Revista Conecthos 10

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10 REVISTA DO HOSPITAL DONA HELENA

SAÚDE HI-TECH

Como a inteligência artificial e o uso intensivo de dados podem ajudar a combater doenças, aprimorando diagnósticos e procedimentos médicos

LIDERANÇAS NA ENFERMAGEM 6 A hora certa para o Testamento Vital – e o papel dos cuidados paliativos 12 CAMINHOS PARA A HUMANIZAÇÃO NO ATENDIMENTO 20 Elcio Bonamigo: “O desafio de estimular as virtudes humanas” 24 TECNOLOGIAS PARA A ACESSIBILIDADE 28 Um código para os estudantes de medicina, artigo do presidente do CFM 33 ENTREVISTA: “SAÚDE É TEMA INDISPENSÁVEL PARA O JORNALISMO DIÁRIO” 40 Coluna da SBB/SC 44



Nesta edição Accredited by Joint Commission InternationalTM

Associação Beneficente Evangélica de Joinville/Hospital Dona Helena Rua Blumenau, 123 Centro – Joinville/SC CEP 89204-205 (47) 3451-3333 www.donahelena.com.br Revista Conecthos é um projeto do IDHEP – Instituto Dona Helena de Ensino e Pesquisa – Núcleo Editorial ISSN: 2358-8217 Circulação: novembro de 2018 Coordenação geral: Carlos José Serapião Conselho editorial: Ana Ribas Diefenthaeler, Antonio Sérgio Ferreira Baptista, Gizele Leivas Editores associados: Bruno Rodolfo Schlemper Jr., Christian Ribas, Maria José Varela, Fernando Hellmann, Nelma Baldin, Euler Westphal, Wladimir Kümmer, Paulo Henrique Condeixa de França, José Carlos Abellán (Espanha), José Luis Fernández Fernández (Espanha) Jornalista responsável: Guilherme Diefenthaeler (reg. prof. 6207/RS) Produção: Mercado de Comunicação Edição: Guilherme Diefenthaeler Reportagem: Jean Balbinotti, Marcela Güther, Ana Ribas Diefenthaeler, Guilherme Diefenthaeler Diagramação: Fábio Abreu Fotografia: assessorias de imprensa e banco de imagens Impressão: Tipotil Indústria Gráfica Tiragem: 2 mil exemplares Redação: contato@mercadode comunicacao.com.br Realização Associação Beneficente Evangélica de Joinville/Hospital Dona Helena Apoio Sociedade Brasileira de Bioética/Regional Santa Catarina Os artigos publicados correspondem à opinião de seus autores, não expressando o pensamento da direção do hospital. Todas as informações são de responsabilidade dos autores. Direitos reservados. Proibida a reprodução integral ou parcial.

Conflitos morais em áreas complexas da existência humana se encontram na própria origem da bioética – a qual perpassa temas candentes como a clonagem e o uso de células-tronco, o aprimoramento genético do indivíduo, a permissão da eutanásia e do suicídio assistido, o conceito de família. Essas reflexões são trazidas pelo médico Elcio Bonamigo, doutor e mestre em bioética por universidades espanholas, em entrevista que começa na página 24. Bonamigo é palestrante convidado para a principal conferência do 18o Simpósio Catarinense de Bioética, iniciativa do Hospital Dona Helena. Sempre focada no campo da bioética, a Revista Conecthos traz reportagens sobre Testamento Vital e cuidados paliativos, o incremento da inteligência artificial na medicina, a tecnologia como suporte para a acessibilidade, o ensino do conceito de humanização do atendimento e a forma como a imprensa trata de questões da área da saúde, além de artigos de especialistas convidados. Desejamos uma ótima leitura.

4 Nossa palavra 6 Para despertar lideranças na enfermagem 8 Inteligência artificial na saúde 12 Outro sentido para a vida e a morte 20 Tudo pela humanização do atendimento 24 Elcio Bonamigo reflete sobre aprimoramento moral 28 Novas tecnologias para a acessibilidade 33 Um código para os estudantes de medicina 40 Saúde é pauta indispensável, diz doutora em jornalismo 44 Nova diretoria na SBB/SC


Nossa palavra

Ética da Vida Carlos José Serapião

Coordenador do Instituto Dona Helena de Ensino e Pesquisa (IDHEP)

E

m nossos dias, uma palavra reina sobre a cultura e comanda a nossa consciência moral. Ética. Além de ser reconhecida como um discurso ou uma doutrina dentro de seu espaço filosófico, apresenta-se como prática imprescindível a todas as ações humanas, iluminando o espaço a partir do qual o dinamismo de nossa existência, regida pelas necessidades e desejos, move-se impulsionado pela poderosa energia da pluralidade das motivações. Quando falamos da ética, a entendemos como uma reflexão racional acerca da moral, e seu objetivo é elucidar o fundamento e o significado do dever moral. Uma questão que, entre outras, a ética busca responder é a distinção entre a moralidade e a legalidade, esta última regida pelo estrito cumprimento das leis, quando alguns tentam, por exemplo, justificar seus atos de corrupção. Nem tudo que é

legal, portanto, é moralmente aceitável. O aprimoramento moral, apresentado neste número de nossa revista, irá nos informar que nascemos dotados de uma estrutura genética que nos capacita a agir de maneira singular frente aos estímulos externos. Vamos desenvolvendo uma moralidade estruturada, de modo progressivo, com distintas respostas aos estímulos biopsicossociais, desde a infância, estendendo-se pela escola, quando começamos a nos dar conta de como devemos atuar, adquirindo nossa consciência moral. O aparecimento da neuroética como uma disciplina científica se apresenta


capacitada a nos ajudar a compreender os mecanismos cerebrais da nossa conduta, conduzindo a crer na hipótese de que até o senso de justiça teria uma base biológica demonstrada experimentalmente. “É plausível pensar que as mulheres teriam maior capacidade para o altruísmo, sendo menos agressivas do que o homem, com fundamento em razões biológicas, fazendo crer na possibilidade de um bioaprimoramento moral e aceitando que drogas e engenharia genética pudessem ser utilizadas nesse sentido” (*). A moralidade se apresenta em todos

os domínios da atividade humana, surgindo como uma exigência neste mundo em contínuo movimento, submisso a uma novidade: não se trata mais de fantasmas da ficção científica, o dilema é bem real! Este século 21 é um marco significativo na história da humanidade. Apoteose ou apocalipse, eis a questão. Esse e outros assuntos, com instigantes e contraditórios argumentos, serão apresentados, fazendo nascer diferentes momentos de reflexão para a qual estaremos convocados. Desejo e poder, culpa e responsabilidade, virtude e vício etc. Múltiplas áreas da moral serão visitadas a partir de fundamentos vitais da ética: trabalho, comunicação, religião, família, ciência e sociedade. (*) BARON-COHEN,SIMON - 2003


Institucional

Para fortalecer as lideranças da Enfermagem

Desde agosto, 14 profissionais que atuam em atividades de coordenação e supervisão de Enfermagem do Hospital Dona Helena participam de programa de desenvolvimento de lideranças, coordenado pelo Center for Leadership Studies do Brasil (CLS), centro de soluções, difusão e estudos sobre liderança, situado em São Paulo. Com foco nas modalidades de assessment, para avaliação de competências, e coaching, para formação e evolução pessoal, o trabalho tem por objetivo despertar as participantes para que conduzam de forma mais holística seus processos e pautem seus planos de ação no planejamento estratégico da instituição – sem deixar de considerar o cuidado ao paciente. “O autodesenvolvimento estimula a busca de melhores resultados e desempenho, maior conhecimento, maior satisfação e tranquilidade em direcionar os esforços de carreira, compatibilizando-os com o projeto de vida. O processo de escolha, aonde investir e como dar rumo à carreira, passa primeiro pela própria pessoa”, su­ blinha Ramiro Novak Filho, consultor responsável pelo trabalho, que teve início com a identificação dos pontos fortes – facilitadores de alto desempenho – e dos pontos vulneráveis de cada participante, que podem dificultar a ascensão profissional. Na última etapa, o trabalho é acompanhado pela superiora, visando ao alinhamento de expectativas entre o trabalho da consultoria e as necessidades de cada profissional. “Queremos fortalecer as coordenadoras, conduzindo-as para uma maior assertividade e à busca contínua de resultados, transformando-as em líderes que fazem a diferença”, resume Ana Brito, gerente de Enfermagem do HDH. “Eu me sinto privilegiada por fazer parte desta instituição que nos proporciona oportunidades de crescimento. O hospital valoriza o potencial de suas equipes”, aponta Alcina Maria de Oliveira Claudino, enfermeira assistencial no Centro de Diagnóstico por Imagem (CDI), há quase dois anos no Dona Helena.

Voluntariado em cinco frentes Com intuito de promover o espírito de solidariedade humana e incentivar as pessoas a contribuir para o desenvolvimento sustentável, comemora-se em 5 de dezembro o Dia Internacional do Voluntariado. Levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) contabiliza em 7,4 milhões o número de voluntários atuantes no país, o que representa um crescimento de 12,9% sobre o total do ano anterior. O Hospital Dona Helena estimula o voluntariado por meio de um conjunto de cinco projetos ligados, todos eles, ao Programa de Humanização. O Agente Solidário Hospitalar faz visitas de acolhimento espiritual. No Jogos para a Vida, as visitas são para pacientes adultos, para realizar atividades lúdicas, tirando o foco da doença. Canto e artes nos corredores do hospital orientam a atuação do Portas Abertas para a Arte. Já a turma de estudantes universitários que participa do Pedagogia Hospitalar realiza atividades com as crianças internadas. Finalmente, o Hospirrisos – Agentes da Alegria, que, há 12 anos, ajuda a levar descontração e alegria ao ambiente hospitalar.


Sempre alerta Um time do Hospital Dona Helena faz parte da Brigada de Emergência e trabalha, nos diversos setores, com foco na prevenção de acidentes, primeirossocorros e combate a incêndios ou possíveis ocorrências relacionadas à segurança. Os componentes participam de treinamentos em práticas como técnicas de lançamento de mangueira, manuseio de extintores, tipos e focos de incêndio, além de socorro a vítimas em ambientes de difícil acesso. “São conhecimentos para a vida”, diz o técnico de enfermagem Clayton Rodrigues de Sá.

Simulado avalia integração de órgãos públicos de saúde e segurança Não há lugar para improvisação no campo da saúde – especialmente quando se trata do atendimento a doenças ou ocorrências graves, que muitas vezes requer a ação integrada das mais variadas instituições, envolvendo até órgãos de segurança. Nesses casos, a resposta rápida e coesa pode fazer a diferença. Vinte entidades e estabelecimentos atuantes na Região Norte de Santa Catarina, como Samu, Bombeiros e Defesa Civil, participaram de uma operação simulada que teve por objetivo testar a capacidade de essas organizações fazerem frente a uma situação real de maiores proporções. A iniciativa envolveu a simulação de choque entre um caminhão transportando combustível – produto perigoso para o meio ambiente e para as pessoas – e um ônibus, que teria causado muitos feridos. O

simulado ocorreu na subida da Serra Dona Francisca e fechou a rodovia por algumas horas. O Hospital Dona Helena participou do trabalho cedendo uma ambulância com três profissionais. Cleone dos Santos, coordenador do Samu, ressalta que o propósito da ação foi também o de “atualizar e nivelar as condutas das equipes do Samu e das instituições de saúde e segurança, que atuam de forma coordenada”. Foi a primeira vez que se realizou um simulado com essa abrangência na região. Na opinião de Ana Brito, gerente de Enfermagem do Dona Helena, estar integrado a esse tipo de ação evidencia o trabalho em parceria que se dá entre hospitais públicos e privados, em benefício da comunidade. “Essa experiência tem enorme valor para mapear processos e riscos, aplicando as adequações necessárias em cada instituição, capacitando as equipes e adequando a infraestrutura à capacidade instalada relacionada ao atendimento seguro, como quantidade de leitos de contingência, equipamentos, macas e camas”, exemplifica.


TECNOLOGIA

Os avanços da inteligência artificial na área da saúde

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istoricamente, as descobertas científicas e os avanços tecnológicos têm sido responsáveis por aumentar a expectativa de vida e combater doenças. Em poucas palavras: o que vai acontecer amanhã já pode ser conhecido e tratado hoje. A medicina preditiva busca antecipar doenças e realizar ações preventivas imediatas com o uso de recursos tecnológicos, em especial de Big Data (grande volume de dados que impactam os negócios) e inteligência artificial. Não à toa, importantes empresas de tecnologia, como Microsoft, Amazon e Google, associaram-se, neste ano, a organizações internacionais para prevenir o risco de fome por meio do uso e análise de dados. O Mecanismo de Ação contra a Fome (MAF) fornecerá os primeiros sinais de alerta para identificar crises que poderiam se agravar. Isso acionará programas de financiamento para uma resposta rápida. Serão desenvolvidos modelos analíticos chamados “Artemis”, que empregam inteligência artificial e machine learning para fazer previsões em tempo real sobre a possível intensificação de tais crises alimentares. Alexandre Chiavegatto Filho, professor e doutor de estatísticas de saúde da Faculdade de Saúde Pública (USP), explica que a inteligência artificial é, basicamente “a capacidade de máquinas tomarem decisões inteligentes” e já tem sido utilizada pela medicina em várias práticas, desde a análise do histórico de pacientes via prontuário, chegando até mesmo à interpretação de exames diagnósticos. Todo o processo traz inúmeros benefícios, como a redução de custos e de erros assistenciais durante o cuidado com a saúde de um indivíduo. O machine learning é a técnica em voga. “Machine learning diz respeito à condição de as máquinas criarem as próprias regras para a tomada de decisão. Nem sempre foi o caso: até

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Tecnologia já é responsável por aumentar a expectativa de vida e combater doenças: o que vai ocorrer amanhã pode ser conhecido e tratado hoje


há algumas décadas, o mais comum era que máquinas tomassem decisões inteligentes a partir de regras definidas a priori por humanos”, explica o especialista. No Brasil, a aplicação ainda está em fase inicial. “Mas os maiores hospitais de São Paulo já começaram a estabelecer equipes fortes de ciência de dados com foco nessa área”, sublinha. O profissional coordena o Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde (Labdaps) da USP, onde transcorre a aplicação de modelos de machine learning a problemas significativos da área. “Estudos recentes incluem a identificação de boas práticas de políticas públicas de saúde, a predição de tempo e qualidade de vida em pacientes com doenças graves e a predição de risco de óbito em idosos nos próximos cinco anos”, revela. O pesquisador aponta que o método do machine learning em breve estará presente em todas as fases de contato do paciente com o sistema de saúde, ajudando os profissionais a tomarem melhores decisões sobre triagem, prioridades de internação, diagnósticos, altas hospitalares, entre outras. Para Alexandre Vasques, especialista na área de Tecnologia da Informação e de Indústria Analytics, que faz parte do Gru-

po Global de Black Belts para Advanced Analytics e IoT da Microsoft, na América Latina, o uso de inteligência artificial proporciona ao menos dois ganhos expressivos para a saúde: quando aplicada para a realização de diagnósticos precoces e para evitar ou corrigir diagnósticos equivocados. O profissional também enxerga potencial para a melhora da vida dos pacientes que têm doenças crônicas. Outro uso é no auxílio de treinamento de médicos-cirurgiões e no próprio momento da cirurgia. Um dos maiores empecilhos para a difusão dessas novas tecnologias, no Brasil, de acordo com Vasques, é a carência de investimentos. “Vejo mais a iniciativa privada fazendo estudos. A rede pública deveria estar à frente, mas se encontra estagnada. Estudos de modernização estão em segundo plano por conta de toda a dificuldade de investimento em itens básicos para a saúde”, analisa. Ele também evidencia a dificuldade de processamento de dados no setor. “Os equipamentos, principalmente os de imagem, são cada vez mais precisos. Uma imagem mais profunda e detalhada gera mais dados. O Brasil está preparado para essa quantidade. Hoje, o problema é provar o valor de realmente usar esses dados. O armazenamento é barato – o problema é processar, algo que tem custo alto e requer investimento”, explica. Exemplos da iniciativa privada demonstram o êxito do investimento. O Hospital 9 de Julho, de São Paulo (SP), percebeu que a tecnologia poderia ser aliada em um problema recorrente: a queda de pacientes nos leitos. O Laboratório de Tecnologias Avançadas da Microsoft Brasil desenvolveu uma solução de inteligência artificial utilizando um

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“Inteligência artificial reduz custos e erros assistenciais” Alexandre Chiavegatto, da USP

vídeo analítico. A solução implantada empregou o poder da nuvem inteligente da Microsoft, o Azure, dispensando o olhar humano e respeitando a privacidade dos pacientes. “Por meio de câmeras, o algoritmo (de treinamento de rede neural profunda) detecta anomalias, como o paciente levantar da cama, com risco de queda, e gera um alerta para a equipe do hospital”, explica Vasques. Outro exemplo é o de um sistema de sensoriamento que auxilia pacientes idosos e com doenças crônicas. A Microsoft pretende testar a tecnologia, já adotada nos Estados Unidos, em um hospital do Brasil. “Sensores são colocados no corpo do paciente, alguns deles são implantes. Através de machine learning, detectamos a tendência de algo piorar no quadro de saúde. Dependendo da gravidade, aciona-se uma enfermeira ou um médico para atendimento”, explica Vasques. Os dados também podem revelar epidemias. O profissional já participou de um estudo, em parceria com um órgão público, que, por meio da análise de mídias sociais, testou a capacidade de prever surtos no Brasil. “Olhando o prontuário e dados abertos de mídias sociais (Twitter e Facebook) de pessoas de uma determinada região, existe correlação entre o que as pessoas estão reclamando de dores (como dor de cabeça, febre ou dores nos olhos) com surtos como dengue e gripe”, explica. Outra inovação de ponta são os chamados óculos de realidade mista, da Microsoft, batizados de HoloLens. “Já temos dois médicos utilizando-os em cirurgias em Campinas (SP). Com os óculos, eles conseguem acessar os dados de ressonância magnética do paciente”, informa Vasques, da Microsoft.

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Dados são o “petróleo” da atualidade Daqui a 10 anos, o uso de novas tecnologias envolvendo inteligência artificial e machine learning terá impacto enorme no mercado da saúde. Tecnologias serão capazes de monitorar e auxiliar a efetiva mudança de cultura para hábitos mais saudáveis, controlando a epidemia de doenças crônicas. Em 50 anos, o diagnóstico das diferentes condições em saúde já vai ser automatizado, com forte capacidade preditiva. Com novas informações genéticas, ambientais e comportamentais, seremos avisados muito tempo antes de adoecer. Em 100 anos, os profissionais de saúde devem se dedicar apenas a atividades que envolvam acolhimento, empatia e auxílio à tomada de decisão, sob critérios cognitivos afetivos e socioculturais. Parece ficção científica? Pois esse é um cenário futurístico real, previsto pela equipe de HealthCare da Softplan, empresa referência no país no desenvolvimento de softwares, que vêm investindo em aplicações para a saúde. “Os dados falam e precisam ser ouvidos”, frisa Marcello Herdt, consultor médico da equipe, especializado em cirurgia geral e mestre em Gestão de Tecnologia e Inovação em Saúde pelo Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Sírio Libanês, de São Paulo. O profissional afirma que os dados são o “petróleo da atualidade” e tecnologias que os utilizam de forma inteligente são cada vez mais difundidas. Na saúde, a quantidade de dados é gigantesca: dobra a cada dois anos no mundo. Até 2020, a previsão é de que isso aconteça


“Os equipamentos estão cada vez mais precisos” Alexandre Vasques, da Microsoft

a cada 73 dias. “Apesar disso, muito mais de metade dos registros médicos não estão estruturados, o que dificulta o compartilhamento e análise das informações”, anota outro integrante da equipe, Jean Carlos Raduenz, head de Tecnologia,mestrando de Computação Aplicada no tema Inteligência Aplicada à Saúde/Inteligência Artificial. Segundo Herdt, organizações como o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) e Associação Médica Americana (AMA) afirmam que 30% dos gastos em saúde são desperdiçados. É o alvo do Dictas, plataforma desenvolvida pela equipe de HealthCare da Softplan. Lançado em abril deste ano, o Dictas pretende ajudar o gestor a tomar melhores decisões e reduzir os custos assistenciais nessa área. Aplicando a análise de dados e inteligência artificial para dar agilidade e prover assertividade à tomada de decisão, trata-se de uma plataforma de gestão e compliance, criada especificamente para operadoras de planos de saúde, mas que pode ser adotada igualmente por outras empresas e consultorias. “O sistema funciona acoplado às bases de dados das operadoras, capturando informações de pagamentos feitos a seus prestadores. O Dictas trabalha para mostrar, de maneira muito visual, como a operadora pode reduzir custos e, principalmente, entregar saúde aos seus beneficiários”, explica Gustavo Bublitz, head de Soluções de Healthcare. Bublitz, especialista na gestão de saúde há mais de 20 anos, mestre em gestão estratégica das organizações, exemplifica a utilidade da plataforma. Um gestor de operadora de saúde está prestes a renovar o contrato de um prestador de maternidade/obste-

trícia e, para isso, precisa avaliar a qualidade e o custo-benefício dos serviços prestados. “Com o Dictas, o gestor pode visualizar o percentual de cesarianas em comparação com o parto normal de seus diferentes prestadores e até de diferentes médicos obstetras, além de verificar os custos relacionados a cada prestador e comparar com os dados locais e nacionais da base de dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)”, esclarece. E como o uso do Dictas se reflete no tratamento do paciente? “Os dados, indicadores e informações podem ser facilmente socializados pela equipe de gestão interdisciplinar de saúde”, informa Herdt. O consultor médico ilustra com um exemplo: “Imagine um paciente que não tem uma doença crônica e utilizou o pronto-socorro em 40 momentos diferentes em um período de seis meses. Com o Dictas, é fácil perceber que esse comportamento demonstra algo fora do padrão. A equipe de medicina preventiva pode, então, entrar em contato com o paciente para orientá-lo quanto à melhor linha de cuidados com a sua saúde, além de otimizar seus próprios custos.” Segundo o profissional, o Dictas também faz o agrupamento de pacientes crônicos (oncológicos, renais etc.), de modo a orientar o time assistencial da operadora para executar tratamentos e acompanhamentos dirigidos. “Além disso, a plataforma aponta grupos de riscos que não fizeram exames preventivos, como mulheres com idade superior a 50 anos que não fizeram mamografia, por exemplo. Também é possível descobrir padrões que sugerem a necessidade futura de procedimento cirúrgico”, relata o consultor médico.

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Testamento vital

Quando a vida e a morte ganham um outro sentido

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alar sobre a morte é sempre difícil para qualquer pessoa quando não se está espiritualmente preparado. Há quem prefira até riscar a palavra do vocabulário. Mas o fato é que, querendo ou não, um dia ela chegará, de forma repentina ou aos poucos, lentamente. No Brasil, pessoas com doenças graves e incuráveis costumam atravessar seus últimos dias com dor e sofrimento, recolhidas a quartos de hospitais ou à casa de familiares. Sem falar nas que permanecem “vivas” ligadas a aparelhos, sob a esperança, da parte de quem está próximo a elas, de um milagre. Esses pacientes acamados, em geral, não conseguem expressar suas vontades naturalmente. E é nesse momento que uma solução jurídica, ainda pouco divulgada no Brasil, pode ser a chave para abreviar a dor e o sofrimento dos envolvidos. Trata-se do Testamento Vital ou Diretiva Antecipada de Vontade (DAV), um documento que pode ser feito e refeito a qualquer momento, antes mesmo do possível diagnóstico de uma doença incurável. O Testamento Vital pode ajudar médicos e familiares a tomar uma decisão quando se perderam as condições de o indivíduo expressar uma vontade espontaneamente. O dilema é: qual a hora certa para fazer isso? Quase nunca se está preparado para determinar a morte de alguém, principalmente quando se trata de um pai, mãe ou filho, por exemplo. A advogada Luciana Dadalto, especialista na área da saúde, é autora do livro “Testamento Vital” e afirma que, como pesquisadora dos temas relacionados à autonomia no fim de vida, encara a morte como um processo inexorável, que precisa ser desmistificado. Para ela, as pessoas que têm mais tempo e condições de aceitar a morte como natural e conversar sobre seus desejos com os entes queridos entendem esse ciclo com menos sofrimento e deixam importantes lições para quem fica.

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“Nossa sociedade é baseada no dogma religioso de que a vida não pertence à pessoa – é um presente divino. Isso significa que ninguém poderia tirar a vida de alguém, nem mesmo a pedido dessa pessoa”, diz. Para ter valor legal, o Testamento Vital deve, obrigatoriamente, ser feito em vida, e por alguém com mais de 18 anos. Outra peculiaridade é que o autor do testamento pode nomear representante legal a fim de assegurar o cumprimento das suas intenções quando já não estiver bem de saúde. Nesse caso, nem o desejo da família irá prevalecer. A vontade deve constar no prontuário do paciente, que tem validade legal,


O tema da finitude é tratado com dificuldade pela sociedade humana

PARA ENTENDER MELHOR O que é a DAV? As Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) são um gênero de documentos de manifestação de vontade para cuidados e tratamentos médicos, criado na década de 1960 nos Estados Unidos. Esse gênero se divide em dois: Testamento Vital e procuração para cuidados de saúde (também conhecido como Mandato Duradouro). Quando previstos em um único documento, são chamados de Diretivas Antecipadas de Vontade. Quem pode fazer? Pessoas com mais de 18 anos podem registrar, desde que ainda tenham condições de se expressar.

ou em documento registrado em cartório. O procedimento só não se aplica quando infringir os códigos de ética médica ou se existir chance de cura. Para os profissionais de saúde, a insegurança jurídica devido à ausência de legislação específica é ainda o que mais preocupa. Por esse motivo, muitas vezes os registros não são cumpridos. Atualmente, a resolução 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina (CFM), estabelece critérios para que qualquer indivíduo, maior de idade e plenamente consciente, tenha a possibilidade de definir junto ao seu médico os limites terapêuticos a adotar em uma fase terminal, por meio da DAV. O problema, na maioria das vezes, é entender que a vida tem um fim e que, independentemente da vontade da pessoa, não há meios para impedir a morte. SAIBA MAIS SOBRE TESTAMENTO VITAL NO SITE WWW.TESTAMENTOVITAL.COM.BR

Quem garante o cumprimento? A pessoa pode nomear um representante legal a fim de assegurar o cumprimento de suas intenções quando já não estiver mais consciente. Nem mesmo o desejo da família pode prevalecer nesse caso. Onde é registrado? No prontuário do paciente, que tem validade legal, ou em cartório. Há alguma situação em que não haja validade? Somente no caso de o procedimento em questão infringir códigos de ética dos profissionais de saúde ou se for enxergada uma possibilidade de cura.

FONTE: CENTRAL NOTARIAL DE SERVIÇOS ELETRÔNICOS COMPARTILHADOS (CENSEC)

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No Brasil, eutanásia ainda é considerada crime de homicídio Além do Testamento Vital, outra forma de abreviar a vida é pela eutanásia. Aplica-se quando o paciente se encontra em um estado clínico incurável ou irreversível e pede a um terceiro (geralmente, um médico) para que interrompa o tratamento. É diferente do suicídio assistido – quando o próprio paciente, em um estado clínico igualmente incurável e irreversível, abrevia a vida auxiliado por um terceiro (normalmente, um profissional de saúde). Em geral, esse terceiro prescreve um medicamento letal e o próprio paciente ingere ou administra a dose. No Brasil, a eutanásia é considerada crime de homicídio e a pena para quem causar a morte de um doente pode variar de dois a seis anos, quando comprovado motivo de piedade, podendo chegar a 20 anos de prisão. Para a advogada Luciana Dadalto, a eutanásia parte da ideia de uma aceitação cultural de que há situações específicas, como um câncer terminal, em que a abreviação da vida é aceitável, visto que o desfecho (a morte) é o esperado ou o sofrimento da pessoa é considerado indigno. Dessa forma, pode-se entender a eutanásia como um ato de compaixão com o sofrimento do outro, não um crime.

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Dona Helena oferece cuidados paliativos O Hospital Dona Helena, em Joinville, conta com uma ala totalmente dedicada aos pacientes que se encontram em fase terminal de vida. No setor, eles recebem os chamados cuidados paliativos, que têm a principal função de dar alguma qualidade de vida aos pacientes, eliminando parte do seu sofrimento e fazendo com que tenham uma passagem mais serena e tranquila. De acordo com a médica Carolina Ferreira Maurer Bock, especialista em cuidados paliativos no Dona Helena, existem várias formas para aliviar a dor e os sintomas de uma doença grave e oferecer mais conforto ao paciente. Antigamente, isso era mais difícil devido à falta de tecnologia e escassez de recursos. Hoje, a situação é outra. Os Centros de Tratamento Intensivo (CTIs) estão mais bem equipados, com aparelhos de última geração, e profissionais focados nesse tipo de atendimento. “Minha função é a de sentar com a família, dar alternativas, di-


“Nossa sociedade é baseada no dogma religioso de que a vida não pertence à pessoa, mas é um presente divino” Luciana Dadalto, advogada

Autora do livro “Testamento Vital” defende que a morte é um processo inexorável, e que precisa ser desmistificado

retivas, e colocar na balança o que está sendo feito, além de orientar a equipe de profissionais. De forma alguma podemos entrar em conflito com o ‘eticamente correto’”, explica. Dos pacientes que chegam ao hospital em fase terminal, cerca de 90% são portadores de doenças oncológicas (câncer), que costumam acentuar o declínio clínico. Os outros 10% são pacientes idosos, que apresentam problemas de saúde por causa da idade avançada. Conforme a médica, quando se esgota a terapia curativa de controle, o paciente

é levado para os cuidados paliativos, sempre com tranquilidade e atenção. Uma preocupação recorrente dos profissionais do setor é a de oferecer todo o conforto possível ao paciente e a seus familiares, que também são atingidos e posteriormente terão de conviver com a perda. A psicóloga Maria José Varela Ferrari, que integra a equipe multidisciplinar de cuidados paliativos do Dona Helena, reforça que o mais importante nessas horas é fortalecer os vínculos com a família, conversar muito e tentar estimular as pessoas que convivem diretamente com o paciente em estado terminal. Essa tarefa, ela ressalva, quase sempre é complicada e precisa ser feita com o máximo de antecedência possível. A psicóloga cita como exemplo pacientes que sobrevivem graças à ajuda de aparelhos. Se os equipamentos forem desligados, o paciente morre e as famílias, em geral, insistem em mantê-lo vivo nessas condições por acreditar, de alguma forma, em uma reação ou sobrevida. Isso costuma colocar a equipe médica em dúvida sobre os procedimentos adotados no tratamento. “Muitas vezes, a gente se pergunta: qual o nosso papel nesse processo? Para mim, está claro que se trata de um trabalho de longo prazo, para futuras gerações. Não vai ser agora que conseguiremos promover mudanças tão significativas em relação à morte. Ainda somos bastante focados na cura das doenças”, explica a psicóloga. Há três anos trabalhando com essa temática e há pouco mais de um ano no Dona Helena, Carolina ressalta que, quando o paciente é transferido para o setor de cuidados paliativos, o primeiro passo é avaliar a extensão da doença e checar as demandas necessárias para melhorar a vida daquele indivíduo. Em seguida, são analisadas as alternativas de tratamento, e logo depois se conversa com a pessoa e sua família, tirando dúvidas e propondo soluções. Para ter mais privacidade, alguns ficam internados em quartos isolados, distantes do barulho, recebendo apenas a visita de amigos e familiares. O hospital também disponibiliza aos interessados uma pastora e uma capela com o objetivo de levar uma palavra de fé e paz aos que atravessam momentos de dor e sofrimento. “Entregamos as alternativas de tratamento sempre com muito cuidado. Não queremos trair a confiança da família. O sofrimento da morte, a gente não vai aplacar nunca, mas podemos fazer coisas para amenizar”, reflete a médica Carolina.

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A morte sob outra perspectiva Especialista em cuidados paliativos, a médica Ana Claudia Quintana Arantes encara a vida e a morte sob perspectivas diferentes. Formada pela Universidade de São Paulo (USP), com residência em Geriatria e Gerontologia, Ana Claudia sempre procurou dedicar o seu trabalho aos doentes em fase terminal. Sócia-fundadora da Associação Casa do Cuidar, Prática e Ensino em Cuidados Paliativos, Ana Claudia é coautora do livro “Cuidado Paliativo” do Cremesp (2008) e do “Manual de Cuidados Paliativos – ANCP” (2009 e 2012). No Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo (SP), foi responsável pela elaboração e implementação das políticas assistenciais e treinamentos institu-

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Cuidado paliativo é uma assistência e uma abordagem que diz respeito à qualidade de vida merecida em qualquer tempo da existência pela pessoa portadora de doença

cionais em Cuidados Paliativos e Terapia da Dor. Atualmente, é docente da The School of Life, ministrando as aulas “Como lidar com a morte” e “Como ter melhores conversas”, e coordena o curso avançado de Cuidados Paliativos da Associação Casa do Cuidar. Para Ana Claudia, a medicina paliativa sempre foi vista como algo de pouco valor, pois a prioridade de um médico


“Estudantes querem falar sobre isto – mesmo que professores não queiram ensinar” Ana Cláudia Arantes, especialista em cuidados paliativos

é salvar – e não perder vidas. Graças à insistência de profissionais como ela, o entendimento hoje já é um pouco diferente e parte da classe médica, assim como da sociedade, já começa a aceitar essa questão como algo natural. “Na verdade, a resistência continua, não é pequena e está presente na maioria dos hospitais do Brasil. Eu vivo numa espécie de bolha de aceitação e isso, acredito, foi devido à possibilidade de levar o conceito e a verdade sobre cuidados paliativos para a sociedade em geral”, destaca. Com mais de 20 anos de experiência na área, Ana Claudia diz que o que mudou é que, agora, ela pode ser ouvida. “No início, eu era sempre silenciada, não tinha espaço para falar sobre cuidados paliativos e, quando tinha, era bastante restrito. Falava dez minutos no final de um evento com meia dúzia de pessoas na sala e todas com as malas prontas para ir embora”, relata a especialista. “Agora, muitas vezes, abro os eventos, jornadas, simpósios ou congressos médicos, tenho um espaço maior para tratar do assunto.” Mas, ela diz, o que mudou – e é mais promissor em relação aos cuidados paliativos – é que os estudantes já querem falar sobre isso, mesmo que os professores não queiram ensinar. “Estão dispostos a aprender, ir à luta e buscar conhecimento”, ressalta. Na sua avaliação, o que a sociedade precisa entender é que cuidado paliativo não é cuidado das últimas horas de vida. Cuidado paliativo é uma assistência, uma abordagem que diz respeito à qualidade de vida merecida, em qualquer tempo da vida, de uma pessoa que tem uma doença que ameaça a própria continuidade.

CUIDADOS PALIATIVOS NO BRASIL • No Brasil, iniciativas isoladas e discussões a respeito do tema são registradas desde os anos 1970. Contudo, foi nos anos 1990 que começaram a aparecer os primeiros serviços organizados, ainda que de forma experimental. • Em 1998, o Instituto Nacional do Câncer (Inca) inaugurou o Hospital Unidade IV, exclusivamente dedicado aos cuidados paliativos, mas os atendimentos a pacientes fora da possibilidade de cura ocorrem desde 1986. • Em dezembro de 2002, o Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo inaugurou sua enfermaria de cuidados paliativos. O programa existe desde 2000. • No Brasil, segundo a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), existem mais de 170 instituições com equipes de cuidados paliativos – desde serviços em atenção primária até instituições públicas e privadas. A ANCP foi fundada em 2005 e tem mais de 1 mil associados. • A maioria dos serviços requer a implantação de modelos padronizados de atendimento que garantam eficácia e qualidade.

Hospice é alternativa para atendimento A palavra “hospice” deriva de hospedagem, de hospitalidade e traduz o sentimento de acolhida. O conceito é muito utilizado em países da Europa e América do Norte para designar instituições que promovem o cuidado a pacientes em fase final de vida. O hospice aplica os princípios de cuidados paliativos, não se tratando apenas de uma estrutura física, mas uma filosofia que preconiza a qualidade de vida das pessoas com diagnóstico de doença avançada e incurável. A essência do hospice é o “cuidado total” à pessoa por uma equipe multiprofissional especializada, tratando com excelência o aspecto físico da doença, como controle de sintomas, e o aspecto social, emocional e de espiritualidade perante a finitude. A família do paciente também é acolhida neste local e acompanhada no decorrer do processo da doença, até o luto.

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HOSPICES BRASILEIROS • CASA DE FRANCISCO ACOLHIMENTO Atua em parceria com o Instituto Nacional do Câncer, no Rio de Janeiro, e foi fundada em 2014, atendendo a pacientes do Inca IV. www.casadefrancisco.com.br

• HOSPICE FRANCESCO LEONARDO BEIRA Inaugurado em 1° de outubro de 2013, o TUCCA Hospice Francesco Leonardo Beira foi o primeiro hospice pediátrico do Brasil. www.tucca.org.br/hospice

• VALENCIS CURITIBA HOSPICE O Valencis Curitiba Hospice foi inaugurado em 2017, em Curitiba. www.valencis.com.br

• HOSPICE HC – JAÇANÃ Vinculado ao Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o Hospice HC – Jaçanã conta com uma unidade de Cuidados Paliativos desde 2009. • CLÍNICA FLORENCE Inaugurada em abril de 2017, a Clínica Florence está situada em Salvador e foi a primeira do gênero a atender pacientes com foco em cuidados paliativos no Norte e Nordeste brasileiro. www.clinicaflorence.com.br

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Em São Paulo, pacientes jovens recebem atendimento gratuito Instalado na Zona Leste de São Paulo, o Tucca Hospice Francesco Leonardo Beira foi inaugurado em 2013, sendo o primeiro do gênero a oferecer cuidados paliativos para crianças e jovens, de 0 a 18 anos, de todo o Brasil, gratuitamente. De acordo com Sidnei Epelman, oncologista pediatra e presidente da Tucca Associação para Crianças e Adolescentes com Câncer, um dos diferenciais da instituição está na possibilidade de oportunizar aos pacientes sem chances de cura, e que não tenham condições sociais e médicas de ficar na própria casa, o apoio multidisciplinar da mesma equipe médica que fez o diagnóstico e tratamento curativo. “Nosso objetivo é manter o vínculo de confiança estabelecido entre a equipe de oncologia pediátrica, o paciente e a família”, resume. Vinculado ao Hospital Santa Marcelina, o hospice conta com três quartos suítes, o suficiente para atender à demanda da oncologia pediátrica, uma vez que cerca de 80% dos pacientes respondem de forma positiva ao tratamento curativo do câncer. Para a psicanalista Claudia Epelman, cofundadora e vice-presidente da Tucca, priorizar a qualidade de vida, o conforto e a dignidade do pacien-


Documentários deixam a questão em debate

Filmes produzidos pela Netflix enfocam as implicações que as doenças graves trazem para as famílias e os médicos

te e de seus familiares é ponto fundamental. Segundo ela, os irmãos não podem ser negligenciados nesse processo e devem, de acordo com o grau de desenvolvimento, participar direta ou indiretamente do momento familiar. Desde a inauguração, há cinco anos, a Tucca Hospice já assistiu a mais de 40 pacientes, com tempo de internação médio de três semanas cada. A comunicação é a base dos cuidados, e interfere tanto na qualidade do serviço quanto na qualidade de vida do paciente. “Crianças e jovens quase sempre compreendem mais sobre a doença do que percebemos ou reconhecemos, e é importante responder às perguntas da maneira honesta”, sublinha. “Esses pacientes e seus familiares precisam de apoio, compaixão e compreensão, e são encaminhados aos cuidados paliativos não como pacientes, mas como seres humanos com esperanças, medos e necessidades.”

Duas produções recentes, da Netflix, enfocam a questão dos cuidados paliativos e as implicações que as doenças graves causam para famílias e médicos. Um deles é “Extremis”, documentário americano indicado ao Oscar de 2017 como melhor curta-metragem. O diretor se aprofunda na dor e nas emoções que acompanham cada decisão de colocar o ponto final na vida de um familiar ou um amigo internado no Highland Hospital. A produção acompanha a rotina de médicos, pacientes e de familiares em uma UTI hospitalar. O diretor se debruça em um punhado de histórias, como as de Donna, Selena e de um morador de rua que não tem ninguém próximo para ajudar a tomar decisões. Em certos momentos, as imagens trazem médicos em conflito, querendo ajudar na hora da decisão, mas sem poder se sobrepor à vontade do paciente ou da família. Outro exemplo é “A Partida Final”, que se ambienta no Centro Médico da Universidade da Califórnia e no projeto Zen Hospice, os dois na cidade de São Francisco (EUA). Nos dois lugares, casos de pacientes em fase terminal são apresentados, além de reflexões sobre a vida e a morte. Numa conversa com uma paciente, o médico declara: “O luto não é fácil, mas pode ser intenso e lindo. Morrer é parte da vida”. Vítima de um grave acidente quando tinha 19 anos, o médico teve parte das duas pernas e do braço esquerdo amputados. Mesmo assim, decidiu concluir a faculdade e se dedicar aos cuidados paliativos. “Gosto de pensar no sofrimento como uma lacuna do mundo que você quer e o mundo que você tem”, reflete.

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Humanizar significa fazer com que o paciente se sinta mais confortável, acolhido e seguro, além de ser tratado com dignidade e empatia

SAÚDE

Humanização no atendimento: um novo olhar na relação com pacientes

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os últimos tempos, uma expressão cada vez mais utilizada nas escolas de medicina e instituições de saúde é a humanização do atendimento ao paciente. Em síntese, significa fazer com que a pessoa que procura o serviço para tratar ou prevenir alguma doença se sinta mais confortável, acolhida e segura, além de ser recebida com dignidade, humanidade e empatia. Nos termos preconizados pelo Ministério da Saúde, a Política Nacional de Humanização (PNH) apoia ações com potencial para produzir mudanças em processos de atenção e gestão, com foco para as necessidades dos usuários e garantia dos direitos. No Sistema Único da Saúde (SUS), o objetivo é promover a participação ativa, ampliar o diálogo dos gestores, dos profissionais de saúde e da população em processos diferenciados, permeando diferentes espaços de produção e promoção da saúde. Há o entendimento de que não basta ter profissionais qualificados para construir o bom atendimento. Procedimentos, normas e regras precisam estar alinhadas com a expectativa, enquanto a estrutura física e as instalações devem estar aptas a atender os requisitos desejados. É claro que, para quem trabalha na saúde oferecer atendimento com tais características, é primordial o preparo das instituições de ensino com vistas a dar conta da formação voltada a esse perfil. Conforme Vanessa Cardoso, professora do curso de Enfermagem do Instituto Superior e Centro Educacional Luterano Bom Jesus, em Joinville, a humanização no atendimento dos serviços de saúde é abordada a partir do referencial da PNH, que propõe a inclusão dos diferentes sujeitos envolvidos no processo de produção de saúde (gestores, trabalhadores e usuários). Todos são protagonistas e, consequentemente, corresponsáveis pelo processo. “Ao longo da formação, os alunos discutem as diretrizes e dispositivos indutores da humanização, como acolhimen20

to com classificação de risco, nos mais diversos serviços da rede de atenção à saúde. De acordo com a fase e o cenário de prática do semestre, as diretrizes são trabalhadas em sala de aula e nos estágios”, explica Vanessa. Especialista em saúde da família, a professora salienta que, à medida que a política seja trabalhada ao longo da formação, os alunos entram no mercado com conhecimento das ferramentas para um processo humanizado – sabendo da importância do vínculo nas relações em cada encontro com o usuário. Além disso, dependendo da realidade da instituição, pode ser necessária uma análise coletiva das fragilidades existentes para propor mudanças. Quando isso não ocorre ao longo do curso, será necessário maior empenho da instituição contratante no preparo desse profissional para a prática efetiva da humanização. “Acredito que todos querem um atendimento humanizado, mas é necessário investir em espaços de avaliação da forma como o atendimento acontece no dia a dia, construindo mudanças de forma coletiva”, sublinha. “Neste sentido, o acolhimento com classificação de risco, sistemas qualificados de escuta qualificado do usuário e do trabalhador de saúde e gerência porta aberta são aspectos que merecem destaque”.


Avanços são necessários Professor titular da disciplina de Ginecologia e Obstetrícia na Universidade da Região de Joi­n­ville (Univille), Ademir Garcia Reberti observa que os profissionais da área da saúde, mesmo antes de se profissionalizarem, apresentam forte identificação com os sentimentos de doação, ajuda ao próximo, compaixão e preservação da vida. “Essas características no processo de ensino-aprendizagem são propulsoras no desenvolvimento das atividades teóricas e práticas de formação profissional. Existem ainda as políticas públicas no sistema de saúde voltadas para o acolhimento e a humanização. Os alunos são expostos, na teoria e na prática, a vivências que os permitam se tornar profissionais acolhedores e humanos”, descreve,

frisando que as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) do curso de Medicina estabelecem para o egresso um perfil humanístico, reflexivo e generalista, em um eixo transversal que permeia os seis anos do curso. Na avaliação do professor, o atendimento humanizado deve estar no DNA do profissional da saúde e “fluir de forma fisiológica”. Entretanto, necessita avançar em alguns aspectos. “Por vezes, exige-se muito do profissional, esquecendo que ele também é humano e, não raro, submetido a demandas exaustivas de atendimento, com estruturas inadequadas e sucateadas. O sofrimento é quase sempre multifatorial: pode vir dos sistemas e estruturas aos quais está submetido, do seu próprio sofrimento ou de vivências dos outros”, assinala Reberti. Na opinião do professor, “é preciso avançar com amplo olhar da humanização, para além do paciente, alcançando desenhos de gestão mais sensíveis e seguros também aos profissionais”, diz. Nessa linha, as instituições de ensino estariam interrelacionadas ao desenvolvimento prático da atuação profissional, por meio dos estágios, disciplinas optativas, residências médicas,

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entre outras vias. “O profissional é apresentado cotidianamente aos preceitos de acolhimento e humanização, não havendo ruptura ou estranheza na relação profissional-institucional”, sustenta. Já o secretário-geral do Conselho Federal de Medicina (CFM), Henrique Batista e Silva, identifica um “movimento de singularidade e multidisciplinaridade” da formação médica, com abertura para outros saberes, como história, antropologia, sociologia, comunicação, social, bioética e artes em geral. “No Brasil, atualmente, existem escolas médicas que dispõem em seus currículos de disciplinas desse campo do conhecimento”, observa (leia artigo na página 34).

OS PRINCÍPIOS DO ATENDIMENTO HUMANIZADO • O profissional aborda o paciente de forma individualizada e especial. • Dá atenção diferenciada e demonstra empatia. • Cumprimenta, chama pelo nome, olha nos olhos e escuta o paciente com atenção. • Transmite confiança, segurança e apoio para que o paciente possa se abrir e acreditar no tratamento. • Respeita a intimidade, as crenças e os desejos do paciente. • Dá informações transparentes e proativas quanto ao quadro geral e os resultados obtidos, sempre levando em consideração o estado emocional dos pacientes e familiares. • Possui estrutura física digna e preparada para o atendimento. • Cria procedimentos aptos às necessidades do tratamento.

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“É preciso avaliar como o atendimento se dá na prática, construindo mudanças” Vanessa Cardoso, do Bom Jesus

Oferta de cursos é crescente A humanização do atendimento à saúde tem estimulado a oferta crescente de cursos presenciais e a distância. Em uma rápida pesquisa na internet, é possível encontrar vários modelos de especialização, formatos de aprendizagem e de curta duração. Pós-graduada em Administração Hospitalar e Saúde Pública, a médica anestesiologista Raquel da Rocha Pereira afirma que o profissional que deseja se dedicar a essa área da medicina precisa, acima de tudo, ter atitude, enxergar o paciente como “ser humano e único” e lembrar que está “culturalmente impactado com seus medos, verdades e apreensões”. Ex-diretora da Maternidade Darcy Vargas nos anos 1990, onde foi uma das responsáveis pela implantação do processo de humanização no atendimento, Raquel ressalta que o profissional que pretende ingressar na área deve, necessariamente, acreditar no conceito, para depois assimilá-lo e colocá-lo em prática. A especialista se mostra favorável aos cursos de humanização, mas pondera que é importante atentar para a credibilidade e dispor de um bom campo de treinamento. “Práticas humanísticas são um aprendizado presencial, do ‘aqui e agora’. Quando um problema acontece, é preciso haver


USP alterou a grade em 2015

“O aluno deve vivenciar situações reais e observar com as ferramentas do ‘coração’” Raquel da Rocha Pereira

uma atitude empática do profissional em relação ao paciente e seus familiares, agir com respeito e segurança para atuar e tomar decisões”, ressalta Raquel. “Dessa forma, o aluno ou aprendiz vivencia situações reais e observa as abordagens adequadas com as ferramentas do ‘coração’, pois, nessas situações, as emoções estão presentes e, com responsabilidade, têm seu espaço na tomada de decisão.” Para ela, a formação atual não é compatível com esse tipo de expectativa – “ainda está muito no campo teórico e concentrada em uma disciplina”. A maioria dos profissionais que entram no mercado, diz a médica, não estão efetivamente preparados para o atendimento humanizado, com exceção daqueles que já a praticam no seu dia a dia e nos relacionamentos interpessoais. “Nesses casos, a disciplina fornece o aval para aplicar o conceito na área da saúde.” Já o médico e professor Ademir Reberti lembra que o atendimento humanizado está na matriz dos cursos de Medicina em disciplinas como bioética, antropologia e sociologia, mas que não há nenhum curso específico sendo trabalhado na instituição com foco na especialização ou residência em humanização.

Desde 1998, a Universidade de São Paulo (USP) aborda o tema da humanização do atendimento em sala de aula. Porém, em 2015, foi realizada uma pesquisa entre professores e alunos que constatou, em concordância com a literatura, que,“apesar de reconhecer a necessidade dos saberes humanísticos para a integralidade do cuidado, a abordagem da humanização no ensino médico estaria em segundo plano, com dificuldade da prática nas outras disciplinas (técnicas)”. A instituição resolveu, então, promover alterações curriculares para que o aluno saísse da sala de aula, desde o primeiro ano, para colocar em prática a abordagem humanística, que passou a permear as principais disciplinas com foco nos cuidados e na relação entre médico e paciente. INSTITUIÇÕES QUE OFERECEM CURSOS VOLTADOS À HUMANIZAÇÃO • ONCO ENSINO EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA www.oncoensino.com/courses/ humanizacao-na-saude

• GRUPO EDUCA MAIS

www.educamaisead.com.br/a/4/62

• FACULDADE DE MEDICINA DA USP E HOSPITAL DAS CLÍNICAS eep.hc.fm.usp.br/humanizacao/

• FUNDAÇÃO UNIVERSITÁRIA IBEROAMERICANA

www.funiber.org.br/humanizacao-na-saude

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REFLEXÃO

“A razão não tem um único viés”

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édico oftalmologista, com longa caminhada profissional dedicada à ética da vida, Elcio Bonamigo é doutor e mestre em Bioética pela Universidade Rey Juan Carlos, de Madri, e Universidade Internacional da Catalunha, respectivamente. Professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc), mora em Joaçaba e é membro do Comitê de Ética em Pesquisa, presidente do Comitê de Bioética e membro da Câmara Técnica de Bioética do Conselho Federal de Medicina (CFM). Ele profere a palestra máster do 18º Simpósio Catarinense de Bioética, abordando o tema Aprimoramento Moral, especialmente sob a ótica da Evolução Biotecnológica. Em entrevista especial para a Revista Conecthos, Elcio Bonamigo aborda vários aspectos da bioética, discorrendo sobre temas atuais – e bastante polêmicos –, como a chamada “cultura do ódio” e o recrudescimento dos conflitos étnicos, mundo afora. “O desafio é encontrar fórmulas para estimular as virtudes humanas, incluindo-se a moderação e a tolerância, e desestimular energicamente o ódio”, pondera Bonamigo.

PRINCIPAIS IDEIAS DO ESPECIALISTA

Bioética vem de conflitos morais “Primeiramente, é necessário relembrar que foram alguns conflitos morais que, por diferentes motivos, fizeram nascer e crescer a bioética, destacando-se os casos da Diálise de Seattle, de Anne Karen Quinlan e Baby Doe. No entanto, conflitos posteriores não menos complexos surgiram e certamente continuarão a surgir, sobretudo relacionados à engenharia genética e seu futuro desafiador. Um fato cujos conflitos morais são relevantes, e que teve grande destaque logo após o surgimento da bioética, com reflexos atuais, foi o nascimento de um bebê de proveta há 40 anos (em 1978), que sinalizou para a real possibilidade de interferência humana na reprodução natural que vigorava durante muitos

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milênios. Em segundo lugar, destaca-se o nascimento da ovelha Dolly, em 1996, que tornou real a perspectiva de clonagem do ser humano com consequências inimagináveis para o futuro, incluindo-se a mudança do conceito de família. O terceiro conflito é a possibilidade de alteração do ser humano por meio de medicações ou engenharia genética, instituindo a eugenia positiva, com possibilidade de influir na composição física e até mesmo na conduta moral das pessoas. ”

Engenharia genética e a nova família “O uso da engenharia genética suscitou o aparecimento de conflitos morais supervenientes, relacionados à instrumentalização de embriões humanos, incluindo-se aspectos relacionados a sua conservação e destruição. Outros temas desencadearam conflitos morais nas últimas décadas, tais como a aceitação da união de casais do mesmo sexo, que também interfere no conceito de família, e a permissão de eutanásia e suicídio assistido por alguns países ou estados. Na assistência à saúde, a evolução da autonomia tanto ampliou a possibilidade de recusa de tratamento como a realização de tratamentos para o aperfeiçoamento humano, suscitando a necessidade de reflexão para a adequação deste novo contexto na moral humana. ”


“A cultura do ódio parece ter sempre existido na história da humanidade” Elcio Bonamigo

A ovelha Dolly e a “consciência da ciência” “Não tenho dúvida de que o nascimento da ovelha Dolly foi um dos acontecimentos mais marcantes da ciência genética, significando mudanças de conceitos tradicionais e possibilidade de interferência na evolução humana, trazendo para o controle humano aquilo que, até então, estava sob a responsabilidade da natureza. Além disso, o inusitado acontecimento permitiu vislumbrar uma perspectiva de mudança de futuro proporcionada pela engenharia genética jamais imaginada, tanto pela oportunidade de curar doenças incuráveis como pela possibili-

dade de mudança de reprodução de forma controlada pelo ser humano. A possibilidade de consequências desconhecidas e graves resultante dos avanços científicos suscitou a necessidade de se analisar com mais profundidade aquilo que é desejável, possível ou deve ser realizado, já que os fatos ultrapassaram os limites de atuação da ciência, impulsionando o crescimento e a importância da bioética como a ‘consciência da ciência’. A complexidade dos avanços científicos vem impulsionando o desenvolvimento da bioética para além dos princípios fundamentais, se considerarmos como parâmetro os princípios da bioética principialista, despontando a importância do princípio da precaução como um orientador de conduta equilibrada ante consequências imprevisíveis, sem limitar os avanços da ciência, mas aumentando sua segurança.”

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“A busca pela perfeição colocou o homem em um abismo”, diz o doutor e mestre em bioética

O mundo precisa cuidar de seus conflitos étnicos “Nas leis mundiais, a escravidão foi banida, contudo a intolerância entre as pessoas permanece ou recrudesce. Maus governos de alguns países provocam a emigração em massa de pessoas que se apresentam com suas dificuldades e costumes, dificultando a administração de outros que não podem deixar de auxiliar os refugiados e fazem sacrifícios para acolher, fazendo surgir, algumas vezes, conflitos étnicos. Como lidar com isso? A educação constitui a fórmula tradicionalmente viável para melhorar o relacionamento entre as pessoas. Entretanto, parece que as quatro virtudes humanas fundamentais – justiça, prudência, moderação e fortaleza – não são mais suficientes para proporcionar ao ser humano a possibilidade de se adequar às novas e complexas situações.”

Tolerância, a virtude mais importante “Neste contexto, aplica-se a sugestão de Peter Singer, que recomendou a inclusão da tolerância entre as virtudes seculares fundamentais, sendo a mais importante delas. Além disso, conforme analisado por Marcelo de Araújo (2016), para lidar com tais conflitos, que muitas vezes ultrapassam as fronteiras nacionais, talvez o surgimento de um Estado mundial, que tenha maior poder de controle sobre as nações, possa contribuir para o equilíbrio das futuras relações humanas, evitando o êxodo em massa por problemas adminis-

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trativos das nações, por exemplo, ou auxiliando nações em suas dificuldades governamentais, já que no momento muitas não aceitam interferências externas, e isso aumenta a desigualdade social. Uma constatação parece óbvia: além do desenvolvimento das virtudes humanas, a organização mundial terá que mudar para que os conflitos étnicos sejam equacionados.”

A busca pela perfeição e a corda sobre o abismo “Tive um professor espanhol, José Luis del Barco, que costumava dizer que ‘o homem não é um ser de caminhos trilhados’, pois, diferente dos animais não humanos que, de maneira geral, se satisfazem com a obtenção de alimentos para ser felizes, não se acomoda quando alimentado e procura constantemente por novas conquistas, por modificações, supérfluas ou não, pela verdade sobre sua existência e pela felicidade. Uma das condições para ser feliz, na concepção de Aristóteles, é a busca pela excelência intelectual e moral. Neste aspecto, pode-se mencionar o aprimoramento humano no contexto da felicidade humana como meta para superar as deficiências humanas, entre as quais as doenças e a morte. O advento das biotecnologias traz esperanças na busca da perfeição, mas a interferência humana em sua evolução natural conduzirá a humanidade para uma nova fase, a transhumanidade, com consequências menos previsíveis. Convém mencionar que, ao ser humano, não foi dada a oportunidade de conhecer o mistério que envolve sua existência, nem de possuir o dom de dominar o futuro. Estamos no terceiro milênio do estudo da Filosofia, mas, como bem observou Heidegger, o homem nunca pareceu tão misterioso como agora. A busca pela perfeição colocou o ser humano em uma corda sobre um abismo, conforme representou Nietzsche, em que não é possível parar de progredir, apesar dos riscos que permeiam a travessia.”

Combater a intolerância “A cultura do ódio parece sempre ter existido na história da humanidade – assim foi na Inquisição, no Nazismo, nos regimes


ditatoriais, que incitavam, sobretudo por intermédio da propaganda, a intolerância, a raiva, a violência. Conforme explica a professora Livia Maria Zago, o que caracteriza esse discurso é sua forma unilateral, em que a razão comporta apenas um viés, daí ser inadmissível a existência de outro modo de pensar ou de sentir e isto explica o surgimento do ódio. A cultura do ódio em nosso país e no mundo emerge em vários momentos, inclusive nas campanhas eleitorais em que amigos e famílias se dividem para defender, às vezes radicalmente, suas opiniões. ”

Há que se educar para o belo, o justo, o bom “A mídia e o poder invisível com interesses particulares são os grandes responsáveis pela propagação deste tipo de discurso, que apanha a todos, e cada um dos indivíduos, pelos seus mais re-

cônditos receios e fragilidades, cooptando-os pelo psicológico, pelo sentimento e pela coação. A TV, quando propaga programas e novelas com maior ou menor teor ético/cultural, multiplicada nos diálogos, músicas e outros, permeados de conteúdos preconceituosos, constitui um fenômeno que alimenta o ódio. Da mesma forma, as dificuldades econômicas, o desemprego, a corrupção que se inicia na cúpula dos poderes, a falta de respeito às tradições, aos mais velhos, aos pais e mestres, a falta de segurança real, virtual e jurídica, e o desalento acrescentam ao quadro mais tempero para reforçar e disseminar o discurso de ódio. A boa doutrina, inclusive na Teoria do Estado, atribui à educação o papel de educar para o belo, o justo e o bom. Mais do que educar, necessitamos de exemplos fortes, respeitados e ecléticos da liberdade, da igualdade e da fraternidade como direitos reais, a ser alcançados por intermédio do Estado, do terceiro setor e do próprio indivíduo, num senso de responsabilidade comum. No entanto, é preciso ter esperança com cautela, já que a alegoria da caverna de Platão nunca pareceu tão atual para explicar as fórmulas existentes de manipulação das pessoas e, assim, continuar a alimentar a ‘cultura do ódio’. O desafio é encontrar fórmulas para estimular as virtudes humanas, incluindo-se a moderação e a tolerância, e desestimular energicamente o ódio.”

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INCLUSÃO

Tecnologias mais humanas e o desafio da acessibilidade

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árbara Karampetsos, 28 anos, tem encurtamento dos membros causado por uma doença crônica rara, chamada Klippel Trenaunay, de origem genética degenerativa. Mãe de três filhas, trabalhando como assistente comercial, sente dificuldades ao transitar pela cidade onde mora. “Nas principais avenidas, não dá para transitar com cadeira de rodas nem carrinho de bebê na calçada. Não existe rebaixo nas esquinas, há calçadas abandonadas com buracos, o que pode provocar a queda de uma pessoa com mobilidade reduzida ou mesmo um idoso”, avalia Bárbara, que tem um lado do corpo mais alto do que o outro, o que causa maior facilidade de queda. Bárbara é uma das mais de 100 mil pessoas com deficiência em Joinville que, devido às próprias limitações, enfrentam dificuldades nas ruas ou dentro de casa, na realização de atividades cotidianas. Os dados são do Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No país, o número é de 45,6 milhões, ou 24% da população. Para assegurar seus direitos de inclusão e igualdade, existem legislações como a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência e princípios do “desenho universal”, que objetiva viabilizar produtos, meios de comunicação e ambientes passíveis de ser utilizados por todos. Quando esse acesso não for possível, incentiva outras soluções, incluindo o uso de tecnologias assistivas (TAs), que consistem na adaptação ou desenvolvimento de qualquer equipamento para proporcionar ou ampliar as habilidades funcionais, resultando em inclusão e melhor qualidade de vida da pessoa com deficiência. Apesar do avanço significativo das TAs, a cada dia mais conhecidas mundialmente, trata-se de um mercado pouco explorado. E um verdadeiro filão: a estimativa é que a parce-

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Projetos acadêmicos com incentivo governamental buscam melhorar a qualidade de vida de pessoas com deficiência em seu dia a dia nas cidades

la da população brasileira com alguma deficiência, de todas as classes sociais, movimente R$ 22 bilhões por ano; no mundo, chega a US$ 4,1 trilhões anuais. Há iniciativas de fomento ao desenvolvimento de TAs provindas de órgãos governamentais, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Em 2006, foi


instituído o Comitê de Ajudas Técnicas (CAT), órgão responsável por mobilizar o avanço da área no país. No campo acadêmico, segundo o Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer, existem 53 núcleos de pesquisa de TA vinculados a universidades e institutos federais. O setor está ganhando corpo: recentemente, surgiu o primeiro curso de Engenharia de Tecnologia Assistiva e Acessibilidade no Brasil, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Apesar dos estudos e pesquisas, os incentivos governamentais ainda são insuficientes para viabilizar projetos. Por ainda atender a uma ínfima parcela da população mundial, mesmo que crescente, o desenvolvimento de TA costuma ter custos elevados. “É uma tecnologia que não pode ser produzida em larga escala, o que justifica seu alto custo, tornando o produto inacessível para grande parte das pessoas que necessitam”, informa Fabrício Noveletto, engenheiro e professor da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). “Como são itens relacionados à área da saúde, a legislação é mais rígida, o custo é mais caro, por conta de testes e protocolos”, explica. Desde 2012, Noveletto comanda o programa de extensão da universidade chamado Assistiva, que promove inclusão social por meio da criação de

TAs e atividades na comunidade. O programa teve origem nas demandas dos profissionais de terapia ocupacional que atuavam na Associação Catarinense de Ensino (ACE), onde o professor também leciona. Quando se tornou efetivo na Udesc, em 2010, propagou o conceito na faculdade, por reconhecer que há pouco espaço para esse tema nos cursos de engenharia. “Sempre desejei que os outros começassem a perceber, desde cedo, a importância social da engenharia. Que pequenas coisas podem fazer a diferença”, frisa. A Assistiva é formada por 12 integrantes, entre professores e alunos, de diversas áreas de conhecimento. O grupo mantém contato com entidades e instituições relacionadas ao tema, como a Associação Joinvilense para Integração dos Deficientes Visuais (Ajidevi). A equipe conversa com terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, profissionais de educação e pessoas com deficiência para identificar demandas. A partir dessa análise, a Assistiva se divide em três frentes de ações, denominadas “Braile”, “Fletcher” e “Jennings”. O “Braile” busca facilitar o acesso às mídias sociais. Uma das tecnologias elaboradas, que teve maior alcance, foi o mouse inclusivo: uma adaptação do mouse convencional que auxilia as pessoas com

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diferentes graus de dificuldades motoras no acesso ao computador. “Uma das fases mais importantes para o desenvolvimento cognitivo das crianças é a da alfabetização. E uma das maneiras mais fáceis de se obter a interação da criança com a alfabetização é pelo computador. Há uma série de programas específicos para essa área, além dos jogos educativos e lúdicos”, justifica o professor. Foram cerca de 80 mouses inclusivos confeccionados e doados, com auxílio de arrecadações, doações, verbas de editais da faculdade e de uma multa convertida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). O programa de extensão pretende obter o registro de patente do produto via universidade. Além do mouse, o “Braille” tem, em andamento, a concepção de um dispositivo que, associado ao computador, deverá gerar letras em braille a partir do acionamento de pinos. Já o “Fletcher” elabora TAs para as áreas de terapia ocupacional, fisioterapia e o estudo de próteses em impressora 3D. Exemplos estudados: um aquecedor de água para o modelamento de órteses, uma prótese de mão impressa em impressora 3D para crianças e um exoesqueleto de mão para auxiliar as atividades de pessoas acometidas de hemiparesia, ocasionada por derrame. O

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“É o valor social da engenharia: as pequenas coisas fazem a diferença’” Fábio Noveletto, do programa Assistiva, da Udesc

terceiro núcleo do programa, denominado “Jennings”, por sua vez, é focado diretamente com atividades de conscientização – o grupo realiza palestras, atividades inclusivas, oficinas de vivência e doações de cadeiras de rodas, por meio de campanhas de arrecadação de lacres de alumínio. Com foco principal em crianças e jovens, o programa conta, em média, com sete escolas parceiras. “Fazemos isso para os alunos se conscientizarem e criarem mais empatia pelo próximo, principalmente pelas crianças com deficiência da própria turma, que muitas vezes são excluídas”, explica Letícia de Moraes, 20 anos, estudante de engenharia mecânica. Noveletto frisa que as tecnologias criadas pela Assistiva são complexas, aplicadas quase que individualmente e com especificidades ligadas à patologia, por isso muitas vezes ficam no “campo do protótipo”. “Temos uma dificuldade inerente à própria universidade pública para compra de materiais específicos. Como tudo é via licitação, além de demorar, por se tratar de produtos de custo baixo ou poucos itens, específicos, não aparecem interessados. Muito do que fizemos foi com dinheiro do bolso. Conseguimos verbas menores via direção geral, mas é raro ter essa possibilidade”, afirma, observando que a Udesc tem sido importante parceira do programa. Recentemente, o grupo conseguiu participar, via recursos de edital da faculdade, da segunda edição do Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Tecnologia Assistiva (CBTA 2018). O evento reuniu pesquisadores, profissionais e estudantes de mais de 60 instituições de ensino federais e estaduais, organizações públicas e privadas do Brasil e de outros países.


Nas fotos, ações da equipe da Assistiva; ao centro, Bárbara Karampetsos; por último, o lifter de transferência multifuncional

Depois de Carolina Mário Cezar da Silveira, 61 anos, arquiteto especialista em acessibilidade, é pai de uma filha triplégica. Carolina não tem nenhuma mobilidade nas pernas e pouca capacidade de movimentos na mão esquerda. Foi a partir do nascimento da filha que ele se sentiu provocado a repensar a acessibilidade, tornando-se defensor dos direitos da pessoa com deficiência. Colaborador do Comitê Brasileiro de Acessibilidade da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), atua como conselheiro e coordenador do Grupo de Engenharia, Arquitetura, Transporte e Mobilidade Urbana do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Comde), instância responsável por fiscalizar a execução da política municipal de atendimento a essa população na cidade. Também é palestrante sobre o tema e, junto com o irmão, Cláudio Silveira, engenheiro, dedica-se à criação de tecnologias para o bem-estar de pessoas com deficiência ou dificuldade de locomoção. Um projeto dos irmãos foi contemplado pelo Sinapse da Inovação, programa do governo estadual de apoio a ideias inovadoras. Eles criaram um lifter de transferência multifuncional, usado para locomover, de forma mais prática, pessoas com deficiência em atividades cotidianas, como se transferir para a cadeira de rodas e ir ao banheiro. O lifter de transferência mais comum no mercado, segundo Silveira, vem com uma bolsa ou cesta, que envolve o corpo do paciente, para ser guinchado, e tem chances altas de infecção por fluídos, como a urina. “É constrangedor. O usuário se sente um produto, pendurado em um guincho. Além disso, os lifters são muito grandes”, observa o profissional. “Fizemos uma tecnologia sem bolsa, um processo totalmente novo: a pessoa é abraçada pelo corpo e pela perna, próximo do joelho”, explica. O produto, em fase de desenvolvimento, destinado principalmente a hospitais, está em teste em clínicas de fisioterapia de Joinville. Em 2014, outro projeto assinado por Silveira recebeu recursos pelo Sinapse da Inovação: o protótipo de uma escada que se transforma em rampa, permitindo o acesso de cadeirantes a palcos. Os irmãos também já criaram uma cadeira de rodas especial, “stand-up”, usada para o paciente conseguir ficar em pé. Estão desenvolvendo um transferidor, para que se possa colocar a pessoa da cadeira de rodas para dentro da piscina, o que auxiliaria em uma atividade de fisioterapia, por exemplo. “O sistema não usa nada elétrico. A própria água da piscina ajuda a fazer a transferência por compensação de peso”, explica Silveira, que procura parceiros para produção das tecnologias. A experiência de vida de Silveira culminou no livro “a.C. …Antes da Carolina, d.C.…Depois da Carolina”. A obra relata como foi a transformação nas vidas da família após o nascimento da filha, hoje com 31 anos. “Meu livro ajuda muitos pais de pessoas com deficiência a enxergar os filhos além da deficiência. Fala muito de quebra de paradigmas”, conta.

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Ética nos tempos modernos

Ética para estudantes

Henrique Batista e Silva Pág. 34

Carlos Corrêa Lima Pág. 33

Diálogos

Líder na era digital

Desafio na cardiologia

Ramiro Novak Filho Pág. 38

Antonio Zagheni Pág. 37

Repensar o modelo Danilo Abreu Pág. 36

Vacinação obrigatória

Relação médicopaciente

Bruno Schlemper Junior

Paulo Mafra

Pág. 40

Pág. 39

Ética feminista?

A pauta da saúde

Pág. 41

entrevista

Antônio Sérgio Batista

Amanda Miranda, Pág. 42

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Carlos Vital Tavares Corrêa Lima Médico, pós-graduado em Medicina Ocupacional pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM)

Um código para os estudantes de medicina

É

tica e moral são conceitos filosóficos que, apesar da estreita relação que mantêm com o comportamento em sociedade, possuem significados distintos. A moral está baseada em costumes e convenções estabelecidas por grupo. Por sua vez, a ética se vincula ao estudo e à aplicação desses valores e princípios no âmbito das relações humanas. As diferenças se estendem à origem etimológica dos termos. A palavra “ética” vem do grego “ethos”, cujo significado é “modo de ser” ou “caráter”. “Moral” vem do termo latino “morales”, que significa “relativo aos costumes”. Ambos se encontram nas análises e tentativas de compreender a vida em sociedade, orientando-a com base na razão, na ciência e na lei a assumir uma dinâmica na qual sejam promovidos o respeito, a autonomia, a justiça, a dignidade e a solidariedade entre todos os seres humanos, independentemente de quaisquer características. Assim, ética e moral buscam reforçar o fundamento sobre o qual são edificadas as estruturas que guiam a conduta do homem. O objetivo é permitir a cada indivíduo desenvolver relações baseadas em virtudes, sempre com foco em reflexões e atitudes que gerem o bem.

No campo das relações de trabalho, diferentes categorias têm estabelecido conjuntos de normas éticas que formam a consciência do profissional e norteiam sua conduta. No Brasil, o Código de Ética Médica é um desses documentos que estabelece, de forma positivista, os limites, os deveres e os direitos que os médicos precisam observar nas suas relações entre si, com os pacientes, com a indústria e com a sociedade, nas diversas esferas possíveis do exercício da medicina (atendimento, ensino, pesquisa, gestão). Apesar de os estudantes ainda não poderem ser alcançados pelo Código de Ética Médica, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e as entidades estudantis vinculadas ao ensino médico entenderam ser oportuno elaborar uma carta de princípios universais, aplicáveis a todos os contextos, para estimular o desenvolvimento de uma consciência individual e coletiva, propícia ao fortalecimento de uma postura honesta, responsável, competente e ética, resultando na formação de um futuro médico mais atento a esses princípios básicos para a atividade profissional e a vida em sociedade. Para tanto, o CFM criou a Comissão Nacional de Elaboração do Código de Ética do Estudante de Medicina em 25 de fevereiro de 2016. O grupo, composto por representantes de diferentes organizações, debruçou-se sobre esse desafio por quase dois anos, entregando ao final um documento que deve ser divulgado e adotado como orientador para a vida dos alunos inscritos nas escolas médicas. Médicos, professores e estudantes de medicina do país, juntos, tiveram a oportunidade de participar de um importante trabalho que contribuirá para a consolidação de valores fundamentais durante a formação acadêmica dos futuros médicos no Brasil. Assim, surge o Código de Ética do Estudante de Medicina, formado por 45 artigos organizados em seis diferentes eixos, os quais, de maneira didática e clara, ressaltam atitudes, práticas e princípios morais e éticos que, se observados na rotina das escolas e das relações humanas por esses jovens, causarão reflexos positivos no ambiente acadêmico e também na vida de todos, nas esferas pessoal e profissional. O Conselho Federal de Medicina (CFM) e os Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) – como intermediadores e facilitadores desse processo – procuraram estimular as reflexões e os diálogos necessários para a formatação desse documento que representa um novo marco para o sistema de ensino médico. Convidamos todos a conhecer este trabalho, especialmente os professores e diretores de escolas de medicina, solicitando que apoiem a divulgação desse relevante conteúdo entre os estudantes, ajudando a formar médicos competentes, sob prismas de visão técnica e científica, e preparados para contribuir ativamente com a construção de uma nação com alicerce na dignidade humana. Artigo publicado originalmente no site do Conselho Federal de Medicina (CFM)

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Henrique Batista e Silva Graduado pela Faculdade de

Medicina da Universidade Federal de Sergipe (UFS), secretário-geral do Conselho Federal de Medicina (CFM)

Medicina como uma epistemologia moral: ética médica nos tempos pós-modernos

E

m Dom Casmurro, quando o imperador Pedro II tenta convencer a mãe de Bentinho do prestígio social que gozava a medicina no final do século 19, ele diz: “A medicina é uma grande ciência: basta só dar saúde aos outros, conhecer as moléstias, combatê-las, vencê-las…”. Nesta curta frase, o autor do livro, Machado de Assis – um dos maiores nomes da literatura brasileira –, define o lugar do médico na modernidade. Este locus desse profissional no contexto evolutivo tem acompanhado o desenvolvimento da história, que continuamente reserva aos médicos status de relevância social, desde os seus primórdios. Para Umberto Eco, quando Petrarca colocou o homem no centro do universo, em contraposição ao pensamento escolástico, a historiografia passou a compreender o advento da modernidade como uma transição nítida, quase brusca, do medievo. Entende o mestre que o que se convencionou chamar de mudança dos tempos históricos constitui-se um processo de transição, no qual coexistem visões diferentes que se amolgam e se substituem gradativamente. De um lado, o medieval se via às voltas com suas intermináveis discussões teológicas sobre a natureza divina em que se estabelecia um saber que não pertur-

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basse a ordem estabelecida, baseado em fórmulas cabalísticas, frases cifradas, dogmas. Por sua vez, os tempos modernos, nas franjas da passagem do medievo, nasciam com a concepção de que o saber haveria de ser consolidado e público. Sobre as incertezas metafísicas e religiosas dos humanos, Diego Gracia afirma que todo o saber é contingente, não existindo verdades absolutas, como se pretendia no medievo, mas construídas. Entende-se que, no âmbito das ciências, as hipóteses devem ser conhecidas, comparadas, debatidas, refutadas, confirmadas para ser divulgadas, conforme o entendimento de Karl Popper. Neste sentido, o saber, como ciência, no atual momento histórico da pós-modernidade, vem perdendo seu sentido absoluto, apodítico, para o de uma percepção baseada nas probabilidades. No campo da medicina, estas visões também coexistiram e ainda coexistem. Se nos tempos medievais os médicos se utilizavam de recursos que mais pareciam metáforas de um conhecimento hermético, no período da modernidade surge a figura do médico em espaço assimétrico de relacionamento com o paciente, paternalismo médico, onde o profissional dita todas as regras, ancorado em suas prerrogativas sociais, científicas e legais. Esse médico – cria da modernidade – age baseado em conhecimentos científicos e tecnológicos, ainda que limitado pelas incertezas éticas entre a melhor escolha e os danos possíveis desses avanços. Na pós-modernidade, a prática da medicina deixa de ser exercida com protagonismo médico, onde somente ele dita a verdade do diagnóstico e dos procedimentos terapêuticos, para ser cada vez mais compartilhada em suas decisões com o paciente. Constitui-se uma relação médico-paciente onde o lugar do médico se relativiza no âmbito das autonomias envolvidas. Ressalte-se, no entanto, que os diferentes modos de agir não implicam contraposição entre normas éticas antigas e atuais, haja vista que são os mesmos princípios da moralidade humana – autonomia, justiça, beneficência, respeito, dignidade – que justificam seu estamento na sociedade. Neste percurso de assunção para uma medicina de concepção benigna humanitária, tornou-se necessário que o médico cuidasse do paciente como pessoa que deve ser respeitada em


seus direitos personalísticos. Indo além deste entendimento, sem o obscurecer, em razão de a medicina atual ter como concepção metafísica o imperativo tecno-científico, urge a premência de o médico ser mais sensível à espiritualidade da pessoa humana, onde residem suas crenças, suas vocações artísticas, sua religiosidade, seus interesses, enfim, suas visões cosmológicas e existenciais. Assim, as humanidades em medicina – compreendidas como o universo composto das artes, como a literatura, a música, o teatro, o cinema, a pintura – podem contribuir para a boa formação do médico e a melhor prática da profissão no período contemporâneo. Na mesma senda de amplitude, as humanidades médicas promovem, simultaneamente, fronteiras e formas de integração com outras disciplinas humanísticas, dentro de um movimento de singularidade e de multidisciplinaridade, como a história, a antropologia, a sociologia, a comunicação social, a bioética e as artes em geral, como música, literatura e cinema. Todos esses campos do conhecimento e da prática humana nos encaminham para a acepção de humanismo referido pelo ministro Carlos Ayres Britto, ao considerar esse termo polissêmico “um conjunto de princípios que se unificam pelo culto ou reverência a esse sujeito universal que é a humanidade inteira”. Há inúmeros exemplos de como as artes podem servir como moldura para uma medicina mais humanística. No Brasil, atualmente, existem escolas médicas que dispõem em seus currículos de disciplinas desse campo do conhecimento humano. Isso materializa o crescente interesse acadêmico pela introdução nos projetos pedagógicos das disciplinas de saber humanístico. Esse fenômeno decorre da relevância de que o médico compreenda o homem como organismo dotado de componentes que ultrapassam a concretude do ser humano em si e que se estendem aos seus elementos fundantes como ser biopsicossocial. Nesse arcabouço, entendida a medicina em sua imanência como uma disciplina comprometida com a saúde do ser hu-

mano, ou em busca da sua recuperação quando fragilizada pela doença, é possível estabelecer um referencial dialógico entre o médico e a pessoa doente baseando-se nos princípios do respeito e da solidariedade humana. Para tanto, a partir da modernidade, no fluxo do Iluminismo, destaca-se o princípio da liberdade nas decisões humanas, fundamental nos seus direitos, que permite ao homem se constituir como sujeito livre, ao afirmar que somente pela sua emancipação pode alcançar a dignidade humana. No entendimento de Elma Zoboli, a relação médico-paciente ocorre no espaço onde “dois iguais em situações distintas que em um encontro intersubjetivo têm a corresponsabilidade de construir o cuidado, trocando fatos, emoções, sentimentos, crenças, enfim, muito mais que apenas os dados, sinais, sintomas e resultados de exames”. Esse processo ocorre nos limites das relações humanas definidos em um mundo líquido baumaniano “como consequência do estabelecimento de uma associação entre as mudanças na condição humana, o afastamento das velhas gerações e a chegada dos mais novos”. Apesar de sua credibilidade – com base na razão, na ciência e na legislação –, o que confere legitimidade à medicina é o paciente, a parte mais fragilizada e reativa dessa relação com o médico. É nesse encontro que se espelham os dispositivos da moral e da ética médica contemporâneas, ao se afirmar que o motivo de ser da medicina é a saúde do ser humano e da coletividade. Pode-se entender o espaço médico-paciente como um desdobramento que se faz presente em duas realidades: a da possibilidade de construir uma relação dialógica sustentada na melhor comunicação, em busca dos resultados favoráveis; e a da probabilidade de o paciente alcançar a cura ou o alívio dos seus sofrimentos embasada nas melhores evidências científicas. A boa compreensão desse encontro existencial exige que se considerem os valores do homem moderno, com ênfase em aspectos éticos que são critérios operativos do amplo espectro normativo de ação humana, realizados no respeito à vida humana, à livre expressão das ideias, à comunicação entre os humanos e exemplificados na diversidade dos seres humanos. A medicina da pós-modernidade não deve ser exercida afastada dos fundamentos morais que lhe concedem sustentabilidade profissional. Segundo Werner Jaeger, em sua obra Paideia: a formação do homem grego, desde quando surgiu, a medicina esteve irmanada com a filosofia grega numa íntima e fecunda relação embasada no empirismo dos médicos e na metafísica dos gregos. O relevo da medicina se deu em razão do fato de a cultura grega estar orientada tanto para o corpo como para o espírito. Na pós-modernidade, em decorrência da persistente dualidade entre os deveres sociais conferidos ao médico e a necessidade de ele respeitar o paciente em sua singularidade, a relação médico-paciente deve ser continuamente construída em suas bases ancestrais da moralidade humana. Artigo publicado originalmente no site do Conselho Federal de Medicina (CFM)

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Danilo Abreu

Gestor médico do Hospital Dona Helena

É hora de repensar o modelo de assistência

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ivemos um momento de altos custos na saúde suplementar, que há duas décadas vem sofrendo reajustes acima da inflação para as fontes pagadoras, comprometendo sua saúde financeira. Há vários fatores que contribuem para esse aumento, dentre eles, o envelhecimento populacional, com projeção de que, em 2030, o Brasil terá 30% da população com mais de 60 anos, juntamente com novas incorporações tecnológicas não substitutivas e altos custos assistenciais devido a desperdícios no sistema. No Brasil, temos 47 milhões de beneficiários na saúde suplementar, sendo 67% compostos por planos corporativos e 33% individuais. A fatia de planos em que a fonte pagadora são os empresários representa a maioria, e estes buscam medidas efetivas para controle dos custos para seus funcionários e dependentes, com melhorias da saúde populacional. Hoje, nas médias e grandes empresas, esse é o segundo maior custo, perdendo apenas para folha salarial.

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“O momento é adequado para rediscutir o sistema, com foco na entrega de valor aos clientes”

Para isso, diversas medidas certamente já foram tomadas, como mudanças de operadoras ou seguradoras, adoção de coparticipação/franquia, mas essas ações são limitadas para redução de custos de forma sustentada, visto que todo sistema é perfeitamente desenhado para produzir os resultados que gera (Institute for HealthCare Improvement, Boston). A atual arquitetura assistencial está pautada em modelo “fee for service”, hospitalocêntrico, de atenção à saúde altamente especializada, que culminaram em custos exponencialmente ascendentes para o sistema de saúde e nem sempre com os melhores resultados para os clientes. Os níveis de atenção atuais são modelos focados na doença, e não na saúde, deixando de atuar na promoção e na prevenção. Um importante exemplo na realidade brasileira diz respeito à cesariana, hoje em torno de 84% dos partos, quando o índice da média mundial está em 18,6%, segundo a Organização Mundial da Saúde. Estudos recentes utilizando a abordagem de W. Edward Deming revelam que cuidados inadequados, desnecessários, descoordenados e ineficazes, além de processos de negócios abaixo do ideal, podem consumir pelo menos 35%, e talvez mais de 50% do que o país gasta atualmente em cuidados de saúde (The Case of Capitation – James MC, 2016). O momento é adequado para rediscussão do sistema com foco na entrega de valor aos clientes, sendo um sistema de saúde que entrega os melhores resultados possíveis com o mais baixo custo possível (International Consortium for Health Outcomes Measurements, ICHOM). A alavanca mais poderosa para reduzir custos e melhorar o valor é melhorar os resultados que realmente importam aos pacientes (Porter – ICHOM Conference 2017). São muitos os desafios no sistema de saúde, e isso requer soluções sistêmicas, tendo como objetivo fundamental maximizar o valor para os pacientes, não só no âmbito hospitalar, mas também centro médico, especialidades e atenção primária. É cuidar do paciente ao longo do ciclo completo de cuidados e ao longo do tempo. Os sistemas de saúde não se sustentarão caso os modelos de remuneração e da assistência não sejam repensados. Os desafios estruturais, culturais, éticos e de gestão são grandes, mas precisam ser superados.


Antonio Roberto Ledra Zagheni Cardiologista clínico

Desafio ético para a prática da cardiologia

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e um lado, o médico, do qual se espera conhecimento científico, capacitação técnica, atitude e, principalmente, intenção de ajudar o próximo. Do outro, o paciente, em busca de informações sobre como manter a saúde ou melhorar de alguma enfermidade sob a orientação daquele profissional, ambos agindo de boa-fé. Assim definida a relação médico-paciente (RMP), variações entre as condutas das partes implicariam em desvio ético com consequente quebra da relação. Vivemos um momento particular, uma crise ética sem precedentes, culminando com índices assustadores de corrupção e criminalidade. Não há mais o incentivo de cultivar preceitos éticos, numa sociedade que por vezes os inverte. Como tudo, ao longo do tempo, a RMP vem se transformando – talvez, em um futuro não muito distante, debateremos a relação entre uma máquina e o paciente. Entretanto, hoje, a RMP ainda é base de todo o atendimento médico, despertando inúmeros interesses, especialmente econômicos. De imediato, podemos citar as indústrias farmacêuticas, de próteses e de equipamentos médicos, entre outras, que disputam a atenção de ambos os la-

“A relação médico-paciente desperta inúmeros interesses, especialmente os econômicos”

dos da RMP, num jogo de sedução que eventualmente consegue desvirtuá-la. Convivo com os avanços fantásticos proporcionados pelas indústrias. Ocorre que o foco da indústria é o lucro e, tomando por base a indústria farmacêutica, que, em plena crise econômica, conforme dados da Anvisa, faturou R$ 63,5 bilhões em 2016 e cresceu 12,86% em 2017, fica claro o poderio e o interesse econômico envolvidos no entorno da RMP e a pressão econômica à qual está sujeita, o que é perigoso em uma sociedade com princípios éticos frágeis. Com tantas opções diagnósticas e terapêuticas, a RMP conduzida sob essas influências acaba sendo excessivamente onerosa e não há sistema de saúde que resista do ponto de vista econômico. Nem mesmo o paciente poderá aderir a um tratamento de doença crônica acima do seu orçamento. Tendendo ao colapso, entram as frequentes intervenções judiciais na medicina, sustentadas no direito à saúde estabelecido pela Constituição de 1988, e que certamente beneficia alguns, mas também submete os sistemas de saúde a gastos extraordinários com medicamentos de eficácia por vezes duvidosa em indivíduos com chances limitadas de cura, enquanto faltam analgésicos nas unidades básicas de atendimento. Inegavelmente, quando bem utilizados, esses avanços trazem conforto e qualidade de vida. Há uma notável evolução no tratamento clínico (farmacológico) das enfermidades cardíacas e, também, no desenvolvimento de próteses, notadamente as de implantação percutânea. Na cirurgia, houve importante aprimoramento nas técnicas, hoje com incisões reduzidas, culminando com a cirurgia robótica. O problema está, como disse, no mau uso de todos esses recursos, principalmente se estiver pautado em condutas antiéticas, o que não ocorre na maioria das vezes – mas eventualmente se verifica. Reflexo disso é que temos um código de ética médica muito mais restritivo que permissivo. Por fim, temos na ética o balizador para o sucesso não somente da RMP, mas para o sucesso de todo o seu desenrolar, do diagnóstico ao tratamento e da sustentabilidade do próprio sistema. Ao evitar influências externas com seus interesses, priorizando uma medicina voltada para o paciente, permitimos a todos usufruir da evolução da indústria e da medicina como ciência em benefício da saúde.

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Ramiro Novak Filho

Consultor, CEO do Center For

“A transformação atual traz profundas implicações sociais e exige um novo código de ética”

Leadership Studies do Brasil (CLSB)

Postura ética do líder na Era Digital

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ivemos uma profunda transformação gerada pela “Quarta Revolução Industrial”, ou “Revolução 4.0”, trazida pelos robôs e marcada pela convergência de tecnologias digitais, físicas e biológicas. Termos como big data, inteligência artificial, robótica e algoritmos fazem parte do dia a dia. Seremos capazes de criar uma inteligência artificial que supere a criatividade humana e desenvolva suas próprias ideias e valores? Todo esse avanço tecnológico será mesmo benéfico para o homem? E o líder perante esse novo cenário? Esta transformação traz profundas implicações sociais e cria a necessidade de desenvolver um novo código de ética. Há que se preservar a “essência humana” nas novas relações da era digital. Homens e máquinas em constante interação, com os direitos humanos preservados. Líderes conscientes de que a inteligência artificial acabará com determinadas profissões, mas outras serão criadas. E que as pessoas sejam desenvolvidas para elas. Sistemas de inteligência artificial não são um fim em si, mas um meio, uma ferramenta no desenvolvimento de uma cultura na qual equipes de alta performance levam a organização a alcançar os resultados desejados. Vamos trazer a reflexão para o meio médico-hospitalar? Análises de prontuários já são realizadas por médicos e

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seus “colegas” robôs. Estudos apontam que a produtividade de enfermeiros pode crescer de 30% a 50% com apoio de ferramentas de inteligência artificial. Cirurgiões já contam com computadores como uma espécie de “consultor” durante cirurgias. Um hospital de Londres usa um aplicativo móvel desenvolvido por uma empresa de inteligência artificial do Google que identifica pacientes com maior risco de perda de função dos rins. Cada vez mais pessoas monitoram o progresso de doenças por meio de apps, celulares e sensores. Os exemplos provam o quanto o uso da inteligência artificial pode melhorar a capacidade humana na área de saúde. Nosso papel é usá-la a nosso favor. Grandes empresas de tecnologia têm demonstrado forte interesse no setor. Dispositivos móveis (smartphones), wearables (que podem ser vestidos), aplicativos de saúde (Health Apps) e a Internet das Coisas criam a “Saúde 4.0”. Nesse cenário, o grande beneficiado é o paciente, que recebe diagnósticos mais assertivos em um tempo consideravelmente menor, além de focar sua atenção para a prevenção e o bem-estar. Mas... e a relação com o paciente? Tanta tecnologia será capaz de substituir o profissional de saúde? E as lideranças? Como conduzirão suas equipes, formadas por “humanos”, em meio a tantos aparatos tecnológicos? Sistemas inteligentes sempre terão vários operadores humanos envolvidos em sua criação. Robôs não transmitirão o famoso “calor humano” ao pegar na mão do paciente. Líderes digitais éticos e “humanos” usam a tecnologia a seu favor, como auxílio para uma gestão eficaz e de resultados. São, mais que nunca, necessários, nesta época em que a sociedade passa por uma revolução digital que muda o modo como as pessoas passam a viver e a se relacionar – e que não tem volta. Líderes digitais acreditam que homens e máquinas podem e devem trabalhar juntos, num mecanismo integrado e harmonioso que visa, acima de tudo, ao entendimento, à preservação e ao respeito pela diversidade e dignidade humanas. E incentiva suas equipes a usar toda a tecnologia disponível como ferramenta de trabalho na relação com o paciente sem, contudo, esquecer a essência humana presente em todos nós. Somos seres relacionais por excelência. E nossos pacientes continuam prezando pelo atendimento humanizado de alta qualidade.


Paulo Mafra

Gastroenterologista, membro titular

“Apesar dos avanços tecnológicos, os pacientes estão descontentes com os médicos”

da Sociedade Brasileira de Endoscopia Digestiva e diretor clínico do Hospital Dona Helena

A relação médicopaciente: aspectos atuais

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medicina, em seus primórdios, baseava-se em dois pilares: o exame físico e a relação médico-paciente. A união desses fatores permitia o obtenção das informações para a realização dos diagnóstico e terapêutica da época. No século 19, saindo dessa visão hipocrática e holística, destacou-se um médico cientificista, entendendo a medicina como uma ciência exata e biológica, desprezando seu caráter humanista. Apesar dos avanços tecnológicos e científicos, os pacientes se encontram descontentes em suas relações com os médicos. A medicina migrou de uma forma liberal e artesanal para uma fortemente tecnológica; de “confiança cega” no médico para a “confiança informada”. Houve uma mudança no papel do paciente, de um recipiente passivo da assistência para um consumidor ativo de informações sobre a saúde – mudança essa com potencial de promover maior engajamento na manutenção e cuidado da saúde. Há vários modelos de relação médico-paciente, destacando-se o que avalia o grau de atividade-passividade, sendo esse modelo dividido em quatro tipos de relações: 1) sacerdotal (paternalista): médico tem toda a autoridade e poder, dominando a relação, com paciente sub-

misso – tipo característico do atendimento de urgência; 2) engenheiro (informativo): coloca todo o poder de decisão no paciente – o médico repassa as informações e executa as ações propostas pelo paciente; médico acomodado, vendo o paciente apenas como cliente; 3) colegial: poder igualitário, porém o médico abre mão de sua autoridade como profissional e 4) contratual (interpretativo, médio envolvimento, e deliberativo, alto envolvimento): o médico assume responsabilidade pelas decisões técnicas e o paciente participa ativamente do processo, com seu estilo de vida e valores morais e pessoais, formando uma aliança. Não há modelo ideal, sendo utilizados em contextos psicológicos distintos. Os avanços tecnológicos de informação também causam impacto direto na relação médico-paciente. A internet se tornou uma fonte de volumosa informação de fácil acesso, com a maioria das buscas na rede sendo feita antes da consulta clínica, tornando o paciente mais informado e crítico. Junto com os benefícios da informação de fácil acesso, existem preocupações quanto à qualidade do conteúdo obtido e dos efeitos sobre o relacionamento médico-paciente: informação de baixa qualidade, levando a autotratamentos sem fundamento científico e diagnósticos falhos; barreiras linguísticas, vieses comerciais, consultas clínicas mais prolongadas por divergências de informações, exames e tratamentos desnecessários originados de informação errônea. O uso mais intensivo da tecnologia da informação vai acarretar que a equipe de saúde (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas etc.) cuide do paciente de forma mais integrada, nas dimensões biológica, psíquica e social, incluindo apoio afetivo e psicológico. Como medidas gerais para o aprimoramento da relação médico-paciente na atualidade, e minimizando o risco de processos na Justiça, cumpre sugerir, aos médicos, humanizar e qualificar o atendimento, incluir o paciente nas tomadas de decisão, evitar que o paciente se sinta ignorado, informar sobre riscos e benefícios do tratamento, apresentar todas as opções de tratamento, emitindo sua opinião técnica sobre cada uma, encorajar os pacientes a compartilhar sua coleta de dados da internet e fornecer fontes e sites seguros e gabaritados sobre saúde para consulta.

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Bruno Schlemper Junior

Médico, doutor em Doenças Infecciosas e

“Há uma crise de confiança nas vacinas, impulsionada pelas fake news”

Parasitárias, pós-doutor em Bioética e docente do Mestrado em Biociências e Saúde da Universidade do Oeste de Santa Catarina

Vacinação obrigatória contra a influenza dos profissionais da saúde: uma exigência ética Sin ética no hay futuro posible, ni a nível local ni a nível global” MARTINET DE LA CERDANYA

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mundo vive uma crise de confiança nas vacinas, impulsionada pelas fake news das redes sociais, disseminadas pelos grupos antivacina com a perigosa redução das taxas de vacinação infantil. Adicione-se a inaceitável resistência dos profissionais da saúde em ser vacinados contra a influenza. Em decorrência, estamos, atualmente, numa guerra global contra o retorno de doenças infecciosas já eliminadas ou controladas, mas que, infelizmente, já ocorrem em vários países europeus e americanos, como no Brasil. Que armas devem ser usadas para vencer essa guerra? A contraofensiva consiste em promover a confiança nas vacinas para retomar os níveis necessários de vacinação das crianças e dos profissionais da saúde. Nos países desenvolvidos, centenas de instituições de saúde e diferentes entidades profissionais concordam com a vacinação obrigatória dos profissionais da saúde contra a influenza. No Brasil, apesar de

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ser considerados grupos de risco, tem sido apenas sugerido que eles decidam por si próprios, usando-se o argumento do respeito à autonomia, eticamente inadequado para o risco potencial de pandemia da influenza. Que autonomia, se eles têm o compromisso ético de proteção dos pacientes e da coletividade incrustado nos seus códigos profissionais, nos quais o interesse dos pacientes deve prevalecer (beneficência), assim como não causar dano ao seu paciente (não-maleficência) e dar proteção aos vulneráveis (justiça)? Assim, neste conflito sobre a influenza, deve prevalecer a visão ética de proteção da comunidade e da responsabilidade ética da busca do bem-comum, inseridas no princípio da justiça social. Ainda, o princípio ético da não-maleficência orienta aos profissionais a se vacinar face aos inquestionáveis benefícios da vacinação sobre os raríssimos eventos adversos. A vacinação é um referencial bioético de solidariedade humana e de responsabilidade social, e não apenas um ato individual, pois é um valor que proporciona a oportunidade de abraçar e proteger aqueles vulneráveis que não podem se vacinar por questões médicas. Pode-se, também, buscar suporte no referencial bioético do altruísmo, o qual retrata a obrigação moral humana para com os outros, importante para a opção de valores na deliberação bioética e de um poder inimaginável de multiplicação capaz de contribuir de forma expressiva para o bem-comum. Como? O primeiro passo, mas não o único, é promover a vacinação obrigatória dos profissionais da saúde, pois eles são os mais confiáveis e as principais fontes de informação para que os pais aceitem vacinar seus filhos. O exemplo é um ato virtuoso e, como disse Albert Einstein, o exemplo não é a melhor maneira de influenciar aos outros, é a única. Qual a melhor forma? Cabe às instituições de saúde, após um diálogo aberto e esclarecedor, oportunizar a vacinação gratuita anual contra a influenza no próprio ambiente de trabalho após processo educativo continuado. Essa é uma arma ética, científica, econômica, eficaz e de ação difusora capaz de contribuir de forma decisiva na guerra contra a influenza, restando, apenas, que alguma instituição de saúde aceite o desafio e passe a servir de exemplo às demais.


Antônio Sérgio Baptista

Cirurgião geral, membro do corpo clínico do Hospital Dona Helena

Uma ética feminista?

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evido à sua associação com as mulheres, a ética de cuidados é frequentemente interpretada como sendo uma ética feminina, enquanto a ética feminista seria uma tentativa de revisar, reformular ou repensar os aspectos da ética ocidental tradicional que “depreciaria ou desvalorizaria” as experiências morais das mulheres. Mas elas se sobrepõem e, embora a ética de cuidados demonstre traços femininos, nem toda ética feminina é ética de cuidados. A filósofa feminista Alison Jaggar tece cinco críticas à ética tradicional. Primeiro, por demonstrar pouca atenção aos direitos e interesses das mulheres. Segundo, por considerar desinteressantes os problemas que surgem no chamado mundo privado, onde as mulheres cozinham, limpam e cuidam dos jovens, dos velhos e dos doentes. Terceiro, por sugerir que as mulheres não seriam moralmente desenvolvidas como os homens. Quarto, supervaloriza traços culturalmente masculinos como independência, autonomia, mente, razão, cultura, transcendência, guerra e morte, e subvaloriza traços culturalmente femininos como interdependência, comunidade, conexão, corpo, emoção, natureza, imanência, paz e vida. Quinto, favorece os meios de raciocínios morais culturalmente masculinos que dão ên-

fase à regras, universalidade e imparcialidade em vez dos meios de raciocínios morais culturalmente femininos que dão ênfase aos relacionamentos, particularidades e parcialidades (Jaggar, “Feminist Ethics”, 1992). A abordagem feminista da ética é fundamentalmente política, à medida que as eticistas feministas focam na eliminação da subordinação da mulher (e de outras pessoas oprimidas) em todas as suas manifestações. Faz perguntas sobre poder (isto é, sobre dominação e subordinação), muito antes de perguntas sobre o bem e o mal, o cuidado e a justiça ou o pensamento materno e paterno. A ótica feminista se complica com o pensamento conflitante das feministas radicais, liberais, marxistas, socialistas, multiculturais, globais, existencialistas, psicanalíticas, pós-modernas, culturais, ecofeministas etc. Com a absorção do marxismo pelos movimentos feministas, a ética feminista não escapou. “A ética feminista se propõe a analisar e criticar qualquer forma de injustiça de gênero e por fim à discriminação, desigualdade, exclusão e opressão das mulheres” (G.O.Millán, “Etica Feminista, Etica Femenina y Aborto”, 2014). A ética feminista/feminina deveria apenas completar a ética tradicional. A ética não pode partir de um ponto de vista específico, nesse caso, o ponto de vista feminino, e ainda ser considerada ética. No mundo real, a ética tradicional parte do princípio de que seus valores se aplicam a todos os seres racionais igualmente.

“A ética feminista/feminina deveria apenas completar a ética tradicional. No mundo, a ética parte do princípio de que seus valores se aplicam a todos os seres racionais, igualmente” 41


Amanda Miranda

Professora e pesquisadora, mestre em Educação Científica e Tecnológica, doutora em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

ENTREVISTA “Saúde é tema indispensável ao jornalismo diário”

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estre em Educação Científica e Tecnológica, doutora em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a professora catarinense Amanda Miranda atua na área de ensino, pesquisa e extensão desde 2010. Sensibilizada, desde os tempos de repórter, por pautas relacionadas à ciência e seus impactos na vida humana, Amanda dedica-se a estudar o jornalismo especializado em saúde, suas interfaces com a cultura e a sociedade, suas narrativas, linguagem e relacionamento entre jornalistas e fontes médicas e científicas. Em maio de 2018, defendeu a tese “Narrativas Híbridas do Científico e do Popular no Jornalismo Especializado em Saúde”, integrando a primeira turma de Doutorado em Jornalismo da UFSC. O estudo se concentra em uma análise do programa “Bem Estar”, da Rede Globo, em um exercício de crítica da mídia. No ano passado, Amanda passou seis meses na Inglaterra, para um doutorado-sanduíche, e pôde conhecer de perto o trabalho de jornalistas da BBC, uma das mais relevantes emissoras públicas do mundo.

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Qual a origem de seu interesse em desenvolver a pesquisa de doutorado sobre jornalismo em saúde? Antes de iniciar leituras e entrevistas, que visão você trazia dessa área? Quando trabalhava como repórter, saúde era uma das áreas de eu mais gostava de cobrir, pois vinha de uma trajetória de pesquisas sobre divulgação científica no mestrado. Assuntos relacionados à ciência e seus impactos na vida humana sempre estiveram entre meus principais interesses. Mas algumas coisas me incomodavam, e foi isso que motivou meu estudo no doutorado. Eu percebia, por exemplo, uma linguagem muito hermética entre alguns profissionais e um receio de que o jornalista cometesse erros devido à complexidade dos assuntos na área. Paralelamente, observava o temor dos jornalistas de construírem pautas interessantes na área e não encontrarem fontes com quem dialogar. Notei que alguns produtos jornalísticos contornavam bem esse problema – e eles estavam na televisão. Um deles eram as séries do Drauzio Varella no Fantástico, o outro, o programa “Bem Estar”, ambos da Rede Globo. Logo na abertura da tese, você destaca a dualidade do jornalismo de saúde, ao perseguir o rigor científico desejado, pela própria natureza do universo em que atua, e, na outra ponta, transmitir a informação “de um modo simples e atrativo”. Pelo que pôde apurar para a pesquisa, esse ponto de equilíbrio vem sendo atingido? O ponto de equilíbrio tende a desagradar jornalistas e fontes médicas, mas é útil para a audiência. Isso porque, quando pensa no seu leitor (ou ouvinte, telespectador), o jornalista se vê obrigado a pensar em formas de atrai-lo, de seduzi-lo. E nem sempre essa é a forma que nós nos sentimos mais confortáveis para escrever um texto ou fazer uma reportagem para qualquer mídia. No geral, gostamos de mostrar um repertório de conhecimento, de tratar de temas complexos e de explorar uma linguagem canônica. Mas nem sempre essa é a forma que melhor dialoga com a audiência, o que força a estrutura de produção das notícias a criar recursos que o aproximem da linguagem e da cultura popular. Para as fontes médicas, isso também tende a ser um desafio, já que a formação científica acaba distanciando os profissionais da linguagem popular e, consequentemente, da cultura popular. As faculdades cada vez mais elitizadas também acabam criando uma barreira na comunicação dos médicos com os pacientes, que não raras vezes têm dificuldade para entender conceitos e palavras básicas da biologia e da saúde. Os programas televisivos já citados – o Bem


Com bom-senso, uso de internet para pesquisa sobre saúde é fator positivo Estar e as séries do Drauzio Varella – têm forte adesão à linguagem popular, mas também são criticados justamente por isso. O ponto de equilíbrio se daria no esforço coletivo de médicos e jornalistas de pensar nessa audiência e trabalhar para ela. O jornalismo teria muito a contribuir com sistemas de prevenção, se isso fosse possível, mas é preciso esforço intelectual e investimento em capacitação. Como “convencer” o profissional médico habituado a todo um jargão próprio de seu universo a assumir a simplificação inerente à linguagem jornalística? Penso que esse desprendimento é mais natural em médicos que já se preocupam com a comunicação no seu dia a dia. Chamo-os, na minha tese, de médicos comunicadores, que são justamente os profissionais mais acionados pela mídia para participar como fontes em produtos jornalísticos. Acho que convencê-los deveria ser uma tarefa da formação inicial, sensibilizando-os para a importância de pensar em estratégias de comunicação com seus pacientes. Penso que isso deveria fazer parte da ética profissional: ser claro, preciso e se aproximar do universo de linguagem dos pacientes. Mas, se isso não for possível, uma boa estratégia é não ter receio da aproximação do jornalista e pensar com ele em como tornar determinados conhecimentos mais acessíveis: uma imagem, uma metáfora, um recurso visual... Este trabalho em parceria também se mostrou um diferencial na minha pesquisa. Não raro, o consultório médico é um ambiente caracterizado pela linguagem hermética e inacessível de alguns profissionais, que têm dificuldades em traduzir terminologias e explicar ao paciente

o que, de fato, o aflige. Você percebe, também, tal resistência? Encontrou autores que abordem esse ponto em particular? Percebo isso quando estou no lugar de paciente, o que se agrava quando as consultas são reduzidas, rápidas. Não abordei no meu estudo especificamente a relação de comunicação nos consultórios, mas há autores que defendem que essa linguagem é recurso de um sistema de poder: quanto mais fechado é o conhecimento, menos autonomia terão os cidadãos para se cuidar. Um dos teóricos que escreveram sobre isso foi o filósofo Michel Foucault, mas há muitos outros, da sociologia crítica da medicina, que se orientam a partir desse pensamento. Entrevistei, na minha pesquisa, uma médica pediatra que é professora na Universidade de São Paulo. Ela fala diariamente com estudantes de medicina, com pacientes do seu consultório e com a audiência do programa “Bem Estar”. São públicos diferentes, que exigem linguagens diferentes. O seu único desafio, segundo me contou, é “virar o chip”. Não há constrangimento algum em transformar o seu conhecimento técnico, científico, em algo acessível ao outro. Você pesquisou mais detidamente um programa de televisão. Mas, em outros meios, que análise faz do jornalismo brasileiro no campo da saúde? Penso que não existe um diagnóstico concreto sobre isso. Há bons produtos em circulação, como revistas de divulgação científica (Ciência Hoje, Revista Fapesp, Scientific American), programas e quadros de TV e boas reportagens em jornais diários.

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“Médicos e jornalista atuando juntos? Seria um ambiente propício para produtos inovadores e úteis à audiência” Mas sinto falta de produtos que tratem da saúde como um campo multidisciplinar, como algo holístico, que se relaciona com fatores sociais, ambientais etc. Um exemplo foi a excelente reportagem do The New York Times sobre a indústria alimentícia brasileira e seu impacto na população das periferias do país. A saúde aparece tratada sociologicamente, o que é raro nos produtos segmentados e nos materiais da imprensa diária. Existem restrições legais à exposição pública de médicos e pacientes, em determinadas circunstâncias. Como o jornalismo pode levar em conta essas limitações, muitas vezes atribuídas a questões éticas, e produzir notícias relevantes? Estamos falando de dois campos com éticas distintas. A ética do jornalista, por exemplo, muitas vezes relativiza a privacidade em nome do interesse público. Um caso recente é o do médico Denis César Barros Furtado, preso após a morte de uma paciente que passou por uma cirurgia fora do ambiente hospitalar. As informações relacionadas a ele e à vítima eram de interesse público, e por isso não poderiam ser omitidas. Mas há casos em que esta questão deve, sim, ser alvo de reflexões. Recordo-me, por exemplo, do dia em que o próprio Bem Estar divulgou o nome de dois pacientes com suspeita de ebola recémdesembarcados no Brasil. Essa era uma informação relevante ou só serviria para aumentar o estigma da população africana? Muitas vezes, o jornalista vai pedir para o médico um “personagem”, alguém que ilustre determinada pauta que está tratando, talvez até o nome de um paciente em fase de tratamento. Nesses momentos, a ética médica deve prevalecer e o direito do paciente, ser respeitado, mas também

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pode existir alguma parceria nesse sentido. O profissional da saúde pode abordar o paciente para verificar se existe interesse em compartilhar a história e indicá-la ao jornalista. No trabalho, você aborda a migração das antigas editorias de ciências em segmentos cada vez mais especializados de cobertura jornalística, como tecnologia, meio ambiente e saúde. Diante da crise por que passa a imprensa brasileira, que espaço resta para a cobertura de saúde? As editorias de Saúde são indispensáveis ao jornalismo diário, porque lidam com um assunto sobre o qual todos querem se informar. Não existe um único indivíduo na face da Terra que possa se assumir como alguém totalmente despreocupado com questões relacionadas ao corpo, à mente e à vida. Mas é também natural que o monopólio da credibilidade não pertença mais exclusivamente aos veículos – o que traz à tona novos personagens capazes de produzir conteúdo que anteriormente eram produzidos por nós, com alguma exclusividade. Um exemplo são as “digital influencers”, as celebridades do Instagram e do Youtube que conquistam fãs falando sobre assuntos variados, entre eles, saúde e estilo de vida. Tenho olhado com curiosidade para este fenômeno de “migração de credibilidade”, mas penso que é justamente isso que pode fazer o jornalismo se destacar e continuar ganhando relevância: em um mundo com tanta informação, checar e dar sentido a determinadas informações ainda é tarefa que só os jornalistas estão aptos a fazer. Ao misturarem a tarefa do serviço com propagandas, por exemplo, essas celebridades rompem uma fronteira que os jornais ainda enfrentam com bastante solidez. O que há de positivo e de negativo no uso “indiscriminado” da internet para pesquisa de informações sobre saúde? Vejo o fenômeno como algo positivo, desde que haja bom-senso. Em um artigo, chamei de midiapondria essa necessidade de informações que é muito uma característica do nosso tempo, de estarmos conectados o tempo todo, sempre sedentos por informação. Mas acho realmente interessante que as pessoas tenham suas próprias ferramentas de comunicação para gerenciar sua saúde e seus cuidados com o corpo e com a mente. Um pesquisador chamado Brian Wynne chamou isso de “saberes em contexto” ao estudar pacientes com hipercolesterelomia familiar e como seus conhecimentos utilitários e adquiridos dialogavam com o saber científico vindo da medicina. O que não pode acontecer é um paciente se automedicar ou tomar decisões muito im-


portantes sem consultar um médico, mas não vejo problemas que ele chegue informado ao consultório, ainda que seja uma informação preliminar. Quanto à formação dos profissionais que estão à frente de veículos especializados em saúde, qual o modelo ideal? O jornalista especializado é capaz de fazer um trabalho mais apurado e com mais solidez, mas não acho que um jornalista generalista não possa trabalhar com temas de saúde no dia a dia. A especialização exige tempo, bom repertório de fontes, investimento em pós-graduação e em formação. Paralelamente, para além da especialização, precisamos também discutir a pluralidade e a diversidade de perfis profissionais nos veículos. Quanto mais representações de gênero e identidade houver, mais capacidade de tratar desses assuntos tendo em conta a pluralidade cultural teremos. Também avalio que médicos com capacidade de produzir conteúdo, seja pelo texto escrito ou em outras plataformas, são sempre muito bem-vindos. Uma redação com médicos e jornalistas atuando juntos, hibridizando seus valores profissionais, seria um ambiente propício para produtos inovadores e úteis à audiência. Após a conclusão da tese, o que mudou na sua percepção sobre o papel da televisão na disseminação de informações sobre saúde? A televisão tem um papel subutilizado na cultura de massa, de levar informação e produzir conhecimento. Essa tarefa esbarra nas metas de audiência e nas próprias características inerentes ao veículo: como falar sobre a importância da vacinação de um jeito sério, contundente, e ainda assim manter o telespectador entretido? O “Bem

“Um (bom) exemplo foi a excelente reportagem do The New York Times sobre a indústria alimentícia brasileira e seu impacto na população das periferias”

Estar” é fruto dessa lógica. Ao mesmo tempo em que existe preocupação em levar informação útil e relevante sobre saúde, também há preocupação técnica com elementos associados ao entretenimento. Não sei se isso é problema, vejo muito mais como a característica do veículo. No mundo ideal, teríamos um sistema público de radiodifusão forte, em que a preocupação com as métricas de audiência não fosse tão central e em que assuntos do sistema público de saúde pudessem ser abordados tendo em conta a diversidade e a pluralidade da população, sob diferentes óticas e lógicas. Mas esse é um passo quase inatingível para os brasileiros. Recentemente, passei seis meses na Inglaterra e pude entrevistar um produtor de séries e fontes médicas de um programa da BBC, emissora pública das mais tradicionais e bem-sucedidas do mundo. A saúde é um dos temas de que eles mais tratam, sempre com abordagens relevantes, em formatos como série documental. Seria ótimo que esses produtos tivessem espaço no Brasil, mas para isso eles teriam que atrair interesse comercial – o que significa fazer acenos para a indústria alimentícia e farmacêutica, por exemplo. Ocorre que esses acenos muitas vezes esbarram nas finalidades das pautas: como falar sobre obesidade tendo anunciantes que produzem bolachas cheias de açúcar?

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Quem somos Pessoas de diferentes formações, interessadas em pensar e promover a contribuição ética da reflexão e da ação em todas as áreas que envolvem a responsabilidade humana na geração e desenvolvimento da vida. Procuramos organizar nossa associação em âmbito nacional, na interação com outros grupos nacionais e internacionais de interesses similares, e com os vários segmentos da sociedade plural, tendo em vista tornar efetiva a contribuição que buscamos oferecer por meio da bioética.

Em dia Nova diretoria da SBB/SC

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nova diretoria da regional catarinense da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) tomou posse em agosto. Vários membros do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Bioética e Saúde Coletiva (Nupebisc), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), participam da nova gestão: a professora Mirelle Finkler assumiu a presidência, enquanto o professor Fernando Hellmann está na vice-presidência. As doutorandas do programa de pós-graduação em odontologia Doris Gomes e Juliara Hoffmann, os cargos de secretária e tesoureira, respectivamente. Além deles, integram a diretoria a professora Marta Verdi e a dra. Jucélia Guedert, ambas integrando a Comissão de Ética. A regional foi constituída no dia 29 de junho de 2009, na UFSC, como uma associação civil, sem fins lucrativos, aberta à participação de pessoas interessadas em bioética. Suas finalidades incluem o estímulo à produção e divulgação de conhecimentos em bioética; a promoção e assessoria a projetos, pesquisas e outras atividades na área; a colaboração e patrocínio em eventos relacionados; e o apoio e participação em coletivos e atividades que visem a valorização da bioética. A SBB foi criada em 1995 e teve William Saad Hossne como seu fundador e primeiro presidente. Desde então, foram realizados 12 congressos brasileiros. A décima edição foi organizada pela regional catarinense, com a participação de cerca de 1200 congressistas, em Florianópolis, em 2013. O último Congresso Brasileiro de Bioética foi realizado em Recife, em 2017, e o próximo ocorrerá em outubro de 2019, em Goiânia.

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Filie-se à SBB A principal missão da SBB é a de contribuir para a difusão da bioética no Brasil. Além disso, apoia profissionais e instituições nas diversas atividades relacionadas ao seu campo, como na atuação em comitês de Bioética Hospitalar, comitês de Ética em Pesquisa, na docência e na pesquisa. É também papel da SBB divulgar a produção em bioética, o que vem fazendo por intermédio dos seus congressos nacionais, meios eletrônicos de comunicação e da Revista Brasileira de Bioética (RBB). Participe!

Congresso Internacional da Redbioética/Unesco O tema principal do 7o Congresso Internacional da Redbioética/Unesco será “A bioética contra a violação dos direitos humanos (70 anos após a sua proclamação)”. O evento acontece de 8 a 10 de novembro, na Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB), com apoio da SBB e da Cátedra UNESCO de Bioética da UnB. A Regional da SBB do Distrito Federal participa da organização do congresso.

Sobre o aborto Em agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) abriu para debate a criminalização do aborto, descrita nos artigos 124 e 126 do Código Penal. Entidades comentaram sobre o tema, problematizando sua relação com os princípios fundamentais da Carta Magna, como a liberdade e a igualdade. Dentre as instituições que se pronunciaram, destacam-se a SBB e a Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.


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Rua Blumenau, 123, Centro, Joinville/SC (47) 3451-3333 www.donahelena.com.br


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