Conecthos abril 2016

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5 REVISTA DO HOSPITAL DONA HELENA

PARA ONDE VAMOS?

Mistérios do cérebro e do genoma revelados apontam para caminhos de evolução, mas há incertezas

ALERTA PARA O ZIKA VÍRUS 6 Campanha mundial destaca esclerose lateral amiotrófica 8 ADMIRÁVEL MUNDO NOVO 12 Projeto Genoma auxiliará no combate a doenças 16 UM JEITO NOVO DE SENTIR O MUNDO 20 Mulheres ainda sofrem com a violência 24 EM BUSCA DE TOLERÂNCIA 28 Diálogos sobre bioética 33 UMA CRISE QUE INSTAURA O CAOS 39 Notícias da SBB/SC 44



Nesta edição Accredited by Joint Commission InternationalTM

Associação Beneficente Evangélica de Joinville/Hospital Dona Helena Rua Blumenau, 123 Centro - Joinville/SC CEP 89204-205 (47) 3451-3333 www.donahelena.com.br Revista CONECTHOS é um projeto do IDHEP – Instituto Dona Helena de Ensino e Pesquisa – Núcleo Editorial ISSN: 2358-8217 Coordenação geral: Carlos José Serapião Conselho editorial: Ana Ribas Diefenthaeler, Antonio Sérgio Ferreira, Gizele Leivas, Letícia Caroline Editores associados: Bruno Rodolfo Schlemper Jr., Christian Ribas, Maria José Varela, Fernando Hellmann, Nelma Baldin, Euler Westphal, Wladimir Kümmer, José Carlos Abellán (Espanha) Jornalista responsável: Guilherme Diefenthaeler (reg. prof. 6207/RS) Produção: Mercado de Comunicação Edição: Letícia Caroline e Guilherme Diefenthaeler Reportagem: Letícia Caroline, Karoline Lopes, Mayara Pabst, Marcela Güther, Ana Ribas Diefenthaeler e Guilherme Diefenthaeler Diagramação: Fábio Abreu Fotografia: Peninha Machado e banco de imagens Impressão: Impressora Mayer Tiragem: 2 mil exemplares Redação: contato@mercadode comunicacao.com.br Apoio Associação Beneficente Evangélica de Joinville/Hospital Dona Helena Sociedade Brasileira de Bioética / Regional Santa Catarina

Vive-se uma inquietação generalizada com o futuro. Com tantas tecnologias e avanços na medicina cada vez mais acessíveis, a equipe da Revista Conecthos embarcou no desafio de imaginar uma sociedade que possa se valer do mapeamento genético para prever doenças, assim como utilizar a reprodução assistida para escolher embriões mais fortes e saudáveis. Parece ficção científica? Pois esses assuntos estão cada vez mais em evidência, exigindo também uma reflexão ética e bioética sobre as manipulações. É preciso equilibrar o uso de tais informações para que estas contribuam com a prevenção e o cuidado de doenças como a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), abordada nesta edição, ou a descoberta do funcionamento de condições neurológicas como a sinestesia. Além de pensar em uma sociedade para o amanhã, o leitor poderá ler sobre temas polêmicos que permeiam o Brasil, como a violência contra a mulher e a crise política e econômica.

4 Nossa palavra 6 Zika vírus em debate 8 As implicações da ELA 12 Ficção científica na realidade 16 Possibilidades do genoma 20 Os mistérios da sinestesia 24 Violência contra a mulher 28 Das intolerâncias do mundo 33 Diálogos 39 Crise econômica e política 44 Atualidades da SBB/SC


Nossa palavra

Refletindo sobre os saberes no futuro Carlos José Serapião

Coordenador do Instituto Dona Helena de Ensino e Pesquisa (IDHEP)

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futuro parece mostrar que, cada vez mais, acentuam-se as estreitas relações do humano com as tecnologias sociais, biotecnologias, nanotecnologias, biologia molecular, informática, genética etc., tornando obrigatório o questionamento sobre como será estabelecida essa complexa conexão que inevitavelmente deverá ser construída – e que tipo de convivência dela surgirá. Ninguém duvida que esses conhecimentos e objetos, longe de permanecerem como “bebês”, se modificarão rapidamente em uma direção desconhecida e seguramente pouco familiar para muitos de nós. Desse modo, a performance humana deverá ser preparada de maneira também complexa, por meio de uma coletânea de questionamentos e comportamentos capazes de cuidar com seriedade desses novos “interlocutores”, criados a partir da convergência daquelas ciências, levando em conta o que serão nossos sentimentos como pessoas e as nossas relações enquanto grupo social.

Com essa preocupação, as respostas para o futuro não estarão completadas somente por saber se nossas crianças estarão gostando mais dos seus pequenos robôs do que de seus pais, mas em buscar, no mundo dos sentimentos morais, qual a natureza daquele “gostar”. Todos falam com entusiasmo da sociedade do conhecimento, sem deixar transparecer uma suficiente consciência dos problemas que ela comporta, das exigências que apresenta, das competências que demanda, como fatores imprescindíveis aos indivíduos e às instituições. Estamos habituados a celebrar, com desmedido entusiasmo, o fácil acesso à informação, como se ela nos tornasse mais sábios, fechando os olhos para um novo tipo de ignorância para o qual a complexidade, a quantidade e a superficialidade da informação parece nos condenar. Neste momento, convidamos nossos leitores a meditar sobre alguns dos inconvenientes desta sociedade do conhecimento, oferecendo estratégias que permitam sobreviver neste ambiente complicado, cuja realidade nos é oferecida, a todo tempo, por instrumentos, informações e processos, transformando nossa compreensão do mundo em algo que se adquire “de segunda mão” . A partir da crítica reflexiva sobre importantes tópicos apresentados nas próximas páginas, esperamos ter criado a oportunidade de um “caminhar de braço dado” com especialistas que se propuseram a responder perguntas, relatar experiências e expor temas atuais, com a certeza de estar contribuindo com muito mais do que a simples informação.


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Uma imagem

Institucional

Zika Vírus: uma preocupação mundial Apesar de Joinville não ter registrado casos do Zika Vírus, mas reconhecendo o interesse público em torno do tema, o Hospital Dona Helena promoveu um simpósio sobre a doença para conscientizar a população e a comunidade médica. O encontro, realizado no centro de eventos da Expoville, reuniu palestrantes renomados. Kleber Giovanni Luz, professor doutor de medicina da Universidade Potiguar (RN), iniciou a programação falando das semelhanças que podem atrapalhar o diagnóstico do Zika Vírus, da dengue e da chikungunya. “É impossível discutir um sem pensar nos outros”, afirmou, na palestra “O vírus, a doença e a minha experiência”. Transmitida pelo mosquito Aedes Aegypti, a doença já atingiu 19 Estados brasileiros. “O vírus foi identificado pela primeira vez em 1947, em macacos de uma floresta da Uganda. Em 1952, foi isolado pelo ser humano. Desde então, tivemos alguns surtos na Micronésia e na Polinésia Francesa”, explicou Márcio Leyser, pediatra do desenvolvimento e comportamento da Rede Sarah. O

Capacitação para o atendimento ao câncer O Hospital Dona Helena trabalha para ampliar sua área de ensino e pesquisa, por meio do Instituto Dona Helena de Ensino e Pesquisa (IDHEP). No início deste ano, mais um passo rumo a esse objetivo foi dado, com o lançamento da residência em área profissional com ênfase em atenção ao câncer. Voltado para estudantes de enfermagem, nutrição e farmácia, o programa abriu quatro vagas, com bolsas de estudo oferecidas pelos ministérios da Educação e da Saúde. Em parceria com o Bom Jesus/Ielusc, faculdade de Joinville, a proposta é oferecer capacitação em três áreas essenciais para o tratamento do câncer: cuidado, alimen-

Em 1916, a Associação de Socorro das Senhoras Evangélicas fundava uma instituição para cuidar de crianças e idosos. Há 100 anos, a semente que deu origem ao Hospital Dona Helena foi plantada e germinou até chegar ao centro hospitalar de ponta, reconhecido como uma das principais instituições de saúde do Sul do Brasil.

médico foi responsável pela palestra “Microcefalia e o vírus Zika”. “Não sabemos responder corretamente qual a causa do nascimento de bebês com essa condição neurológica”, apontou. A médica Pamela Passos foi a terceira palestrante e falou sobre complicações neuromusculares do vírus Zika. “Precisamos ficar atentos aos casos de Síndrome de Guillain-Barré que surgem em pacientes diagnosticados com o Zika”, sublinhou. “Só em janeiro, atendemos mais de 14 pessoas no grupo de estudos da Universidade Federal Fluminense.” Para encerrar o seminário, o neuroimunologista joinvilense Jean Pierre Schatzmann, pós-doutor pela Universidade de Harvard, abordou o tema “O vírus Zika e o sistema nervoso: quais as evidências?”. “Precisamos de toda ajuda necessária, estamos enfrentando uma situação de emergência global”, finalizou.

tação e medicação. Os estudantes, acompanhados dos preceptores e professores, vão passar por diversos setores da instituição, além de atuar na rede básica de saúde da cidade. A oncologia é uma das áreas de prioridade do Ministério da Saúde e, no Hospital Dona Helena, dispõe de um ambulatório representativo, o que deve auxiliar no aprendizado dos alunos. A ideia é que, no futuro, as oportunidades aumentem, abrangendo outras áreas.


Banco de imagens HDH

Novo site aprimora navegação Para marcar o ano do centenário, o Hospital Dona Helena revitalizou sua página na internet. O site traz tecnologia avançada e plataforma responsiva, para que o usuário consiga acessá-la a partir de diversos dispositivos móveis. Outra novidade é a integração com as redes sociais. Os pais poderão publicar na seção “Bebê Online” a partir do Instagram. A página principal apresenta o tempo de espera para atendimentos na Emergência. A aba “Atendimento”, voltada para pacientes, visitantes, equipe médica e profissionais e fornecedores, é diferenciada por cores, o que facilita a procura pela informação correta, principalmente por quem tem dificuldades visuais.

Em três idiomas – português, inglês e alemão –, a página tem características atemporais, modernas e inovadoras, que condizem com as características da própria instituição. Nesta terceira versão do site, a proposta da equipe responsável é transformar o espaço em um portal do paciente. Novas projetos estão em desenvolvimento para agregar ainda mais praticidade. O projeto foi concebido pelos setores de Comunicação e Marketing e Tecnologia da Informação do hospital, em parceria com a agência For.b.


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Doença

A vida com ELA

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cena foi repetida inúmeras vezes no ano de 2014: uma pessoa, em frente à câmera, enchia um balde com água e gelo, virava-o em sua própria cabeça e desafiava outras três a fazer o mesmo. De Bill Gates a Ivete Sangalo, passando por Xuxa, Gisele Bündchen, Valesca Popozuda, Lady Gaga, Robert Downey Jr, Chris Evans e muitos outros, celebridades e anônimos do mundo todo se uniram na campanha que tinha como objetivo angariar recursos financeiros para entidades que pesquisam a Esclerose Lateral Amiotrófica, mais conhecida como ELA. Estima-se que as doações realizadas em todos os países tenham alcançado os US$ 150 milhões. “No Brasil, as arrecadações foram naturalmente em menor proporção. Contudo, não tenho a mínima dúvida de que o maior legado do desafio do balde de gelo tenha sido a divulgação da doença, a existência dessa condição e as diferentes necessidades dos pacientes com esse diagnóstico”, explica o neurologista da Associação Brasileira de Esclerose Lateral Amiotrófica (Abrela), Wladimir Bocca Vieira de Rezende Pinto. A ELA é uma das principais doenças neurodegenerativas e tem como características a fraqueza e a atrofia muscular. “Esclerose significa endurecimento. Lateral indica que o feixe lateral da medula espinhal está acometido. Amiotrófica aponta a ausência de músculo, ou seja, fraqueza”, esclarece Wladimir Kümmer, neurologista do Hospital Dona Helena. Segundo o médico, as causas são divididas em “esporádicas” (cerca de 95% dos casos) e “familiar” (quando manifestada em pacientes com parentes de primeiro ou segundo grau que apresentam histórico semelhante). “Porém, há cerca de quatro anos, uma série de descobertas moleculares demonstrou que em boa parte dos casos existe a predisposição genética, isto é, uma vulnerabilidade individual determinada geneticamente. O que ainda não está bem esclarecido é o que desencadeia a doença.” O principal sintoma da ELA é a fraqueza muscular, que tem início geralmente em um dos membros e, ao longo de meses,

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Eddie Redmayne ganhou o Oscar de melhor ator pelo trabalho no filme “A Teoria de Tudo”, no qual interpreta Stephen Hawking. O roteiro foi baseado no livro, de mesmo nome, escrito pela exmulher do cientista progride para outros, podendo envolver também a musculatura bulbar, importante para a deglutição e a fonação. A rigidez dos membros e a dificuldade respiratória também são sinais importantes. O diagnóstico da doença é realizado com base em informações clínicas obtidas a partir do histórico médico e exames


Arquivo pessoal

“A Abrela é responsável por diferentes tipos de suporte ao paciente, integrando-o à rede de cuidados e repassando informações” Wladimir de Rezende Pinto

físicos detalhados, associados a dados do exame de eletroneuromiografia, que mostra a lesão do neurônio motor inferior, e de exames de neuroimagem, que afastam a possibilidade de outras condições clínicas que possam mimetizar os sintomas da ELA. “Em geral, leva-se três meses para o diagnóstico e não há um exame de sangue específico que aponte para ‘positivo’ ou ‘negativo’. Por outro lado, já é possível, ainda no campo das pesquisas, determinar se alguma pessoa tem predisposição genética para a doença. Para tanto, é necessário um exame de análise do DNA, especificamente nas regiões envolvidas”, completa Kümmer. Assim que um caso é confirmado, informa-se ao paciente os principais cuidados que devem ser tomados, envolvendo profissionais multidisciplinares, como de acompanhamento periódico, fisioterapia motora e respiratória, suporte nutricional e fonoterapia. Apesar dos avanços da medicina, a ELA não tem cura, mas, ao longo de seu desenvolvimento, é possível utilizar recursos

para deixar o paciente mais confortável. “Se, por um lado, a ELA é inexoravelmente fatal, por outro, representa uma das únicas doenças que permitem ao paciente planejar com tempo suficiente o seu fim, o que pode ser encarado como positivo, por mais sombrio que pareça”, observa Kümmer. O tratamento é feito com medicamentos neuroprotetores por via oral, medicamentos sintomáticos (para controle de sintomas que originam piora da qualidade de vida dos pacientes), medidas de reabilitação motora e respiratória (fisioterapia motora e hidroterapia), fonoterapia especializada, suporte nutricional adequado e medidas de ventilação não-invasivas. Recentemente, pesquisadores da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, fizeram uma descoberta que pode trazer esperança para médicos e pacientes. A ELA provoca a morte dos neurônios motores, células nervosas responsáveis por todos os movimentos do corpo. Os cientistas estudaram uma proteína chamada SOD1 que, quando se une em grupos de três, forma o trímero. É o trímero, por ser muito tóxico para os neurônios, que acaba matando as células. “Conhecer a origem da ELA pode levar a tratamentos para retardar, parar ou mesmo curar a doença”, declara, na publicação, Nikolay Dokholyan, responsável pelo achado. O próximo passo é descobrir um remédio que impeça a formação dos aglomerados.

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Aos 74 anos, Stephen Hawking é um dos ícones da física

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Quem foi Stephen Hawking Stephen William Hawking nasceu em Oxford, na Inglaterra, em 9 de janeiro de 1942. Precoce, com 17 anos, ganhou uma bolsa para estudar física na Universidade de Oxford. Quatro anos depois, começou a se comportar de maneira estranha: caía, esbarrava em objetos, derrubava o que estava carregando e não parecia controlar o próprio corpo. Um dia, caiu de patins e não conseguiu mais se levantar. No hospital, foi diagnosticado com Esclerose Lateral Amiotrófica e recebeu a estimativa de, no máximo, três anos de vida. Na época, conheceu a estudante de artes Jane Wilde. Os dois se casaram, tiveram três filhos e, em 1970, Hawking parou de andar e passou a se locomover em cadeira de rodas. Com a saúde debilitada, na década de 1980, durante viagem à Suíça, pegou uma pneumonia e foi submetido a uma traqueostomia, cirurgia que colocou um tubo de ar em sua garganta, facilitando sua respiração. O procedimento salvou sua vida, mas ele nunca mais falou.

Histórico da doença Os primeiros registros da Esclerose Lateral Amiotrófica são de 1830, quando Charles Bell, anatomista e cirurgião britânico, descreveu em suas anotações uma mulher com paralisia progressiva dos membros e da língua, com sensibilidade normal. No Brasil, o primeiro caso foi apontado pelo médico Cypriano de Freitas, em 1909. Em 1998, Acary Souza Bulle Oliveira, neurologista e responsável pelo setor de

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investigação de doenças neuromusculares da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina (Unifesp-EPM), implantou um modelo de suporte ao paciente com ELA. A ideia mobilizou um grupo de neurologistas para a criação da Associação Brasileira de Esclerose Lateral Amiotrófica (Abrela). “Os objetivos da entidade são amplos e mostram a importância da sua existência e atuação no cenário da ELA. A Abrela é responsável por fornecer diferentes tipos de suporte ao paciente, integrá-lo à sua rede de cuidados e trazer as informações mais recentes relativas a dados clínicos, epidemiológicos, novas descobertas e terapêuticas”, diz o neurologista Rezende Pinto.


Arquivo pessoal

Novas perspectivas A pesquisadora e docente da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Daiana Ávila, foi uma das sete vencedoras do Prêmio “Para Mulheres na Ciência”, promovido em outubro de 2015 pela L’Oreal Brasil em parceria com a Unesco Brasil e com a Academia Brasileira de Ciências (ABC). O projeto vencedor é intitulado “Avaliação dos mecanismos de atraso da progressão da Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) pela ingestão de trealose e vitamina E em Caenorhabditis elegans” e tem como objetivo desenvolver tratamentos alternativos capazes de atrasar a progressão da doença e causar menos efeitos colaterais que os promovidos pela medicação existente. “Nosso grupo de pesquisa utiliza um modelo alternativo ao uso de animais para estudar agentes tóxicos e também para avaliar novas moléculas e produtos naturais. Neste projeto, estamos utilizando uma cepa mutante que apresenta sintomas que podem ser projetados aos que se apresentam em mamíferos com esclerose lateral amiotrófica para tentar retardar a progressão dos danos com a associação de trealose e vitamina E”, explica. Segundo a professora, ainda não é possível apontar resultados conclusivos: “No momento, estamos padronizando os vermes que apresentam a doença, verificando a neurodegeneração, o estresse oxidativo e a paralisia que ocorre nos vermes. Também estamos testando as doses seguras de trealose e vitamina E para aplicar nos testes”. O programa promovido pela L’Oreal, Unesco e ABC bus-

“O reconhecimento nos deu certeza que se trata de um trabalho relevante, apesar de ser um estudo básico” Daiana Ávila

Pesquisa reconhecida na área da ELA

ca incentivar e reconhecer o trabalho de jovens pesquisadoras e colaborar para o equilíbrio dos gêneros no cenário científico nacional e internacional. Para Daiana, a vitória foi um incentivo importante para a continuidade do projeto. “Essa conquista nos deu a certeza de que o trabalho tem relevância, apesar de ser um estudo básico. Além disso, valoriza ainda mais mulheres que estão trabalhando com afinco como cientistas, uma vez que é ainda um mundo bem masculino”, finaliza.

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Evolução

A revolução que vem da genética

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om o avanço de novas tecnologias e investimentos na ciência, a ideia de uma vida mais longa e saudável é cada vez mais comum. Dominar doenças e prolongar a presença entre os entes queridos, tudo isso devido às manipulações feitas antes mesmo do nascimento. Essa hipótese abre um novo campo de possibilidades, consideradas perigosas por muitos membros da comunidade científica, pois tenderiam a reduzir a vida à engenharia, transformando filhos em artigos de consumo. Caso a manipulação genética venha a se tornar um procedimento padrão, em algumas décadas, seria o início do “Admirável Mundo Novo”? No livro, escrito em 1932 pelo britânico Aldous Huxley, bebês humanos são produzidos em laboratório e recebem características específicas, de acordo com

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a casta social à qual pertencem. Hoje, o procedimento mais próximo da manipulação genética existente é o Diagnóstico Genético Pré-Implantacional (DGPI). “Quando você faz um tratamento de fertilização in vitro, há um pré-embrião desenvolvido no laboratório. O médico responsável realiza uma biópsia e retira uma ou duas células, que carregam um núcleo com o material genético herdado pelo pai e pela mãe. Assim, é possível realizar pesquisas para encontrar determinadas doenças, como a Síndrome de Down, a hemofilia e o câncer”, explica Fábio Choma, médico ginecologista e obstetra, especialista em reprodução humana do Hospital Dona Helena. A professora, bióloga e mestre em genética Valeria Cristina Rufo Vetorazzi ressalta que a análise não elimina


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todos os problemas genéticos: “Os exames procuram por determinadas anomalias. E quanto àquelas de que nem temos conhecimento? Pensando na questão ética, se alguma doença for detectada, o que fazer com os embriões?”. Por lei, no Brasil, a seleção embrionária só é permitida para evitar doenças que podem levar à morte, como determinados tipos de câncer. E, em situações que só afetam homens ou mulheres, os pais podem escolher o sexo do bebê. Mas, entre detectar doenças, fazer alterações em beneficio da saúde e criar superbebês, há um longo caminho. Assim que um casal decide ter filho, os dois procuram um especialista para selecionar os genes que desejam transmitir. Em outras palavras, procuram um especialista para projetar o bebê. Não, essa situação ainda não é possível, mas

pode vir a se concretizar através da manipulação genética, num futuro incerto. “Não sabemos a função de todos os genes. O ideal seria conhecer todos os genes envolvidos no metabolismo com que você está trabalhando, pois eles passam por várias etapas e podem agir de maneiras diferentes”, aponta Dalva Marques, professora da Universidade da Região de Joinville (Univille) e mestre e genética. “É perigoso sair do campo da saúde, fazendo essas manipulações para auxiliar alguém que precisa, para entrar numa

“Quando se tenta a eugenia, pode se ter problemas com o meio ambiente e perder uma população inteira” Dalva Marques

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Para Valeria, em uma população muito semelhante geneticamente, os descendentes não se mantêm Arquivo pessoal

“Pensando na questão ética, se alguma doença for detectada, o que fazer com os embriões?” Valeria Vetorazzi questão estética, como escolher cor de cabelo e altura. A seleção natural não atuará mais sozinha”, complementa Valeria. Segundo ela, um dos principais benefícios das manipulações é a possibilidade do aumento da qualidade de vida: “Porém, se o objetivo se tornar estético, vamos começar a pensar em características que não levariam a uma sobrevida adequada”.

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A busca por esse “melhoramento genético” da população tem como o exemplo mais radical os experimentos realizados pelos alemães, durante a Segunda Guerra Mundial. A Alemanha nazista estipulou uma hierarquia entre as “raças humanas”: no topo, estava a “raça nórdica”, seguida das “raças inferiores”. Na parte mais baixa da política racial, situavam-se os africanos, ciganos e judeus, mandados para campos de concentração e exterminados durante o holocausto. Outra ferramenta utilizada foram as Leis de Nuremberg, que proibiam o casamento ou contato sexual de alemães com judeus, pessoas com pro-


“É importante lembrar que o desenvolvimento de uma pessoa não está só na parte genética. Não adianta criar um superatleta se a pessoa for sedentária” Fábio Choma

blemas mentais, doenças contagiosas ou hereditárias. “Quando se tenta a eugenia, a criação de uma raça pura, pode se ter problemas com o meio ambiente e perder uma população inteira. Esses indivíduos terão os genes tão selecionados que não conseguirão trabalhar com as mudanças de ambiente”, afirma Dalva. De acordo com a professora, a variabilidade genética é um fator importante. “Quando são todos muito semelhantes geneticamente, os descendentes não conseguem se manter no ambiente”, complementa Valeria. Não há como prever quais serão os resultados dessas possíveis manipulações genéticas e o que isso significará futuramente. Para Fábio Choma, a experiência pode ser positiva. “Se a medicina conseguir driblar alguns obstáculos, por que não? Mas é necessário lembrar que o desenvolvimento de uma pessoa não está só na parte genética. Está no meio em que ela vive, é criada, o tipo de alimentação etc. Não adianta criar um superatleta geneticamente se a pessoa for sedentária”, observa o especialista. Quociente de Inteligência (QI), altura, peso, cor dos olhos. Todas as características humanas ancoram um fundamento genético e ambiental. Para criar um bebê superinteligente, por exemplo, os cientistas podem dar todas as ferramentas genéticas, mas ainda é preciso pensar em aspectos como personalidade e comportamento. “Isso é preocupante. Você terá as manipulações acontecendo e deixando de lado a seleção natural. A tendência seria levar a uma homogeneidade e isso poderia proporcionar o aparecimento de doenças que estariam ligadas ao fato de esses indivíduos não conseguirem, por sua condição genética, suportar a pressão do ambiente. Você estaria selecionando tanto o organismo que a população perderia a variabilidade”, finaliza Valeria.

Na ficção Manipulação genética e seus possíveis resultados já foram discutidos em livros e filmes. Conheça algumas obras que falam sobre o tema Gattaca O filme de 1997 se passa em um futuro no qual os seres humanos são criados geneticamente em laboratórios e as pessoas concebidas biologicamente são consideradas “inválidas”. O espectador é apresentado ao personagem de Ethan Hawke, Vincent Freeman, um inválido que consegue lugar de destaque em uma grande corporação, escondendo sua verdadeira origem. Admirável Mundo Novo Escrito por Aldous Huxley, o livro mostra uma sociedade futura que é dividida em castas e os bebês são produzidos em laboratórios onde têm todo seu desenvolvimento embrionário controlado por cientistas. O Parque dos Dinossauros Escrito pelo americano Michael Crichton e adaptado para os cinemas pelo cineasta Steven Spielberg, “O Parque dos Dinossauros” usa a teoria do caos e suas implicações filosóficas para explicar o colapso de um parque de diversões povoado por dinossauros, recriados através de manipulação e engenharia genética.

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Genoma

Leitura de descobertas para a vida

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genoma de um indivíduo se compõe de 3 bilhões de pares de sequenciamento e 22 mil genes. Os produtos desses genes interagem entre si e centenas de milhares de mutações afetam as células do corpo humano. Diante de um campo de estudo tão extenso e complexo, não é à toa que as técnicas de mapeamento genético e de sequenciamento do genoma humano são consideradas um trunfo tecnológico e científico. Iniciado a um custo de U$ 1 bilhão, com o advento do Projeto Genoma, em 1990, o passar dos anos barateou o custo e há procedimentos já feitos por não mais que US$ 2 mil.

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Mesmo com recursos limitados, desigualdades podem ser minimizadas por meio de políticas e medidas práticas fundamentadas na equidade e responsabilidade social” Paulo Antonio de Carvalho Fortes

Dados do Projeto Genoma Humano apontam que, dentro de alguns anos, será possível reconstruir uma árvore genealógica por menos de US$ 100, em uma hora, tempo ínfimo em comparação aos 13 anos exigidos no começo dos estudos. Nesse cenário, qualquer pessoa poderá ter um mapa detalhado com sua predisposição genética a uma série de doenças e características, levando o paciente a descobrir, por exemplo, se tem resistência a determinado tipo de droga e qual dose medicamentosa seria mais eficiente para combater ameaças a sua saúde. A previsão revoluciona o universo da medicina – e essa realidade digna de roteiro cinematográfico está mais perto do que se imagina. O genoma é toda a informação hereditária de um organismo. Dentro dele estão os cromossomos, e dentro de cada cromossomo existem os genes, responsáveis por desencadear características e comportamentos. Com o objetivo de desvendar esse imenso quebra-cabeças, o Projeto Genoma identificou


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No futuro, será possível reconstruir uma árvore genealógica por menos de US$ 100

onde ficava cada um dos 3 bilhões de cromossomos do código genético humano, ação denominada de sequenciamento. A partir desse processo, são possíveis a obtenção de informações sobre a linha evolutiva humana e a descoberta de novos métodos de diagnóstico, informações para formulação de novos medicamentos, vacinas e ações de prevenção e tratamento mais eficazes. No mesmo caminho, especialistas estão trabalhando para saber a função de cada um dos genes. Essa

leitura é denominada mapeamento genético. A partir das descobertas do Projeto Genoma, os mapas genéticos têm sido utilizados com sucesso cada vez maior: cerca de 2 mil doenças já são identificadas por testes genéticos, como hemofilia, distrofia muscular e câncer. De acordo com a médica geneticista Maria Carolina Ferreira Barbosa Ribas, do corpo clínico do Hospital Dona Helena, o mapeamento genético pode ser realizado em qualquer indivíduo para a descoberta de doenças ou propensão ao desenvolvimento de enfermidades. A questão mais importante que envolve esse procedimento é o resultado interpretado por um profissional capacitado, pois, nas mãos de pessoas leigas, o material se torna obsoleto. “Todo mapa genético necessita de uma interpretação adequada e de uma consulta para aconselhamento genético, com médico geneticista. No encontro, serão avaliadas as reais necessidades e o tipo de mapeamento genético a ser realizado”, explica Maria Carolina. Após a consulta com especialista, é preciso assinar um termo de consentimento e a coleta de sangue ou outro material que contenha DNA. Nas amostras, o DNA é isolado, e então pode ser feito o mapeamento, por equipamentos denominados “sequenciadores de DNA”. Para que esse procedimento de sequenciamento completo realmente influencie o setor da medicina em todo seu potencial, milhares de genomas precisam ser decodificados e, para tanto, são necessários métodos para agilizar e baratear o sequenciamento. Atualmente, esses métodos são uma realidade. Um dos mais novos sequenciadores de DNA, o Next Generation Sequency

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Peninha Machado

(NGS) é capaz de mapear mais de 300 genes de uma só vez e descobrir modificações para mais de 800 doenças, no prazo de 27 horas. Parte do projeto “Genoma por U$ 1.000”, o NGS busca o barateamento do mapa genético, assim como sua disponibilização social. Já existem também ferramentas para a “tradução” do material genético ao entendimento de profissionais que não são especialistas em genética. O software Elsie lê toda a informação genética da amostra coletada e consegue responder a perguntas sobre o paciente, como sua taxa de resposta a certos remédios ou sua predisposição para o desenvolvimento de doenças. O equipamento já chegou ao Brasil e está em fase de testes no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. Estão disponíveis no país, também, painéis genéticos de câncer, recurso interessante para quem tem histórico familiar da doença, com a possibilidade de descobrir se é portadora de defeitos genéticos que a predispõe a algum tipo de câncer. A partir dessa análise, a pessoa pode passar a tomar medidas preditivas ou colocar em prática ações já relacionadas ao tratamento. É o que ocorre com os pacientes que participam de pesquisas clínicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A professora e pesquisadora Patrícia Prolla explica que, para selecionar os candidatos aos estudos, considera-se, entre outros fatores, o histórico familiar. Uma pessoa que ainda não desenvolveu determinada doença, mas apresenta histórico familiar, é convidada, e nesse processo é feita a primeira etapa do projeto, com a associação da alteração genética. Caso seja identificado determinado

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Maria Carolina: interpretação é essencial no uso do mapa genético

gene relacionado à doença, em um segundo momento, são encaminhados estudos para o entendimento dessa associação e o conhecimento das mutações que levaram aquelas células à predisposição relacionada ao câncer. Ao longo do processo, não é estudado o genoma completo, por inviabilidade financeira, mas sim partes específicas do material genético, como células relacionadas a cânceres hereditários como câncer de mama, de intestino, de ovário e de pele. “Quando é confirmada a alteração genética, relacionada à propensão de câncer, estimamos a probabilidade de a pessoa desenvolver tal doença e também iniciamos um processo de medicina preditiva e preventiva. Uma pessoa que ainda não tem a doença, mas mostra propensão para desenvolvê-la, por


Na visão de José, Rocha, a medicina está se voltando novamente para o bem-estar

exemplo, pode passar a tomar uma série de medidas preventivas. A partir desse estudo, é possível identificar e direcionar o tratamento recomendado pelo oncologista”, explica a pesquisadora. Nos Estados Unidos, onde o cenário de pesquisas em mapeamento e sequenciamento genético já está mais avançado, existem profissionais denominados “aconselhadores genéticos”, que acompanham o processo de mapeamento genético dos pacientes do início ao fim. Para a pesquisadora Patrícia Prolla, esses profissionais são de extrema relevância, possibilitando que as diretrizes do sequenciamento sejam exploradas corretamente. “A principal chave para aproveitarmos todo o potencial desse universo é a tradução do conhecimento para o público. Os pacientes precisam ter acesso à explicação clara e honesta de determinada alteração genética e por que ela acontece”, explica. No Brasil, a profissão ainda não é regulamentada e os avanços no setor estão diretamente relacionados à disponibilização de verbas para estudos nesta área. A pesquisadora relata que os investimentos são restritos, principalmente em se tratando da iniciativa privada, opinião compartilhada pela professora do departamento de genética e coordenadora do programa de pós-graduação em genética e biologia molecular da UFRGS, Maria Cátira Bortolini. Ela acredita que, se a iniciativa privada investisse também nesse tipo de pesquisas, como em outros países, o cenário no país estaria bem mais avançado.

“Com tratamentos cada vez mais caros, devemos voltar nossa atenção para a medicina preditiva” José Claudio Casali da Rocha

Arquivo pessoal

Dados em benefício da medicina preditiva Acredita-se que, no futuro, o mapeamento genético será procedimento médico trivial. Daqui a 20 anos, os avanços no sequenciamento do genoma serão mais promissores, possibilitando maior facilidade ao mapeamento. Nesse cenário, o mundo se adaptará ao universo genético, remédios apresentarão restrições a pessoas que possuírem determinados genes, novas profissões e especializações médicas serão criadas e será possível identificar causas e efeitos da suscetibilidade e resistência a determinadas condições, de forma bem mais acessível. Para o oncogeneticista, membro do Conselho Nacional de Saúde (Conep) e professor José Claudio Casali da Rocha, a medicina está se voltando à aplicabilidade de um importante fator até então deixado para trás: o bem-estar. Os avanços alcançados a partir do mapeamento genético ampliam de o meio preventivo da medicina, ao ponto de estimular hábitos mais saudáveis, com embasamento factual, para a prevenção de doenças. O universo de pesquisas, estudos e diagnósticos feitos a partir do sequenciamento do genoma se restringe à abrangência de doenças que podem ser prevenidas, justamente com esse objetivo: apagar o incêndio antes que tome proporções gigantes.

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Neurologia

Qual é o gosto da palavra “sinestesia”?

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escritor russo Vladimir Nabokov (1899-1977), em sua autobiografia “A Pessoa em Questão” (1994), relatou que, quando criança, via cada uma das letras do alfabeto em uma cor distinta – por isso, ficou muito perturbado quando ganhou uma caixa de letras coloridas e

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percebeu que quase todas eram da cor “errada”. Sua mãe concordou que as cores estavam erradas, mas sua opinião sobre a cor certa para cada letra não coincidia com a do filho. Ambos tinham sinestesia – também presente na esposa de Nabokov e no filho do casal –, um fenômeno neurológico raro que atinge quase 4% da população, segundo pesquisa dsa Universidade de Oxford. “Já foram descritas famílias em que vários indivíduos apresentam diferentes


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sinestesias, o que nos induz a acreditar no papel da hereditariedade. Mas o fato é que ainda não há evidência científica suficiente para confirmar esse dado. O que se admite é que, certamente, a predisposição para se desenvolver sinestesias envolve um componente genético, mas que pode ou não se manifestar conforme o meio ou aprendizado ao longo do desenvolvimento do indivíduo”, explica Felipe Ibiapina dos Reis, neurologista do Serviço de Neurologia do Hospital Dona Helena.

De acordo com Reis, a sinestesia – ou “percepção sensorial cruzada” – é um fenômeno em que uma pessoa apresenta a percepção de uma ou mais sensações distintas, quando estimulado em uma determinada modalidade sensitiva. “Isso ocorre, por exemplo, quando alguns sons podem desencadear visão de cores ou formas, quando sabores podem causar sensação de toque, ou quando a visão de letras e números pode induzir percepção de cores”, exemplifica o neurologista, ressaltando que não há ainda uma explicação consistente e única para o fenômeno. “No entanto, acredita-se que existam cruzamentos aleatórios e equivocados em nossa imensa rede de tráfego de informações neuronal. Em tais indivíduos, uma ou mais variações anatômicas ocorridas durante o longo processo de maturação cerebral podem ter promovido falhas no circuito de condução das informações sensoriais”, aponta Cristiano Milani, vice-coordenador do Departamento Científico de Atenção Neurológica e Neurorreabilitação da Academia Brasileira de Neurologia. Milani, que também é neurologista assistente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, aponta que estudos epidemiológicos são bastante imprecisos quanto à prevalência de sinestesia, variando de 1 para 200 até 1 para cada 100 mil pessoas na população. Em “Alucinações Musicais – Relatos sobre a Música e o Cérebro” (2007), o neuropsicólogo e escritor Oliver Sacks explica que a sinestesia, aparentemente, acompanha um grau incomum de ativação cruzada entre áreas do córtex sensitivo que, na maioria das pessoas, são funcionalmente diferentes. Essa ativação cruzada poderia se basear em um excesso anatômico de conexões neurais entre diferentes áreas do cérebro. Em outras palavras, a maioria das pessoas recebe os estímulos externos e os processa em paralelo, porém, nos cérebros dos sinestetas, os caminhos se cruzam, confundindo o processamento da informação. Reis aponta que a principal diferença entre um cérebro “normal” e de um sinesteta está justamente na maior riqueza de conexões entre as diferentes áreas cerebrais, fazendo com que se interprete um estímulo através de uma associação de sentidos. “Está aí mais um motivo para alguns estudiosos defenderem a ideia de que os sinestetas representam não só uma mutação, mas uma evolução na escala de desenvolvimento humano”, evidencia. “Acredita-se que a área primariamente responsável por tais experiências seja o sistema límbico – estrutura complexa que regula nossas res-

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postas emocionais”, complementa Milani. “No entanto, estudos mais recentes demonstraram que algumas áreas do córtex cerebral (como o lobo occipital, onde se encontra o córtex visual primário) ativam-se mais intensamente nos indivíduos que, por exemplo, associam uma cor a um determinado tipo de som, como uma música.” A palavra sinestesia vem do grego: “syn” tem o sentido de “união”, e “esthesia” significa “sensação”, ou seja, a união de diferentes sensações. Sua primeira descrição na literatura científica é de 1880, quando o pesquisador Francis Galton, primo de Charles Darwin e também criador do termo “eugenia”, publicou um artigo a respeito na Revista Nature. Nas décadas seguintes, o tema foi esquecido e só voltou a atrair o interesse da ciência a partir dos anos 1980. Nessa época, o neurologista americano Richard Cytowic iniciou seus estudos sobre o assunto, que depois resultaram no livro “O Homem que Saboreava as Formas” (1993). Já o primeiro relato descrevendo a sinestesia foi do filósofo inglês John Locke, em 1690. Em um ensaio sobre o entendimento humano, Locke narrou o caso de um cego que tentou representar os objetos visíveis e percebeu que a sonoridade emitida por uma trompa, para ele, tinha a tonalidade vermelha. Alguns historiadores, no entanto, afirmam que o primeiro registro seria do filósofo grego Aristóteles, que escreveu o paralelismo entre “aquilo que é agudo ou grave ao ouvido e aquilo que é áspero ou suave ao tato”. Observa-se que as sinestesias acontecem mais em mulheres e em pessoas canhotas. Ocorre em qualquer faixa etária, inclusive nos primeiros anos de

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vida. Algumas características marcantes das sinestesias incluem ainda ser um fenômeno involuntário, que se mantém ao longo dos anos sem variar suas características. São, em geral, experiências genéricas e pouco detalhadas, literalmente individuais, com pouca semelhança entre diferentes portadores. Já foram catalogados cerca de 100 tipos de sinestesia. A mais comum é o tipo “grafema-cor”, que se manifesta como uma ligação entre letras/números e cores, fazendo com que o indivíduo associe a letra “A” à cor vermelha, por exemplo. Por outro lado, existem os casos raros: em uma reportagem publicada pela Vice, James Wannerton transmitiu um relato um tanto atípico sobre sua relação sensorial com o mundo. Para cada palavra, James sentia um gosto diferente: por exemplo, a palavra “falar”, durante toda a sua vida, sempre teve gosto de bacon. Isso acontece quando a audição e paladar não funcionam separados um do outro, o que caracteriza a sinestesia léxico-gustativa. Sacks também exemplifica contando o caso do compositor contemporâneo Michael Torke, “profundamente influenciado por experiências com música colorida”: “Desde que ele era pequeno, as cores têm sido constantes e fixas, e aparecem espontaneamente. Nenhum esforço da vontade ou da imaginação pode mudá-las. Parecem-lhes completamente naturais e preordenadas. E são muito específicas. O sol menor, por exemplo, não é simplesmente ‘amarelo’, mas ‘amarelo ocre’. O ré menor é ‘como sílex, grafite’, o fá menor é ‘cor de terra acinzentada’”. Apesar de ser uma condição neurológica, a sinestesia não deve ser considerada doença, porque não costuma interferir ou prejudicar as habilidades dos indivíduos. “A maioria do sinestetas nem sabe que suas experiências induzem neles mais respostas sensoriais do que em outras pessoas. E aqueles que percebem ser ‘diferentes’ raramente consideram a condição como tendo impacto negativo em suas vidas”, justifica Reis.


Todas as reações são automáticas e incontroláveis, geralmente não proporcionando situações de desconforto ou alterações nas atividades pessoais ou profissionais. Milani conta que já observou o fenômeno sinestésico como parte do conjunto de sequelas em um paciente que apresentou um traumatismo crânio-encefálico grave. “Durante o período de alguns meses após o acidente de carro, ele dizia que podia ouvir alguns estalidos quando sentia o cheiro de alimentos de que mais gostava. Gradualmente, no processo de reabilitação das demais sequelas motoras e cognitivas, evoluiu com regressão espontânea dos sintomas”, detalha. “Não é raro observarmos na prática clínica pacientes portadores de determinadas doenças (como enxaqueca, epilepsia, sequelas de traumatismo craniano e acidente vascular cerebral) que descrevem fenômenos sinestésicos, como gostos estranhos, náusea, sensação de formigamento ou toque, após estímulo sonoro, luminoso ou mesmo após sentirem um cheiro/odor específico. Diferente dos sinestetas, nesses casos, as sensações são geralmente desconfortáveis, desgastantes”, complementa Reis. Por vezes, as sinestesias podem até mesmo enriquecer a experiência sensitiva de alguns indivíduos, potencializando suas habilidades em áreas específicas, como artes, música, cálculos, memória, artesanato e pintura. Para fins experimentais, o uso da hipnose tem proporcionado os melhores resultados no controle dos sintomas. Pelo fato de ser um fenômeno neurológico que, de modo geral, não promove um transtorno e a busca por tratamentos, pesquisas na área são escassas. “Não há dados concretos sobre esse fenômeno em nosso país. Por meio de pesquisas, hoje restritas aos países desenvolvidos como Estados Unidos e Inglaterra, utilizando tecnologias avançadas como a ressonância magnética funcional cerebral e a estimulação magnética transcraniana, muito se tem aprendido com os sinestetas, sempre na tenta-

Apesar de ser uma condição neurológica, não deve ser considerada doença, pois não prejudica habilidades

As sinestesias podem até mesmo enriquecer a experiência de alguns indivíduos, potencializando suas habilidades em áreas específicas como artes, música, cálculos, memória, artesanato e pintura tiva de desvendar as antes inexploradas e imprevisíveis conexões responsáveis pelo processamento multissensorial cerebral”, informa Reis. Concebido pelo professor de psicopatologia do desenvolvimento Simon Baron-Cohen, da Universidade de Cambridge, o Teste da Genuidade (TG) é o mais utilizado no diagnóstico e mede a estabilidade da relação entre estímulos e respostas ao longo do tempo. Uma sequência de estímulos (cores, sons, odores, palavras) é apresentada ao provável sinestésico. Em seguida, suas respostas sensoriais são registradas. E a pergunta que não quer calar: a sinestesia pode ser induzida? Milani afirma que diferentes estudos, principalmente usando métodos de ativação visual para cores, não conseguiram produzir os fenômenos sinestésicos de forma consistente. Já Reis informa que sinestesias foram observadas e relatadas por usuários de drogas, como o LSD e o Ecstasy. Mas não recomenda a ação, pelo risco à saúde.

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Violência

O lado frágil de ser mulher

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ra sábado e a técnica em enfermagem Claudia Mara Koppe estava com o filho, quando foi atingida por um tiro e morta. O crime ocorreu no início do ano, em Join­ville, e integra as estatísticas de violência contra a mulher na maior cidade catarinense. A polícia cogita que o assassino, de 17 anos, tenha recebido R$ 1 mil do ex-companheiro de Claudia para executá-la. Ela já tinha várias denúncias e medidas protetivas contra ele. No primeiro semestre de 2015, em Joinville e região, de acordo com a Secretaria de Estado da Segurança Pública de Santa Catarina, foram registrados quatro ho-

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micídios e 48 tentativas contra as mulheres. No mesmo ano, a Central de Atendimento à Mulher Ligue 180 relatou denúncias de violência física (49,82%), psicológica (30,40%), sexual (4,86) e cárcere privado (4,87%). Para a doutora em ciências humanas Isadora Vier, as mulheres vivem situações de violência diária por conta de uma cultura de violações, que constrói lugares específicos para o masculino e o feminino na sociedade. “Os processos de socialização dos homens e das mulheres, com a respectiva atribuição de papéis e a afirmação de comportamentos, ainda alimentam, no imaginário social, a ideia de que a noção geral de masculinidade está associada à altivez, à agressividade, à falta de sensibilidade, enquanto a de feminilidade se vincula à passividade, ao silenciamento, ao recato”, destaca. Em suma, a desigualdade de gênero é a origem e explica a persistência da violência contra a mulher ainda hoje.


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“Homens e mulheres são atingidos pela violência de maneira diferenciada. Enquanto os homens tendem a ser vítimas de uma violência predominantemente praticada no espaço público, as mulheres sofrem cotidianamente com um fenômeno que se manifesta dentro de seus próprios lares, na grande parte das vezes praticado por seus companheiros e familiares” Secretaria de Políticas para Mulheres

A médica Lilia Blima Schraiber, livre-docente em medicina preventiva pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, ressalta que a violência contra a mulher está presente no mundo inteiro. Em países como a Inglaterra, a partir do século 19, passou a ser abolida, com a percepção de que o homem não detinha a propriedade da mulher. No Brasil, a questão é mais recente, começando a ser combatida na metade do século 20, no momento em que as denúncias apareceram com mais frequência. “Temos tido o consenso de que a violência contra a mulher não

pode mais ser praticada, mesmo vindo de uma tradição cultural em que os homens acham que podem fazer tudo sem punição”, afirma Lilia. Nesse sentido, a instituição da Lei Maria da Penha, que completa 10 anos em 2016, foi um grande avanço para dar um basta na violência contra a mulher. Não só porque protege as mulheres, mas porque gera uma série de campanhas de conscientização sobre as violências domésticas, familiares e psicológicas. “É difícil admitir, hoje, a alegação de falta de consciência sobre a prática violenta, porque a lei introduziu uma dimensão educativa fundamental”, explica Isadora Vier, citando que, no âmbito preventivo, as medidas protetivas de urgência e mecanismos pré-processuais autônomos fazem a diferença. “O importante é que, junto da responsabilização criminal nos termos da lei penal brasileira, a lei também veicula proposta de que os homens passem por programas de discussão, reflexão e reeducação, a fim

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de instituir novos parâmetros relacionais, pautados pela igualdade de gênero”, ressalta. Por outro lado, o caminho para as denúncias e para a proteção, muitas vezes, não é fácil para as mulheres. A professora Lilia utiliza o conceito de rotas críticas, para identificar os obstáculos e dificuldades encontrados pelas vítimas durante o processo. “No Brasil, esse problema é acentuado. Nem todo mundo dá crédito ao relato, muitos acham que é uma questão passageira, que não precisa de denúncia”, afirma. Esse comportamento, de acordo com a professora, se dá desde a família e os amigos até as pessoas responsáveis pelo atendimento, que, muitas vezes, não estão preparados corretamente. Além disso, a cultura brasileira impede que se comente sobre os aspectos negativos da vida. “Procuramos trabalhar o conceito de invisibilidade, que é um dos nossos grandes obstáculos”, justifica. Reconhecida como um problema de saúde pública desde 2002, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a violência contra a mulher também impacta no bem-estar das vítimas. Dores crônicas, doenças sexualmente transmissíveis, infecções urinárias de repetição, grande sofrimento mental, tentativas de suicídios, são alguns dos exemplos vivenciados pelas equipes de atenção à saúde. “A medicina precisa se aliar às outras áreas, porque não é só tratar, se a mulher permanece em situação de adoecimento permanente. É preciso acolhê-la, cuidar das questões médicas e depois encaminhá-la para atendimentos especializados, dando apoio para que a

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denúncia seja efetuada”, afirma. Outro fator apontado pela pesquisadora Isadora Vier é que o Brasil não tem uma tradição antiga de pesquisas com estatísticas sobre violência contra a mulher. Um dos primeiros levantamentos surgiu em 2001, organizado pela Fundação Perseo Abramo, revelando que a cada 15 segundos, no país, uma mulher sofria algum episódio de violência doméstica. Depois disso, as pesquisas começaram a ser realizadas com mais frequência, incluindo também violência psicológica. “Embora ainda haja um índice de subnotificação, decorrente de dificuldades como os entraves para prová-las, e a ausência de uma percepção coletiva consolidada de que essa seja também uma forma de violência doméstica e familiar, as violências psicológicas aparecem, recentemente, nas pesquisas. Na maioria dos casos, só são identificadas e reconhecidas quando vêm associadas aos episódios de violências físicas”, explica. Para ela, as mulheres devem estar atentas, pois há episódios tão sutis que fica difícil encontrar algum enquadramento legal, dificultando o processo de responsabilização dos autores de violência. Nesses casos, a própria Lei Maria da Penha também pode ajudar, fornecendo indícios para ameaça, perseguição contumaz, humilhação, manipulação, ridicularização, isolamento, insulto etc. A primeira medida, orienta a pesquisadora, é buscar uma escuta qualificada, que possa instruir e encaminhar de acordo com as demandas específicas. “Qualquer forma sutil e reiterada, capaz de provocar um dano efetivo à integridade psicológica, de diminuir a autoestima ou provocar prejuízo à saúde emocional, deve chamar a atenção para violência psicológica”, ensina.


Ações preveem apoio e fortalecimento A Central de Atendimento à Mulher completou 10 anos, contabilizando quase 5 milhões de ligações. Ane Cruz, coordenadora geral da central, ressalta que, para além de um canal de denúncias, a ferramenta se configurou como o maior banco de informações sobre violência contra as mulheres. “Significa o elo principal de recebimento de relatos e encaminhamentos de denúncias das mulheres aos serviços da rede de atendimento”, destaca. A Secretaria de Políticas para Mulheres, por sua vez, vem trabalhando para combater as desigualdades de gênero, fortalecendo a participação das mulheres nos espaços de poder e decisão de forma ampla. Para Ane, a autonomia econômica das mulheres constitui fator de suma importância na busca da igualdade entre os gêneros, sejam elas das cidades, do campo ou da floresta. “A autonomia econômica das mulheres é a condição que elas têm de prover o seu próprio sustento, decidindo por elas mesmas a melhor forma de fazê-lo. Isso envolve também as pessoas que delas dependem”, destaca. Em relação à violência, o governo federal lançou, em 2007, o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, que consiste em um acordo federativo entre governos federal, estadual e municipal para planejamento de ações que visem à consolidação da política nacional.

Comemoração de 10 anos da central demonstrou importância da ferramenta como base de dados

714 mil é o número de mulheres que podem ser vítimas de violência nas universidades em 2016, de acordo com estudo realizado pelo Instituto Avon, em parceria com o Data Popular 27


Intolerância

O outro que não existe

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m abril deste ano, o Vaticano divulgou o documento “A Alegria do Amor”, em que o papa Francisco pede aos católicos que parem de atirar pedras e que a igreja valorize as uniões de fato e reconheça os sinais de amor entre as pessoas – promovendo considerável avanço da visão católica sobre as diferenças, especialmente sobre temas tradicionalmente tabus como a homossexualidade e o divórcio. Francisco pediu mais compreensão com o que chamou de famílias não tradicionais. Embora, de fato, nada tenha mudado

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na inspiração da Santa Sé, o papa argentino vem suavizando muito o discurso católico e pregando a tolerância e o diálogo entre as pessoas e, sobretudo, o respeito à dignidade de cada um. Literalmente: “Desejo, antes de mais nada, reafirmar que cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, procurando evitar qualquer sinal de discriminação injusta e, particularmente, toda a forma de agressão e violência”, prega o papa no documento. Parecendo não ter ouvido o apelo, o Brasil, que continua sendo o maior país católico do mundo, com mais de 126 milhões de adeptos, ainda se debate sobre insistentes manifestações de intolerância de todos os tipos. Das agressões aos homossexuais às invasões a centros de umbanda, das críticas pesadas a pessoas simples que andam de avião às explícitas e ofensivas campanhas pelo direito ao armamento, redução da maioridade penal e contra a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, o país se contorce em ódios os mais variados. E o agravamento do quadro político ensejado por sucessivas operações da Polícia Federal sobre corrupções em vários níveis e empresas ligadas ao governo divide o país, provoca manifestações de parte a parte e, sobretudo, promove uma verdadeira guerra – um foro de extremo atrito, no qual o diálogo não consegue chegar.


“O diálogo somente será possível quando os ‘diferentes’ estiverem ocupando e convivendo nos mesmos espaços” Maria Elisa Máximo

A tendência é segregar Maria Elisa Máximo, antropóloga, professora dos cursos de enfermagem, jornalismo e publicidade e propaganda da Associação Educacional Luterana Bom Jesus/Ielusc, reflete sobre o tema da intolerância citando o antropólogo Roberto DaMatta, famoso por suas teorias acerca da cultura brasileira. DaMatta entende o Brasil como um país ainda essencialmente hierárquico – chegando mesmo a fazer uma comparação com as castas indianas. “Como ele diz, o Brasil não chegou a entrar efetivamente no modelo individualista – baseado nos princípios de liberdade e igualdade da Revolução Francesa, que predominam nas principais culturas ocidentais, como a norte-americana e a francesa”, pondera Elisa, antes de concluir: “Na cultura hierárquica, a tendência é segregar” . A antropóloga sublinha que, para entender melhor, há que sempre se olhar para a história – desse modo, será possível perceber que o preconceito, a exploração do outro e a discriminação estão nas raízes brasileiras. Mas, longe de justificar um país que, para lá de desigual, é injusto com os mais fracos, o fato de reconhecer as origens desses males coloca o Brasil em um patamar privilegiado para entender as formas como funciona e, sobretudo, oferece ferramentas para buscar saídas para tantos problemas. “Sei, porém, que não é fácil vencer a história e as narrativas hegemônicas que produz”, ressalta.

Sobre riscos de retrocessos A professora Maria Elisa, que é doutora em antropologia social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), entende que a sociedade brasileira avançou consideravelmente no que tange ao reconhecimento do direito que o outro tem de ser diferente – e, ainda assim, ser considerado igual em direitos e dignidade. “Precisamos celebrar, relembrar e fazer a sociedade inteira conhecer e entender o histórico das lutas. E seguir avançando”, afirma. Ela cita como exemplo o caso da primeira mulher indígena a defender dissertação de mestrado em antropologia na UFSC. Jozileia Daniza Jgso Inácio Schild teve seu trabalho “Mulheres Kaingang, seus Cami-

Por isso mesmo é que conhecer a própria origem se torna tão importante: para fazer frente à lógica de segregação de dominação, de anulação das diferenças e de subordinação do outro. “Minar essa lógica se faz ‘empoderando’ os grupos dominados. E conseguimos isso através da educação, das políticas de ação afirmativa, também chamadas de ‘políticas do perdão’, pois devolvem os espaços até então negados a determinados grupos como negros e índios, por exemplo”, detalha Elisa, reforçando a importância de todas as políticas sociais que promovam e fomentem a ascensão social desses grupos menos favorecidos. “Estou certa de que o diálogo somente será possível quando os ‘diferentes’ estiverem ocupando e convivendo nos mesmos espaços. Esse diálogo nem sempre se dará de forma harmoniosa. Muitas vezes, o conflito é necessário ou é parte do jogo democrático. O ideal, claro, é que persigamos o entendimento. “

nhos, Políticas e Redes na TI [Terra Indígena] Serrinha” defendido em fevereiro deste ano. Apesar do grande avanço que o caso da estudante indígena ilustra, Maria Elisa chama atenção para um dos mais preocupantes efeitos colaterais do atual quadro político, marcado por extremismos e polarizações ideológicas. “Muitas dessas conquistas estão correndo riscos. Vejo este momento como perigoso para os direitos conquistados e, consequentemente, para as possibilidades dadas para o entendimento e

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Elisa, antropóloga: entender o outro é se desligar de valores próprios o diálogo”, alerta. Encontrar esse ponto de conexão, o diálogo, parece tarefa a cada dia mais difícil, nos conturbados tempos brasileiros de hoje – sem falar nos conflitos étnicos, religiosos e políticos históricos, que sacodem o planeta em atentados, carros-bomba, assassinatos em massa de quem pensa ou crê diferente. “Penso que as pessoas acabam se acomodando junto àqueles que pensam de forma semelhante. O embate, o conflito de ideias, o enfrentamento da diferença é extremamente desgastante para o sujeito que não está disposto a relativizar a si mesmo para entender o outro a partir dos seus próprios referenciais e chaves de interpretação da vida. Estamos acostumados ao ‘etnocentrismo’, ou seja, a entender o outro com base nos nossos próprios valores, paradigmas e visões de mundo. E isso não é ‘entender’, é apenas julgar. Por isso o preconceito, a discriminação, a intolerância”, reforça a antropóloga. Na visão de Maria Elisa, o exercício de entender o outro, de verdade, exige que coloquemos as nossas visões de mundo em “stand by”, para – ainda que

Todos os caminhos Uma das faces mais visíveis da intolerância, no Brasil, é a religiosa – que cresce exponencialmente, na mesma proporção e velocidade em que se acirram ânimos entre diferentes ideários políticos. No foco do preconceito e das ações mais violentas, estão, de forma espe-

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Rodrigo Zimmermann

parcialmente, e por apenas alguns instantes – buscar entender como aquele outro, aquele sujeito, aquele ser humano, vive, percebe e interpreta o seu próprio mundo. (Leia artigo com a visão de um médico sobre o tema na página 38.)

cial, as religiões de origem africana. Mas não é apenas essa a cara da intolerância verde-amarela. Ela aparece também no próprio Congresso Nacional, onde bancadas religiosas se digladiam e ofendem – sobretudo no bojo de embates em temas de cunho social como o aborto, as famílias alternativas, a pena de morte e a redução da maioridade penal. A criação, há cinco anos, de uma linha direta em que casos de violência envolvendo questões religiosas podem ser denunciados anonimamente aumentou em 70% os registros, no país todo.


“Toda crença é respeitável, quando sincera e conducente à prática do bem” Allan Kardec

A visão de diferentes religiões sobre intolerância O documento Diversidade Religiosa e Direitos Humanos, publicado em 2004 pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, evoca praticamente todas as religiões à luta contra a intolerância. “O Supremo Senhor do Universo, que tem diferentes nomes em diferentes culturas, ama a todos. Dele emana toda a liberdade de pensamento, religião ou de consciência.” Igreja Metodista “Em cada indivíduo, em cada povo, em cada cultura, em cada credo, existe algo que é relevante para os demais, por mais diferentes que sejam entre si. Enquanto cada grupo pretender ser o dono exclusivo da verdade, o ideal da fraternidade universal permanecerá inatingível.” Judaísmo “A regra de ouro consiste em sermos amigos do mundo e em considerarmos toda a família humana como uma só família. Quem faz distinção entre os fiéis da própria religião e os de outra, deseduca os membros da sua religião e abre caminho para o abandono, a irreligião.” Mahatma Gandhi “A beleza do nosso país reside justamente na diversidade cultural e religiosa de seu povo. Temos que quebrar as barreiras que nos impedem de dialogar com aqueles e aquelas que pensam e que agem de forma diferente, mas que têm o mesmo objetivo: a valorização da vida!” Igreja Presbiteriana Independente do Brasil “Somos humanidade. Desde o princípio das eras, temos indissolúvel ligação neste mundo. Somos, portanto, mulçumanos, xintoístas, católicos, bramanistas, budistas, protestantes, judeus, espíritas, esotéricos, agnósticos, umbandistas, ateus... Somos, por fim, seres humanos!” Legião da Boa Vontade

“Se eles se inclinam à paz, inclina-te tu também a ela e encomenda-te a Deus...” Maomé “A meta última da religião é o amor. Todas as religiões e crenças são consequentemente válidas, e sua aceitação tem de ser baseada na liberdade e numa opção consciente e espontânea. De outra forma, a religião não teria como meta o amor.” Hinduísmo “Ter liberdade de religião, de pensamento, é um dos pressupostos básicos. Como luteranos, entendemos os malefícios da discriminação, tendo em vista que Martinho Lutero, que iniciou a Reforma da igreja na Alemanha, foi severamente discriminado devido às suas convicções.” Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)

“Cada ser humano possui o direito de escolher a sua própria maneira de servir o sagrado e deve fazê-lo sem perseguições e/ou discriminações, com liberdade” Encataria Cigana

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“O sol que veio à Terra para todos iluminar não tem bonito nem feio, ele ilumina todos iguais” Santo Daime

“É sagrada a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. É sagrado o direito de entrar neste ou naquele templo, neste ou naquele terreiro, nesta ou naquela tenda. É o sagrado direito de adorar e deixar adorar. É o direito humano e divino de pensar e deixar pensar, de dizer e de ouvir.” Comissão Ecumênica Nacional de Combate ao Racismo (Cenacora)

“Nenhum segmento religioso pode coagir alguém pela força ou ameaçar a aceitar ou mudar de crença religiosa, Todos os segmentos religiosos devem promover uma cultura de paz e ordem, trazendo benefícios à população em geral, especialmente aos menos favorecidos.” Igreja Pentecostal O Brasil para Cristo “Em verdade, jamais se destrói o ódio pelo ódio. O ódio só é destruído pelo amor. Este é um preceito eterno.” Buda “Se você critica a fé dos demais, sua devoção é falsa. Se você fosse sincero, apreciaria a sinceridade dos outros. Você vê erros nos outros porque você mesmo os tem, não os outros.” Sathya Sai Baba

“Jesus Cristo disse: ‘Porque faz que o seu sol se levante sobre os bons e os maus, e a chuva desça sobre os justos e os injustos’”. Jesus afirmou que todos somos participantes das mesmas oportunidades da vida e da graça da criação de Deus, independente de qualquer convicção.” Ministério Sara Nossa Terra

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“Não terás nenhum pensamento de ódio contra teu irmão.” Moisés “Existem muitos povos, de muitas raças, falando várias línguas. Mas, para eles, só existe um sol, uma lua e uma mãe terra. Somos parte um do outro, pela vontade do Grande Espírito.” Cosmovisão indígena “Não pode haver dúvida alguma de que os povos do mundo de qualquer raça ou religião que sejam, derivam sua inspiração de uma só Fonte Celestial e são súditos de um só Deus. A diferença entre os preceitos sob os quais vivem deve ser atribuída aos vários requisitos e exigências da época em que foram revelados.” Bahá’u’lláh “Todo ser humano tem direito à liberdade de pesquisa da verdade e, dentro dos limites da ordem moral e do bem comum, à liberdade na manifestação e difusão do pensamento... Pertence igualmente aos direitos da pessoa a liberdade de prestar culto a Deus, de acordo com os retos ditames da própria consciência.” Encíclica Pacem in Terris

“Prevenir a intolerância é assumir que nenhuma verdade é única. É reconhecer que o outro tem livre arbítrio. Esse reconhecimento pressupõe garantir-lhe o direito de pensar, de crer, de amar, de doar, de rezar, de ser gente religiosa.” Religiões afro-brasileiras “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. ” Jesus Cristo


Diálogos

Lições da epidemia de Zika Luiz Henrique Melo Pág. 34

Entre tolerância e intolerância Antonio Baptista Pág. 36

Medicina versus antropotécnica Carlos Serapião Pág. 38

“É preciso dar um basta em tudo isto” Darlei Dall’Agnol Pág. 39

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Luiz Henrique Melo Infectologista do Hospital Dona Helena

Lições da epidemia de Zika

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eter Brian Medawar, biólogo britânico nascido no Brasil e ganhador do Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1960, definiu o vírus como um pedaço de ácido nucleico cercado por más notícias. O vírus Zika confirma essa tese. Em maio de 2015, a Organização Panamericana de Saúde (Opas) notificou o primeiro caso de infecção pelo Zika no Brasil. Antes disso, o vírus nunca esteve presente nas Américas. Desde então, o vírus já se propagou por todo o continente de forma explosiva. Em 1o de fevereiro deste ano, menos de um ano depois do primeiro caso identificado, a OMS declarou a infecção pelo Zika uma emergência de saúde pública mundial. As estimativas do número de casos são maiúsculas, com o Ministério da Saúde do Brasil calculando 1,3 milhão de casos no país e a Opas, 3 milhões de casos na América Latina. O surgimento de infecções emergentes, definidas como aquelas causadas por micro-organismos anteriormente desconhecidos ou micro-organismos

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conhecidos, mas que agora apresentam novas manifestações clínicas ou comportamento biológico, é resultado de mudanças de padrões populacionais e de saúde definidos pelo antropólogo da Universidade de Emory, Ronald Barrett, como transições epidemiológicas. A atual transição se explica pela urbanização e globalização aceleradas. Outra má notícia que envolve o RNA do vírus Zika é a modificação do padrão de apresentação clínica da doença a ele relacionada. Pouco estudada desde sua descoberta na floresta Zika, em Uganda, no ano de 1947, o vírus era associado a doença leve, ocorrendo em apenas 20% dos indivíduos infectados. O fator pouco usual que ocorreu no Brasil foi o surgimento de casos de microcefalia em recém-nascidos de mães que contraíram a doença na gestação, além do aumento de casos da síndrome de Guillain-Barré (SGB). Não bastasse o Zika ser o primeiro arbovírus com transmissão congênita em humanos, também é o primeiro a fazê-lo sexualmente. Todas essas informações têm impacto nas medidas para controle da doença. Os problemas relativos ao diagnóstico da doença não são menos complexos. Os sintomas geralmente são leves e inespecíficos. O diagnóstico complementar, via de regra, tem sua disponibilidade limitada. Além disso, o teste molecular, quando disponível, apesar de preciso, tem positividade por período muito curto de tempo, no máximo cinco dias após o surgimento dos sintomas. Os testes sorológicos que permitiriam uma janela de diagnóstico maior têm o problema potencial de reação cruzada com o vírus da dengue em locais onde as epidemias são concomitantes. Assim como o Zika, o mosquito Aedes também é conhecido há muito tempo, mas, ao contrário do vírus, tem longo histórico de associação com problemas de saúde pública, como a febre amarela, dengue, chikungunya, encefalite equina venezuelana e encefalite do Oeste do Nilo. A dificuldade de controle do vetor se relaciona à sua plasticidade ecológica caracterizada pela capacidade de sobrevivência em áreas densamente povoadas com precariedade de saneamento básico. A avalanche de más notícias encontrou uma comunidade científica e uma estrutura de saúde despreparadas para a


velocidade e a magnitude da epidemia, a transmissão congênita e a severidade das anormalidades neurológicas. É a tempestade perfeita para uma crise de alcance global. Indiscutivelmente, a resposta mundial foi célere, porém reativa. Como afirma Jorge Osorio, professor de doenças infecciosas da Universidade de Wisconsin-Madison: “Parece que estamos sempre atrasados”. A capacidade de reação da sociedade aos problemas é rápida, mas temos enormes dificuldades para agir preventivamente. Foram negligenciados fatores que produzem as infecções emergentes e, num piscar de olhos, deparamos com uma crise global em nossas mãos. O que podemos esperar no futuro? Não havendo evidências de que o vírus Zika confira uma imunidade duradoura substantiva, desenhando um cenário mais favorável até que uma vacina efetiva seja desenvolvida, a explosão de casos durante a epidemia levaria a maioria das pessoas a ficar imunes, tornando o vírus Zika uma doença da infância enquanto a comunidade científica desenvolve rapidamente testes diagnósticos efetivos e um melhor controle do Aedes. Em um cenário pessimista, a ciência seria vencida no conflito entre a cultura, a política e os governos, resultando na continuação e no aumento da incidência da doença em vez de seu controle. Ensina o historiador Asa Briggs que as pragas nada mais são do que um dramático desenrolar de acontecimentos – são histórias de descobertas, reações, conflitos, doenças e soluções. Elas testam a eficiência e a capacidade de resistência e resiliência das estruturas administrativas locais e expõem implacavelmente as deficiências científicas, políticas, sociais e morais. As principais lacunas científicas a ser preenchidas incluem um melhor entendimento do espectro completo da doença, o desenvolvimento de ferramentas diagnósticas precisas, novos produtos e estratégias para o controle dos mosquitos e vacinas para proteção definitiva da população. Do ponto de vista político, o grande aprendizado desta epidemia é a clara conectividade da sociedade na atualidade. O vírus Zika não respeita fronteiras. Este surto epidêmico nos obriga a quebrar essas linhas virtuais de divisão para abraçarmos a ideia de que somos uma espécie única.

“A avalanche de más notícias encontrou uma comunidade científica e uma estrutura de saúde despreparadas para a velocidade e a magnitude da epidemia, a transmissão congênita e a severidade das anormalidades neurológicas”

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Antonio Baptista Médico do Serviço de

Endoscopia Digestiva (Sedit) do Hospital Dona Helena

Entre tolerância e intolerância

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ada é mais óbvio do que a noção de que as pessoas são diferentes entre si. Diferentes em seu aspecto físico, suas concepções de vida e da sociedade, preferências políticas, religiosas, sexuais e definições de deveres e direitos. A existência dessas diferenças exigiria das pessoas um grau de tolerância, de modo que pudéssemos viver harmonicamente em sociedade. No entanto, vemos atualmente uma intolerância generalizada em todos os níveis relatados acima. A explicação para isso nem sempre é fácil. Além disso, há a dificuldade em determinar os limites da tolerância, assunto que foi admiravelmente analisado por John Stuart Mill em seu livro “On Liberty”, publicado em 1859. Para entendermos a intolerância, faz-se necessário definir o que é a tolerância. Os dicionários nos dizem que a palavra deriva do latim tolerare e tolerantia, significando aceitar, suportar. A tolerância é o ato de indulgência perante algo que não se quer ou que não se pode impedir. Podemos também dizer que a tolerância requer

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que aceitemos as pessoas e/ou seus atos. De maneira simplista, a tolerância então envolve uma atitude que é intermediária entre a aceitação total e a irrestrita oposição e exige que aquilo que está sendo tolerado poderia ter sido impedido por nossa ação. Só podemos falar de tolerância quando é praticada voluntariamente, e não por obrigação, pois então seria um caso de simplesmente se suportar ou tolerar certas coisas que rejeitamos, mas contra as quais não temos poderes para atuar. Tolerância requer, portanto, um entendimento complexo do próprio “Eu”, seus compromissos e de três categorias de julgamento: 1- Atividade ou ideias que aprovamos. 2- Atividades ou ideias que não aprovamos, mas toleramos. 3- Atividades ou ideias que não aprovamos e consideramos intoleráveis. A questão básica moral é exatamente onde desenhar as linhas que separam essas três categorias, especialmente entre a segunda e a terceira. Como é frequente a ideia de que aquilo que não aprovamos é igual àquilo que desaprovamos, é necessário frisar que essa visão bivalente é típica do fanatismo, em que há uma ideia de que nossos valores são os corretos e todas as alternativas são erradas e intoleráveis. O fanatismo é muito próximo do dogmatismo, no qual a concepção é de que nossa opinião é a verdadeira e não é possível a existência de dúvidas sobre isso. Ambos pensam de maneira bivalente e não consideram possível a categoria 2. Tendem a pensar: “Ou está comigo ou está contra mim”. Alguns autores mencionam quatro conceitos de tolerância. O primeiro seria o conceito de permissão, para o qual a tolerância seria uma relação entre uma autoridade ou uma maioria e uma minoria (ou minorias) divergente e diferente. A tolerância então significaria que a autoridade dá uma permissão à minoria para viver de acordo com suas crenças, com a condição de que essa minoria aceite a posição dominante da autoridade ou da maioria. O segundo é o conceito de coexistência, semelhante ao primeiro em seu reconhecimento de que a tolerância é o melhor meio para se evitar ou terminar um conflito e para se conseguir determinado objetivo. Diferencia-se, contudo, no relacionamento entre os sujeitos e objetos de tolerância, pois agora os dois lados são basicamente iguais em poder e a tolerância é vista como a melhor alternativa.


“A tolerância significa que não podemos utilizar a força e a violência para disseminar nossa visão das coisas”

O terceiro é o conceito de respeito, em que as partes tolerantes se respeitam mutuamente. Embora tenham diferentes crenças éticas sobre a verdadeira e a melhor maneira de se viver e suas práticas culturais, reconhecem-se como iguais politicamente e moralmente e podem igualmente aceitar essas diferenças. O quarto é o conceito de estima, que demanda uma noção mais profunda e trabalhosa de reconhecimento mútuo entre cidadãos do que o conceito de respeito implica. Aqui, ser tolerante não significa apenas respeitar os membros de outras formas de vida cultural, religiosa ou política; significa também ter uma espécie de estima ética pelas suas crenças, considerando-as eticamente valiosas, mesmo que diferentes e menos atraentes do que as nossas. Ajuda muito fazermos uma distinção entre os conceitos de julgamentos de primeira ordem e compromissos de segunda ordem. Os julgamentos de primeira ordem geralmente ocorrem em uma estrutura bivalente: “Gosto disso ou não gosto disso”. No nível dos compromissos de segunda ordem, encontramos julgamentos que ultrapassam a emoção e se direcionam a princípios universais. A tolerância indica um conflito entre uma reação de primeira ordem contra algo e um comprometimento de segunda ordem a respeito da autonomia, modéstia, autocontrole, autocrítica, racionalização etc. De maneira geral, os compromissos de segunda ordem devem estar acima das reações de primeira ordem. Nossos julgamentos de primeira ordem são respostas emocionais ou percepções imediatas. São

geralmente bivalentes e simplistas. E, importante, são frequentemente falsos. Temos a capacidade, como seres racionais, de afirmar, negar ou criticar nossas respostas emocionais e percepções imediatas, caminhando em direção a princípios e a comprometimentos autocríticos e sistemáticos. O problema é que não somos, em geral, tão racionais quanto gostaríamos. Temos dificuldades em raciocinar com nossos princípios de segunda ordem porque somos facilmente enganados pelas aparências e emoções, além de tendermos a sucumbir à lógica binária de nosso julgamento de primeira ordem. Como disse Hans Oberdiek: “Tolerância e criticismo vigoroso andam de mãos dadas” (Tolerance and Ethical Life). É claro que a tolerância não é uma ideia ou atitude simples. Esse status intermediário torna a tolerância uma atitude que pode ser paradoxal quando parece nos exigir que toleremos coisas que achamos intoleráveis. Isso se torna particularmente difícil quando o outro que é para ser tolerado expressa visões ou atitudes que são por si só intolerantes. Em outras palavras, a tolerância significa que não podemos utilizar a força e a violência para disseminar nossa visão das coisas. Os fanáticos, que empregam a violência, são, por definição, intolerantes. Podemos então perguntar: ao tolerante é permitido empregar a violência em defesa da tolerância, de acordo com a ideia da violência justificada? Seria isso uma forma de “paradoxo da intolerância”? A virtude da tolerância, como qualquer outra, tem seus limites. Há circunstâncias nas quais a intolerância é correta tanto no sentido de ser permissível moralmente ou moralmente obrigatória. Por exemplo: somos a favor da tolerância religiosa, mas está correto não tolerar uma religião que pratique sacrifícios humanos. Como lidar então com a intolerância? Tornamos nossos filhos mais tolerantes, em parte, encorajando-os a pensar por si próprios, questionando as “certezas” através de um ceticismo sadio, adquirindo conhecimento e cultura e ouvindo tolerantemente os outros. Dentro dessa visão, de educação liberal, ensinamos nossos filhos a se tornarem filósofos, reconhecendo, como Sócrates, a nossa própria ignorância, nosso etnocentrismo e nossas tendências a um viés subjetivo, podendo então, finalmente superá-los.

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Carlos José Serapiao Médico coordenador do

Instituto Dona Helena de Ensino e Pesquisa (IDHEP)

Medicina versus antropotécnica

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stou suficientemente bem? Desejo ser melhor? Ser o melhor? Como posso fazer para me aprimorar? Devo me restringir aos métodos tradicionais, ou seja: estudar ou treinar, ou devo recorrer à antropotécnica para aprimorar minhas capacidades mentais ou físicas? Neste início de século, o aprimoramento humano vem se tornando destacado assunto para os debates éticos (15º Simpósio Catarinense de Bioética – Joinville 2015), nos quais as ciências biomédicas são vistas como instrumentos para reformar, manipular, aperfeiçoar os múltiplos aspectos da biologia humana, em indivíduos considerados sadios. Desde sempre, a humanidade buscou se aprimorar, na cosmética, na educação, no treinamento desportivo etc. Simone Bateman (BATEMAN, 2015) nos apresenta a três aspectos fundamentais no aprimoramento humano: sua efetividade, sua natureza e sua autodeterminação. Procura-se a tênue, porém aceitável, diferença entre as ações de aprimoramento “enhancement” e as medidas de caráter terapêutico, permitindo assim tentar construir uma demarcação entre a estimulação do humano sadio e a recuperação

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da saúde do humano enfermo. Mesmo assim, parece que o aprimoramento não pode ser claramente distinguido da ação terapêutica, inclusive de natureza medicamentosa, não servindo, portanto, como um termo específico para separar uma iniciativa médica de uma antropotécnica. Já se convive com a dificuldade em estabelecer a distinção entre o normal e o patológico, entre a saúde e a doença, especialmente no território do comportamento e das funções e atividades psíquicas, perdurando a necessidade de resistir à tentação de arriscar uma linha divisória entre as três noções: o patológico, o normal e o aprimorado, sem se sentir perseguido pelo fantasma do “super-normal”. É preciso considerar que ações antropotécnicas nem sempre se relacionam com a medicina ou com um sofrimento existencial, porém visam satisfazer desejos ou atender a apelos profissionais, os quais, além dos riscos de gerar sofrimento, mostram-se desprovidos de benefícios do ponto de vista médico. Assim, se a medicina age contra a disfunção, a antropotécnica é a favor da alteração. “(...) De um lado, a vulnerabilidade vital em tudo o que se apresenta como ameaçador para a consciência humana, ao lhe indicar seu próprio fim; por outro lado, pelos caminhos fantasiosos dessa consciência, desse seu desejo de conforto, desse ordenamento da existência ou dessa transcendência criadora” (GOFFETTE, 2006). Os conhecimentos de biologia humana – em especial os de genética e neurobiologia – estão começando a nos habilitar a intervir diretamente nas bases biológicas e fisiológicas da motivação humana, quer seja através de drogas, quer através da seleção genética (nova versão da eugenia). Com isso, um dos contextos morais modificado através da antropotécnica se situa na área da reprodução, e muitos métodos, sobretudo os de alta tecnologia, podem influenciar o caráter da nova pessoa que está sendo trazida ao mundo, permitindo que nossas ações resultem na criação dessa nova pessoa, que de outro modo não teria existido. Portanto, não podemos nos arriscar frente à sedução de imaginar o futuro, pois devemos estar conscientes de que o passado foi capaz de produzir o presente, mas é necessário compreender e se conformar com a existência dos conflitos entre nossas esperanças e temores.


Darlei Dall ‘Agnol

Pós-doutor em metaética

ENTREVISTA “É preciso dar um basta em tudo isto”

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xiste uma ampla crise econômica e política em vigor no país. Mas, do ponto de vista ético e moral, o que se verifica é, mais do que uma crise, “a completa derrocada do ethos brasileiro”. Nessa linha, o noticiário cotidiano forrado por escândalos vem ajudando a naturalizar desvios de toda ordem, “o que é muito perigoso, porque formam a consciência da maioria”. Quem faz o alerta, nesta entrevista à Revista Conecthos, é o professor Darlei Dall‘Agnol. Com graduação e especialização em filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), trabalha na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Dall‘Agnol cursou mestrado em filosofia na UFRGS e doutorado em filosofia na University of Bristol, Inglaterra, com trabalhos na área da ética. Fez estágio de pós-doutorado em metaética na University of Michigan in Ann Arbor, Estados Unidos, e em bioética no Centre for Practical Ethics da University of Oxford, na Inglaterra. Foi chefe dos departamentos de filosofia da UCS e da UFSC e coordenador do Núcleo de Ética e Filosofia Política da UFSC. Fundou e foi o primeiro editor das revistas Conjectura e Ethic@ e, hoje, coordena a série Ethica pela EdUFSC. Publicou vários livros, artigos

e capítulos de livros no Brasil e no exterior. Desde 2004, é pesquisador do CNPq. Atualmente, trabalha na finalização do livro “Care & Respect: Re-thinking the metaethical and normative basis of bioethics” com contrato para ser publicado pela Cambridge Scholars. O sr. concorda com a afirmação de que vivemos um período de crise não somente econômica, mas também política, ética e moral? Por quê? Entendo que vivemos uma crise econômica e também uma crise política. Todavia, penso que não se trata de uma crise ética ou moral. Na verdade, o que presenciamos é a completa derrocada do ethos brasileiro. Explico-me. É claro que há uma crise econômica. Em um mundo globalizado, quando a China para de crescer 7% e cresce 6% deixando de comprar nossas commodities, isso gera problemas em nossa balança comercial, mas também nas de muitos outros países. Por exemplo, a Austrália sofre como nós com a queda na compra chinesa de minérios. Além disso, quando o Governo Federal deixa de zelar por suas responsabilidades fiscais, temos um aumento da dívida pública com a consequente desconfiança dos investidores e a estagnação ou encolhimento do PIB. Segue-se o aumento do desemprego, com a subsequente explosão dos índices de criminalidade etc. Agora, a crise política é tão ou mais grave porque impede a econômica de ser superada. Penso que o Brasil vive uma espécie de “esquizofrenia política”, ou seja, há um governo com o PT como cabeça de chapa, mas cuja base vota contra as orientações da presidenta, e o PMDB detém a vice-presidência, cujo representante é, ao mesmo tempo, líder do partido majoritário de apoio ao governo, mas que tolera oposição dos próprios membros do seu partido, inclusive do presidente de um dos poderes, o Legislativo. Ora, em qualquer país civilizado, quem não segue a orientação da liderança, é expulso do partido. Mas isso não acontece aqui: temos um governo que é, digamos, oposição a si mesmo, uma situação esdrúxula que imobiliza a agenda política. Pergunto: como pode o partido com a maioria dos ministros das pastas mais relevantes não votar nos programas do governo? E mais importante ainda: como pode dar certo um país que coloca nos seus principais postos de liderança pessoas completamente despre-

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“A classe política precisa ser domesticada pela sociedade civil”

paradas, incompetentes mesmo? Pense no atual ministro da ciência e tecnologia, o que é que ele entende da pasta se tem trabalhado a vida toda com restaurantes? No mundo atual, em que o conhecimento científico e tecnológico é protagonista do verdadeiro desenvolvimento, estamos fadados ao fracasso. Desse modo, nunca chegaremos ao tão almejado Primeiro Mundo, mas estamos rumando rapidamente para o Quarto Mundo. Esse arranjo do “toma cá, dá lá”, ou seja, troca de cargos por apoio político, é desastroso em todos os sentidos. Por isso, enquanto não fizermos uma reforma política séria, digna desse nome, nada vai melhorar. Temos partidos demais. Qualquer “prefeitozinho” funda um partido. Qualquer espertalhão se declara representante de uma classe e funda um partido, não para concorrer a cargos legislativos ou executivos e pensar no bem comum, mas para “vender” apoio de 2% ou 3% da população a quem efetivamente for eleito e, com o dinheiro, comprar helicópteros particulares. Nunca conseguem se eleger para nada e vivem parasitando nas tetas do Estado, que não tem recursos suficientes para saúde, educação, segurança etc., mas acaba de aumentar o fundo partidário. Um escândalo. E o povo pensando em futebol e carnaval. Merecemos as políticas públicas que temos. Para superar esse quadro, somente uma verdadeira reforma política. A população civil precisa se organizar e enviar, ao modo da Lei da Ficha Limpa e das “10 Medidas contra a Corrupção”, milhões de assinaturas exigindo uma reforma política verdadeira. Não sejamos ingênuos a ponto de acreditar que a classe política dominante fará a reforma. Temos que reduzir os partidos a três ou quatro e cobrar representatividade de milhões de

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filiados. Temos que mudar o sistema representativo e o tipo de voto. Chega de políticos pretensiosos: que se recolham à própria insignificância. A classe política precisa ser domesticada pela sociedade civil brasileira. A economia não vai melhorar, não vamos voltar a crescer, enquanto esse quadro político não mudar. Os investidores não são bobos: investem em situações de risco, mas não em situações de completo caos político. Nesta linha de raciocínio, como fica a questão da ética? Não se trata de mero acidente de percurso. O que temos que fazer é repensar todos os nossos valores: o ethos do jeitinho não funciona. Não adianta cultivarmos “o herói sem caráter” (Macunaíma) como virtude nacional. Falta de caráter é falta de caráter, ou seja, mais do que um vício, é a ausência da própria moralidade. Também não adianta fingirmos que, entre a “casa grande” e a “senzala” (Freire), há harmonia. Existe é conflito e os valores que estão se tornando majoritários apontam para um desastre. Por exemplo: por que os políticos não investem na educação pública básica de qualidade para garantir um ponto de partida igualitário para todas as crianças e jovens? Não valorizamos talentos, a excelência etc., mas a cor da pele. Por que é que “pardos” precisam ser discriminados positivamente com cotas em universidades e em cargos públicos? Por que alunos de escola pública precisam vagas nas federais? Será que é porque assim nossos políticos não precisam construir escolas decentes


“Enquanto não fizemos uma reforma política séria, digna desse nome, nada vai melhorar”

de ensino fundamental e médio? Vamos garantir empregos públicos também para esses pseudoformados? E a malandragem, essa instituição nacional (já bem descrita por Roberto DaMatta), poderá trazer benefícios ao país? É claro que não. A “contabilidade criativa” do nosso governo virou piada mundo afora. Será que a cordialidade (identificada por Sérgio Buarque de Holanda) é realmente nossa contribuição para a civilização mundial? Se for, estamos perdidos. A suposta esperteza é, de fato, uma burrice. E o que dizer do nosso “sincretismo religioso”? Como podem existir tantas instituições religiosas no Brasil? Ninguém estranha o fato de vermos tantas igrejas surgindo para explorar o povo cujo único “deus” adorado é o dinheiro? Ninguém desconfia que o dinheirinho dos pobres (ou até mesmo a passagem do ônibus e o ticket rejeição “doados” como prova última de fé quando a carteira está vazia) enriquecem charlatões que nada entendem de sentimento religioso genuíno e que entram na política para roubar ainda mais? Que respeitem o Estado laico! E por falar em Estado, uma das prioridades do Brasil é desprivatizá-lo. Criticamos programas sociais para pobres, mas e o grande empresariado que não sabe competir no mercado e suga o dinheiro público? Pensemos no sistema financeiro brasileiro. Nos últimos 30 anos, os lucros com a dívida pública têm sido gigantescos, absurdos mesmo. E os grandes empresários do setor da construção civil ou donos de empreiteiras? Rios de dinheiro para obras tecnicamente questionáveis e tudo acertado na participação das licitações públicas. Agora, olhemos para nossa economia. O custo financeiro para o empreendedor é altíssimo. O custo econômico e social de

obras malfeitas para os brasileiros é absurdo. Permitam-me dar um exemplo: quantos anos levou a duplicação da BR-101 de Florianópolis até a fronteira Sul de Santa Catarina? Quinze anos? Uma vergonha não conseguir duplicar 250 quilômetros em menos tempo. Pior: quantos adendos contratuais foram feitos? Quanto dinheiro foi jogado na lata do lixo da corrupção? Quantas vidas humanas perdemos enquanto isso? O que quero frisar é que não estamos apenas diante de uma crise ético-moral. Estamos diante do fracasso completo dos nossos valores. Votamos em políticos corruptos porque somos corruptos. Só reclamamos porque somos hipócritas. De fato, não somos sérios e fazemos tudo “pra inglês ver”. É necessário, urgentemente, uma completa transvaloração do ethos do jeitinho para valores reais, por exemplo, a verdadeira justiça. De que modo o noticiário cotidiano sobre desvios éticos de toda ordem, nas esferas do poder, abala a confiança do cidadão nas instituições públicas? Quem ganha com instituições abaladas? E como recuperar essa confiança? São muitas perguntas e todas importantes. Primeira: é claro que o noticiário cotidiano sobre os escândalos ajuda a naturalizar desvios de toda ordem. Isso é muito perigoso, pois forma a consciência da maioria. Tenho muito medo do futuro do nosso país (aliás, acho que nem mais o país do futuro somos) ao imaginar o que as crianças da geração que hoje tem 10, 15 anos vão fazer. Se não tiverem experiências de que outro mundo é possível, não teremos parâmetros para superar o presente estado de coisas. Segunda: ninguém ganha com instituições abaladas. Como podemos pensar que os atuais presidentes das casas legislativas brasileiras, dois comprovados corruptos, possam contribuir para o país? Temos um Código Penal esperando por reformas há décadas; temos leis ultrapassadas na bioética; temos questões urgentes para ser debatidas. No entanto, a agenda política é completamente tomada por escândalos. O presidente da Câmara Federal mal consegue, com seu batalhão de advogados, dar conta de responder aos processos pessoais que responde no Supremo e no Conselho de Ética. Por que não renunciou logo para defender e provar a sua “inocência”? Será que ele está ganhando algo? Talvez um nome sujo nos livros da história, comprometendo ainda mais nossa imagem perante a justiça mundial. Terceira: como recuperar a confiança? Na minha opinião, somente mudando o ethos do jeitinho, ou seja, abandonando a falta de caráter ao burlarmos as leis, a malandragem, a cordialidade etc.

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“Estamos diante do fracasso dos nossos valores. Votamos em políticos corruptos porque somos corruptos. Só reclamamos porque somos hipócritas”

É preciso dar um basta em tudo isso. Algumas pessoas afirmam que há um lado positivo em tudo isso – à medida que, com uma sociedade mais transparente, os desvios vêm à tona e são apurados. O sr. concorda? A sociedade brasileira evoluiu, de fato, e cobra punição a quem comete esses desvios? Se compararmos com a época do regime militar, sim. Os militares garantiram, para si e para seus descendentes, privilégios injustos. Por exemplo, filhas e netas que não se casam oficialmente para continuar sugando o Estado. Claro, então, que temos feito avanços: a redemocratização do país, a estabilização econômica, a implantação de vários programas sociais etc. Por incrível que pareça, não foi a sociedade que evoluiu. Trata-se da iniciativa de uns poucos, verdadeiros heróis que apostaram, por exemplo, na Lei da Ficha Limpa que, obviamente, não poderia ter sido iniciativa de um político. Também vemos hoje um Judiciário, apesar de todos os seus problemas, funcionando razoavelmente. O Judiciário, no Brasil, é uma espécie de injustiça social institucionalizada pelos privilégios que seus funcionários gozam, mas tem mostrado, pela Operação Lava-Jato, que é possível superar o ethos do jeitinho, ou seja, a corrupção endêmica que se instalou aqui dada a certeza da impunidade, a malandragem. Temos hoje grandes empresários, políticos expressivos etc. presos. Se tudo não terminar em pizza, como no caso de Maluf, que teve seus crimes prescritos pela demora do Supremo Tribunal

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em julgar, haverá esperança. Aliás, a França acaba de condenar esse senhor a três anos de prisão causando embaraço em Brasília. Tenho vergonha, muita vergonha. Nesse sentido, temos que apoiar a iniciativa das “10 Medidas contra a Corrupção”. Esse tipo de atitude mostra que há valores para além do ethos do jeitinho. Basta cultivá-los em larga escala, nas famílias, nas escolas, nas empresas, enfim, na sociedade como um todo. O que se pode esperar da campanha eleitoral que vem aí? Será que a crise nacional vai se refletir na esfera dos municípios e, por exemplo, aumentar as abstenções nas urnas? As próximas eleições serão municipais. Não espero nenhuma mudança substancial. Mesmo que ocorrer um pequeno aumento na abstenção nas urnas, tudo continuará da forma como está. Não votar não é a saída, pois maximiza a chance de políticos corruptos serem reeleitos ou chegarem ao poder. Não tenho bola de cristal, mas as próximas eleições não trarão mudanças significativas. Quanto à eleição de 2018, desde o ano passado antecipada pelo Lula, que perdeu uma ótima oportunidade de passar para a história como um grande estadista ficando quieto e no canto dele, talvez tenhamos novidades superando a polarização PT-PSDB que tem dominado a política nacional nos últimos 20 anos. Pelo bem da democracia, é necessário mudar. Acho que é cedo demais para fazermos previsões, mas também espero que os perdedores da última eleição (penso aqui, principalmente, no candidato do PSDB) que estão fazendo uma oposição absolutamente irresponsável, ou seja, aprovando no Congresso aquilo que prejudica o país e, acima de tudo, vai contra o que o próprio programa do partido estabelece como diretriz, não cheguem ao poder. Precisamos de uma alternativa melhor, e esta deverá aparecer. O que acho desastroso é ver todos os políticos com um pouco de expressividade e liderança (e com forte apoio econômico) trabalhando desde o ano passado na candidatura à presidência: troca de cadeiras nos partidos, críticas ao atual governo somente pensando em 2018 sem apresentar alternativas etc. A nossa política nacional é muito pobre de ideias e projetos. Com raras exceções, nossos políticos são absolutamente despreparados.


Para Darlei, a política nacional é pobre de ideias e projetos, com políticos despreparados

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Que conselho o sr. daria ao eleitor descrente, para que faça escolhas consistentes nas eleições deste ano? Não existe possibilidade alguma fora da política, ou seja, não votar é um ato político, é necessário fazer a melhor escolha possível. Meu conselho é: não vejam propagandas partidárias televisivas ou anúncios jornalísticos preparados por equipes de marketing ou discursos bombásticos elaborados por assessores. Leiam os programas dos próprios partidos e estudem a história dos candidatos para avaliar se as promessas que estão sendo feitas são mentirosas ou se têm uma remota chance de ser cumpridas. Finalmente, vamos votar em políticos com “P” maiúsculo, ou seja, em pessoas que pensam no bem comum do país, dos Estados, dos municípios e não em jogadores de futebol, palhaços, pastores, apresentadores de programinhas medíocres de televisão ou rádio etc. Caso contrário, não teremos moral para reclamar. Falando especificamente da área da saúde, o sr. vê o eleitor preocupado com o caos que vive a saúde no Brasil? A área da saúde, juntamente com a da educação e a da segurança, é básica e justifica a própria existência do Estado e dá legitimidade aos governantes. Agora, temos muito que avançar. Primeiro, repensar o direito constitucional à saúde nos termos que está posto. Ninguém pode ter esse direito de forma ilimitada e absoluta. O que podemos ter é um direito à uma assistência digna à saúde. Segundo, nosso Sistema Único de Saúde precisa de correções. Por exemplo, a maioria dos recursos é consumida por quem teria condições de arcar com as próprias despesas médico-hospitalares. Depois, temos o problema da judicializa-

ção: quem tem bom advogado consegue importar remédios, ir aos EUA fazer cirurgias que aqui não são feitas etc. Enquanto isso, doenças que já deveríamos ter exterminado matam milhares de pessoas. O SUS não pode prover tudo a todos. Temos que estabelecer o que é direito de assistência a um mínimo de saúde e um teto que evite tantas distorções. Agora, o eleitor, em geral, só pensa no tema quando sente na pele o quadro precário e percebe o caos de alguns hospitais públicos que atendem pacientes em corredores, não têm equipamentos essenciais ao atendimento. O que mais impressiona é ver que o eleitor não conecta a roubalheira em Brasília com a falta de recursos na saúde. Eu estava na sala de espera de um consultório e, em vez de assistir ao noticiário que todos estavam vendo, comecei a observar a reação das pessoas: ninguém se manifesta sobre nada, ou seja, uma reportagem tratava dos escândalos de corrupção e a outra mostrava as geladeiras sem remédios e vacinas; as pessoas ficavam simplesmente assistindo sem reagir ou conectar as notícias. Quando comentei “faltam remédios porque sobram políticos corruptos”, todos me olharam, mas nada disseram. A corrupção se tornou natural para os brasileiros. Temos que desnaturalizá-la. O eleitor não pode continuar vendendo voto por um quilo de feijão ou continuará a comer apenas feijão. Na saúde, não é diferente: não podemos votar em políticos que conseguem uma “vaguinha” num hospital público, mas em quem realmente pensa os problemas estruturais do nosso sistema de saúde.

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“Um dos grandes entraves ao ensino da bioética ocorre quando os alunos observam que, na prática clínica, seu mestre age exatamente ao contrário do que recomenda. Bioética se aprende por meio de bons exemplos” Gabriel Oselka, bioeticista e coordenador do Centro de Bioética do Cremesp

Em dia SBB/SC presente no Congresso Internacional da Rede Unida

Diferença sim, desigualdade não: pluralidade na invenção da vida.” Esse foi o tema central do 12º Congresso Internacional da Rede Unida, realizado em março, em Campo Grande, no Mato Grosso. O evento contou com a presença do professor doutor Fernando Hellmann, secretário da Sociedade Brasileira de Bioética/Regional Santa Catarina (SBB/SC). O pesquisador participou da mesa-redonda “Trabalho, atenção básica em saúde e pensamento complexo: quais conexões”, apresentando “Bioética, complexidade e atenção básica: preocupações do cotidiano”. “O objetivo do evento foi iluminar o debate sobre a pluralidade da construção dos processos críticos-reflexivos no agir, ensinar, aprender e produzir a saúde, que emergem como necessidades elementares para o fortalecimento do SUS e da sociedade”, afirma Fernando Hellmann. O Núcleo de Pesquisa e Extensão em Bioética e Saúde Coletiva, que conta com membros da SBB/SC, também participou do evento, fazendo parte da discussão sobre o filme “Si puó fare” (Dá para fazer), como parte do projeto “Bioética pelas lentes do cinema”.

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Assembleia em São Paulo

Nos dias 8 e 9 de abril, ocorreu em São Paulo a assembleia geral da Sociedade Brasileira de Bioética. Na ocasião, a regional de Santa Catarina esteve representada pelo seu presidente, doutor Carlos José Serapião, e pelo secretário, doutor Fernando Hellmann. Foram discutidos assuntos como a aprovação das contas do exercício de 2014 e apresentação das contas de 2015; proposta da constituição de Grupos de Trabalho, entre os quais se destacam o GT de bioética na educação básica e o que se encarregará da revisão dos estatutos da SBB, da qual o presidente da Regional de Santa Catarina faz parte.

RedBioetica e Unesco oferecem cursos de bioética

Estão abertas as inscrições para cursos de bioética, oferecidos neste ano pela RedBioética e Unesco. Os treinamentos de 200 horas terão como tema “Ética em Pesquisa com Seres Humanos” e “Bioética Clínica e Social”. Os participantes são acompanhados por tutores, com discussões via internet. Ao final, serão fornecidos certificados de participação emitidos pela RedBioetica e Unesco. Mais informações no site: http://www.redbioetica-edu.com.ar/

Participe da eleição da nova diretoria

No primeiro semestre deste ano, teremos eleição para a nova diretoria da SBB/SC, biênio 2016-2018. O processo sucessório foi deflagrado nos termos do Estatuto. Para tanto, os associados aptos (Art. 7o) poderão compor chapas para serem apresentadas à eleição até 6 de julho. A nominata das chapas deve ser entregue à Comissão Eleitoral, na sala do CEP/UFSC, no andar térreo da Biblioteca Central de UFSC. A Assembleia Geral para a eleição das chapas será no dia 8 de julho, das 14 às 17hs, na sala do CEP/UFSC, para a qual estão convidados todos os associados.


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Rua Blumenau, 123, Centro, Joinville/SC (47) 3451-3333 www.donahelena.com.br


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