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EDIÇÃO ESPECIAL PARA O FESTIVAL LITERÁRIO INTERNACIONAL DE ÓBIDOS (FOLIO) 2019
MEDO
OUTUBRO 2019
João Miguel Barros, Photo-Metragens (Costa da Caparica, Portugal, 2016
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Carlos Morais José
Somos amantes do medo, habitantes de trevas, de recantos íntimos, saturninos, infernais. Quer queiramos, quer não.
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OUTUBRO 2019
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Á medo pensar o medo ou, pelo contrário,
ergue defesas, instila coragem? Negá-lo é tão absurdo como suster a respiração. Conhecê-lo um exercício talvez tenebroso. Do medo sabemos as representações e os comportamentos que inspira. Usamo-lo à medida, no quotidiano e nos momentos de excepção. Conhecemo-lo também na intimidade, na espera, no silêncio que nos cala e persegue, extático, até um limite qualquer. Ele anda sempre por ali, por aqui e por aí. De familiar, tornou-se vulgar, desinteressante, mas ainda assim persistente, no fundo dos fundos movediços. Por vezes, irrompe inesperado, filho do espanto e da surpresa. Hoje quase o acolhemos com favor: é que muito pouco de intenso realmente se passa. Há quem o compre: embrulhado, formatado, explicado, sob forma de texto, de imagem com ou sem movimento. Vende-se em qualquer supermercado, centro comercial: pronto ao consumo, lucrativo, generalizado, banal.
O medo serve a política e o amor. O medo da perda e o medo do senhor. O medo cultiva a terra onde tudo se há-de implantar. Queima as árvores, extingue os desejos num fogo mais quente que Eros, imprime as fronteiras, recorta os passos e as acções. Depois, o terreno está preparado para a linguagem, os valores e as ordens. Do medo da morte nasce a cultura ou é como quem diz nasce tudo, num movimento de servidão. Servo dos outros, das coisas e do mundo, talhado no medo, educado para a angústia, disposto ao tédio e sedento de diferença. O medo esbate, equaliza em caretas de pavor. Somos amantes do medo, habitantes de trevas, de recantos íntimos, saturninos, infernais. Quer queiramos, quer não. E, por nos ser brilhante a pele e eficaz o cerebelo, celebramos o medo como ideia. Não como emoção ou sentimento, como energia rude e tresloucada. Não. Só como o cometa que ali naquele céu passa sem realmente passar. Qualquer outra coisa... faz medo.
Esta é uma edição especial e gratuita do suplemento h do jornal Hoje Macau, por ocasião do FOLIO (Festival Literário de Óbidos, em colaboração com a editora Abysmo EDITORES Carlos Morais José, João Paulo Cotrim INTERVENIENTES TEXTO Amélia Vieira, Ana Teresa Sanganha, António Cabrita, António de Castro Caeiro, António Eloy, António Falcão, Carlos Morais José, Carlos Querido, David Soares, Fernando Sobral, Gonçalo M. Tavares, Henrique Manuel Bento Fialho, Inês F. Santos, João Paulo Cotrim, José Anjos, José Luiz Tavares, José Xavier Ezequiel, Luís Carmelo, Patrícia Câmara, Pedro Proença, Rita Taborda Duarte, IMAGEM Anabela Canas, Ana Jacinto Nunes, António Falcão, Fortes Pakeong Sequeira, Joaquim Franco, João Miguel Barros, José Drummond, Konstantin Bessmertny, Pedro Proença, Rui Rasquinho, Sal Nunkachov, Ung Vai Meng,. CAPA The Ghost, por José Drummond.
h3 NA DEFESA… O MEDO
TREPIDEZ NEURAL
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ncontrava-se na praia quando lhe ligaram, tinha iniciado férias há dois dias. Na outra ponta da linha, sentiu-o logo pelo calafrio, um sismo. Tinha deixado todos os seus contactos em “Fora do escritório”, com uma mensagem automática que respondia por ele. Os seus números de telefone estavam inactivos e levava apenas a conexão particular que só familiares e amigos chegados conheciam. Era um jornalista do outro lado, tinha-o apanhado com a mão fora do lugar, em flagrante delito. Como tinha sido isso possível, não compreendia. Tinha feito tudo com a máxima segurança no mais excelso sigilo. A transparência tinha sido totalmente inócua, as entidades envolvidas eram da suprema confiança. Mas as provas eram inequívocas. “Estou na praia, agora não posso, não sei do que está a falar.” Provavelmente, tinha o telefone sob escuta e tudo o que do outro lado ouvira estava a ser captado para um relatório policial, na esferográfica de um algoritmo. A derrocada era total. Num impulso, pensou no plano a seguir, algo que lhe permitisse escapar incólume daquela situação. A sua cidade estava a mais de seiscentos quilómetros e a fronteira a menos de trinta, embora as linhas que definam os países sejam agora ineficientes. Vivemos todo na grande Europa, localizá-lo não seria deveras complicado. Pensava na família, como iriam receber a notícia. Na verdade, fizera tudo por eles, para um melhor futuro por muitas gerações. Tinha sido um rasgo de génio, sem brechas ou reparos, mas aquele telefonema destruíra tudo. Quem o teria tramado? Até onde se estendia o conhecimento das suas acções? O tormento não iria arrojá-lo, teria de contornar o futuro. Pediu que lhe dessem um número. “Como?”, responderam. “Diga-me quanto quer para acabar com isto. Um número para destruir qualquer ligação ou evidência.” Do outro lado, silêncio. Para além da impaciência, sentiu alguma surpresa no sinal telefónico, demonstrando que a possibilidade estaria a ser considerada. Talvez houvesse ainda um pequeno sabor a esperança. Uma glória repartida. Mas o suor não deixava de lhe escorrer da testa.
Ana Teresa Sanganha Patrícia Câmara
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á quem diga que acendendo a luz se vê melhor e se abatem os medos… Mas quantas vezes tememos acender a luz e teimamos andar às cegas? Quantas vezes a acendemos, encenando a maior das bravuras, ou a partimos para garantir que nunca se acenderá? Haverá algum dia, de olhos abertos, ou fechados, alguém a quem, por um segundo, não assole o medo? É na sôfrega e imobilizadora força do medo que o humano, mais humano, revela a sua humanidade. Fiel depositário da perda, o medo é o limite que nos limita, contidamente, pelo seu arguto controle. No grito, confunde-se com o pânico, mas, no sussurro, é angústia acutilante ou sistema de alerta contra predadores. Habitualmente o medo transforma-se em segurança interna, sempre que as respostas do mundo se adequam às necessidades éticas da existência. Instala-se, sempre que o desamparo toma o lugar da presença identitária. Quando o medo se intensifica e alastra sem contenção, o pânico toma o seu lugar e a ausência do outro, dentro de nós, ensurdece-nos a capacidade de pensar, toldando-nos os sentidos. Em vez da fuga, camuflagem ou transformação, edifica-se o lugar estático da colisão do desencontro. Assim, quando o medo perde a sua função protectora, abre caminho para todos os momentos em que o pânico não teve quem o ajudasse a transformar-se em certeza interna de pertença. E nos lugares intemporais do desamparo, o medo parece ler a liberdade com uma espécie de erro imunitário e atribuir-lhe a categoria de predadora. Num ataque à liberdade, garante-se o ataque à alteridade, à diferença. O medo à liberdade, à dúvida, é a mais grave enfermidade de que pode padecer a humanidade, porque representa/expõe o medo de morrer por se sentir morto. É a maior forma de ataque à identidade de todos aqueles que aceitam ter medo da liberdade e ainda assim a desejar. Na liberdade é possível viver o medo e não ter medo dele: o medo é contorno elástico, ainda que paralisante, possibilita a expansão, sempre que a coragem é sua aliada. Porém, o reino da incerteza não dá alento a quem teme ver-se a sós consigo próprio…
Ana Jacinto Nunes, Retrato #1 (detalhe), Óleo sobre tela
O medo à liberdade, à dúvida, é a mais grave enfermidade de que pode padecer a humanidade
Antønio Falcão
Tinha o telefone sob escuta e tudo estava a ser captado para um relatório policial OUTUBRO 2019
José Drummond, Sometimes I Feel I’m not Myself, Giclee print
Matrix
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MEDO DO FUTURO HOJE COMO ONTEM
Não deixa de ser revelador do extremo egocentrismo da mentalidade hodierna que o medo do futuro continue a passar pela antropomorfização de forças ainda invisíveis e incontroláveis.
David Soares
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medo é um barómetro social. Por ele são medidas as fronteiras ontológicas de uma determinada comunidade, situada num tempo em específico. Do ponto de vista nosológico, enquanto plasma de patologias e ansiedades, o medo pouco ou nada se aparenta com aquela emoção bem conhecida, correlacional à sobrevivência, e que é partilhada por um grande conjunto de seres vivos – incluindo as plantas, que, pese não possuírem sistemas nervosos, sentem medo e transmitem-no entre si através de mensagens químicas (o pungente cheiro da relva cortada é enviado pelas folhas mutiladas, de molde a avisar todo o manto verde que está sob ameaça). Não obstante, quando se fala em medo no contexto humano, mormente dirige-se o pensamento a uma peculiar estirpe de construção intelectual, baseada no simbólico; naquilo que, em suma, não existe exteriormente à sua representação alegórica ou espiritual. Pois o homem é, provavelmente, a única criatura capaz de sentir medo de conceitos abstractos; mesmo que na origem desses receios não se excluam imagens, acções ou objectos materiais. OUTUBRO 2019
Ora, o futuro é por mérito próprio uma abstracção. Ao dealbar do desenvolvimento da escrita, a concepção do tempo mantida pela civilização mesopotâmica cifrava-se num cunho diametralmente oposto ao actual; pois se para nós é inato imaginar o futuro como estando à nossa frente, para os antigos mesopotâmios ele estava atrás deles. Nessa singular sequenciação temporal, o passado, por ter sido experienciado, podia ser observado através da memorização, podia ser examinado em consciência, estava palpável diante dos olhos; o futuro, invisível porque inconcretizado, situava-se atrás dos olhos. Estava-se de costas para o futuro. Assim, a civilização próximo-oriental de entre o Tigre e o Eufrates era profundamente conservadora, pois quem poderia saber que espécies de perigos e catástrofes traria o futurível que constantemente espreitava sobre o ombro? O futuro era – e é – desconhecido e o medo do desconhecido permanece como uma das mais fortes manifestações dessa emoção. No entanto, é precipitado encerrar a questão nesse unívoco resultado, pois nesta matéria as fórmulas deixadas em aberto apontam para cálculos mais complexos. Com efeito, não será tanto o desconhecido, em si, que provoca medo, mas o potencial perigoso que trará à guisa de lastro; nesse feitio, o medo do desconhecido amiúde se
corporaliza em órbita de imagos – ou mitagos – já familiares e que se consideram adversos, indesejáveis, contaminantes. No modo como uma comunidade se relaciona com o tempo e com o espaço reitera-se um longo movimento de contracção e de dilatação que constantemente absorve e expulsa conceitos e discursos numa profunda iteração identitária: no espaço exterior à comunidade estão bem definidos os monstros. Nos mais perturbantes momentos de ruptura – aqueles em que os monstros vêm de dentro – a comunidade metamorfoseia-se, vaporiza-se e sublima-se numa nova-velha comunidade que procura incessantemente recuperar a configuração originária. Nessa óptica, os contemporâneos romances e filmes de horror são, em simultâneo, galeria e vacina, pois mostram-nos a uma distância segura – a da inexistência de uma ameaça – os géneros de medos dos quais nos queremos inocular. É o barómetro social em funcionamento. Porém, a praxis não é tão contemporânea quanto isso. Para não recuar mais que a Idade Média, observe-se que os exempla eclesiásticos, os contos morais do hagiológio e as parábolas devocionais executavam o mesmo efeito no seio de uma cristandade milenarista – e que depois do ano mil persistiu em sê-lo. Contudo, a feição desse sentimento mudou inteiramente ao longo da moderni-
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José Drummond, The Painter, performance
Por este conceito sopra, aliás, um vero perfume a antigos terrores (...) pois que outra coisa não é essa inteligência artificial tornada diabólica que uma espécie de Velho da Montanha virtual?
dade, pois o homem arrogou a tarefa de construir ele próprio o milénio. Aliás, o género literário das utopias aparece em Quinhentos como um estilo reaccionário de literatura: num momento em que a sociedade europeia construía gradativamente os alicerces do estado moderno, os utopistas propunham o atávico e rápido retorno a uma medievalidade que, muitas vezes, era espúria e só existia nas suas cabeças. Não é à toa que as ditas utopias se situam frequentemente em ilhas inacessíveis ou em recônditas cidades fortificadas, um gesto de territorialização política de fantasias que se querem exclusórias e que reflecte, de maneira inversa, a antropomorfização daquilo que provoca o medo: antropomorfiza-se o agente do terror de molde a aplacá-lo, como se assim fosse possível chamá-lo à razão. Um exemplo cristalino desta atitude foi a criação das múltiplas seitas de flagelantes aquando do grande surto trecentista europeu de Peste Negra: romando por ruas atapetadas de cadáveres, os flagelantes talhavam a carne e vertiam o sangue para pacificar o praeternatural elemento morbígero. Não eram diferentes de nós quando hoje usamos a mesma linguagem antropomorfizante para falar do medo ligado ao clima e ao planeta (“o planeta está doente”, “a natureza está zangada”, “para salvar o ambiente temos de nos sacrificar”). A linguagem é performativa e criadora de realidades.
A importância e a sofisticação de certas obras contemporâneas de literatura e cinema que reflectiram sobre a problemática do medo do futuro são variáveis, mas dois romances de ficção científica pontificam na minha opinião como axiomáticos dos medos que têm dominado nas últimas décadas o Ocidente: The Drowned World, de J. G. Ballard, publicado em 1962, e The Sheep Look Up, de John Brunner, publicado em 1972. No livro de Ballard – que iniciou todo um sub-género da ficção científica rebaptizado recentemente de cli-fi (ficção climática) –, um evento de aquecimento global alterou o ecossistema do planeta para condições análogas às do período Triásico. Com personagens que não querem reverter a catástrofe, mas a abraçam, é a primeira distopia climática de Ballard, à qual se seguiram The Burning World (1964), sobre um mundo em que a água é cada vez mais rara, e o inquietante The Crystal World (1966), sobre uma irreversível pandemia de cristalização que mineraliza todas as formas de vida. Assentando em diferente enunciado, o romance de Brunner, publicado dez anos depois, já não elege o aquecimento global como motor da catástrofe, mas a poluição. Do ponto de vista narrativo, Brunner está menos interessado que Ballard em contar uma história dita tradicional, com início, meio e fim, preferindo uma abordagem
mais impressionista, embora com personagens e espinha vertebral comuns. O resultado é uma das mais negríssimas distopias – ambientais, também – já escritas em ficção científica, perpassada por uma frieza perturbante. Quanto ao cinema, é admissível que os dois primeiros filmes da série Exterminador Implacável, idealizada pelo cineasta americano James Cameron, consistam nos exemplos de massas mais completos, porque têm a arte de combinar nos tropos dos filmes de acção e de terror dois grandes medos contemporâneos: o de um holocausto nuclear, que ensombrou as gerações que viveram a Guerra Fria (e que estará novamente a erguer a cabeça), e o da projectada automatização do trabalho – sobretudo, o da autonomização da máquina pelo despontar da inteligência artificial. Por este conceito sopra, aliás, um vero perfume a antigos terrores que possuem sábios ou conventículos secretos a entretecer teias maciças de conspiração, capazes de enredar o globo – pois que outra coisa não é essa inteligência artificial tornada diabólica que uma espécie de Velho da Montanha virtual? Neste aspecto, em particular, não deixa de ser revelador do extremo egocentrismo da mentalidade hodierna que o medo do futuro continue a passar pela antropomorfização de forças ainda invisíveis e incontroláveis.
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Foi preciso aprender a desamar ou desaprender a amar recuar pelo mar picado até embater nas sobras do jantar amamentar as tílias ou o visco que assalta os quarteirões do bairro e o timbre alongado da víbora que enclausura os ferros forjados e alguns dos eclipses menores que despovoam as janelas da praça até porque desamar é coisa vil e dureza maculada para os ossos. II
Foi preciso rodar as maçanetas e destapar a luz carnívora da cal que infundiu o medo enquanto o mofo dos casarões elaborava o decesso dos vivos e os punha a dançar o vinil riscado em certos dias com formatura de concha ainda que o enorme coração dos galgos pela manhã se pusesse a rasurar de beleza aquela parte dos fósseis que não fala.
III Ao fundo pelo postigo ouvir-se-á sempre um eco ou um óvulo de eugenia minúscula voz de roseta ou faca de covil aguçada concebida para a escuridão dos emparedados. O fio das muralhas instiga os ciprestes a frases daninhas e equivale a um nada mas um nada tão absoluto com trompas e líquidos de genuína floração. Eu por vezes morro a admirar os amores-perfeitos que aparecem espalmados dentro dos rodapés mais antigos e morro ainda a admirar o vigoroso hífen que me permite compor a falésia e o traço da palavra desamar.
Luís Carmelo
conversa com rilke sobre o anjo e o medo
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medo
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Deus foi sempre oco ou prenhe ficou? É nítido, o anjo que assistiu ao teu nascimento apagou-te a memória antes de se retirar e, embora deixando ao partir a ressonância de suas asas, nunca depois se deixou capturar nas inúmeras armadilhas para pássaros, aonde tantas vezes se amorteceu o tilt da slot machine da tua infância. Só o medo te devolve agora a vibração inicial.
António Cabrita
um nome sitia-me Há dez dias que um nome me sitia. Fechei todos os portões, estou surdo
que não estou disposto a conceder-lhe, nem mesmo por omissão, a hipótese
aos melífluos mantos do mundo. Vento que entre, é pilado.
de uma proximidade, de um encontro; fundi até as duas chaves das portas
Tenho reserva de água e mantimentos para mais seis meses, a aversão é tão grande
do vestíbulo, e enfiado no meu claustro jogo soduku, resolvo charadas, rabisco poemas, passo os dedos pelo piano, debico nos três tonéis de vinho, mordisco no coração da cobra que me chilreia aos ouvidos. Há dez dias que um nome me sitia
António Cabrita
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h8 MEDO DO PRESENTE BRINCAR, REZAR... O MEDO António Eloy
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êdo: Sentimento de inquietação resultante de um perigo real ou aparente, receio, apreensão, susto, terror. Medo ainda se escrevia com chapéu, talvez para o proteger, na Lello Universal, de onde tirei esta definição. Nada como definir as palavras não vá algum Humpty Dumpty dar-lhes outros poderes. Há fundamentalmente 3 grandes medos. 1. O medo de Deus. É o medo fundacional, talvez por isso deus e o medo coabitam na mesma zona cerebral que os cria. Nas sociedades sapiens mais antigas com a percepção da morte procurou-se dar-lhe continuidade, surgiram os ícones, as lógicas mágicas, e até sacrificiais e esse transcendente que era primeiro a “mãe terra”, deusa. Com a alteração social resultante da passagem a estruturas estabilizadas de povoamento surge a monogamia e o deus único, quase sempre muito mau, castigador e irresponsável (veja-se Sodoma e Gomorra) e sobretudo odiando os corpos, que terá criado, ou não. Recordemos Adão e Eva escondidos, nús pois enFortes Pakeong Sequeira, Ego•Era, Acrílico sobre cartão
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tão, escondidos do castigo de Deus, talvez pelo primeiro orgasmo e o conhecimento. O medo de Deus é o primeiro medo e também motivo das maiores mortandades que se prosseguem nos nossos dias. Temo a Deus pai! Mas o medo de Deus leva-nos ao medo do poder, que é, tantas vezes articulado com esse, seja nas suas formas confessionais, o Vaticano, o Dalai Lama, os Ayatollas ou Califas, o II Reich, a URSS, ou as diversas igrejas com os seus prosélitos, Bolsa, Trump, Netanyahu, Duterte, etc. 2. Em1941 no famoso discurso sobre o Estado da União Franklin Delano Roosevelt mencionou as, para ele, qautro liberdades fundamentais e básicas da democracia: liberdade de expressão (e o impeachment), liberdade de eleição (representação), liberdade de religião (ou de não a ter) e liberdade face ao medo (ai, ai, ai). A liberdade de não ter medo é desde logo contrariada por esse grande medo com que iniciámos. Não há medo maior, e até no dólar ,“In God we trust”, que ainda por cima, como nos assustavam de pequenos, está em toda a parte, um terror. Com o Apocalipse, magnífica gravura que ilustrava o catecismo, voltamos ao Deus abrâmico e ao seu livro, também dito sagrado e vamos direitos aos 4 Cavaleiros e aos 4 ginetes desse. São eles, recordemo-los a morte
(a origem e fim de tudo), a guerra (que a essa conduz), a fome ( que dessa também é causa) e a peste ( que a tudo alastra). Hoje vivemos, mais que alguma vez o tenhamos, na iminência, segundo o relógio que nos aproxima do Armagedão (outro nome do fim) nunca estivemos tão perto dele. As guerras, muitas vezes escondidas, estão com os assustadores nacionalismos, ainda por cima muitas vezes ligados ao meu deus contra o teu, cada vez mais iminentes, começam com a exclusão, seguem com o proteccionismo, divagam com muros e surgem a toda a brida com a bandeira. É possível, cada vez mais provável, um conflito termo-nuclear, não entre a Correia do amigo Kim, e os U.S.A. mas entre a Índia e o Paquistão, a propósito de um muro, de religiões antagónicas e de colheitas desastrosas. O inferno ou Inverno nuclear atingiria todo o planeta e as fomes que já alastram por todo o mundo, articuladas do outro lado com a obesidade, seriam outra alavanca da morte. Mas não podemos fugir, não temos outro planeta para onde, pesem os multimilionários que não sabem onde poupar recursos, que o aspiram e neste estamos, estamos mesmo a dar cabo dos sistemas de protecção da nossa vida (muitos insectos estão a preparar-se para ocupar o nosso nicho! sem deus e só com uma rainha). As emissões de gases de efeito de estufa fazem-me sempre lembrar a rã na sopa: vai cozendo... As modificações dos sistemas de produção e das lógicas produtivas, articuladas com os cada vez mais frequentes extremos meteorológicos, articulados com os efeitos dos agro-tóxicos e dos transgénicos na produção alimentar, são uma autêntica bola de neve que vai alimentar mais, muito mais as modificações do nosso sistema de ventilação, os oceanos a perderem corais, fitoplâncton e peixes, aumentando também a pressão sobre os alimentos. Caberia aqui falar das destruições das florestas, sabemos da Amazónia, mas escapa-nos que a floresta boreal siberiana, muito maior que essa, que está a ser devastada a uma velocidade muito, muito superior a essa, com toneladas de metano a ser libertado, salvo que aí não há hordas de vacas a aumentar as emissões. 3. Falta-nos a peste. Hoje as doenças que se propagam, epidemias, insectos portadores dessas, que antigamente se expandiam com os ratos no porão e agora qualquer ventania os carrega, e tendo embora esse esconjuro do pecado, a sida, sido controlada sem que esse, felizmente, desaparecesse. Mas pode voltar, seja porque as defesas imunológicas estão cada vez mais frágeis seja porque os nossos organismos estão cada vez mais ligados a uma pafernália físico-química cujas consequências são imprevisíveis. As doenças de novos tipos poderão alastrar e dizimar milhões, ainda por cima já afectados, ou pelas guerras, e limitações dos direitos que essas acarretam (mesmo dos tais 4 que Delano falava mas não defendia de facto, recordemos os campos de concentração para “amarelos” que proliferavam nos States!), as fomes cada vez mais endémicas a que se junta o desequilíbrio alimentar (e alguém saberá os efeitos, por exemplo, dos milhões de micro-plásticos que ingerimos?), as doenças e a inevitabilidade da morte levam-nos, com as guerras e as fomes, de regresso ao medo inicial. O medo de deus, do Deus, desse desconhecido, inventado pelas primeiras sociedades humanas, para se significar na continuidade, depois alicerce de poderes, de todos os poderes, convertido ele mesmo em poder e mesmo teocracias, hoje convertido num qualquer algoritmo, que até pode por variações alfa-numéricas desencadear uma guerra, mutações fisíco-químicas e até criar poesia. Enquanto tivermos, como espécie a capacidade de memória e conseguirmos lutar contra o esquecimento, teremos deus connosco (o das pequenas coisas!), e claro o medo, do fim, da guerra, da fome e da dor.
DIAGNÓSTICO Henrique Manuel Bento Fialho
F
alhei, não faz mal, falhei em nada ter feito. Falhei em ter ficado parado, inquieto. Podia ter articulado músculos, ossos, membros, podia ter-me agitado, podia pôr-me a caminho sem olhar para trás, podia ter comprado bilhete para longe, podia não ter falhado. Fiquei a olhar as nuvens que passam, a caravana que estanca, cães domésticos a ladrar das varandas aos rafeiros que remexem o lixo nas ruas, fiquei. O que importa é agir, fazer, jogar, mas eu falhei em nada ter feito, em não ter agido, em não ter jogado, em simplesmente ficar na sombra. A minha maior derrota é nem sequer ter a certeza de que sairia derrotado. O mais certo seria acabar derrotado. Mas assim. Assim nesta missA. Estarei a tempo de corrigir tamanha dor? Estarei a tempo de levar até ao fim a balada do meu naufrágio? Estarei a tempo de sacrificar o medo de falhar no altar do fracasso? Em nada ter feito, falhei. Podia não ter falhado, mesmo fracassando. Dizer que é tarde não é desculpa para permanecer como cão doméstico a ladrar aos rafeiros que remexem o lixo nas ruas. A última vez que me senti amado tinha escrito na testa: vou abandonar-te. A minha cabeça assumia a forma de uma maçã, o cérebro eram minhocas. O cérebro eram larvas sôfregas, eu andava como uma maçã a ser devorada, caída da árvore da sabedoria, maçã envenenada de paixão. Tinha uma placa pendurada ao pescoço, era um judeu num campo de concentração, a última vez que me senti amado foi quando disse: adeus. Ninguém me amou realmente, ninguém que enclausure saberá verdadeiramente amar, e eu tinha sirenes de sinalização a gritarem: deixem-me passar, deixem-me passar. Ia a caminho das urgências, fui impedido, não me tratei. Agora sinto-me doente, há muito que me sinto doente,
Joaquim Franco, O Lado Oculto da Lua, Acrílico sobre tela
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desde esse dia que me sinto doente de fadiga, um cansaço tão pesado como a perspectiva de ir trabalhar enquanto tomo o café da manhã. A minha cabeça agora é uma melancia, só água e pevides. Tenho a cabeça feita em água em pevides. Fosse possível, comeria a minha própria cabeça. Por onde hei-de continuar? Qual o caminho? Deverei continuar? Tenho medo. O galo canta a desoras, o cão está cego e surdo, o clima é macrobiótico, as costas ressentem-se e suo, e suo, e suo. Ressoam respirações antigas vindas de um tempo que julgava extinto no fundo do peito. A poesia já teve melhores dias, alguém que lhe decrete a morte. Steiner decretou a morte da tragédia, Enzensberger decretou a morte da literatura, ambos decretaram a morte do que mantêm vivo por respiração boca a boca, cuidados intensivos, urgências. Poesia geriátrica. Não ter vida para lá disto. Só a música não morreu ainda. Ligada à máquina, pendurada por tubos, a música ainda pulsa. Na reunião do partido discutem-se terras contaminadas, pessoas ao abandono, a miséria humana ilustrada pelo som rangente do soalho. Quantas imagens não terão já passado neste monitor? E a cada dia que passa torna-se evidente que nada se passa, que tudo passa, que são menos os minutos que temos pela frente. Meço o pulso, conto batimentos, palpitações, arritmias, paragens, entre sístole e diástole esvaziam-se os pulsos. Acordei com o mar a este, uma descida íngreme na direcção de montanhas profundas, a cabeça a doer. Teria sido sonho? Não podia ter sido sonho tal a tristeza. Vagas de som rebentavam contra o meu peito pedregoso, cresciam-me mexilhões no peito, eu era uma rocha com o mar a este, subindo uma descida íngreme na direcção de montanhas profundas. Estalactites no interior do crânio, o sangue a pingar do tecto onde os pés se enterravam como as mãos na areia quando buscam berbigão. Estava como sempre estive, só. Mas ouvia alguém dizer
avança, dá o passo que falta, salta, deixa-te cair, acorda com o mar a este. Que significado tinha a palavra saudade naquele momento? Era uma palavra carnívora, era uma palavra canibal, eu era o alimento daquela palavra canibal. Lá, onde o mar a este descia íngreme na direcção de montanhas profundas. Foi-se o amor, cerceado pela foice do hábito, da circunstância, do tédio, da monotonia, do dia-a-dia empoeirado, da cozinha atolada em pratos sujos, foi-se limpo, posto em pratos limpos, o amor doméstico, conformado, desapaixonado, dos noivos prometidos para a ausente vida eterna, vida e morte, na saúde e na doença, que é tudo efémero, passageiro, vago, é tudo um dia depois do outro, um comboio a atravessar a paisagem, vagão atrás de vagão cheios de vazio, de prisioneiros, de mortos, a foice cerceadora da morte deu-nos cabo da vida, agarramos a vida pelo cabo da morte, e agora é tudo memória, sépia, recordação a preto e branco, fotografia para lembrar aos vindouros que talvez tenhamos existido, talvez, pois não sabemos bem se na crença de existirmos houve alguma vida, terá havido, talvez, o momento inapto da ternura, a falsa partida, o alvo falhado, as pequenas vitórias intermitentes como o motor avariado de um corpo aos solavancos, terá havido talvez entre vírgulas o sorriso da manhã fresca, da noite quente, da lua estendida nas águas, do sol perecendo no horizonte, e a gente nostálgicos, raramente perdidos na floresta, comandados por sinalética variável, sinais de trânsito, respeitosamente cumpridores dos mapas, dos guias, do GPS, avessos dos estados eróticos imediatos de Sören Kierkegaard, o último dos cínicos melancólicos, paradoxo em carne viva, carne viva paradoxal. Que lugar era aquele com praias de água doce? E que poemas eram aqueles que escrevi para queimar? E por que perseguia eu a tua nudez na direcção de nada? Quem eram as pessoas acampadas no silêncio? Dizem-me que era o medo, imagina, o medo. Diagnóstico: dói-me o medo. OUTUBRO 2019
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uma catana fabricada na europa na paisagem resignada à engenharia do massacre a vida era milimétrica – precisamente duzentos milímetros – na ponta de um gesto as pessoas corriam desbotadas em legítima indefesa e só o vento – metálico, quase industrial – as segurava aos trapos como bandeiras inclinadas sobre os caminhos que puxavam para si, na vã tentativa de fugir
havia os que ficavam para trás, sozinhos, mais nítidos para a matança outros que só gritavam depois de mortos – nos trapos que o vento roubou – e outros que sem saber escreveram nesse momento todos os poemas, quem sabe como este como se todos fôssemos todos eles houve pessoas que chegaram até aqui em sentido contrário à morte pessoas como postes inclinados sobre o tempo como se abraçassem a dor a palavra é essa – uma dor que se consegue abraçar como a um gume
II um pescoço bateu à porta nesse exacto momento era um pescoço que avançava para nós erguido uma fraga vitoriosa de onde pendiam ainda alguns cabelos como gestos vindouros da cabeça agora ausente parte incerta angariada dias antes pelo esforço de fábrica do massacre ali produzia-se medo para dar de comer às máquinas esculpidas pelos gumes máquinas endereçadas ao terror e entregues pelos gestos cegos dos carteiros sandeus máquinas que são como bocas de metal nas nossas mãos também
José Anjos
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Rui Rasquinho, A Arte da Guerra, ilusttração digital
era um vento quente como o tambor da arma ao redor do seu disparo
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que seja lento Se eu morrer de amor que seja lento, que mudo se demore o corpo escondido no fundo do beco.
Sal Nunkachov
Se eu morrer de amor que seja lenta a coreografia da mão a escorrer desejo sobre a lycra, as pernas. Se eu morrer de amor que seja de mais demora ainda a palavra com que te digo no amor não há quem suba mais que o pássaro ferido Em vão morro eu depressa de amor, em vão na lentidão te digo cinza e ouves sombra te digo valsa e ouves luta Atrás de nós alguém se ri na plateia. Alto. Alguém se ri tão alto, tão na repetição do riso. Temo que quem assim da sombra tanto se ri lentamente se confunda com o medo. Em vão te digo ris-te porque tens medo E é água que me dás porque só ouves sede Em vão te convido para o palco, em vão adio que se cumpra em acto o gesto decisivo. Se eu morrer de amor que seja, pois, lenta a minha queda, que dure pelo menos o tempo desta dança. Porque, como o amor, é em vão cada espectáculo que insiste mais do que a vida.
Inês F. Santos
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Pois vives a encarar a face com a flor perguntando, pintando, pedindo a dor por regar. A forma vai aos saltos. Cai-lhe a fitness na gymnásia. Além jazem lombos do futuro com carneiras lãs do passado e achas que o povo pede o retorno à sua pátria de turquesas àguas. Que o meu canto (na peripécia) se embriaga já de corpos errados — “o futuro à frente da flor da morte temente repousa, ou gaia entreabre”. A curiosidade humana escurece no timo a observar estatisticas, a tagarelar com Vénus, conduta já acordada. Confio à barulheira a injustiça e a sabedoria serralheira das chaves. A casa vermelha dos maridos dá-os metidos ao barulho para inevitável divórcio. A esmeralda brilhante reluz no televisor insone. A vasta plumagem dos terrores espalha-se nas manchetes que furtivo vês à porta da tabacaria. Grandes notícias desportivas prometem vãos campeonatos. O meu clube anda a historiar roubadoras anomalias d’estarte.
OUTUBRO 2019
Observar. Desconversar os corpos. Recitar com primor longos solilóquios sobre a morte. Dizes que citar é ajustar. E que enumerar é rememorar. Não que se tirem ilações, ou se leixe lastro de esperteza — a figuração dos detalhes de um ódio exacerbado ou de um amor desmentido é medo em reza. Não é preciso comprar um grand danois para sublimar paixões esvaídas nem preparar caseiro choucroute para compensar o azedume das avenidas. Ou que o abismo se case na vermelha flor levantina com a limpa plumagem do terror — casa verde a amansar mel vivo, página a apoderar-se da mão, a infundir na tipografia a brusca brancura do mal. Traçar o inevitável. Incitar ao reverso — braceletes, fatigadas plumas, ouro, o sophar soprando a ira de deus no Céu.
Pedro Proença
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Sinos sobre sinos nos negócios se ouvirão: sinais que santificam despedimentos ou que aguentam mais um ou dois anos a casa editorial. Ficarás com a impressão de que sobreviverão — mas pouco — as trôpegas imagens dos mais dedicados.
Pedro Proença texto e desenhos
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Konstantin Bessmertny, I Don’t Smoke, óleo sobre tela
MEDO DO PASSADO ONTEM NUNCA DEIXOU DE SER
O que aconteceu está submerso numa qualquer camada da nossa existência superficial, mas não morreu, não desapareceu para sempre.
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O
António de Castro Caeiro medo é uma disposição que irrompe em relação a um objecto futuro. O modo como aparece um objecto que mete medo é diferente do modo como esse mesmo objecto pode aparecer de um ponto de vista teórico. Um objecto, numa perspectiva teórica, pode ser emocionalmente neutro. Um mesmo objecto pode parecer neutro de emoções. E pode meter medo. Desde sempre, a teoria, o modo de se ir ao mundo cognitivo, isola-se de qualquer afecto. Como é que um objecto neutro de emoções pode, então, meter medo. Quando de um ponto de vista desinteressado se passa a estar num ponto de vista afectado pelo medo, o objecto que surge aí, deixa de estar aí como ninguém o quer e passa a ser considerado como uma ameaça. A ameaça resulta de uma abertura ao futuro. O objecto futuro que está na iminência de acontecer, mas ainda não aconteceu, é o objecto que mete medo. O medo resulta de um futuro mau. Do futuro quer dizer proveniente da possibilidade e não ainda da realidade. Do mesmo modo que a promessa é um objecto que vem de um futuro bom, assim também a promessa vem do futuro, de onde vem dano, prejuízo: a destruição. O perigo iminente não é real. Olhamos para um lado e para outro, ao atravessar a estrada, para ver de onde vêm carros. Um carro enquanto tal não mete medo. Um carro mete medo como projetil que pode atropelar. Quando procuramos esquivar-nos de objectos, estamos numa tenção. A tensão vem do medo, da ameaça. Ainda que não aconteça, ainda que possamos esquivar-nos de facto, coisa que fazemos no momento em que podemos ser colididos por um objecto, estamos já virados para o momento futuro em que se perfila a ameaça. O perigo iminente é aberto pelo medo. Se assim é, como pode haver medo do passado. Não se trata de medo de um objecto do passado, mas do próprio passado enquanto tal. Podemos ter medo de um objecto que é perigo iminente. Podemos ter medo de várias coisas que acontecerão no futuro, daqui a nada, depois, mais tarde. Mas podemos também ter medo simplesmente e em geral do futuro como um todo, do que está para ser. Sobretudo, quando pode acontecer que não haja já futuro. Não haver futuro é um modo de o futuro se apresentar a nós, já no presente. Podemos ter medo agora, no presente, de que simplesmente não haja futuro. Uma das características do futuro é não haver futuro. Não é não haver futuro apenas. É para todo o sempre, para todo o futuro, não haver já tempo futuro. É assim que encaramos a morte. Arrostamos a morte como o tempo todo do futuro, sem que traga nada, sem que se constitua a não ser como o vazio de coisas, o estrangulamento do sentido, a ausência completa de todo o relacionamento com tempo futuro e coisas que pode trazer, como tem trazido: circunstâncias, conjunturas, situações, pessoas, vivências. O medo de não haver futuro já não quer dizer que a existência acabou. Quer dizer que se pode viver com a ideia de que já se acabou, de que se sobrevive, sem espera, sem esperança. Tudo é desespero e desolação. Não ter já futuro é o futuro do moribundo. Nem só o tempo do moribundo está contado. Há situações em que não vemos um palmo de futuro à nossa frente, porque o futuro todo se apresenta como a eternidade do não acontecer, a implosão simples que resulta da impossibilidade de relação com qualquer futuro, com o nosso futuro, com o encontro futuro com pessoas, com o desdobrar das situações que trazem todos os novos dias, mas que têm agora conteúdos embargados, sob clausula de rescisão. E tem-se medo do passado? O passado já passou. Dizemos que não soubemos do perigo que corremos, quando, numa situação presente, não sentimos o perigo ou o tempo da ameaça. Saber ou não saber do perigo implica a abertura ou o fechamento ao perigo com que vivemos uma situação. Saber está virado para o futuro. Como pode um objecto que perdeu a possibilidade da realidade meter medo, quando já passou, está obliterado. Nada move. O tempo no ser humano não pode ser dividido abstractamente em passado, presente e futuro. O futuro pode ser
longínquo, pode ser o da eternidade, pode ser um tempo que sabemos que não viveremos, porque transcende a esperança de vida, e, ainda assim surte efeito. O futuro tem o seu ser na possibilidade como tem na impossibilidade. Não está restrito ao tempo do presente do indicativo, ao que está a ser, ao que está decorrendo. Antes, o tempo futuro abre-se como um olho ciclópico retroactiva e retrospectivamente do limite futuro do futuro e tem impacto anónimo ou declarado sobre o presente e sobre o passado. Do mesmo modo, o passado não é o que já morreu e está enterrado. Não, pelo menos do ponto de vista humano. O que foi, o que tem sido, o haver sido é a expressão correcta do pretérito. Não, o passado, que reservamos para naturezas mortas, para o mundo, o universo, não conforme à forma da existência humana. O que foi mesmo há pouco, o que aconteceu em prazos diferentes, há muito tempo, há tanto tempo que nunca poderíamos ter presenciado, o que aconteceu antes de termos a lucidez que dá conta da nossa vida consciente, dos mundos dos outros e dos mundos das coisas, não é completamente opaco. Ou antes, ainda que não esteja descoberto, são tempos passados que se inserem no tempo total que cada vez se constitui, à medida que o tempo passa, o que quer dizer, à medida que o futuro daqui a nada se converte em presente agora e o agora presente passa a agora há pouco e o agora há pouco se afasta cada vez mais e mais do próprio presente da actualidade que dá realidade à nossa vida. O haver sido é um horizonte que está definido no seu limite. Desde sempre, do limite mais recuado que continuamente se constitui, temos a ideia do ser da vida como o que de cada vez está já feito, já aconteceu. Estamos desde sempre já em relação com o que aconteceu antes de termos nascido ou antes de termos consciência de que estamos vivos. O passado é também o que foi, o que nos aconteceu e o que não nos aconteceu. Há coisas boas que já passaram. Há coisas más que aconteceram. As coisas más que aconteceram foram as ameaças concretizadas pela vida. Não foi como se nada fosse. Trouxeram dano, perdas, sofrimento, mataram-nos um pouco. E sobrevivemos a muitas. Ultrapassamos muitas. Mas o que quer dizer sobreviver e ultrapassar. O tempo passado pode ficar lá atrás. Podemos ter a ideia de que com o tempo tudo passa, que nos vamos esquecer do mal que nos fez, o que quer dizer, que fazemos a experiência da neutralização ou da dessensibilização afectiva da situação por que passamos. Sobreviver é conviver o melhor possível com o sofrimento. A experiência post-traumática não anula o trauma. Pode escondê-lo, podemos afastar-nos dele com todos os subterfúgios mais ou menos inteligentes. Qualquer subterfúgio ou meio eficaz que apliquemos para sobreviver ao trauma e conviver com uma experiência post-traumática não consegue, contudo, anular a eficácia com que o mal passado, o sofrimento tido, pode regressar e fazer-nos reviver no presente o que vivemos no passado. Do cemitério em que estão os cadáveres dos sofrimentos passados, dos males com que fomos ameaçados com perigo e que nos configuraram a vida, nascem, não os fantasmas mas os seres reais, renovados com a eficácia da actualidade absoluta. O passado pode repetir-se como pode nunca ter sido esquecido. Por isso, o pretérito não passou como se fosse inactual, inactivo, ineficaz, irreal. O que aconteceu está submerso numa qualquer camada da nossa existência superficial, mas não morreu, não desapareceu para sempre. Daí que possamos compreender que o que quer que tivesse acontecido na realidade ou o que gostaríamos que tivesse acontecido e não aconteceu, o que quer que seja que é a nossa vida, estará sempre à espera de nós na hora da nossa morte. O medo do passado é sempre possível, porque o passado para os humanos não está morto e enterrado, não é como se nada fosse nem nunca tivesse acontecido. O medo do passado é o medo do futuro, o medo que resulta do nosso passado ter tão pouco morrido que todo inferno está à nossa espera para conviver connosco, por causa do que fizemos. O que fizemos num momento das nossas vidas e nos deixou cheios de culpa está à nossa espera no futuro. Ter medo do passado é possível e constitutivo das nossas vidas, porque o passado humanamente, tal como o presente, é o futuro, o sentido do ser não anulável das nossas vidas.
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Pedro Proença, Desenhos, aguarela sobre papel
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a deserção das musas Por antiquíssimas gavetas chegavam-nos ainda ecos da realidade; com o auxílio dos oxidados instrumentos com que o pintor meu amigo se defendia da voragem do sentimento. A arte é a morada dos espetros (assolarão ainda o futuro, como queria marx?), dizia, quando a carranca do inverno atroava as penedias e nas planícies a vida resumia-se ao supérstite acumular das queixas que os devotos da decifração virão recolher com a precisão dos seus cirúrgicos instrumentos: na redoma iluminada, onde um anjo nos ameaça com a violência trôpega do destino, serão as cantantes faíscas os augúrios que precedem a catástrofe ou apenas o alucinado eco que não substitui a sublime experiência do horror? O mundo não é feito de pessoas nem de casas nem de coisas menos ainda de afectos e sentidos. O mundo é feito com palavras perfiladas como pedras sobre pedra em cima de outra pedra, ainda. São de palavras de pedra as paredes do mundo: direitas e exactas como um fio de prumo. Se nos tiram a língua, as várias línguas que tem a nossa língua: esta língua com que te falo, a língua com que te beijo, esta mesma língua em que te digo esse nome que tu és, roubam-nos mais mundo ao nosso mundo. E um mundo rente, sem paredes, raso ao chão, que não se tenha de pé e num pé direito tão alto que lhe caibam todas as palavras empilhadas é um mundo do inverso e do regresso em que ao privilégio absurdo de viver se segue o direito adquirido de sofrer.
Rita Taborda Duarte
OUTUBRO 2019
Não há palavras nem imagens que nos digam o segredo do voo, quando na planície escorchada os agoirentos corvos se confundem com os revérberos com que o pintor figurou a anunciada ruína do crepúsculo, embora as flores secas juncando os trilhos se ergam como mnemónicas para um futuro tempo do esquecimento. Será isto a arte — necrófilo ofício exercitado, sem prestidigitação, na obscuridade dos precipícios? É na evidência da ruína que procura o fundamento que nega todo o absoluto? É sem qualquer promessa que chegam as aves dos seus levantinos refúgios. Tu contas os dias de insónia, o temor da neve apagando os trilhos. Para onde?, é o agonizante grito que solta o caminhante, mas entre a paisagem e o quadro interpôs-se o insonoro deflagrar das sombras, as vivas labaredas em que o mundo se consome.
José Luiz Tavares
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NÚMERO DESCONHECIDO Carlos Querido
O
número era desconhecido. Só atendi porque estava à espera do contacto de um canalizador. Terrível, o mês de Agosto, para arranjar alguém, mesmo que seja apenas para trocar uma torneira que não para de pingar. A tua voz chegou de muito longe, perdida que andava no espaço/tempo. Quando disseste o teu nome, um solavanco de surpresa projetou-me numa viagem em sentido contrário. Cinquenta anos. O tempo tinha parado naquele dia, naquela estação onde os comboios se limitavam a partir. Recordei-te dos pés à cabeça, centímet-
bios, esvaziara-te os seios e as nádegas, e a flacidez do teu corpo aniquilou-me o desejo e a imaginação. Nos teus olhos, como num espelho, vi também a ruína em que me tornara, canastrão celibatário, prostrado e macilento, mendigo de um qualquer olhar feminino que não fosse de comiseração, e gritei para dentro: o que raio faço aqui? Mas era tarde. Nunca devia ter ido àquele encontro, nunca devia ter permitido que entre nós se interpusesse esta mulher consumida pelo tempo que não vivemos juntos. Trocámos banalidades, falámos de divórcios, de filhos e de netos, e acabámos no teu quarto de hotel, pela força do velho hábito, mas os nossos corpos não se reconheceram, adormecidos, indiferentes aos abraços e às carícias com que tentámos
Perguntaste-me porque soluçava. Na altura não sabia ao certo. Hoje também não. Ultimamente choro por tudo e por nada. ro a centímetro, com a memória do teu corpo que guardava nos meus dedos. Entrei em pânico quando me propuseste um encontro. Recusava-me a abdicar de ti. Queria-te protegida, imune ao tempo, na redoma onde habitavas. Apavorava-me a outra mulher, inevitavelmente septuagenária, usurpadora da tua vida, que viveu e consumiu, guardiã oportunista dos restos da tua antiga beleza. E que faria eu com essas duas imagens, a sobreporem-se, a anularem-se, uma mais nítida e atual do que a outra? A falta que me irias fazer! Na luz artificial da cervejaria decifrava a geografia da tua vida, nos sulcos que te percorriam o rosto, e que denunciavam lágrimas, sorrisos e cansaços. Implacável, o tempo sugara-te os lá-
iludir o desejo perdido. Percorri-te de olhos fechados, para aguçar o tacto e a imaginação. E senti-me grotesco com a absoluta falta de tesão, tão previsível quanto inevitável. Nus, sem pudor, enfrentámos a noite. Tu a queixares-te da ciática que não te dá sossego, e eu da gota que me incha as articulações. À falta de melhor, falámos em surdina, de coisas banais, e trocámos nomes de médicos, fármacos e fisioterapeutas. Quando te levantaste, enterneci-me com os teus cabelos desalinhados, com a tua roupa íntima espalhada pelo chão. Naquele abraço fundimo-nos num único ocaso. Perguntaste-me porque soluçava. Na altura não sabia ao certo. Hoje também não. Ultimamente choro por tudo e por nada.
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QUEM TEM MEDO NA LITERATURA POLICIAL?
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h21 José Xavier Ezequiel 00. No princípio era o Gótico Costuma ser pacífico afirmar que The Castle of Otranto, a story translated by William Marshal, Gentleman, from the original italian of Onuphrio Muralto, publicado às escondidas por Horace Walpole em 1764, é o romance fundador do Gótico inglês. O sucesso foi imediato. E o medo irracional dos castelos medievais, demasiado húmidos, povoados de passagens secretas, sussurros, teias de aranha e fantasmas com insónias, ganhou o favor do crescente público de livros, almanaques e folhetins de jornais. Por esta altura, os franceses começaram a alimentar uma indústria paralela, a dos mysterios, menos fantasmagórica, mas não necessariamente menos medonha. Paul Féval, Émile Gaboriau e Eugène Süe seriam superiormente recriados por um trágico habitante de Baltimore, o escritor gótico americano por excelência, Edgar Allan Poe. Ora, é igualmente pacífico dizer que foi ele quem criou o cânone do policial dedutivo, em 1841, com Os Assassínios da Rua Morgue, uma rua em Paris, com o seu Auguste Dupin. Poe abandonou-o dois breves contos depois, mas Conan Doyle reciclou a ideia e fez muito nome, e fortuna, com o ainda hoje popularíssimo Sherlock Holmes. 01. Introdução ao policial dedutivo, em medos Neste processo perdeu-se completamente o medo, pois o que interessa no dedutivo é, não o crime em si, mas o mistério que o envolve. E é natural. O século XIX ansiava por explicações científicas. O génio dedutivo, fruto dessa necessidade do leitor, desvenda tudo, durante a tirada final, com biscoitos e vinho do Porto, antes de entregar o criminoso à justiça, normalmente representada por um polícia a dar para o idiota. Se Sherlock Holmes, apesar de tudo, ainda era um nadita temerário, suponho que ninguém consegue imaginar o Poirot ou a Miss Marple, de Agatha Christie, como impetuosos aventureiros. O intrometido Brown, de Chesterton, é um padre católico e, por isso, já vem protegido de fábrica. O maior medo de Nero Wolfe, de Rex Stout, seria ter de abandonar as suas evanescentes orquídeas durante demasiado tempo. E até Quaresma, o Decifrador de Fernando Pessoa, resolvia os enigmas enclausurado entre o seu quarto exíguo nas águas-furtadas e as ruas menos movimentadas da baixa pombalina. É provável que o criminoso tenha medo. De ser descoberto, seguramente. No entanto, estas histórias são sempre, muito puritanamente, redigidas na perspectiva do bom da fita, nunca nos permitindo sentir o lado do criminoso. Logo, sabendo todos que, no fim, todo o mal será castigado, o desgraçado do mistério dedutivo nunca consegue meter medo, nem mesmo às velhinhas mais dadas a chás e tremeliques. 02. Policial negro, mais cinismo que medo propriamente dito Espero que não me levem a mal se eu afirmar que o naturalismo de Zola foi o grande precursor do policial negro. Sobretudo se pensarem que o Teresa Raquin (1867) foi depois muito bem aproveitado por James M. Cain no Carteiro Toca Sempre Duas Vezes (1934). Afinal, do lumpen de Paris à grande depressão vai apenas um saltinho, embora os heróis dos jornais americanos sejam agora, não já os deserdados, sujos e maus, da revolução industrial, mas os intrépidos assaltantes de bancos, que parecem vingá-los da ganância desmedida que os levou à desgraça, em 1929. Na verdade, têm muito mais medo dos banqueiros e dos seus polícias, que dos ladrões românticos como John Dillinger, Baby Face Nelson ou Bonnie & Clyde, que no geral até protegem, sempre que podem, enquanto eles fogem, acossados, pelas estradas poeirentas da Lei Seca. A indústria local despachou-se em dar resposta a este mercado emergente e entrou, tal como os naturalistas franceses, pela realidade adentro. Começam a proliferar, à boa maneira da literatura de cordel do século XIX, pequenas publicações sem eira nem beira. Numa das mais famosas de todas elas, a Black Mask, fundada em 1920 por dois intelectuais que apenas pretendiam ganhar dinheiro para fazer uma verdadeira revista literária, aparece Dashiell Hammett, ex-Pinkerton, profundo conhecedor das ruas, das cargas de porrada aos mineiros em greve e até do assassinato encomendado de líderes sindicais, que introduziu um novo
paradigma no género, em 1923. Continental Op, o operacional da agência Continental, não chega a ter nome, mas é um anti-herói muito humano, demasiado humano até. Leva mais porrada do que aquela que dá, mas ainda assim parece ser, à boa maneira dos heróis românticos, totalmente desprovido de medo. Contudo, essa busca pela justiça, condenada pela realidade ao fracasso, vai perdendo o efeito de antídoto e, no fim, nada lhe resta senão o cinismo. Que, bem vistas as coisas, não é outra coisa senão uma fraca armadura contra o medo. Em 1941, John Huston, com um orçamento muito baixo, resolveu fazer a terceira versão do Falcão de Malta, de Hammett, introduzindo Humphrey Bogart no papel do cínico detective Sam Spade. Quando os franceses o puderam finalmente ver, Nino Frank chamou-lhe film noir (Un noveau genre ‘policier’: l’aventure criminelle, in L’ Écran Français, Agosto de 1946). E pronto, estava definitivamente estabelecido mais um cânone, o policial negro. Raymond Chandler, assumindo o modelo, começara a dar-lhe a dimensão literária que lhe faltava em The Big Sleep, em 1939. Com chancela da Gallimard, o ex-surrealista Marcel Duhamel, a partir do nome atribuído a Jacques Prévert, lança uma colecção de bolso com capa preta e logotipo de Picasso – a Série Noire – paradigma do género, que durante décadas publicou os melhores clássicos americanos e ajudou a descobrir franceses como Auste Le Breton ou Albert Simonin, e mesmo autores complexos, mas esquecidos do outro lado do Atlântico, como Horace McCoy, Jim Thompson ou David Goodis. E a ‘seriedade’ do negro, apesar de algumas vestais da literatura, dita dura, ficou firmemente estabelecido. 03. Policial psicológico, a culpa e o medo De repente, alguém se lembrou de pôr a subjectiva no criminoso. Quer dizer, a ideia não era absolutamente nova. Victor Hugo antecipara-a com O Último Dia de Um Condenado (1829), Dostoyevsky sistematizara-a com o Crime e Castigo (1866) e Zola, outra vez Zola, densificara-a com A Besta Humana. Já no século XX, um Herman Hesse inicial (Klein und Wagner, 1919) e um Simenon antes de ficar famoso com o Comissário Maigret (O Homem Que Via Passar Os Comboios, 1938), também exploraram esse medo que se desenvolve a partir das entranhas da culpa, nuns casos, ou na sua total ausência, no caso dos psicopatas, mas sobretudo na inesperada aflição do leitor quando descobre, contra todas as regras que supunha respeitar, que se começou a identificar com o assassino. William Irish, Thomas Harris, Robert Bloch ou John Fowles são nomes maiores deste subgénero do policial, mas eu diria que a maior de todas na arte de meter o leitor na pele do criminoso é mesmo Patricia Highsmith. Quer através dos cinco volumes (1955-1991) do encantador Mr Ripley, um serial killer tão inteligente, tão culto, tão completamente desprovido de culpa que é mesmo capaz de nunca se deixar apanhar. Quer através do seu contrário, com Clarence Duhammel (Resgate Por Uma Cão, 1972), um polícia licenciado em psicologia e sociologia, que assume uma culpa tão alheia que o torna completamente incapaz de escapar à desgraça. Talvez não por acaso, Highsmith atribuía a sua principal influência literária a O Estrangeiro, de Camus, a história de um homem que é julgado por matar um proxeneta árabe, mas que acaba condenado, não tanto por tê-lo morto, mas sobretudo por não mostrar quaisquer remorsos. Afinal, Mersault nem no funeral da mãe conseguira mostrar sentimentos e chorar. Ou seja, mostrar-se um ser humano, normal, provido de emoções, de culpa, de medo.
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TODOS OS DIAS O MEDO Amélia Vieira
O
nosso quotidiano não disfarça ainda a nossa perplexidade perante o efeito do desastre e suas leis que devem ser muito precisas e por isso de infalibilidade revestidas: comovem-nos sempre como se não pertencessem por inerência a todo este propósito. O impacto dele nos é dado nos dias que vivemos e nem por isso nos insensibiliza cada vez que um acontece, como se estivéssemos em pleno cenário de guerra com lesões do funcionamento neuronal. Há gente que cai aleatoriamente enquanto passa por locais onde todos acabámos de passar, mares de azul lindíssimo feitos mortalhas, edifícios em chamas trespassados por máquinas voadoras, sangue em todas as arenas. Noite após dia, dia após noite, olhamos incrédulos, sempre, para o último amontoado de escombros como se um frémito violento nos levantasse das nossas calmas funções. O longo caminho da História deu-nos terreiros e hortos para a compenetração formal da morte que vinha como inimiga a combater: tinha trombetas, frases mágicas, líderes que a encabeçavam, como se de um compromisso se tratasse. Isto embora saibamos que, por onde passassem estes guerreiros, as populações nem sempre estavam a salvo: a guerra obedecia a um plano, havendo mesmo datas combinadas com o inimigo para exercitá-la, mas a nossa realidade, de contingências feitas, não nos dá segurança nenhuma nestas coisas e tudo o que existe à vista é uma guerra contínua e disparatada, feita de picaretas e outros utensílios que nos rebentam nas mãos. Com choques, afrontas, colapsos, amálgamas de cimento e sangue, de luz e treva, que é de arrepiar as nossas reservas de coragem. Nós, cuja liberdade nos fora consagrada como um registo pessoal, temos por isso toda a legitimidade de nos alhearmos e vivermos os dias à nossa maneira, transcritos à nossa realidade. Cada ser pode firmar para si um isolamento saudável como partícula de sobrevivência e, até chegar a esse globalizante desastre, nada entretanto aconteceu. Mas isto, que parece a melhor das aptidões do instante, tira-nos a perspectiva da ocasião e do momento histórico que nos foi dado viver – para viver – por vezes há que desviver devagarinho… A realidade, essa, será sempre esse ponto de partida por onde nos é dado então regular o que queremos esteja inscrito nos acontecimentos não permitindo o acto invasivo do mundo se aproximar de nós. Ao iniciarmos os dias, não devemos começá-los por notícias e visões esmagadoras: a nossa força vacila e a nossa coragem esmorece, a esperança ofusca-se, o diálogo embarga-se, os olhos ficam grandes de espanto perante imagens tão sobrenaturais… existe um imediato reflexo de insustentável pavor e, até nos colocarmos na marcha da lucidez necessária, temos de ir deixando passar as horas. Nós sofremos quando vimos os outros em dor. Nada daquilo é gratuito e apenas informativo, existirá sempre um fio condutor que nos liga aos outros no instante em que padecem, e tantos, e tão continuamente, gera a mais preocupante prostração. O facto de irmos antecipando a nossa defesa nestas coisas, promove uma vantagem contra o meio ambiente, que é o de haver pessoas saudáveis quando for preciso a sua imediata intervenção. Nota-se muito a desarticulação das fontes de salvamento, o titubear dos que podem e não sabem… da avalanche quase demencial deste cenário. OUTUBRO 2019
Anabela Canas, São rosas e dias líquidos”, óleo sobre tela
h23 O medo aproxima-se de nós também como um amigo, pois que nos insufla de consciência, mas andar aterrorizado sem saber atrai o caos e a vida começa a ser um jogo diário onde não vemos o propósito maior que é o estar vivo para além dos nossos medos. Claro, esquecemos, temos de ir, de fazer, de continuar dentro de nós; no entanto, não sabemos bem como avançar de forma precisa, a nossa mente está em alerta, o nosso cérebro tem hoje, talvez, possíveis ligamentos em áreas que lhes estavam reservadas para funções que não se parecem com estas. Toda a nossa antecipação na arbitrariedade da vida nos deixa inquietos na busca de a vivermos sem que saibamos dirigir o desígnio do viver. As coisas vão baixando como as pragas e se a economia nos secou a visão onírica, hoje estamos “salpicados” de sangue que nos dias corre no seio da União. Desconfiamos de todos, claro está, quem são os que nos matam? Serão quem se diz? Ou somos já nós a fazer esse projecto para adicionar interesses que fingem ser incólumes? Vamos vendo à medida que os sinais se propagam… vendo coisas novas que não estavam lá, e sabemos do medo imenso que é o da loucura mais grosseira nos ter possuído. De quem, afinal, não devemos ter medo, quando nos dizem para não ter? Que calma querem que tenhamos no meio de tais acontecimentos e quem nos educa para a abulia total de sermos os espectadores de coisas tais? Que confiança, em que liberdade, em que maravilhoso sistema desejam que acreditemos? Desculpar-me-ão mas eu não acredito nele. Pois que tenho medo e sei o que significa chegar aqui de olhos abertos a ver todas estas impensáveis realidades que nem dela fugindo estamos a salvo. Construímos por ócio todos os fantasmas e tecemos a malvadez como um plano bastante inclinado mas deveras excitante, e, enquanto ele vogava na sétima arte, e na ficção, eram nossas todas as perversões da alma, já danada, de tanta felicidade, agora, eles mesmos, os espectros se tornaram tão autónomos como nós, e agora, somos nós e eles, de corpo presente a constatar a nossa mais medonha obra. Concomitante a toda a nossa realidade, seja ela resguardada, ou mantida em dose máxima de informação, há outras realidades que se passeiam, tão reais quanto estas. E dessas não temos memória, e estamos a construir espaço para a podermos abarcar, pois que nem em sonhos e visionarismos se teria previsto tanto! Como não ser a realidade uma esfera à parte, até da nossa capacidade de mediúnicos informadores?! Nestes quotidianos, assim vamos vivendo como se de um cadáver nos estivéssemos alimentando, tornámo-nos necrófilos sociais, para não se desaparecer de vez e nos levarem as doces bactérias que restam à ameaçante guerra de neutrões que nos há-de suportar lavados de dissolventes naturais. E se as bombas não chegarem a Nova Iorque, vão chegar a outro local, que Nova Iorque é agora uma metáfora de Babel . E se os nossos filhos morrerem a percorrer o mundo, que tão generosamente lhes insuflámos na mente como lugar extraordinário, que mesmo assim não tenhamos medo das nossas lágrimas e saibamos com dignidade ir abrindo espaço à gravidade desta situação social. Vivemos ameaçados, com cortes, com despejos, com ofensas, com desconsiderações tais que dava para nos atordoarmos de espanto até ao fim dos nossos dias, e agora mais esta terrível realidade de grupo que queremos contornar com uma compostura mumificante e nos trespassa a noite como um raio impúdico e imprudente. Sair disto sem feridas é impossível, nós estamos mais ou menos já em chaga, mas, talvez ainda se consiga uma certa nobreza que fará sempre parte de uma saudosa Humanidade sonhada. Nós, que inventámos o sonho e fizemos da vida uma obra de Arte ( os que a fizeram), não devemos acabar assim. O mundo é o cenário de um grande dramaturgo poético, um mundo em que o criador está presente em toda a parte, e em toda a parte oculto.
O EXÍLIO E O MEDO Carlos Morais José
A
O exílio é um estranho banho de realidade, na qual todos os dias mergulhamos sem a reconhecermos e dotados de míseras pistas de leitura
miúde o exilado se debate com as questões do abandono e da ausência. Situado na posição ambivalente de quem abandonou e se sentiu abandonado, é na experiência da ausência que, finalmente, a sua desterritorialização se constrói e edifica. É à volta desse vazio, tomado quantas vezes por absoluto, que o exilado alicerça novas identidades e se redescobre, enquanto humano e errante. Não se tratará de uma ausência particular mas de um conjunto intrincado, parte inconsciente ou com dificuldade denotado, que constitui uma espécie de vórtice — Maelstrom — em cada singularidade, impregnando-a de um movimento centrípeto, alucinado, mas cujo centro se afasta, ao invés de se aproximar. É por isso que encaramos essa ausência com uma estranha tranquilidade, como se estivéssemos a assistir à nossa morte, no momento em que ela consiste claramente numa metamorfose. Concretamente, não conseguimos deixar de girar em torno dessa ausência, mas ela não exerce uma atracção fatal: pelo contrário, erige-se como um horizonte que contemplamos com uma doçura cada vez mais açucarada, à medida que paulatinamente nos afastamos. Contudo, bem o sabemos, nenhuma distância realmente apagará esse sentimento de ausência que nos assombra. Seja ele fantasmático ou não, faça ele parte de uma qualquer realidade ou meramente se ancore numa imaginação perturbada, a verdade é que esse sentimento resiste ao tempo como se de um mal genético se tratasse. Nunca definitivamente se esvai, nunca de todo se apagará. É mal incurável e bem supremo que singularmente nos distingue. Espécie de maldição irrevogável e bendita, caminho sem retorno para o celeste inferno de uma percepção distanciada do mundo. Procurei sempre esse olhar. Encontrei-o num título de Claude Lévi-Strauss e nas tropelias poéticas de Rimbaud. Fiz um curso para o compreender. Mas nunca, de facto, em mim o experimentara até me deslocar aos confins da minha civilização e nas suas margens ele em mim se entranhar. Percebi que esse olhar distanciado não se aprende de outra maneira que não seja pelo exercício da ausência, pela intimidade solitária do pensamento, nas volutas espantadas de raciocínios bárbaros, nas delícias de concretos paradoxos, excrescências de logos, numa palavra, no exercício diário do exilado. Porque nunca algo se torna tão presente, tão importante, como quando é marcado pela ausência. Como se esta admitisse a presentificação de forma suave, quase ternurenta, do que mantemos encerrado nas caves desse seu castelo, cedendo-lhe espaço para contemplar, analisar, criticar, julgar; finalmente, capazes de entender e amar. Ele há exilados na distância, na geografia, mas também os há que nunca saíram do mesmo lugar. Eles sabem do que estou a falar. De uma saudade de infinitamente abraçar, de amorosamente compreender. Dessa percepção distanciada do mundo, da certeza de não lhe pertencermos por há muito o termos abandonado. Primeiro, a medo… depois, por força das circunstâncias… doutras vezes, a maior parte delas, por sermos mesmo assim e tal carregarmos como destino ou maldição. O exilado não se contorce, nem desespera: há muito que o desespero é seu fiel companheiro e a angústia noiva eterna, à sua espera num altar. É-lhe ridícula a esperança pois, intimamente, sabe que os outros dias não hão-de voltar. Esses dias que nunca realmente aconteceram, o vinho que nunca foi doce e as raparigas que nunca foram disponíveis e amáveis. O exílio é um estranho banho de realidade, na qual todos os dias mergulhamos sem a reconhecermos e dotados de míseras pistas de leitura. É então que se abre o universo e fazem sentido as facetas múltiplas que o compõem. É então que advém um amaciado entendimento, não discursivo, das coisas. Das que tenuemente existem e das que não existem de todo. E é então que o exílio se transforma numa espécie de cidadania de um mundo belo, cruel e indiferente. OUTUBRO 2019
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NO LUGAR DO MEDO Ana Jacinto Nunes. Retrato #4 #3 #7, óleo sobre tela
João Paulo Cotrim
Bárbara
Luzia
Sebastião
É da minha torre que vejo o castelo, rasgo na mão a flor de sal do horizonte.
Guardo espaços por profanar, cicatrizes de uma lucidez azeda
Apontam-me os dedos logo sangrando, afiados, marcam em meu mapa os lugares
Tacteio os muros em busca das janelas, noto a ponta dos dedos ferida de céu.
Vão-se apagando as cegueiras, no seio do rebanho de solitários
Os actos de caridade guardavam corpos, sofro na pele a nudez mais resguardada.
Em cima, os passos descalços da vocação perdida, aqui ao fundo aguardo um caminho.
Nas profecias arrancadas às palavras, as hemorragias empapam os túmulos
Um murmúrio negro solta as flechas, ladram mãos e braços feros de carne.
Há promessas de viagem na trovoada, a redenção espreguiça-se como um arco.
Consigo ver o olhar das minhas mãos, pressinto o coração da palma
Mármore, sou agora um céu de pedra, olhos que voam com endereço cego.
Uma ideia descalça no miolo da espada, são raios que me partem, as dúvidas.
Tudo ofereço a todos, para ti conservo um resto
Sopra a peste da denúncia, vento mole, vísceras de chumbo, demência amarga.
Na companhia íntima das raízes, o brilho da lágrima faz a morte hesitar.
Obrigam-me à carne, fecho-me, o fogo, a espada não calam a pérola
Árvore, sou agora seiva solar explosiva, pulsos que se soltam em copa e fruto.
Explode às vezes a coluna de pó, são as janelas que brincam de ameias.
Aquieta-se a luz, logo se vislumbra vivalma, perfume por entre fumos do sacrifício, último
Abriu-se a praça na cidade do exemplo, na tela repousa a gesta do desejo.
Desfaz-se o perigo naquelas mãos, sei de cor a dádiva de uma recusa.
O cristal é um osso que brilha, repousa sobre as escarpas das ilhas
A flor da carne abre-se ao céu plúmbeo, ninguém mais expiará outros males.
Anunciam-se os sábios e as palavras, mas se o círculo de pólvora limita os passos.
É de vidro este miolo do pão que parto, algo assim destino soprado, uma terra
Respiro o silvo das cordas, em arco, recebo os exércitos no peito, parto.
Cada onda da túnica é beijada pelo navio, estendo as mãos ao encontro dos estranhos.
Ande quem caia, esconda aquele que sabe, escreva o que arde, se ele me apontou a febre
Um espírito de força na nuvem imóvel, uma folha como seta tomba no outono.
Guarda o belo para o regresso, repousa a folha, um relâmpago no regaço.
Andam desejos na aranha, nem grito, tecem trevas ao cair, restolho de fugas
Um só suspiro de peste e eu quebro-me ali, doravante cobre-me a prece dos esquecidos.
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EXCERTO DE BREVES NOTAS SOBRE O MEDO
Gonçalo M. Tavares Desistência Não percebes a tradução que para uma língua longínqua, fizeram do teu pedido de socorro. Estás frente a ela como frente a palavras de um outro. E no entanto – essas palavras – na língua original, na tua – eram as mais capazes de te colocar novamente no mundo. Sem sequer reconheceres já o tom com que gritaste, e enojado com o facto de terem traduzido o teu pedido de socorro para uma Língua com a qual nunca contactaste – eis que desistes e, finalmente, aceitas, quase de bons modos, a impossibilidade de alguém te ouvir. Expectativas Aperfeiçoas de tal modo as tuas expectativas que quando chegas a velho já nada esperas do mundo, do homem ou dos animais. Viver Atacado ao longo do caminho por salteadores que o roubam e maltratam, o homem, sobrevivendo, regressa por fim a casa para preparar a próxima viagem.
Ung Vai Meng, Float, aguarela sobre papel
Aprendizagem À beira de um precipício, de cabeça para baixo, pelo seu mais ilustre professor agarrado somente pelos pés, eis que o aprendiz repete, assustado, a lição da manhã. Estar vivo Com os dois pés não apenas pousados no Mistério, mas nele como que afundados - de tal forma que já duvidas se sob uma película opaca e incompreensível eles ainda existem e te pertencem - eis que avanças o tronco tentando que pelo menos as mãos estejam fora do alcance dessa força de que não conheces origem nem limites. Como aquele que diz adeus quando se despede de alguém que ama e não sabe se voltará a ver, moves então a tua mão direita que aparece, como da manga de uma camisa comum, no lado de fora do Mistério onde caíste sem seres convidado e sem o desejares. Mas de facto a tua mão não se despede de ninguém – talvez peça ajuda. Uma razão para o fazeres Se não acorreres ao local, nunca poderás saber se quem grita por socorro o quer receber ou dar. (Relógio d’ Água, 2007)
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Q
Fernando Sobral uando faltam as ideias, o Medo reina. Compreende-se. O mundo é, em momentos de fragilidade, território fértil para espíritos não demasiado ilustrados. O Medo, sabe-se, é um veneno mortífero, o eclipse total da inteligêcia. Que escorrega, rapidamente, para o ódio. O filósofo britânico Bertrand Russell, escrevendo numa altura em que a II Guerra Mundial se preparava para terminar na Europa, observava que: “nem um homem, nem uma multidão, nem uma nação, pode ser confiável para actuar humanamente ou pensar de forma sã sob a influência de um grande medo”. Russell dizia-nos que o Medo irracional pode atirar-nos para atitudes irresponsáveis, de guerras injustas a tratamento inhumano dos outros, por forma a escondermos a nossa incapacidade para resolvermos os nossos problemas. O Medo é uma boa desculpa para nos livrarmos dos nossos pecados. O Medo cega. Pessoas e nações sucumbiram aos seus desígnios e, quer o século XX, quer o XXI, estão cheios de exemplos. Guerras e limpezas étnicas foram alimentadas pelo medo dos vizinhos. Até as democracias, almofadas de conflitos sociais, fundadas em princípios de liberdade e do bem comum, abrem hoje brechas e começam a sucumbir face a estados de alma mais musculados. E eles não surgem para minimizar o Medo, mas sim para controlarem os povos e consolidarem o poder. Maquiavel sabia a utilidade do Medo nos Estados. Um bom líder deve induzir o medo no povo, para controlar a situação, aconselhava. Hobbes, no “O Leviatã”, argumentava que o Medo motiva a criação de um contrato social no qual os cidadãos cedem as suas liberdades ao soberano. O governante impõe a segurança e ordem em troca do fim de certas liberdades. Para que o caos, receio de todos, não reine. A democracia americana, quando surgiu, pareceu provar o contrário: um povo livre, auto-governado, pode viver sem um soberano que está acima da lei. Mas, nos últimos anos, o Medo voltou, como uma farsa refinada: com os atentados terroristas, com a globalização, com as migrações. Pior: muitas vezes dizem-nos que o inimigo está entre nós. Se o queremos encontrar temos de olhar à nossa volta, desconfiar de tudo e de todos. Nada que seja diferente da cultura de individualismo que se tornou a nossa norma (a comunidade, as relações pessoais, deixaram de ser relevantes neste novo mundo pretensamente liberal). O Medo é o pretexto perfeito para a cada vez maior vigilância. De tudo. Da nossa vida particular, que
cedemos a troco de muito pouco. A “ilusão de segurança” é a comida rápida para os nossos medos. Criou-se o Grande Teatro do Medo. Hobbes já antecipava a necessidade do soberano manipular os nossos medos. Ele teria de convencer as pessoas que algumas coisas devem causar mais medo do que outras. Assim podemos vir a temer o medo menor, se formos bem guiados. O Medo faz com que, quem tem poder, possa acreditar que está acima da lei. O Medo incapacita perguntas pertinentes. Na política o Medo sobressai. O politólogo Carl Schmitt, que defendeu muitas acções de Adolf Hitler, dizia que o homem era o Diabo, um ser perigoso. Face ao medo que cada ser humano pode fazer a outro, o Estado encontra a justificação para a sua existência. A protecção feita pelo Estado é o argumento para a submissão dos cidadãos. Não admira. Desde crianças que temos medo. De monstros. De sítios escuros. De lugares desertos. De ficarmos sozinhos. Podemos resistir ao medo, mas dá trabalho. Mas, como dizia Bertrand Russell, “vencer o medo é o início da sabedoria”. Mas hoje os caminhos estão minados: na sua lógica de serventia, a Esperança e o Medo são o mesmo, duas faces de uma mesma moeda. Hoje todos delegam o seu destino político nas mãos do arbítrio de quem manda. Quem maneja e manipula o poder administra o futuro e a esperança. Os escravos do presente são aqueles que, com medo, renunciam ao presente para sonhar com o futuro que, dizem, lhes está reservado. A planificação do Medo está diante dos nossos olhos. Ligado ao simbolismo do prazer que emana das novas tecnologias, é uma vasta planície que vai sendo colhida defronte dos nossos olhos. Há uma velha fórmula de Cícero que diz: “Nec spre, Nec Metu!” (“nem esperança, nem medo!”). Se assim fosse, poderíamos olhar para a farsa, e ver, no palácio de enganos, o poder a ruir. Vivemos num novo momento Frankenstein, a criação de Mary Shelley. Frankenstein, como monstro, causa medo. Os personagens da novela têm medo do monstro devido a ser feio e ter uma força bruta em limites. Mas aliada a esse medo exterior há o medo psicológico, o mais letal de todos. Somos incapazes de ser Deuses. Mas todos sentimos que poderíamos ser Frankenstein. Através do monstro, Shelley avisa-nos que a solidão, a miséria e a raiva são uma espiral que nos pode atirar, mais tarde, para a dor e o arrependimento. E, antes, para o ódio. Somos vulneráveis. E isso conduz-nos ao Medo. Nestes tempos, entre a Disneylância e o manicómio, o Medo está a ser-nos servido como uma dor insuportável. Resta saber se sabemos lutar contra ele, como recomendava Cícero.
O GRANDE TEATRO DO MEDO
The Bride of Frankenstein
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VINTE ANOS A LER DEVAGAR. ANÚ NCIO LER 2019 DEVAGAR.indd 1 OUTUBRO
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