ARTES, LETRAS E IDEIAS
h
PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nツコ 2486. Nテグ PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
PORTUGAL A CRISE ETERNA
4 11 2011
h 2
I D E I A S F O R T E S
PORTUGAL JACQUES E A CRISE PORTUGAL ATRAVESSA um dos momentos mais difíceis da sua história, que terá que resolver com urgência, sob o perigo de deflagrarem crescentes tensões e consequentes convulsões sociais. Importa, em primeiro lugar, averiguar as causas. Devem-se sobretudo à má aplicação dos dinheiros emprestados pela CE para o esforço de adesão e adaptação às exigências da união. Foi o país onde a CE mais investiu “per capita” e o que menos proveito retirou. Não se actualizou, não melhorou as classes laborais, regrediu na qualidade da educação, vendeu ou privatizou a esmo actividades primordiais e património que poderiam hoje ser um sustentáculo. Os dinheiros foram encaminhados para auto-estradas; estádios de futebol; constituição de centenas de instituições publico-privadas, fundações e institutos de duvidosa utilidade; auxílios financeiros a empresas que os reverteram em seu exclusivo benefício; pagamento a agricultores para deixarem os campos e aos pescadores para venderem asembarcações; apoios estrategicamente endereçados a elementos ou a próximos deles, nos principais partidos; elevados vencimentos nas classes superiores da administração pública; o tácito desinteresse da Justiça, frente à corrupção galopante e um desinteresse quase total das Finanças no que respeita à cobrança na riqueza, na Banca, na especulação, nos grandes negócios, desenvolvendo, em contrário, uma atenção especialmente persecutória junto dos pequenos comerciantes e população mais pobre. A política lusa é um campo escorregadio onde os mais hábeis e corajosos penetram, já que os partidos, cada vez mais desacreditados, funcionam essencialmente como agências de emprego que admitem os mais corruptos e incapazes, permitindo que com as alterações governativas permaneçam, transformando-se num enorme peso bruto e parasitário. Assim, a monstruosa Função Pública, ao lado da classe dos professores, assessoradas por sindicatos aguerridos, de umas Forças Armadas dispendiosas e caducas, tornaram-se não uma solução, mas um factor de peso nos problemas do país. Não existe partido de centro, já que as diferenças são apenas de retórica, entre o PS (Partido Socialista) e o PSD (Partido Social Democrata), de direita, agora mais conservador ainda, com a inclusão de um novo líder, que tem um suporte estratégico no PR e no tecido empresarial abastado. Mais à direita, o CDS (Partido Popular), com uma actividade assinalável, mas com telhados de vidro e linguagem pública diametralmente oposta ao que os seus princípios recomendam e praticarão na primeira oportunidade. À esquerda, o BE (Bloco de Esquerda), com tantos adeptos como o anterior, mas igualmente com uma linguagem difícil de se encaixar
O SOCIÓLOGO E FILÓSOFO FRANCÊS, JAQUES AMAURY, PROFESSOR NA UNIVERSIDADE DE ESTRASBURGO, PUBLICOU RECENTEMENTE UM ESTUDO SOBRE “A CRISE PORTUGUESA”, ONDE ELENCA ALGUNS CAMINHOS, TENDENTES A SOLUCIONÁ-LA.
nas recomendações ao Governo, que manifesta um horror atávico à esquerda, tal como a população em geral, laboriosamente formatada para o mesmo receio. Mais à esquerda, o PC (Partido comunista), vilipendiado pela comunicação social, que o coloca sempre como um perigo latente e uma extensão inspirada na União Soviética, oportunamente extinta, e portanto longe das realidades actuais. Assim, não se encontrando forças capazes de alterar o status, parece que a democracia pré-fabricada não encontra novos instrumentos. Contudo, na génese deste beco sem aparente saída está a impreparação, ou melhor, a ignorância de uma população deixada ao abandono, nesse fulcral e determinante aspecto. Mal preparada nos bancos das escolas, no secundário e nas faculdades, não tem capacidade de decisão, a não ser a que lhe é oferecida pelos órgãos de comunicação. Ora, aqui está o grande problema deste pequeno país; as TVs, as Rádios e os Jornais são, na sua totalidade, pertença de privados ligados à alta finança, à industria, ao comércio, à banca e com infiltrações accionistas de vários países. Ora, é bem de ver que com este caldo não se pode cozinhar uma alimentação saudável, mas apenas os pratos que o “chefe” recomenda. Daí a estagnação que tem sido cómoda para a crescente distância entre ricos e pobres. A RTP, a estação que agora engloba a Rádio e TV oficiais, está dominada por elementos dos dois partidos principais, com notório assento dos sociais-democratas, especialistas em silenciar posições esclarecedoras e calar quem levanta o mínimo problema ou dúvida. A selecção dos gestores, dos directores e dos principais jornalistas é feita exclusivamente por via partidária. Os jovens jornalistas, são condicionados pelos problemas já descritos e ainda pelos contratos a prazo determinantes para o posto de trabalho, enquanto o afastamento dos jornalistas seniores, a quem é mais difícil formatar o processo a pôr em prática, está a chegar ao fim. A deserção destes foi notória. Não há um único meio ao alcance das pessoas mais esclarecidas e por isso “non gratas” pelo establishment, onde possam dar luz a novas ideias e à realidade do seu país, envolto no conveniente manto diáfano que apenas deixa ver os vendedores de ideias já feitas e as cenas recomendáveis para a manutenção da sensação de liberdade e da prática da apregoada democracia. Só uma comunicação não vendida e alienante pode ajudar a população a fugir da banca, o cancro endémico de que padece, a exigir uma justiça mais célere e justa, umas finanças atentas e cumpridoras, enfim, a ganhar consciência e lucidez sobre os seus desígnios.
Não há um único meio ao alcance das pessoas mais esclarecidas e por isso “non gratas” pelo establishment, onde possam dar luz a novas ideias e à realidade do seu país, envolto no conveniente manto diáfano que apenas deixa ver os vendedores de ideias já feitas e as cenas recomendáveis para a manutenção da sensação de liberdade e da prática da apregoada democracia.
4 11 2011
h
I D E I A S F O R T E S
EDUARDO LOURENÇO “A REVOLUÇÃO NÃO É SOLUÇÃO. O MÍNIMO É O EXERCÍCIO DA DEMOCRACIA. MAS NÃO ERA AQUILO QUE SE ESPERAVA”
DITOS & MITOS Paulo Morais
NO PASSADO DIA 17 de Outubro, num colóquio de homenagem que decorreu no novo Centro Cultural Calouste Gulbenkian em Paris, Eduardo Lourenço, que vive em França há quase cinquenta anos, afirmou que “Portugal e a Europa estão mergulhados na “primeira crise verdadeiramente global” e que a indignação “não é uma arma, é um sintoma”. “Nós somos uma parte dessa crise e, talvez por isso, não estamos tanto em pânico como devíamos estar”. Sobre a crise actual, Eduardo Lourenço usa a imagem de “uma barca, em que nós entrámos com a adesão à Europa. Íamos para um cruzeiro à mesa dos grandes e, de repente, acontece uma coisa monstruosa, um filme de terror. “Não tivemos a responsabilidade. Esta é a primeira crise verdadeiramente planetária. E o planetário aqui quer dizer que desta vez não são os fantasmas só do Ocidente e não estamos no caso da ‘Queda do Ocidente’. O conteúdo dessa crise é que o Ocidente está lá metido na sua totalidade, incluindo os Estados Unidos”, defende o ensaísta português.
A MENTIRA MAIS REPETIDA na vida política portuguesa é a de que os portugueses vivem acima das suas possibilidades, trabalham pouco, ganham demasiado e deveriam poupar mais. Nada de mais errado: este conjunto de mitos constitui um embuste. O primeiro mito é o de que os portugueses vivem acima das suas possibilidades, fazem férias caras e compram bens que não deviam. Um logro. Quando adquirem bens ou serviços, os cidadãos fazem-no ou com o seu dinheiro ou a crédito. No primeiro caso, estão no seu direito. Na segunda hipótese, a responsabilidade será sempre do cliente; ou, se resulta de má avaliação ou ganância por parte da banca, é por esta que deve ser assumido o prejuízo. Muito pelo contrário, quem vive muito acima das suas possibilidades é o Estado, a classe política, os gestores públicos e todos os que comem da manjedoura que é o orçamento do esta-
Quem vive muito acima das suas possibilidades é o Estado, a classe política, os gestores públicos.
CONTRA A INDIGNAÇÃO
Eduardo Lourenço rejeita a indignação como “arma”, sublinhando que “a indignação é um sintoma”, embora confesse a sua admiração pelo ensaísta francês Stéphane Hessel, antigo resistente à ocupação nazi e inspirador do movimento global dos Indignados: “Não sou um apóstolo do caos. Lembro-me muito bem dos caos regeneradores, da mitologia do caos wagneriano e da defesa de que o caos regenera”, sublinha Eduardo Lourenço. O ensaísta defende aliás que “a Europa não tem hipótese nenhuma. Já teve. O problema da Europa é que o século XX foi-lhe fatal”, com duas guerras mundiais.” (...) “A Europa nunca mais se compôs. Destas duas guerras, a mais absurda é a Primeira, que foi uma guerra de puro confronto, de conquista de mercado, não tanto na Europa mas no resto do planeta que estava acessível ao novo tipo de imperialismo ocidental (inglês, francês, alemão e russo)” (...) “Essa herança imperial, o esquema [imperial] romano, deixou de funcionar na Europa, e passou a ser herdado nos Estados Unidos”. O ensaísta nota que “as novas gerações pensavam que íamos entrar numa História dominada, o mais racional possível, e, de repente todas essas linhas nos escapam. Não sabemos como exatamente como é que esta coisa sucedeu”. Eduardo Lourenço acrescenta que, além das explicações historiográficas próprias do século XIX, o “recurso fácil” do pensamento marxista já não é válido. “Karl Marx é o último europeu. Ele até pensava que o país que tinha que fazer a revolução era a América. Mas [a situação] escapou-lhes. Os Estados Unidos estão na situação de comando, mas a centralidade da crise está neles” (...) “A revolução não é solução. O mínimo é o exercício da democracia. Mas não era aquilo que se esperava”, concluiu Eduardo Lourenço.
3
“Não sou um apóstolo do caos. Lembro-me muito bem dos caos regeneradores, da mitologia do caos wagneriano e da defesa de que o caos regenera”,
do. O português comum, esse, infelizmente, tem vivido muito abaixo do nível médio do europeu. O segundo mito, em Portugal trabalha-se pouco. Uma falsidade. Os nossos trabalhadores cumprem horários semanais dos mais extensos da Europa. Estão é mal enquadrados e são mal dirigidos. Na administração pública, a gestão é fraca, os dirigentes, «boys» partidários, são, na sua maioria, habilidosos caciques e organizadores de campanhas, mas péssimos gestores. Acresce que a incompetência se contagia às empresas privadas que vivem de favores do Estado e que, para isso apenas, contratam traficantes de influência. Com dirigentes destes, a produtividade só poderia ser fraca. E ganham demais? Não me parece que salários altos alguma vez tenham sido o problema de Portugal. Pelo contrário, é lamentável que tenhamos chegado a 2011 com um ordenado bruto médio de 900 euros, o que representa um rendimento líquido mensal de 711 euros. Isto é ganhar muito? Finalmente, é agora moda pedir aos portugueses que poupem. Mas vir pedir a um povo, que tem salários de miséria, para poupar é, no mínimo, ridículo e insultuoso. E inútil. Todo este chorrilho de mentiras e moralismos apenas servem para disfarçar a incapacidade dos políticos. O que os portugueses precisam não é de lições de moral, mas sim de governantes competentes e sérios.
4 11 2011
h 4
I D E I A S F O R T E S
UM OLHAR SOBRE A CRISE E O PAÍS
Arnaldo Gonçalves ALGUNS SINAIS VINDOS do país distante revelam a natureza profunda da crise que tomou conta do quotidiano dos portugueses, a qual ultrapassa a mera dimensão económica, ganhando uma crescente vertente social e colocando um enorme peso e sentido de responsabilidade nos actores políticos e sociais. O primeiro sinal é a ausência de contenção no discurso de quem governa, anunciando medidas num dia, complementando-as num outro, num tom de alvoroço e de alarme nacional que trará o contrário daquilo que procura: uma reviravolta nos hábitos despesistas dos portugueses, a poupança e a sobriedade na gestão das famílias, a consciencialização pública da seriedade das medidas de restrição orçamental, uma nota de corresponsabilização aos empregadores, às empresas, aos bancos. O segundo sinal é um discurso de sublevação social, de desobediência civil, trepidante, por parte das associações sindicais, das agremiações de militares e dos sindicatos de polícia. Trata-se, a fazer fé nos testemunhos e nos anúncios já feitos, de um clima pré-insurreicional conducente a bloquear as instituições democráticas, a fazer subir a tensão social e a colocar o país na rota conflituante que se instalou na Grécia. Um movimento que será significativo em termos de protestos nas ruas mas terá poucas consequências no arrepio das medidas e das decisões políticas de fundo. O terceiro sinal é a desresponsabilização do Presidente da República das causas e da génese desta crise económica, social e de valores, como se Cavaco Silva fosse um novato em política, nunca tivesse governado o país, e nada tivesse a ver, enquanto Presidente dos portugueses, com o desnorte e a trapalhada de quinze anos de governo socialista em Portugal, designadamente do último governo do Engº Sócrates. O comunicado do Conselho de Estado de 25 de Outubro, afanosamente anunciado por Cavaco como um momento único de reflexão nacional, displicentemente arremata ao longo de cinco linhas com um apelo serôdio ao “espírito de diálogo construtivo entre as forças políticas e sociais”. A crise vem como sabemos de longe, mas a sua exacta dimensão só a passámos a conhecer agora, quando os dados da execução orçamental puseram a nu um panorama de orçamentos de serviços e institutos públicos mascarados, de buracos orçamentais astronómicos, de gestão calamitosa no sector do Estado e na Região Autónoma na Madeira. Situações que deveriam empalidecer de vergonha os seus causadores mas que se continuam a passear como se nada fora com eles. Falta-nos saber a exacta situação da gestão financeira dos municípios, o que provavelmente só acontecerá quando os actuais responsáveis do poder local cessarem funções, para completar este rol trágico. O mote do “servir as populações” tem servido em democracia para encapotar gestões ruinosas, processos de enriquecimento pessoal de que os casos de Valentim Loureiro e Isaltino Morais são recentes e tristes exemplos. É difícil neste panorama negro instilar confiança ao país, convencer as pessoas da seriedade dos propósitos do governo e da urgência das medidas. Desde logo, nos cortes
da despesa do Estado que vão sancionar os funcionários públicos no subsídio de Natal e de Férias, agravar o IVA e o imposto municipal, reduzir as deduções das famílias em sede do IRS, bloquear promoções na máquina do Estado. Por outro, no facto inexplicável das fortunas e das empresas não serem tributadas adicionalmente e forçadas a partilhar os custos da contenção e dos sacrifícios do país. Não encontro do ponto de vista dos princípios e do programa do PSD uma única razão e explicação para esta disparidade redistributiva. Como se os empregadores, os ricos e os poderosos fossem as vítimas da situação e a classe média e os trabalhadores os fautores. Há aqui um manifesto erro estratégico que espero que possa ser corrigido – ainda - em sede de discussão, na especialidade, do Orçamento de Estado. Vivemos hoje um tempo de desconfiança e rebelião contra os políticos. Houve-se um pouco por todo o lado que todos são ladrões e vigaristas usando a política, que é a mais nobre missão republicana, para se servirem a si próprios. É preciso dizer que esta revolta é justa e tem que ser compreendida e respeitada. É miserável, não encontro outras palavras, que várias centenas de políticos das duas alas da representação parlamentar – esquerda e direita – se venham locupletando com subvenções vitalícias no valor de milhares de euros por uma dezena de anos de serviço à República. Não conhecendo exactamente a lista total dos beneficiários é afrontoso que várias figuras públicas que me habituei a ouvir com atenção – Cavaco Silva, Ângelo Correia, Jorge Coelho, Ferreira do Amaral. António Vitorino – tenham a suprema lata de invocar direitos adquiridos para justificar a manutenção desta situação aberrante, ao mesmo tempo que nos continuam a torpedear, no espaço noticioso, com prédicas de ética republicana, virtude política e conselhos aos partidos. Como sair desta situação preocupante? Há duas atitudes possíveis por parte de quem pode influenciar o curso dos eventos e minorar este panorama negro de queda no abismo. A primeira é dizer que Portugal se deve desvincular das medidas da Troika, revogar mesmo o acordo celebrado com as instituições financeiras internacionais, que o Estado deve prosseguir uma política keynesiana tomando conta das empresas falidas, nacionalizando os bancos, tributando fortemente os rendimentos do capital, cortando o acesso de investidores privados internacionais às oportunidades de negócio. Numa palavra, o país deveria fechar as suas fronteiras, assumir uma política económica proteccionista, cortar laços com a Europa; eventualmente sair do Euro. A segunda é negociar com a oposição democrática o Orçamento possível para o novo ano de 2012, ter a coragem de dialogar com seriedade, abertura, e responsabilidade, eventualmente redistribuindo a carga dos cortes pelo lado da despesa não só pelos contribuintes mas pelas empresas, pelas pessoas colectivas e pelos bancos. Trata-se de uma medida socialmente justa que prestigiaria o governo e o aproximaria dos cidadãos, minimizando o clima de desconfiança e descrença que se instalou. Estou convencido que salvo o grupo dos indefectíveis que rodeia Sócrates e o seu bando, a maioria dos deputados do Partido Socialista e o seu Secretário-Geral, estão dispo-
É afrontoso que várias figuras públicas que me habituei a ouvir com atenção – Cavaco Silva, Ângelo Correia, Jorge Coelho, Ferreira do Amaral. António Vitorino – tenham a suprema lata de invocar direitos adquiridos para justificar a manutenção desta situação aberrante, ao mesmo tempo que nos continuam a torpedear, no espaço noticioso, com prédicas de ética republicana, virtude política e conselhos aos partidos. níveis para esta aproximação e negociação. Independentemente das divergências políticas e das agendas partidárias, Pedro Passos Coelho e António José Seguro percebem que estão num dilema: ou ganham agora o país e a confiança dos portugueses ou a situação se
detereorá tornando-se incontrolável. Neste diálogo contam apenas com eles dois (e com o país). Cavaco Silva é parte do problema e já não parte da solução. Acho que vale a pena dar-lhes essa oportunidade e fazer-lhe esse apelo.
h
4 11 2011
P U B L I C I D A D E
5
4 11 2011
h 6
C H I N A C
Província de Yunnan
NAS ALDEIAS
António Graça de Abreu A NORTE DA EXCELENTE CIDADE DE LIJIANG, NA ESTRADA QUE CONDUZ À MONTANHA YULONG XUESHAN E AO TIBETE, ENCONTRAMOS A ALDEIA DE SHUHE HABITADA SOBRETUDO PELOS NAXIS, A MINORIA NACIONAL QUE CORRESPONDE A 60% DOS HABITANTES DO POVOADO. Oriundos de populações nómadas do Tibete, os naxis foram-se sinizando ao longo dos séculos mas conservam muitas das características étnicas que os fazem diferentes. Povo de agricultores e mercadores, mantêm um porte altivo, são os senhores, ou melhor, as senhoras da terra porque entre os naxis as mulheres têm tradicionalmente mais poder, mais capacidade e qualidades muito mais buriladas do que as do sexo masculino. Com fundamentos alicerçados numa antiquíssima sociedade matriarcal, os naxis mantêm velhos hábitos. Os homens submetem-se, de bom grado, à maior capacidade e determinação das mulheres que podem inclusivé ter simultaneamente por companheiros vários parceiros, para contentamento de todos. É coisa rara na China e no mundo. Noventa quilómetros a nordeste das aldeias naxi de Shuhe e Baisha fica o povo-
Senhoras do Lago”, as mulheres mosuo do lago Luguhu. Regressemos a Shuhe. Face ao recente incremento do afluxo tu-
são de adobe, pedra e madeira, apenas com um ou dois sobrados. As portas, em madeira lavrada com desenhos de animais e caracteres chineses de bom augúrio, estão abertas e pode-se entrar. O dia
yuans por noite, cerca de doze euros. Encontro um maltratado templo budista do lamaísmo tibetano onde é proibido tirar fotografias, mas como não se encontra ninguém lá dentro, fotografo à
Pendurados, encontram-se os retratos bem apessoados de Marx, Lenin, Ma e das ditaduras comunistas do passado, equilibradamente bem d ado de Luoshui, junto ao esplendoroso lago Luguhu, habitada pelos mosuo, um ramo da minoria naxi e aí são por demais as mulheres que tudo podem e mandam. Luoshui é visitada diariamente por centenas e centenas de turistas chineses han, os chineses propriamente ditos que se surpreendem, assustam e encantam com
rístico destinado a Lijiang, umas tantas aldeias em redor da cidade resolveram alindar-se e oferecer-se como alternativa de charme e sossego face às multidões de chineses que inundam a famosa Lijiang. Meia dúzia de quilómetros de autocarro e chego a Shuhe. A aldeia está encaixada num vale fértil juntos aos montes Jun-
a dia faz-se nos pátios interiores, com alpendres, mobiliário ao ar livre, pequenos lagos, plantas, flores, espigas de milho e malaguetas a secar ao sol. Não há carros, a aldeia é toda em ruas pedonais com grandes lajes de pedra a atapetarem o solo e somos tantos os turistas como os que se podem contar nos dedos de
vontade. Que Buda me perdoe… Passo por uns tantos restaurantes e bares, com bom aspecto, há lojas aqui e acolá com as chinesices do costume e bonitos batiks — panos pintados característicos da província de Yunnan —, mais uns tantos produtos típicos da região e artesanato local. Compro uma original
Entro numa loja de vídeos e fotografia. Lá dentro, sentado numa poltro o presidente Mao Zedong. Em tamanho natural, é uma fi tanto poder feminino. A Profª. Tânia Ganito, antropóloga e docente no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, após quatro anos de vida e estudo em Pequim, elaborou uma interessantíssima tese sobre os mosuo e a SIC fez há uma dezena de anos um documentário para o seu principal canal de televisão sobre “As
bao. Outrora, as caravanas da Rota do Chá passavam por aqui, rumo à Birmânia e ao Tibete, 3.000 cavalos por dia e Shuhe era bem mais importante do que é hoje. A água corre das montanhas e o lugar é atravessado por vários ribeiros chilreantes cruzados por antigas pontes de pedra. Tal como em Lijiang, as casas
uma só mão, o que é muito agradável, a povoação parece ser só nossa. Lá mais para o Verão virão as grandes molhadas de chineses. É tempo de deambular pela aldeia. Há pequenas estalagens com algum conforto para acomodar o viajante, 100
cabeça de um guerreiro antigo, pequena, talhada em madeira leve como balsa. Entro numa loja de vídeos e fotografia. Lá dentro, sentado numa poltrona, sorridente, fumando o seu cigarrinho, para minha surpresa encontro o presidente Mao Zedong. Em tamanho natural, é uma figura de cera impecavelmente mo-
4 11 2011
h
R Ó N I C A
DE SHUHE E BAISHA
delada, só lhe falta falar. O empregado da loja traz-me um isqueiro e diz-me para eu acender o cigarro que está nos dedos do grande timoneiro, do ditador do regime do absolutismo vermelho. O
à montanha do Dragão de Jade, com os seus 5.550 metros de altitude, glaciares e neves eternas mesmo em frente. Antes da invasão mongol, no século XIII, Baisha que significa Areia Branca por causa das
palácio Nurbur Linka, residência de Verão do Dalai Lama. Na saída norte de Baisha vejo um portão em madeira lavrada que conduz a uma pequeníssima pousada que dá pelo nome
7
decoração de parede sobre as cabeceiras das camas. Pendurados, encontram-se os retratos bem apessoados de Marx, Lenin, Mao Zedong, Zhou Enlai, Stalin e Engels, seis distintas figuras do marxismo
ao Zedong, Zhou Enlai, Stalin e Engels, seis distintas figuras do marxismo distribuídos, dois alemães, dois russos e dois chineses. Só visto. naxi de serviço à loja tirar-me-á a fotografia. São dez yuans. Sento-me ao lado de Mao Zedong. Digo-lhe meia dúzia de palavras sobre a evolução do comunismo na China. O velho Mao, a meu lado com um aspecto ainda meio jovem, mais novo do que eu, parece estar bem informado e continua a sorrir. Falo-lhe então nos
areias do pequeno rio que a atravessa, foi a capital do reino dos naxis. Depois, séculos e séculos de decadência diminuíram-lhe a importância e a dimensão. O lugar mais visitado da terra é um templo budista onde se encontram, na obscuridade dos pequenos pavilhões, dois frescos tibetanos com inúmeras figuras
de Hotel Canto do Céu. Entro. Que lugar magnífico!... Tem apenas três quartos que estão vazios. Peço autorização para ver. O maior, ao fundo, ocupa uma ala inteira da construção, é uma casinha-apartamento e tem cozinha, um quarto de banho bem equipado e um quarto enorme como eu jamais imaginara
e das ditaduras comunistas do passado, equilibradamente bem distribuídos, dois alemães, dois russos e dois chineses. Só visto. Não posso cogitar o que será dormir junto aos Himalaias, numa extraordinária aldeia de montanha, numa imensa
ona, sorridente, fumando o seu cigarrinho, para minha surpresa encontro figura de cera impecavelmente modelada, só lhe falta falar. malefícios do tabaco. Mao, que viveu até aos 83 anos e era um fumador inveterado, não pára de sorrir. Faço de conta que lhe acendo o cigarro, sou fotografado e despeço-me, tive muito gosto em vê-lo. Sigo para a aldeia de Baisha, seis quilómetros mais a norte. É parecida com Shuhe, um pouco mais pobre, encostada
da hagiografia budista. São da dinastia Ming, devem ter sido pintados por volta do ano 1500 e, embora muito propagandeados pelas brochuras turísticas que exaltam o lugar, não me impressionaram sobremaneira. Tenho a sorte de conhecer Lhasa, as fabulosas gravuras e frescos dos murais no interior do Potala ou no
algum dia contemplar. Não pelo quarto propriamente dito, com cortinados vermelhos, alguns adereços tibetanos, almofadas e sofás, o televisor, mais uma cama ou sucessão de camas que parecem confortáveis quase ao nível do chão, aí com dois metros por seis, mas o conjunto surpreende pela originalidade da
cama sob o olhar atento e circunspecto de tão ilustres e problemáticas figuras da História. Poderemos talvez conjecturar tratar-se apenas de uns avôzinhos falecidos há já muitos anos que ali estão, não para provocar horrendos pesadelos, mas simplesmente para embalar os nossos elevados e enlevados sonhos.
4 11 2011
h 8
P R I M E I R O B A L C Ã O
luz de inverno
Boi Luxo
À PROPOS DE LÂMINAS
NADA COMO um movimento largo de espada. Como uma rajada de vento, mais ou menos forte, o seu slash é ao mesmo tempo histórico, límpido e aquático. O golpe de espada é o modo mais líquido de matar ou ferir um oponente, talvez o mais limpo, certamente o mais belo, quer este se inscreva numa linha vertical, horizontal ou diagonal. O golpe de espada exibe uma finura que não tem qualquer paralelo em outras expressões de combate. É quase grosseiro lembrar aqui a impessoalidade e a distância com que actuam as armas de fogo, seja qual for a sua dimensão. Do pequeno revólver ao bombardeamento aéreo, o estrondo e a impessoalidade retiram a este tipo de ataque qualquer peso na comparação com o movimento liso e cortante da espada. É a diferença entre a esgrima e o tiro ao alvo. É a diferença, no cinema (talvez a única diferença significativa), entre o western americano e o filme de samurais japonês ou alguns wuxia chineses onde o uso das artes de espada tenha mais importância. O som que destes dois tipos de armas se desprende é, também, muito diferente, o da lâmina infinitamente superior e mais fino em comparação com o som rude e grosso da arma de fogo. Concedo pouco, igualmente, na comparação com o manejo da espada, à possível beleza da caça, actividade historicamente rica e coloridíssima mas hoje quase sempre coberta de ridículo – desde a sua expressão mais aristocrática à sua forma mais popular. É no cinema japonês e em algum cinema chinês que vamos encontrar exemplos mais delicados do emprego destas artes marciais. Excluem-se aqui neste texto, que despreza intenções enciclopédicas, referências a tipos de filme que não recolhem junto do seu autor particular favor, como o filme ocidental de aventuras com espadachins - piratas, mosqueteiros ou cavaleiros medievais. Encontro um filme que poderá contrariar muitas destas considerações, mas integro esta inconsistência com a naturalidade de um golpe horizontal de uma pequena espada, uma tantō, por exemplo, e com a certeza de que a constância e a coerência são armas de
imbecis. É Pistol Opera, do matreiro Suzuki, um filme em que as pistolas da assassina protagonista são manejadas quase como se de espadas se tratassem. É na mesma linha que lembro que já aqui foi apresentado um texto em que se chamava a atenção para a importância de se ter um tiro preferido. Foram poucos os realizadores japoneses famosos que escaparam ao apelo da espada. Além disso, os exemplos de realização de filmes populares de aventura com espadachins são, como é muito sabido, incontáveis - os seus praticantes de tipos muito diferentes mas unidos, contudo, no prazer e na eficiência do corte. Há um exemplo maior muito recente. De Takashi Miike estreou, em 2010, 13 Assassinos, um filme com a arrogância necessária aos tempos de hoje. Se mais não me estendo sobre ele é porque merecerá em breve um texto completo. Do seu novo filme de samurais, Hara-kiri, Morte de um Samurai, não tenho ainda notícia suficiente. Exemplo comovente do apelo deste tipo de filmes é Gohatto, de Oshima. Foi preciso esperar até ao fim para que este realizador fizesse um filme tão “japonês”. Fê-lo de um modo lunar, teatral (como muitos outros dos seus filmes) e esta sua “cedência” é talvez a melhor homenagem que poderia ter feito ao género, mesmo que, rigorosamente, este filme, que é essencialmente um filme sobre shudo, não tenha praticamente cenas de combate a sério. Há o plano final em que Kitano, de um golpe, corta uma árvore e há o aspecto moderno de todo ele. Para o espectador ocidental Akira Kurosawa foi, durante muito tempo, o realizador responsável pela difusão internacional do género japonês de espada. São muitos os exemplos de filmes seus deste tipo mas nunca é demais lembrar que é em 7 Samurais e em Yojimbo que vamos encontrar alguns dos golpes mais insolentes, mais arrogantes e mais gingões (também alguns dos mais inúteis) que o cinema asiático produziu - neste caso através de Mifune e do seu estilo aragoto de representação. Outros realizadores importantes, e famosos, filmaram jidaigeki e
chambara onde não faltam espadas, como é o caso de Mizoguchi ou Kitano. Mas estes são filmes em que não há muitas lutas e são filmes um pouco excêntricos ao género. Baste-nos, ao invés, trazer aqui como sugestão a obra de três realizadores, entre outros possíveis (e para que isto não se pareça uma lista) para podermos saciar o nosso desejo pelo golpe e pelo sangue: Hideo Gosha, Masahiro Shinoda e Kihachi Okamoto. Nos filmes destes encontraremos um conjunto vastíssimo de situações, de tipos de golpes, de tipos de atitude, de cenários naturais e cenários exteriores onde o vento e a chuva dificilmente lavam a fúria e a vertigem de que estes homens e mulheres se vêem assombrados. Neles encontraremos a desconfiança nas instituições, a perda de identidade, o desequilíbrio social, o vinho, a insolência em relação ao futuro, as mulheres, a insanidade, o desejo de agradar, a venalidade, a arrogância, a decadência da era guerreira, o jogo e o vento, a bondade e o ideal cavalheiresco e, sobretudo, o traçado incessante da espada. Daibosatsu toge (The Sword of Doom), 1966, de Kihachi Okamoto, é exemplar. Nele existem golpes simples nas costas de um peregrino inocente, um golpe simples em diagonal, o primeiro do filme; uma sucessão brutal de golpes contra um grupo que emboscara o protagonista da história; golpes quase imperceptíveis disferidos com um movimento que vem directamente do desembainhar do sabre; uma sucessão intensíssima de golpes e de mortes durante as últimas cenas deste filmes grotescamente pouco conhecido. Uma outra fonte febril e inesgotável de golpes reside nas inúmeras séries de filmes de chambara, e produtos semelhantes, um tipo de produção em que o Japão sempre foi, e continua a ser, fértil. Estes filmes populares vivem na obrigação de mostrar, a intervalos regulares, cenas de combate (como acontecia com o filme erótico/pornográfico, em que as cenas de nudez deviam ocorrer de cerca de 8 em 8 minutos). Muitas vezes, no seu final, há uma grande cena de luta – como no cinema erótico/pornográfico há uma grande cena
orgiástica ou no filme de gangsters há cenas violentas prolongadas que rematam o seu enredo. Trata-se assim, de um tipo de filmes em que o uso da espada é copioso e onde, para que se não crie um cansaço na série, os seus autores tentam criar a maior diversidade possível de situações e golpes. Não me estendo porque outro texto se ocupou já com mais detalhe de algumas delas. Talvez a mais conhecida seja a de Zato Ichi o massagista/espadachim cego, a série mais importante da história do cinema japonês com 25 filmes, um deles realizado por Kihachi Okamoto, outros por Hideo Gosha e Shinoda, entre outros nomes de destaque. Juntam-se à série o filme Zato Ichi 1989, do próprio Shintaro Katsu (o seu actor) e o filme de Kitano de 2003. Fonte segura de golpes são os filmes de Hanzo, the Razor, protagonizados pelo actor dos Zato Ichis, o supra referido Shintaro Katsu. Outras séries que preenchem o mesmo tipo de interesse são: - Os 6 filmes de Lone Wolf and the Cub; - A série Bando de Assassinos, 8 filmes realizados entre 1962 e 1966; - As Aventuras de Kyoshiro Nemuri, Espadachim (também uma longa série de 21 episódios), as histórias de um espadachim marginalizado pela sua condição mista – filho de uma ligação ilícita entre um missionário católico português e de uma japonesa (filho da Missa Negra, nas suas palavras); - A série do Morcego Carmesim - Yoko Matsuyama/Oichi numa versão feminina de Zato Ichi produzida pela Shochiku (Zatoichi é da Daiei). Esta série, que durou apenas 4 filmes (1969-1970) consolidou a figura da mulher espadachim vingadora que vamos encontrar depois nas duas instalações de Lady Snowblood (já por estas páginas largamente admirada) e, também na muito mais recente curta série das Azumi. Quem sente inclinação para este tipo de narrativas nada deve temer. Alain Silver, no seu livro The Samurai Film, edição revista em 2004, lista mais de 550 filmes deste tipo.
Festival de cinema de Viena anuncia palmarés O FESTIVAL DE CINEMA DE VIENA, Viennale 2011, terminou esta quarta-feira com o anúncio do palmarés. “Der Prozess”, de Gerald Igor Hauzenberger, foi o grande vencedor do festival ao arrecadar dois galardões, o de melhor documentário e melhor filme exibido durante o festival. Ao contrário dos outros festivais de cinema, a Viennale não se distingue pela programação competitiva, entregando apenas quatro prémios. Na secção principal, o “Wiener Filmpreis, entregue pela Câmara de Viena e apresentado como a montra do festival, premeia um filme de ficção e um documentário austríaco que se tenha estreado no ano do festival. Os realizadores distinguidos recebem 11500 euros cada um. Na edição deste ano os vencedores foram “Michael”, de Markus Schleinzer, em ficção, e “Der Prozess”, de Gerald Igor Hauzenberger, na categoria de documentário. O documentário Gerald Igor Hauzenberger recebeu ainda o prémio “MehrWERT-Filmpreis”, seleccionado por um júri independente e que distingue um filme austríaco de um jovem realizador, que ganhou com a distinção uma bolsa de dois meses em Nova Iorque, assim como a exibição do filme em Nova Iorque. Na secção principal, “David Wants to Fly”, de David Sieveking recebeu uma menção honrosa. “Yatasto”, filme do realizador catalão David Sieveking, venceu o prémio da crítica internacional, FIPRESCI. O documentário sobre um grupo de jovens num bairro da cidade argentina de Córdoba que sobrevivem ao dia-a-dia reciclando lixo e cartões foi o escolhido do júri internacional constituído por Vasco Câmara, o argentino Diego Lerer, a macedónica Marina Kostova e o austríaco Hans Langsteiner. A segunda distinção internacional, que premeia um filme em exibição na Viennale que sem distribuição na Áustria, foi para “El lugar más pequeño”, da mexicana Tatiana Huezo Sánchez.
“José e Pilar” procura nomeação para os Globos de Ouro O DOCUMENTÁRIO PORTUGUÊS “José e Pilar” vai disputar em Dezembro um lugar nas nomeações da próxima edição dos Globos de Ouro, disse à Lusa o realizador Miguel Gonçalves Mendes À margem de um visionamento do documentário que é também candidato à nomeação dos Óscares de 2012 na categoria de melhor filme estrangeiro, no Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova Iorque, o realizador adiantou que o “private screening” de “José e Pilar” para os Globos de Ouro terá lugar a 5 de Dezembro, em Los Angeles. “Este ano, como há esta situação minha e do ‘Pina’, de Wim Wenders [dois documentários que estão a ser apresentados à Academia para eventuais concorrentes a melhor filme em língua estrangeira], de repente os próprios Globos de Ouro aceitaram essas candidaturas”, disse o jovem realizador português. “Se vão ser efectivadas ou não, essa é outra questão”, lembrou Gonçalves Mendes, à margem do último evento de uma semana de homenagem ao escritor português em Nova Iorque, que também serviu para dar a conhecer ao público “José e Pilar”, numa altura em o documentário luta para entrar no lote de filmes que vão disputar o maior galardão internacional do cinema. O visionamento do filme, para mais de uma centena de pessoas, contou com a presença da presidente da Fundação José Saramago e viúva do escritor Nobel da literatura, Pilar del Rio. O realizador afirma-se confiante na nomeação para os Óscares 2012, o que seria não apenas uma vitória pessoal, mas também “muito bom para o ego do país”. O filme estreia-se em Abril nas salas norte-americanas e até lá irá participar em festivais, dependendo muita do acolhimento pela crítica e pelo público norte-americanos. Mais do que sobre o filme, afirma, a semana em Nova Iorque foi sobre José Saramago. “Era um homem absolutamente extraordinário e é bom que essa memória perdure. O que ele lutou por nós, aquilo que ele nos obrigou a pensar, reequacionar a nossa maneira de estar no mundo, acho que é bom que continue a ser divulgada”, disse Miguel Gonçalves Mendes.
h
4 11 2011
T E R C E I R O O U V I D O
próximo oriente
9
Hugo Pinto
ERA UMA VEZ O ROCK
Evocando, ao mesmo tempo, geologia de culto divino e música de ídolos pagãos, “Cambodian Rocks” foi o feliz título escolhido para o disco que inaugurou a recuperação da memória dos gloriosos anos em que o rock foi rei e senhor no Cambodja. A história do disco começou num autocarro, no princípio dos anos 1990, a caminho dos templos de Angkor Wat. Um dos turistas a bordo, Paul Wheeler, foi apanhado pela música que o condutor ouvia em velhas cassetes. Havia reminiscências de tudo aquilo que, desde os anos 1950 até aos anos 1970, tinha saído dos Estados Unidos, do rock’n’roll ao acid-rock, passando pelo rythm & blues e pelo surf rock. Sob um fundo instrumental assente nos ritmos 4/4 encadeados com os acordes simples e envolventes dos blues, impondo um “groove” tentador, sobressaíam vozes cantando em “khmer”, com as características vogais abertas, muito abertas, por vezes no tom alucinado de Screamin’ Jay Hawkins e em concerto de harmonioso psicadelismo com a música electrizante. Assim que se apeou, Wheeler procurou uma banca que vendesse cassetes, disposto a cantarolar o que tinha ouvido na viagem com a esperança de que lhe indicassem quais as fitas que deveria comprar. Assim aconteceu. Os amigos cambojanos a quem mostrou as cassetes logo lhe disseram que tinha em mãos uma colecção daquilo que, no Cambodja, foi conhecido, em tempos, como a “música de dança” dos clubes nocturnos e das festas que se faziam nas ruas das grandes cidades e em terraços nos topos dos edifícios chiques. Wheeler, norte-americano que trabalhara no Japão e que, antes do regresso definitivo aos Estados Unidos decidiu explorar o sudeste asiático, tinha sido, nos finais de 1970, baixista numa banda punk. Quando chegou a Nova Iorque, não perdeu tempo e mostrou a dois amigos a música que o seduziu a caminho de Angkor Wat. Paul Major e Mike Ascherman, que geriam a pequena editora Parallel World, fizeram das cassetes de Paul Wheeler o disco “Cambodian Rocks”. Quando a compilação foi editada, em 1996, não havia qualquer informação quanto ao nome dos artistas ou das músicas, muito menos sobre a origem ou as datas. Quatro anos mais tarde, a Parallel World lançou uma nova edição das cassetes cambojanas, desta feita acrescentando uma mão cheia de músicas, mas ainda sem qualquer informação que orientasse
a escuta numa determinada direcção. A palavra e a música, no entanto, foram sendo espalhadas e o interesse sobre os cambojanos que mais se pareceram com Janis Joplin, Jimi Hendrix e Pete Townshend não parou de crescer. Hoje, há pelo menos uma dúzia destas compilações que reavivam a música pop cambojana dos anos 1960 e 1970. São, também, mais abundantes as informações sobre os artistas e as canções. A excelente editora “Sublime Frequencies”, que dá particular destaque ao sudeste asiático, tem sido incansável no esforço de deliciar os melómanos mais exigentes e de preferências exóticas. Uma das mais recentes compilações do “rock khmer”, editada em 2010, é “Electric Cambodia: 14 Rare Gems from Cambodia’s Past”, da responsabilidade dos Dengue Fever, a banda de norte-americanos de Los Angeles obcecados pelo reino do sudeste asiático. Todos estes discos trazem à superfície novas pepitas que reflectem luz sobre uma música que, apesar de lembrar tempos áureos, pertence, na verdade, a uma história trágica. A época dourada do pop-rock khmer passou como um fogacho: luminoso, mas fugaz. Em 1975, os Khmer Rouge, os “vermelhos”, comunistas, liderados por Pol Pot, tomaram o Cambodja, então vulnerável e em ambiente de instabilidade devido à guerra que os norte-americanos levaram ao vizinho Vietname. Em quatro anos, os Khmer Rouge foram os responsáveis pela morte de quase dois milhões de cambojanos – um quarto da população –, vítimas da tortura, de execuções em massa e da fome. No estado de terror, as influências ocidentais eram consideradas um mal que era necessário extirpar. Praticamente todos os artistas que ouvimos nas compilações sucedâneas de “Cambodian Rocks” morreram neste período. Poucos foram os músicos, os artistas e os intelectuais que sobreviveram para contar a sua história. Alguns dos que escaparam são alvo da atenção do realizador John Pirozzi, que espera lançar, este ano, o documentário “Don’t Think I’ve Forgotten – Cambodia’s Lost Rock and Roll”. O filme (www. cambodianrock.com) apresenta um país ainda assombrado pelo espectro da guerra e do genocídio, mas traz de volta uma história que, felizmente, ainda não foi completamente devorada pela tragédia do esquecimento.
4 11 2011
h O REINO E O CAVALO 10
B
O
C
A
D
E
C
E
N
40TH HONG KONG ARTS FESTIVAL ABRE COM KEVIN SPACEY NO PAPEL DE RICARDO III
Michel Reis O actor de Hollywood Kevin Spacey foi a grande estrela do espectáculo de abertura do 40º Festival de Artes de Hong, “Richard III”, que arrancou, excepcionalmente, no passado dia 16 de Setembro, no Lyric Theatre da Hong Kong Academy for Performing Arts. Esta moderna, coroada de êxito e aclamada pela crítica super-produção de “Ricardo III” de Shakespeare, produzida pelo Teatro Old Vic de Londres (um dos mais conhecidos e apreciados teatros do mundo do qual Spacey é Director Artístico), BAM New York e Neal Street, no âmbito do The Bridge Project, esteve no Curran Theatre em S. Francisco e encontra-se em digressão mundial, passando, para além de Hong Kong, por Pequim, Singapura e Sydney antes de finalmente aterrar no BAM em Brooklyn. O The Bridge Project é uma colaboração de três anos entre o BAM New York, The Old Vic em Londres e Neal Street (uma companhia de produção de cinema e teatro criada em 2003 por Sam Mendes, Pippa Harris, e Caro Newling), com o apoio de parceiros de produção internacionais seleccionados, entre os quais o HK Arts Festival, Singapore Repertory Theatre, Festival Athens & Epidaurus, Centro Niemeyer Spain, Doha Film Institute, Istanbul Theatre Festival (IKSV) & Istanbul Municipal Theatres, Kay & McLean Productions, Napoli Teatro Festival Italia e SHN-Carole Shorenstein Hays & Robert Nederlander. O espectáculo, encenado por Sam Men-
des, famoso encenador e realizador britânico (Road to Perdition, Revolutionary Road e American Beauty), foi alvo de abundantes críticas entusiásticas nos jornais londrinos. Este empreendimento transatlântico reúne Mendes e Spacey pela primeira vez desde American Beauty, filme pelo qual foram ambos premiados com prémios BAFTA e da Academia. Liderado por Kevin Spacey no papel de Ricardo III, o elenco inclui artistas britânicos e americanos aclamados como Maureen Anderman no papel de Duquesa de York; Haydn Gwynne no papel de Rainha Elizabeth; Chuk Iwuji como Duque de Buckingham; Gemma Jones como Rainha Margaret; e Chandler Williams no papel de George, Duque de Clarence. O magnífico cenário é de Tom Piper e o guarda-roupa avant-garde de Catherine Zuber. O galardoado Spacey representa o papel do famoso vilão de Shakespeare com uma das pernas metidas numa braçadeira de metal e coxeia, amparado por uma bengala. Passada na actualidade, a história estabelece paralelismos com regimes ditatoriais que fazem as manchetes. O crítico do Guardian, Michael Billington, elogiou a “poderosa actuação central” de Spacey. “Sam Mendes surgiu com uma produção moderna, magnificamente límpida e coerente, na qual o protagonista se transforma num arquétipo autocrático”, refere. O crítico de The Arts Desk, James Woodall, escreveu: “Richard está rodeado de lacaios e espectros elegantemente vestidos. Uma evocação da implosão e militarismo de tipo líbio é manifestamente intencional.” Nas notas ao programa, Spacey revela que deixou
de beber e fumar para o ajudar a fazer frente às enormes exigências físicas e emocionais do papel. Spacey participou recentemente nas peças Inherit the Wind, Speed-the-Plow, A Moon for the Misbegotten e Richard II no The Old Vic. Os seus créditos no cinema incluem, para além de American Beauty, Seven, The Usual Suspects, LA Confidential e ainda o recente Horrible Bosses. “Ricardo III” conta a história do Duque de Gloucester, que conspira a sua ascensão ao trono, assassinando os seus próprios jovens sobrinhos. A Inglaterra acaba de passar pela sua mais sangrenta guerra civil, tendo a Casa de York clamado vitória e a coroa à Casa de Lancaster. Tudo indica que a paz irá agora reinar com o Rei Eduardo. Contudo, as sementes do ódio foram semeadas fundo neste conflito de terra queimada, e esta paz assenta no ressentimento e rancor do pós-guerra, os quais não estão nem perdoados nem esquecidos. Ricardo, Duque de Gloucester, irmão do Rei Eduardo, encontra a sua oportunidade nesses tempos de guerra. Embora deformado desde o nascimento, foi determinante na vitória da Casa de York sobre a de Lancaster. Sentindo-se posto de parte agora que cumpriu o seu objectivo, anseia por conflito e vingança. Volta a sua atenção para a criação de uma guerra interna tendo em vista a concretização do seu “desígnio íntimo secreto”: tornar-se Rei de Inglaterra. Ricardo mente, engana e mata para tornar a sua ambição realidade. Neste período de paz, ninguém está a salvo! A personagem de Ricardo III é um dos papéis mais icónicos do cânone de Shakespeare.
Este drama histórico em cinco actos, em prosa e em verso, foi escrito por Shakespeare cerca de 1593 e impresso em in-cuarto em 1597, 1598, 1602, 1605, 1612, 1622, e em in-folio em 1623. Os feitos históricos são quase todos retirados das crónicas de Edward Hall o Halle e de Raphael Holinshed, ambas baseadas, por sua vez, nas Anglicae Historiae (1534) de Polidoro Virgili de Urbino (14701555?) e na incompleta História do Rei Ricardo Terceiro (1513), atribuída a Thomas More. A psicologia e o estilo da peça parecem demasiado elementares para serem de Shakespeare, mas a obra pode muito bem ser sua, se não se pensar no Shakespeare maduro das grande tragédias mas sim no das primeiras tentativas, todavia influenciadas pelos seus predecessores, sobretudo por Christopher Marlowe (1564-1593). O episódio da morte dos jovens filhos de Eduardo, narrado por uma personagem que exerce a função de mensageiro da tragédia clássica, é famoso, e inspirou um quadro muito famoso de Paul Paul Delaroche (1797-1856). É também famosa a exclamação de Ricardo, que procura uma nova montada na batalha de Bosworth: “Um cavalo, o meu reino por um cavalo!” Nota elevadíssima para o Hong Kong Arts Festival, que já nos vem habituando ao melhor que se produz nas áreas do teatro, dança, música e ópera. Apenas uma nota negativa: a inexistência de legendas em inglês, que dificultaram grandemente a compreensão da peça a quem não é native speaker, assim como o seguimento do enredo, para além das más condições acústicas da sala onde “Ricardo III” foi levada à cena.
A
4 11 2011
h
L E T R A S S Í N I C A S
WEN ZI 文子
11
A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS
Se o governo domina o povo, o exército será forte.
CAPÍTULO 170 Lao Tzu disse: A mais alta justiça consiste no governo da nação e no estabelecimento de ordem doméstica, na prática da humanidade e justiça, no espalhar da benevolência e caridade, na criação de leis justas e no estancar de mau comportamento. Os ministros são leais e os camponeses estão unidos em harmonia; em cima e em baixo, uma só mente. Os ministros combinam as suas forças, os senhores locais submetem-se à autoridade central e, nas quatro direcções, todos levam a peito a sua benevolência. Cultivar a rectidão na sede de governo trava inimigos a milhares de milhas de distância; quando se emitem directivas,
todos respondem por toda a terra. Isto é o melhor. Quando a terra é vasta e grande a população, o soberano sábio e os generais bons, o país rico e o exército forte, as promessas honradas e as directivas claras e, no confronto com inimigos os oponentes fogem sem sequer lutar, tal é o melhor a seguir. Conhecer a terra, aprendendo as vantagens dos desfiladeiros, compreendendo as aberrações do governo cruel, examinando as manobras de corpos de batalha, quando há combates e baixas, com sangue a correr por milhares de milhas, cadáveres expostos enchendo os campos, tal é a mais baixa forma de justiça. A vitória ou derrota dos exércitos é ape-
nas uma questão de governo. Se o governo domina o povo e os de baixo são leais aos de cima, então, o exército será forte. Se o povo suplanta o governo e os de baixo se rebelam contra os de cima, então, o exército é fraco. Quando há justiça suficiente para abarcar todo o povo, as obras públicas são as bastantes para responder a todas as necessidades da terra, as nomeações oficiais são adequadas para ganhar os corações dos sábios e bons e o planeamento é capaz de determinar estratégias de menor e maior importância – esse é o caminho da mais alta justiça. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho
O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han. A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.