PARTE integrante DO HOJE MACAU Nツコ 2346. Nテグ PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
artes, letras e ideias
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Wong Kei Cheong e as imagens da
Zona Norte de Macau
&
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Ute Lemper | Do deslumbramento
em Hong Kong
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Pensar o espaço
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Da Arquitectura Sem Fim
Tiago Quadros
Carlos Morais José A atribuição do Prémio Pritzker a Eduardo Souto de Moura é uma oportunidade para uma reflexão sobre Arquitectura. Não gostaríamos de o confinar ao rótulo de “português”, porque o seu trabalho claramente ultrapassa esse tipo de barreiras ou designações. O arquitecto opera sobre o espaço público, modifica a paisagem, planeia o planeta do futuro, como os seus antepassados fizeram com o mundo onde hoje habitamos. A consciencialização de um “direito à paisagem” por parte dos cidadãos merece espaço de crescimento, sendo por isso necessário, a quem pensa, pensar o lugar que habita e o planeta que o circunda. Estando destruído o famoso equilíbrio entre o Homem e a Natureza, tão generosamente atribuído às tribos ditas primitivas, é agora maior a responsabilidade; com o crescimento exponencial da população, torna-se mais pesado o fardo de a distribuir e arrumar no espaço, garantindo as possibilidades de circulação. É preciso, portanto, que os conceitos que enformam a Arquitectura se tornem, de algum modo, inteligíveis a quem manifestar interesse no tema, na medida em que permitem uma leitura mais fecunda daquilo que nos rodeia, das catedrais medievais aos museus de Frank Gehry, passando pelos blocos habitacionais de Hong Kong. O entendimento das linhas, da razoabilidade dos materiais, a contemplação das estruturas, quando aguçados pela compreensão das dimensões arquitectónicas, revelam tanto da História de uma sociedade como transportam para uma visão do futuro. Para além de sublinharmos a obra de Eduardo Souto de Moura, procurámos também entender o ponto da história da Arquitectura em que este prémio foi atribuído, desfocando do contexto português para um ponto de vista universal, sempre com o objectivo de vislumbrar um pouco do que nos aguarda no futuro. Com este número, o h volta a surgir às sextas-feiras no Hoje Macau. Esperamos ter condições de manter a regularidade. Assim o sol surja todos os dias à face da Terra.
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urante as últimas três décadas, Eduardo Souto de Moura produziu um corpo de trabalho que é do nosso tempo mas que também tem ecos da arquitectura tradicional. Os seus edifícios apresentam uma capacidade única de conciliar características opostas, como o poder e a modéstia, a coragem e a subtileza, a ousadia e a simplicidade.”, pode ler-se no comunicado emitido pelo júri do prémio Pritzker, atribuído este ano ao arquitecto português. Souto de Moura, inicia o seu percurso profissional ao lado de Siza Vieira, com quem trabalha entre 1975 e 1980. A aprendizagem é feita do dia e da noite. Entre o atelier de Siza, a Escola Superior de Belas Artes do Porto e as partidas de matraquilhos nas Fontaínhas, discute-se Corbusier e Mies van der Rohe, desenhamse os SAAL. No norte a prática do “fazer bem feito” demonstra uma certa impaciência face às
dúvidas que o trajecto intelectual necessariamente recria. Nas palavras de Jorge Figueira: “Evitar a angústia da escolha, e escolher, é o projecto maior.” Em 1980 Eduardo Souto de Moura licencia-se pela Escola Superior de Belas Artes do Porto, iniciando a sua actividade como profissional liberal. No mesmo ano, recebe o seu primeiro prémio, atribuído pela Fundação Engenheiro António de Almeida e inicia a docência na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Mais tarde será Professor nas escolas de ParisBelleville, Harvard, Dublin, Zurique e Lausanne. Ao construir um discurso estabilizado, assertivo e sedutor, Eduardo Souto de Moura resolve o impasse estilístico com que a Escola do Porto se confronta nos anos 80. Segundo Jorge Figueira “Há uma deflexão da linha corbusiana dos anos 50 para a linha miesiana, mas a família segue sendo a mesma.” Com efeito, a
vocação analítica e a obsessão de Souto de Moura em encontrar uma “gramática” construtiva operativa, levam-no ao encontro de Mies van der Rohe. Mies, uma das figuras centrais da arquitectura moderna, tinha criado uma linguagem transmissível para lá da circunstância ideológica centro-europeia do início do século XX. Se a delicadeza e organicidade da arquitectura de Siza Vieira encontra referências em Alvar Aalto, o modelo de Souto de Moura é Mies, o que significa que não há uma ruptura na reverência à arquitectura moderna, antes a tomada decisiva de uma direcção diferente. Se os modernos falavam de esquematizar e simplificar os elementos construtivos, Souto de Moura fala em intervir ao mínimo. No entanto, o tema não é a simplificação, a pura abstracção formal, mas antes a essência material, a “clareza tectónica”. Os materiais utilizados por Eduardo Souto de
Moura permitem levar os ideais modernos muito mais além, tanto na posterior duração do edifício, como no seu trabalho de redução e procura da essência dos elementos arquitectónicos. Um dos fundamentos da arquitectura de Mies é o “neoplasticismo”, uma pesquisa formal vanguardista holandesa que estabelece o princípio da elementaridade e tensão entre planos. Souto de Moura coloca-se na perspectiva da arquitectura moderna enquanto sistema formulado para substituir a tradição construtiva e compositiva. A diferenciação material das superfícies interiores, à qual Eduardo Souto de Moura acrescenta naturalmente os pavimentos de madeira e os envidraçados extensíveis até à linha de caleira, está talvez em contraste com a estrutura evidente de caixote do edifício e é mais uma referência simples à poética neoplástica – uma arquitectura de planos, superfícies e linhas.
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A arquitectura de Eduardo Souto de Moura procura, valorizar o intelecto, minimizando os sentidos. Na arquitectura de Eduardo Souto de Moura, o problema dá lugar à solução. De projecto em projecto, cresce a materialidade contextual – vibra o sítio, a cor da terra – primeiro nas moradias unifamiliares (Nevogilde 1, 2, Casa na Quinta do Lago, Casa em Alcalena, Casa em Baião) e depois em alguns edifícios públicos (Mercado de Braga e Casa das Artes). Numa segunda fase o discurso é posto à prova em intervenções patrimoniais (Convento de Santa Maria do Bouro, Alfândega do Porto, Cadeia da Relação) e territoriais (Metro do Porto e Estádio de Braga). A este propósito, Siza Vieira afirma: “(...) a naturalidade da arquitectura de Souto de Moura deve muito à complexidade da sua materialização... ninguém parece tão empenhado em procurar e utilizar numa zona tão limitada uma tão vasta gama de materiais, cores, texturas; multiplicando-se as ligações, momentos de transformação do desenho.” Ao percorrer os jardins da Casa das Artes, no Porto, é quase impossível imaginar que a obra se desenvolve por detrás de um alto muro de granito, surgindo aos nossos olhos como um pano de fundo no verde do jardim. Ao utilizar a posição de um muro existente como elemento gerador do novo edifício, Souto de Moura, inicia o processo de transformação do lugar, nos seus componentes artificiais e naturais, sempre sustentado numa recusa da ostentação e sobrecarga expressiva, contemplando, sobretudo, aspectos mais subtis e reflexivos, como por exemplo, a cor da luz, a matéria e as suas qualidades tácteis. “A escolha de concluir o pano de fundo do jardim – a esplêndida natureza – completando o muro de granito existente para se abrir, antes, para a cidade, por meio das vidraças da biblioteca, tem, além disso, o significado de exprimir um juízo em relação às qualidades diversas e opostas oferecidas pela realidade. Uma realidade que é, hoje em dia, constituída, nas nossas cidades, predominantemente pelos espaços residuais, exacta-
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mente como o parqueamento dos altos condomínios especulativos que enchem, também, os arredores da Casa das Artes, e aos quais o novo auditório se oferece, naquele lado, como possível fundação. Deles imita as superfícies, os materiais e a tonalidade cinzenta das cores, numa tentativa de integração.” Nascido em 1952, no Porto, Eduardo Souto de Moura é o segundo arquitecto português a receber o prémio Pritzker, depois de Álvaro Siza Vieira ter vencido em 1992. O arquitecto sucede, assim, a nomes como Oscar Niemeyer (1988), Frank Gehry (1989), Norman Foster (1999) e Zaha Hadid (2004). No ano passado a Fundação Hyatt distinguiu a dupla de japoneses Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa. Em relação ao trabalho do arquitecto português, o júri sublinha a confiança que Souto de Moura tem em "usar uma pedra com mais de mil anos ou a inspirar-se num detalhe moderno de Mies van der Rohe". Ao longo da sua carreira, Souto de Moura viu o seu trabalho ser reconhecido diversas vezes, tendo recebido o Prémio Pessoa (1998), o Prémio Secil de Arquitectura (1992 e 2004), o 1º Prémio da Bienal Ibero-Americana (1998), o Prémio Internacional da Pedra na Arquitectura (1995), a Medalha de Ouro Heinrich Tessenow (2001) e o Prémio Internacional de Arquitectura de Chicago (2006). Criado em 1979 pela Fundação Hyatt, com sede nos Estados Unidos, o Prémio Pritzker é considerado o Prémio Nobel da Arquitectura. A arquitectura de Eduardo Souto de Moura procura, valorizar o intelecto, minimizando os sentidos. O sujeito-visitador é obrigado a fazer um esforço reflexivo e perceptivo muito maior que o habitual. Deve adoptar uma nova forma de acção e envolvimento na obra. Deve entrar, percorrer e reconstruir, física e mentalmente, a obra. Trata-se de uma simplicidade que se opõe ao caos do mundo e ao espectáculo da sociedade de consumo, através de uma experimentação permanente que conjuga os aspectos construtivos com os componentes materiais – a cor, a textura, a luz e a sombra. As últimas obras de Eduardo Souto de Moura indiciam um inconformismo vibrante. Ao procurar o risco, o arquitecto portuense elimina as “dúvidas” – procura uma arquitectura sem fim. O trabalho de Eduardo Souto de Moura surge num desenho que reduz e simplifica, visando omitir para não desequilibrar. Talvez seja isso, afinal, a arquitectura.
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senhor trabalha uma construção lógica da forma, com muito rigor e precisão, o que não o impede de realizar uma obra poética. Como consegue conciliar razão e emoção? A forma não tem que ter lógica. A lógica é o ponto de partida, o suporte. Depois trabalha-se o tema, o conceito, o problema e a lógica construtiva. É uma coisa natural. A lógica só me interessa como suporte, como instrumento, não como fim. Porque a função da arquitectura é fazer as pessoas mais felizes, como dizia o professor Fernando Távora (seu mestre e fundador da escola do Porto). Não é preciso divagar. A intervenção no Mercado de Braga provocou muita discussão pelas soluções modernas empregadas. O crítico espanhol Xavier Güell comentou que o senhor fazia paredes de pedra por romantismo. Nos seus projectos posteriores, a pedra foi incorporada também “por romantismo”? Não é bem assim. Quando comecei a trabalhar depois da revolução (em 1974) era mais económico fazer um muro de pedra do que de concreto. Trabalhar com a pedra foi uma decisão pragmática. Hoje o muro de pedra é mais caro. Nesse caso é que seria uma opção romântica, pictórica, estética, do arquitecto. Como é seu processo de projectar? Varia conforme o programa. Geralmente são programas que conheço bem. Fiz muitas casas. Falo com o cliente para explicar bem, vou várias vezes ao sítio, mas não pretendo que o sítio me diga algo. Posso ter uma ideia desajustada, mas depois consigo ajustá-la. A solução nunca está no sítio, está em mim. Faço os primeiros desenhos e sempre faço maquete. Hoje é mais fácil, as fotos são feitas em digital e eu desenho por cima e testo nas maquetes as proporções. Depois faço um sistema de cruzamento de informações das primeiras ideias com as formas das maquetes. Muito cedo começo a trabalhar com os engenheiros para saber a viabilidade física e se a solução não é contra natura. Muitas vezes altero o projecto na própria obra. Por mais que os arquitectos tentem resolver os problemas há um que não conseguem: a escala, porque é de ordem subjectiva. Há um conjunto de factores a serem analisados, o que a pessoa precisa e qual o seu território. Tem que se alternar a subjectividade com a objectividade até dizer: está lá. É um processo sinuoso. As primeiras ideias são rápidas, levo um fim de semana para projectar uma casa. Depois demora quatro, cinco anos para ela aparecer. Não penso em estética. Quem pensa em estética não chega lá. Estética é uma predisposição, um conjunto de problemas que não foram resolvidos. Se o poeta tem necessidade de escrever um poema, escreve. O arquitecto não pode dizer “vou fazer uma casa integrada na paisagem”. Ele tem que fazer uma construção muito friamente para resolver um problema. Se a disposição que ele usou ultrapassa o fenómeno do programa e da função, então surge a estética. A estética nunca é um acto voluntário. Muitos arquitetos privilegiam a estética em detrimento da função... Um professor meu que trabalhou com Niemeyer gostava de repetir uma frase dele: “a arquitectura tem que ser bela — se funcionar, melhor”. O facto é que isso não é verdade. Em qualquer croqui de Niemeyer a estrutura já está pronta. Cabe ao engenheiro direccioná-la. Portanto, a preocupação
eduardo souto de moura discurso directo
a arquitectura não tem que ter emoção maior de Niemeyer não é a estética, ela é o suporte para que sua ideia exista. Quando ele desenha uma pessoa ao lado, já tem a escala. O senhor tem uma relação de liberdade com a natureza. Costuma dizer que o “local é aquilo que você quer que ele seja”. Como se dá essa tensão entre a arquitectura e a natureza? O lugar é uma construção mental. Fisicamente não interessa. É como uma pintura, uma natureza morta. Na medida em que eu giro a casa porque acho a vista para a montanha mais bonita, estou a construir o sítio. A montanha está a entrar na construção da casa. Tenho que entender as ausências de energia no local. A construção do projecto é a construção de algo positivo. O objectivo é parecer que, no fim, o objecto está ali e não poderia deixar de estar ali. Se tirar, o sítio poderia ficar pior. O local para o arquitecto é um instrumento, uma ferramenta. A esse respeito, Eduardo Bru, na mesma monografia da GG, faz uma comparação
entre o seu modo de projectar e o de Siza, em que define como conflitual a paixão de Siza pelo lugar, enquanto em Souto de Moura vê um civilizado romance. Está correcta essa avaliação? A minha arquitectura não tem um conceito, um objectivo. Acho que a arquitectura não tem que ter emoção. Deve ser um objecto frio, estéril. Um objecto a ser construído sem emoção. Se encontramos erros na natureza, devemos construir noutro lugar. O modernismo fez a ruptura com o classicismo. Creio que foi Delacroix quem afirmou que é a natureza que imita a arte... Dizem que Deus fez a água e, o homem, o vinho... No caso do Estádio de Braga, mudou a implantação sugerida. Entendi que ficava bem naquele morro. O monte precisava ser preenchido. Construí o monte de uma maneira diferente, cortei-o na forma de um estádio. Foi muito caro tirar a pedra. Fui criticado politicamente, economicamente e ecologicamente: “na natureza não se toca”. A natureza só me
interessa quando é operada pelo homem. Uma paisagem virgem não me comove. Posso até achá-la bonita. Há um poema de Herberto Helder, que nunca deve ter ouvido falar em Mies (van der Rohe), que diz “trabalhar na transformação, na transmutação, é obra nossa”. Como se sentiu ao ser convidado para realizar um projecto de tal complexidade? Muito preocupado. Fiquei sem dormir. Mas resultou que ficou bom. Quando as situações são favoráveis, o cliente é bom, há muito dinheiro, não há crítica, o arquitecto não sente as contradições, o projecto não tem consistência. Só os problemas é que obrigam a procurar soluções. Esse projecto custou anos da minha vida, mas convenceu. Não sabia nada de futebol, aprendi e gostei, é diferente. Visitei muitos estádios na Europa e o que mais gostei foi o do Renzo Piano em Bari (Itália). Visitei várias vezes o de Paris, mais complexo, tem mais tecnologia. O futebol é um espectáculo para a televisão e não para os 30, 40 mil espectadores que estão lá. Os campeonatos mundiais são transmitidos para milhões de pessoas. É preciso criar no estádio as melhores condições para filmar essa “peça de teatro”. Portanto, o mais importante no projecto é a iluminação, produzida para que o campo receba a melhor possível, não importa se vai ferir o público. Os holofotes estão dependurados em trilhos, estudou-se muito para evitar sombras. Perguntam-me porque fiz duas arquibancadas apenas. Quem vai assistir ao jogo olha da direita para a esquerda e vice-versa, não se vê o jogo das laterais. Quais foram suas maiores influências? Não tenho um ídolo. No primeiro ano fui influenciado por Fernando Távora, meu professor, quem realmente me explicou o que é arquitectura. Depois trabalhei com Siza Vieira no seu escritório. Marcou-me muito do ponto de vista formal, do conceito de arquitectura. Gosto muito de Mies van der Rohe. As grandes obras são sempre imitadas, senti-me mais próximo das obras dele. No Brasil, encontrei um conjunto de obras que me influenciaram. O hotel de Niemeyer em Brasília, já demolido, é uma das melhores obras do século XX que eu conheço. Uma casa que projectei recentemente foi bastante marcada por Oswaldo Bratke. Visitei a casa de Oscar Americano, no Morumbi, projectada por ele. As obras são melhores quando observadas ao vivo. Depois foi Artigas, uma arquitectura máscula, enquanto a do Niemeyer é mais feminina. E Paulo Mendes da Rocha. Hoje, admiro o arquitecto suíço Herzog, meu amigo. Há críticos que vêem semelhança entre seu trabalho e o de Paulo Mendes, que classificam como minimalista. Minimalismo é uma palavra banal, parece oportunismo, veio em seguida ao pósmodernismo que é uma arquitectura narrativa, de excessos, de citações. Quem faz arquitectura é o arquitecto, não o escritor. A mim não diz nada. O minimalismo foi importante, foi uma terapia voltar à tabula rasa. Hoje o minimalismo deixou de ser arquitectura para se tornar um fetiche. O Paulo é essencialista, trabalha com um único material, trabalha com a luz, vai à essência da arquitectura, não faz a cosmética da obra. Paulo é isso. E Souto de Moura, o que é? Não sei. Quem sabe são os críticos. Como chegou a uma linguagem pessoal, diferenciada de seus mestres? Citam in-
estética Não penso em estética. Quem pensa em estética não chega lá. Estética é uma predisposição, um conjunto de problemas que não foram resolvidos. (...) A estética nunca é um acto voluntário. fluências de artistas como o minimalista norte-americano Donald Judd e mesmo do cineasta Wim Wenders. Gosto de alguns filmes de Wenders, mas é perigoso fazer essas transferências. Posso dizer que admiro Donald Judd, não só pelos objectos que faz, mas por sua postura ética sobre a arte. Os objectos que fez têm alguma analogia com as formas arquitectónicas. A arte tem uma função social e ele instituiu uma comunidade artística de protecção (Chinati Foundation), escreveu um livro maravilhoso em que fala dos problemas dos artistas (Donald Judd: Architecture), cujos instrumentos são diferentes daqueles dos arquitectos, mas têm os mesmos objectivos. O senhor escreveu um texto para a exposição os amantes a modernidade e o pósmodernismo no norte de Portugal (parte da mostra des-continuidade), em que defende que a arquitectura ali produzida faz uma citação do movimento moderno,
LÓGICA A lógica é o ponto de partida, o suporte. Depois trabalha-se o tema, o conceito, o problema e a lógica construtiva. A lógica só me interessa como instrumento, não como fim.
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Emoção A minha arquitectura não tem um conceito, um objectivo. Acho que a arquitectura não tem que ter emoção. Deve ser um objecto frio, estéril. Um objecto a ser construído sem emoção. cuja empatia se dá mais pela “pele”, ou seja, pelo revestimento, do que pela ideologia do próprio movimento. Poderia explicar melhor essa situação? Ninguém acredita mais na casa como máquina para habitar e o que restou desse projecto foi a imagem da estrutura recoberta com panos elegantes, como na tela O Terapeuta, de Magritte. O moderno e o pós-moderno são as duas faces da mesma moeda: o modernismo e a modernidade. Uso a imagem de O Terapeuta porque existe uma vida interior. Em função da técnica, o arquitecto procura encontrar o material, seguir o custo, as áreas estabelecidas, portanto ele fica só com o aspecto exterior. Ele deve ser lúcido para não se tornar um poeta da lamentação. Essa é a condição da arquitectura actual, que insistimos ainda em ser, como em O Terapeuta. in Revista Arquitectura & Urbanismo
lugar O lugar é uma construção mental. Fisicamente não interessa. É como uma pintura, uma natureza morta. O local para o arquitecto é um instrumento, uma ferramenta.
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Siza Vieira, arquitecto, Prémio Pritzker 1992 “Era mais do que justo e é uma grande alegria. A sua obra é de um grande rigor, de uma grande exigência. Não conheço nenhuma obra descuidada. Há sempre grande atenção à inserção de cada obra que faz. Não são peças isoladas e fazem parte de um tecido. É uma arquitectura que tem passado e anúncios de futuro.”
Manuel Graça Dias, arquitecto “É uma honra para nós, portugueses, e para nós, arquitectos. É muito interessante que um país pequeno como Portugal consiga já contar com dois Prémios Pritzker. É sinal de um vigor da arquitectura portuguesa – e, claro, em primeiros lugar dos premiados. Estes prémios são também reflexo de uma certa maneira de pensar a arquitectura de que Souto Moura e Álvaro Siza são representantes.”
Paulo Mendes da Rocha, Prémio Pritzker 2006 “É, para mim, uma grande alegria ver o Prémio Pritzker ser atribuído a Eduardo Souto Moura. É uma afirmação, para todos nós, da força do discurso da nossa querida língua portuguesa, da nossa arquitectura como discurso sobre a nossa existência nos espaços do mundo e sobre a construção da nossa cidade. É um prazer extremamente particular poder abraçar o meu querido amigo Eduardo Souto Moura.”
Domingos Paciência, Treinador do Sporting de Braga “O estádio é um lugar único. Já tive oportunidade, como jogador e treinador, de jogar em vários estádios em todo o mundo, e não há nenhum que se lhe compare. É uma obra arrojada e de grande qualidade, que também valoriza o mundo do desporto. E dá uma grande visibilidade internacional à cidade. É um bom sítio para trabalhar. Os jogadores que vêm cá jogar é que ficam muito tempo a olhar para o ar, para os cabos que ligam os tectos das duas bancadas. Alguns tentam mesmo pontapear a bola, a ver se conseguem chegar com ela aos cabos, mas não conseguem”.
Vicente Bravo, arquitecto “Mais uma vez se prova que não são os países pequeninos que não levam prémios” e que vê a distinção de Souto Moura com o prémio Pritzker 2011 como o “reconhecimento de que as nossas escolas não são más de todo”. A escola do arquitecto portuense passou pelos ensinamentos de Siza Vieira, galardoado com o mesmo prémio em 1992, mas o arquitecto de Macau confessa que, pessoalmente, prefere o pupilo. “É um tipo que tem uma grande simplicidade de meios, consegue fazer as coisas com grande simplicidade, com materiais muito corriqueiros, muito normais. Não é daquelas ‘star’, que fazem cada vez mais edifícios e cada vez mais complicados, ele trabalha exactamente no sentido oposto.” De entre as várias obras do arquitecto português, Bravo salienta que “o Estádio do Braga é um objecto extraordinário”, admitindo ainda que a preferência recai sobre os edifícios públicos. “Souto Moura lida bem com coisas difíceis, com aquilo com que outros arquitectos, como eu, também lidam e que é o cliente normalíssimo. Sabe levar o cliente a aceitar as suas propostas sem perder a qualidade do desenho, sem facilitar.”
Carlos Marreiros, arquitecto Além de destacar as características “solar”, “consistente” e “poeticamente subtil” da arquitectura “quase anónima e vernácula” de Souto Moura, Carlos Marreiros frisa a capacidade do arquitecto portuense tanto conseguir “ser brilhante a fazer a pequena moradia unifamiliar, como torres de alguma envergadura, blocos de escritório ou um mega projecto como um estádio de futebol”. O arquitecto macaense defende que a distinção deve representar um momento de reflexão para os dirigentes do país. “É altura de Portugal pensar que em 18 anos tivemos dois prémios Priztker, que vale a pensar na arquitectura e considerar mais o arquitecto como profissional, como alguém que contribui de forma relevante para o dia a dia das pessoas e para o prestígio do país.” Marreiros considera que é preciso pensar em como é que um país consegue ter “os melhores do mundo” na arquitectura, no futebol, na ciência e na literatura. “Não vejo nenhum economista, estadista ou gestor a consegui-lo, mas são essas profissões que parece que tomam conta do destino do país.”
Souto de Moura e a consagração do minimalismo C
hegou o momento de um dos ritos da primavera da arquitectura: ler as folhas de chá do Prémio Pritzker. Então, o que extraímos da notícia de que o arquitecto português Eduardo Souto de Moura, de 58 anos, mal conhecido fora da profissão, foi nomeado na segunda-feira o vencedor do Pritzker deste ano, o mais cobiçado galardão da área? Em si, o prémio parece mais claramente homenagear o inabalável compromisso de Souto de Moura ao longo de sua carreira com uma marca de arquitectura minimalista dura, vigorosa. O júri de sete membros do Pritzker - que este ano incluiu Renzo Piano, Glenn Murcutt e Alejandro Aravena - salientou que o trabalho recente de Souto de Moura continua muito próximo do espírito e da abordagem de seus primeiros projectos, dos anos 1980, que foram contra o filão do pós-modernismo decorativo então em alta.
Quando um jovem arquitecto, observou o júri, Souto de Moura “era nitidamente fora de moda... Quando olhamos hoje para trás, os primeiros prédios podem parecer normais, mas devemos lembrar de como eles foram realmente ousados na época”. Num sentido mais amplo, a escolha deste ano significa que por três anos seguidos o júri do Pritzker premiou obras que são formalmente muito frugais, reservadas até, para não mencionar assentadas num contexto regional específico. Peter Zumthor, da Suíça, vencedor de 2009, e o duo japonês Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa, premiados do ano passado, partilham com Souto de Moura a abordagem precisa, reticente, milhas distantes da exuberante construção de formas e o alcance global de arquitectos mais famosos como Jean Nouvel (que venceu em 2008), Zaha Hadid (2004) ou Frank Gehry (1989). Os três agraciados mais recentes foram elogiados sobretudo por obras executadas nos seus próprios países de origem,
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Christopher Hawthorne Los Angeles Times
Num sentido mais amplo, a escolha deste ano significa que por três anos seguidos o júri do Pritzker premiou obras que são formalmente muito frugais, reservadas até, para não mencionar assentadas num contexto regional específico. * O júri do Pritzker está aferrado à arquitectura que visa a uma certa intemporalidade e é teimosamente, habilmente, confinada aos seus elementos fundamentais. embora Sejima e Nishizawa, cuja empresa em Tóquio chama-se Sanaa, venham projectando edifícios por todo o mundo ultimamente. Zumthor, por sua vez, está trabalhando num projecto de longo prazo para o Los Angeles County Museum of Art, embora esse projecto esteja no estágio inicial. No prémio deste ano há ecos também do Pritzker de 2006 que foi para o brasileiro Paulo Mendes da Rocha. Assim como Mendes da Rocha operou por muito tempo na sombra do mais famoso arquitecto do Brasil, Oscar Niemeyer, hoje com 103 anos, Souto de Moura é frequentemente
mencionado com o do grande arquitecto português Alvaro Siza, que venceu o Pritzker de 1992. Souto de Moura trabalhou no escritório de Siza de 1975 a 1979, e os arquitectos colaboraram no pavilhão português na World Expo 2000 em Hannover, Alemanha. Apesar do louvor do júri à consistência do corpo da obra de Souto de Moura, alguns de seus primeiros prédios revelam uma dívida à arquitectura de Siza que esmaeceu com o tempo. Souto de Moura, que como Siza trabalha no Porto, a segunda maior cidade de Portugal, foi amiúde descrito como arquitecto “neo-
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miesiano”, em referência ao modernista supremamente influente Ludwig Mies van der Rohe. Mas os projectos mais conhecidos de Souto de Moura não são executados no vidro e aço tão estreitamente associado a Mies; prefere trabalhar com betão, pedra, tijolo, cobre e madeira. E seus edifícios são com frequência animados por manchas de cor. O arquitecto talvez seja mais conhecido pelo seu Estádio Municipal de Braga, que é encostado a uma pedreira de um lado e exibe um par de telhados imensos suspensos dramaticamente sobre as arquibancadas. Concluído em 2003, foi um elemento inicial numa ambiciosa onda de arquitectura arrojada de estádios que culminou com o Estádio Olímpico de 2008 em Pequim, projectado pela empresa suíça Herzog & Meuron. O museu Paula Rego, perto de Lisboa, concluído em 2009, trouxe a Souto de Moura uma nova ronda de aplausos, mas insuficiente para deixá-lo mais perto de ser um nome familiar. O museu é envolvido por uma capa exterior de betão quase sem janela de cor salmão que lembra - mais que Siza ou Mies - a obra de Louis Kahn. Uma casa de 1994 em Bom Jesus, Portugal, também exibe formas vigorosas de betão. A identificação de tendências pelo Pritzker pode ser algo traiçoeiro. Particularmente, se houver uma rotatividade significativa nos membros do júri, que tem sido bastante estável (e avassaladoramente masculino) nos últimos anos, a escolha de 2012 poderia sugerir um novo foco: na arquitectura digital fluida, por exemplo, ou num design humanitário socialmente informado. Ou em obras preocupadas com design urbano e com a cidade numa escala mais ampla. Por enquanto, porém, o júri do Pritzker está aferrado à arquitectura que visa a uma certa intemporalidade e é teimosamente, habilmente confinada a seus elementos fundamentais.
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zona norte Na primeira versão do “Ensaio Sobre a Visão” vamos ensaiar Macau. Aqui, no complexo terreno percorrido pelos fotógrafos do território. Uma zona, uma rua, um edifício. A água que bebemos dentro de uma mão cheia de imagens. A Fotografia sem explicação, para que se compreenda o que é a Cidade. Esta cidade onde vivemos.
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b r e a v i s ã o
Wong Kei Cheong
Nascido em 1985, o meu avô deu-me um nome antiquado – Wong Kei Cheong. O meu trabalho é transportar uma câmara e vagabundear pelo mundo. Seguindo as minhas próprias regras, só fotografo as pessoas quando não estão à espera. Premir assim o obturador, sei que estas serão as imagens mais verdadeiras que poderei encontrar. Website: www.flickr.com/358 E-mail: beatifullif358@hotmail.com
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luz de inverno
Boi Luxo
Sarangbang Sonnimgwa Eomeoni, The Houseguest and my Mother, 1962,
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ão admira que este filme seja considerado um dos grandes clássicos do cinema coreano. Não é preciso conhecer esta cinematografia a fundo para perceber que Sarangbang Sonnimgwa Eomeoni vem marcado pela inevitabilidade desta distinção. Tal como acontece com tantos outros clássicos, não é fácil definir as razões que estão por trás desta classificação mas, como acontece com tantos outros clássicos, ela vem despida de qualquer dúvida. Nele não apercebemos de imediato, no entanto, a linha elegante e simples com que é desenhado. A irregularidade de algumas delas, por vezes mesmo a sua brutalidade, esconde o traço fino geral que o define. O modo como Shin Sang-ok consegue com que este filme se não afunde no sentimentalismo marcou grande parte da sua obra. A inclinação para o melodrama é uma constante do cinema coreano e tem raízes nos shinpa, datados da era da ocupação japonesa. Existe ainda hoje, não só no cinema como na televisão. Se esta tendência melodramática coreana não é uma tendência muito conhecida, é porque o cinema coreano contemporâneo que tem tido mais exposição internacional sofre menos desse mal inevitável. O sentimentalismo é, no entanto, um mal (porque é quase sempre um mal) que atinge profundamente o cinema de vários países extremo asiáticos e é um mal que não atinge apenas o cinema cor de rosa (pouco conhecido fora dos países onde é produzido). Cito do livro Asian Cinema, de Tom Vick, a propósito de um conceito já aqui
referido em relação a outro filme, o conceito de han: “…o académico Suh Nam-dong chama-lhe um “sentimento não resolvido de ressentimento contra a injustiça, um sentimento de impotência face à esmagadora dimensão da adversidade” resultante de séculos de tirania, e que, transferido para um nível pessoal, resulta numa profunda e permanente tristeza. O han é, possivelmente, uma das razões que explica a longa tradição de obras trágicas e melodramáticas que percorre o cinema coreano…” (tradução própria). Este filme de Shin Sang-ok foi feito numa altura em que a estória dramática sentimental dominava a produção cinematográfica da Coreia, um tom que tivera importância já nos anos 50, altura do início da reconstrução de uma indústria que a guerra havia destruído por completo (e foi também feito no ano em que a Coreia do Sul entrou num período, que duraria até 1988, em que foi administrada por ditaduras militares). Este filme foi, além disso, realizado antes do acesso geral da população à televisão, meio para o qual se transferiu a atenção do público que mais favorecia o género melodramático. Esta é uma estória que tem todos os ingredientes para se tornar num quadro piegas mas que, desvende-se esta sua qualidade, nunca nisso se torna. Ao contrário do que acontece com um outro clássico do cinema coreano dos anos 60 que já aqui foi alvo de atenção, Hanyo, de Kim Ki-young (também autor, até à realização deste filme, de melodramas), o filme de Shin Sang-ok aqui sob apreciação não se distingue pela exibição do bizarro ou de uma violência expressionista, como acontece em Hanyo, mas pela exibição de uma simplicidade e de uma pureza quase insuportáveis. Que
se não atinja a felicidade pela impossibilidade de ultrapassar o código social é, para o espectador de hoje, como para o de então, um espectáculo cujo desenrolar se torna muito mais doloroso pela finura com que nos é apresentado. Curiosamente, em ambos os filmes se segue um esquema semelhante: o aparecimento de uma ferida (uma ruptura) que é causada pela introdução de um elemento estranho no núcleo da família. Este filme é também muito diferente dos filmes históricos que Shin Sang-ok realizou nos fins dos anos 60, e onde este revela uma tendência bestial para o erótico e para uma utilização voluptosa da cor – exemplo é outro filme aqui já também apreciado, o febril Cheonnyeon Ho. A simplicidade de Sarangbang Sonnimgwa Eomeoni esconde, durante grande parte desta estória, a fibra trágica que a ela subjaz. Os acontecimentos são narrados através do discurso de uma criança, e esta leveza infantil contribui em grande parte para que o estrato negro da estória não se imponha, com toda a sua carga funesta, logo de início. A estória é singela. O Professor Han é colocado numa escola de província, no posto que fora ocupado por um antigo colega que morrera cerca de 6 anos antes. A viúva dá-lhe hospedaria e o Professor Han passa a partilhar a casa com ela, a filha, que nos narra a estória, e uma criada. A criança e o professor ganham uma afeição profunda um pelo outro, ao mesmo tempo que, aos poucos, a mãe e o professor se começam a olhar com outros olhos. Contudo, aqui não encontramos as diáboas de Hanyo. Viúva e mãe extremosa, a Senhora Lee não ultrapassa nunca as barreiras que um decoro rigoroso lhe impõe. Lá fora,
Shin Sang-ok
por vezes, chove e enlameiam-se os caminhos da pequena aldeia ao mesmo tempo que se ouvem, indistintos, os primeiros ruídos da modernização da Coreia. A compartimentação rígida da sociedade confucionista espelha-se na disposição da casa norte asiática. Um pátio interior divide as várias zonas dos aposentos e impede uma convivência menos decente ao mesmo tempo que, ironicamente, dispõe os seus habitantes em torno de um mesmo centro. Paralelamente, decorre uma outra pequena estória. À criada da casa, também viúva, parece não se estender a rigidez dos códigos sociais da altura. Esta soltura de costumes permite que a sua ligação a um vendedor ambulante a não exponha ao opróbrio que uma ligação da Senhora Lee com o Senhor Han inevitavelmente lançaria sobre os dois. Esta é, uma vez mais, uma estória de mulheres e eu permitome o atrevimento de lembrar, de novo, que o retrato do feminino no cinema é muito mais importante nesta altura (e não só no exemplo coreano) do que o do masculino. Esta é uma estória mansa sobre o que as mulheres podem e não podem fazer, sobre a impossibilidade de prosseguir o impulso amoroso numa sociedade fechada e onde mesmo o olhar nem a todos é permitido. Nestas linhas mansas, fluviais, em que a surpresa não tem lugar, apercebemos, no entanto, por vezes, um desejo de quebrar a sua placitude através de um desenho mais furioso e diagonal, um desenho que rompa o remanso em que a tradição e o decoro colocaram estas pessoas. O desejo de um traço que liberte também dessa infinda quietude o cinema que o retrata. Kim Ki-young havia-lo feito um ano antes. Este cinema, o coreano, haveria de tomar uma coloração violenta ímpar.
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l e t r a s s í n i c a s
WEN ZI 文子
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A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS
Quando os líderes acumulam coisas inúteis, as vidas de todos no mundo são inseguras.
Capítulo 144 Lao Tzu disse: A via dos desenvolvidos é o cultivo do corpo através da tranquilidade e o alimentar da vida através da frugalidade. Quando existe tranquilidade, aqueles que se encontram em baixo não se agitam; quando os que se encontram em baixo não se agitam, o povo não se ressente. Quando os que se encontram em baixo se agitam, o governo é desordeiro; quando o povo se ressente, a virtude é escassa. Quando o governo é desordeiro, os sábios não se encarregam de o planear; quando a virtude é escassa, os corajosos não lutam por ela. Líderes arbitrários detestam os desenvolvidos. Quando chegam a possuir a riqueza de uma terra e a ocupar uma posição de liderança, exaurem a energia do povo comum de modo a propiciarem os seus desejos sensuais. As suas mentes se preocupam com palácios, salões, terraços, lagos, jardins, animais, raridades e curiosidades. Os pobres passam fome e os tigres e lobos se enchem da melhor comida. Os camponeses gelam ao frio, mas os habitantes dos palácios vestem sedas estampadas. Assim, quando os líderes acumulam coisas inúteis, as vidas de todos no mundo são inseguras. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho
O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han. A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.
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HKAF fecha com Ute de Ouro M R ichel eis
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m três soirées consecutivas, entre 25 e 27 de Março, a sedutora cantora alemã Ute Lemper, acompanhada pelo Sexteto Piazzolla, cantou e encantou o público na Sala de Concertos do Centro Cultural de Hong Kong, encerrando com chave de ouro a 39ª edição do Festival de Artes da Região Vizinha, mau grado os problemas acústicos da sala. Acompanhada por Daniel Piazzolla, neto de Astor Piazzolla, na bateria, Fernando Suarez Paz, membro original do Quinteto Nuevo Tango de Astor Piazzolla, no violino e direcção musical, Hector Console no contrabaixo, também membro original do Quinteto Nuevo Tango, Marcelo Nisinman no bandoneón (a quem chamou o maior do instrumento), Nicolas Guerschberg no piano e Ricardo Lew na guitarra, Ute Lemper, demonstrando a sua grande versatilidade e qualidade vocal, interpretou um programa fortemente marcado pela música do grande mestre e criador do nuevo tango, cantado num espanhol fluente, fruto da recente colaboração com o Sexteto Piazzolla, que incluiu temas como “Los Parajos Perdidos”, “Oblivion”,” Yo Soy Maria”, “Balada para un Loco”, “La Muralla de China”, “Chiquilin de Bachin”, “Preludio”, “Soledad” e por fim, “La Ultima Grela”, não deixando de intercalar, para regozijo do público, entre outros, alguns temas da canção francesa e alemã, como “Amsterdam” (Brel), “Ne me quites pas” (Brel), “Lili Marlene” (Schultze/ Leip) e o famoso “Die Morität von Mackie Messer” da Ópera dos Três Vinténs de Kurt Weill/ Bertold Brecht, a qual foi também apresentada este ano pelo HKAF, numa produção irrepreensível do Berliner Ensemble (criado em
1949 pelo próprio Brecht e pela sua mulher Helena Weigel), com encenação e luzes do não menos famoso Robert Wilson. Lemper, numa entrevista à produtora inglesa Serious, em Dezembro de 2010, refere que neste espectáculo, faz muito mais do que juntar Berlim e Buenos Aires, Brecht e Piazzolla. Reune também Paris e Nova Iorque, as viagens de milhões de emigrantes nos anos 30, fugindo aos nazis, muitos dos quais acabaram na Argentina, para além da sua viagem pessoal, que passa por Berlim durante a Guerra Fria e por Paris nos anos 90, depois Londres, e Nova Iorque, onde vive actualmente, mas continuando a ser uma verdadeira europeia no coração. Foi uma vagabunda, uma cigana durante muitos anos, mudando-se de país para país, não em fuga, mas antes sentindo-se em casa em todo o lado e em lado nenhum… Confessa que se não tivesse tido filhos que a fizeram assentar, ainda estaria a andar de um lado para o outro e que abraçou todas essas culturas e absorveu fragmentos da sua beleza e música na sua identidade e consciência musical. No concerto de 26 de Março, a figura alta e elegante de Lemper, com um enorme à vontade em palco e o charme que a caracteriza, que faz por vezes lembrar Dietrich, foi falando com o público com grande naturalidade, não deixando de contar que o famigerado bandoneón tem afinal origem alemã. Inventado por um comerciante de instrumentos alemão, Heinrich Band (1821-1860), o bandonion foi originalmente destinado a música sacra e à música popular da época, em contraste com o seu predecessor, a concertina alemã (Konzertina). Navegadores alemães e trabalhadores e emigrantes sazonais italianos
levaram o instrumento com eles para a Argentina nos finais do séc. XIX, onde foi incorporado na música local, tal como o tango. Astor Piazzolla, o “pai” do nuevo tango, incluiu-o desde cedo nas suas composições, em conjunto com o violino, a guitarra eléctrica, o piano e o contrabaixo, os quais constituíam o seu alinhamento instrumental preferido, utilizado na célebre banda Quinto Nuevo Tango. Lemper não deixou também de referir o seu encontro com Astor Piazzolla no início dos anos 90, em Paris. Ute Lemper nasceu em Münster em 1963. O seu pai era banqueiro e a sua mãe cantora de ópera. Começou a ter aulas de piano e dança aos 9 anos de idade, prosseguindo a sua formação musical e teatral em Salzburgo, Colónia, Berlim e Viena. Iniciou a sua carreira nos palcos aos 15 anos, trabalhando em bares de jazz e piano. Passou dois anos no Staatstheater Stuttgart, representando em peças de Fassbinder e Checkhov. Em 1983, Andrew Lloyd Weber ofereceu-lhe um papel na produção vienense de Cats o qual desempenhou durante um ano. Em 1985, fez o papel principal no musical Peter Pan em Berlim. No mesmo ano, descobriu Kurt Weill e um ano mais tarde conheceu Jérôme Savary em Estugarda, que a convidou para o papel de Sally Bowles numa produção de Cabaret a levar à cena em Lyon, Düsseldorf, Roma e Paris, desempenho que lhe valeu o Prémio Molière na produção de Paris, no Théâtre Mogador. Em 1987, Ute representou e cantou num espectáculo baseado na vida de Kurt Weill em Nova Iorque, que deu origem à sua primeira digressão mundial. Participou também numa série de filmes, nos papéis de Rainha Marie-Antoinette em L'Autrichienne de Pierre Granier-Deferre,
Ceres em Prospero's Books de Peter Greenaway e Alberta em Prêt á Porter de Robert Altman (no qual apareceu nua na cena final do filme, grávida do seu primeiro filho Max, nascido em Maio de 1994). Na Alemanha, a sua carreira já não seria tão bem sucedida, atingindo o seu ponto mais baixo em 1992, quando fez o papel de Lola no filme Blue Angel de Peter Zadek, no qual não foi considerada suficientemente sexy. Profundamente magoada, deixou a Alemanha trocando-a por Paris, Londres e mais tarde Nova Iorque, onde não apenas foi reconhecida, mas onde formou família com David Tabatsky, um actor e comediante americano. A sua participação nos musicais Cabaret e Chicago, valeram-lhe o prestigiado Prémio Laurence Olivier para Melhor Actriz num Musical. Ute Lemper cantou também The Michael Nyman Songbook e o repertório de Edith Piaf e Marlene Dietrich. A versátil e multi-talentosa Ute cantou ainda Os Sete Pecados Mortais (Brecht / Weill/ Balanchine) com a London Symphony Orchestra dirigida por Kent Nagano; foi bailarina principal em La Mort Subite, um ballet criado para ela por Maurice Béjart; exibiu as suas pinturas em Paris e Hamburgo em 1993; escreveu artigos para os jornais Libération, Die Welt eThe Guardian; publicou o seu primeiro livro, Unzensiert (Não Submetido à Censura), em 1995; gravou, entre outros, os álbuns Crimes of the Heart (1991), Ute Lemper Live (1991), Espace Indecent (1993), Punishing Kiss (2000), com novas canções compostas para ela por Elvis Costello, Tom Waits, Philip Glass e Nick Cave, Blood and Feathers (2005) e compôs todas as canções do seu último CD: Ute Lemper: Between Yesterday and Tomorrow (2008).
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As cores de um negro desejo Antønio Falcão Em 2004, quando os Nouvelle Vague apareceram no adro – essa banda francesa de rapazes e raparigas liderada por Marc Collin e Olivier Libaux – ficámos logo a trautear aquelas músicas que fazem parte do nosso património inatingível e que reconhecemos de imediato num piscar de ouvido. Bem vivas na juventude aí tínhamos de novo os Joy Division, os New Order, os Clash e toda essa panóplia que percorreu o final dos anos 70 e os preliminares dos 80 e que abrangeu estilos desde o punk à new age, não se chamasse o projecto exactamente assim. Mas agora as canções estavam cheias de frescas paisagens, de ritmos tropicais e despojadas daquela fúria da garagem e dos clubes escondidos nas caves londrinas. E, apesar da confusão, ficámos assim, em enlevo, a pensar na verdadeira razão de tudo aquilo, se era um trato delineado para o sucesso comercial ou a resposta a uma nostalgia latente, como a nossa, composta na necessidade extrema de conviver com o passado de olhos postos numa outra época, só para nos dar cabo do juízo. Uma época a precisar de ajustes e de se incendiar com uma explosão vivida. Já não eram as bandas pardas de cabelos em pé a progredirem nos palcos da nossa memória mas uma renovada vivacidade cheia de continuada dolência. A coisa pegou e alguns dos temas eram até melhores do que os originais, na sua maneira de criarem menos óbvia uma nova sonoridade. Bossa Nova, diziam eles. A receita era simples: juntar as canções mais indie dos anos 80 e abrir a janela, deixando entrar ventos que lhes alterassem os cromossomas. Se não eram melodias já familiares, como para os que cresceram nessa época, eram para as novas gerações um bilhete directo para o passado, e para uma descoberta cheia de nódulos e de histórias. Depois de explorado o quinhão angloamericano e percorrido os palcos europeus em catadupa os Nouvelle Vague viraram-se para dentro e lançaram no final do ano passado “Couleurs sur Paris”, trazendo ao lume a face francesa do mesmo registo. E aí temos os Indochine, os Rita Mitsouko ou Les Dogs de braço dado com as chansons naïf electropop de Lio e do dueto Elli & Jacno. Entre Etienne Daho, os Taxi Girl e os Noir Desir e outros da mesma apanha. A coisa pega de novo já com feições próprias e atira um monte de lenha para a fogueira. Lá voltamos nós a postar as músicas antigas no Facebook, sem sabermos por onde começar, se pelo passado, se pelo presente. Para este ano uma punhado de canções portuguesas. Teme-se o caos dentro das nossas cabeças.
Nouvelle Vague “Couleurs sur Paris” Marc Collin Olivier Libaux e variadas vozes
próximo oriente
Hugo Pinto
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China Underground fértil (III)
Actualmente, reina a cultura “do it yourself”. Os artistas vivem agarrados aos “laptops” onde criam e partilham a música que fazem. São muitas as edições de autor, comercializadas nos bares onde a música alternativa tem uma audiência, de Guangzhou a Xangai, de Guillin a Hangzhou. O frenesi ultrapassou definitivamente os muros da Cidade Proibida.
Em 1997, Wang Fan assinou aquela que é conhecida como a primeira obra de música experimental não académica feita na China. Além de representar a travessia pessoal do seu autor, hoje, “Dharma’s Crossing” simboliza também a travessia e proeza da própria música experimental chinesa, uma cruzada que ainda prossegue rumo à procura da sua identidade. Dir-se-ia que este é um caminho interminável, uma vez que na sua génese está um verbo que, aqui, designa simultaneamente uma acção e uma natureza: reinventar. Caso para citar um livro famoso: “No princípio era o Verbo...” Yan Jun, um dos autores do ensaio “The Sound of the Underground, Experimental and Non-Academic Musics in China”, escreveu em 2004 que “a característica da nova música chinesa é a ‘reinvenção’”. Num outro texto, incluído no catálogo do festival alemão de música improvisada Frischzelle, Yan explica que, “enquanto no Ocidente se considera que os chineses estão a reinventar sonoridades que já existem, na China, os músicos acreditam que estão simplesmente a reinventar-se a si próprios.” Yan Jun é uma figura ímpar. A revista “New Yorker” chamou-lhe “o genial líder do movimento underground chinês”. Músico, produtor, editor, poeta, teórico, crítico, Yan personifica a hiperactividade e inesgotável talento e criatividade que fizeram e tomaram conta do movimento artístico chinês. A partir da sua base, a editora Sub Jam, em Pequim, Yan Jun é uma espécie de guia prático e espiritual da China alternativa e independente. Numa recente troca de mensagens de correio electrónico, perguntei-lhe como vê o actual estado do fenómeno “underground” chinês. “Há cinco anos, a cena estava a crescer, a experimentar, a inovar e a gozar o efeito ‘novidade’”, diz. “Agora, o tempo é de construir qualidade e encontrar um estilo próprio. Há muitos jovens artistas, todos bastante activos, pelo que não é possível saber o que vai acontecer no futuro”. De facto, a actividade no “underground” chinês atravessa um momento de invejável dinamismo. Tomemos como exemplo a editora Sub Jam: para breve estão agendadas edições de Li Jianhong e VAVABOND (dois nomes que vão passar por Macau no próximo dia 18 de Março); recentemente, a Sub Jam editou trabalhos do próprio Yan Jun e Wang Fan, além de Li Zenghui e dos “internacionais” Toshimaru Nakamura, Nicholas Bussmann e Elliott Sharp. Também neste universo, Pequim é o centro de confluência. A capital é o símbolo máximo do que a China representa no meio artístico contemporâneo: atracção. Das artes plásticas à música, Pequim é um verdadeiro turbilhão de acontecimentos. Mas, à volta, não há apenas “paisagem”. Actualmente, reina a cultura “do it yourself”. Os artistas vivem agarrados aos “laptops” onde criam e partilham a música que fazem. São muitas as edições de autor, comercializadas nos bares onde a música alternativa tem uma audiência, de Guangzhou a Xangai, de Guillin a Hangzhou. O frenesi ultrapassou definitivamente os muros da Cidade Proibida. Mas, ainda que confesse não trocar Pequim por outra cidade chinesa, Yan Jun diz que, presentemente, prefere a cena “underground” de Xangai. Porquê? “É mais simples, mais pura. Em quase todo o lado há jovens que estão a entrar no ‘noise’ e na música rock experimental”. Apesar de os tempos trazerem ainda a marca da novidade e o frenesi ser constante, Yan revela algum desencanto quando se trata de prever o futuro. “Eu não quero saber do futuro. O público mostra-se interessado em tudo, mas não tem paixão por nada. São como turistas. É um tempo de turismo.” Para combater este estado de coisas, Yan tem uma receita que qualquer sábio agricultor não desdenharia para aplicar ao seu estimado subsolo: cuidar das raízes. Assim, o melhor mesmo é voltar aos tempos em que o “underground” era “underground”. “É por isso que quero organizar concertos mais pequenos, em salas onde possa criar um ambiente, algo mais concentrado.” Depois, resta esperar que se reinvente. Outra vez. E outra vez.
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escritos de passagem
Ana Paula Dias
Fai Chi Kei we’re on the road to nowhere Falareis de nós como de um sonho. Crepúsculo dourado. Frases calmas. Gestos vagarosos. Música suave. Pensamento arguto. Subtis sorrisos. Paisagens deslizando na distância. Éramos livres. Falávamos, sabíamos, e amávamos serena e docemente. Uma angústia delida, melancólica, sobre ela sonhareis. J Jorge de Sena, Ode ao Futuro
S
Quando chega a minha vez, a sequência é a mesma. Digo o nome, o ano de nascimento e nada mais. É a segunda vez que me presto a uma experiência destas e digo-me cética em relação a este tipo de atividades. Como Hume, sou tentada a afirmar que não sou capaz de observar ou de me observar senão através de uma perceção e que a humanidade não passa de um aglomerado de perceções diferentes que se sucedem umas às outras num fluxo contínuo e perpétuo. Mas não deixo de ter curiosidade e talvez uma secreta e irracional esperança de que a vida se possa resolver numa destas trocas inusitadas. Sou rato, é incontornável, o ano de nascimento determina-o. Se já casei, sim e não digo mais. Parece-me que apalpa terreno e não está a ir no bom caminho. Acabo por dizer que já não sou casada e em troca obtenho alguns comentários mais ou menos adaptáveis à minha situação presente. Que ainda tenho uma vida amorosa (ainda, diz a jovem tradutora, não sei se em primeira ou segunda mão). Entretanto, e não sei se a sequência é exatamente esta, a mulher começa a falar de algumas coisas efetivamente acertadas em relação ao meu passado recente. A dada altura fala de saúde e faz gestos largos e circulares em redor do seu próprio pescoço. Pergunta se tenho algum
Renné Magritte, Luz Polar
obe-se uma escada escura, depois de passar uma porta de rua em alumínio tipicamente macaense. As paredes sujas estão cobertas de números de telefone, ou pelo menos é o que parece, uma espécie de grafitos a anunciar não sabemos o quê. A porta da casa, no terceiro ou quarto andar, está aberta e recebe-nos uma mulher que pode ter entre quarenta a cinquenta e tal anos. Com os orientais nunca se percebe, as peles lisas, os cabelos escuros, a ausência de rugas. Nada a distingue de todas as outras pessoas com quem nos cruzamos diariamente na rua. Na sala exígua, um altar cheio de imagens de deuses e deusas, uma mesa e um sofá. Sentamo-nos em frente da mulher, os tradutores de lado. Há folhas de papel e canetas em cima da mesa, na parede uma fotografia de um homem, uma mulher e uma jovem rapariga no meio, com um diploma e um fato de graduação. Adivinho: ela, o marido e a filha, no dia em que esta se licenciou. Pede-nos cem patacas a cada, que mete na gaveta do móvel que serve de altar e diz-nos que deveríamos ter trazido fruta ou rebuçados para oferecer aos deuses. Informa que pelo que quisermos perguntar para além do que ela nos disser, teremos de fazer uma oferta em dinheiro, no valor que quisermos, uma nota no chão e outra em cima do móvel. E começa a cantar, virada para o altar, uma canção indecifrável, claro, aparentemente uma oração ou invocação. Fá-lo durante uns dez minutos e depois pergunta qual de nós quer começar. A S. começa, vinte patacas no chão, outras vinte em cima do altar. Lei kiu meng meng a? Ela diz o nome, a seguir o ano de nascimento. Que pretende saber? Qualquer coisa sobre a vida amorosa. Os tradutores, um casal jovem, informam a mulher que não mais se virou para nós e se encontra de olhos semicerrados, do pedido de S. Ela começa a falar rapidamente, gesticulando para o altar, como quem pergunta ou conversa com alguém. Do muito que diz, os jovens apenas reproduzem umas quantas frases simples, numa mescla de inglês e português. Eu e a F. decidimos abandonar a sala, por acharmos que as perguntas da mulher a S. são demasiados pessoais e vamos para a escada conversar, até que chegue a nossa vez. Entretanto, no apartamento ao lado fazem-se obras e há homens a entrar e sair. Brincamos com a possibilidade de o alugar e partilhar uma vizinhança tão especial. Quando a S. sai entramos e o ritual repete-se, com a F. a fazer a doação das vinte patacas. A mulher continua de olhos semicerrados e a falar rapidamente. De vez em quando atira
para cima de um pano umas pedras vermelho escuro polidas, com uma forma semelhante a gomos ligeiramente pontiagudos. Parece dirigir-se às pedras, interpelá-las. Reparo que tem uns dedos mindinhos extraordinariamente compridos, talvez o único traço insólito que a pode associar ao imaginário das videntes ou bruxas. Oiço as palavras que jorram ininterruptas da sua boca e tento perceber, mas claro que só uma ou outra, isolada, remete para um significado conhecido. Tenho pena de não perceber o que os jovens vão reproduzindo distraidamente, eventualmente o sentido geral do que a mulher diz. A F. não chega a fazer nenhuma pergunta. Talvez por influência da “cliente” anterior, a mulher fala de relações amorosas, trabalho, vida, família. Faz algumas perguntas sobre os filhos de F. e o pai deles e vai tecendo os seus comentários, tentando ela também, parece-me, apanhar os fios da meada. Do que sei da vida de F. no geral parece fazer sentido. Alguns conselhos pragmáticos e sensatos, como ir ao ginecologista e tratar da aparência, outros comentários mais surpreendentes, a roçar a profundeza daquilo que é íntimo e pessoal e faz parte do eu biográfico que a cada um pertence e que não esperamos reconhecer num apartamento recôndito do Fai Chi Kei.
problema nas costas. Tenho numa zona simétrica àquela que aponta. Continua a falar-me de saúde e toca em vários pontos realmente surpreendentes, porque se encaixam em factos. Manda-me ir ao médico anualmente. Não falou deste tópico com a F., é a vantagem de ter assistido à sessão anterior e ter um ponto de comparação. Fala-me também em trabalho e em pessoas que me protegem ou ajudam profissionalmente. Outra surpresa positiva. Tece algumas considerações sobre o meu caráter que, estas sim, quero que sejam verdadeiras. Que tenho bom coração, que espalho coisas boas em redor, que tendo a querer proteger os que me rodeiam. Está bem, aqui posso deixar cair o ceticismo e deixar-me levar pela vaidade da autoimagem. Pergunto quanto tempo mais fico em Macau. Responde algo que tento encaixar nas minhas próprias aspirações. Faço uma conta, penso nuns planos a dois ou a três - podia ser. Gostava que fosse assim. Na minha vida, diz, há projetos profissionais que se iniciam e acabam, mas que são sempre seguidos de outros projetos. Também tem sido verdade até agora. Posso trabalhar até aos setenta anos, o que neste momento não é uma perspetiva que me agrade muito. Um último comentário simpático: que mantenha o corte de cabelo, que o pinte enquanto puder e que invista na imagem. Faz sentido para quem não tem marido, como terá depreendido ser o meu caso, mas não deixa de ser verdade que o meu penteado atual se associa à minha vida nesta cidade, nunca o tive anteriormente. Durante todo o tempo, tento perceber onde estão os olhos desta mulher. Não estão completamente fechados, não estão completamente abertos. De perfil, como a vejo, parecem-me cinzentos, mas sei que não são, tem os olhos escuros de uma oriental. Creio que todos nos que ali fomos, dos mais crentes aos mais céticos, gostaríamos que a vida pudesse ser lida assim de forma definitiva numa tarde cinzenta, fria e húmida de Macau, num bairro popular e simpático como este. Gostaríamos que uma senhora inofensiva de idade indefinida, com a fotografia da filha na parede, nos esclarecesse o corpo, a mente, o passado e o que está para vir, nos apaziguasse as ansiedades e nos dissesse que no futuro (que pode ser já amanhã mesmo) alguém nos amará profundamente, o nosso trabalho será gratificante e que a doença não irá corroernos o corpo até nos retirar toda a dignidade. E no entanto, eis esta presença real, uma mulher desconhecida num bairro desconhecido desta cidade que se me atravessou o caminho, que parece materializar num espaço invisível fragmentos de memórias e histórias que são minhas, que percorre o meu mapa biográfico como quem vê um filme numa película antiga e desfocada onde se encontra traçado o itinerário dos meus dias. Quando morrermos todos os nossos anseios serão estátuas subitamente imobilizadas na posição do momento. Mas a esperança prosseguirá imediatamente, no coração de outros, o seu velho sonho interrompido. Macau, 27 de Março de 2011
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Lendo “Macau - O Livro dos Nomes”
Just a perfect day Sofia Pinto Correia Melo
Fernanda Dias À primeira leitura este livro de Carlos Morais José pode parecer o relato poético de encontros com a (uma?) mulher amada, ao longo de deambulações pela trama entrecruzada dos lugares pitorescos. Mas logo uma leitura mais atenta nos leva do título – O Livro dos Nomes – à natureza da mulher evocada. Misteriosa e sem nome, ora amante ora arisca, o autor chama-lhe “meu amor”, mas nada diz para que possamos antevê-la ou sequer imaginála. Poderia até ser entendida como uma metáfora (uma epifania?) da cidade. Porém, à medida que essa entidade feminina se apodera dos lugares invocados como a água toma a forma do vaso que a contém, regressamos ao primeiro poema, “Templo de A Ma”: lembro-me de ti, mãe. Afinal tem nome. Na multiplicidade das suas aparições, a mulher invocada, figura imemorial do culto “matrilocal”, toma o nome do local onde se acoita, onde se esconde, e onde por vezes se revela aos poetas, aos peregrinos, e não menos raras vezes, sob a forma de antiquíssimos artefactos, aos arqueólogos. Muito antes do aparecimento dos cultos da Grande Deusa, o homem vivificou certos lugares atribuindo-lhes um avatar da Terra Mater, fecundidade, fertilidade, multitude de nomes em todas as línguas, que seria impossível enumerar, até hoje presentes, virgens imoladas ou Madalena pecadora. É sabido, para santificar – fecundar – um espaço transforma-se o mesmo em santuário ou tugúrio de uma figura feminina. Esse lugar tornado mítico tornase consequentemente imortal, isto é, indestrutível. Cada poema, conciso como enigma, rigoroso como um mapa, leva-me ainda a outras fábulas, a outros lugares. Lembrame que cada fonte tem a sua nereide, cada torre vetusta tem a sua formosa prisioneira, cada casa assombrada uma menina pálida espreitando nas janelas. Mas também cada seara madura tem uma Ceres reclinada, cada oliveira tem uma Atena coroada, cada arrozal uma Devi Sri abençoando as espigas. E cada arco de lareira tem o perfil da matriz criadora. Em linguagem límpida, estes poemas contam Macau a quem já a conhece, o que é bem mais difícil que contá-la a quem nunca a viu. Cores e formas que nos são familiares revelam a apsara esvoaçante, os passos hesitantes da concubina, ou uma esguia silhueta em blue jeans. Monstruosos empreendimentos podem devorar estes lugares, arruinar a vida que conhecemos: os poemas habitados vivem para sempre. Quem tem este livrinho, pegue nele e leve-o em peregrinação aos lugares nele mapeados, enquanto ainda existem. Busque uma hora tranquila, uma luz propícia, escolha um poema e deixe-o deslizar entre os lábios. Eu escolhi “Casa de Lou Kau”: O vermelho não era das colunas que usavas para te esconder nem do falso pátio onde dançaste. Eram rubis espargidos na tinta amarela dos jasmins. A madeira rubra e incandescente do meu coração trocou-te por um tesouro. Ele está ali, na casa, por encontrar. O coração. Experimentem. Macau 9 de Março de 2011
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Pregões de outras épocas, na velha Lisboa António MR Martins
T
emos de regressar ao início da década de sessenta, pela memória de quem por lá passou e ainda resiste, para serem recordados os últimos pregões entoados nos velhos bairros populares de Lisboa. Nesses idos anos era habitual ver circular vários vendedores, de comércio avulso, que calcorreavam todos os passeios, quando os havia, das ruas, travessas, pracetas e caminhos de locais como Alfama, Mouraria, Madragoa, Bica, Bairro Alto, Graça, Alto Pina e Penha de França, entre outros. Era a vendedora de figos, quem quer figos quem quer almoçar, o vendedor de castanhas, quem quer quentes e boas, as peixeiras de canastra à cabeça, colocada sobre a sua peculiar rodilha, vivinha da costa ou há carapau e sardinha linda, a vendedora de lacticínios, queijo saloio, o vendedor de gelados, olha o gelado, há o rajá fresquinho, o vendedor de fruta, olha a laranja, é da baía, entre vários. Mas também surgiam aqueles que vinham fazer negócio comprando, isto dentro da sucata, bugigangas, coisas usadas e jornais velhos e aí se ouviam apregoar, por exemplo, ferro velho ou quem tem trapos e garrafas para vender? Muitos desses pregões eram esperados diariamente, pelos lisboetas de então, que ansiavam pela chegada do apregoador, com seus respectivos
produtos, a fim de poderem proceder à sua aquisição, às vezes, quase sempre, com a discussão mútua dos respectivos preços de venda. Existiam, também, os vendedores de serviços, como o limpa-chaminés, que normalmente aparecia em grupos de dois, olha o limpa-chaminés. Tempos diferentes dos de hoje onde tudo se vende já empacotado e devidamente diferenciado. Naquelas épocas muitos dos produtos alimentares e de higiene e limpeza eram comercializados de forma avulsa, os líquidos (vinho, azeite, leite, vinagre, petróleo, lixívia, etc.) pelas medidas de capacidade e os sólidos (marmelada, banha, queijo, sabão azul e amarelo, cera, etc.) ao peso, mas também “ao litro” se vendiam o grão, o feijão (de todas as variedades), a farinha, os açúcares branco e amarelo, e demais produtos similares. Ainda me recordo, embora com certa tenuidade, de alguns desses pregões que iam ecoando por essa Lisboa de outras eras e lhe iam oferecendo uma musicalidade contínua e o regabofe sequencial, da procura e da oferta, que sempre nos traz a lume qualquer actividade comercial. Tudo isto são coisas que se guardam na memória de quem as viveu e na história colectiva de um povo, no enriquecimento da sua própria cultura. E já agora, por falar em riqueza, não querem comprar uma cautela?... Está quase a andar à roda!...
É tudo enorme os cogumelos as luzes as escadas a cave repleta de caixas rosas e bonecas perfumes uniformes impecáveis maquilhagens cigarrilhas e rímel plástico e perfume chique chique diria chique pérolas chávenas brincos relógios dourados saltos altos risos toalhas janelas escadas tudo enorme arcadas avenidas rosa casca de ovo canetas de aparo fatos abotoados brilhantina tornozelos finos carteiras fotografias casca de ovo o automóvel de janelas abertas segue pelo sol da tarde onde música de orquestra toca nos fatos de banho e chapéus de abas e óculos escuros e carteiras pequenas refugiadas tardias ou em veraneio em esplanadas e jardins de relva cortada de roseiras cortadas balcões de vidro novidades passa outro comboio na paisagem passa mais um navio passam as andorinhas noutro final de tarde a praia está aqui ainda está mesmo quando não passa já o Sud mas o hotel e outros hotéis de luxo plástico de saias que cruzam as pernas em gestos perfeitos pernas perfeitas toilettes perfeitas chapéus e luvas no meu panamá de areia chique chique pérolas quer um chá quer um aperitivo mulheres perfeitas de sorriso perfeito e homens lustrosos de caneta de aparo de sapatos engraxados relógio engraxado dobram o jornal olham o sol que descreve uma sombra em arco e enorme para mim é tudo enorme hotéis de luxo de empregadas silenciosas de biscoitos quer um chá um aperitivo de brincos discos que tocam nos candeeiros e sofás de almofadas simétricas revistas modernas e automóveis já me esquecia dos automóveis também eles engraxados reluzentes modernos óculos escuros perfeitos sorrisos perfeitos enormes cheiram a plástico a novo a brilhantes caixas de bonecas e perfumes caros duques e princesas de anéis quer um chá quer um aperitivo o telefone as gravatas perfeitas os uniformes quer que atenda senhora revistas cigarrilhas no casino as fontes altivas quer um chá quer um aperitivo e os cogumelos enormes corro pelo jardim enquanto as luzes se acendem e as andorinhas são as mesmas sobre o fim de dia na praia são as mesmas sim nas esplanadas o comboio mas não há perfumes caros não há caixas de bonecas nem navios nem escadas que descem ao paraíso dessas caixas nem uniformes impecáveis que me peguem ao colo. Que me segredem: já não há cogumelos. No Estoril dos anos setenta, existiam ainda os candeeiros metálicos do jardim frente ao Casino do Estoril, em forma de cogumelos pintalgados. De um dos lados das Arcadas, junto à Marginal, encontrava-se o Bazar do Parque, uma enorme loja, ex-líbris do Estoril. Aqui eram clientes, famosos como artistas de cinema ou aristocratas da Europa e onde se podiam encontrar à venda, perfumes, discos, artigos de desporto e muitas outras coisas e, na cave, brinquedos. Brinquedos de todo o tipo, portugueses mas que vinham sobretudo do estrangeiro, como bonecas, carrinhos, comboios e jogos exclusivos. Faz parte das minhas memórias de infância. Aos meus tios Luís e Maria, com saudade desse seu lugar quase perfeito.