8 REVISTA DO HOSPITAL DONA HELENA
O RESGATE DA ÉTICA NOS NEGÓCIOS
Reação da sociedade à mais recente safra de escândalos no mundo corporativo e na política mostra que este pode ser o início de uma depuração que inaugure tempos melhores
RECONHECIMENTOS À GESTÃO HOSPITALAR 6 Estamos preparados para o envelhecimento? 8 O PAPEL DE PONTA DAS MULHERES NA ARENA DA CIÊNCIA 21 Como lidar com a paralisia do sono 26 POR QUE BRINCAR FAZ BEM À SAÚDE 28 Diálogos bioéticos 34 ESPECIALISTA DISCORRE SOBRE A ÉTICA NAS RELAÇÕES DE PODER 40 Notícias da Sociedade Brasileira de Bioética 48
Nesta edição Accredited by Joint Commission InternationalTM
Associação Beneficente Evangélica de Joinville/Hospital Dona Helena Rua Blumenau, 123 Centro – Joinville/SC CEP 89204-205 (47) 3451-3333 www.donahelena.com.br Revista Conecthos é um projeto do IDHEP – Instituto Dona Helena de Ensino e Pesquisa – Núcleo Editorial ISSN: 2358-8217 Circulação: outubro de 2017 Coordenação geral: Carlos José Serapião Conselho editorial: Ana Ribas Diefenthaeler, Antonio Sérgio Ferreira Baptista, Gizele Leivas Editores associados: Bruno Rodolfo Schlemper Jr., Christian Ribas, Maria José Varela, Fernando Hellmann, Nelma Baldin, Euler Westphal, Wladimir Kümmer, Paulo França, José Carlos Abellán (Espanha) Jornalista responsável: Guilherme Diefenthaeler (reg. prof. 6207/RS) Produção: Mercado de Comunicação Edição: Guilherme Diefenthaeler Reportagem: Letícia Caroline, Karoline Lopes, Marcela Güther, Ana Ribas Diefenthaeler e Guilherme Diefenthaeler Diagramação: Fábio Abreu Fotografia: Peninha Machado e banco de imagens Impressão: Tipotil Indústria Gráfica Tiragem: 2 mil exemplares Redação: contato@mercadode comunicacao.com.br Apoio Associação Beneficente Evangélica de Joinville/Hospital Dona Helena; Sociedade Brasileira de Bioética/ Regional Santa Catarina Os artigos publicados correspondem à opinião de seus autores, não expressando o pensamento da direção do hospital. Todas as informações são de responsabilidade dos autores. Direitos reservados. Proibida a reprodução na íntegra ou parcial.
A leitura do noticiário cotidiano vem se transformando em um exercício penoso para quem preserva aqueles valores essenciais à vida em comum que configuram o princípio da ética. Nestes últimos anos, uma gigantesca maré de desvios que chegam à casa dos bilhões de reais, no contexto de organizações empresariais até então tidas como exemplos na correção de suas condutas, pode dar a impressão de que não tem mais jeito: que o mundo corporativo (ainda mais quando este atravessa o mundo da política) “é assim mesmo”, e que a ética se constitui em uma quimera. A reportagem principal desta edição sugere que há um processo de depuração em curso, em que não haverá mais lugar para desvios e negociatas. Afinal, “aquele que abandona as convicções éticas como melhor lhe convém na verdade nunca as teve muito firmes”, ensina o professor espanhol José Luiz Fernández, palestrante principal do Simpósio Catarinense de Bioética 2017, em entrevista exclusiva à página 40.
4 Sobre transumanismo 6 Conquistas que marcaram 2017 8 Quando a velhice chega 12 A base da ética nos negócios 21 Mulheres abrem espaço na ciência 26 Um distúrbio que vem à noite 28 A saúde do brincar 34 Diálogos e reflexões 40 Entrevista: José Luiz Fernández 48 O espaço da SBB/SC
Nossa palavra
Transumanismo: uma utopia? Carlos José Serapião
Coordenador do Instituto Dona Helena de Ensino e Pesquisa (IDHEP)
A
máquina, a mecanização, a informática e a robótica se inserem em nosso dia a dia, invadindo todas as nossas ações e, pouco a pouco, substituindo os humanos. O mundo se modifica a olhos vistos, no que se refere aos valores e às certezas, num momento em que deveríamos ter respostas adequadas para as questões éticas, políticas, filosóficas, econômicas, religiosas e sociais que demandam nosso julgamento. A tão anunciada fusão com a tecnologia levará a uma transformação profunda na evolução, a qual parece inevitável. A questão é saber se, no futuro, o humano, tal como o conhecemos hoje, não se transformará num artefato distante daquele ser naturalmente criado. Após tanto tempo, o que sabemos é que nossa própria condição está em permanente e contínua evolução e busca ampliar seu bem-estar, sua longevidade, sua saúde, seus conhecimentos, de todas as maneiras. No ritmo atual, essas modificações causam inquietação: a biologia influenciando a tecnologia, e vice-versa, robotizando os humanos e os robôs se humanizando, em perspectivas inimagináveis e assustadoras. Estamos prestes a nos aprimorar, fazendo “evoluir” a espécie
humana, aumentando suas capacidades de percepção, cognição, reflexão, performance, perfeição, transformando-nos em transumanos ou aceitando a existência de uma pós-humanidade. Melhorar, sofrer menos, envelhecer menos, morrer mais tarde, não são pensamentos condenáveis em si mesmos; é preciso, no entanto, saber impor limites, os quais ignoramos, capazes de controlar tal “evolução”. A história mostra que o humano não resiste por muito tempo às novidades e modismos, mesmo quando estes representam um perigo, e que a pressão social de “fazer como os outros fazem” leva à adesão de grande número de adeptos. A atração suscitada pelas novas tecnologias não será exceção, de modo que as utopias transumanistas estarão permeando os sistemas sociais, nos quais dominará o efêmero, o virtual, a máquina, a técnica. Então aquilo que parece impossível só o será até o momento em que se torne realidade. Frente a essa situação inquietante, parece-nos forçoso viver “em trânsito” na nossa migração do humano para o transumano. Mais uma vez, convidamos os leitores a nos acompanhar nas reflexões que se fazem imprescindíveis para aqueles que, desconfiando da pilotagem automática da cibernética programada para tudo, ainda insistem em saber para onde queremos ir.
Divulgação
Institucional
Conquistas do HDH
Em 2017, a trajetória do Hospital Dona Helena marcou importantes reconhecimentos. Em março, o hospital foi reacreditado pela Joint Commission International (JCI), e, em junho, recebeu a recertificação da ISO 9001. De acordo com Caio Tavares, coordenador do Comitê de Qualidade e Segurança, com o crescimento na área da saúde, os hospitais necessitam de aparatos para torná-los mais competitivos. Para Caio, essas certificações reforçam a preocupação com os pacientes: “Os dois processos acarretam consequências importantes para os pacientes, para os profissionais e para nós, enquanto prestadores de serviços. Hoje, somos referência na região”. Com validade de três anos, a certificação da ISO 9001 é a norma adotada pelo HDH para garantir a eficiência do sistema de gestão da qualidade. “A ISO consiste em um conjunto de normas de padronização que uma empresa deve seguir para ter um sistema eficaz e robusto, permitindo a melhora da qualidade de seus produtos e serviços”, explica. Outra ferramenta para melhorar a qualidade dos serviços é a acreditação da Joint Commission International (JCI), que tem como um dos objetivos proporcionar um ambiente livre de riscos para todos aqueles que circulam no hospital: “Ao obter o selo da JCI, nos tornamos referência na área, garantindo uma excelente imagem junto à opinião pública e favorecendo a confiança da comunidade, fatores estimulantes para o crescimento e aceitação”.
Ecoendoscopia chega a Joinville O Hospital Dona Helena já oferece à comunidade o exame de ecoendoscopia. Também conhecido como ultrassonografia endoscópica, o procedimento é utilizado para avaliação dos órgãos digestivos, semelhante à endoscopia digestiva. De acordo com o médico Eduardo Aimoré Bonin, a ecoendoscopia alcança mais lugares e permite mais funções do que a endoscopia digestiva. “Em alguns casos, como drenagem de cistos e biópsias, é possível evitar a cirurgia”, explica. Com o aparelho, obter imagens em tempo real e em alta definição é viável. De acordo com Bonin, pode-se utilizar o exame em casos de câncer no aparelho digestivo e para tratar doenças benignas, como cálculo, pedra na vesícula e pancreatite.
Núcleo de Segurança do Paciente intensifica ações Desde 2016, o Hospital Dona Helena conta com o Núcleo de Segurança do Paciente, seguindo a resolução RDC Nº 36, do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Caio Tavares, coordenador do Comitê de Qualidade e Segurança (CQS), explica: “Como somos acreditados pela Joint Commission International (JCI) e certificados pela ISO 9001, estávamos um passo à frente. Agora, estamos reciclando o núcleo, conforme as orientações do ministério. Nossa principal função é minimizar os riscos durante o atendimento e realizar a notificação de eventos perante a Anvisa”. De acordo com Osmarina Borgmann, gerente de risco do hospital e integrante do CQS, o foco das ações será a prevenção, aliada às metas de segurança do paciente da JCI: identificar os pacientes corretamente; melhorar a comunicação efetiva e a segurança de medicamentos de alta vigilância; assegurar cirurgias com local de intervenção, procedimento e paciente corretos; reduzir o risco de infecções associadas aos cuidados de saúde e reduzir o risco de quedas. Em agosto, a equipe iniciou a abordagem ligada ao atendimento dos pacientes.
2º Encontro Catarinense de Enfermagem Em junho, o Hospital Dona Helena promoveu o 2° Encontro Catarinense de Enfermagem, que teve como eixo o tema “Elos Assistenciais”. Segundo a gerente de enfermagem Ana Brito, o evento, realizado na Expoville, buscou disseminar os conhecimentos vivenciados diariamente na assistência ao paciente, contribuindo para a formação de novos profissionais. Foram dois dias de palestras, com Sérgio Luz, coordenador da Comissão Nacional da Qualidade do Cofen, Milton Caldeira, coordenador médico da UTI para adultos do Dona Helena, Jurandir Coan Turrazi, coordenador do Serviço de Anestesiologia de Joinville, e Fabrizio Rosso, administrador hospitalar e mestre em RH.
Hospital amplia o Centro Clínico Para estender o atendimento e oferecer novos serviços, o Hospital Dona Helena amplia as instalações do Centro Clínico. A médica Patrícia Chaves, diretora clínica do HDH, ressalta que o objetivo é criar um espaço diferenciado: “O paciente busca praticidade e prefere ter todos os serviços em um só lugar. Queremos que as pessoas venham para cá sabendo que vão encontrar os especialistas que pre-
cisam, com um atendimento mais amplo, desde consultas e preventivos até cirurgias”. Segundo a diretora clínica, as novas instalações serão divididas em dois andares. O sétimo andar do Centro Clínico terá metade da área ocupada por consultórios. Os pacientes poderão fazer consultas e exames no mesmo local. “Temos um sistema integrado. Os médicos dos ambulatórios acessam os prontuários eletrônicos dos pacientes, onde constam os históricos com as principais patologias, resultados de exames de laboratório e imagem”, detalha Patrícia.
Viver
Quando a velhice chega
O
s veículos de comunicação de Joinville noticiaram, em julho deste ano, mais um caso de abandono de idoso. Uma senhora de 70 anos foi encontrada pela polícia sozinha e desorientada, sobre uma cama, em condições de absoluta falta de higiene, sem água e sem comida. É uma questão social emergente. Em 10 anos, entre 2005 e 2015, a proporção de brasileiros com mais de 60 anos passou de 9,8% para 14,3%, crescendo em velocidade superior à média mundial. Os dados foram divulgados no final de 2016, pela pesquisa Síntese de Indicadores Sociais, realizada pelo IBGE. O estudo demonstra que o país está envelhecendo, o que aponta para uma questão delicada: estamos preparados para cuidar adequadamente da população idosa? Para Ana Fraiman, mestre em psicologia social pela Universidade de São Paulo (USP), em nossa sociedade, o envelhecimento é mal visto. “Por enquanto, não traz votos, por mais que as imagens que se projetem sejam positivas e se incentive o sonho de se viver bastante e com qualidade. Quantas prefeituras têm desenhado suas cidades pensando em envelhecimento sustentável? As aposentadorias minguam. As pensões nem de longe garantem uma vida decente”, analisa. A especialista acentua que sofremos de ageísmo – preconceito generalizado e arraigado contra os idosos. Por isso, é preciso um trabalho constante que permita quebrar esses paradigmas de severas discriminações. “Quando chegam à terceira
“Quantas prefeituras desenham suas cidades pensando no envelhecimento sustentável?” Ana Fraiman, mestre em psicologia social pela USP
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idade, as pessoas não dispõem dos mesmos direitos que conquistaram na vida adulta. Há limites para vários benefícios, como planos de saúde, empréstimos e negociações”, assinala. Adriana Tormen Branco, coordenadora do Centro de Convivência de Idosos da Associação Beneficente de Joinville
Especialistas alertam que muitas famílias não têm consciência da realidade vivida por seus idosos: “culto à individualidade” é problema social
(Abej), lembra que os idosos são pessoas que já contribuíram muito para a sociedade, mas enfrentam dificuldades para ter reconhecido seu valor como seres humanos e seus direitos. “Embora haja leis que os protegem, faltam medidas para que sejam atendidas de forma integral”, ressalta. Especialista em gerontologia, Adriana sublinha que os idosos são as memórias que temos do passado, a “voz da experiência”, e podem orientar os mais novos, transmitindo a sabe-
doria adquirida durante a vida. De outra parte, o envelhecimento da sociedade, somado à rotina agitada que marca os dias atuais, leva a outro problema: quem está disponível para cuidar dos idosos? “Essas pessoas tanto contribuíram para nossa existência e hoje ocupam a posição dos menos importantes. São abandonados por suas famílias, não são mais prioridade”, lamenta Adriana. Para Ana Fraiman, muitas famílias sequer têm consciência da realidade dos seus idosos. Parecem acreditar que, sozinhos, eles estão bem, o que nem sempre procede. “O culto à individualidade está cada vez maior. Preenchemos nossas rotinas com atividades, conhecimentos, relacionamentos e obrigações. Confundimos importância com valor e delegamos aos terceiros a vivência sentimental”, adverte. Adriana Branco sustenta que idosos que não recebem visita ou apoio da família tendem a intensificar os problemas de saúde ou desenvolver doenças físicas e mentais. Além disso, a falta do acompanhamento familiar afeta a convivência dos idosos com os colegas, fazendo com que se afastem das atividades em grupo. Já o isolamento pode conduzir à falta de apetite, depressão, baixa autoestima, dentre vários pontos que prejudicam o estado emocional e, consequentemente, a saúde física. “O afastamento das famílias acrescenta mais dureza e crueza à análise do que é importante para nós e pelo que vamos lutar para viver. Se nos sentimos desprestigiados e, mesmo desprezados, vamos acreditar que não somos merecedores de uma boa vida. As doenças vêm entorpecer a consciência de tamanha solidão”, analisa Ana Fraiman.
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Adriana entende que ainda temos oportunidade de preparar um mundo mais acolhedor, respeitoso e humano para os velhos do futuro próximo – que seremos nós. “Vivemos os últimos momentos de uma geração em que os filhos, bem ou mal, sentem a obrigação de cuidar dos pais e são socialmente cobrados para isso. Então, valorize seu idoso, respeite, dê atenção e carinho pois, num piscar de olhos, este idoso será você”, sublinha a coordenadora da Abej.
A vida nos lares de idosos Um espaço que vai se reconfigurando no Brasil são as instituições de longa permanência para idosos, voltadas ao acolhimento de pessoas da terceira idade, com moradia e atendimento. Em Joinville, o Lar Betânia é uma delas. Fundada em 2003 pela Igreja Católica, a instituição atende 47 idosos. De acordo com a Irmã Cirlei Frigo, coordenadora do lar, poucos vêm conhecer o local antes de morar. A maioria é trazida pelos filhos, porque estão morando sozinhos e a família alega não ter condições de cuidar. Do total de vagas, 21 são destinadas a um convênio com a prefeitura de Join ville, para acolher idosos abandonados, moradores de rua ou aqueles que são vítimas de violência em casa. “Esses não vêm por vontade própria e, muitas vezes, têm as visitas proibidas pela Justiça. Aqui dentro, vão formando uma nova família, fazendo amigos e reestruturando laços emocionais”, relata a Irmã. Atualmente, o Lar Betânia conta com cinco idosos nesse perfil, que não recebem visita alguma. Para Cirlei, tal situação cria um obstáculo adicional, pois a pessoa
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demora a se socializar e se integrar ao grupo. A faixa etária dos moradores do Lar Betânia é de 65 a 96 anos. Os 36 funcionários e as quatro Irmãs da Congregação das Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus cuidam para que os moradores recebam assistência 24 horas e realizem atividades constantes, como fisioterapia, psicologia, assistência social, terapia ocupacional, além das ações com voluntários. “A sociedade não está preparada para receber idosos. Joinville tem uma cultura mais aberta. Há pouco tempo, deixamos de usar a palavra asilo, substituída pela ideia de lar. Isso ajuda a conscientizar os familiares e os próprios idosos de que eles estão em um lugar bom”, afirma Cirlei.
“É preciso ter uma velhice digna, mas faltam investimentos na área social e na saúde” Cristiane Gilgen, especialista em gerontologia
Atenção especial ao idoso envolve saúde física e emocional
O Ancianato Bethesda é outra instituição tradicional de longa permanência para idosos em Joinville. Fundada em 1934, a entidade sem fins lucrativos surgiu com foco no atendimento à terceira idade e o prédio foi especialmente
projetado para os idosos. A instituição conta com 100 moradores, pouco mais de 70 funcionários e um número significativo de voluntários. Cristiane Gilgen, especialista em gerontologia e supervisora de serviços, explica que, antes de ingressar como moradores, os interessados passam por uma avaliação com equipe multidisciplinar. “Nosso objetivo é que o idoso queira morar conosco, conscientize-se de que este é um local que vai fazer bem, tanto para a saúde física quanto emocional”, observa. Além das atividades constantes, o Bethesda conta com o apoio das famílias, que precisam estar envolvidas com as visitas e as reuniões semestrais. “O abandono da família complica tudo. Eles ficam isolados, negativos e acabam não se integrando”, avalia Regina Krause, diretora do ancianato há 43 anos. Familiares e amigos próximos têm acesso 24 horas à entidade. Além disso, durante a semana, os períodos da manhã e da tarde estão abertos à visitação. “Todos recebem visitas. Acompanhamos isso de perto com nossa assistente social. Se ocorrem faltas constantes, acionamos o Ministério Público. É preciso manter os laços com a família”, pontua Cristiane. A partir dos 60 anos, é possível optar por residir no Bethesda. A moradora mais idosa completará 104 anos em 2017. Quando resolvem ir para o ancianato, os idosos recebem o apartamento vazio, para que tenham liberdade de trazer suas coisas, adaptando-o e decorando-o da melhor forma possível. Na visão de Cristiane, a sociedade não está se preparando para o envelhecimento. É cada vez mais comum pessoas que se aposentam e não sabem o que fazer. “Estamos carentes nessa área. Eles acabam se aposentando para a vida. É preciso ter uma velhice com dignidade, mas para isso faltam muitos investimentos na área social e principalmente da saúde”, ressalta. A diretora Regina Krause afirma que não há receita para um bom envelhecimento. O segredo é viver bem ao longo de todas as fases da existência, já que a terceira idade será reflexo do que se passou até então. “Aqui, trabalhamos constantemente, tanto com os familiares quanto com os funcionários, para que eles também se preparem e compreendam a importância desse período da vida”, destaca. Para Cristiane, é de extrema importância que os idosos sejam vistos e contemplados como seres holísticos, complexos, ativos e participativos, e não excluídos da sociedade, tendo independência nas escolhas e socializando com vários grupos por meio de atividades intergeracionais. Chegar a esse patamar é um desafio e tanto para a sociedade.
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FOTOS: FOTOS PÚBLICAS.COM
Negócios
O alicerce da ética
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etrobras é o segundo maior escândalo de corrupção do mundo. JBS supera Odebrecht e vai pagar maior multa da história por corrupção. Investigada na Lava-Jato, OAS entra com pedido de recuperação judicial. Executivo é condenado por fraude. Quatro entre centenas, talvez milhares, de notícias publicadas pela imprensa nos últimos tempos – mais precisamente, desde março de 2014, quando eclodiu o esquema de desvio e lavagem de dinheiro nos escaninhos da estatal brasileira do petróleo. Não foi, naturalmente, o primeiro caso de malversação de recursos no mundo corporativo, e nas conexões deste com o universo político, mas o chamado Petrolão marca o ápice de uma onda que, se expõe as fragilidades éticas dos conglomerados econômicos, pode representar, também, o início de sua depuração. Que lição tirar de tudo isso? “Não há negócios bem-sucedidos em uma sociedade que não esteja alicerçada em valores que preservem o bem-comum”, responde o presidente da
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Federação das Indústrias de Santa Catarina (Fiesc), Glauco José Côrte. “Uma empresa não deve ser uma mercadoria, um objeto, de que o proprietário ou acionista pode dispor livremente. Precisa ser uma corporação de pessoas unidas por uma tarefa e um objetivo comuns, que beneficie toda a sociedade”, ensina José Luis Fernández Fernández, doutor em filosofia, diretor e professor do Departamento de Ética Econômica e Empresarial da Universidade Pontifícia de Comillas, na Espanha, que estará no Simpósio Catarinense de Bioética deste ano para uma abordagem sobre o tema. (Leia entrevista na página 40) A consultoria ICTS, especializada em gestão de riscos, foi apurar o perfil dos profissionais atuantes em empresas de ponta, baseado no princípio de que deles depende a adoção de uma prática ética que se consolide nessas organizações. “Entender e influenciar o posicionamento ético dos profissionais é fator preponderante para a gestão estratégica de pessoas”, sustenta a
FOTOS PÚBLICAS /LULA MARQUES
ICTS no relatório da segunda edição de sua pesquisa, que já na abertura não doura a pílula ao afirmar: “Corrupção, fraudes, desvios e má conduta são problemas graves que, cada vez mais, fazem parte da realidade empresarial brasileira”. O levantamento da ICTS envolveu 8.718 participantes de 121 empresas e, em síntese, buscou parâmetros para aferir o nível de aderência à cultura ética organizacional. Os resultados demonstram que, no dia a dia, muita gente ainda faz vista grossa quando depara com irregularidades. Ao ser perguntados sobre como a empresa em que trabalham lida com denúncias, metade dos entrevistados relativizou – “depende das circunstâncias” –, enquanto 40% revelaram que, sim, tais processos vão adiante, ao passo que 12% preferem ficar calados, alegando lealdade aos chefes, medo de represálias ou um simples “não vou ser dedo duro”. Frente a erros cometidos por funcionários, os números são parecidos: 39% dos líderes reportam,
Ações da Polícia Federal em empresas que até então cultivavam imagem de credibilidade vêm se tornando constantes no noticiário: epicentro da crise envolve negócios mal explicados e favorecimentos, contaminando o mundo político
51% voltam ao “depende das circunstâncias” e 10% confessam se omitir. Na análise desse quesito, o ICTS identifica complacência com colegas, falta de percepção de gravidade e impacto, além de corporativismo, como razões para as atitudes registradas. Mais: na visão de 39% dos participantes, a alta gestão não estabelece metas e processos que possam ser atingidos ou cumpridos pelas equipes – aberta a guarda para atalhos ilícitos. Para 56%, as empresas não são claras quanto ao uso de seus recursos e ativos por empregados, algo que se traduz em um ambiente permissivo a furtos. Ao mesmo tempo, 48% não consideram rigoro-
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Econômica”, de Maria Cecília Coutinho de Arruda. Há casos anteriores, ainda da década de 1940, com a pioneira Escola Superior de Administração de Negócios (Esan), de São Paulo, mas é só em 1992 que o Ministério da Educação vem orientar as instituições superiores ligadas à temática a incorporar a ética aos seus currículos. Outro polo apontado pelo livro é a criação do Centro de Estudos de Ética nos Negócios, da Fundação Getulio Vargas (Cene/FGV), também em 1992, na mesma capital paulista. Dali em diante, o processo ganha corpo e, ao menos como objeto de estudo, evolui como nunca. Um bom sinal disso é o papel desempenhado pelos chamados códigos de ética. Nas palavras do Instituto Brasileiro de Ética nos Negócios, o documento representa “o conjunto de direitos, deveres e responsabilidades empresariais, refletindo a cultura, os princípios e os valores, a atuação socioambiental e as normas de Para Thomazi, o “lado positivo da crise” é fortalecer o sentido da ética, da transparência e da honestidade sos os sistemas de concorrência e contratação, um subterfúgio a subornos como estratagema para favorecer interessados. Entre outros apontamentos da pesquisa, um dado é particularmente alarmante: 82% dos participantes na faixa até 24 anos tendem a compactuar com irregularidades no trabalho. “Os jovens se destacaram em grande parte dos dilemas éticos apresentados”, diagnostica o relatório da ICTS, ao defender que as empresas reforcem investimentos na área de gestão de pessoas – com mecanismos para o desenvolvimento de lideranças, medidas disciplinares, políticas internas, programas de treinamentos e canais eficazes para denunciar desvios – como saídas para revitalizar o ambiente ético. “Ética se aprende”, é o que enfatiza a consultoria. Tanto se aprende que, ali pela chegada do século 20, espalhava-se como disciplina nas faculdades de administração e economia, inicialmente nos principais centros do país, conforme assinala o livro “Fundamentos de Ética Empresarial e
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“Um primeiro passo para a construção de um sistema que privilegie a justiça, o bom senso e a correção” Moacir Thomazi, presidente da Acij, sobre o Código de Ética da entidade, lançado em 2015
conduta para dirigentes, executivos e colaboradores, bem como para as empresas integrantes da cadeia produtiva, mediante os quais atuam as premissas que enriquecem os processos decisórios e orientam seu comportamento”. O código é visto como uma espécie de bússola para as organizações agirem tendo por norte a responsabilidade social e a busca da sustentabilidade – claro, à medida que não se restrinja a uma peça de marketing, com discurso e prática em sintonia. “Ainda há um gigantesco abismo entre o que muitas empresas pensam e pregam e seu modo de agir e realizar”, lamenta o instituto, para quem essa é uma “cultura suicida”. Levantamento de 2014 indicava que 36% das maiores empresas em atuação no país adotavam e divulgavam o código de ética. A Fiesc lança, neste semestre, a nova versão do seu próprio código, atualizado e ampliado. O documento descreve os 24 princípios da entidade no relacionamento com os públicos que a rodeiam: comprometimento, cooperação, eficiência, ética, fidelidade, impessoalidade, iniciativa, transparência, integridade e coerência entre discurso e prática, entre outros tópicos. “O código de ética é um instrumento de realização da visão e missão das empresas, que orienta suas ações e explica sua postura social”, define o presidente Glauco Côrte. Para que a iniciativa se legitime, o dirigente ressalta a importância de ser precedida de um processo participativo com os funcionários e do envolvimento efetivo das lideranças, ao lado de um trabalho intensivo de divulgação posterior para a disseminação das condutas prescritas, “possibi-
Especialistas defendem que o momento atual venha a representar uma “virada de mesa” na esfera dos valores
litando que o documento seja, de fato, um mecanismo de consulta e orientação”. Já a Associação Empresarial de Joinville (Acij) deu forma à primeira versão do seu código em 2015. No texto, contextualiza a medida como “um primeiro passo para a construção de um sistema que privilegie a justiça, o bom senso e a correção, com base em pilares fundamentais em nosso ambiente, que são o associativismo, a representatividade e o voluntariado”. Segundo o presidente da entidade, Moacir Thomazi, “o sistema de ética contribui para o debate e a compreensão de regras e atitudes necessárias nas organizações”. Porém, ele ressalva, “mais importante que o documento é a postura, o caráter, a firmeza nas condutas”. Especialista em estratégias empresariais e gestão financeira, com longa carreira executiva, o economista João Ran-
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Petrobras foi um dos primeiros focos de escândalos, que levaram o povo às ruas em protestos
dolfo Pontes, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), vai na mesma linha ao sublinhar que não basta ter “códigos publicados em mídias coloridas” se seus fundamentos e premissas não são “respeitados fielmente”. No contexto da mais recente safra de escândalos político-econômicos, o professor defende uma “virada de mesa” que englobe a estrutura de desenvolvimento do país e conduza dirigentes de empresas públicas e privadas a “uma transformação e aprendizado do que significa conduzir negócios com rigor ético”. Algo que, segundo ele, só se consumará a longo prazo: “É preciso rever toda a estrutura política, tributária e jurídica, com base em padrões de solidariedade e qualidade”. Em que pesem os desvios que tomaram conta do noticiário nacional, o presidente da Fiesc faz questão de enfatizar que a opção por práticas corruptas para levar vantagem sobre concorrentes não representa a maioria do empresariado brasileiro. “E essas atitudes devem mesmo ser denunciadas, para que as empresas éticas cumpram com integridade seu papel no cenário econômico e social”, reitera Glauco Côrte. “As investigações em curso representam avanço, e aqueles que cometeram atos ilícitos devem ser responsabilizados para que possamos neutralizar os espaços para a ilegalidade e promover padrões éticos.” Thomazi, da Acij, concorda que há um lado positivo na crise atual: “Esses maus exemplos fortalecem o sentido da ética e os valores de transparência, honestidade, respeito à coisa pública. O que muda é que, além de continuar a ser corretos, precisamos evidenciar isso para nossos pares, equipes, clientes e fornecedores”. A gestão da ética nos negócios e relações de trabalho é, em síntese, um pilar
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“Práticas corruptas devem ser denunciadas para que empresas éticas cumpram com integridade seu papel” Glauco Côrte, presidente da Fiesc
para a própria existência de uma empresa. “Instituições que pretendem ter vida longa necessitam estabelecer relações éticas com todos os públicos”, prega, em artigo, o mestre em Administração Pública Rodolfo Maciel Dourado, advertindo que, nesse terreno, a menor das infrações tende a provocar impacto gravíssimo na reputação de uma companhia, desmanchando de uma hora para outra o que possa ter sido construído ao longo do tempo. Ele lista ao menos seis vantagens das empresas éticas: (1) cultivam rela-
Em agosto de 2013, ano de convulsão popular, o governo editou a Lei 12.846, que regulamentou a responsabilidade civil objetiva das empresas pelos atos de corrupção praticados em seu favor. Foi, também, uma resposta à pressão externa que ganhava corpo.
CONHECE-TE A TI MESMO Com o objetivo de entender de que forma o empresariado brasileiro estava preparado para a nova realidade, a ICTS/ Protiviti, empresa global de consultoria e serviços em gestão de riscos de negócios, ética e inteligência empresarial, proteção de informações sensíveis e proteção executiva integrada, realizou pesquisa no Brasil, em 2013 (antes, portanto, da Operação Lava-Jato), sobre a gestão da anticorrupção. Os resultados das entrevistas com os 66 executivos das maiores empresas em atuação no Brasil estão abaixo. Valores em % • Mais de 3/4 dos entrevistados acreditavam que a Lei Anticorrupção seria cumprida NÃO
SIM
23,1
76,9
• Para os entrevistados, as atividades essenciais para um sistema de gestão – que garanta a conformidade regulatória e reduza os riscos advindos da má conduta intencional ou acidental – foram: O uso de um canal de denúncias (Hotline)
• Pouco mais da metade dos entrevistados possuíam nas empresas algum sistema ou política anticorrupção 46,9
NÃO
SIM
A publicação de um código de conduta ética
53,1
• O conhecimento dos riscos advindos da relação com terceiros era desconhecido para boa parte do universo pesquisado 39
NÃO
SIM
A realização de treinamentos e o uso de outras ferramentas de conscientização
61
• Os entrevistados foram questionados sobre o modelo de governança instituído para os temas de Compliance e Ética nas suas respectivas organizações e sobre a opinião quanto ao formato ideal Outros
6,20%
Due Diligence de terceiros
20%
Política anticorrupção
30,80%
ções estáveis e lucrativas com seus clientes, (2) criam um ambiente de trabalho estável e produtivo, (3) tornam positivas as experiências de compra ou venda nas transações comerciais, (4) aumentam a confiança e reciprocidade com seu entorno, (5) reduzem problemas de furtos, sabotagem, discriminações e depredação das instala-
Monitoramento contínuo
32,30%
Treinamentos e conscientização
64,60%
Código de conduta Ética
72,30%
Canal de denúncias
75,40%
ções, (6) minimizam riscos de escândalos que destroem carreiras e companhias. Atuante na área de práticas empresariais éticas, o Instituto Etisphere replica o conceito em números e assevera que valor financeiro e ética estão “inexoravelmente ligados entre si”, o que se comprovaria pela alta no preço das ações experimentada pelas companhias apresentadas pela consultoria, em ranking anual, como as mais éticas do mundo. Ou seja: se não for por outra razão, ser ético é, sem dúvida, um bom negócio.
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“Depois do escândalo, as empresas se voltam para estratégias positivas, visando mudar padrões de conduta” João Randolfo Pontes, professor da UFSC
“Transformações só em 50 anos” O economista João Randolfo Pontes, professor da UFSC, afirma que a busca da chamada “sociedade de bem-estar para todos” depende da multiplicação do senso ético.
A crise política evidencia um grave problema ético no meio corporativo, dado que boa parte dos casos em investigação tem conexões em empresas. Com tantos maus exemplos, como manter a ética na condução dos negócios? Em negócios, não pode haver amadores ou políticos envolvidos. A ideia de criar, inovar e desenvolver estratégias exige profissionais especializados, o que não vem ocorrendo nos negócios em que o Estado brasileiro chama para si a responsabilidade. Se dirigentes e políticos adotassem uma postura centrada nos fundamentais da ética, as questões da sustentabilidade econômica,
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social, tecnológica e ambiental estariam equacionadas. Ética nos negócios significa adotar premissas voltadas para a felicidade humana. A ideia de uma sociedade de bem-estar para todos só será implementada quando a ética pulverizar amplamente os níveis de gerenciamento das atividades globais. Não se prevê um período menor do que 50 anos para ocorrerem grandes transformações no desequilíbrio que verificamos da estrutura social brasileira.
Algumas empresas que tiveram sua imagem afetada pelos escândalos recentes vieram a público pedir desculpas. Isso é apenas marketing, na tentativa de retomar clientes, ou indica uma mudança de postura? Todo desastre promovido por condutas escusas, incoerentes e pautadas na falta de ética causa enormes estragos. Depois do escândalo e perda de credibilidade, as organizações se voltam para estratégias positivas visando mudar os padrões de conduta e a visão de seus clientes. É válido, mas as respostas positivas devem ocorrer no longo prazo. O caso da Odebrecht – que divulga um “compromisso com futuro”, em ter atuação ética, íntegra e transparente – não deixa de ser fundamental para sua sustentabilidade. Porém, não basta reconhecer o erro. É preciso ter ações práticas e inovadoras, oferecer produtos e serviços com qualidade, implementar atividades em benefício da população de forma verdadeira. Os recursos obtidos com a elevação dos custos das obras, parte deles sob a forma de propina, são assustadores. Empresas envolvidas nessa crise devem se despir do patamar em que se encontram e estabelecer um plano estratégico real, em favor da comunidade. Fazer reformas em hospitais e escolas, melhorar as comunidades em termos de saneamento básico, alocar parte de seus recursos humanos para ajudar no processo de educação, reconstruir e melhorar as praças públicas, apoiar e fomentar projetos de educação e cultura visando gerar oportunidades para crianças, jovens e adultos nas comunidades carentes.
EVOLUÇÃO DA ÉTICA EMPRESARIAL Até a metade do século 20, ética nos negócios era expressão incomum: a atividade empresarial estava associada somente à eficácia dos processos e aos resultados financeiros. A postura ética dos empresários e dos colaboradores era condição implícita, vinculada à formação do indivíduo 1960 • Em países de origem alemã, o trabalhador é elevado à condição de participante dos conselhos de administração das organizações 1960/1970 • Por iniciativa de filósofos, o ensino da ética toma impulso em faculdades de Administração e Negócios, principalmente nos Estados Unidos. Surge uma nova dimensão: a ética empresarial 1970 • Também nos EUA, o professor Raymond Baumhart realiza a primeira pesquisa sobre ética nos negócios envolvendo empresários. À época, ética nos negócios se limita a condutas pessoais e profissionais • No mesmo período, ocorre a expansão das multinacionais norte-americanas e europeias, com a abertura de subsidiárias em todos os continentes. Nos países em que passam a operar, choques culturais e outras formas de fazer negócios conflitavam, por vezes, com os padrões de ética das matrizes, o que incentivou a criação de códigos de ética corporativos 1980 • Nos EUA e na Europa, esforços isolados, principalmente de professores universitários, que se dedicaram ao ensino da ética nos negócios em faculdades de
Administração e em programas de MBA. • Lançada a primeira revista científica específica na área de administração: Journal of Business Ethics 1980/1990 • Formadas redes acadêmicas no campo da ética corporativa: a “Society for Business Ethics”, nos EUA, e a “European Business Ethics Network”, na Europa, originando revistas especializadas • Reuniões anuais dessas associações permitiram avançar no estudo da ética, tanto conceitualmente quanto em sua aplicação às empresas • Amplia-se o escopo da ética empresarial, universalizando o conceito • Primeira pesquisa em âmbito global, apresentada no Japão, em 1996. A rica contribuição de todos os continentes, regiões ou países, dá origem a publicações esclarecedoras, informativas e de profundidade científica Fim do milênio • Criam-se as ONGs, que desempenham importante papel no desenvolvimento econômico, social e cultural de muitos países • Novo viés da “boa empresa”, não apenas a que apresenta lucro, mas a que também oferece um ambiente moralmente gratificante, em que as pessoas boas podem desenvolver seus
conhecimentos especializados e suas virtudes Anos 2000/2010 • Alta administração e colaboradores nas corporações passam a identificar os valores e a missão das empresas como requisitos para demonstrar a seriedade de propósitos e a transparência na gestão • Reação se intensifica quando se avolumam as notícias de atos de corrupção e fraude praticados por altos executivos, abalando a reputação de conglomerados globais • Só depois da maré de ilegalidades no ambiente corporativo é que se chega à conclusão de que era necessária uma transformação profunda na cultura das empresas, voltada para a gestão dos comportamentos éticos, para que se pudesse afastar a desconfiança • A disseminação dos valores éticos nas organizações tem sido feita por meio de programas de compliance que abrangem desde a edição de códigos de conduta e de políticas internas até a criação de comitês de ética, passando pela instalação de canais de comunicação e denúncia, treinamentos periódicos, investigações para apuração de denúncias e informação das medidas de disciplina
FONTES: “FUNDAMENTOS DE ÉTICA EMPRESARIAL E ECONÔMICA”, DE MARIA CECÍLIA COUTINHO DE ARRUDA E OUTROS, E PORTAL FNQ – FUNDAÇÃO NACIONAL DA QUALIDADE
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CiĂŞncia
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O espaço das mulheres
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ildegard de Bingen, Maria Gaetana Agnesi, Ada Lovelace, Elizabeth Arden, Marie Cure, Florence Sabin, Virginia Apgar, Nise da Silveira, Gertrude Bell Elion, Johanna Dobereiner. Você conhece algum desses nomes? Embora não tão celebradas quanto seus colegas homens, todas elas participaram da construção do pensamento científico em diversas áreas, com uma contribuição expressiva para o saber atual. Dentre os casos de cientistas que sofreram imposições de papéis de gênero, talvez o mais interessante seja o da matemática Mileva Maric. Mileva nasceu na Sérvia, em 1875. Dona de inteligência excepcional, foi uma das primeiras mulheres a ingressar no Instituto Politécnico de Zurique, na Suíça, em 1895. No mesmo ano, ninguém menos que Albert Einstein também seria aceito na instituição. Os dois se tornaram parceiros de trabalho e logo se aproximaram. O romance rendeu cartas de amor, três filhos e uma polêmica: quando Einstein publicou a primeira versão da Teoria da Relatividade, o nome de Mileva constava como coautora, mas não apareceria nas versões posteriores. Com base nisso e nas cartas trocadas pelo casal, nas quais Einstein falava da “nossa teoria”, há quem diga que a teoria tão emblemática jamais teria tomado forma sem Mileva. Einstein e Mileva se divorciaram em 1919. Em uma cláusula do acordo, o cientista aceitava repassar para a ex-esposa todo o dinheiro ganho com um possível Prêmio Nobel, o que ocorreu dois anos depois. Apesar de receber o dinheiro, Mileva, que abdicou da carreira pela família, teve seu nome esquecido, em um processo que é lamentado por especialistas nos dias atuais. Para Ligia Moreiras Sena, diretora da plataforma digital “Cientista Que Virou Mãe”, resgatar a história e dar visibilidade às mulheres cientistas é uma forma de incentivar a formação de novas pesquisadoras. “Ao tirar o conhecimento de dentro da universidade, você mostra para as meninas que é possível ser cientista e fazer um bom trabalho. Quando criança, meu sonho era ser engenheira aeronáutica, mas o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) não aceitava mulheres.
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A equipe do projeto Meninas na Ciência, iniciativa do Instituto de Física da UFRGS: diversidade é essencial ao campo científico
Lembro a frustração que senti. Provar para essas meninas que é possível ser o que quiserem é muito importante”, afirma Ligia Sena. Coordenadora do Meninas na Ciência, projeto de extensão do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Carolina Brito ressalta que a diversidade é essencial ao campo científico: “Para identificar os problemas diversos que existem no mundo, é preciso olhares diferentes. Como vamos enxergar e resolver esses
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problemas se a ciência continua sendo produzida majoritariamente por homens brancos?”. A progressão da mulher na ciência é emperrada, dentre outros fatores, pelo estereótipo de gênero. Bombardeadas desde cedo com a falsa ideia de que existem tarefas típicas para meninas, e que lhes falta “aptidão” para atuar na área, elas tendem a evitar carreiras afins. “É preciso mudar a forma de pensar e reconhecer os estereótipos de gênero que ocorrem desde cedo. Isso impacta as escolhas profissionais e cria obstáculos para o crescimento das mulheres. É um problema de todas e todos”, reitera Carolina. Um dos aliados na luta pela visibilidade e direito das mulheres é o movimento feminista, não apenas na ciência, mas em qualquer outra área. Nas ruas, instituições, universidades e, principalmente, na internet, grupos de variadas vertentes constroem, discutem, ampliam e promovem ações. “No Brasil, a ciência é produtivista. E não adianta fazer uma pesquisa de relevância social se você não tem um número determinado de artigos publicados em periódicos. As mulheres têm menos condições estruturais de produzir, pois é nelas que recai uma sobrecarga maior. O feminismo levanta bandeiras para contemplar as necessidades das mulheres mães. O movimento também as tem levado a escrever sobre suas realidades, mostrando como a educação deve contemplar questões de gênero e representatividade”, aponta Ligia Sena.
No âmbito acadêmico
“Temos que estar em todos os espaços de maneira igual” Maria Eduarda Iankoski, estudante de Jornalismo Segundo dados do IBGE, as mulheres estão entre os brasileiros mais escolarizados e constituem a maioria – 57% – dos estudantes do ensino superior brasileiro na graduação e pós-graduação. Apesar do crescimento da presença feminina em campos de conhecimento com predomínio histórico de homens, elas seguem concentradas em cursos de pedagogia, letras e enfermagem. “Ainda existe um ‘muro de vidro’, diversas carreiras que não são tidas como espaços femininos. A ciência, uma área muito masculina, exige a diversidade de gênero, de cor e de localidades geográficas distintas”, frisa Carolina.
Imagine receber semanalmente pesquisas de mulheres de Joinville e região na caixa de entrada do seu e-mail. São mestres e doutoras em diferentes áreas do conhecimento reunidas. Essa é a proposta da “Mulheres de Beauvoir”, newsletter criada pela estudante de jornalismo Maria Eduarda Iankoski. “O primeiro formato que escolhi para o projeto era um banco de dados, mas isso exigiria um conhecimento de programação que não tenho. A newsletter foi escolhida porque é ideal para um público pequeno, que é o meu caso, pois estou falando apenas de mulheres do município”, revela. Além da newsletter, todo o conteúdo é compartilhado no site www.mulheresdebeauvoir.wordpress.com. De acordo com a acadêmica, a escritora e filósofa Simone de Beauvoir foi escolhida para intitular o trabalho por ser uma das primeiras mulheres cientistas a ganhar notoriedade: “Muitas tiveram reconhecimento, longo tempo depois. A Beauvoir conseguiu mobilizar os movimentos e a academia. Quanto mais a mulher sente que seu trabalho está sendo reconhecido, mais ela quer crescer. Temos que estar em todos os espaços de maneira igual”. Já o “Meninas na Ciência”, da UFRGS, surgiu em 2013, com o desfio de tentar entender as causas da baixa representatividade feminina nos cursos de ciências exatas, engenharias e computação. “Temos como objetivo atrair meninas para seguir carreira nessas áreas e estimular mulheres que já escolheram tais profissões a persistir e se tornar agentes no desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil”, conta Carolina Brito,
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Para inspirar Desde 2006, as cientistas brasileiras são reconhecidas anualmente pelo programa “Para Mulheres na Ciência”. Promovida pela L’Oréal Brasil, em parceria com a Unesco e a Academia Brasileira de Ciências, a ação tem por objetivo transformar o panorama da ciência, favorecendo o equilíbrio dos gêneros e incentivando a entrada de jovens mulheres. A cada ano, sete pesquisadoras são contempladas com bolsa de R$ 50 mil. O prêmio já distribuiu o equivalente a R$ 3,5 milhões entre 75 mulheres. coordenadora da ação. O projeto realiza oficinas de física, astronomia, robótica, entre outros temas, e tem como público-alvo alunas e alunos de escolas públicas em situação de vulnerabilidade social: “Também oferecemos oficinas para professores, que são essenciais para multiplicar o nosso trabalho, já que são eles que estão no dia a dia com os estudantes de ensino médio e fundamental”. Bióloga, doutora em saúde coletiva e ciências, Ligia Moreiras Sena sustenta que é preciso reestruturar as instituições de ensino para que garantam o devido suporte às estudantes. “As escolas não têm apoio para que a estudante que é mãe possa concluir os estudos básicos, por exemplo. Nas universidades, essa falta de estrutura se mantém. O grupo de docentes precisa ser empático às necessidades das mães e o que vemos hoje é o contrário”, frisa a especialista. Ligia é a diretora e criadora do portal “Cientista Que Virou Mãe”. Lançado em 2009, o site surgiu como espaço para publicações de depoimentos sobre gestação e, há dois anos, foi transformado em plataforma independente e colaborativa. “O objetivo é produzir informação de alta qualidade, exclusivamente por mulheres que são mães, sem a influência de patrocinadores industriais e grandes corporações”, esclarece sua idealizadora.
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Hildegard de Bingen Durante a idade média, escreveu livros sobre botânica e medicina. Suas habilidades de médica eram conhecidas e frequentemente confundidas com milagres
Ada Lovelace Creditada como a primeira programadora do mundo por sua pesquisa em motores analíticos, ferramenta que baseou a invenção dos primeiros computadores. Suas observações sobre os motores são os primeiros algoritmos conhecidos
Maria Gaetana Agnesi A matemática espanhola é a autora do primeiro livro de álgebra escrito por uma mulher. Também foi a primeira a ser convidada para ser professora de matemática em uma universidade
Elizabeth Arden Foi ela quem criou as primeiras fórmulas dos produtos de beleza. Formada em enfermagem, começou sua carreira criando cremes para queimaduras em sua própria cozinha, usando leite e gordura. Marie Curie Famosa por sua pesquisa pioneira sobre a radioatividade, pela descoberta dos elementos polônio e rádio e por conseguir isolar isótopos destes elementos. Foi a primeira mulher a ganhar um Nobel
Florence Sabin Estudou os sistemas linfático e imunológico do corpo humano. Tornou-se a primeira mulher a ganhar uma cadeira na Academia Nacional de Ciência dos EUA
Virginia Apgar É ela a criadora da Escala de Apgar, exame que avalia recém-nascidos em seus primeiros momentos de vida, e que, desde então, diminuiu as taxas de mortalidade infantil Nise da Silveira A psiquiatra renomada lutou contra métodos de tratamento da sua época, como terapias de choque, confinamento e lobotomia
Gertrude Bell Elion A americana criou medicações para suavizar sintomas de doenças como Aids, leucemia e herpes, usando métodos inovadores de pesquisa: seus remédios matavam ou inibiam a produção de patógenos, sem causar danos às células contaminadas. Ganhou o prêmio Nobel de medicina em 1988 Johanna Dobereiner A agrônoma realizou pesquisas fundamentais para que o Brasil se tornasse um grande produtor de soja. Seu estudo sobre fixação de oxigênio permitiu que mais pessoas tivessem acesso a alimentos baratos e lhe rendeu uma indicação para o Nobel de Química em 1997
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Distúrbio
Paralisia do sono: quando dormir pode ser assustador
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Lembro de estar bastante cansado e, imediatamente após pegar no sono, sentir algo incomum. Consciente e de olhos fechados, era como se conseguisse ver os arredores do meu quarto. Tentava me mexer, mas não conseguia. Comecei a ficar com medo da situação. Em seguida, passei a sentir uma ‘presença’ no quarto comigo e ver um vulto andando próximo à cama. Também senti uma pressão no peito, como se algo pesado estivesse pressionando-o.” É assim que o engenheiro de software Lauro Gripa Neto, 27 anos, descreve o seu primeiro episódio de paralisia do sono, que vivenciou quando tinha apenas 10 anos. O distúrbio é caracterizado pela incapacidade de realizar movimentos voluntários no início do sono (a chamada paralisia hipnagógica) ou ao despertar (paralisia hipnopômpica). Durante o sono, o corpo alterna diferentes estágios, dentre eles, o sono REM (sigla, em inglês, significa “movimento rápido dos olhos”) e o sono não-REM, este último, responsável por até 75% do tempo total de sono. “A paralisia é um bom exemplo do chamado ‘estado de dissociação’, no qual observam-se elementos do sono REM, mas com o paciente acordado (em ‘estado de vigília’). Normalmente, o corpo fica paralisado durante o REM – estágio do sono em que sonhamos. A paralisia ocorre quando o cérebro acorda de um estado REM, mas a paralisia corporal persiste, deixando a pessoa temporariamente incapaz de se mover”, explica o neurologista Felipe Reis, do Serviço de Neurologia do Hospital Dona Helena. Homens e mulheres podem apresentar o distúrbio em qualquer idade – pela primeira vez, geralmente, na adolescência. Os únicos músculos ativos são os oculares e respiratórios. O distúrbio tem frequência variável, dependendo da gravidade da causa e da demora no diagnóstico e tratamento. Cada episódio dura de poucos segundos a alguns minutos, com média de dois minutos, e costuma terminar espontaneamente ou ser interrompido por um estímulo sensitivo. “Há relatos de paralisias durando mais de dez
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minutos, situações mais dramáticas e que geram ansiedade para os pacientes”, ressalta Reis. Para o engenheiro Lauro, os primeiros episódios, ainda na infância, foram assustadores e intensos. Fortes e frequentes quando adolescente, hoje são raros. O engenheiro também sofre de insônia, um dos fatores apontados pelo pneumologista e médico do sono Jaime Matos Ferreira como origem do fenômeno. Entre as outras causas, estão a falta de sono, horário de sono irregular, condições mentais, como estresse, ansiedade ou transtorno bipolar, dormir de costas, mudanças súbitas no ambiente ou no estilo de vida, nível elevado de cansaço ou fadiga, cãimbras noturnas e uso excessivo de drogas e medicações que causam sonolência. “Temos tido casos de narcolepsia [caracterizado por sonolência excessiva durante o dia e por frequentes ataques de sono, mesmo quando a pessoa dormiu bem à noite], em que, além da paralisia do sono, ocorrem alucinações no início ou final de sono, cataplexia (paralisia ou amolecer corpo ou pernas com estresses fortes) acompanhada de sonolência diurna excessiva (quase compulsiva)”, relata o profissional. Conhecer a paralisia do sono é essencial para voltar a se movimentar normalmente e ficar o menor tempo possível paralisado. “Tentar mexer os dedos dos pés é importante, porque a paralisia do sono faz com que a pessoa foque nos músculos do abdome, garganta e peito”, recomenda Ferreira. É necessário manter a respiração constante, tentar controlá-la e evitar pensamentos negativos. “Tossir é uma maneira de ajudar a acordar o corpo. Fazer caretas, movimentar o nariz e músculos da face ajuda a acabar mais rápido a paralisia do sono. Saia da cama após o episódio, movimente-se, acenda as luzes e lave o rosto”, indica.
Alucinações Segundo estudo de 2016, dos pesquisadores José de Sá e Sérgio Mota-Rolim, ao longo dos séculos, os sintomas da paralisia do sono têm sido descritos de várias maneiras e até mesmo atribuídos a uma presença do “mal”, como demônios, bruxas e alienígenas. Quase todas as culturas ao longo da história trazem histórias de criaturas sombrias que aterrorizam os seres humanos durante a noite: na brasileira, a paralisia do sono pode ter originado a Lenda da Pisadeira, segundo a qual, durante o sono, uma mulher pisa sobre o peito da pessoa que está dormindo, enquanto esta vê tudo e não pode fazer nada. O sentimento de medo e as possíveis alucinações são causados pelo estado intermediário de consciência do cérebro, que basicamente age como se ainda estivesse dormindo e, por isso, em alguns casos, quando é possível abrir os olhos, algumas pessoas veem fantasmas andando, monstros etc. Realidade e sonhos são misturados: objetos fantasiosos podem aparecer no quarto em meio a objetos normais. De acordo com o neurologista, as alucinações variam caso a caso. As mais comuns se manifestam pela impressão de sentir uma presença hostil no quarto ou opressão sobre o peito ou outra parte do corpo. Pode haver alucinações auditivas (estalos, ruídos de passos), visuais (percepção de objetos ou luz) ou cinestésica (sensação de queda ou flutuação). Odor desagradável, gritos de mulheres ou uma intensa sensação de sufoco também são relatados.
A paralisia do sono pode estar associada a outros distúrbios, explica o neurologista Felipe Reis (à esq.), do Hospital Dona Helena
Diagnóstico e tratamento A frequência do distúrbio da paralisia do sono pode ser interrompida tratando a causa com um profissional. É recomendável procurar orientação do médico especialista, neurologista ou especialista em sono, principalmente quando os sintomas geram ansiedade, insônia, cansaço ou sonolência durante o dia. O diagnóstico é baseado nos dados clínicos relatados pelo próprio paciente. “Embora a maioria das pessoas não precise de tratamento medicamentoso, existem medicações que podem ajudar, sob orientação do especialista”, ressalta o neurologista Felipe Reis. Algumas medidas simples ajudam a evitar e controlar o distúrbio, como fazer exercícios físicos regularmente, dormir o suficiente (em média, oito horas por dia), manter alimentação saudável, melhorar os hábitos de sono, usar medicamento somente prescrito por um médico para regular o ciclo do sono, tratar problemas de saúde mental e quaisquer outros distúrbios do sono.
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Educação
Resgatando a simplicidade do brincar
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escritório de Simone Finder é um tanto peculiar: quase não se pode caminhar, devido à quantidade de brinquedos estocados. A engenheira é proprietária da Loja da Bia, que em 2017 completa 10 anos em Joinville. A loja se distingue pelo portfólio de brinquedos educativos e pedagógicos – são mais de 1.500 produtos na loja física, que abrangem desde a fase da infância até a velhice, demonstrando que o brincar, apesar de fundamental nos primeiros anos da vida, não tem idade. A Bia que dá nome à loja é o apelido da primogênita de Simone, que tinha 7 anos quando o negócio foi aberto. Na época, seu filho mais novo estava com 2 anos. “Não encontrávamos muitos brinquedos educativos na cidade. Já em pesquisas na internet e viagens, víamos muitos brinquedos diferentes. Certamente, outros pais tinham a mesma dificuldade. Assim, veio a ideia de montar a loja”, conta a empresária. Até hoje, o propósito do estabelecimento é fugir dos brinquedos comerciais, que aparecem frequentemente nas propagandas de televisão, e apostar nos lúdicos. Hoje, sua filha mais velha está cursando a faculdade de Engenharia, e o caçula, agora com 13 anos, é “um leitor voraz”. Trata-se de um hobby, “não é um pesar como para várias crianças. Ele lê livros de mais de 1 mil páginas, por prazer”, orgulha-se a mãe. A procura por brinquedos como os que a loja vende, segundo Simone, é crescente, tanto por parte de pais, quanto de escolas, professores e profissionais da saúde. “O grande diferencial do brinquedo educativo é que os pais têm que sentar junto para brincar. Não dá para entregar um quebra-cabeça para a criança e esperar que ela monte sozinha. Exige interação e paciência”, ressalta a proprietária. A diretora da escola Aldeia do Sol, Volnete Hellman, frisa a importância de a família participar da brincadeira, seja ela imaginativa ou mes-
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Especialistas reforçam a importância de as famílias participarem das brincadeiras: atividades exercitam capacidade de expressão, raciocínio, curiosidade e reflexão, entre outras
mo um jogo. “Em cada fase, a criança necessita algo diferente, porém o mais importante ainda é a presença da família, e que esses momentos sejam prazerosos a todos.” Com 19 anos de existência, a Aldeia do Sol é uma das escolas joinvilenses que se preocupam com o brincar na infância – nas palavras da diretora, “respeitando as crianças e suas especificidades e estimulando as múltiplas inteligências de
forma lúdica”. Atualmente, atende 200 crianças na educação infantil e ensino fundamental. A metodologia adotada é baseada no desenvolvimento de projetos emergentes na educação infantil que ampliam a construção do conhecimento, despertam a curiosidade, a criatividade e o pensamento científico nos pequenos. No ensino fundamental, os conteúdos são trabalhados primeiro de forma vivencial e experiencial, para depois construírem conceitos acadêmicos, de maneira que sejam “verdadeiramente” aprendidos. “Todas essas experiências e descobertas são traduzidas em brincadeiras, pois são propostas de maneira lúdica, prazerosa e construtora de conhecimento, desenvolvidas nos diversos espaços oferecidos na escola”, explica Volnete. A diretora da instituição define o brincar como atividade indispensável à infância, fundamental no processo de constituição psíquica da criança. “Por meio do brincar, a criança inicia o processo de autoconhecimento, a relação com o outro e com o meio. Exercita habilidades como capacidade de expressão verbal e não verbal, raciocínio, pensamento abstrato, representação espacial, curiosidade, criticidade, objetividade, reflexão, flexibilidade, concentração, memória, autonomia e autoestima”, enumera.
“Por meio do brincar, a criança inicia o processo de autoconhecimento, a relação com o outro e com o meio” Volnete Hellman, diretora da Aldeia do Sol
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No ritmo da natureza “Quando brinca com elementos da natureza, a criança percebe que faz parte dela e deste universo. Aprende a respeitar a si própria, ao outro, e ao meio em que vive. Aprende a cuidar, a proteger e a pensar de forma coletiva, com respeito.” É o que defende a diretora da Aldeia do Sol. Volnete frisa, ainda, que é preciso incentivar o uso de objetos que possam ser ressignificados, como uma caixa de papelão que se transforme em um castelo, um carro, uma espaçonave... “Os pais podem resgatar as brincadeiras de infância e adaptá-las ao momento atual. Todos têm a ganhar: os pais se fazendo presentes na construção deste ser humano, e as crianças, que, além de momentos de pura harmonia e amorosidade, acabam desenvolvendo a criatividade, a elaboração de estratégias para resolver problemas, a coordenação motora, a linguagem entre tantas outras apropriações.” Construir a própria brincadeira, com simplicidade e criatividade, e resgatar o convívio com a natureza é uma das práticas mais estimuladas pelo casal Vilmar Steuernagel e Alexandra Oliveira, à frente da “Mãe Natureza”, marca que produz brinquedos de madeira e ministra oficinas criativas para escolas, pais e professores. Alexandra é psicóloga há mais de 20 anos, com formação em Constelação Familiar. Já Vilmar se define como marceneiro, “concretizador de sonhos”, e é o idealizador do negócio. Ambos são pais do Matheus, de 14 anos, e do Gabriel, de 8. O empreendimento do casal gerou um projeto contemplado pelo Edital Elisabete Anderle, do governo estadual, dentro da categoria Cultura Popular. A proposta é oferecer uma oficina para 800 crianças da rede municipal de en-
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sino, que vão aprender a construir brinquedos de madeira. Aliás, o trabalho de lidar com brinquedos usando madeira surgiu por necessidade da própria família, “de um pai olhando o filho, observando a alegria do filho em brincar com coisas mais simples”, de acordo com Alexandra. “Fomos até a escola do nosso filho mais velho, à época no primeiro ano, e propusemos uma oficina criativa. Fizemos um projeto, eles gostaram, e em 2009 iniciamos o trabalho para outras crianças”, recorda. Matheus tinha 6 anos. “Já nos preocupávamos com o que ele iria brincar quando mais velho. Desde pequenininho, a gente procurou sempre fazer brincadeiras com madeira e na natureza. Ele estudou em uma escola mais alternativa, brincava com terra e na chuva. Sempre o deixamos à vontade para brincar, distante de internet, computadores e videogames, pois sabemos o quanto é importante preservar esse tempo da criança, de estar na natureza, tranquilo, não só viver estimulado de forma artificial”, argumenta a psicóloga. O casal propõe às escolas três tipos de oficina: criativa, de construção de brinquedos e a alternativa natural. Todas visam estimular a criança a construir seu próprio brinquedo de madeira. A
Loja da Bia se diferencia pelo portfólio de brinquedos educativos que vão da primeira infância até a terceira idade
oficina criativa promove a autoestima e o trabalho de se expressar. “É livre. Há uma quantidade grande de peças de madeira, de pinos de reflorestamento, de diferentes tamanhos e formatos. Deixamos as peças
já cortadas e lixadas. O Vilmar leva um martelinho de madeira e a cavilha, que servem como pregos. A criança vai olhar e manusear o material. Com uma furadeira de mão, ele vai furando onde ela pedir e, aos poucos, constrói o brinquedo”, explica Alexandra. Já na oficina de construção de brinquedo, kits com peças prontas são disponibilizados para montagem. Por fim, a oficina alternativa natural é parecida com a criativa, mas vai além: materiais da natureza são incluídos na confecção, como conchas, pedras, tecidos de feltro, galhos de árvore de goiabeira e musgo seco. A “Mãe Natureza” também desenvolve cursos de formação para professores sobre o brincar criativo e a natureza. Na visão da psicóloga, pais e educadores precisam deixar a criança livre, em um ambiente acolhedor, com material natural, para que ela se sinta à vontade para se desenvolver: “Não há algo mais rico em criatividade, diversidade, simplicidade e beleza do que os elementos da natureza. Ela precisa de um ambiente que a inspire a se imaginar, criar. Não é um crescimento só físico, mas da fantasia, do lúdico, da troca, da alegria. A base de uma criança saudável é ter afeto, segurança e estímulo para interagir com o meio, investigar e conhecer o mundo”.
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É preciso respeitar todas as fases De acordo com o pediatra Kalil Antonio Auache, do Hospital Dona Helena, cada etapa da vida, desde bebês, permite a aquisição de habilidades específicas. Aos 5 ou 6 meses, aprendemos a sentar, primeiro com apoio, depois sozinhos. Com 9, passamos a engatinhar. Em torno de 1 ano e 3 meses, a andar. Aos 2 ou 3, a verbalizar e interagir com a família. Aos 4 ou 5, aprendemos a ter coordenação. “Os estímulos são bons para essas novas conquistas”, reforça o médico. Um problema recorrente na infância, segundo a empresária Simone, é o aceleramento que os adultos estão querendo dar para a criança. “Nessa ânsia para que aprendam rapidamente, acabam queimando fases. A criança fica com dificuldade no aprendizado. Criança corre, grita. É normal e saudável. Muitas vezes, isso é confundido com excesso”, aponta. O uso inadequado de eletrônicos na fase de desenvolvimento também é prejudicial, influenciando a adquirir habilidades de repetição e dificuldades de coordenação motora. “Como as telas de celular e tablet são todas touch, as crianças não estão mais conseguindo pegar o lápis. Às vezes, pegam um livro e começam a passar o dedo para passar a página. Mas o livro é de papel”, evidencia.
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“A criança precisa de um ambiente que a inspire a se imaginar, criar, que estimule a fantasia, o lúdico, a troca, a alegria”
À dir., Vilmar Steuernagel, idealizador da “Mãe Natureza”, com seu filho Gabriel, de 8 anos; abaixo, o marceneiro realizando oficina para confecção de brinquedos de madeira junto às crianças
Alexandra, da “Mãe Natureza”, afirma que é importante “desemparedar” a criança, “tirar da frente da telinha”. “A natureza é feita de ciclos, nós somos natureza. No contato com o meio, os pequenos aprendem a esperar, ter calma, saber o momento certo, respeitar o ritmo interior. Se não, viram competitivas, ansiosas e frustradas”, analisa. Os pais também devem atentar para que o uso excessivo de celulares e afins não exclua a atividade física. “Hoje, 40% das crianças estão com sobrepeso ou obesas, por conta de fatores como sedentarismo e má alimentação”, adverte o pediatra Kalil. “Se você estimula uma criança a praticar um esporte como uma ‘brincadeira coletiva’, além de ser algo prazeroso, ela adquire novas habilidades e aprende a socializar.” A diretora da Aldeia do Sol concorda com a fato de que a infância desaparece à medida que se “adultizam” os pequenos. “Quando expomos a criança a programas não apropriados para a idade ou quando brincamos que ‘fulano namora com fulana’, gradativamente acabamos com a inocência e a alegria da infância”, alerta Volnete, que sustenta a necessidade de desassociar o brincar com o consumismo. “O marketing infantil caminha de forma acelerada tentando atingir a todos no aspecto da apropriação: quem tem mais, pode mais, é melhor”, analisa. Na mesma linha, Kalil defende que os pais e a escola trabalhem em cooperação para o desenvolvimento do indivíduo. “O papel da família é educar e proteger. Não proteger em excesso, mas fazer orientações adequadas para que haja desenvolvimento físico e mental saudáveis”, ressalta. Então, seguindo o conselho do médico, vamos brincar!
“No contato com a natureza, os pequenos aprendem a esperar, a ter calma, respeitar o ritmo interior” Alexandra Silveira, psicóloga
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Diálogos
Perfil genético Carlos Serapião
Medicina legal
Pág. 35
Terapias alternativas
Antonio Sérgio Baptista
Ética nas negociações
Fábio Tironi Pág. 38
Luciano Melato
Marketing e ética
Pág. 37
Gizele Leivas
Pág. 36
Pág. 39
Entrevista
José Luiz Fernández Fernández Pág. 40
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Carlos José Serapião Coordenador do Instituto Dona Helena de Ensino e
“Todo este espectro de informações abre uma nova perspectiva para a medicina”
Pesquisa (IDHEP)
Promessas do perfil genético
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preservação de formas e características, mantidas por gerações e gerações de seres vivos, suscita interrogação, interesse e até mesmo fascínio. Desde a pré-história, a manipulação de caracteres hereditários foi utilizada para modificar espécies animais e vegetais. Entre os humanos, as diferenças hereditárias foram valorizadas na relação com enfermidades que afetavam membros de uma família. O sequenciamento do genoma humano permitiu progredir até alcançar o desenvolvimento de “rotinas” – em especial, na clínica humana – capazes de precisar o gene implicado em uma enfermidade genética, no câncer e mesmo em enfermidades frequentes como diabetes e hipertensão, viabilizando o surgimento de uma medicina personalizada. Essa forma de exercício profissional garante a possibilidade de se escolher, entre vários tratamentos, aquele mais eficaz e menos deletério, a partir de dados genômicos pessoais do paciente. Esses dados são importantes para o paciente, que é seu proprietário, e resultam em um melhor diagnóstico, prevenção e tratamento. Pode-se antever a identificação de novas enfermidades,
definir nova taxonomia (medicina de precisão), novos esquemas terapêuticos e novas políticas de prevenção e controle. Uma visão de futuro, não muito distante, mostra a consulta médica tradicional fundamentada na coleta de dados, estabelecimento de diagnóstico e prescrição de medicamento ou procedimento cirúrgico, sendo paulatinamente substituída por ações revolucionárias ligadas à informática. Por exemplo: as imagens produzidas pela tomo-densitometria, a ressonância magnética nuclear, a endomicroscopia, o Pet-scan e muitas outras técnicas deixaram o corpo humano transparente à visualização médica. Podemos citar ainda a telemedicina, que permite captar e transmitir dados referentes aos parâmetros biológicos do paciente e sua avaliação em tempo real, criando condições para a prevenção de quadros agudos através da detecção de sinais precursores. A mais revolucionária das ações é a que possibilita a observação do paciente em escala molecular, pelo sequenciamento de seu genoma. Por meio desse exame genético, pode-se avaliar a probabilidade do desenvolvimento de certas enfermidades, sobretudo as ligadas a um gene único, fundamentando a medicina preditiva. A explosão das tecnologias numéricas fez surgir a possibilidade de reunir grande quantidade de informações médicas, passíveis de apreciar estatisticamente (big data), criando algoritmos úteis na observação de pacientes, imagens, regimes alimentares, identificação de medicamentos particularmente eficazes etc. Todo este espectro de informações recolhidas pelas equipes de cuidados dos pacientes abre uma nova perspectiva para a medicina, incluindo intervenções cirúrgicas que podem ser previamente testadas a partir de algoritmos que reproduzem formas e funções de órgãos e tecidos. É preciso, ao final, considerar novas e numerosas questões éticas relacionadas com a identificação do risco, por parte de um indivíduo, de desenvolver certas enfermidades. Nesse caso, o que fazer com as informações médicas próprias de um paciente e como detectar correlações acidentais impróprias?
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Antonio Sergio Ferreira Baptista Doutor em ciências
A ética e as terapias alternativas
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eria ético tratar um paciente com as chamadas terapias alternativas (CAMs)? Em primeiro lugar, devemos definir um tratamento alternativo. São muitas as definições, mas de maneira geral, referimo-nos à homeopatia, acupuntura, quiropraxia, fitoterapia, reiki, aromaterapias (incluindo Florais de Bach), shiatsu, intercessão por preces, as chamadas medicina chinesa e medicina ayurveda, cirurgias espirituais etc. Nenhuma delas apresenta qualquer efeito curativo cientificamente demonstrado, enquadrando-se nas chamadas práticas pseudocientíficas ou que se utilizam do efeito placebo. Portanto, a pergunta acima deveria ser: seria ético tratar um paciente com placebo? R. Gillan (Medical ethics: four principles plus attention to scope. British Medical Journal 1994; 309: 184-8) fornece uma abordagem simples, acessível e culturalmente neutra sobre os aspectos éticos dos tratamentos médicos. Podemos adaptá-la e usá-la em relação às CAMs. 1 – Autonomia: refere-se às decisões de todas as partes envolvidas no tratamento médico, requerendo então respeito às decisões do paciente. Este deve ser informado sobre a eficácia do tratamento com seus possíveis benefícios e seus
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efeitos colaterais. Ou seja, não deve ser enganado pelo terapeuta. Dessa maneira, não devemos utilizar tratamentos que sabemos ser ineficazes. O problema surge quando o paciente exige uma terapia, como as CAMs. Se temos dúvidas da eficácia e dos riscos de tais terapêuticas, é melhor não utilizá-las. 2 – Beneficência e maleficência: o princípio de “nihil nocere” nos obriga a basear as decisões terapêuticas em uma (possível) análise de risco/benefício. Importante lembrar que há muitos riscos na utilização das CAMs, e o maior deles, evidentemente, é sua ineficácia. 3 – Justiça: em relação às CAMs, a distribuição dos recursos financeiros para essas terapias alternativas (que sabemos não terem eficácia) pode prejudicar a distribuição desses recursos para áreas necessitadas. A negligência na aplicação dos recursos que beneficiariam pacientes em prol de terapias pseudocientíficas não é evidentemente uma conduta ética. Kevin Smith, no jornal Bioethics (“Against Homeopathy – A Utilitarian Perspective”), já examinou a ética da utilização do placebo. Sabendo-se que esse efeito se exerce praticamente só em nível psicológico, Smith sugere que se colocamos a autonomia acima dos benefícios potenciais do placebo, então, o uso das CAMs é eticamente inaceitável. Talvez uma exceção seja sua utilização para reforçar psicologicamente a eficácia de um medicamento convencional, em sintomas puramente emocionais, quando seria eticamente tolerável. Assim como o uso de um desfibrilador cardíaco quebrado é injustificável, a utilização das chamadas medicinas alternativas para o tratamento de doenças com terapêuticas convencionais cientificamente já bem estudadas é moralmente inaceitável.
“Talvez uma exceção seja seu uso para reforçar psicologicamente a eficácia de um remédio convencional”
Luciano Melato
Coordenador de logística do Hospital Dona Helena
Padrões éticos nas negociações
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dotar padrões éticos nos negócios é fundamental para as organizações preocupadas com a imagem e competitividade. Manter um relacionamento fundamentado na ética com os públicos estratégicos é requisito essencial para adquirir (e manter) credibilidade. Existem códigos de ética profissional que indicam como um indivíduo deve se comportar no âmbito da sua profissão. Ética, humanismo e cidadania constituem a base de uma sociedade justa. Ética é o peso que estabelece o equilíbrio em todas as ações e decisões, possibilitando que ninguém saia com prejuízo, e está relacionada com o sentimento de justiça. Em uma sociedade pautada por princípios éticos, filosóficos e religiosos, não haveria violência e racismo, as leis seriam para todos e não haveria privilégios – tudo seria feito na mais completa transparência. Esses valores trazem consigo um princípio de incorruptibilidade. Uma sociedade que não respeite os princípios éticos seria violenta, egoísta, racista, desleal e corrupta; os mais poderosos estabeleceriam seus direitos exclusivos e haveria a busca desenfreada pelo lucro, usando de opressão; tudo feito na surdina, na profunda escuridão da noite.
“Ética é o peso que estabelece o equilíbrio em todas as ações e decisões, tomadas com justiça”
Quando se trata de valores éticos e morais, quanto maiores as diferenças, mais se torna difícil o relacionamento e a negociação. Se um profissional ético estiver no meio de corruptos, será banido, e também não conseguirá conviver nesse ambiente. Um profissional ético não conseguirá trabalhar numa organização corrompida e envolvida em negociações e situações ilícitas. Enfim, a organização atrairá profissionais que aceitem realizar esses tipos de negociações e possivelmente sofrerá as consequências. E eles se atraem sim, muito facilmente, haja visto o que está acontecendo no Brasil nos meios políticos e empresariais. O poder nas negociações Constituído de cinco variáveis conhecidas como Forças de Porter, esse modelo é utilizado para maximizar os resultados nas negociações. Aqui, vamos considerar somente os poderes de barganha dos fornecedores e dos clientes e a questão ética. O poder de barganha dos fornecedores se estabelece quando o mercado é dominado por um pequeno número de empresas que possuem produtos exclusivos e diferenciados, ou quando o custo do desenvolvimento de outro fornecedor é elevado, ou ainda seu volume de compras é pouco significativo. Quando a força é exercida pelos compradores do produto ou serviço ofertado, entende-se que o poder de barganha é maior. Os compradores podem impor condições especiais e exclusivas, como nível de qualidade, preço, condições de pagamento e de entrega. A situação é arriscada para qualquer empresa pois a perda do cliente pode significar a falência da fornecedora. Entretanto, em qualquer situação a ética é pré-requisito nas negociações. O ser humano tem a capacidade de transformação, de mudança, e como aliados temos o tempo e a esperança. A marca de um profissional está ligada a suas ações e decisões, pensamentos, desejos e resultados, que sempre estarão firmemente ligados aos meios empregados para atingi-los. Não há como agir sem fundamentar sobre os conceitos éticos. Conforme exposto, a ética tem a ver com padrões, valores, deveres, e está relacionado à conduta humana. Ela sempre indicará o que deve ser feito e como fazê-lo, nas ações individuais, nas relações interpessoais, na vida familiar e na sociedade, e este será o diferencial de um profissional de valor.
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Fabio Antonio Tironi Médico patologista e legista
Sobre medicina legal e bioética
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figura do médico legista se confunde com a própria natureza do trabalho, dada a característica misteriosa e elucidativa ligada a essa atividade. Embora diversos exames façam parte da rotina, a necropsia é o mais emblemático. A participação do legista é indispensável aos casos de morte violenta ou suspeita, objetivando balizar a ação do Estado e prevenir as injustiças. O exame é sistemático, exigindo treinamento. Possui um andamento próprio, necessita de instalações e equipamentos específicos, e seu resultado é melhor quando realizado por uma equipe descansada. Deve ser acompanhado de registros adequados e da cuidadosa coleta de vestígios e de amostras. Pode se tornar perigoso para a equipe e para o esclarecimento dos fatos quando exercida em condições contrárias às citadas. Alguns aspectos desse trabalho podem ser exemplificados por casos. Houve um paciente psiquiátrico falecido com suspeita de esganadura, mas o exame afastou a causa violenta e evidenciou um problema cardíaco comum para a idade. Em outro caso, uma gestante com vômitos excessivos, que apresentou piora súbita seguida de morte cerebral. Quando solicitada a necropsia, o exame
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mostrou que havia uma larva instalada no cérebro da falecida, provocando os vômitos de maneira similar aos da gestação, e se tornando insuspeitável. Fragmentos pulmonares de um jovem falecido, que possuía picadas de agulha pelas pernas, demonstraram que aquela pessoa fazia uso injetável de analgésicos formulados para ingestão oral. O excipiente dos comprimidos é insolúvel, e se acumulou em pequenos vasos pulmonares, provocando lesões. A morte se deu por ação da própria droga, mas a análise patológica dos pulmões explicou diversos elementos observados no local da morte. É indispensável que o exame seja feito por profissional treinado e experiente. O legista deve estar preparado para lidar com causas de equívoco, como alterações cadavéricas provocadas por processos naturais ou pela intervenção médica realizada em momento próximo à morte, para que algumas dessas não sejam interpretadas como atos de violência. A exemplo de outras áreas da medicina, a Medicina Legal se beneficia de atualização técnica e científica, mas não apenas disso. Peritos catarinenses preocupados com o panorama da especialidade, envolveram-se na organização do 24o Congresso Nacional de Criminalística, que ocorrerá em Florianópolis no final deste ano. Tomando como tema central “A Perícia na busca da verdade para a garantia da justiça”, trará um programa de Medicina Legal profundamente orientado à reflexão ética sobre a perícia.
“A participação do legista é indispensável aos casos de morte violenta ou suspeita, objetivando balizar a ação do Estado e prevenir as injustiças”
Gizele Leivas Coordenadora de
Comunicação e Marketing do Hospital Dona Helena
Relação do marketing com a ética
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egundo o American Marketing Association, podemos definir marketing como “uma atividade, conjunto de instituições e processos para criar, comunicar, entregar e trocar ofertas que tenham valor para os consumidores, clientes, parceiros e sociedade em geral”. Ou seja, são as ações desenvolvidas para atender às necessidades de um grupo de pessoas ou para promoção de uma marca. Já a ética é definida como a ciência que tem como objetivo o estudo da moral e da conduta humana. Trata-se de uma reflexão sobre o valor das ações sociais consideradas tanto no âmbito coletivo quanto no individual. Considerando os dois conceitos, podemos observar que as implicações éticas na área de marketing estão inseridas no próprio negócio. O plano de marketing é desenhado para atender às estratégias das empresas e está sempre em consonância com o planejamento estratégico das companhias, de modo a contemplar à política, missão e valores corporativos. O processo competitivo faz parte da natureza humana. Nas organizações, o diferencial está diretamente ligado ao tipo de produto ou serviço que ela oferece ao mercado, como também ao cenário econômico. O modelo de gestão mui-
“Os profissionais são diariamente convidados a reinventar as estratégias e abordagens para definir novos caminhos no diálogo” tas vezes dita a carga de competitividade. Neste momento, é fundamental o papel do gestor para direcionar suas equipes e cuidar para que ações antiéticas não sejam praticadas com o pretexto de atingir a meta. Ações éticas de marketing são cada vez mais percebidas. Sabemos que a ética transborda em uma área específica, seja o marketing ou qualquer outra. As ações éticas devem permear o negócio, estar intrínsecas às organizações e à sua cultura. Imprescindível que tenhamos claro que ética no marketing é definida como filosofia de negócio, pois, quando aplicamos as técnicas e executamos a ação, estamos englobando diversas ciências e vários estilos de administração. Nesse contexto, percebe-se que é necessária uma constante adaptação e cocriação de práticas que impeçam enganos éticos, com risco de atingirem aos consumidores ou descumprirem a legislação vigente. Os profissionais de marketing são diariamente convidados a reinventar as estratégias, abordagens, e a definir novos caminhos para o diálogo com o consumidor. É de fundamental importância levar em consideração as diretrizes do negócio, mas sempre visando ao bem comunicar, e à aproximação com seu cliente, estabelecendo um diálogo aberto e franco. Muitas vezes, isso requer que a empresa reconheça falhas e esteja aberta a corrigi-las. O que não podemos deixar de estimular são as boas práticas, que, felizmente, se repetem diariamente em nossa sociedade.
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José Luis Fernández Fernández
Doutor em Filosofia e Letras pela Universidade Pontifícia Comillas, Madri, reconhecido internacionalmente na área de ética empresarial. Com diversos livros e artigos científicos publicados, integra a Comissão de Responsabilidade Social da Associação Espanhola de Contabilidade e Administração de Empresas e faz parte do conselho editorial das revistas Ethical Perspectives e Ethic
ENTREVISTA A ética como base no meio corporativo
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esponsável pela principal conferência do Simpósio Catarinense de Bioética deste ano, José Luis Fernández Fernández concedeu entrevista exclusiva à Revista Conecthos sobre as diversas facetas da ética no meio empresarial. “Costumo dizer que, para algumas pessoas, o cargo lhes chega bem maior que eles mesmos. E os transborda, ultrapassa, os eleva até seu próprio nível de incompetência”, reflete, ao discorrer sobre as relações de poder e a ética a elas correspondente – e necessária. Pode uma pessoa ser ética durante a vida toda – mas deixar de sê-lo ao conquistar algum tipo de poder? Um provérbio em minha terra, Astúrias (principado e província da Espanha), diz que, “se quiseres conhecer bem o Joãozinho, ofereça-lhe um carguinho”. É muito comum, nessa região, utilizarmos as expressões no diminutivo, de maneira carinhosa. Mas, substancialmente, significa que, se quisermos conhecer bem uma pessoa, é só conceder-lhe um cargo em que ela possa ter algum tipo de poder, de que antes não dispunha. É precisamente
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aí, segundo a sabedoria popular, que passaremos a ver como é, de fato, uma pessoa. Além do legítimo orgulho e das compreensíveis concessões ao ego, quando alguém é promovido, no momento em que sobe de nível no organograma, se o sujeito é uma pessoa psicologicamente equilibrada, com claros valores morais, boa maturidade ética e, sobretudo, se conhece bem a si próprio, seus pontos fortes e suas fraquezas, se tem também suficiente dose de humildade e senso de dever, não há razão para mudanças drásticas em seu modo de agir. A pessoa certamente vai seguir se esforçando para fazer as coisas da forma correta. Nesse sentido, buscará dar o melhor de si para deixar sua marca, ditando tendências, movimentando-se com constância em sua atividade profissional e impactando positivamente na cultura da organização. Assim, ficaria claro que a pessoa é merecedora do cargo e da confiança que lhe fora depositada. Nessa situação, cabe apenas desejar-lhe sorte, colaborando com a pessoa de forma leal e consistente. Como ninguém é perfeito, é aconselhável dar-lhe um tempo para que ajuste expectativas e acomode sua personalidade ao novo posto. Com um pouco de sorte e paciência, a pessoa certamente será capaz de imprimir qualidades a seus novos comandados, conquistando resultados que, sem sua liderança, não poderiam ser alcançados pela organização – seja ela uma empresa, um hospital, um órgão da administração pública, uma universidade, uma ONG ou uma escola de samba. E do contrário, quando a mudança é para pior? Infelizmente, muitos outros, quando sobem de posição, pas-
“De um lado, a ética é uma opção de vida. De outro, representa um exercício constante de lucidez e de sinceridade para conosco mesmos e para com os outros”
sam por uma grande transformação, uma espécie de metanoia – mas para o lado negativo – que desconcerta quem observa de fora, choca e desencoraja seus liderados. Ou seja, aqueles que passam a depender da chefia do nosso caro Joãozinho que, a essa hora, já exige que se esqueça o apelido carinhoso. Será, agora, para todos, o Dr. João. Costumo dizer que, para algumas pessoas, o cargo lhes chega bem maior que eles mesmos. E os transborda, ultrapassa, os eleva até seu próprio nível de incompetência. Quando isso acontece, cabem várias possibilidades. Pode ser que o agraciado, reconhecendo sua incapacidade para o novo posto, escolha devolver o cargo – e, claro, o salário e benefícios decorrentes. Assim, evidentemente, ficaria livre de todas as responsabilidades que lhe caberiam. Em minha vida profissional, conheci apenas um caso em que isso aconteceu. Alberto Gualda, depois de algumas semanas na direção de um importante hotel de Madri, reconheceu que ainda não estava preparado e pediu para voltar à função anterior, como gerente de alimentos e bebidas. Mas, infelizmente, a maioria das pessoas que alcançam algum tipo de poder, sem ter conteúdo ou formação e nem a autoridade esperada para o cargo, tende a agarrar-se ao posto como um náufrago se abraça a um toco de madeira, em alto-mar. E é aí que mora o perigo: como esta pessoa conhece suas próprias fraquezas, tratará de disfarçá-las ao máximo. Vangloriando-se de uma espécie de maquiavelismo mais ou menos dissimulado, defenderá sempre, o seu: evitará comprometer-se com pessoas ou ideais, será a voz destoante na tomada de decisões até limites impensáveis, irá se cer-
“Cada um de nós sempre tem algo a oferecer à dinâmica social, à empresa em que trabalhamos, a todas as pessoas com que nos relacionamos – em suma, ao mundo em que vivemos” car de pessoas medíocres, que não lhe façam sombra – e, se forem bajuladores, ainda melhor. Esse tipo de pessoa costuma ser implacável com seus subordinados, a quem vai sempre responsabilizar por todos os erros e fracassos, mesmo que sejam flagrantemente produtos de sua incompetência e despreparo. E, claro, não hesita em aceitar recompensas e condecorações que não lhe pertencem. Naturalmente, este tipo de chefe tóxico está muito distante de ser um bom líder – e, a médio prazo, será nocivo para a própria organização. Este tipo de situação retrata, simplesmente, um problema de falta de ética? Há dois outros questionamentos importantes. Pode se tratar, talvez, das consequências derivadas de algum defeito ou carência profissional concreta? Ou, quem sabe esteja relacionado a algum transtorno psicológico resultante de traumas e vivências negativas daquela pessoa? Ainda que seja muito ousado, para mim,
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diagnosticar de forma geral – porque cada caso é um caso, corresponde a diferentes realidades e idiossincrasias –, tendo a acreditar que o problema responde a uma combinação dos três aspectos assinalados. Mesmo em postos executivos do mais alto nível, à frente de todo tipo de organizações, é fácil identificar pessoas complexadas, narcisistas, que até se vangloriam de certa dose de sadismo. Não é incomum encontrar indivíduos mesquinhos e incompetentes coordenando equipes e gerenciando projetos que, por impactar de forma importante na sociedade, mereceriam ser tocados por pessoas de perfil mais humanizado. Se queremos que as empresas e organizações contribuam, cada uma em seu setor, com o progresso dos povos, ajudando a construir uma sociedade mais justa, buscando uma economia verdadeiramente sustentável e, em síntese, um mundo mais humano, precisamos ter, na liderança dessas instituições, pessoas psicologicamente maduras e equilibradas, com sólida formação profissional e, sobretudo, com inteligência emocional suficiente para distinguir, sempre, o bem do mal – e optar em fazer o melhor. Esste requisito supõe que, quem quiser atuar bem no exercício do poder deve fazê-lo sob a inegociável vontade moral de estar a serviço da instituição e trabalhar sempre em seu benefício e de todos que com ela se relacionam. Ao conquistar um cargo com mais poder, uma pessoa pode deixar de atuar eticamente, seja para manter o cargo ou ascender ainda mais? Penso que aquele que abandona suas convicções éticas como melhor lhe convém, na verdade, nunca as teve muito firmes. Muito provavelmente, jamais tenha tido
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muito claro o que é ética, o que são valores morais, e em que consiste uma boa maneira de atuar. Isso me lembra aquela frase de Grouxo Marx, sempre atual e genial, como todas as coisas que disse: “Estes são meus princípios, mas, se vocês não gostam, tenho outros”. Nesse caso, os princípios se assemelham a uma peça de roupa, por exemplo, uma jaqueta – vem daí o termo em espanhol “chaquetero”, que se refere a esse tipo de personagem. São os bajuladores, pessoas cujos valores se equiparam a um acessório, que pode ser substituído conforme soprarem os ventos. As coisas não são – ou, pelo menos, não deveriam ser – assim. Os valores valem. Constituem um dever, haja o que houver. Mesmo que na realidade – seja a pessoal, a organizacional, social, política, econômica ou cultural – as práticas estejam distantes dos níveis ideais, na teoria, não cabem improvisações ou meias tintas. Não é difícil reconhecer o que está bem e o que está mal. Em consequência, tampouco há maior dificuldade para se responder à questão das questões: o que devo fazer? A sabedoria da humanidade, presente em todas as tradições e culturas, cunhou uma fórmula que se convencionou chamar de “regra de ouro” e que significa, em síntese, “não fazer ao outro aquilo que não queres que te façam”. Ou, na forma positiva, tratar as pessoas da mesma maneira como gostarias de ser tratado. Esta intuição moral eterna, atinada e onipresente é suficiente para que tenhamos uma boa bússola com que orientar o plano de nossas ações diárias. E, diga-se, sem ignorar que esse conceito pode conhecer sofisticações maiores: de fato, as reflexões filosófico-morais vêm trazendo respostas razoavelmente bem fundamentadas há mais de 2.500 anos. Isso, pelo menos em nossa filosofia ocidental, herdeira de Sócrates, Platão e Aristóteles. A ética, certamente, não é um meio para conseguir outros objetivos. Tampouco consiste em uma espécie de adaptação estratégica a contextos e circunstâncias, com o fim de obter vantagens pessoais a qualquer preço, do jeito que for. A ética é, de um lado, uma opção de vida e, de outro, representa um exercício constante de lucidez e de sinceridade para conosco mesmos e para com os outros. É uma opção de vida, sobretudo sob o ponto de vista de que nós, seremos humanos, não nascemos prontos – vamos nos construindo como pessoas à medida que vamos vivendo e, principalmente, agindo. Para dizê-lo de forma geográfica: nascemos biológicos e morremos biográficos. O grande desafio é escrever, construir, viver uma boa vida, que valha a pena ser vivida.
“Os princípios básicos de justiça e respeito à dignidade das pessoas são um exemplo da demanda deontológica que traça uma linha vermelha, que não se deve ultrapassar” A ética, sob esse aspecto, limita os seres humanos nas suas escolhas diárias? Não devemos entender os seres humanos como absolutamente espontâneos, totalmente criativos, plenamente livres. Ao contrário: as possibilidades de atuação – em princípio, abertas de forma indefinida – são limitadas e orientadas a partir de normas mais ou menos rígidas que toda sociedade estável transmite a seus novos integrantes, mediante os múltiplos processos de socialização, do berço ao leito de morte, realizados por uma ampla gama de agentes, que vão da família à empresa e passam, entre outros, pela escola, grupos de iguais, meios de comunicação e igrejas. Antropologicamente falando, cabe dizer que, à medida que vamos vivendo e atuando, vamos construindo nossa biografia, fazendo de nós aquilo que acabamos sendo. Sob o ponto de vista ontológico, não há outra possibilidade: ninguém pode viver pelo outro. Diga-se o que se disser, todos, absolutamente todos, homens e mulheres, negros, brancos e amarelos, ricos e pobres, bonitos e feios, velhos e crianças, todos temos a mesma meta, que é a de ter uma boa vida, conquistar a felicidade, o crescimento profissional, a autorrealização subjetiva no mais alto grau possível, assumindo – explicitamente ou não – o respeito à dignidade de todas as pessoas e a vontade de dar a cada um o que lhe toca, que constitui a essência da virtude e da justiça. São condições inegociáveis na hora de configurar uma sociedade estável e decente, na qual a criatividade seja exercida sempre em benefício do bem comum. Nesse sentido, fazendo as coisas de determinada maneira, não apenas fazemos coisas mas nossa atuação afeta a
terceiros e contribui para gerar ou consolidar melhores ou piores estruturas sociais. Mas, acima de tudo, ocorre que, à medida que agimos em um sentido ou outro, também nos configuramos, construímos a nós mesmos de determinada maneira, boa ou ruim, humana ou desumana. Por exemplo, se roubamos, é evidente que nos apropriamos de algo que não nos pertence e prejudicamos a pessoa roubada, que perde um bem de sua propriedade. Mas, se repetimos essa conduta várias vezes, acabaremos nos acostumando. A palavra costume é dita, em latim, mos-moris, que é a origem da palavra moral. Do grego “ethos” vem a palavra ética. Então, é de se supor que o sujeito que decide atuar, de forma habitual, seguindo o padrão de ficar com o que não lhe pertence, acabará sendo ladrão. Mas não nasceu ladrão, fez-se assim. Ninguém nasce sendo corrupto, mentiroso, homicida ou pederasta. O ser humano vai se construindo assim. Ou, ao contrário, faz-se honrado, verdadeiro, filantropo, carinhoso e solidário em função de suas decisões livres e conscientes. Em função do íntimo e pessoal exercício da liberdade, as pessoas vão adquirindo vícios ou virtudes, vão formando seu caráter moral, configurando seu destino. Tenho escrito, algumas vezes, que a ética – como ação humana, práxis, moral vivida – consiste, precisamente, no exercício consciente e responsável da liberdade, em busca do bem, seja pessoal, familiar, de uma organização, político-social e... humano. De uma parte, isso pede clarividência, sagacidade, discernimento e se deveria traduzir na vontade firme e perseverante de não atuar nunca de forma precipitada, mas optando, com critério e bom-senso, pelo bem e, dentro dele, pelo melhor. Sob outro ponto de vista, fica implícito que cada um deve estar preparado para justificar seu
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modo de proceder, em um diálogo social razoável, construtivo e sincero. É aqui que a filosofia moral, a ética como reflexão filosófica, a moral pensada, encontra acolhimento e razão de ser. Justificar as condutas exige argumentos fortes e confiáveis para convencer sobre suas consequências – sobretudo, acerca da desejabilidade e da bondade que se refletirão sobre quem as sofre. Isso, naturalmente, implica ir além do objetivo egoísta que anima tanta gente a seguir galgando novo degraus da escala do poder, pisando sobre as cabeças de quem fica abaixo. O ser ético é, então, forjado ainda na infância, como pressuposto básico de vida? Quase desde o momento em que nascemos, vamos construindo nossa biografia mediante nossas ações. No entanto, jamais deixaremos de seguir ajustando nosso caráter, nosso modo de ser adquirido. Assim, fica evidente que cada um dos âmbitos em que vamos nos movendo ao compasso de nosso desenvolvimento pela vida haverá de contribuir mais ou menos, mas sempre teremos nosso input pessoal naquilo que somos e no modo como nos conduzimos na vida e nas relações com o outro. São muitos, também, os agentes socializadores e, como tal, responsáveis pelo nosso próprio destino. O primeiro é a família. É a primeira escola de moralidade, a grande transmissora do saber ético acumulado por nossa cultura. Nos apresenta à socialização primária, aquela feita pelo papai e pela mamãe, assim como pelos familiares mais diretos. É onde nasce o grande SE impessoal: isso não SE faz, isso não SE diz, isso não SE toca... Deve-SE lavar as mãos antes de comer, não SE deve mentir, quando os adultos falam, as crianças SE calam.
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Uma particularidade deste primeiro contato com o SE, com a norma que delimita as opções abertas de comportamento, é o fato de que ela é apresentada, em nome do conjunto da sociedade, justamente por aqueles que mais se preocupam e mais desejam o bem da criança. Por isso tudo, o que se apresenta, nesse momento, ganha uma relevância significativa ao longo da vida. Mas a situação contrária, daqueles que têm de começar a vida em um contexto desfavorável, que nascem e começam a se desenvolver no seio de uma família destruída e miserável, onde não encontram acolhimento nem afeto suficientes para criar as bases de uma personalidade adaptada e construtiva, aqueles que começam a trajetória de vida em contextos desgraçados, vão ter muito mais dificuldades de se adaptar a um mundo que os recebeu com hostilidade. Um mundo que os educou na miséria e não forneceu exemplos nem modelos adequados a ser imitados, obrigando-os a agir sempre na defensiva – e já sabemos que não há melhor defesa que o ataque – e, enfim, experimentando uma vida infeliz. Considerando a primeira situação, do papel da família, é importante dizer que o processo de construção do sujeito moral, no entanto, acaba de começar. A socialização secundária aguarda seu momento e só o encontra propício na primeira vez que a criança deixa os limites de sua família direta – e isso se tem a sorte de tê-la e de haver sido acolhido com amor e em condições minimamente benévolas – e entra pela porta de uma escola. Nesse momento, aparecem dois poderosos agentes de socialização, que vão propor e exigir que a criança se adapte a novos jogos e realidades: o grupo de iguais (colegas)
“A ideia é muito simples: precisamos que as empresas se engajem, junto às administrações públicas e aos movimentos sociais, na busca de soluções para os grandes desafios da atualidade”
e os professores. Se os professores, de um lado, vão transmitindo conteúdos e conhecimento, de outro também vão incutindo formas de atuar, estilos de vida. Nesse ponto, as mensagens apontam para outras realidades, próprias desse novo contexto: não SE fala durante a aula, SE forma fila para entrar na lanchonete... A vinculação emocional com a professora ou professor nunca haverá de ser tão afetuosa e tão firme como a que se havia estabelecido com os próprios pais. Outra fonte de socialização e, em consequência, outro manancial de moral vívida, outro conjunto de normas, é o que emana dos colegas, do grupo de iguais com que a criança passa a interagir, nesse momento – e que vai seguir encontrando pelo resto da vida, onde esteja: colégios, grupos de igrejas, grupos esportivos, universidades, sindicatos, partidos políticos, grupos profissionais.... Nesses casos, os valores, as pautas de atuação, critérios e princípios já não vêm de cima para baixo, mas emergem, por assim dizer, pelos lados. No entanto, não é por isso que deixam de ter menos força coativa – ao contrário! – da que emanava dos superiores, pais e professores. E, no passar do tempo, da que resulte de normas e códigos da empresa em que o sujeito for trabalhar e que virá da autoridade e do poder ostentado pelos chefes e responsáveis, de que, enquanto empregado e por motivos alheios à sua vontade, o funcionário dependa.
Como reconhecer um ser ético, por exemplo, na hora de contratar alguém? Quando alguém chega a uma empresa, leva toda sua bagagem de vida, já tem um caráter moral em construção. Mas é sempre possível que sofra transformações. Há a possibilidade de polir hábitos e modificar costumes. A pessoa que aceita entrar para uma empresa deve estar consciente de que está transpassando uma nova porta que a levará a um novo âmbito de vida. Vai conhecer novas pessoas, com diferentes formas de agir e de se organizar, com padrões culturais e valores próprios deste novo cenário. Em consequência, terá de avaliar se suas expectativas e aspirações, sua maneira de ser e seus valores podem se acomodar de forma harmônica aos da instituição. Os profissionais de recursos humanos das empresas, responsáveis pelos processos de seleção, são plenamente conscientes dessa circunstância. Por isso, devem responder a um duplo desafio – conhecer profundamente o candidato, para ter a certeza de que se trata de pessoa idônea para ocupar o cargo que irá preencher, e, de outra parte, poder antecipar se o candidato e a empresa têm suficientes afinidades que permitam uma relação de colaboração e respeito mútuo. Para isso, estudam, analisam o currículo, procurando conhecer melhor a trajetória daquela pessoa no que toca à vida pessoal e profissional. É preciso saber se a pessoa tem a titulação que o cargo requer, se tem a experiência necessária, mas, também, onde trabalhou antes e por que deixou o emprego anterior. É fundamental, na hora da seleção, saber se o candidato e a empresa vão estar afinados – e, para isso, o processo inclui perguntas que vão permitindo fazer uma adequada composição a esse respeito: o que ele espera da empresa, por que quer trabalhar ali, o que tem condições de oferecer, onde planeja estar trabalhando em cinco ou dez anos. E, finalmente, os profissionais de seleção buscam todos os indícios do tipo de pessoa que ali está, sobretudo, sua estatura moral.
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A ética, portanto, é uma realidade multiforme, porque sempre está presente, em maior ou menor grau, de forma expressa ou implícita, firme e patente – ou brilhando por sua ausência – entre as peculiaridades e características de cada pessoa. Assim, cada um de nós sempre tem algo a oferecer à dinâmica social, à empresa em que trabalhamos, a todas as pessoas com que nos relacionamos. De forma complementar, se abrimos bem os olhos, deixando de lado pré-julgamentos e estereótipos, podemos aprender muitas coisas com outras pessoas e instituições. A própria empresa em que trabalhamos não deixa de ser um agente a mais no processo de socialização. E uma oportunidade de crescimento – ou de estagnação – para o profissional. E, considerando que, definitivamente, uma vida bem vivida nada mais é de que um inegável processo de integração de valores na direção de um desenvolvimento integral de cada um de nós, como pessoas, é fundamental perceber a importância do contexto laboral no desempenho de cada um. Entre as tarefas de um bom diretor, ou melhor, de um diretor excelente, deveria estar a de se preocupar e promover o crescimento de seus subordinados como pessoa, à medida que desempenham suas funções profissionais. Para isso, entre outras coisas, as políticas, as práticas, as normas organizativas deveriam ser elaboradas de forma a contribuir e estabelecer que todos vivam e trabalhem sob elevadas bandeiras de moralidade e das boas práticas profissionais. A longo prazo, o sucesso, o lucro, a consolidação de uma empresa no mercado exige a combinação de múltiplos fatores – técnicos, de estrutura, de gestão, além dos econômico-financeiros –, mas o fator humano e a dimensão ética da atuação profissional são sempre destaque.
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Qual deve ser o papel dos códigos de ética das empresas? Um código faz sempre referência a normas, regulamentos, leis, sanções e mandamentos. Não digo que isso não seja necessário. É, como também o são as correções, as multas, as punições – e, em casos extremos, à demissão daqueles que descumprem as regras impostas pela direção da empresa de forma grave, até porque eles próprios se comprometeram por escrito a cumpri-las. E é aqui que reside a razão de ser do que, no contexto empresarial se vem denominando, pela expressão em inglês, de compliance: ter um sistema bem azeitado, que garanta o cumprimento das normas, tanto daquelas que são gerais quanto de outros tipos de providências. Isso é algo fundamental, principalmente se a empresa pretende evitar práticas fraudulentas e corrupção, se se pretende erradicar as más práticas e a imoralidade nos negócios, se se busca suprimir os rosários de escândalos financeiros que os meios de comunicação retratam com recorrência. É claro que há deveres a cumprir, obrigações a respeitar, com rigorosas exigências. Mas também temos direitos a respeitar, de forma incontestável. Pensemos na necessidade de atender às recomendações da Organização das Nações Unidas – de que a dinâmica empresarial não deve nunca desrespeitar os direitos humanos –, a questão da produção deslocada, por exemplo, em que companhias buscam outros países para instalar plantas industriais, com vistas à relativização das legislações trabalhistas e reduções nos impostos. Como também a empresa precisa reparar e ressarcir os funcionários que eventualmente sejam desrespeitados em seus direitos por causa da atuação da empresa. Tudo, independentemente das consequências, boas ou ruins, e de todo tipo, econômicas, também, que se seguirem.
Os princípios básicos de justiça e respeito à dignidade das pessoas são um exemplo da demanda deontológica que traça uma linha vermelha, que não se deve ultrapassar. Mas isso é apenas parte da história, pois, junto ao momento deontológico, a ética oferece um aspecto propositivo complementar. E que já não se apresenta como inegociável ou inquestionável. Ao contrário, adota o tom de oferta de propostas, de um projeto que valeria a pena, porque se entende que é bom. E que pode ser bom para múltiplos agentes ou grupos de interesse – stakeholders – dentro e fora da empresa. E que pode, também, produzir um impacto positivo na busca de soluções para alguns dos desafios que enfrentamos. A empresa que entra nessa dinâmica evidencia um nível de autoconsciência e maturidade muito acima da média. Ainda é minoritária essa maneira de entender a relação que os novos tempos exigem que se estabeleça entre empresa e a sociedade. Mas, pouco a pouco, estão sendo dados passos significativos no que respeita ao
“A pessoa que aceita entrar para uma empresa deve estar consciente de que está transpassando uma nova porta que a levará a um novo âmbito de vida”
novo papel que a empresa e os negócios podem chegar a representar na construção de um mundo mais sustentável. Nesse sentido, cabe lembrar os 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável, que vêm sendo impulsionados, há dois anos, pela ONU, e que, por sua vez, herdaram o espírito dos chamados “Objetivos do Milênio”, em vigor entre os anos 2000 e 2015. A ideia é simples: precisamos que as empresas se engajem, junto às administrações públicas e aos movimentos sociais, na busca de soluções para os grandes desafios da atualidade. A humanidade tem uma agenda fabulosa: temos que garantir a paz e construir um mundo menos desigual. É imperativo superar enormes falhas institucionais, erradicar a miséria, gerir adequadamente as mudanças climáticas, lutar pela igualdade para todos, pelo acesso à moradia, à energia, à educação. Agora, estamos navegando pelo aspecto mais sutil e abstrato do que a empresa é e representa. E ainda nem falamos de benefícios ou resultados econômicos. Esse aspecto, propriamente estratégico, que deveria ser adotado e instrumentalizado desde o presidente, da mais alta hierarquia da organização, precisa ser entendido como a mais profunda razão de ser da empresa. Estamos diante da missão, com aquilo que dá sentido a tudo o que fazemos: às estruturas, ao organograma, ao design de nossos produtos, a toda a gestão da empresa. Aquela missão estratégica que se substancia em uma espécie de sonho antecipado, uma espécie de projeto visionário que necessita, por sua vez, de alguns sinais, de algumas referências claras que possam iluminar as reflexões, ao longo do difícil caminho da a cada dia mais acirrada competitividade, nesse mercado global. Aqueles ajustes necessários para marcar a pauta e iluminar o modus operandi da organização são exatamente os valores que a empresa assume como condição de possibilidade para cumprir seu objetivo estratégico. E, junto a eles, crescerá uma boa reputação entre os consumidores, o respeito dos competidores, a fidelidade de clientes e usuários, a lealdade e o orgulho de pertencimento dos empregados, a confiança da administração pública, das instituições de crédito e dos acionistas... Em suma, a legitimação da empresa por parte da sociedade. Enfim, pode-se dizer que os códigos éticos das empresas cumprem uma dupla função: de uma parte, indicam aos empregados o que se espera deles, o que se exige deles em matéria de conduta, no desempenho de suas funções profissionais. A opinião pública, por sua vez, deve tomar conhecimento desse código – que precisa ser de domínio público e, em atitude de indiscutível transparência, figurar no site da companhia.
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Filie-se à SBB A principal Missão da SBB é a de contribuir para a difusão da bioética no Brasil. Além disso, apoia profissionais e instituições nas diversas atividades relacionadas ao seu campo, como na atuação em comitês de bioética hospitalar, comitês de ética em pesquisa, na docência e na pesquisa. É também papel da SBB divulgar a produção em bioética, o que vem fazendo através dos seus congressos nacionais, meios eletrônicos de comunicação e da Revista Brasileira de Bioética (RBB). Participe! Filie-se à SBB pelo site: www.sbbioetica.org.br.
Em dia Congresso debate liberdades e responsabilidades da bioética
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ntre os dias 26 e 29 de setembro, a SBB promoveu o 12o Congresso Brasileiro de Bioética (CBB), no hospital do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), em Recife. Neste ano, o evento teve como mote “A Bioética e suas Liberdades e Responsabilidades”. Durante os quatro dias, os congressistas puderam discutir temas como bioética transexualidade e transgenitalização: autonomia, responsabilidade e estigmatização; bioética ambiental e sociobiodiversidade; bioética, saúde global e cooperação internacional; cobertura da assistência à saúde:
Ação contra o congelamento na saúde e educação Ação contra a Emenda Constitucional n° 95/2016, que congela o financiamento da saúde e educação por 20 anos, encaminhada para o Supremo Tribunal Federal (STF) pela Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), em parceria com o Fórum da Reforma Sanitá-
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como compatibilizar autonomia e responsabilidade por parte dos profissionais?; bioética, cuidados paliativos e finitude da vida humana; entre outros. Como nos anos anteriores, o CBB abrigou também o Congresso
Brasileiro de Bioética Clínica – desta vez, em sua 4a edição. O professor Rui Nunes, da Cátedra de Bioética da Universidade do Porto, Portugal, foi o responsável pela primeira conferência e falou sobre “Diretivas Antecipadas de Vontade”.
ria e o PDT, foi aceita em agosto. O pedido gerou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 5658, na condição de “amicus curiae”, que permite a entidades investidas de “representatividade adequada”, sejam admitidas em relação processual, para fins de colaboração e manifestação. Com a solicitação atendida, a SBB poderá opinar “sempre que a matéria seja de significativa relevância” no processo.
Publicações A editora CRV lançou o livro “Biotecnologia e Genética”, que, ao lado de quatro outros volumes, compõe a série de títiulos extraídos do 11o Congresso de Bioética. Aborda temas como o acesso à informação genética, as tecnologias aplicadas a partir da biologia molecular e a relevância da bioética nos conflitos que emergem no campo da biotecnologia. A autora é Daiane Priscila Simão-Silva.
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