h - Suplemento do Hoje Macau #8

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PARTE integrante DO HOJE MACAU Nツコ 2363. Nテグ PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

artes, letras e ideias

h a amiga americana O Livro das Odes

e as traduテァテオes

&

O ar que respiramos

em Macau


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Os americanos e outros filmes

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Filme “Macao” é a primeira peça concebida por americanos sobre esta estranha cidade

Macau através

Carlos Morais José

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ma produção cultural como um filme, sobretudo se considerarmos os filmes do passado, encerra em si um conteúdo que se aproxima da mitologia. Ou seja, as narrativas, a caracterização das personagens e mesmos os planos indiciam uma ideologia que, por vezes, não transparece claramente, mas se inscreve em filigrana na mente do espectador.

Ora uma análise dessa discursividade proporciona, sobretudo, uma descrição da cultura que a produziu, espelhando os seus preconceitos, as suas contradições internas e, especialmente, a sua visão do mundo e os seus objectivos. Nos últimos anos Macau foi, literalmente, indadido por americanos. A liberalização do jogo trouxe os especialistas de Las Vegas que aterraram na cidade com uma parafernália de saberes relacionados com a área, mas também uma visão desta terra e das suas gentes. Que visão é essa? Valerá a pena acreditar nos discursos de ocasião, na simpatia das intenções, na bondade dos projectos? Será relevante o conteúdo dessas mesmas palavras ou não será mais frutuoso cavar um pouco mais fundo, até ao âmago da mente americana para discernir que imagem aí reside de Macau? O filme Macao, de Joseph von Sternberg, realizado em 1952, fornece alguns indícios, releva algumas pistas neste sentido. Nele surge Macau, tal qual os americanos de então o concebiam e imaginavam. Terá mudado muito essa visão, desde esses tempos gloriosos do filme noir ou permanecerá no espírito destes recentes residentes o mesmo tipo de sentimentos? Será que os americanos vêem Macau ou ver-se-ão unicamente a si próprios, neste contexto talvez demasiado onírico, talvez demasiado prosaico? Seja como for, aqui fica uma reflexão a partir do filme Macao, que procura pistas para a compreensão de como os americanos vêem e sentem esta cidade. Surpreendentes? Não. A cidade é, afinal, um cenário e os heróis desembaracaram vindos do outro lado do Pacífico. Ontem e hoje, aqui estão.

Carlos Morais José I descend upon all those cities, and rise from them again Walt Whitman

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segredo da América é o grande impulso, a imensa energia, que os emigrantes transportam consigo e aplicam aos espaços onde chegam e chamam seus. Essa energia aboliu fronteiras para, mais tarde, na rarefacção do “sonho americano”, as imperialmente expandir. Os americanos estão no mundo, dizia-nos o cinema dos anos 40 e 50. E era verdade: no caso americano, a narrativa mitológica tem uma rara sincronia com a História e talvez esse seja um dos sucessos mais radicais da cultura americana. Em 1952, Josef von Sternberg apresenta o filme “Macao”, cuja acção decorre nesta cidade do Extremo-Oriente. Nada de surpreendente se atendermos a uma carreira pontuada por numerosas incursões em cenário exóticos, desde “Morroco”, com Gary Cooper e Marlene Dietrich, nomeadamente na China — “Shanghai Express”, igualmente protagonizado pela diva alemã. Desta vez, Sternberg escolhe Macau para servir de cenário a uma

trama de aventuras, o que dá bem a ver que esta cidade — o seu nome — despertava certo tipo de reminiscências no público americano, afinal o primeiro destinatário destas produções que se impunham rentáveis. Não se compreende que os estúdios aceitassem um nome que não provocasse no público um frémito, um desejo de assistir ao que se passa num sítio desses. O nome Macao tem, portanto, o poder de evocar um imaginário, que só episodicamente terá algo a ver com a realidade, repleto das fantasias que bem entenderam lá colocar, mas que não deixa de se colar a esta cidade como imagem global. Claro que as filmagens foram esmagadoramente feitas em estúdios de Hollywood, tendo sido recolhidas, sem os actores, uma série de hoje interessantes imagens da cidade que, depois, são projectadas, inseridas como cenários, dentro do próprio filme. É, por exemplo, o caso da chegada do ferry, vindo de Hong Kong, e a vista do singelo Porto Interior de antanho, cruzado por juncos e sampanas, com os seus cais a fervilhar de gentes, “mainly chinese”; como o é também um passeio de autocarro pela Avenida Almeida Ribeiro, com locução do motorista em brasileiro, perfeitamente fora de contexto. Vistas bem as coisas, a excentricidade do filme não reside no exotismo da cidade em si mesma, já que esta lhe é estrangeira, mas no Macao recriado por Sternberg e sobretudo na caracterização que passa dos americanos que

deliram por estas paragens. O excêntrico — ou seja, os descentrados, o punctum do filme — são eles e não, propriamente, os costumes coloridos que compõem os afazeres da cidade. Estes passam como irrisões, momentos quasi folclóricos, nos quais não se deixa, apesar de tudo, de ridicularizar o americano que crê estar entre selvagens (vide cena da barbearia entre o comerciante e a “barbeira”). Há que dar o braço a torcer a Sternberg, que aliás deixou a conclusão da rodagem ao jovem Nicholas Ray: o bom gosto do casting é perturbante: Robert Mitchum, Brad Baxter e William Bendix, do lado masculino; Jane Russel e Gloria Grahame, do lado que interessa. Há quem diga que o mítico director num perfilhou totalmente o filme. De facto, nota-se, nomeadamente a nível da iluminação, que não estamos perante um típico von Sternberg, como um “Der Blauer Engel”, “The Scarlet Empress” ou o já referido “Shanghai Express”. A luminosidade difusa que costuma envolver as suas personagens, com uma imensa capacidade mitológica — uma das suas mais famosas assinaturas —, desaparece; surge agora um contraste de pretos e brancos bem definidos, mais perto do estilo do filme noir que das suas efabulações luminotécnicas habituais. Já o guião não faz jus à qualidade/glamour do naipe de actores. Mas se as suas falhas se situam nos nódulos narrativos, que apresentam soluções inverosímeis, já a caracterização dos

Não se compreende que os estúdios aceitassem um nome que não provocasse no público um frémito, um desejo de assistir ao que se passa num sítio desses. O nome Macao tem, portanto, o poder de evocar um imaginário


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da lente americana personagens não deixa de ser relevante para localizar uma imagem de americanos, criada por americanos, de passagem por esta misteriosa cidade do Extremo-Oriente. Afinal, que tipo de gente é esta, tal qual a mitologia de Hollywood a descreve? Poderá isso ser importante ainda hoje para compreendermos os americanos que agora aqui habitam, como tribo ou como vírus?

Que americanos são estes?

Eles são — como não poderiam deixar de ser — o centro do argumento, da acção, dos torvelinhos do Bem e do Mal, do amor e dos ódios. A cidade e os seus habitantes limitamse ao estatuto de cenário propício à emergência de determinadas características, princípios e valores que os personagens transportam de Ocidente. Os americanos deslizam por Macau imersos nas suas próprias histórias, ficando por exemplo bem claro que nenhuma ligação amorosa ou simplesmente erótica é susceptível de acontecer fora da sua “raça”. Pelo menos neste filme, neste contexto concreto. Contudo, também nenhuma das personagens apresenta os tiques completos do herói clássico: belo, bom e justiceiro. Trata-se de gente batida e calejada por andanças orientais, entre outras, sobreviventes sem um horizonte definido e sem outro tempo que não o da luta pela sobrevivência. “Cão come cão”, com mais ou menos estilo. A proximidade da II Guerra incensava este tipo de desajustado, de loser, que por motivos sombrios não tinha lugar no seu país natal, dando rebeldes a uma juventude tão insatisfeita que, ficando em casa, acabaria por não ter causa. Aqui perpassam os fantasmas de uma América em mutação rápida e impiedosa para os que são lentos no ajuste aos novos tempos. Estes encontram o seu lugar ailleurs. Neste filme, os três personagens principais são claramente uns desajustados, cuja presença em Macau não é uma escolha, mas uma espécie de etapa final de uma descida aos infernos (não será por acaso que um filme francês que também elege Macau como pano de fundo se intitule “L’enfer du jeu”). Jane Russel, a cantora de óbvios predicados, confessa existir um motivo que a obriga a sair de Hong Kong e a aportar em Macau, “a place healthy for plants, unhealthy for humans”, segundo o barómetro do ferry que no filme efectua a travessia. Por ela não deixaria a colónia britânica para se refugiar, como não hesita em classificar, nesta “lixeira”. O vilão, um americano de nome Vincent Halloran (Brad Dexter), é por coincidência com os tempos actuais apresentado como sendo o proprietário do mais rentável casino de Macau. Tendo a seu lado a imperscrutável Gloria Grahame, Vincent anda fugido ao FBI e à Interpol, por crimes não revelados, refugiando-se nas três milhas dos limites marítimos de Macau. Robert Mitchum encarna um ex-soldado com problemas legais nos Estados Unidos, vagabundo sem poiso certo, carteira vazia e alguma habilidade para o jogo. O acaso, os seus

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Toda a acção se desenrola num Macau infernal de fantasia americana, de sampanas e riquexós, residenciais de toque latino e mesmo um corrupto sargento de polícia macaense, interpretado por um actor mexicano. desatinos, trouxe-o até Macau, onde pensa arranjar um emprego no casino de Vincent. Atrás destes personagens vem William Bendix, um inocente comerciante que acaba por se revelar ser um paisana do FBI, no encalço do bandido. A pobreza do argumento acabou por se transformar, com o decorrer do tempo, como certos vinhos, num tecido podre, cujo interesse reside exactamente nos avatares da podridão, na tradição de “Os Jardins dos Suplícios”, de Octave Mirbeau, que, não por acaso, tinha como pano de fundo as concessões europeias de Cantão. Ele, ela, eles, não passam de personagens mal construídos, mas nisso reside hoje o seu encanto, na medida em que é muito por aí que Macao permite a erupção de personagens de outro modo relegados a papéis secundários nas várias histórias que Hollywood contava. A mulher de vida duvidosa, o homem sem horizonte, o vilão, o sargento, todos giram num torvelinho de ambição e ausência de valores que, por si mesmo, acaba por desembocar na regeneração.

Macau e o halo

Toda a acção se desenrola num Macau infernal de fantasia americana, de sampanas e riquexós, residenciais de toque latino e mesmo um corrupto sargento de polícia macaense, interpretado por um actor mexicano. O objectivo é atrair Vincent para lá das três milhas marítimas, onde um barco da Interpol, sediada em Hong Kong, espera para o capturar. É, pois, criado uma espécie de horizonte de legalidade, para cá do qual existe um espaço de impunidade seja para quem for. É uma espécie de confortável prisão ou inferno onde alguns têm forçosamente de permanecer, sob pena de serem apanhados pelas forças do Bem e castigados. Vincent Halloran vive nesse halo que Macau proporciona, uma frágil bolha de segurança que o estranho estatuto da cidade permite. A lei é vaga e o braço da polícia internacional não chega aqui. Estamos num paraíso de refugiados, ladrões, contrabandistas, aventureiros de ambos os sexos e de todos os países. Um mendigo cego, chinês, amigo dos bons, completa o ramalhete e ajuda a resolver o imbróglio, absolvendo toda uma civilização. É este o Macau dos anos 50 que Sternberg apresenta. Finalmente, o vilão é castigado e o casal parte para uma nova vida. A frase de Mitchum para Russel, que remata o filme quando ele sobe ao barco, a pingar de uma luta marítima, é um belo epitáfio para o filme: “You’d better get use to see me when I get out of the shower”. A moral da história é, então, um vago recomeço do novo casal, numa espécie de casa da pradaria, que se pode situar em qualquer lado

e onde se reproduzirá a família americana. O happy ending do costume.

Espaço de regeneração

Espécie de excessos, restos desorientados de uma era, o espaço possível, físico e emocional, destes personagens foi encolhendo; por exclusão sucessiva deste e daquele obscuro negócio, desta e daquela cidade, deste ou daquele país, desta ou daquela paixão; até não ter que um lugar situado num extremo do mundo, onde se esbatem as regras e se forjam novas identidades: Macao. Não o Macau real mas todos os fiapos de imaginação que a palavra Macao poderia despertar na mente de um americano dos anos 50. Um espaço onde se acredita ser possível a regeneração de uma vida, num lance de dados ou numa paixão. Esse espaço sem regras que constituiu desde o início o ideal do sonho americano, mas que o tempo se encarregou de transportar para outros lugares, como se actualmente só pudesse existir em sítios de filiação real mas cinematograficamente (miticamente) engendrados. Da limpidez da planície, dos grandes espaços por domar, à degradação da última cidade, à sujidade dos becos e das relações humanas, eis os avatares de um espaço proposto como lugar para o sonho que, propagado pela mais poderosa máquina cultural de sempre, ainda hoje domina o mundo: “Eu, carregando uma culpa, correrei as sete partidas do mundo e nos seus mais profundos baixios encontrarei a regeneração. Poderei viver de novo, livre da própria Memória; que é — como o cinema exaustivamente nos mostra — a nossa última prisão”. Venham, pois, até Macao. Assim, já não há em lugar nenhum do mundo. Aqui, se calhar, também não.


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o Livro de Odes

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Algumas considerações sobre poesia chinesa Helena Barbas

Há também implícita nas Odes a ideia - básica na teoria literária de Confúcio - de que a poesia, como expressão da emoção, é o veículo mais apropriado para a crítica políticosocial. A antologia – que ainda hoje se considera confuciana – é dividida em capítulos nomeados de acordo com o tipo de música utilizada para acompanhamento. Esta divisão corresponde também a uma temática que varia do folclore à política, da guerra à caça, do lamento ao louvor passando, naturalmente, pelo lirismo amoroso, como na seguinte canção de noivado (epitalâmio): Amoroso o jovem pessegueiro tremeluzindo os seus botões em flor A rapariga vai para um novo lar Para bem ordenar as suas salas Amoroso o jovem pessegueiro Abundante o seu fruto A rapariga vai para um novo lar Para bem ordenar os seus quartos Amoroso o jovem pessegueiro Ricas as suas folhas A rapariga vai para um novo lar Para bem ordenar as suas gentes (Canção de Chou-nan)

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«Um homem que não estudou as Odes é como alguém que está virado de frente para uma parede»: são palavras de Confúcio a seu filho instando-o ao estudo daquele antiquíssimo conjunto de poemas chineses. Confúcio (551-479 AC), o grande didacta, político e filósofo chinês, juntamente com seus discípulos, promove o comentário e edição das três grandes colectâneas mais representativas da cultura chinesa: “O Livro das Mutações” ou “Yi Jing” pertença do campo da filosofia, “O Livro da História”, em que se inserem as narrativas lendárias sobre a origem das diversas dinastias, e “O Livro de Odes” ou “Shih Ching”, uma compilação de poesia. As Odes são o produto de uma tradição poética originária do Norte da China, desenvolvida nos primórdios da dinastia Chou, anteriores ainda a 600 a.C.. Considera-se que a poesia chinesa nasceu por duas vezes, pois este surto original é seguido de um silêncio – talvez explicável por questões políticas – e do reaparecimento de um outro tipo de versos, em metro diferente, a partir das terras de Ch’u, no vale do rio Iangtzé. O Livro de Odes – a mais divulgada antologia de poesia chinesa – é formado pelos textos que escaparam ao grande «auto-defé» de 206 a.C.. O déspota Shih Huang Ti tinha ordenado a destruição de todos os livros, excepto os manuais de agricultura e medicina, como protesto contra o sentimento saudosista – próprio do confucionismo - que os inspirava. Sobraram cerca de 305 poemas dos perto de 3.000 que constituíam o texto original. São os fragmentos que sobreviveram na memória das gentes, ou em manuscritos, recolhidos por todo o país entre 206 e 220 a.C., durante a dinastia Han - que fundam a sua primeira versão, compilada por Wang I (morto em 156 d.C.) que a ela acrescenta, como era tradicional, versos de sua autoria. Assim, para além da dificuldade de atribuição dos poemas aos seus diversos autores, acrescenta-se o escolho que é o facto de cada versão ter sido sucessivamente acrescentada, e os poemas trabalhados, reinterpretados e comentados por cada compilador, através dos séculos.

2. A poesia como arte superior

Logo desde o seu início, ligada à música, mas também à caligrafia, e logo à pintura, a poesia aparece como uma arte superior. Para além de valer por si, ou talvez devido a esta qualidade, a literatura é ainda revalorizada por influência da teorização moral, social e política de Confúcio. Chega-se ao ponto de usar os textos poéticos como tema para o exame feito aos candidatos a funcionários do Estado. E não é raro que sejam utilizados como linguagem diplomática.

3. Antiguidade da rima e linguagem

Foi o «Imagismo» que mais contribuiu para o relançamento na Europa da poesia oriental, e que menos entendeu o jogo chinês com os prolongamentos das sonoridades no tempo, a recusa de um fim abrupto, e o desejo de explorar um mesmo grupo de sons a partir de várias perspectivas.

Na sua maioria, tanto os poemas curtos como os mais longos, revelam complexos jogos de sonoridades devido ao uso de rimas externas, iniciais e internas - testemunho da primeira utilização da rima em qualquer cultura. Com o passar do tempo, os desvios de pronúncia parecem ter alterado as rimas, mas não a musicalidade dos poemas. No entanto, o metro das Odes não vai ter grande influência na poesia ulterior - talvez por se ter perdido a música de acompanhamento inicial, ou por esta ter sido substituída por novas composições. Porém, as grandes dificuldades de entendimento e tradução desta poesia colocam-se a nível do sentido. A linguagem utilizada é muito antiga e não existe informação sobre o período de escrita. Por sua vez, os versos são elípticos, implicando uma compreensão profunda das metáforas e comparações, cujo significado se agrava com as diferenças que resultam da evolução do simbolismo utilizado. No entanto, é o elemento metafórico das canções que se mantém. Permanece o artifício de estabelecer uma delicada e pungente tensão entre uma imagem do mundo natural e uma condição emocional. Sugere-se uma cena e uma história que estão fora do poema e o corpo deste é a expressão das emoções que essa cena ou história provocam na personagem. A metáfora que funciona mais por justaposição ou contraste do que por especificação, é normalmente retirada da natureza, simbólica da acção ou emoções experimentadas pela personagem descrita.


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Os poemas chineses elaboram-se tentação do monocórdico que é evitado, em última instância, pelo aparecimento de um sinónimo com homofonia diversa. 4. Estratégias já «modernistas»

Esta estratégia encontra-se muito próxima dos comportamentos do modernismo - e também não está longe, apenas pela sua descrição, da poesia japonesa. Talvez se entenda assim o surto de interesse que esta poesia vem a suscitar no início do nosso século, e a fascinação que exerce sobre um dos seus «Papas», Ezra Pound. Deve-se a este autor a tradução para inglês de O Livro de Odes com o nome de The Classical Anthology defined by Confucius, publicado em Londres em 1955. Como todos os compiladores que o antecederam, também Pound comentou, re-interpretou e re-escreveu aquela antologia, com a agravante de - apesar do seu estudo do chinês e importância dada aos trabalhos pioneiros de Ernest Fenollosa - não ter entendido as diferenças que separam uma canção chinesa de um «haiku» japonês. Talvez que Pound fosse enganado pelo próprio Fenollosa que desenvolveu os seus estudos sobre o chinês quando radicado no Japão, ensinando filosofia na Universidade Imperial de Tóquio(1878-1890). Pound ignora a importância das sucessivas repetições sonoras desencadeadas, não apenas pela rima, mas pelo reiterar de versos in-

teiros, numa construção paralelística. Tome-se como exemplo o poema II do livro 4 que, na versão de Pound corresponde a apenas 6 versos. Consultando a versão de Burton Watson (Early Chinese Literature, Columbia U.P., New York & London, 1962) encontram-se 3 estrofes de 6 versos cada. Mesmo quem não sabe chinês, com um pouco de trabalho comparativo pode verificar junto da versão original - também fornecida por Watson (p.218) numa tradução em caracteres ocidentais - que a tendência é para uma repetição sucessiva - diríamos quase exaustiva - das mesmas sonoridades: Ch’iang yu tz’u Pu k’o Sao yeh Chung kou chih yen Pu k’o Tao yeh So k’o Tao yeah Yen chih ch’ou yeh Ch’iang yu tz’u Pu k’o Hsiang yeh Chung kou chih yen Pu k’o Hsiang yeh So k’o Hsiang yeah Yen chih ch’ang yeh

Ch’iang yu tz’u Pu k’o Shu yeh Chung kou chih yen Pu k’o Tu yeh So k’o Tu yeah Yen chih ju yeh Neste poema apenas variam as palavras sublinhadas. E ainda assim, dentro de cada estrofe aparece uma repetição especular do mesmo termo que cria uma redundância de musicalidade e sentido. Esta repetição é sumariamente despedida pelo poeta americano com o comentário: «três estrofes com variações negligenciáveis».

5. A tentação e o prazer do monocórdico

Os poemas chineses elaboram-se tentação do monocórdico que é evitado, em última instância, pelo aparecimento de um sinónimo com homofonia diversa. O prazer retirado de um poema deste tipo nada tem a ver com o resultante do encontro com «uma imagem» no sentido que lhe é dado por Pound: «um complexo intelectual e emocional apresentado num instante de tempo». Nem a sua apresentação é instantânea, nem dá origem ao «sentimento

de libertação súbita: “esse sentimento de liberdade dos limites temporais e espaciais; esse sentimento de crescimento súbito que experimentamos na presença das maiores obras de arte”.» Também, um poema deste tipo, usa bastantes mais palavras que as «necessárias», segundo a regra poundiana, para a apresentação da imagem, emoção, ideia, etc. (Pound, «A Retrospect»). E, no entanto, não se lhe pode recusar a qualidade artística. Foi o «Imagismo» que mais contribuiu para o relançamento na Europa da poesia oriental, e que menos entendeu o jogo chinês com os prolongamentos das sonoridades no tempo, a recusa de um fim abrupto, e o desejo de explorar um mesmo grupo de sons a partir de várias perspectivas. O multiplicar de cada tensão, que por tal motivo deixa de ser única, leva a que se estenda num encadeamento sucessivo, sucessivamente resolvido e recomeçado até se esgotarem todas as suas variantes possíveis. É com estas dificuldades, agravadas pela diferença entre uma linguagem de tipo ideográfico (a chinesa) e a linguagem alfabética ocidental (o português, por exemplo), que ter que se confrontar qualquer tradutor.


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WEN ZI 文子

A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS

Aquilo que chega algures é simples.

Capítulo 149 Lao Tzu disse: a via daqueles que governam vastas áreas não deve ser pequena, as leis daqueles cujo território é largo não devem ser estreitas. Os afazeres daqueles cuja patente é alta não devem ser complicados; as ordens daqueles cujos súbditos são muitos não devem ser duras. Quando os afazeres são complicados, é difícil com eles lidar. Quando as leis são duras, e difícil aplicá-las. Quando as exigências são muitas, é difícil satisfazê-las. Se medes em centímetros é certo que te encontrarás em erro quando tiveres chegado aos metros. Se pesas em gramas é certo que te encontrarás em erro quando chegares ao quilos. Se pesares usando quilos e medires usando metros, o processo será abreviado e menos serão os erros. O conhecimento desenvolve-se facilmente através de comparações gerais; é difícil desenvolver a sabedoria através de distinções mesquinhas. Assim, os sábios nada farão que não aumente a ordem e some à desordem; os sábios nada farão que não aumente a utili-

dade e some à despesa. Por isso o trabalho e os negócios devem ser simplificados e as exigências minimizadas. Quando o trabalho é simplificado, é fácil de realizar. Quando os negócios são simplificados, são fáceis de gerir. Quando as exigências são minimizadas, são fáceis de satisfazer. Quando a responsabilidade é delegada entre muitos, é fácil suportá-la. A descriminação mesquinha arruína o dever, o dever mesquinho arruína a via. Se a via é pequena, não conseguirá chegar nenhures. Aquilo que chega algures é simples. Um rio longe alcança pois avança em meandros e curvas. Uma montanha pode ser alta por fazer declive. A Via pode transformar pois é transcendente. Aqueles que são competentes num único ofício, conhecedores de um único negócio, ou versados numa única habilidade, podem falar de pormenores, mas não adaptar-se à universalidade. Ao afinar instrumentos musicais, as cordas curtas se retesam e as longas se distendem. Ao realizar negócios, os estratos inferiores labutam enquanto os estratos superiores gozam de lazer.

Um dizer da Via proclama: “No vasto desconhecido, confia no poder da Natureza, partilhando a mesma energia da Natureza. Aqueles que partilham a mesma energia são imperadores, aqueles que partilham o mesmo dever são reis; aqueles que partilham os mesmos feitos são hegemonistas. Perecem aqueles que nada disto são.” Assim, quando te confiam e não falas, quando és benévolo sem dar e formidável sem ira, a tal se chama exercer influência através da mente celestial. Quando dás e, por isso, és benévolo, quanto confiam em ti porque falas e és formidável na tua ira, então, o que fazes é feito por pura sinceridade. Se dás sem ser benévolo, falas sem inspirar confiança e te iras sem ser formidável, então, é porque o que fazes é feito por aparência exterior. Mesmo quando existem poucas leis, se forem segundo a Via, serão suficientes para que exista ordem. Se a Via não está presente nelas, por muitas que sejam causarão o caos. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han. A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainanzi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.


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e n s a i o s o b

Na primeira versão do “Ensaio Sobre a Visão” vamos ensaiar Macau. Aqui, no complexo terreno percorrido pelos fotógrafos do território. Uma zona, uma rua, um edifício. A água que bebemos dentro de uma mão cheia de imagens. A Fotografia sem explicação, para que se compreenda o que é a Cidade. Esta cidade onde vivemos.

Nape

António Duarte Mil-Homens

é português e já correu mundo. Há dois anos, aqui, enquanto lançava um livro e inaugurava uma exposição, referia-se assim a esta terra que escolheu para habitar: “Macau corre no meu corpo desde o primeiro contacto visual e olfativo. É uma espécie de animal adormecido.” Mais à frente continuava: “é necessário esquecer as nossas fontes para melhor a beber” e “é imperativo esvaziar os pulmões para a respirar bem” e “fazer renascer a alma para a viver”. Desta vez, os Novos Aterros do Porto Exterior, vulgo NAPE, foram o desafio. Para Mil-Homens a fotografia é uma forma de registo e um auxiliar de memória. O eco que fica do rasgo da cidade.


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b r e a v i s 達 o

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p r i m e i r o b a l c ã o

luz de inverno

Boi Luxo

À propos de Chambre 666, de, 1982

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hambre 666 é uma proposta europeia dos anos 80. Não é um documentário. É um filme em que várias personalidades ligadas ao cinema enfrentam uma câmara de filmar num quarto de hotel (número 666, o número da besta) em Cannes e falam sobre o futuro do cinema, ou, para ser mais rigoroso, sobre o futuro do cinema deles. Instaurara-se o medo do vídeo e da televisão entre a inteligência mundial. Os mais pessimistas exibiam a morte do cinema com uma certeza fúnebre quase caricata e faziam-no em francês, em alemão ou em italiano - entre outras línguas. Na América estreava-se o E.T. e Tootsie, em Portugal Silvestre e Conversa Acabada, na Alemanha Veronika Voss e o Parsifal e pelo resto da Europa e pelo Japão nada de muito interessante. O início dos anos 80 não foi uma época muito feliz para o cinema. No quarto da besta, em Cannes, vários nomes conhecidos do cinema diziam mal de quase tudo. Godard, que diz mal da tendência uniformista, prevê o desaparecimento de tudo o que é pequeno e de tudo o que não tem o patrocínio das grandes estruturas financeiras. Spielberg fala de dinheiro e do aumento dos custos de produção, enquanto vários autores vêem na popularidade do vídeo a morte do hábito de ir ao cinema. Nem todos, no entanto, são pessimistas. Monte Hellman apercebe apenas uma época menos feliz no cinema que se fazia na altura e exprime um distanciamento contente e com sentido da relatividade. Outros, como Fassbinder ou Herzog, parecem mais optimistas quanto à sobrevivência de um cinema de características mais individuais, livre da tendência unificadora da televisão Os discursos partem de um conjunto de

perguntas feitas por Wenders, autor em quem notáramos já, em vários dos seus filmes, um receio saudosista a partir do retrato da morte de velhos cinemas e de velhos hábitos (em Falsche Bewegung e, claro, em Im Lauf der Zeit ou Lisbon Story). Para além de Godard, apenas Antonioni parece reconhecer uma seriedade na proposta de Wenders. O seu discurso é longo e empenhado e mostra uma modernidade e uma disposição juvenil para os novos suportes que parece ir contra o pressuposto nostálgico e velho de Wenders. Entretanto, passados quase 30 anos, algo está a acontecer na China. À medida que o povo enriquece, a percentagem do orçamento destinada ao entretenimento cresce aos poucos. Se nos países desenvolvidos a fatia do Produto Interno Bruto destinada ao entretenimento anda pelos 7%, na China esta atinge já os 3%. As receitas do ano de 2010 rondaram os 10 mil milhões de remimbis, um aumento de 64% sobre o aumento de 40% registado em 2009. Algumas das notícias mais interessantes sobre o estado actual do cinema neste país podem ler-se não em revistas de especialidade cinematográfica mas no Financial Times ou na revista Forbes. Num desses artigos, o senhor Zhang Guomiao, um camponês de Zhejiang, admite alguma dificuldade na compreensão de um filme americano que acabara de ver mas acrescenta que “o cinema é muito confortável (…) como camponês, achei tudo muito luxuoso”. Não admira. Há muito pouco tempo o senhor Zhang teria de partilhar com galinhas o espaço ao ar livre usado pelas pequenas companhias itinerantes que levavam filmes à sua povoação. Agora tem à sua disposição um conjunto de 7 salas, cadeiras confortáveis, ecrãs para filmes a 3 dimensões,

Wim Wenders

pipocas e bebidas açucaradas. Sem nostalgias educam-se e entretêm-se as massas. Nos últimos 3 ou 4 anos o número de salas de cinema duplicou para mais de 6000 e prevê-se que duplique de novo dentro de 3 ou 4 anos. A média de crescimento é, segundo a revista Forbes de Fevereiro de 2011, de cerca de 4 salas por dia. Lembre-se que a população da China é superior à de toda a Europa e América do Norte combinadas (Canadá incluído) e aquele país é já o quarto mercado consumidor de filmes a nível mundial – depois dos E.U.A., do Japão e da Índia, dois mercados, estes dois últimos, que a China poderá ultrapassar muito em breve. Se empresas como a Warner Brothers decidiram abandonar o mercado chinês, outras empresas estrangeiras não desistem do seu intento de penetração. A empresa canadiana Imax Corp. planeia chegar às 300 salas dentro de 4 ou 5 anos e a Lotte, coreana, às 70 salas até ao fim de 2011. Ao mesmo tempo que isto acontece, a produção cinematográfica chinesa tem-se vindo a organizar num sistema de grandes estúdios, capazes de grandes produções que têm agora uma garantia de ampla distribuição. O modelo é o dos grandes estúdios norte-americanos e esta estratégia tem como garantia de sucesso o imenso número de potenciais espectadores e um gosto em muitos aspectos (em todos?) muito semelhante ao americano. Que nestes novos cinemas passe maioritariamente o cinema de Hollywood (o cinema estrangeiro tem, contudo, de respeitar uma quota de importação de filmes) ou o cinema de Sinowood não impede, antes pelo contrário, que se espalhe pelo país um amor ao cinema e um hábito de o frequentar que parte das novas condições de visualização e audição. Em todo este esfor-

ço gigantesco haverá, certamente, lugar para vários tipos de cinema. Existem actualmente cinco grandes empresas produtoras que controlam salas de cinema, actores e realizadores (como aconteceu em Hollywood até ao ano de 1948). Uma dessas empresas, a Stellar, é proprietária de mais cinemas do que qualquer outra e foi a produtora do imenso êxito City of Live and Death, realizado por Lu Chuan. A Huayi Brothers produziu os dois maiores êxitos chineses de sempre, Aftershock e Let the Bullets Fly. A Bona Film Group vai lançar ainda este ano uma mega produção de artes marciais com Jet Li – The Flying Swords of Dragon Gate. A China Film Group é a maior empresa estatal do sector. Não tendo por si própria produzido grandes êxitos é uma cobiçada co-produtora em muitos deles (por exemplo, em todos os 3 filmes em cima referidos). Quem se der ao trabalho de verificar em que produções esta empresa se tem envolvido, reconhecerá muitos dos filmes chineses de grande divulgação dos últimos anos. Finalmente, a Dalian Wanda Group é a proprietária do maior número de salas - a que mais dinheiro faz através da venda directa de bilhetes (o mercado paralelo da venda de dvd’s é pouco importante na China devido à imensa penetração da pirataria). Se a intervenção do estado - um perigo constante - não se tornar demasiado pesada (a Warner Brothers deixou o mercado em 2006 porque o governo central decidiu alterar as regras do direito de propriedade para estrangeiros) pode esta exaltação pode resultar numa imensa fúria democrática. As salas de cinema vão encher-se de novo de namorados, famílias, e agora de camponeses e operários. Unidos por um gosto comum e pelo conforto dos assentos.


Vamos?

Antønio Falcão

PIXIES Black Francis (voz e guitarra) Joey Santiago (guitarra) Kim Deal (baixo e vozes) David Lovering (bateria)

www.pixiesmusic.com

próximo oriente

Hugo Pinto

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Terapia electrónica Hugo Pinto

Ao pé disto a notícia da morte de Bin Laden ou a vertigem da “troika” em Portugal são histórias para meninos. O que importa nos dias que correm é o facto de que os Pixies, banda americana de Boston, vão entrar em estúdio para gravar um novo disco. Mas os jornais precisam sempre de um certo lume e então lá vem o enredo de uma história de encher os escaparates. O evento só vai existir a pedido especial de Bono: “Por favor, gravem um disco!”, foram as palavras do front-desk dos U2. Mas isso é uma injustiça. E nós, carago, não temos nada a dizer? Por mim tenho muito a dizer. Em 1987 estava dentro de uma câmara escura quando fui atacado pela rádio. Na altura existia a XFM, um canal local alternativo, que passava regularmente o programa de John Peel. Deve ter sido a primeira vez que uma música dos Pixies passou na rádio portuguesa e eu estava lá. Era “I’ve Been Tired” e trazia uma prostituta e um pretenso cantor. A certa altura ouvia-se: “I said ‘I wanna be a singer like Lou Reed’ / ‘I like Lou Reed’ she said sticking her tongue in my ear...” Tudo aquilo ficou a soar, deixando toda a escuridão do momento completamente iluminada. Dias depois estava a sair da Contraverso no Bairro Alto já com um disco com um homem peludo na capa, era “Come On Pilgrim” e tinha a chancela da 4AD. Lá dentro, para além do tema que já conhecia, pérolas curtas como “Caribou”, “Ed is Dead” e “Levitate Me”. No ano seguinte o mesmo acontecia com “Surfer Rosa”, no escuro do fundo da sala à hora da novela, de auscultadores a tentar descobrir o que aquilo tudo queria dizer, o cometa passava. Mas não queria dizer nada, eram apenas músicas de dois ou três minutos sobre momentos fugazes, óvnis e coisa nenhuma. Nesse ano o chão dos Coliseus de Lisboa e do Porto foram demasiado frágeis para os receber. Depois veio “Doolittle”, o mais comercial, e “Bossanova”, o primeiro que comprei em CD. O que é certo é que desde 1991 que a banda não molha o bico em nenhum estúdio para gravar material novo. “O medo de não conseguir fazer o mesmo”, foi a razão indicada por Black Francis, o cofre forte do grupo, para explicar o cansaço e o fim dos Pixies, que se esfarelaram por outros projectos logo a seguir a “Trompe Le Monde”, produzindo um hiato de 13 anos, deixando muita gente a seco, até se reunirem de novo em 2004. A pretexto surgia apenas um tema, “Bam Thwok”, que depressa se esfumou no mundo “pixiano” das actuações ao vivo. Nesse verão paguei uma fortuna no mercado negro por um bilhete na emblemática Brixton Academy de Londres. De lá e de cá o culto continuava intacto e dois anos depois, no Pavilhão Atlântico, a receita continuava idêntica, sem tirar nem pôr. Apenas mais velhos e mais gordos mas o suco de ’89 continuava fresco. E foi isto que os Pixies fizeram desde então, concertos pelo mundo fora enquanto editavam colectâneas e memorabilia de luxo. A celebração de um legado. Agora Joey Santiago, o guitarrista que nasceu em Manila, diz que vai convencer o resto da malta para finalmente gravarem um novo disco. Pelo meio diz que até Bono os anda a chatear por causa disso. Na verdade, isto nem chega a ser uma notícia, desculpem o engodo, mas – hey! - chega para suplantar Osama e o FMI. O único dado é que a digressão “Doolitle” acaba em Setembro, nessa altura estaremos de volta com a mira apontada.

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t e r c e i r o o u v i d o

É notório que há uma vontade que faz as coisas acontecerem e saúda-se a despretensão de quem quer apenas, e de acordo com o “ar dos tempos”, a liberdade de divulgar a música que gosta Foi em 2009, mais de vinte anos depois da febre “rave” ter varrido a Europa, que a China teve o seu primeiro “festival de música electrónica”, denominação que entretanto surgiu como eufemismo para, em grande parte, designar maratonas de música de dança em que uma multidão se entrega incondicionalmente a DJs e restantes manipuladores de maquinaria avulsa, sob a hipnose induzida pela repetição incessante de ritmos e esboços de melodias. A estreia chinesa chamou-se, oportunamente, I.N.T.R.O. (Ideias Need To Reach Out). Foi num dos parques do famoso bairro das artes “798”, em Pequim. Oito mil pessoas estiveram lá para ver e ouvir, pela primeira vez, nomes de referência do mundo da electrónica, como M.A.N.D.Y. ou Chris Liebing. A responsabilidade deste festival pertenceu à Acupuncture Records, a primeira editora chinesa inteiramente dedicada à música de dança electrónica (House e Techno, sobretudo), uma iniciativa de Miao Wong. Como gosta de dizer, é ela a mulher por detrás e à frente da Acupuncture Records. Na segunda edição do festival I.N.T.R.O., em Maio do ano passado, tive oportunidade de entrevistar a grande dinamizadora da “club scene” da capital chi-

nesa, que apresenta, no próximo dia 21, o terceiro I.N.T.R.O.. Pequim é cidade de grandes, constantes e visíveis mudanças, mas consegue sempre surpreender. No cenário pós-industrial do complexo “798”, aquilo que me impressionou imediatamente foi constatar que havia tantos rostos ocidentais quanto chineses. Miao Wong explicou-me onde estava: “É um reflexo da Pequim de hoje, que está cada vez mais internacional e cosmopolita. Há gente de todo o mundo que traz a sua própria cultura para esta cidade onde tudo se mistura e se influencia. Os chineses estão a aceitar essas influências e tudo isso está a criar uma Pequim com uma vibração especial.” E assim parecia. Nas palavras e nos números de Miao Wong, a edição de 2010 foi maior e melhor do que a de 2009. Seguindo a lógica, para o festival deste ano pensou-se em proporções que, se não estivéssemos na China, seriam megalómanas. Desta vez, a festa faz-se no gigantesco Tongzhou Canal Park (um milhão de metros quadrados). O cartaz alinha 80 artistas encabeçados pelo veterano norte-americano Josh Wink e a nova coqueluche francesa, Paul Ritch. No ano passado, Miao Wong dizia-me que, na China, “a cena da música electrónica é muito recente e ainda luta para

sobreviver. À medida que vamos fazendo coisas vamos ficando melhores e vamos diversificando a nossa actividade, mas se queremos desenvolver a cena temos de ser nós a fazê-lo, até que ganhe maturidade.” E deitar mãos à obra é o que Miao Wong tem feito, de forma incansável. Foi apenas em 2007 que nasceu a Acupuncture Records. De lá para cá foram muitas as festas e já são três os grandes festivais; neste tempo, uma discoteca (Lantern Club) nasceu, fechou as portas e tornou a abri-las; discos têm sido lançados e conferências promovidas. A “club scene” de Pequim nunca mais foi a mesma, mas haverá ainda muito por fazer nos planos desta jovem laboriosa de Jillin. Longe de mim vislumbrar no trabalho de Miao Wong e dos seus apaniguados “revoluções” ou a promoção de “sinais de abertura” (os infelizes e recentes acontecimentos na China estão aí para desfazer ilusões). No entanto, é notório que há uma vontade que faz as coisas acontecerem e saúda-se a despretensão de quem quer apenas, e de acordo com o “ar dos tempos”, a liberdade de divulgar a música que gosta, uma música que, ao contrário de muitas outras, apenas faz sentido ouvida na companhia de uma pequena ou uma grande multidão. Celebrese, pois. Não há mal nisso, pois não?


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c i d a d e s i n v i s í v e i s

CERCADOS

António Manuel de Paula Saraiva

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arafraseando um dito do Padre Teixeira : Ao ar... ninguém escapa! Nem o Rei, nem o Bispo, nem o Papa. Sim, estamos cercados pelo meio ambiente que nos rodeia, e especialmente pelo ar e pela água. Para o bom e para o mau sentido. De facto, somos como peixes num aquário, bebendo e respirando da mesma água e ar que conspurcamos com as nossas actividades. Ora infelizmente o ar que respiramos em Macau é de má qualidade: basta ver que a vista a alguma distância aparece sempre fosca, como que ofuscada por um nevoeiro, devido às muitas partículas em suspensão no ar. Mas será mesmo assim? Não se tratará apenas de humidade? E se esse “nevoeiro” forem mesmo as tais partículas - será que fazem assim tão mal? A OMS estuda o que seja um bom ar As partículas em suspensão (Partículas inaláveis em suspensão, ou PIS) são um importante parâmetro para medir a qualidade do ar. As partículas em suspensão podem ser de dois tipos – as “maiores”, produzidas por acções mecânicas – por exemplo as resultantes do atrito dos pneus dos veículos nas estradas ou das obras de construção civil – e as menores, produzidas em resultado de combustões - veículos, incineradoras, centrais de energia, etc.. As partículas mais perigosas para a saúde são as de menores dimensões – inferiores a 2,5 micron (o mícron é a milésima parte do milímetro). Em 2005 a Organização Mundial de Saúde fixou novos limites máximos - mais baixos que os anteriores - para o que pode ser considerado uma poluição “aceitável” (WHO – Air Quality Guidelines). De acordo com esses critérios existem vários objectivos ou patamares a atingir; mas para uma boa qualidade do ar as partículas inferiores a 2,5 microns de diâmetro não deveriam ultrapassar os 10 microgramas (µ) por metro cúbico (m3) – média anual - e os 25 microgramas (µ) por m3 para um período de 24 horas (os valores admissíveis durante curtos períodos podem ser, conforme se entende, superiores aos que podemos suportar por longos períodos). Como objectivo intermédio 3 foi fixado o valor de 15µ de Partículas inferiores a 2,5 microns de diâmetro por m3. Esses limites foram aprovados nesse mesmo ano pela União Europeia, pela América (Environmental Protection Agency - EPA) em 2006 e pelo Japão em 2009. A OMS justifica assim os valores indicados: 1. Objectivo intermédio 1- (OI-1) 70 35 (70 microgramas (µ) por m3 de PIS maiores que 10 microns; 35 microgramas (µ) por m3 de para PIS menores que 2,5 microns)

Comparando os valores guia da OMS com os valores verificados em Macau - vê-se que na RAEM só temos ar com alguma qualidade nos meses mais chuvosos (Junho, Julho e Agosto). Tal se deve a que a chuva arrasta as partículas em suspensão no ar. Durante os restantes nove meses o ar é mau. Estes níveis estão associados com um risco de mortalidade a largo prazo cerca de uns 15% maior que com o nível do Guia de Qualidade do Ar. 2. Objectivo intermédio (OI-2) 50.25 (50 microgramas (µ) por m3 de PIS maiores que 10 microns; 25 microgramas (µ) por m3 de para PIS menores que 2,5 microns Além de outros benefícios para a saúde, estes níveis reduzem o risco de mortalidade prematura em 6% aproximadamente [2-11%] em comparação com o nível de OI-1. 3. Objectivo intermédio (OI-3) 30 15 ( 30 microgramas (µ) por m3 de PIS maiores que 10 microns; 15 microgramas (µ) por m3 de para PIS menores que 2,5 microns) Além de outros benefícios para a saúde, estes níveis reduzem o risco de mortalidade em uns 6% [2-11%] aproximadamente em comparação com o nível de OI-2.

Guia de qualidade do ar (GQA) 20 10(20 microgramas (µ) por m3 de PIS maiores que 10 microns; 10 microgramas (µ) por m3 de para PIS menores que 2,5 microns) Estes são os níveis más baixos com os quais se demonstrou, com mais de 95% de confiança, que a mortalidade total, cardiopulmonar e por câncer de pulmão, aumenta em resposta à exposição prolongada ao MP2,5.” De facto as partículas em suspensão, especialmente as mais finas, depositam-se nos alvéolos pulmonares danificando-os e causando asma, bronquites e doenças malignas. Os mais afectados são os doentes, idosos e crianças. Vejamos os números Em Macau não se medem as partículas mais finas, mas apenas as menores que 10 mi-

cron. Mas admite-se, como regra aceitável (indicada p. ex. nos sites da OMS), que as partículas mais finas, inferiores a 2,5 micron, são cerca de 50% das partículas menores de 10 micron. E que resultados se obtiveram? Vejamos os números do Relatório Anual de 2008, o último a ser publicado (existem também Relatórios Mensais para parte do ano de 2009).(Ver tabela) Ora comparando os valores guia da OMS, acima referidos, com os valores verificados em Macau - vê-se que na RAEM só temos ar com alguma qualidade nos meses mais chuvosos (Junho, Julho e Agosto). Tal se deve a que a chuva arrasta as partículas em suspensão no ar. Durante os restantes nove meses o ar é mau. Comparando agora os valores das zonas mais povoadas com os das zonas mais arborizadas (Taipa Grande e Parque Industrial da Concórdia) concluímos que uma parte da poluição é proveniente do exterior de Macau 50 a 60% (a que se verifica nas zonas mais arborizadas), sendo os restantes cerca de 40% gerados no Território. Com o nosso espírito de engenheiro estivemos tentados a fazer contas indicando, por estimativa, e de acordo com os dados da Organização Mundial de Saúde acima referidos quantas pessoas teriam partido mais cedo por causa destes maus ares. Mas finalmente entendi não enveredar por esses caminhos, demasiado tétricos. Que poderemos fazer? Ao ar ninguém escapa...mas temos de escapar desta. Seria até despropositado escrever um artigo como estes sem dar algumas pistas de solução. Ao nível pessoal, será sempre possível deixar de fumar...e o fumo nos locais fechados irá ser proibido... medidas que o Governo quer implementar (mesmo em alguns espaços abertos – medida um pouco desnecessária mas mais vale a mais que a menos). Ao nível das nossas casas, ou das empresas, é possível, para quem tiver posses, comprar aparelhos especiais que filtram o ar. A nível mais comunitário teremos de reduzir o trânsito automóvel, e investir a sério nos veículos eléctricos, hoje demasiado caros. Ao nível urbano deveríamos deixar de densificar a cidade, de modo a permitir corredores de ventilação. Finalmente o assunto deverá certamente ser discutido a nível regional, tanto mais que segundo os novos planos de desenvolvimento, Macau irá dispor de maiores espaços na Ilha da Montanha. Mas antes de mais temos de admitir que existe um problema. O assunto do ar nem sequer pode ser varrido para debaixo do tapeteestamos cercados pelo ar.

Ano de 2008 - Concentração de Partículas Inaláveis em microgramas por m3 Macau Norte Calçada do Poço Cidade da Taipa Taipa Grande Parque Industrial da Concórdia

Jan Fev Mar Abr Mai 100.9 100.9 96.9 74.6 61.5 89.4 95.6 88.2 64.5 55.4 68.9 77.5 71.3 49.9 39.1 78.3 88.4 82.8 56.3 46.1 ~ ~ 43.2 46.4 32.8

Jun 32.0 30.5 15.5 18.4 12.8

Jul Ago Set Out Nov Dez Média anual 40.9 34.6 67.4 66.1 86.3 120.8 73.6 36.0 33.2 65.6 63.3 75.8 107.1 67.0 20.7 21.1 52.9 53.8 66.5 94.1 52.6 22.1 20.9 56.4 57.4 72.8 102.5 58.5 15.6 15.0 40.9 39.2 55.6 72.3 37.4


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à s u p e r f í c i e

A volta ao dia em oitenta mundos

Carlos Picassinos

Do aborrecimento U

ma condição moderna? O aborrecimento. É claro que o tédio sempre teve outro pedigree literário mas se me perguntarem para definir a modernidade (tardia ou não) numa palavra diria o aborrecimento. Para o tempo da pos-modernidade caracterizado pela velocidade, a aceleração, a densificação, a saturação da informação e de acessos, o recurso barroco a referências e influências (um exemplo? Tarentino), o bom aborrecido será sempre aquele que conseguir o mais eficaz e sublime gesto de resistência ao fluxo infinito da distracção e protagonizar um regresso feliz ao mundo intímo e ao controlo da sua própria existência. Mas este mundo é também o da hegemonia do mercado, das indústrias culturais e do ócio, dos parques temáticos, e de todo o género de gadjets e tecnologias para matar os tempos. Há uns anos, a Motorola chegou mesmo a cunhar o termo “microboredom” para designar esses tais micro-tempos mortos sem actividade definida. Em consequência, criou para telemóvel os chamados “mobisodes’”, de dois ou três minutos, de séries televisivas como “Lost” ou “Prision Break”. Estar aborrecido não poderia gozar de tão má imprensa, e o aborrecido, de pior reputação social. A bem dizer, o principal problema talvez nem seja o da distracção infinita que toda esta ganga tecnológica nos traz mas a da influência que exerce no momento de determinar a existência. Cada vez mais, somos incapazes de dotar as nossas vidas íntimas de um aborrecimento genuíno sem recorrer ao infindável catálogo de soluções que a indústria, o mercado ou a tecnologia nos oferece para preencher cada instante do nosso tempo. Talvez a ociosidade que falta às sociedades de lazer é aquela que nos permita perder-nos dentro de

nós próprios, divagar no mundo, sem que a cada esquina nos aguarde uma multinacional do desejo. Faria falta uma ociosidade em que realmente estivessemos em condições de fazer (ou não) aquilo que nos apetecesse sem estar condenado ao mergulho numa vertigem espectacular e hiperconsumista. Conscientes deste mal estar da civilização, são já consideráveis os artistas contemporêneos que vêm colocando o aborrecimento, l’ennui, ou o spleen, como eixo central da sua reflexão em volta da apatia e dos vazios do tempo. Até agora, os objectos mais populares acerca desta questão foram, provavelmente, os oferecido pelo cinema – veja-se o caso dessa inesperada deriva hipnótica que é “Lost in Translation”, ou de algumas obras de Gus Van Sant. Mas noutra dimensão, os “Postais aborrecidos” de Martin Parr, ou as fotografias de escassa definição do checo Miroslav Tichy não abafam a necesidade do sujeito construir um tempo branco, autónomo, de resistência e contra-corrente. Um tempo para o acaso e para a epifânia. Outro território prolífico na produção de pequenas experiências em volta do nada é a internet. Ainda há pouco tempo, o The Guardian assinalava a existência de um grupos de obcecados espectadores de uma webcam direccionada, 24 horas por dia, para uma peça de vinte quilos de um queijo cheddar em putrefacção notando que o momento mais dramático deste espectáculo da obsolescência aconteceu quando a etiqueta do objecto se descolou e saiu do alcance da câmara. São sintomas dispersos de como a busca pelo nada e pelo aborrecimento autêntico vai adquirindo consciência e materialização. Exangue de um quotidiano em mutação sem fim, experiências do género entregam a estes espectadores uma sensação de paz, de permanência, de um tempo plano e arcaico.

Talvez a ociosidade que falta às sociedades de lazer é aquela que permita uma fuga para dentro de nós próprios em que a cada esquina nos aguarde uma multinacional do desejo Mais que cansaço, emerge ali um sentimento de receio pelas ameaças de um exterior feito de dor e sofrimento. Em “O mal estar da civilização”, Freud explica [tradução livre]: “que não se estranhe que, sob a pressão destas possibilidades de sofrimento, o homem tenda a diminuir as suas expectativas de felicidade” e se dê por satisfeito “em ter escapado à desgraça, de ter sobrevivido ao sufrimento; que, em geral, o objectivo de evitar o sofrimento remeta para segundo plano aquele outro de atingir o prazer”. Que não se estranhe, pois. Num mundo embrutecido, em que o grau de dignidade do trabalho não diverge muito do grau de dignidade das diversões de massa, porque haveria o homem moderno querer outra coisa que não o módico? “O homem moderno contenta-se com pouco”, notava há um século Paul Valery. Eu que sou burguês, mas não sou Paul Valéry, atrevia-me a acrescentar - e o homem pós-moderno satisfaz-se com nada. Não é essa a natureza do seu ser?

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à s u p e r f í c i e

Na estrada que vai da casa de campo dos meus pais até casa dele Por Zé Beto

O número errado Por Ring Joid

Agora só fala através do advogado. Ao fim de três semanas, é a única conclusão a que posso chegar. Ligo-lhe. Assim que me ouve a voz, “Estou?”, desliga. Da última vez disse, “Fala com o meu advogado se quiseres falar comigo” e desigou. Mas eu sou teimoso, insisto até à última, até a linha rebentar. E vou telefonando sem dar por isso. Marco os números como se nada fosse, não acreditando que possa ser assim. Que aquele ali a marcar os números seja eu. Que seja este o mundo de hoje, mesmo depois de um sequência de vinte dias. Faço registos. Quantos segundos, quantas respirações, qual o ruído de fundo. Não há um

padrão. É aos solavancos. Não há regularidade alguma. É ao calhas

cliente deseja falar consigo com a máxima urgência...” E desta vez sou eu que desligo.

Hoje. Há pouco. Tentei de novo. Um carro a passar, uns travões quaisquer, o grito de um pássaro ou de um animal parecido. Um urso, por exemplo. E o fio da chamada a ficar solto. “Estou?”, repeti eu, espaçadamente, várias vezes. E cinco minutos depois, ou dez, ou vinte, uma voz masculina, “Está lá, Sr. de Tal? Daqui Fala o advogado de fulana de Tal...”, isso ou qualquer coisa do género, continuando depois de uma pausa e de uma inspiração forçada, “Ocorreu um grave acidente e a minha

Agora estou para aqui. Não, não me apetece ouvir-lhe a voz. Nem vê-la. Nem é por causa dos tubos todos enfiados na boca. Podem pensar que é por isso, porque ela é uma inválida, mas não é. E na verdade nem com o advogado já quero falar. Lá fora? O que há lá fora? A janela traz-me um sol nocturno e uma brisa suave. Alguns barulhos lá em baixo, mas nada de muito grave. Nada de muito agudo. E o mundo não muda assim. Não pode.

Our lady is off Por Luiz Pacheco

Lembras-te Fátima? Era o que eu sempre te dizia, não somos nada nas mãos do acaso, e não há mais filosofia do que esta: deixar andar, tanto faz, hoje ou amanhã morremos todos, daqui a cem anos que importância tem isto, quem se lembrará de nós? Quem se lembrará de mim? Se nem tu já te lembras de mim agora, tu, a quem tanto amei, não te lembras, e foi há tão pouco, foi ontem, parece, que te levantaste e disseste: «Ficamos amigos como dantes»... E dizias: como dantes e era já noutro que pensavas, olhavasme e nos teus olhos ria-se a traição, o prazer da liberdade, um desafio alegre, uma alegria provocante e desapiedada, ias a meu lado pela última vez e eu era já um estranho para ti, um fantasma a quem se concede, por caridade, uns momentos mais de companhia, algumas palavras vagas distraídas, um pouco de estima, talvez. Reparei: o teu corpo, oh corpo do meu prazer! Oh carne virgem sangrando debaixo de mim! Oh meu repouso e minha febre! o teu corpo outrora tão cativo e tão submisso, ficara de repente cerimonioso e esquivo, cauteloso, afastado, com um pudor forçado no puxares a saia sobre os joelhos, como se tivesse uma grande vergonha do despudor com que se dera antes... Dizias: como dantes e não era já nisso que pensavas, e não era já para mim que falavas, eu era uma coisa para esquecer, para deitar fora, uma coisa que se abandona caída no chão e se perde sem pena. Dizias: «adeus» e saías da minha vida com um aperto de mão desembaraçado, quase cordial um gesto de boa camarada, como se nada tivesse havido antes, como se não tivéssemos sido tantas vezes na cama, um dentro do outro, um no outro, um-outro diferente, uma coisa sublime: Deus Criador, como os míseros humanos só ali o podem sentir e saber; um Outro que éramos nós ainda, mas tão transtornados, tão virados para fora de nós, tão esquecidos do mun-

do e de nós, tão eficazes, tão leais, nós boca com boca, corpo a corpo, um sexo torturando um sexo, mordendo-se devorando-se, numa febre de chegar ao fim depressa, ao esquecimento, ao repouso. Disseste: adeus e eu odiei-te logo nesse minuto, como te odeio agora, não por ti ou pelo teu corpo que já me esqueceu noutros que vieram depois, mas porque morri ali naquela palavra, -morri entendes? -, perdime numa grande confusão, esqueci-me de ser eu, fiquei roubado do meu passado. Hoje, encontrarias um outro homem; havia de rir-me do teu corpo, da sua entrega ou das suas traições, de tu me dizeres: «Vem» ou «Adeus...», ou «Não quero...». Hoje, saberias quem fizeste com uma só palavra, conhecerias um outro homem, que é obra tua, minha segunda mãe! Hoje, havia de rir ou chorar, era a máscara do momento; mas diria: tanto faz..., tanto me faz... Sabia-o! in “Carta a Fátima”

Acabada de entrar a quinta velocidade espera-nos uma imensa recta vazia, ladeada, muito raramente, por eucaliptos. Estranho haver poucos e tão separados. Ia jurar que dois meses antes havia mais. - Ouve lá, tu sentes-te melhor? perguntou-me enquanto buscava desajeitadamente a caixa de CDs no porta luvas. - Sim, sinto-me melhor. Obrigado por perguntares. - Não agradeças, eu nem sou deste tipo de atenções, sabes bem... - Sim, mas de qualquer forma e especialmente por isso agradeço-te. - Precisava perguntar-te, deu-me para aqui. - Obrigado. - Pois, deu-me para isto. - Agradecido. - Olha não agradeças, vê se entendes, perguntei porque com a pergunta achei que me retribuirias a mesma pergunta e aí davas-me espaço para falar um pouco de mim, do que me chateia e do que me está a dar cabo do juízo, vês?! Por isso não agradeças, estou-me a cagar para os teus problemas, lá o que te chateia a ti a mim não me chateia nada...olha, pronto, saiume. Para quê mentir, não é? Somos amigos mas tu não me preocupas, em nada. As tuas paranóias são lá contigo. - Agora, inevitavelmente, agradeço a franqueza... tardia é verdade, mas... - Olha, ando preocupado comigo... - Sim?! - Sinto-me como se estivesse a dar uma à minha Mãe. - Como é que é? - Sim, como se estivesse a comer a minha Mãezinha... - Andas com uma tipa mais velha? - Não, agora não... durante anos fui um mau filho, um gajo do pior, completamente ausente e a tresandar a egoísta, nunca a ajudei para nada, nem sequer um telefonema fiz para saber do que precisava da última vez que adoeceu... mas depois decidi mudar e agora faço tudo, como aquelas campanhas humanitárias tornadas publicas quando já ninguém espera que aconteçam. - Sempre foste assim, agora já não te entra essa vestimenta de adulto com problemas de consciência. - Não, deixa-me acabar... e agora acho que a devo compensar pelos anos perdidos, que a devo amparar... - Sim e mais? - Com a minha mulher é o mesmo, estou a compensá-la pelo mal que

fiz ao longo destes anos todos. Tenho este problema com a fidelidade, não a consigo respeitar, estou sempre a mijar fora do penico, as gajas tentam-me e eu afeiçoo-me e dou-lhes o que me apetece e lhes apetece a elas. Ser infiel para mim é que é o normal. - Eu pecador me confesso! - Daí que ... - O carro completou a recta dos eucaliptos e desfez uma curva pouco pronunciada mas suficiente para interromper o discurso. - Dizia eu, daí que hoje em dia me sinta a trair a minha Mãe, trair para compensar, para pagar pelo mal que fiz... já viste isto? - Não, é inacreditável. - Também acho, mas é o que acontece hoje em dia. - Sabes, acho que só serás melhor se te deres com pessoas melhores e lamentavelmente para ti não tens pessoas melhores a quem possas recorrer, as que se dão contigo, eu inclusive, são uma desgraça. - Pois, cada macaco no seu galho. - Enganas a tua Mãe...tu fazes concessões, tu, a ceder, ao que a tua vida chegou. E olha-se para ti e pareces igual ao que víamos nos teus melhores anos. Nada te belisca, estás morto há décadas mas pereces o mais jovem de todos nós. - Olha, não preciso que cagues sentenças, está bem... Tens aí o CD mix? - Não oiço mix, estafermo. - Estafermo és tu. - Não, tu é que és um estafermo, um estafermo sem chatices, um despreocupado mental. Eu é que devia dar-me com gente normal, gente boa, dos que vão a casa dos Pais ao Domingo e criticam-nos na cara e são criticados por eles à refeição. - Olha, então dá-me aí o outro, aquele do gajo louro com 50 anos ou quase 60. - Eu devia escolher melhor as companhias. - Pois, os Pais, são sempre os responsáveis. Eu lixo a minha Mãe e isso lixa-me a mim... tu também gostavas de dar cabo de alguém, os teus Pais de preferência, mas faltam-te tomates para o fazer, não é? Faltam-te os dois. - Já reparaste no indicador da gasolina? - Ah, porra! - A ti falta-te sempre qualquer coisa indispensável. - Quanto quilómetros nos separam da bomba? - Talvez uns cinco... - Esperemos que dê. Reza, panasca!


6 5 2011

h

à s u p e r f í c i e

“Os Belenenses” António MR Martins

O

Clube de Futebol “Os Belenenses”, de Lisboa, com sede e estádio no Restelo, sendo esse o seu actual nome, é um popular clube português, a que muitos denominam de “pastéis de Belém”. O seu historial eleva-o ao patamar de 4º melhor em Portugal, desde sempre, apesar de se encontrar a participar no campeonato secundário, Liga de Honra/Liga Orangina, e mal classificado na tabela actual. Venceu um Campeonato Nacional (1946), 3 Taças de Portugal, sendo a última em 1989, 3 Campeonatos de Portugal, Taças de Honra, Taça Intertoto e muitos outros troféus. Dos plantéis dos azuis do Restelo, ao longo de muitas épocas, saíram diversos internacionais, que vestiram a camisola das “quinas”, sendo os seguintes (desde o seu início) os mais importantes na história do futebol português: - Pepe, só num jogo marcou 10 golos, que faleceu muito jovem, por envenenamento, Capela, Vasco e Feliciano, as “torres de Belém”, que faziam parte do único plantel campeão, os manos Lucas, Matateu e Vicente, José Pereira, o “pássaro azul”, que fez parte da selecção “Os Magriços”, que disputou o Campeonato do Mundo de 1966, em Inglaterra, tal como Vicente, Yaúca, Quaresma, Godinho, Artur Jorge e, mais recentemente, Jorge Martins, Sobrinho e o mítico capitão José António, o “careca”, já falecido. Chalana, uma referência nacional, também jogou uma época no clube. Contou, também, ao longo dos tempos com alguns nomes de nomeada do futebol internacional, onde se salientam, Scopelli, Di Pace, Gonzalez, Mladenov e Mihailov, entre muitos outros. Esteve quase a vencer

um outro campeonato, em 1955, que perdeu nos últimos minutos, a favor do Benfica. O clube foi fundado em Setembro de 1919, por via de dissidentes do Sporting e Benfica, conta-se, e teve o seu começo num banco do jardim, em frente ao Mosteiro dos Jerónimos, numa reunião ali havida, conforme se identifica no local. O seu primitivo terreno de jogo, as Salésias, o primeiro relvado de Portugal, foi palco de grandes vitórias, com a enorme saliência do apito que soava a quinze minutos do final, de cada jogo, e que tinha o condão de espevitar as hostes. Mesmo que o Belenenses estivesse a perder, às vezes com três golos de diferença, conseguia dar a volta nesse período de tempo e passar à posição de vencedor da partida. Nesses tempos, os domingos eram sagrados, pois ia-se para o campo de manhã, para assistir aos jogos dos escalões mais baixos até se chegar ao jogo em que os seniores intervinham e levava-se a lancheira respectiva para se poder passar um dia na companhia das suas cores clubistas, sem apetite e sede. Os jogos decorriam todos à mesma hora e os domingos eram, realmente, uma festa do futebol. Mas o Belenenses não é, nem foi, só futebol na sua história. Tem muitos outros títulos noutras modalidades, onde se distinguem o Râguebi e o Andebol. Na actualidade tem tido boas prestações no Futsal. A sua sala de troféus conta muitas dessas histórias e muitas das suas vitórias. O clube conta com cerca de 25.000 sócios, mas os seus adeptos são aos milhares, para muita gente o “Belém” é o seu segundo clube, o clube da “Cruz de Cristo”.

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