Hoje Macau Senna Fernandes

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Ant贸nio Falc茫o | bloomland.cn

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Para sempre

Partiu. Mas a mem贸ria e a obra ficar茫o para sempre. O registo de um homem e escritor que amava, sobretudo, a vida.


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II

Henrique de Senna Fernandes 1923-2010

As luzes do horizonte • Habituamo-nos a saber que certos faróis dominam as encostas da terra. Lá em cima uma luz que aclara o tempo. Que tem tanto de meteorologia como de calendário. E avisa quem vem lá. Senão um farol, o sino de uma torre, um quebra-luz. Um tambor. Uma bandeira. Henrique de Senna Fernandes representava o domínio de toda uma comunidade sempre com relutâncias em distinguir de onde vinha. Senna Fernandes era, de todo, a peça que unia o labirinto. Que o endireitava e lhe aprumava as pétalas. Elevando as suas rosas. A sua presença abraçava toda a ideia de um passado. De uma regra de partilha que culminava na união entre os povos. E o mundo fez-se assim. Mais completo. Como quem olha para o Céu e diz: “Só mais um bocadinho.” E esse bocadinho durou 87 anos menos dez dias. Henrique de Senna Fernandes nasceu em Macau, no dia 15 de Outubro de 1923. No mesmo dia, nascia em Cuba o escritor italiano Italo Calvino. O filósofo francês Michel Foucault nasceria exactamente três anos depois. Isto para quem quer acreditar na precisão dos astros, que ditam a personalidade do ser humano e lhe definem o rumo. O que é certo é que todos elegeram a escrita como o seu dever no mundo. Dentro de Senna Fernandes, um rumorejar de realidades diversas que se escreveu nas entrelinhas de uma herança ancestral portuguesa, goesa e chinesa. Que já se prolonga por dois séculos e por muitas gerações. Foi essa álgebra que equacionou e definiu os passos de uma criança e o pôs a crescer num enclave tropical onde a portugalidade moldou a essência do cenário. Uma cidade calma, onde a vida simples acontecia e os governadores desembaraçavam os éditos directamente do seu palácio. Henrique crescia na Praia Grande repleta de juncos e vapores que se alimentaram dos despojos das caravelas. O mar a bater em território intocado ainda sem aterros, sem a abrupta mão do homem. Do outro lado, o interior, a viagem para a China, a pequena distância, na pega de uma tancareira, com passagem fugidia pela Rua da Felicidade, onde outros sentidos se consumiam. O ardor pela escrita começou cedo, aos 11 ou 12 anos, que anunciavam o despertar da puberdade e o remate da inocência. Do pai recebeu a amizade das letras, com o sabor dos livros que lhe despertavam a imaginação e o levavam para bem longe da sua península, nessa altura sem pontes e sem extensões. Aí disciplinou a sua ânsia e alongou o seu mundo. Antes do liceu a atenção de um professor que lhe exaltou as ideias, incitou-o a aprender mais, a ler com entusiasmo e a procurar enredos e esclarecimentos para toda uma vida que badalava como sinos. Depois, a escrita mais a sério, desenfreada, a rabiscar cadernos com histórias que o encantavam. Normalmente com raparigas, que desde pequeno enfeiti-

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António Falcão

çaram o seu traço, definindo toda a trama da sua literatura ainda por nascer. No pano de fundo uma guerra. O Japão a assolar Hong Kong. A família a perder a prosperidade e a escrita a tornar-se o esconderijo de uma brincadeira muito mais séria. O seu olhar a atirar-se para os outros à procura dos seus actores. À procura de falas e de amores proibidos, que os tinha na alma. A misturar vivências, juntando os discordes da sociedade. Entretendo-se com eles, atirando-os ao ar e deixando-os a fermentar dentro de um baú, que se foi enchendo com os seus contos que revelavam muito mais do que uma juventude. Formando, daí para a frente, uma personalidade que foi aprendendo a caminhar à sombra das suas personagens. Marinheiros, dançarinas, homens das leis. Outros fora delas. Depois chegou a vez de Portugal, com o seu deslumbramento. Anos complicados em

Coimbra, a debater-se com as intransigências de um mal amado curso de Direito, mas imprescindível para o seu futuro. Colega de Agostinho Neto, Carlos Wallenstein e do seu conterrâneo Carlos d’Assumpção, que com ele partilhava a ilustre ascendência bem-nascida em Macau. Desse período ficou o espanto e o júbilo das raízes portuguesas. Mais tarde conseguiu formular esse sentimento aglutinando as suas duas origens, dizendo,: “Se Portugal é a minha pátria, Macau é a minha mátria,” sempre com ironia por uma coisa que só se pode rever nas nuvens do céu. Senna Fernandes, apesar de tudo, sabia de onde vinha e conhecia o lugar para onde ia, porque aí tinha nascido. De regresso ao território macaense o Direito deu-lhe a subsistência. Com escritório aberto na Almeida Ribeiro pode delinear o seu rumo com pleno à vontade. A advocacia dava-lhe a liberdade financei-

ra para construir os seus castelos e as suas princesas. Amante da boa vida, partiu para uma carreira dada a experiências e ensinamentos, formando no seu cargo de professor na Escola Comercial Pedro Nolasco - onde seria também director - os andamentos de centenas de macaenses. Onde não faltaram os preceitos que nenhum compêndio sabia descrever. Conhecimentos de uma vida de muitos degraus que complementaram com dedicação a educação dos seus filhos. À parte, ao sabor das ventoinhas no tecto, a sua escrita ganhou toda a consistência. Nos livros plantou os seus amores, a memória de desejos fugazes e proclamou a paixão assolapada pelo ente feminino que o ajudou a definir como nenhum outro a ambivalência do ser macaense com os seus intricados enredos apaixonados que envolviam orgulho, saudade e esperança. Do seu engenho saltaram “Nam Van” e “Mong-Há”, ambos livros de contos e os seus mais brilhantes “Amor e Dedinhos de Pé” e “A Trança Feiticeira”, que ganharam o galardão de ingresso na grande tela do cinema. Figura interventiva na sociedade de Macau, o escritor macaense - distinção que se deveria escrever sempre com maiúscula nunca deixou de apontar o dedo à ineficácia de Portugal na elaboração de um plano de futuro para o território, que deixava passar os seus governadores como quem mudava de casaco. Nunca se importando certeiramente com os alicerces da casa que foi construindo. A família Senna Fernandes, apesar de alguns receios, acreditou sempre em Macau e aqui continuo a viver depois da passagem de testemunho para a China, país que nunca deixou de abraçar a figura da comunidade macaense como vínculo de toda uma história e modelo de uma cultura única no mundo. De tolerância pacífica e interligação memorável, da qual Henrique Senna Fernandes, para além das palavras que o tornaram eterno, foi o verdadeiro paradigma. No homem, na compreensão e na herança que deixa. Senna Fernandes foi dignificado quatro vezes pela administração portuguesa, recebendo a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique (1986), a Medalha de Mérito Cultural (1989) e a Medalha de Valor (1995) concedidas pelo governo de Macau e o título de Grão-Oficial da Ordem de S. Tiago de Espada, recebido das mãos do presidente Jorge Sampaio, em 1998. Seria ainda agraciado, já pela administração chinesa, com a Medalha de Mérito Cultural (2001) e com diversos títulos Honoris Causa, que confirmaram todo o carinho e importância concedidos pelas gentes da sua terra. O advogado e escritor deixa viúva, sete filhos, nove netos e dois bisnetos. Senna Fernandes deixa também obra inacabada e uma imensa saudade em todo o fulgor expressivo de Macau, que do lado de lá da sua encosta nunca deixará de iluminar. Como um farol, o sino de uma torre ou um tambor.


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Henrique de Senna Fernandes 1923-2010

• Florinda Chan, Secretária para a Administração e Justiça “Estou muito triste pelo seu desaparecimento”, disse Florinda Chan ao Hoje Macau. “Macau fica mais pobre. O doutor Henrique foi o meu professor de História. É difícil neste momento explicar tudo o que sinto com a sua falta”, explicou a Secretária para a Administração e Justiça. “Visitei-o nos últimos dias e, apesar dele não poder falar, senti da sua parte uma grande paz e a certeza de ir encontrar um mundo melhor. É para nós todos uma grande perda e creio que a RAEM saberá respeitar sempre o seu nome e a sua obra”, concluiu. • Leonel Alves, deputado e membro do Conselho Executivo da RAEM “Com a morte de Henrique de Senna Fernandes não fica uma comunidade mais pobre, uma literatura mais pobre, uma história viva mais pobre. Macau fica mais pobre na medida em que o Dr. Henrique foi um Homem de referência para vários sectores sociais de Macau, dados os valores humanistas e de multiculturalidade que sempre defendeu e divulgou de forma aberta, sincera e convincente. “Os valores que, afinal, são os valores de Macau. “O seu legado ultrapassa os livros, a advocacia, o ensino ou a intervenção sócio-política. O seu espírito de Homem das letras e cultura, de amor a Macau e às suas gentes continuarão a ser uma importante referência para muitos que com ele tiveram oportunidade de conviver e de aprender, quer nas escolas e nos tribunais, quer nas tertúlias e nas actividades cívicas, ao longo de várias décadas. “A sua presença em Macau, pós 1999, e o optimismo que transmitiu a todos que dúvidas ou incertezas tinham sobre a preservação dos valores da comunidade e, sobretudo, a sua participação em actividades de interesse público, ao contrário de outras vozes de desconfiança ou descrédito, constituem o marco importante da sua personalidade, cuja memória será perpetuada. “A sua independência de espírito, capacidade crítica, amor à terra e o respeito por todas as pessoas independentemente da sua etnia, credo ou opção política devem ser um exemplo a seguir por todos para que, como era seu desejo, Macau seja uma terra cada vez melhor”. • Instituto Cultural da RAEM “Foi com profundo pesar que o Instituto Cultural tomou conhecimento do falecimento do Doutor Henrique de Senna Fernandes, pelo que se deseja expressar à família as mais sinceras e sentidas condolências. “As obras do Doutor Henrique de Senna Fernandes constituem uma importante herança cultural de Macau. As personagens que criou consubstanciam as características da fusão cultural sino-ocidental em Macau. A sua descrição da velha Macau integra a memória colectiva desta cidade. “O Instituto Cultural editou e co-editou várias obras do Doutor Henrique de Senna Fernandes nas línguas chinesa, portuguesa e inglesa. A edição chinesa de “A Trança Feiticeira”, em 1996, conquistou numerosos leitores. A sua adaptação ao cinema obteve grande sucesso dentro e fora da China. Através de uma história de amor que conhece várias vicissitudes, mas que tem um final feliz, o autor retrata vivamente a amizade entre os povos chinês e português, bem como a vida e costumes de Macau na década 30 do século passado. Constitui, sem dúvida, um clássico da Literatura de Macau. “Através do seu incessante esforço de criação literária, o Doutor Henrique de Senna Fernandes expressou o seu profundo e sincero sentimento para com Macau, o que o tornou num emérito Embaixador Cultural de Macau. O passamento de uma figura tão ilustre constitui, na verdade, uma grande perda para a vida cultural de Macau. Acreditamos, no entanto, que o seu amor por Macau e as figuras literárias que criou perdurarão para sempre na memória do povo desta terra”. • Amélia António, presidente da Casa de Portugal A morte do advogado e escritor Henrique de Senna Fernandes constitui uma “perda” para a identidade do território, considerou ontem, em declarações à agência Lusa, a presidente da Casa de Portugal. “É uma perda para a identidade de Macau porque

através da sua acção como professor, escritor e advogado contribuiu para manter a identidade de Macau, para manter a sua diferença”, disse Amélia António. A mesma responsável salientou que a “morte não é menos difícil por ser já esperada” como o era no caso de Henrique de Senna Fernandes, mas prefere destacar o seu papel na sociedade local. “Foi extremamente lúcido nos momentos difíceis da vida colectiva, nomeadamente como advogado, estando sempre ao lado dos seus colegas na defesa do sistema e daquilo que era importante para assegurar o futuro da profissão em Macau”, explicou. Por outro lado, acrescentou ainda Amélia António, Henrique de Senna Fernandes foi sempre uma pessoa de “grande humanidade” que em “escolhas difíceis olhava mais para o futuro do que para os interesses imediatos” como “sempre aconteceu quando estava em causa o ensino em língua portuguesa”. • Manuel Cansado de Carvalho, cônsul geral de Portugal em Macau A morte do advogado e escritor Henrique de Senna Fernandes é uma perda para o território e para Portugal, afirmou o cônsul geral de Portugal em Macau. “É uma perda para Macau e Portugal, não sei porque ordem porque é importante para ambos”, disse à agência Lusa Manuel Cansado de Carvalho. Salientando ter tido a “oportunidade e gosto” de conhecer pessoalmente o advogado e escritor, Manuel Cansado de Carvalho disse esperar que os “portugueses em Macau continuem à altura de pessoas como Henrique de Senna Fernandes”. • Jorge Rangel, presidente do Instituto Internacional de Macau “É uma referência importantíssima que a comunidade macaense acaba de perder. Como professor, escritor, homem público, dinamizador cultural, advogado e mestre de gerações de jovens de Macau, será lembrado como uma das personalidades maiores da história da comunidade macaense”, disse ao Hoje Macau Jorge Rangel. “Tido por muitos como o ‘patriarca’ da comunidade, com ele morre um pouco mais daquela Macau de ontem, "chistosa", "maquista", de que nos lembramos com enorme saudade e cuja memória nos dará sempre alento para enfrentarmos o futuro com confiança”, acrescentou. O Instituto Internacional de Macau tem um livro de Henrique de Senna Fernandes no prelo, sobre o cinema em Macau. No dia do lançamento, ser-lhe-á prestada “uma justíssima e sentida homenagem”. E, hoje mesmo, na sessão de lançamento da obra "Negociações e Acordos Luso-Chineses Sobre os Limites de Macau no Século XIX", recordaremos o seu exemplo e a sua obra. • Rui Rocha, presidente do IPOR A morte do escritor e advogado macaense Henrique de Senna Fernandes “é uma grande perda para a cidade”, considerou ontem, em declarações à agência Lusa, o presidente do Instituto Português do Oriente (IPOR). “É uma figura bastante prestigiada da literatura de Macau e é uma grande perda para a cidade”, disse Rui Rocha, salientando que Henrique de Senna Fernandes António Falcão | bloomland.cn

• Fernando Chui Sai On, Chefe do Executivo da RAEM O Chefe do Executivo, Fernando Chui Sai On endereçou ontem, dia 4 de Outubro, uma mensagem de condolências à família do doutor Henrique de Senna Fernandes, manifestando consternação e pesar pelo seu falecimento, ao mesmo tempo que enalteceu a sua dimensão intelectual, artística, humana e cívica, que lhe valeu o respeito e admiração de toda a população. Chui Sai On salientou ainda que Henrique de Senna Fernandes é um exemplo de referência e de dedicação abnegada ao estudo e promoção da história e cultura de Macau.

III “era actualmente a figura mais importante do panorama literário de Macau em língua portuguesa”. Todos “lamentamos a sua morte”, prosseguiu. Rui Rocha recordou também que a “narrativa e a ficção” dos livros de Senna Fernandes eram bastante ligados “à memória da vida da cidade que muitos de nós não vivemos, mas ficamos a conhecer através dos seus livros”. • Carlos Marreiros, arquitecto A propósito da morte de Henrique de Senna Fernandes, o arquitecto Carlos Marreiros disse ao Hoje Macau: “O Henrique é uma referência para mim porquanto desde a minha infância que o conheço. É um mestre para todos nós. Nunca fui aluno dele mas as pessoas que o foram gostavam dele pelas histórias que ele contava. Ele era um contador de histórias”. Carlos Marreiros salientou ainda que o escritor macaense “tornou-se num escritor importante numa terra onde esta actividade não é lucrativa”. Para o arquitecto macaense, Senna Fernandes “regista com pormenor a alma da comunidade macaense, com as suas qualidades e defeitos. Tirou a radiografia de um Macau antigo e nostálgico. Um Macau secular, uma belle-époque de Macau, desde o fim do século XIX até aos dias de hoje”. “É importante que a memória dele perdure e julgo que não existirão muitos escritores que tenham transportado a sua obra para a tela. Ele adorava cinema”, disse ainda. Carlos Marreiros fez ainda alusão ao seu romance inacabado, “Pai das Orquídeas”, cujas ilustrações “o Henrique queria que eu fizesse, aliás na sequência do que já tinha feito no seu livro ‘Amor e Dedinhos de Pé’, edição de 1988”. A concluir, Marreiros disse ainda que: “É importante tudo fazer para perpetuar a sua obra. Os seus filhos, a sua família, todos nós, incluindo as instituições, temos responsabilidades acrescidas nesse particular”. “Vou incluí-lo na minha exposição ‘Some Smoking Stories’ que vou fazer em Pequim. O cachimbo e a caneta eram amigos inseparáveis do Henrique, por isso, esta será a minha homenagem”, acrescentou. Para Carlos Marreiros, o seu conto favorito é o ‘Chá com Essência de Cerejas’ do livro ‘Nam Van - Contos de Macau’. • Neto Valente, presidente da Associação de Advogados de Macau A morte do advogado e escritor Henrique de Senna Fernandes é um “acontecimento triste” por ser uma referência para a cidade e para quem o conheceu, afirmou ontem à agência Lusa o presidente da Associação dos Advogados de Macau. “É um acontecimento triste para a família e amigos porque Henrique de Senna Fernandes era uma referência do modo de ser de Macau que não é possível substituir”, considerou Jorge Neto Valente ao recordar também que o advogado escritor foi o primeiro presidente da Associação de Advogados de Macau. Neto Valente sublinhou que Senna Fernandes, também decano dos advogados locais, “deixa saudades nas pessoas que os conheceram e nas pessoas que o leram” e que, com a sua morte, se “perde uma memória da Macau antiga que era revisitada por aqueles que o liam”.


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IV Caro Henrique, • Sem ser um crente e ter mesmo uma costela agnóstica, nesta China tão estranha e tão próxima, criamos o hábito de crer que pouco acontece por acaso, como se o caos do universo estivesse sujeito a misteriosas regras e nós próprios não fossemos mais que súbditos de estranhos e insondáveis desígnios. Há 20 anos, no dia 14 de Setembro de 1990, embarcava eu para Macau pela primeira vez quando, no aeroporto de Lisboa, tive a felicidade de ser apresentado a Henrique de Senna Fernandes. Tivemos, desde então, uma relação que começou por ser cordial e, à medida que o tempo passou e o conhecimento mútuo se aprofundou, descambou do meu lado por uma profunda admiração e do teu por uma jovial amizade. Vias tu em mim, segundo me dizias, “um rapaz cheio de talento para escrever em e sobre Macau”; tomava eu como seguro ter a honra de privar com o último escritor de uma cidade lusa na China, cujo desaparecimento constatei amiúde e cuja fulgência descobri muito nos teus escritos, contos, romances e episódios que não te cansavas de narrar sempre que o mundo e as pessoas nos davam algum tempo de privacidade. Foram momentos inolvidáveis que hoje não posso deixar de recordar com a saudade e a dor de quem sente que não fez tudo, que não aproveitou tudo de uma personalidade tão ímpar, sugestão de um tempo ido e outro por vir. Afinal, talvez tu, Henriqu,. compreendesses, no seu íntimo, o que eram saudades do futuro e interpretasses Portugal na sua verdadeira dimensão universalista e boa. Ternura. Aceitação. Amor. Eis os conceitos que na tua obra se exaltam e serão essas as ideias de um ser português que, num exílio de séculos, sempre reencontra na língua a Pátria nunca perdida mas sempre distante. E nas narrativas o lugar onde tudo isso se exprime e une, independentemente da distância, do sangue e das culturas enriquecidas na mescla, na alegria e na tristeza de ser. Eis a tua enorme lição, Henrique. A que eu nunca esquecerei e nunca terei palavras suficientemente grandes e bonitas para te agradecer. A tua partida deixa-me mais sozinho, como se não bastasse a solidão a que a escrita nos devota. Nisso, ouso dizer, seremos irmãos. Viste partir os outros. Da tua geração: o Silveira Machado e o Estima de Oliveira, que tu amavas como eu, eu sei. A vida, por vezes, afastou-nos uns dos outros, mas estiveste sempre próximo. Mesmo quando já não podias falar, chorámos os dois naquela festa do D. José da Costa Nunes, eu por saber que te ia perder e tu por qualquer razão que a razão pode entender, o coração sentir e o corpo desculpar – o corpo desculpou sempre as nossas fraquezas. Mas não te preocupes, meu amigo, deixas um filho que, de outro modo, de outra maneira, segue os teus passos, e muitos amigos, de ti e das tuas obras, que não te condenarão ao olvido. Estarás sempre entre nós. Rezaremos por ti cada vez que a literatura de Macau for evocada, meu si-fu, meu maior, cuja mão encontrei sempre estendida em todos os momentos, mesmo quando os outros ma recusavam. Essa era também a tua grandeza e se choro é mais por mim que te perco e menos por ti, ó homem de vida cheia, homem maior que a própria vida, ó escritor desta terra inominável, sagrada, protegida, abençoada, também através de ti, marcada pelo Nome desconhecido de Deus. Até já, Carlos Morais José

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A carta que nunca escrevi

Henrique de Senna Fernandes 1923-2010

Henrique, a palavra – sempre Luís Sá Cunha

• Um dia ante a solicitação de resumir a literatura francesa do seu tempo, André Gide pensou e concluiu: “De nós todos, só ele sobreviverá”. Falava de George Simenon, o autor de mais de cem livros, quase todos do género policial, criador da figura do inspector Maigret, mais vivo e real na sua enticidade do que quantos personagens por esse mundo fora... O autor dos “Faux monnaieurs”, referia-se ao génio do contador de histórias. O que nós queremos da literatura é o mesmo que queremos da vida: aventura, romance, grande história no cenario de magníficas paisagensd.Se me dessem a regalia de levar um só livro para um longo degredo no deserto, por isso levaria, por certo, “As Mil e uma Noites”... Eis a chama que nos fascinava em Henrique de Senna Fernandes – arquivo vivo e inesgotável de histórias, episódios, personagens da comedia humana da velha Macau, que sobrevivia para nosso deleite ao fluir refulgente do seu verbo evocador, arauto de uma retentiva de memórias que lograva a alquimia de tornar presente o • Alguém disse que morrer é não mais ser visto. Não subscrevo, mas respeito. Henrique de Senna Fernandes não morreu. Não será visto na forma a que nos habituámos a conhecê-lo. Persistem os seus livros, e a Memória, algo que se situa numa inatingível geografia sem coordenadas palpáveis, e que, para mim, se configura numa obscuridade onde se repetem, em planos paralelos, todas as histórias e estórias de Macau. Elas ressumam aos aro-

“morto” passado. Ouvi-lo era como estar nos coxins de Haroum Al-laxide, fascinados sem cansaço com a narrativa hipnótica de Sherazade... por mil e uma noites. A primeira vez que o encontrei, no seu escritório da Almeida Ribeiro, ia para o convidar oarara escrever para a Revista de Cultura do ICM, e passaram-se cinco horas como cinco minutos... Nasceu aí a minha grande paixão, o meu primeiro fascínio por Macau. Henrique era assim, era isto, que é raro – encarnação da alma de um lugar. A força jorrante do seu verbo evocativo, de tão densa e impaciente de exprimir-se, embargava-lhe momentaneamente a voz, mas isso mesmo tinha o poder de mais nos empolgar a atenção, à vivacidade e fluência, nos seus assomos expansivos e suspensões mágicas. Henrique, meu amigo, obrigado por nos ter deixado para a eternidade o retrato dessa “Macau eterna”, uma Macau que te antecedeu mas não no olvido letal, porque se perpetua nas tuas obras escritas. Henrique, “o contador de histórias”: Ficará, para sempre aqui, no coração da cidade

uma praça vazia e uma cadeira vazia, à espera da tua voz. Repiti agora as palavras de admiração (e despedida já...) que te disse em públicoe tive a graça de serem por ti ouvidas: Henrique, meu Amigo, és o símbolo vivo, e o derradeiro, dessa Macau eterna, porque essa esvai-se, esbarronda-se todos os dias sob nossos olhos. E é quando os tempos nos encenam espectáculos como este, que nós mais valorizamos a Memória, intangível fio que entretece os fragmentos do tempo, nos alicerça a identidade que nos salva de perecermos nas vagas letais, de nos descaracterizarmos em amnésias esquizofrénicas. Serás, Henrique, talvez, o abencerragem simbólico daquela Macau eterna... Serás... Mas venha o que vier, por mais espalhafatoso em arquitecturas, mais embasbacante em números e estatísticas, mais engordado em tamanhos que não em grandeza – aquela Macau sempre nos contemplará do mais alto firmamento, sempre mais alta e sublime que arranha-céus e orçamentos, porque foi projecto universal de quem sonhou, com ela e através dela, a unidade essencial do género humano, as famílias humanas todas em ecúmena fraterna.

Saudade e acenos de mão António Conceição Júnior

mas da aventura genética do Macaense, e dos insondáveis contornos com que se enche a memória das estórias antigas, condimentada com o patois iniciático que fecha o círculo do piscar d’olho e da graça apimentada e sempre saborosa. É neste universo cujo cenário natural se vai esbatendo

que, todas as noites, “varapau d’osso” trata as feridas de “Chico pé-fede”, e todos os fantasmas ressuscitam na repetição silenciosa de todas as histórias contadas ao serão. Henrique de Senna Fernandes consubstanciou nas histórias que escreveu, uma vivência do lugar que Macau foi. São registos ficcionados

de vivências macaenses, parte fundamental do sortilégio deste lugar. O passamento de Henrique faz-nos recordar o irrepetível e a mansidão que os venerandos têm, alquebrados no físico mas preclaros nas lúcidas mentes que muitos julgam veladas, nestes percursos sempre minados pelo ilusório tempo. Agora Henrique existe na essência, na sua dimensão literária. Com saudade nossa, e acenos de mão.


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