadania e do trabalho, não é a Europa das negociatas e das empresas gigantescas, hipertrofiadas, que tudo controlam acabando por esvaziar a democracia de todo o sentido real. É curioso que aqueles que apregoam a internacionalização da economia quando querem defender o indefensável vêm com discursos demagógicos contras as multinacionais. Sabemos perfeitamente que os comandam e eles não podem levantar sequer um pequeno dedo de protesto. Tudo está cada vez mais controlado e o cidadão mais desprotegido, nunca o homem comum esteve tão indefeso como hoje. – Gostava de lhe sugerir um percurso para análise: por um lado, a questão de um Estado, que não quer ser providência, mas que mantém características de gigantone e atrofia o tecido social e, por outro lado – e vou insistir neste tema –, o surgimento de matilhas neofascistas nas margens desse Estado e cujo comportamento tem provocado tragédias, como é o caso do futebol... – Tem se apregoado que é preciso reduzir o Estado e melhorar o seu funcionamento, menos Estado e melhor Estado, na realidade temos cada vez mais Estado e pior Estado. É o Estado-Vampiro que suga o dinheiro dos cidadãos, que depois é distribuído não se sabe como, mas no fundo não serve para melhorar o nível de vida nacional. Isso situa-se num ambiente global, e fez bem em falar da violência no futebol, porque ela não passa de um aspecto de certas características estruturais do mundo de hoje. É um mundo em que há enormes potências económicas, sectárias ou de crenças, que não são controladas por ninguém e que, graças aos progressos da técnica, dispõem de meios extremamente eficazes. Pode dizer-se que a ameaça de guerra nuclear já desapareceu há muitos anos, mas o mundo tem, não só guerras regionais que estão a esbater-se, uma violência muito mais grave porque se instalou no quotidiano e é o resultado dos grandes negócios, dessa mercantilização desenfreada de tudo. A vida humana deixou de ter valor, hoje a droga é uma moeda de pagamento internacional uti-
lizada pelos sistemas bancários, há de facto uma possibilidade de violência que é organizada por diferentes mafias, chamemoslhes assim... Isto tem muito que ver com os fenómenos de ressurgência de fanatismos. O cidadão é um joguete no meio de grupos que se digladiam e se manifestam sem propostas para o futuro. Centenas de milhares de jovens foram armados e mandados para a frente de combate, aos 12 e 14 anos, que podemos esperar que façam aos 18? Há uma intencionalidade na criação da violência porque ela favorece os grandes negócios: de armas, da droga, das indústrias para o ócio, de formas encapotadas de prostituição. Desapareceu o desporto como meio de formação do corpo humano e até como espectáculo para passar a ser um mero instrumento da publicidade. – Mas não me chegou ainda a falar dos grupos neofascistas... – Os grupos caracteristicamente fascistas, com os seus símbolos, os seus gestos rituais, são um sintoma deste problema mais geral. A forma de fascização far-se-á hoje de uma forma diferente da dos anos 20 ou 30, quando os problemas eram outros. É um fascismo diferente porque não passa necessariamente pelo Estado, eu diria que o Estado não é mais que um conjunto de grupos, cem sempre coerentes, que também actuam na sociedade como os outros grupos. No fundo, por mais autoritário que seja, o Estado é ineficaz porque não controla os mamutes económicos que compõem a sociedade, incluindo o próprio Estado. – Para além da investigação, qual é o papel que vai destinar ao cidadão Vitorino Magalhães Godinho? – Vou de facto continuar com a preparação daqueles trabalhos que fui adiando porque preferi formar gerações de jovens que podem ser um factor de mudança se não se deixarem seduzir pelas carreiras fáceis. São obras que me parecem importantes terminar. Quanto à intervenção cívica não disponho de meios. Gostaria que se formasse uma associação cívica de reflexão que pudesse intervir, sem homogeneizar as posições, na base de um acordo sobre objectivos fundamentais, isso para corrigir o excessivo papel dos partidos na vida portuguesa, mas confesso-lhe que depois de fracassos, como o do Instituto de História da Expansão, me sinto pessimista quanto às possibilidades de intervenção. Até porque, de uma maneira geral, os grupos dirigentes portugueses não me querem ouvir.
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A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS
Qualquer pessoa no mundo será teu companheiro se bem tratado e teu inimigo se mal tratado.
Capítulo 146 Lao Tzu disse: Se honras a vida, ainda que sejas rico e nobre não danificarás o teu corpo comendo em demasia e, mesmo que sejas pobre e de baixa condição, não sobrecarregarás o teu corpo em busca de lucro. Se tiveres recebido um título como legado dos teus antepassados, é certo que o perderás se o tomares demasiado a sério. A tua vida deriva do passado remoto; iludido estás se a perderes por a tomares com demasiada leveza. Governar a terra valorizando o indivíduo é uma fundação sustentável para que a terra te seja confiada, governar a terra velando pelo indivíduo é razão suficiente para receberes a terra a teu cargo. Capítulo 147 Quando Wen Zi inquiriu acerca das bases para governo de um país, Lao Tzu respondeu: A base está no governo do indivíduo. Quando nada foi aprendido acerca do governo do indivíduo, o pais cairá em desordem. Nunca existiu um pais ordeiro onde os indivíduos
fossem desordeiros. Por isso se diz que quando a cultivas em ti mesmo, tal virtude é real. A razão da extrema subtileza da Via não pode ser ensinada de pais para filhos, nem aprendida por filhos de seus pais. Por isso, uma via que possa ser articulada não é uma via eterna e os nomes que possam ser articulados não são nomes perenes. Capítulo 148 Quando Wen Zi inquiriu acerca da conduta capaz de fazer aproximar o povo dos seus líderes, Lao Tzu respondeu: Emprega-os na estação própria e sê respeitador e prudente, como se estivesses à beira de um fundo abismo ou caminhando sobre fino gelo. Qualquer pessoa no mundo será teu companheiro se bem tratado e teu inimigo se mal tratado. Outrora, os súbditos das dinastias Hsia e Yin revoltaram-se contra os tiranos Chou e Chieh, tornando-se súbditos dos líderes populares Tang e Wu; o povo de Su-sha atacou o seu próprio líder, tornando-se fiel a Shen-nung. Por isso se diz, aquilo que o povo teme só pode ser temido. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho
O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han. A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.
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Banda britânica leu e compôs a partir de poesia clássica chinesa do século IX
Pink Floyd
Nos anos 60, uma colectânea de poemas chineses da dinastia Tang surgiram em Londres, traduzidos para Inglês. Alguns deles viriam a influenciar os mentores de uma das mais importantes bandas rock dessa época: os Pink Floyd. Anos mais tarde, Roger Waters construiria a sua famosa “Wall”, retirando alguns dos tijolos à literatura chinesa.
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u Fu, Li Po, Du Mu, Liu Zongyuan, Wang Wei, He Zhizhang, Yu Xuanji e Xue Tao são alguns dos maiores nomes da poesia durante a dinastia chinesa Tang. Conhece? Mas se ouvir o nome Pink Floyd já lhe é mais familiar? Bom, o leitor deve estar a interrogar-se qual a ligação destes nomes com a mítica banda britânica. É simples. Os Pink Floyd, em muitas das suas música, principalmente com os dois primeiros álbums “The Piper at the Gates of Dawn” (1967) e “A Saucerful of Secrets” (1968), beberam da poesia ancestral chinesa para escreverem algumas das letras que compõem estes discos. Tudo começou em “Chapter 24” do álbum “The Piper at the Gates of Dawn”. Esta canção do mítico Syd Barrett cita o “Yi Jing” ou “Livro das Mutações”, que é um antigo texto chinês usado como oráculo para encontrar respostas a questões como “o que é que o futuro me guarda?” Além disso também a música “Cirrus Minor”, gravada para a banda sonora do filme “More” (1969), também faz alusão à poesia chinesa. “A música ‘Set the Controls for the Heart of the Sun’ é uma das primeiras dos Pink Floyd, e uma das minhas primeiras composições. Na verdade, foi a minha primeira composição a ser gravada. É um pedaço de uma poesia chinesa em que a única frase escrita por mim é o título. Todo o resto foi retirado dessa poesia chinesa”, afirmou Roger Waters ao site brasileiro Terra durante uma digressão ao Brasil em 2001. Num artigo reproduzido no livro de “Pink Floyd - through the eyes of...” por Bruno McDonald, Roger Waters admitiu ter “pedido emprestado” as letras de um livro de poesia chinesa do período Dinastia Tang (que mais tarde foi identificado como o livro de poemas do final da dinastia Tang, traduzido por AC Graham na colecção Penguin Classics). Algumas dessas poesias foram escritas por Li He, como “witness the man who raves at the wall making the shape of his questions to heaven”, e Li Shangyin, na poesia contida nos versos: “little by little the night turns around”, “countling the leaves which tremble in dawn” e “one inch of love is one inch of shadow.” Set The Controls For The Heart Of The Sun
Roger Waters, num mau dia
Witness the man who raves at the wall Making the shape of his questions to Heaven Whether the sun will fall in the evening Will he remember the lesson of giving? Set the controls for the heart of the sun. The heart of the sun, the heart of the sun. “Cirrus Minor” é uma canção estranha. Começa com o canto dos pássaros e move-se numa secção de guitarra silenciosa. A canção fala de uma estranha viagem (supostamente uma experiência com drogas) a partir de um cenário natural. Um dos versos da canção, “A thousand miles of moonlight later”, é de Li He do poema “On the Frontier”. Cirrus Minor In a churchyard by a river Lazing in the haze of midday, Laughing in the grasses and the graves. Yellow bird you are not long in Singing and in flying on, In laughing and in leaving. Willow weeping in the water, Waving to the river daughters, Swaying in the ripples and the reeds. On a trip to Cirrus Minor Saw a crater in the sun A thousand miles of moonlight later. On The Frontier traduzido por AC Graham A Tartar horn tugs at the north wind, Thistle Gate shines whiter than the stream. The sky swallows the road to Kokonor. On the Great Wall, a thousand miles of moonlight. The dew comes down, the banners drizzle, Cold bronze rings the watches of the night. The nomads’ armour meshes serpents’ scales. Horses neigh, Evergreen Mound’s champed white. In the still of autumn see the Pleiades. Far out on the sands, danger in the furze. North of their tents is surely the sky’s end Where the sound of the river streams beyond the border. 塞下曲
Little by little the night turns around. Counting the leaves which tremble at dawn Lotuses lean on each other in yearning Under the eaves the swallow is resting
胡角引北風 薊門白於水 天含青海道 城頭月千里
Set the controls for the heart of the sun.
露下旗濛濛 寒金鳴夜刻 蕃甲鎖蛇鱗 馬嘶青塚白
Over the mountain watching the watcher. Breaking the darkness, waking the grapevine. One inch of love is one inch of shadow Love is the shadow that ripens the wine. Set the controls for the heart of the sun. The heart of the sun, the heart of the sun.
Gonçalo Lobo Pinheiro
秋靜見旄頭 沙遠席羈愁 帳北天應盡 河聲出塞流
Li He, poeta do séc. IX
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O lado chinês da lua Também é claro que Waters encontrou esta escuridão profunda dentro de si, pedindo timidamente (‘The Final Cut”):
A culpa de AC Graham Todas estas coincidências só são possíveis porque houve alguém que se dedicou à tradução desta poesia ancestral chinesa. Em 1965, Angus Charles Graham, professor de chinês clássico na Escola de Estudos Orientais e Africanos, da Universidade de Londres e respeitado sinólogo, traduziu as poesias do epílogo da dinastia Tang chinesa. Depois desta antologia, o professor AC Graham passou a mostrar-se como especialista em filosofia antiga chinesa, incluindo as obras de Zhuang-zi, filósofo taoísta. Recentemente o trabalho de Graham foi considerado bastante inovador que até é recomendado a estudiosos chineses nos seus estudos das suas próprias raízes e tradições filosóficas. Claro que a tradução do professor inglês não é prenúncio de um padrão de chinês moderno cujo mandarim é trave-mestra. Os poemas da dinastia Tang, escritos em caracteres chineses tradicionais, não simplificados, faz com que o trabalho feito pelo professor seja o mais aproximado da sua origem, nem sempre conseguido, pela mudança do tempo e da mutação da própria cultura – AC Graham foi um filósofo do século XX. As alusões de Roger Waters O significado das alusões de Roger Waters à poesia chinesa não deve ser sobrestimado. Seria um erro tentarmos compará-lo a T.S. Eliot – poeta modernista ingles e prémio Nobel da Literatura de 1948, que bateu na tradição literária do Ocidente para adicionar profundidade e ressonância à sua poesia. Pink Floyd não é exactamente reverberar com milhares de anos de poesia chinesa. Seria mais seguro dizer que Roger Waters simplesmente imaginou alguns dos versos que ele encontrou nos poemas da dinastia T’ang e decidiu usá-los nas suas letras. Dito isto, é interessante dar uma vista de olhos em algumas dessas alusões à luz do desenvolvimento posterior do trabalho de Roger Waters.
Temas e Imagens The Wall: Em ‘Set the Controls for the Heart of the Sun’, Waters usou emprestado os versos ‘Witness the man who raves at the wall / Making the shape of his questions to Heaven’.
coisa sobre a poesia Li Shangyin que atraiu o jovem Roger Waters. Conhecer a origem das letras dá uma nova dimensão às imagens aparentemente inofensivas e pastorais do primeiro verso de ‘Set the Controls for the Heart of the Sun’ - em especial, na parte em que existe uma abordagem ao cenário das folhas
Waters usou emprestados os versos ‘Witness the man who raves at the wall / Making the shape of his questions to Heaven’. A fonte chinesa foi um poema de Li He A fonte chinesa foi ‘Don’t Go Out of the Door’, de Li He, um poema que termina com o verso (com tradução) ‘Witness the man who raved at the wall as he wrote his questions to Heaven’. Waters usou dois versos inteiros do poeta chinês. O uso destes versos é muito interessante, porque a parede é a imagem dominante e metáfora de um dos mais importantes álbuns dos Pink Floyd. Mas a imagem do muro que ressurge sofre uma mudança fundamental. O muro original sugeria uma barreira impenetrável e insondável que lhe foi imposta por forças. No álbum “The Wall”, é uma barreira psicológica e emocional contra o mundo. Este muro foi construído por pessoas para se protegerem, mas ironicamente torna-se um símbolo da alienação de Waters. Embora a natureza da parede possa ser alterada, porém, o sentimento palpável de frustração gerada por ela permanece e tem-se, no mínimo, tornado mais forte. É notável que a semente para o conceito por detrás de um dos álbuns de rock mais vendido do século XX pode ter génese num poema chinês com mais de mil anos. Amor: A poesia de Li Shangyin, definhanda e romântica, não poderia estar mais longe do cinismo. No entanto, deve ter havido alguma
trémulas e andorinhas a descansar. A atracção exercida pela poesia de Li Shangyin pode ser parcialmente devido à tradução de Graham. No seu prefácio para os poemas da dinastia Tang, Graham salienta que, em inglês, nas traduções de poesia chinesa, o estilo do tradutor tende a substituir a do poeta original. Assim, a poesia de Li Shangyin faz mais do que contribuir para algumas imagens e atmosferas das letras da banda britânica. Há uma imagem ‘Set the Controls for the Heart of the Sun’, que é fundamental para o trabalho seguinte de Roger Waters. Quando Li Shangyin escreveu ‘One inch of love is an inch of ashes’, estava a dar voz ao desespero e decepção no amor - um verso potente em chinês e inglês mas, afinal, uma expressão pura e simples de frustração. Ao alterar o verso para ‘One inch of love is one inch of shadow’, Waters transforma completamente a intenção original de Li Shangyin em algo quase sinistro. Tomados em conjunto com o verso que segue, ‘love is the shadow that ripens the vine’, a observação de Waters sobre o amor é uma reminiscência da mais escura poesia de William Blake, poeta e pintor inglês do século XIX. No seu trabalho posterior, essa visão tenebrosa do amor torna-se quase uma obsessão.
If i show you my dark side Will you still hold me tonight. And if I open my heart to you And show you my weak side What would you do? Would you sell your story to Rolling Stone? Would you take the children away And leave me all alone, And smile in reassurance As you whisper down the phone? Would you send me packing Or would you take me home? O descontentamento: Alguém que esteja atento às letras de Roger Waters vai notar que estas começam quase sempre no baixo tom, mas assumem contornos cada vez mais deprimentes depois. O que é interessante é que Waters acaba por vestir a pele de uma figura de pessimismo como Li He, cuja obra transborda insatisfação e depressão. É quase como se Waters tivesse encontrado uma alma gémea no poeta chinês. Se considerarmos as letras dos Pink Floyd, encontramos um Roger Waters zangado com tudo e com todos - os políticos que traem a Inglaterra e seu povo, os ditadores que levam o mundo à destruição, o capitalismo e consequente destruição do respeito humano mútuo. A explicação para a escuridão de Waters parece ter sido pessoal - a morte do seu pai na Segunda Guerra Mundial -, mas Waters viu isso como um resultado da traição do sistema e voltou a sua amargura contra a sociedade. Conforme o tempo passava, isso tornou-se cada vez mais acentuado, a partir do ‘quiet desperation’ em The Dark Side of the Moon para o cinismo de Wish You Were Here e Animals, a raiva profunda (quase “fúria paranóica”) de The Wall e The Final Cut. A dinastia Tang marcou um período de esplendor da caligrafia da China e a brilhante literatura poética do país remonta a essa época. Aliás, a era Tang é ainda até hoje considerada o apogeu da poesia chinesa surpreendendo pela sua qualidade e quantidade. A popular antologia “Poemas completos da Dinastia Tang”, compilada posteriormente, no século XVII (Dinastia Qing), por ordem imperial, contém aproximadamente 50 mil poemas, escritos por 2200 autores.
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Na primeira versão do “Ensaio Sobre a Visão” vamos ensaiar Macau. Aqui, no complexo terreno percorrido pelos fotógrafos do território. Uma zona, uma rua, um edifício. A água que bebemos dentro de uma mão cheia de imagens. A Fotografia sem explicação, para que se compreenda o que é a Cidade. Esta cidade onde vivemos.
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Bairro de São Lourenço
Sérgio Perez
Habituado às imagens em movimento, Sérgio Perez reparte o seu tempo na complacência dos recortes do quotidiano que se vão congelando à sua frente. Parte pura distracção - vulgo hobby - parte interligação com o mundo que o rodeia, como quem segue a anomalia de uma flor a crescer no alcatrão, levando-o por outros campos, o videoasta agora fotógrafo cria um mundo de sombras que ganha o fôlego de um filme noir e se vai perdendo na memória e nas luzes ténues da cidade. Uma cidade que lhe habita a alma e da qual, ainda hoje, tenta encontrar o fio primordial. A ligação à terra.
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p r i m e i r o b a l c ã o
luz de inverno
Boi Luxo
Suchwiin bulmyeong, Unknown Address, 2001
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á lugares assim. Na verdade, há muitos lugares assim em que há dias de inverno de sol em que há uma luz que queima tudo, uma luz que queima a terra e as casas. Uma luz que abrasa os arrozais no inverno, secos e a perder de vista. Há pequenos lugares assim, em que as pessoas se conhecem há muitos anos e em que os segredos são tão familiares como os ruídos que se repetem todos os dias. Não há é muitos filmes assim, que se construam com um tal rigor a partir de quase nada. Este filme é assim. Constrói-se a partir de certos pedaços da vida de um grupo de habitantes de uma pequena localidade da Coreia do Sul, e com esses pedaços forma um dos mais precisos e incisivos filmes sobre a Guerra da Coreia que jamais se fez. As feridas profundas que esta guerra - que é anterior à proliferação da televisão - abriu na sociedade só aparentemente sararam. A tensão violenta que o cinema coreano contemporâneo exibe tem raízes numa longa história de ocupações, mas certamente também neste conflito pouco conhecido e quase provinciano ao nosso olhar ignorante. Custa lembrar que a paz coreana é recente. À guerra seguiu-se um período de ditaduras e tensões que mantiveram o país em um estado permanente de conflito. A presença de tropas norteamericanas em solo coreano (um dos tópicos centrais deste filme) é apenas um sinal de que a paz total, neste país que tecnicamente permanece em guerra, existe apenas ainda no futuro. Certamente não existe nesta pequena povoação, onde existe uma base norte-ame-
ricana e onde as consequências da guerra que nele vemos expostas são as que atingem os mais pequenos. Esta é a guerra dos pequenos, a do pequeno oficial que se orgulha de ter morto três comunistas do norte, mas que carrega consigo o rancor da falta do reconhecimento oficial na forma da ausência de uma medalha; a guerra do bastardo americano-coreano que é a imagem do opróbrio da mestiçagem; a guerra da família que se vê privada de uma pensão quando o antigo chefe de família, desaparecido, perde o estatuto de herói para ser dado como desertor para a Coreia do Norte, ou a guerra que leva à Coreia um soldado americano deslocado em que o seu desconforto se aprofunda pela claustrofobia que lhe causam as montanhas coreanas que o rodeiam e que o seu estado natal não tem. Bastaria este filme para que se percebesse que a fama negativa de que Kim Ki-duk tem sido recipiente é totalmente desapropriada. Outros se lhe poderiam juntar, como Hwal (The Bow, 2005) ou Bom yeoreum gaeul gyeoul geurigo bom (Spring, Summer, Fall, Winter…and Spring, 2003). Essa fama tem-se fundamentado numa suposta gratuitidade das suas cenas de violência e sexo. Se este tipo de cenas existe em muitos dos seus filmes, é como retrato exacto e silencioso de uma história, de um alucinante processo de modernização que causou desajustamentos inevitáveis na transição brutal da ruralidade para uma sociedade muito urbana e muito avançada tecnologicamente. Também como retrato de uma sociedade que se mantém muito violenta num sentido masculino e bruto do termo. Kim Ki-duk é, felizmente, brutalista. Como o é o país que ele documenta. Nele encontramos, contudo, em complemento a este brutalismo,
Kim Ki-duk
uma eficácia precisa no modo como o combina com elementos mais poéticos. A deslocação que de tudo isto resulta exprime-se também através do silêncio que atinge várias das suas figuras femininas. Em Hwal, Bin-jip (3-Iron) ou Seom (The Isle) nenhuma das figuras centrais, que são sempre femininas, fala. Em outros filmes há mulheres que falam pouco, como acontece com algumas das mulheres deste filme que é, no entanto, muito mais masculino do que outros. À perturbação que o silêncio causa vem juntar-se uma outra característica (de modo nenhum peculiar a Kim Ki-duk) que é a existência, em todos os seus filmes, de uma singularidade que o torna inesquecível, quer esta esteja presente na situação que retrata, no local onde se desenrola ou no comportamento de uma das suas figuras. Em Suchwiin bulmyeong encontramos uma maneira impressionista e ao mesmo tempo bruta de passar pelas estórias pessoais de um conjunto bastante extenso de personagens. Não me é fácil aproximar este filme de qualquer outro e não percebo bem porque é que este filme me faz, por vezes, recordar alguns filmes ingleses. Para quem conhece mal a Coreia, este será um veículo perfeito para entender a crueza larga e a angústia rural que por aqui passa. No centro do filme está uma mãe e um filho, as figuras mais marcadas pela permanência na Coreia de soldados norte-americanos. O filho, Chang-Guk, carrega consigo a marca mais indelével dessa passagem - uma cor diferente (é filho de um soldado negro americano) num país onde a tolerância para a diferença é baixa. A mãe, por sua vez, espera do pai do seu filho, há muito desaparecido para a América, uma correspondência postal
que não chega ao velho autocarro americano onde mora com o filho. A estas juntam-se outras estórias onde a guerra, a presença americana e a vida rural imprimiram igualmente uma ferida. Estes pedaços soltos de solidão, e de violência, organizam-se de um modo coerente e transformam este filme num daqueles quadros de que se desprende uma aparente cacofonia quando os olhamos muito de perto mas que se revelam harmoniosos quando deles nos afastamos um pouco. Por vezes, nalguns momentos em que se instala no filme aquele silêncio do campo que é o silêncio das pequenas povoações, esta paisagem rural coreana assemelha-se muito à paisagem rural americana, e os soldados americanos que povoam este filme parecem sofrer do mesmo tipo de deslocação que perturba os coreanos. Como é que este filme faz lembrar, tantas vezes, algum cinema de Taiwan? Quando o filme nos mostra este silêncio e esta deslocação é com um sentido bruto e poético da distância. Com um sentido da distância próxima a que nos coloca do desespero das figuras que o enchem e de uma outra, que é mais difícil de definir e é de uma categoria diferente mas mais bruta ainda, a distância das coisas que não se vêem bem, a distância das coisas que acontecem ao longe, misturadas com a incompreensão e uma lassidão rural pequena. Em alguns filmes de Kim Ki-duk encontramos uma tendência que encontramos explorada no design coreano contemporâneo (não a tendência pop ainda) um conhecimento que permite combinar o material rude e natural, como a pedra e a madeira (ou um material que não sendo natural tem um “aspecto” natural, que é o betão) com um desenho e materiais modernos, confortáveis e poéticos.
O sangue que impressiona Antønio Falcão Durante uma das suas digressões pelos Estados Unidos da América, pousado no hotel, o guitarrista britânico Jamie Hince começou a ouvir no andar de cima os sons de uma guitarra enraivecida. A atracção foi magnética, subido a esse quarto deu com Alison Mosshart, uma americana mergulhada nas ondas de um punk fora de qualquer rota, em luta com as cordas do seu instrumento. Este foi o encontro que deixou a semente de uma ligação que só viria a acontecer anos mais tarde, quando ambos se desvincularam dos seus projectos musicais. Estávamos no virar do milénio e a partir daí a história dos duetos no mundo da música nunca mais foi igual. A primeira amostra deu-se na mudança das suas identidades, Alison mudou o seu nome para “VV” e Jamie para “Hotel”. “Great”, deve ter pensado alguém com tendências para o sarcasmo. O que é certo é que a empatia continuou e fez-se com o Atlântico de premeio. Foi assim que nasceu o primeiro álbum do duo, que se apresentava finalmente com o seu nome de guerra: The Kills. “Keep on Your Mean Side” pela mão da Domino Records, nos EUA e no selo da Rough Trade, na Europa, explodia em 2003. O disco foi gravado em condições sonoras propositadas para deixar o rasto de uma banda de garagem, onde as influências de uma miríade de outros projectos se estufaram. Os Clash, os Velvet, PJ Harvey, os Suicide, são alguns dos nomes a que cheiram os The Kills. Com uma atitude anti-comercial e determinantemente contra a indústria musical, sem dar espaço à intromissão da imprensa, o duo aniquilava o público nas suas experiências minimais ao vivo, cheias de ruído e com uma encenada luta diabólica, misto de atracção e repúdio, entre duas personagens em constante desvario. Uma sedução a jorrar o mesmo som poderoso feito em cima do joelho, como mandam as regras. Seguiram-se “No Wow”, em 2003 – fazer o favor de procurar no YouTube o tema que dá nome a este álbum – e “Midnight Boom”, em 2008. Ambos com uma recepção estrondosa por parte de uma faixa cada vez maior de admiradores. Surge agora, ainda a fumegar com um par de semanas de idade, o quarto rebento do grupo: ìBlood Pressuresî. Se por vezes se aviva a sensação de que algum do encanto se perdeu, o poder inventivo e revivalista dos The Kills continua intacto, como se todas as faixas do disco se passassem nas escadas anti-incêndio do hotel onde Alison e Jamie se encontraram pela primeira vez. Para ouvir e perceber melhor a cada passagem.
The Kills Alison “VV” Mosshart (voz e guitarra) Jamie “Hotel” Hince (voz, guitarra, bateria e percussão) www.thekills.tv
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próximo oriente
Hugo Pinto
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O “dub” das estepes
Creio que o melhor elogio que se pode deixar a estes dois discos é dizer que, depois de ouvi-los, parece que o “dub” e as músicas tradicionais chinesa e japonesa nasceram a soar assim. Quando tudo, ou quase tudo, já foi inventado, sempre que assoma algo de aparentemente original surge o aviso de que estamos perante uma “reinvenção”. As duas últimas décadas de música popular foram feitas de recriações, revisões e uma ou outra revolução digna do nome, mas o tempo que passou serviu entretanto para confirmar suspeitas antigas: é nas margens da enxurrada que frequentemente acostam as propostas mais interessantes e inovadoras. Quem esteve atento às “propostas alternativas” que vieram dessas margens ao longo dos últimos tempos deu ainda pela ubiquidade e assiduidade de Jah Wobble. Desde finais dos anos 1970, altura em que se apresentou ao mundo como baixista dos Public Image Limited, a aventura pós-Sex Pistols de John Lydon, o próprio Wobble terá dificuldade em recordar todos os músicos com quem colaborou e os discos em que participou, do “rock” ao “dub”, do “pós-punk” à “world music”, mas sempre, sempre, à margem do turbilhão, às vezes em contra-corrente e, invariavelmente, à frente do seu tempo. Do homem que já fez tudo, ou quase tudo, esperar-se-ia, portanto, o que veio em 2008 na forma de “Chinese Dub”, o disco que Jah Wobble gravou com a Chinese Dub Orchestra. “Esperar-se-ia”, porque já no início da década de 2000 Wobble tinha enrolado “dub” com cânticos tradicionais asiáticos. Todavia, mesmo que “Chinese Dub” seja a continuação lógica dessas
experiências, a verdade é que o disco de 2008 abriu um novo capítulo na carreira do inglês e no panorama da chamada “música do mundo”. A colaboradores habituais e ao seu baixo (“o rei dos instrumentos”, diz), Jah Wobble juntou virtuosos de instrumentos tradicionais chineses, entre os quais Zi Lan Liao (mulher de Wobble e exímia na arte do Guzheng), e cantores tradicionais, como Gu Yinji e Wang Jinqi. Cânticos e músicas tradicionais da Mongólia Interior e de Yunnan, lamentos e exaltações das estepes e das montanhas, tudo compassado pela cadência narcótica dos vapores “dub”, essa música nascida nos laboratórios de som jamaicanos. A espiritualidade da música tradicional oriental encontra neste torpor caribenho um intérprete fidedigno dos estados de levitação incorpórea, a meio caminho entre a hipnose e o êxtase – uma receita potente contra maleitas e maus espíritos musicais, afugentados com a trepidação imperturbável do baixo de Wobble. Encontrado o bom remédio, depois da aventura com a Chinese Dub Orchestra, Wobble formou o Nippon Dub Ensemble, com quem, em 2010, editou “Nippon Dub”. Os propósitos e as técnicas usadas são os mesmos de “Chinese Dub”, mas, de novo, há mais vida para além da fórmula. Neste “dub nipónico”, vem o próprio Jah Wobble, no libreto que acompanha o disco, chamar a atenção para o belo carácter que está na capa do álbum, “Ma”,
sinónimo para aquilo que, no Ocidente, é designado por “espaço sensorial”. “É o espaço que sentimos entre notas musicais, ou entre as árvores numa pintura”. Mas também é mais do que isso. É o que não fica dito, mas apenas sugerido: um espaço virtualmente infinito onde se estende o vazio, ou o “não-pensamento”. Um lugar de libertação e uma espécie de sabedoria da serenidade que tem raízes chinesas, mas a que os japoneses acrescentaram idiossincrasias. Uma delas é o minimalismo, a redução até à essência. É uma estética de restrições e contenções, austera, a que se junta outro traço nipónico: o sentimento de melancolia e tristeza, expresso na música através dos tons menores, mesmo se o motivo é de celebração, como quando florescem as cerejeiras. Belas, mas efémeras, as flores transformam-se numa metáfora, numa lembrança da inevitabilidade de que tudo é transitório, efémero e mortal. E tudo isto é comemorado neste disco, mais um volume imprescindível de um verdadeiro encontro de culturas onde os diferentes elementos têm espaço para respirar e são tratados com respeito e deferência – um diálogo em tom encantatório que se expande no balanço, fluidez e “groove” da música que dança. Creio que o melhor elogio que se pode deixar a estes dois discos é dizer que, depois de ouvi-los, parece que o “dub” e as músicas tradicionais chinesa e japonesa nasceram a soar assim.
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metrópolis
Tiago Quadros*
A Janela, o Cinema e a Arquitectura D
esde os anos 20 que uma vasta discussão sobre a influência mútua entre as mais importantes formas de arte do Século XX - o cinema e a arquitectura - tem envolvido cenógrafos, arquitectos, cineastas e críticos. Para além do fascínio exercido pelo impacto que as técnicas do novo meio, como a montagem, a câmara lenta, os grandes planos ou os movimentos de câmara teriam na percepção e representação da arquitectura, tem havido um interesse constante nas potencialidades dos cenários cinematográficos como lugares onde se podem desenvolver espaços visionários, históricos, místicos ou psicológicos. A arquitectura enquadra o Homem, proporcionando-lhe vivências muito específicas e distintas. Quando falamos do passado, recorremos muito frequentemente a memórias deixadas em nós pelos espaços que habitámos. A casa, para além do seu carácter estritamente funcional de oferecer calor e abrigo, tem, junto da família ou grupo de pessoas que a habita, uma importância matricial. Representa e, num certo sentido, é o cenário dos filmes das nossas vidas. Entre interiores e exteriores, entre passagens e fechamentos, o espaço em arquitectura desenvolve-se entre o público e o privado, a transparência e a opacidade. O cinema introduz uma dimensão única, fundamental na sua compreensão, e caracterizadora dos seus princípios: a possibilidade da viagem espacio-temporal. A questão crucial da prática cinematográfica consiste precisamente em saber onde colocar a câmara, onde começar e terminar o plano, porquê uma determinada imagem em vez de outra, qual a razão e o momento em que um plano deve ser substituído por outro. De acordo com Manuel Graça Dias: “Isto é muito parecido com a mudança de material na arquitectura, com o escolher o momento certo de passar do reboco para a madeira e como é que se quer que essa passagem seja feita”. Todavia, existe uma diferença determinante entre o cinema e a arquitectura, que consiste na natureza das respectivas realizações e que gira em torno do espaço e da sua percepção. A arquitectura surge como forma de arte que cria lugares a partir de materiais, e o cinema, que os representa através da luz e da sombra. Por outro lado, enquanto que no cinema não podemos ver aquilo que não é mostrado, ou seja, a nossa visão espacial está limitada e orientada segundo os planos e sequências que o realizador nos apresenta, sendo o espaço fora de campo permanentemente imaginário e em vias de se concretizar, em arquitectura tudo é evidente. Dir-se-ia que a experiência da arquitectura deriva essencialmente dessa percepção sequencial de múltiplos pontos de vista. Por isso mesmo, a experiência real não pode ser substituída por reproducões gráficas, por fotografias ou mesmo pelo cinema, apesar deste último ser mais preciso que os anteriores. Como lembra Bruno Zevi: “A representação cinematográfica
apresenta apenas uma das infinitas sucessões pelas quais o espaço é apreendido”. Assim, qualquer experiência arquitectónica é circunstancial e, por isso mesmo, única. A sensação de um observador ao experimentar um determinado espaço arquitectónico tem algumas semelhanças com a percepção de um espectador ao observar uma cena de um filme. Em ambos os casos uma realidade é proposta e é deixado à imaginação o papel de preencher aquilo que não podemos ver. No entanto, enquanto que na arquitectura temos a liberdade de tomar qualquer direcção, no cinema seguimos uma rota pré-determinada pelo realizador. Os cineastas têm essa possibilidade de mostrar a sua forma de ver um determinado edifício, a sua visão pessoal. A este propósito Rem Koolhaas refere: “Há uma surpreendente pequena diferença entre uma actividade e outra. A arte do argumentista é conceber sequências de episódios que constróem um determinado ambiente e uma cadeia de eventos. (…) A maior parte do meu trabalho é montagem, montagem espacial”. A montagem surge para o realizador como óptimo instrumento de concepção formal. Através da sua utilização ele consegue valorizar e dar mais significado aos acontecimentos reais que fotografa, realçando ou omitindo determinados pormenores por ele captados. Por seu lado, também o arquitecto se socorre de técnicas idênticas de colagem e de montagem na concepção das respectivas obras. Jean Nouvel defende que: “A arquitectura existe, tal como no cinema, na dimensão do tempo e do movimento. A forma como entendemos e lemos um edifício é feita em termos de sequências. (…) Nessa contínua relação plano/sequência que um edifício é, o arquitecto trabalha com cortes e montagens, molduras e aberturas”. Se os lugares arquitectónicos têm fronteiras físicas, como por exemplo as janelas, os lugares cinematográficos estão limitados pelo formato e pelo enquadramento do filme. Em A Janela Indiscreta, filme realizado por Alfred Hitchcock, a enorme janela permite ver o pátio no qual toda a acção se vai passar, enquanto que as janelas dos outros apartamentos enquadram as actividades dos seus ocupantes. Em Farnsworth mora uma casa de Mies van der Rohe. Arquitectura transparente. O tempo banaliza a paisagem. Tão presente e acessível que deixamos de a olhar. Em Capri, Adalberto Libera desenha a Villa Malaparte. Só com duas janelas. E pelo facto de ser encerrada, as pessoas estão sempre a olhar para elas. Como se fossem um quadro. Assim Godard a filmou em O Desprezo. Ver significa enquadrar marcas de visbilidade. A perfeita ilusão, para além da eficiência do dispositivo que se utliza, tal como a realidade ela própria, será sempre a janela de alguém. *Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa
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escritos de passagem
Ung Vai Meng
Macau foge-nos entre os dedos. Metamorfoseia-se diariamente, escorre pelas ruas no som cru e ácido dos tambores tocados pelos rapazes que vão fazer a dança do leão do norte e do sul empoleirados em pequenas camionetas misteriosas, no estertor dos panchões desfeitos em papéis vermelhos que atapetam as familiares pedras de basalto e calcário do chão.
Ana Paula Dias
Unde tá vai?: história de um amor sínico Se um português marinheiro, Dos sete mares andarilho, Fosse quem sabe o primeiro A contar-me o que inventasse, Se um olhar de novo brilho No meu olhar se enlaçasse. Que perfeito coração No meu peito bateria, Meu amor na tua mão, Nessa mão onde cabia Perfeito o meu coração. Gaivota, Alexandre O’Neill/ Amália Rodrigues
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ma terra também podem ser só palavras, aquilo que se diz que ela é, sem que nunca se jamais saiba ao certo quantos grãos de pó, quantas camadas de sedimentos ou que chão seja verdadeiramente o seu. Macau é assim, com a sua vocação estúrdia e grandiloquente, o seu centro tão íntimo e as suas margens tão ostensivas onde por vezes se vê por uma ténue brecha a tessitura da representação, um ou outro pedaço de argamassa ainda fresca. Olhamos para o todo ou para o lado, aceitamos a imitação. Ou talvez seja assim mesmo, talvez Macau sejam as cópias, os fakes, as edificações recentes e histriónicas, sem memórias nem história, todos esses objectos que se impõem no momento com a sua perfeição questionável mas tão conforme ao lugar e o centro seja só uma miragem, aquilo que se gostaria que Macau fosse: um coração a pulsar, uns lábios que
se entreabrem e uma respiração que sobe pelas costas como um sentido primordial num ciclo que se repete e perdura. Um amor que se deseja mas que não se sabe se realmente aconteceu. Se os filhos da terra são mesmo frutos deste ventre ou meras personagens ocasionais de uma ficção que nos é tão querida, a da nossa vocação épica de viajantes intrépidos capazes de dar mundos ao mundo. Não, não se sabe se não é um amor estéril, sem frutos. Macau é uma cidade ou um amontoado de clichés e de espaços labirínticos onde é fácil perdermo-nos, pelos quais somos arrastados à descoberta de um coração que seja o seu e que queremos que seja aquele que pulsa em palavras compósitas como multiculturalismo, miscigenação ou noutras tão inteiras como identidade. E não o da história de uma posse sem entrega partilhada ao longo de séculos, a de uma mulher que se deixa possuir por não vislumbrar outro destino ou para assegurar o seu status quo. A história que ecoa na visão de Pessanha, de um comércio tolerado e mestiçado, de um encontro contraditório sem um intercâmbio essencial e significativo: «Em Macau é fácil à imaginação exaltada pela nostalgia, em alguma nesga de pinhal menos frequentada pela população chinesa, abstrair da visão dos prédios chineses, dos pagodes chineses, das sepulturas chinesas [...] e criar-se, em certas épocas do ano e a certas horas do dia, a ilusão de terra portuguesa»1. Queremos que Macau seja uma história nobre onde sejam visíveis os frutos de um amor centenário, mas não é certo que esse amor exista. Claro que há sempre palavras afanosas como tangível
e intangível e o seu património mítico, as Casas Museu da Taipa, a San Malo e a Misericórdia, o Farol da Guia e a Fortaleza do Monte, o Teatro D. Pedro V (que ate é o mais antigo teatro europeu da China), o patuá ou a culinária macaísta e está encontrada a prole desse amor mais almejado do que real. Mas esse é o espaço idealizado e moribundo do nosso afecto, porque o dia-a-dia é vertiginoso e tem o seu próprio sentido e flui na sua própria direcção. E quotidianamente encontra as suas palavras e constrói a sua realidade e não creio que haja uma casuística que permita dizer o que isto é. Macau foge-nos entre os dedos. Metamorfoseia-se diariamente, escorre pelas ruas no som cru e ácido dos tambores tocados pelos rapazes que vão fazer a dança do leão do norte e do sul empoleirados em pequenas camionetas misteriosas, no estertor dos panchões desfeitos em papéis vermelhos que atapetam as familiares pedras de basalto e calcário do chão. Nas caras imberbes, nos olhos líquidos, na pele sedosa e imaterial das pessoas com quem nos cruzamos. Encanta-nos o corpo, agarra-nos a carne e dá-nos um murro na alma, faz-nos sentir daqui desde sempre mesmo sabendo que a cidade e o seu discurso são só um fogo-de-artifício. Mas não é amor. Macau é uma serpente ou somente uma pele de cobra. Tem um coração secreto e às vezes acho que caberia no meu peito. 1 PESSANHA, Camilo. Macau e a gruta de Camões. In.: Contos, crónicas, cartas escolhidas. Org. António Quadros. Lisboa: Europa-América, 1988
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Plataforma para um núcleo de imagens da aldeia da saudade
Dona Julieta Entra na loja bengala erguida acima da sua estatura pequena mas desengane-se quem a julgue serena meiga no seu olhar de pérola cinza claro gorro de lã rosa ou calças beges de passo seguro nem sei para que serve a bengala de punho de prata ou o anel de pedra brilhante o seu olhar maroto no batom vermelho cereja ou será pink pink a bolsa na outra mão segura bege balança talvez também acima da sua pequena estatura vem a vociferar em voz rouca de quem viu duas guerras de quem ficou só e enterrou todos os capitães as fardas das fotos que traz rasgadas no coração fardas a preto e branco não chama-se sépia não bege nem pérola nem rosa mas pink pink grita agora baixa a voz suave já mas o olhar continua maroto infantil dobra o corpo senta-se e olha de soslaio a porta vou consigo Dona Julieta vou consigo subo a rua levo-lhe os sacos mas conte-me das guerras conte-me pink pink das fardas a preto e branco não chama-se sépia conte-me como foi conte-me tudo as histórias conte-me os vestidos as meias de nylon os telefones conte-me as ruas depois avenidas o comboio as lojas a carteira bege ou são as calças uma mulher de calças ergue a bengala acima da sua pequena estatura e vocifera rua acima não era assim no meu tempo não era assim pink pink.
António MR Martins
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em sempre nos conformamos com o destino, apesar de muitas vezes ser impossível alterá-lo. Aliás o destino é mesmo isso, destino. Como tal, é aquilo que encerra o futuro de cada caminhada, de cada projecto, de cada obra, de cada vivência e da vida, propriamente dita. Tanta coisa passa por nós, tantos contactos, tantas observações tanto vislumbrar, mas o horizonte permanece. Só que uns dias são mais belos e outros mais sobranceiros. Também existem as brumas que fazem ocultar tanta realidade. Num dado momento somos confrontados com múltiplas aberrações que nada têm de consensual e de dignificante para a análise de todo este continuar desvanecido, sem volta a dar. E como nos sentimos tão pequeninos por nada conseguirmos e podermos fazer. A frustração é inquantificável, mas muito severa e agressiva para com o nosso sentir. Sabemos que tudo tem um fim, que havíamos falado disso em tempos, mas a palavra oral diz-se e voa, tal como o vento e não mais a apanhamos. Então não interiorizamos esse concluir de forma efectiva e verdadeira. O que é certo é que tudo vai terminando e este acumular de anos vividos por imensas vivências, quase se torna efémero aos dias de hoje. Aquilo que foi vida, entusiasmo, labor, perseverança vai finando, aos poucos, num único sentido pelo caminho que se avizinha, a olhos vistos, do seu desiderato: o fim! Tantos palpites enumerados, tantas ideias ventiladas, tanta pedra pontapeada pelos trilhos do anseio sem resultado profícuo. A aldeia torna-se mais só, tão só quem nem a si se sente, descabida de todo o espaço que a rodeia. Mesmo esse, já a não consegue defender. E assim, marginaliza-a sem preconceitos e sem regalias. Que será que acontecerá um dia? Quem ultimará o definhar? Sabemos que ficam as memórias, até um dia também. Até que haja alguém que as traga consigo e as consiga decifrar, divulgando-as pela palavra. Enquanto houver essa riqueza da mente, nos cérebros que a registaram, poderemos falar da aldeia da saudade. Por enquanto há um nervoso e inadequado mordiscar de unhas quando nos lembramos desses momentos do passado, que apesar de tudo não é tão longínquo como se poderia supor, e resta-nos a utopia da ilusão e um sentimento vulgar português inserido no aguardado ressurgir de um qualquer Sebastião, dom ou não, que em determinado tempo foi levado pela brumas que apagaram todas as razões, em tempos de antanho. E assim se cicatrizam males da alma e bateres de corações que jamais esquecerão a aldeia e o espaço do tempo por ela vivida com todos os seus nados e usuários num preceito inacabado, mas que outros desígnios, de âmbito social e não só, fazem desfalecer todos os coerentes propósitos de fortalecimento num melodrama contínuo e desesperante com um fim que se sente a toda a hora, pelo menos na perspectiva que se vislumbra. Ainda há gotas de alguma débil esperança, que possam surgir grupos, associações, empresas de turismo, pessoas com ideias, que possam dar azo à sua reanimação, fazendo-a regressar à vida, num desenrolar profícuo, válido e capaz. Talvez tudo seja um sonho de impossível concretização, na efectiva realidade.
Dona Julieta existiu. Esta personagem entra em “Dona Mimi e outras histórias”, livro a editar num futuro próximo.
Do Z Começo pelo fim pelo z de zero de zé-ninguém de zorro e depois o y de yupi de épsilon de i grego depois o x de tesouro dos piratas ou de cruz o w de water under the bridge ou de melancia o v de vitória de vida de você a seres tu de voar o u de incluir de vaso de ui o t de tara num filme épico e o s de mim do meu nome ou de solidão ou de saia que raramente visto o r de remar de rir de ressonar ou de rasgar memórias o q de quê de querido de querida de queimado o p de pai de perfil de perdoar de paz o o de oh de ouriço orar ou de ouvir n de nudez de nada de ninguém como nadar ou nó ou nós o m de mudar de mar de mulher de morrer e o l de ler livro livre lutar lembrar o k de nada porque de nada me lembra o k e o j de joelho de jornal de já vai o i de inundação porque me marca há nove anos e de isto o h de hoje de há de horvalho se tivesse h e g de gatos claro está de gatos g de gosto de grito de gesto de guarda-chuva f de filho de fazer de folha de fugir e o e de estou aqui de erva fresca de espelho e d de dedo de digo de dar de dança c de correr de coser de casa caiada de chorar de caber b de beleza de botão de baralho de cartas b de beijo e o a não de amo-te mas de abrir de árvore e de te abraçar.
Aquilo que foi vida, entusiasmo, labor, perseverança vai finando, aos poucos, num único sentido pelo caminho que se avizinha, a olhos vistos, do seu desiderato: o fim!
Quero Caçador de borboletas diz-me onde é o olhar verdadeiro onde está a verdade se é nesse sorriso se no olhar magoado diz-me que quero queres o quê se o tempo está acabar não ouves o tique taque não há tempo não há mais envelheces eu eu de sorriso mais jovem será que jovem será que frio corro brinco brinco e tu de pálpebra descaída na minha imagem a fugir no sol na paisagem o chapéu o cabelo queres querida que solto leva a vontade quero quero mas eu vou guardar esse punhado de terra essa imagem das oliveiras do portão das telhas da varanda das paredes coloridas do branco dos pés sapatos vou guardar a imagem da camisa branca do pulso largo das tuas mãos vou tentar apanhar caçador de borboletas esse tique taque de fechar os olhos quando te olham vou ver brilhar a corrente de prata no pescoço largo vou ver querida vou tocar-te querida esse gesto de segurar o casaco essa voz sentida nas teclas brancas quero quero será que queres caçador de borboletas sentir tanta cor tanta palavra quero quero mudar adormecer.
Sofia Pinto Correia Melo
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29 4 2011
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... eu ontem disse-lhe que isto não podia ser assim... é demais... pensando bem: de menos... não me posso esquecer de comprar o batom. É demais!... ontem disse ao meu António... é demais, António, demais... – não é o batom que o António não percebe nada disso, se não fosse eu e cheirava como um porco, um porco não, um boi – disse-lhe: eu pego em mim e vou-me embora até ao fim do mundo e, se for preciso, vou a pé!
As Águas Verdes do Pacífico Carlos Morais José
estava a lavar a loiça e a água não escorria, tive de usar o desentupidor, depois a água suja lá desapareceu no buraco... a desaparecer num remoinho... a água preta dos restos de café e gordura a ir para os canos e esgoto fora, até ao mar... a que mar é que vai dar?... dizem que é ali a Cascais, mas eu não acredito... até a água suja tem direito de esperar um pouco mais... uma viagem maior... que o mundo não acaba em Cascais...
entredentes... como faz com quase tudo... repete entredentes... não sei se é um tique mas eu detesto e afinal o café não era em Cascais nem em Lisboa, a única coisa que passa aqui é o comboio… e a faca da manteiga pelo pão… e ninguém me vê a não ser para propostas que se estão mesmo a ver pró que é...
da outra vez disse ao meu António que me ia embora para as águas verdes do Pacífico, como aquelas das revistas, mas ele pôs-se a gozar comigo e disse-me que eu era sempre a mesma coisa... sempre a sonhar demais... sonhas demais, Débora, assim não vais a lado nenhum. mas ele está enganado... há muito tempo que não sonho... nada de jeito... com as águas verdes só sonhei acordada... e isso é lá no Pacífico... muito longe...
sim... que ainda sou uma mulher atraente... e que se sabe arranjar... aliás, uma mulher com M grande tem que se saber arranjar e não andar para aí como uma desleixada... é o pior que pode haver numa mulher: ser desleixada... de que lhes vale o dinheiro... eu disse ao meu António: já viste o carro novo da Gisela... o marido anda metido com os espanhóis, num negócio, e vê lá tu: carro novo e daqueles que aparecem na televisão, de último modelo...
que ninguém diga que é fácil sonhar acordada!... as horas mortas atrás do balcão a matutar nas minhas coisas. só que o fim é sempre o mesmo, nada parecido com a telenovela... alguém entra, pede uma cerveja e uma sandes mista e eu fico assim: também mista, entre o que estava a ruminar e a fome e a sede do senhor Pires que é homem das graçolas. e o António lá está, a levantar-se a custo e a levar a imperial do senhor Pires que conta a última anedota de alentejanos... eu corto o pão e barro... e barro... barro com manteiga... há quem diga que abuso, mas barrar o pão é um dos meus prazeres, um daqueles que é só meu... abro as caixinhas de plástico, tiro uma fatia de fiambre, outra de queijo... divido a sandes a meio e lá vai ela para cima do balcão... o António está distraído... ele está sempre distraído... parece aqueles bois que olham tanto para uma coisa que ela desaparece... o António é assim... olha para as coisas como se não as visse e olha tanto que irrita e fica assim, parado, embaciado... e eu volto para a revista... o professor disse na televisão que a gente devia ler, mas isso já eu sabia... o professor tinha uma gravata cor de rosa... eu não sonho acordada... há os que vão às águas verdes do pacífico e aparecem nas revistas... a minha fotografia também já apareceu num jornal... aí há vinte anos... quando eu era mesmo nova... havia quem acreditasse em mim... diziam que era linda, que tinha um corpo de princesa... belo como uma vírgula... e era verdade... eu era bonita... mas as fotografias não saíram lá grande coisa... as roupas também não ajudaram... malhas Marilú... malhas Marilú... quem já ouviu falar nas malhas Marilú?... depois ainda tive um convite para uma sessão fotográfica ou um casting ou lá o que era, eu fui lá com o António mas ele mal viu o aspecto do prédio já não me deixou entrar disse que depois logo se via e se queria casar que não admitia não sei o quê... já nem o ouvia... queria casar com ele e o balcão do café prometido, entre Cascais e Lisboa, era o sítio mais excitante do mundo, longe de Mirandela e da casa dos meus pais... quem sabe?... o senhor Pires levanta-se e o António ainda se está a rir da anedota e repete o final
não pode ser coisa boa... quando muito é da empresa, e aquela Gisela, que nem parece ser minha irmã: nem uma sombrazinha que componha os olhos ou um batom que lhe anime os lábios... uma matrafona!... ali repimpada no bem bom... o meu paizinho dizia: esta nunca há-de ser nada, mas tu... referia-se a mim... hás-de ir longe... mas agora olha: ela é que vai a Lourdes e à Sierra Nevada e no último modelo, toda esparramada, e eu para aqui a fazer as sandes mistas do Pires... e eu que ainda sou... diabo, de que me serve isto? de que é que me serviu a carinha bonita, o corpo fino que os homens sempre comeram com aqueles olhos porcos dos homens?... e meteram-se comigo... meteram... tanta vez... mas para quê?... para levar com outro?... já me basta o boi do António (boi salvo seja, que nunca eu dei razões para que tal lhe chamem...), mas de que é que me serviu isto?.. de que é que me serviu ter sido tão apreciada se recusei todos os convites?...ah, confessa, não te apetecia mesmo... ainda se apetecesse... pois... havia aquele, o Espanhol, muito alto e delgado... passou no café três vezes... que
belo homem... fazíamos um belo par... tinha uns olhos... batia com as unhas no o balcão... suavemente para ninguém ouvir e sussurrava uma música lá da terra dele... eu ouvia aquela música e no fim sorria-lhe... depois... nunca mais voltou... o meu António, coitado do António... não é mau homem... é assim, o que para ali está... para ele está sempre tudo bem desde que esteja tudo bem para ele... o que não é difícil... a princípio contrariava-me... agora parece que já só não me quer ouvir... não é que eu fale muito, falar de quê?... ainda me lembro dele, a dar-se ares importantes lá em Mirandela... estava de passagem... o tempo custava a passar naquela terra... ele tinha aquele bigode assim... vigoroso... estava na moda... que tinha vindo da guerra... falava da África, do calor... dos sargentos... das mulatas, mostrava-me a tatuagem... “Amor de mãe”... a mim que nem conhecia Lisboa e um homem que ama a sua mãe não pode ser mau homem... disse-lhe a tudo que sim... ele nunca cortou o bigode... nem quando passou de moda... a Bibi Pessanha da Costa matou-se... vinha na revista: SUICÍDIO...tomou uns comprimidos... dizem que quem toma comprimidos não se quer mesmo matar... mas a Bibi
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da... eu por mim já tinha acabado com estas coisas do Natal que não passa de uma grande trabalheira e não me serve para nada... no dia seguinte sou eu que tenho de lavar tudo que a Gisela mete-se na bela viatura com os primos do Rui e ala que se faz tarde e vem aí o trabalho... e não fosse a minha Zabete era eu que limpava tudo sozinha... acabo com isto tudo... apanho o primeiro comboio que passar e pronto!... pouca terra, pouca terra... mesmo que não vá para o fim do mundo... o fim do mundo é já ali!... não é lá nas Índias ou nas Chinas, como eles dizem... é já ali... o fim do mundo é onde uma mulher quiser... ouviram!...estou farta de levar com o comboio e nunca o apanhar!... pouca terra, pouca terra... a cada comboio que apita, já sei que perdi mais uma oportunidade... uma vez disse ao meu António: eu pego em mim e mandome para baixo do comboio e nunca mais me vêem... mas quando saí de casa a estação já estava fechada e não havia comboios ... não há direito que os comboios deixem de passar... voltei para trás... o António e a Zabete andaram por todo o lado à minha procura... Não me posso esquecer de comprar o batom…o meu baton não é bom... esvai-se ao longo do dia e fico com a boca descolorada como se já estivesse morta e não desse por isso... morta e ainda não dei por isso... é isso, estou morta mas a servir o senhor Pires e os outros que descem na estação, ainda com o corpo vibrante do comboio, e me pedem: uma bica, faz favor... uma meia de leite bem quente... uma torrada com pouca manteiga... (que nervos!... eu gosto de pôr muita manteiga nas torradas!...) um cachorro e uma mini... uma bola de Berlim com creme... meu Deus... meu Deus...
tomou uns, daqueles para dormir, que mal caem no estômago, zás... é morte certa... são uns especiais... parece que destroem qualquer coisa no cérebro e pronto... não há nada a fazer... foi a criada que a descobriu, a espumar coitadinha... ainda lhe fizeram uma lavagem ao estômago... que horror!... mas já foi tarde demais... dizia na revista... ela tinha estado no Pacífico... naquela ilha de que não me lembro do nome mas que tem águas verdes, muito verdes e transparentes... Também não lhe serviu de nada...
Euromilhões... Euromilhões... e sabia... tinha a certeza de que seria eu a sortuda... ficar assim tão gorda de rica que nem os vestidos da Gisela me serviam... que horror... olha que brincadeira... jogava porque havia de receber... como se me tivessem feito uma promessa... e depois... nunca saiu nada...dei por mal empregue o dinheiro... e o creme... e o creme que... não vale a pena... não vou nunca comprar o creme nem fazer o peeling, o lifting, a lipo e essas porcarias todas... isso é tudo uma porcaria!... vou ficar aqui sem o Euromilhões até porque já não jogo... devese ter esgotado a sorte... tenho de ver melhor no supermercado... Isto está muito mal feito. Tra-la-la, tra-la-la Trauteia uma canção em voga. Soa falso. a Zabete saiu... enervam-me... não têm culpa... eles não têm culpa... a culpa é minha... e não dá para fazer nada... é a sorte de cada um...
a Gisela é que teve sorte!... não é por ser melhor que eu ou mais trabalhadora... teve sorte do marido arranjar negócios com espanhóis e o meu António não passa desta cepa torta... no Natal lá tenho eu de levar com a Gisela e os presentes caros que o Rui lhe compra, mais os primos dele que não conheço de lado nenhum... e a mim calha-me a mala do costume... e mesmo assim já é um grande esforço para o meu António que gostava de me dar melhor mas não pode... rica ... rica... a andar em Cascais... mas também não é na Quinta da Marinha... coitada... ela é minha irmã e é com ela que me vejo... anda doente, coita-
o esgoto não vai dar a Cascais vai dar aqui... o mundo afinal acaba aqui... depois posso chegar a casa e digo que vou arranjar as unhas e fecho-me uma hora na casa de banho... não falar com ninguém... a Zabete está ao telefone... o António resmunga com o telejornal... deixá-los... deixá-los... as águas verdes do Pacífico devem ficar do outro os raios de sol brilham na água... os comboios não param nunca de passar...o esgoto não... se calhar conseguia mesmo dormir... finalmente calmo e verde... não tem cheiro, não há vento... nenhuma voz... podia dormir... dormir.... dormir... dormir... dormir...