2 REVISTA DO HOSPITAL DONA HELENA
Primavera 2014
A bússola da ética médica:
Declaração de Helsinque completa bodas de ouro SEGURANÇA É DESTAQUE EM EVENTOS NACIONAIS 6 COMO LIDAR COM O SUICÍDIO? 14 DIVERSAS FORMAS DE MORRER 20 A CIÊNCIA DA VIDA NOS CURSOS SUPERIORES 24 PERSPECTIVAS NEUROÉTICAS 28 OLHARES SOBRE O BEM-ESTAR 32 EUGENESIA E DESAFIOS ÉTICOS 40
Número 2. Primavera 2014
Nesta edição Uma nova técnica de reprodução assistida, um caso de suicídio, meios de despertar o sentimento solidário na educação infantil. Tratados constantemente pela mídia, temas como esses se tornam parte da pauta diária, em conversas com amigos e familiares. Mas quais os verdadeiros conflitos envoltos nessas situações? Que passos podem ser dados para se chegar às conclusões conceituais e científicas? São alguns questionamentos abordados nesta edição da Conecthos. Destaque para uma reflexão sobre a trajetória da Declaração de Helsinque, balizadora da ética na pesquisa médica, que está completando 50 anos. Leia também uma entrevista exclusiva com um dos principais bioeticistas mundiais, José Carlos Abellán Salort. Além de reportagens sobre suicídio, neuroética, bioética, morte com dignidade, entre outros assuntos.
6 Modelo de segurança 8 50 anos de Helsinque 14 A polêmica do suícidio 20 Morrer com dignidade 24 Bioética na academia 28 Neuroética e o futuro 32 Olhar bioético sobre o bem-estar
40 Conflitos éticos e eugenesia 46 Hospitalidade para atender bem
Associação Beneficente Evangélica de Joinville Hospital Dona Helena. Rua Blumenau, 123 - Centro, Joinville/SC. CEP 89204-205. Contato: (47) 3451-3333/www.donahelena.com.br Revista Conecthos é um projeto do Centro de Estudos, Pesquisa, Extensão e Desenvolvimento do Hospital Dona Helena (Ceped)/ Núcleo Editorial. Coordenação geral: Carlos José Serapião/Conselho editorial: Ana Ribas Diefenthaeler, Antonio Sergio Ferreira, Gizele Leivas, Letícia Caroline, Wladimir Kummer/Editores associados: Bruno Rodolfo Schlemper Jr. , Christian Ribas, Maria José Varela, Fernando Hellmann, Nelma Baldin, Euler Westphal, José Carlos Abellán (Espanha)/Jornalista responsável: Guilherme Diefenthaeler (reg. prof. 6207/RS)/ Produção: Mercado de Comunicação/Edição: Guilherme Diefenthaeler e Letícia Caroline/Reportagem: Letícia Caroline, Karoline Lopes, Mayara Pabst, Marcela Güther, Karoline Lopes, Ana Ribas Diefenthaeler e Guilherme Diefenthaeler/Diagramação: Fábio Abreu/Fotografia: Peninha Machado e banco de imagens/Impressão: Impressora Mayer/Tiragem: 2 mil exemplares/Redação: contato@mercadodecomunicacao.com.br/Apoio: Sociedade Brasileira de Bioética/ Regional Santa Catarina.
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Nossa palavra
Seguindo nas reflexões Carlos J. Serapião
M
uitos duvidam, e com razão, da segura sustentabilidade de nossa sociedade, com seus fundamentos apoiados no desenvolvimento, nas tendências dominantes da economia, na técnica, na indústria, nas ciências, e que o pensamento técnico burocrático seja capaz de prever com clareza o nosso futuro. Desse modo, o que estamos assistindo é a tentativa de construção de um futuro imaginário a partir de um presente abstrato. Como pensar o futuro quando sequer entendemos o presente? Não se consegue distinguir a existência de um determinismo capaz de condicionar a evolução dos tempos a um movimento linear. Certos movimentos podem se sobressair e dominar, mas há uma definida diversificação nessa predominância, que a faz policausal e até mesmo holográfica, com inovações que sustentam ou que se apresentam como tendências, as quais acabam por invadir espaços múltiplos do conhecimento e das atividades humanas, como a biologia, a sociologia, a economia, as artes. Há uma concreta sensação de que perdemos a certeza da evolução linear, do futuro pré-programado, do porvir robotizado, embora tenhamos alcançado conquistas como a comunicação, a longevidade, a complexidade das ideias críticas, para citar somente algumas. Essa interdisciplinaridade que exige que cada um se liberte do domínio de seu conhecimento específico e se beneficie da mistura reflexiva de
múltiplos saberes é a base da bioética. Nesses termos, parece, à primeira vista, que a complexidade da noção estaria no sufixo “ética”, quando, em realidade, é o segmento “bio” que mais vem se modificando em seu conteúdo. Essa dificuldade se amplia com o desenvolvimento e as práticas tecnocientíficas. A vida não é, então, definida por um conceito único, porém se incorporam vários pontos de vista, a partir de disciplinas específicas que convergem em um conceito transcendental exprimindo trabalhos das nanotecnologias, das biotecnologias, das ciências da informação e das cognitivas. O interdisciplinar da bioética favorece o encontro dos saberes científicos e humanos em um movimento enriquecedor, e ao mesmo tempo decantador, fazendo dela uma área evolutiva do conhecimento. Neste momento, assiste-se ao ressurgimento, no grande público, do interesse pelas teorias filosóficas, ao mesmo tempo em que aparecem excelentes estudos sobre a interrelação da ciência com a filosofia. A tecnociência nos afeta, gostemos ou não, modulando nossa visão do mundo. Ela suscita questões fundamentais acerca do modo como nos relacionamos com a natureza. A cada geração, são oferecidas novas questões sobre uma ciência dinâmica com consequências filosóficas que despertam respostas pouco definidas, quase sempre conjunturais e temporárias. Tais reflexões, que seguimos considerando nesta tribuna denominada “Conecthos”, fazem parte de uma viva provocação ao pensamento.
Carlos J. Serapião
Coordenador do Comitê de Bioética do Hospital Dona Helena e presidente da Sociedade Brasileira de Bioética/Regional Santa Catarina
Institucional
Modelo de segurança dos pacientes é destaque em congressos nacionais
Nos dias 4 e 5 de agosto, a farmacêutica Cíntia Tavares representou o Hospital Dona Helena no 7º Seminário Nacional de Acreditação. O evento ocorreu em São Paulo e teve como tema “Assistência segura ao paciente: uma reflexão teórica aplicada à prática assistencial”. A integrante do Comitê de Gestão da Qualidade participou do painel “Eventos adversos relacionados à assistência em serviços de saúde”, abordando a identificação e comunicação com pacientes e familiares nos processos assistenciais. No final do mesmo mês, entre os dias 27 e 29, ocorreu o 36º Encontro Catarinense de Hospitais. O médico Carlos José Serapião expôs o trabalho realizado na instituição sobre os procedimentos relacionados à segurança do paciente. Além disso, o Dona Helena também participou da “Feira de tecnologia, produtos e serviços hospitalares”. O evento foi organizado pela Associação de Hospitais do Estado de Santa Catarina (Ahesc/Fehoesc), em Florianópolis.
HDH realiza cirurgia com técnica inédita O Hospital Dona Helena realizou a primeira cirurgia de coluna vertebral com técnica minimamente invasiva em Joinville. O procedimento videoendoscópico para tratamento de hérnia discal foi conduzido pelo médico Rogério Leite. Em meia hora, a equipe removeu a hérnia e o paciente, com anestesia local, saiu do hospital no mesmo dia, sem a dor na perna, sua principal reclamação. De acordo com o ortopedista, os diferenciais do procedimento são a rápida recuperação, o pós-operatório com pouca dor e a possibilidade de mexer no local afetado sem comprometer outras áreas, como tecidos nervosos e musculares.
Área de Gerenciamento de Risco presente em evento da Sociedade Brasileira de Videocirurgia A gerente da área de Gerenciamento de Risco do Hospital Dona Helena, Osmarina Borgmann, marca presença no 12º Congresso Brasileiro de Videocirurgia, no final de setembro, em Florianópolis. Convidada pela Sociedade Brasileira de Videocirurgia (Sobracil), a fisioterapeuta fala sobre a importância do gerenciamento de risco na instrumentação cirúrgica. Em paralelo ao evento, ocorre o 1º Congresso Internacional da Sociedade de Cirurgia Robótica. No HDH, a área de Gerenciamento de Risco tem extrema importância na garantia da segurança do paciente. Baseada em protocolos in-
ternacionais, suas técnicas são utilizadas para caracterizar os processos de identificação, avaliação e controle de risco. Para isso, são implementadas medidas e procedimentos técnicos e administrativos, com o objetivo de prevenir e controlar possíveis causas de problemas.
Uma imagem Prestes a celebrar o centenário, em 2016, o Hospital Dona Helena não para de crescer. O Centro Clínico, novo prédio com 11 andares, já tem espaços ocupados por serviços, clínicas e áreas administrativas da instituição. No dia 12 de novembro, o hospital completa 98 anos.
Atendimento humanizado Pensando no bem-estar de pacientes e profissionais, o HDH conta com o Pró-Humano, programa de humanização que é constituído por uma psicóloga, uma pastora e capelã hospitalar, além de mais de 60 voluntários distribuídos em várias atividades. Há alguns meses, o hospital lançou um novo projeto que vai, primeiramente, ocorrer em apenas uma unidade de internação. O volun-
tário passará um tempo ao lado do paciente, permanecendo totalmente dedicado a ele – a única proibição é falar sobre a doença ou tratamento. Denominada “Jogos para vida”, a ação terá a equipe de enfermagem como parceira direta, para atender às necessidades dos internados e orientar os visitadores. Entre as atividades desenvolvidas pelos voluntários, também estão o grupo de Agentes Solidários Hospitalares (o projeto mais antigo), o Hospirrisos – Agentes da Alegria, ente outras que envolvem a Faculdade de Pedagogia de Joinville e a participação de grupos de voluntários da unidade local da Embraco.
Declaração de Helsinque
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O princípio da ética médica
O
primeiro guia ético global a nortear a realização de pesquisas biomédicas envolvendo seres humanos está fazendo bodas de ouro. Batizado de Declaração de Helsinque (DH), alusão à cidade-sede do evento que lhe deu origem, o documento foi instituído na 18ª assembleia da Associação Médica Mundial (AMM), na capital da Finlândia. Meio século depois, o texto pioneiro da DH passou por sete atualizações em seu conteúdo, mas continua visto como o mais importante balizador para experimentos médicos com humanos, tendo influenciado legislações nacionais e internacionais. A sétima revisão se deu em Fortaleza, no dia 18 de outubro de 2013. Um catarinense acompanhou de perto esse processo, com aguçado olhar acadêmico. Mestre em Saúde Pública, formado em Naturologia, Fernando Hellmann leciona na Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), onde dirige o Comitê de Ética em Pesquisa. É, também, subcoordenador do comitê homônimo na Secretaria de Estado de Saúde, e conclui neste ano o doutorado em Saúde Coletiva pela UFSC, área de concentração em bioética. Com tal trajetória, explica-se a escolha pelo tema da ética em pesquisa para sua tese, que deve apresentar à banca em dezembro. A coincidência do ponto final no doutorado com o cinquentenário da DH – instância que considera “um marco fundamental para a pesquisa clínica” – não deixou dúvidas sobre o foco do estudo. Durante uma
semana, com bolsa concedida pela Capes, Hellmann teve a oportunidade ímpar de mergulhar em documentos oficiais que compõem o acervo da AMM, em Ferney-Voltaire, cidade francesa que faz divisa com Genebra, na Suíça. No ano passado, compareceu a dois encontros que precederam a última revisão, em Tóquio e Washington, além da assembleia de Fortaleza, onde se formalizou a versão atual do documento. Um dos capítulos da tese resgata a história de Helsinque, desde os primórdios da Associação Médica Mundial, nascida às sombras da 2ª Guerra, em 1947. A tentativa de estabelecer princípios deontológicos que regulamentassem pesquisas médicas buscava superar os horrores cometidos nesse campo pelos nazistas. Embora também fosse a proposta do Código de Nuremberg, elaborado por juízes no âmbito do tribunal que condenou os médicos alemães, a AMM não adotou aquele parâmetro e preferiu avançar em uma normatização própria. Um primeiro documento com o aval da entidade viria em 1953/1954, até que uma prévia do que seria a DH resultou da assembleia da entidade que teve lugar no Rio de Janeiro, em 1961. Hellmann descreve o contexto da época: “A moralidade médica nas décadas de 1950 e 1960 era marcada pelas ações do médico em favor do paciente, uma espécie de virtude e paternalismo que consagrava a autoconsciência do profissional”. Desse modo, por exemplo, se o médico julgasse necessário recorrer a um novo método, no decorrer de experimentos terapêuticos, não havia restrições – quanto ao consentimento do paciente, este deveria ser tomado “à medida do possível”. A DH passaria pela primeira revisão em 1975, com apenas 11 anos de vigência. Como pano de fundo, uma saraivada de denúncias de imoralidade em pesquisas médicas, que o documento original não evitou. “A década de 1970 Fernando Hellmann
“Um denominador comum (para pesquisas científicas, internacionalmente) é possível, embora pareça estar muito mais próximo de uma utopia” 9
presenciava grande mudança na moralidade médica, especialmente com o paternalismo sendo suavizado pela ascensão do respeito à autonomia do paciente”, relata o autor. “Era o nascimento da bioética como discurso, movimento e disciplina, que marcava as mudanças no fazer e no saber médicos.” Os ajustes no teor da declaração, de lá para cá, são vistos como naturais, tendo em conta a evolução do conhecimento e das pesquisas biomédicas de maneira geral, como também aspectos sociais e culturais determinantes nos padrões éticos. De outra parte, o ritmo das modificações, em períodos cada vez mais exíguos, sugere o quanto é complexa a tarefa de criar um “denominador comum” de caráter internacional para orientar pesquisas com seres humanos, na opinião de Hellmann. “As constantes atualizações refletem não apenas a pluralidade moral envolta nesses procedimentos, mas, sobretudo, os conflitos de interesse e os impactos que tais princípios podem causar na produção comercial de novos medicamentos e equipamentos diagnósticos e terapêuticos”, sustenta o doutorando, para reconhecer que o cruzamento com o terreno político e econômico acaba por gerar, em alguns casos, forças contrárias aos mais elevados referenciais éticos em pesquisa. Não se sabe quando a AMM vai avaliar necessário novo encontro para rever passagens da DH, mas é certo que isso ocorrerá. Para Hellmann, o melhor seria estabelecer parâmetros mais perenes. “A Declaração Universal dos Direitos Humanos, 10
Última revisão da DH, no ano passado, em Fortaleza, desfez a distinção entre pesquisa terapêutica e não-terapêutica de 1948, permanece inalterada até hoje. Se direitos humanos não são modificáveis com tamanha frequência, princípios éticos que possam proteger os sujeitos de pesquisa das possíveis atrocidades deveriam ser mais profundos para dispensar tantas atualizações”, argumenta, ressalvando que a tendência é outra: “Sendo um ‘documento vivo’, os próximos 50 anos da DH serão semelhantes aos que se foram – novas controvérsias surgirão e antigas reaparecerão”. Reunidas na capital cearense, no ano passado, as associações médicas filiadas à AMM reorganizaram e reestruturaram a Declaração de Helsinque com subtítulos e agregaram um parágrafo para ampliar a proteção dos participantes de estudos, prescrevendo – pela primeira vez – “tratamento e compensação apropriada” aos indivíduos que venham a ser prejudicados devido a essa condição. O doutorando nota que faltou indicar quem vai decidir o que é ou não apropriado, e como será tal compensação: “Quem arcará com as despesas? Patrocinadores da pesquisa, sistema nacional de saúde ou terceiros?”, questiona. Ele analisa que a edição 2013 avança ao trazer requisitos mais precisos para acordos pós-estudo. Conforme a leitura crítica de Hellmann, a última revisão não mexeu em um parágrafo controverso sobre o uso de placebo para pesquisas com tratamentos já comprovados. “Foram feitas apenas mudanças para uma abordagem mais sistemática desse tema.” No conjunto, o médico avalia que a mudança mais significativa da atual versão foi extinguir a diferenciação entre pesquisa terapêutica e não-terapêutica. Ele observa que a justificativa para o ajuste foi a de que existiria conflito entre o papel do médico-assistente e o do médico-pesquisador. “Essa extinção dissipa o juramento de Hipócrates quando diz que a saúde do paciente será a primeira preocupação do médico. Logo, o doente em pesquisa é um sujeito de pesquisa igual àqueles que participam gozando de plena saúde. É comum que doentes acreditem que o médico vá agir no melhor interesse do paciente. Mas, se o médico é o pesquisador, ele não tem mais esse compromisso.”
Para Hellmann, temas como enhancement, biobanco e outros terão de ser tratados com mais ênfase nas próximas versões
“O espírito se manteve, mas ainda há brechas” A Declaração de Helsinque passou por sete revisões em cinco décadas. É o suficiente para garantir que permaneça válida como referência ética de pesquisas médicas? Não. Serão necessárias novas revisões, pois os avanços científicos e as mudanças sociais precisam ser incorporadas aos guias éticos para pesquisas. A declaração atual não aborda temas emergentes em pesquisas médicas, a exemplo de pesquisas sobre o enhancement (melhoramento humano), como aquelas que pretendem aumentar o QI, ampliar a performance de atletas, enfim, que acabam por implicar em uma realidade de superar a própria condição de seres humanos. Se podem melhorar a capacidade humana, podem proporcionar problemas éticos graves para a sociedade, tal como o acesso da população a esses conhecimentos, e criar novas formas de preconceito e exclusão social. Enfim, esse é um dos temas que a DH aprovada em 2013 não aborda. E novos temas virão, novas revisões serão necessárias. Após as revisões, o “espírito” original da DH foi preservado? Sim, mas eu dividiria esse “espírito” em dois. O primeiro, preservado, refere-se às preocupações acerca da condução ética das pesquisas médicas de forma geral, que é o principal. O segundo remete àquelas “forças” que impedem os mais altos padrões éticos, as quais permanecem. Notemos que a primeira versão da DH, aprovada em 1964, foi conduzida por um tortuoso caminho que durou praticamente 10 anos. O primeiro esboço oficial da DH, que já havia sido apresentado no Brasil na 15ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, ocorrida no Rio de Janeiro em 1961, e um ano mais tarde publicado no British Medical Journal, trazia princípios éticos alusivos às pesquisas controladas por placebo e princípios que balizavam o tema das pesquisas com prisioneiros e crianças
em orfanato. Contudo, esses assuntos foram propositalmente retirados da versão final aprovada em Helsinque. Assim, revela-se que a primeira versão oficial foi abrandada, pois naquela época eram comuns e legais, especialmente nos Estados Unidos, pesquisas com tais populações. Esse mesmo propósito de abrandar a DH permanece. De 2002 para cá, a DH flexibilizou seus princípios no quesito do uso do placebo para pesquisas para as quais exista tratamento conhecido da doença em estudo. É possível dizer que há brechas na DH que não garantem a devida proteção de populações com maior grau de vulnerabilidade. Há outros aspectos que mereceriam atenção em uma próxima revisão do documento? Alguns temas de ética em pesquisa, tais como pesquisas em melhoramento humano, nem são abordados. Outros, como a questão dos biobancos, aparecem de forma insuficiente. Por exemplo, nenhuma menção é feita quanto à partilha de dados genômicos no âmbito de pesquisas de cooperação internacional. Há outros pontos que podem ser mais esclarecidos, tal como o termo “melhor intervenção comprovada” (best proven intervention) como comparador no braço controle de pesquisas de novos medicamentos ou intervenções: elas seriam as melhor comprovadas localmente ou globalmente? Esse tema permanece controverso e é crucial para clarear o debate acerca do “duplo standard” ético em pesquisas biomédicas. O documento é, de fato, balizador
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“A indústria farmacêutica e certos Estados preservam seus próprios interesses e interferem nos interesses daqueles que não são ouvidos no processo de revisão: os participantes dos estudos, sobretudo os vulneráveis” da ética em pesquisa na medicina internacional ou existem resistências? A DH pode ser considerada historicamente como um dos principais documentos balizadores da ética em pesquisa envolvendo seres humanos no âmbito internacional. Mas ela perdeu tal centralidade e não mais se configura como balizador internacional. Primeiro pelo fato de que pesquisas biomédicas envolvendo seres humanos não contam apenas com médicos: bioestatísticos, farmacêuticos, enfermeiros, entre outros profissionais, compartilham espaço especialmente nas pesquisas clínicas. Ora, a DH é endereçada aos médicos, é produto da Associação Médica Mundial, embora esta encoraje os outros participantes das pesquisas biomédicas a incorporá-la. Outro fator é a proliferação de guias internacionais para tais pesquisas, que dividem espaço com a DH. Em alguns princípios, tais documentos podem apresentar diferenças de interpretação, fazendo com que tais guias se convertam em documentos maleáveis e possam ser usados em favor dos interesses dos pesquisadores e patrocinadores mais do que dos participantes de pesquisa. Mas a maior resistência à DH é exercida pelos países. Os Estados Unidos, por exemplo, através do Food and Drug Administration (FDA), que já não havia incorporado a versão da DH datada do ano de 2000 para pesquisas realizadas no país, abandonaram a necessidade de aderências à DH para pesquisas ocorridas fora dos EUA logo da adoção da versão em 2008. O Brasil, por sua vez, também não adere às versões da DH posteriores a 2000: cabe notar que a Resolução CNS 466/12 não menciona, propositalmente, as versões e notas de esclarecimentos da DH dos anos de 2002, 2004 e 2008.
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Hoje, ainda é possível considerar que um único conjunto de preceitos determine o que é ou não ético, no exercício de pesquisas biomédicas, em países e povos com culturas tão e cada vez mais distintas, ao redor do mundo? A pluralidade moral é um dos principais desafios na elaboração de um conjunto de princípios éticos para pesquisas envolvendo seres humanos que valha internacionalmente, embora esse não seja o único desafio. Mas acredito que no panorama ético seja possível, embora difícil, encontrar um único denominador comum no âmbito internacional. Podemos problematizar esse denominador comum como sendo a ética de mínimos, ou seja, aquilo que seria o mínimo de regras morais que pudesse ser universalizável. Por outro lado, temos a ética de máximos – aquilo que não é universalizável, mas particular de cada grupo ou cultura. A ética de mínimos precisa ser conseguida para balizar guias éticos internacionais, tal como a DH; mas ressalto que a ética de mínimos não pode ser entendida como baixos princípios éticos ou como algo menor, mas como princípios de justiça, de exigências mínimas que garantam direitos e deveres possíveis de uma convivência social no mundo. Um denominador comum é possível, embora pareça estar muito mais próximo de uma utopia. O fato é que vivemos em um mundo individualista e a cidadania é exercida em cada Estado, ou no máximo em certas comunidades, tal como a europeia. Quem sabe, um dia teremos uma cidadania planetária, que facilite a compreensão de que vidas humanas não são hierarquizáveis. Atualmente, os nascidos em países em desenvolvimento têm maiores chances de ser sujeitados para o conhecimento científico que será mais acessível aos nascidos em países desenvolvidos. O que determina a versão atual da Declaração de Helsinque quanto ao uso de populações pobres de países em desenvolvimento nas pesquisas médicas? A DH informa que a investigação médica com um grupo vulnerável só se justifica se a pesquisa responder às necessidades de saúde ou prioridades desse grupo, e que tal pesquisa não pode ser realizada em um grupo não vulnerável. Mas, de forma geral, a escolha dos grupos participantes em pesquisa se dá mediante às necessidades da pesquisa, ou seja, é claro que as pesquisas responderão às necessidades dos grupos mais vulneráveis, de outra forma tal grupo nem seria cogitado para participar da pesquisa. Em última análise, justificativas como a variabilida-
De 2002 para cá, a declaração flexibilizou seus princípios para o uso do placebo em pesquisas para as quais exista tratamento conhecido da doença em estudo rem diretamente nessa questão. Pesquisas placebo controladas são consideradas o padrão ouro dos estudos clínicos, mas a cientificidade não é a questão central para a indústria: elas são mais baratas e mais rápidas do que aquelas comparadas com as intervenções comprovadas. Por sua vez, alguns Estados, e aí deve se destacar o governo norte-americano, por meio da FDA, preferem o padrão ouro dos estudos científicos, pois garantiria produtos mais seguros para disponibilizar aos cidadãos. Contudo, para que a maximização da vida dos norte-americanos seja garantida com produtos de qualidade aprovada pelo FDA, muitas pessoas de países longínquos acabam sendo os sujeitos dos estudos que seriam considerados antiéticos no solo do Tio Sam.
de biológica e genética dos grupos humanos acabam por ser aceitas, especialmente nas pesquisas clínicas, para a inclusão de diferentes grupos; portanto, esse princípio é facilmente contornado com justificativas retóricas que mascaram aquilo que figura entre as principais motivações da indústria (prioritariamente a farmacêutica), e às vezes de Estados, a realizar pesquisas em países em desenvolvimento: questões econômicas e fragilidades quanto a legislações nacionais de proteção dos sujeitos participantes do estudo. Contudo, a DH de 2013 teve um avanço. Pela primeira vez, a exigência de compensação e tratamento adequado para os que foram prejudicados em pesquisa foi introduzida. Resta saber como será cumprida. Como se refletem, no documento, as disputas entre grupos de poder? Grupos como a indústria farmacêutica e certos Estados preservam seus próprios interesses e interferem nos interesses daqueles que não são ouvidos no processo de revisão: os participantes dos estudos, sobretudo os vulneráveis. A indústria, especialmente a farmacêutica, tem, em sua maioria, a finalidade de gerar lucros, e alguns princípios interfe-
Os interesses e expectativas do paciente têm sido levados em conta, efetivamente, nas rediscussões sobre a DH? Pude acompanhar e participar de encontros que conduziram o último processo de revisão e analisei os documentos oficiais, bem como todos os documentos recebidos nas consultas públicas feitas pela AMM. Apenas uma carta com algumas contribuições foi encaminhada pela International Alliance of Patients’ Organizations (Iapo), que defende os interesses de pacientes. E as contribuições poderiam ser muito mais prescritivas quanto à defesa do interesse dos pacientes que fazem parte de estudos científicos. Mas o problema é que associações como essas não são ouvidas, literalmente (são apenas lidas), já que nem essa e nem outra entidade do tipo participou de algum encontro presencial. As indústrias farmacêuticas e órgãos governamentais são muito mais ouvidos do que as organizações de defesa dos doentes e dos participantes de estudo.
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Suicídio
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Tabu na área da saúde
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Tenho certeza que estou enlouquecendo novamente. Sinto que não conseguiremos passar por novos tempos difíceis. E não quero revivê-los. Começo a escutar vozes e não consigo me concentrar. Portanto, estou fazendo o que me parece ser o melhor a se fazer”, diz o bilhete deixado pela aclamada escritora britânica Virginia Woolf ao seu esposo, em 1941, antes de se afogar. Woolf não foi a primeira e nem a última pessoa a tirar a própria vida por vontade espontânea: o suicídio está presente em toda a história da humanidade. A discussão, no entanto, continua a ser tabu. Mas nem sempre o fenômeno foi visto de forma negativa. A concepção social de suicídio se modoficou conforme a transformação do mundo. Cada civilização o
encarou de uma forma distinta: tolerando-o, estimulando-o ou reprimindo-o. “Na Antiga Grécia, um indivíduo não podia se matar sem prévio consenso da comunidade porque o suicídio constituía um atentado contra a estrutura comunitária. Era condenado política e juridicamente”, diz o psicólogo Marcimedes Martins da Silva em sua tese de dissertação de mestrado intitulada “Suicídio – Trama da Comunicação”, de 1992. Outro exemplo é o fato de que, entre os primeiros cristãos, havia quem se suicidava como uma maneira de se aproximar de Deus. Com a consolidação da Igreja Católica, o suicídio passou a ser reprimido e, posteriormente, perseguido. Como afirma Rooselvelt Cassorla, em “Do suicídio – Estudos Brasileiros”, publicado em 1998, há vários tipos de posicionamentos em relação ao ato. Existem sociedades que o abominam e rejeitam (tal como a ocidental), e outras que, de alguma maneira, chegam a incentivá-lo por fins ideológicos ou religiosos, como é o caso das orientais, nas quais essa é uma solução para determinadas circunstâncias da vida, como o fracasso escolar de um jovem. Hoje, o fenômeno do suicídio não é mais punido como crime, mas evitar o debate sobre o assunto pode ser preocupante, tendo-se em vista os dados atuais. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), em seu programa de prevenção ao suicídio, a cada 40 segundos uma pessoa se mata no mundo, totalizando quase 1 milhão de ocorrências todos os anos. Diariamente, pelo menos 25 brasileiros morrem vítimas de suicídio. Mas o que faz com que uma pessoa interrompa a própria existência? Quais os principais fatores que levam o indivíduo a se matar? O suicídio pode estar ligado a alguma doença mental? Como é visto e tratado pelos profissionais da saúde?
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Nove em cada dez casos poderiam ser evitados Segundo estudo realizado pela Unicamp, 17% dos brasileiros, em algum momento, pensaram seriamente em dar um fim à própria vida e, desses, 4,8% chegaram a elaborar um plano para isso. De acordo com Marciane Pereira Santos, psicóloga da Universidade da Região de Joinville (Univille), o suicídio, em si, não faz parte da natureza humana, mas pensar em morte e finitude, sim. “Temos, conforme definiu Freud, impulso de vida e morte, mas não o de suicídio. O impulso de morte, quando maior que o impulso da vida, pode nos levar a ter depressão e ideias suicidas”, explica. O psicanalista Maurício Maliska também resgata o pensamento de Sigmund Freud, pai da psicanálise. “Freud, numa primeira teorização, disse que o sujeito sempre buscava o prazer e evitava a dor e o sofrimento. Depois, ele mesmo abandonou essa teoria. Sujeitos buscam, sim, formas de sofrimento ou prazer por meio da dor. Pensando em suicídio através dessa perspectiva, podemos pensar na morte como uma forma de gozo, em que o sujeito encontra-a por um excesso de prazer”, discorre. O Ministério da Saúde considera o suicídio como um problema de saúde pública: a cada ato, de seis a dez outras pessoas são diretamente impactadas, desenvolvendo transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Segundo a OMS, nove em cada dez suicídios poderiam ser evitados, desde que existam condições mínimas para oferta de ajuda voluntária ou profissional. Em geral, pessoas com pensamentos suicidas procuram ajuda médica antes de realizar a ação. O discurso do Centro de Valorização da Vida (CVV), entidade que atua na prevenção de atos suicidas há 52 anos, é de que a falta de conscientização e de comunicação reduz as chances de prevenção. No Brasil, o Rio Grande do Sul, um dos Estados com os melhores indicadores sociais do país, lidera as estatísticas de suicídio. Entre 2007 e 2010, houve 10,2 mortes por suicídio a cada 100 mil habitantes na região. Na lista, Roraima, Mato Grosso do Sul, SanFamília, amigos e grupos de apoio devem atuar em conjunto, como redes protetivas
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ta Catarina e Piauí seguem com as maiores taxas. Entre os jovens, o índice é mais preocupante: aumentou pelo menos 30% nos últimos 25 anos – mais do que a média da população nacional. O crescimento vai contra a tendência observada em países da Europa Ocidental, nos Estados Unidos, na China e na Austrália. Nesses lugares, o número de jovens suicidas vem caindo, segundo estudo da University College London, de 2012. Um dos fatores pode ser que, nos EUA, por exemplo, o comportamento suicida é considerado urgência médica. Segundo dados da OMS (2012), os transtornos mentais são importante fator de risco para o suicídio na Europa e América do Norte. Em países asiáticos, no entanto, prevalece o comportamento impulsivo. O suicídio é uma das três principais causas de morte entre pessoas de 15 a 44 anos – não incluindo as tentativas de suicídio, que são até 20 vezes mais frequentes do que os casos de suicídio concluídos. De acordo com a Sociedade Brasileira de Psiquiatria (SBP), há dois grupos de risco: além dos jovens entre 15 e 30 anos, os idosos acima de 65. O risco se torna ainda maior quando o
Uso de medicação é fundamental para controle de transtornos psiquiátricos indivíduo já tentou se matar ao menos uma vez. Acima de tudo, o suicida quer acabar com a dor e o sofrimento. A vontade de morrer pode ser disparada por um momento de desespero, que sempre é passageiro. “Trata-se de um sentimento que sustenta uma ideia recorrente que pode ser um desejo de se livrar de um grande sofrimento, fracasso e impotência diante das dificuldades da vida, mas geralmente está associado a alguma patologia”, afirma a psicóloga Marciane Pereira Santos. De acordo com o CVV, no momento em que a pessoa tem ideias suicidas, combina dois ou mais sentimentos ou ideias confli tuosas – um estado interior chamado de ambivalência. Ela busca atenção por se sentir esquecida ou ignorada e tem a sensação de uma solidão e isolamento insuportáveis. Para Maurício Maliska, não há como traçar o perfil de um indivíduo que pretende se matar ou que pode vir a cometer suicídio. “A OMS e o Ministério da Saúde, em seus manuais, trazem fatores considerados de risco. A doença mental é um deles”, diz o psicanalista, frisando que a lista é bem ampla. Entre estes, pode-se citar: sentimentos depressivos, transtorno de humor, transtorno bipolar, isolamento social, abandono, uso e abuso de álcool ou outras substâncias, estresse, crises econômicas, perda de um familiar,
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Postura do profissional deve ser de acolhimento e compreensão do sofrimento do doente
esquizofrenia e transtorno de personalidade. Porém, na maioria dos casos, o suicídio está ligado a um transtorno mental – o que deve manter os órgãos de saúde atentos à prevenção, diagnóstico dos casos e o tratamento correto. “A medicação para controle dos transtornos psiquiátricos é fundamental. Aos profissionais, é importante adotar estratégias de afastamento e monitoramento de substâncias nocivas e objetos que ofereçam risco, acionamento de uma rede de contato protetiva (familiares, amigos, grupos de apoio), sensibilização do
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cliente para solicitação de ajuda sem culpa. A postura do profissional deve ser de acolhimento e compreensão ao sofrimento, diminuindo a postura de auto cobrança ou sentimento de impotência da pessoa com risco de suicídio”, indica Marciane. De acordo com diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), o profissional que trabalha com tal população tem três possibilidades de encaminhamento: internação hospitalar, atendimentos em centros de referência como o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) ou atendimento ambulatorial comum. Os centros são vistos como uma boa opção, pois oferecem tratamento farmacológico e psicológico intensivo. Maliska observa que o atendimento frente a casos como suicídio não deve seguir um protocolo: a abordagem deve ser individualizada. O xis da questão no tratamento, para ele, concentra-se na disposição do profissional em escutar o sujeito. “Em vez de o suicida colocar o sofrimento em palavras ou choro, ele o transforma em ato. Os profissionais devem dar vazão à palavra. O que é algo muito difícil”, ressalta. Em geral, a posição diante de um paciente depressivo, com grau debilitado de desesperança, é incitar uma atitude que reprima a tristeza e a dor e dê lugar ao “pensamento positivo” perante a vida – o que é errôneo. “É preciso fazer o movimento contrário. A pessoa está com a emoção contida, borbulhante, que precisa ser colocada para fora”, indica o psiquiatra. No entanto, ninguém está preparado para lidar
com a morte, o ser humano tende a repelir o contato com o assunto. Outra dificuldade encontrada quando se fala sobre o tema é a precariedade na formação em urgências psiquiátricas. “Pensar o suicídio como uma questão controlada do ponto de vista da saúde é impossível”, pontua Maliska. “Os próprios governos não possuem um programa de saúde específico e eficiente destinado aos suicidas em potencial. Os profissionais não dispõem de capacitação humana e profissional adequadas para receber, atender e encaminhar – se for o caso – sujeitos que tentaram o suicídio, com vistas a atendê-los em sua integralidade e conduzi-los aos setores que possam tratar seus problemas”, argumenta Edilberto Raimundo Daolia, em artigo publicado na Revista Bioética, do Conselho Federal de Medicina (CFM). O mestre em bioética evidencia que o tratamento sobre o assunto difere de acordo com a área de estudo. Na perspectiva biológica, estuda-se o suicídio que se repete em uma família, sugerindo que fatores biológicos desempenham forte papel de risco. Numa visão psiquiátrica, está diretamente ligado às perturbações mentais, depressões graves, melancolias, desequilíbrios emocionais, obsessões etc. Num ponto de vista sociológico, Émile Durkheim inaugurou, no século 19, uma corrente teórica que estuda o fenômeno a partir do ambiente e influências sociais. Daolia critica o enfoque desses estudos, que sempre tratam o tema a partir do impacto do fenômeno ou no estudo de causas unilaterais, sendo que trata-se de algo de tamanha complexidade e influenciado por diversos fatores. A bioética, segundo Daolia, traria ao tema suicídio a prevalência da preocupação com o humano, contemplando sua saúde física, social e espiritual. “Em breve, a bioética será estratégica para a melhor compreensão do evento suicídio, dado que também proporcionará os instrumentos de mudanças no comportamento que podem vir a contribuir para a sua redução ou ocorrência. Isso quer dizer que o homem se preocupará mais com o seu semelhante, proporcionando-lhe oportunidades de ouvi-lo, entendê-lo e novas chances para recomeçar algo”, conclui.
Bioética pode trazer uma visão humanizadora para a prevenção do suícidio
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Evolução
Direito à boa morte
A
única certeza que temos na vida é a morte. Como disseram Toquinho e Vinícius de Moraes, “a gente mal nasce e começa a morrer”. Mas, quando a hora chega e deparamos com o fim do ciclo da existência, encará-la e aceitá-la é tarefa complicada. Para tranquilizar pacientes terminais e familiares, os cuidados paliativos são uma ferramenta importante, à medida que oferecem apoio às pessoas que não têm mais perspectiva de cura. Segundo a coordenadora do Programa de Humanização do Hospital Dona Helena, Maria José Varela, o diferencial do tratamento é a equipe. “Os investimentos são concentrados na minimização do sofrimento físico e psíquico, por meio do controle da dor, no conforto e na melhor qualidade de vida possível para o tempo que está reservado a cada um. Assim, os procedimentos mais invasivos, doloridos, que não vão trazer esperança de alteração do quadro clínico não são realizados”, explica. A orientação do indivíduo e da família se tornam fundamentais, pois todo o cuidado paliativo está sustentado em comunicação e confiança entre eles e a equipe de profissionais que cuida do paciente. Entre as características desse tipo de procedimento, destaca-se olhar o paciente além dos aspectos físicos ou biológicos. Há respeito pelas esferas psíquica, so-
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cial e espiritual. Também se impõe uma maior flexibilidade da equipe em relação às regras da instituição, como a administração de medicamentos para o controle da dor, que poderiam ser contraindicados em outras circunstâncias, ou a simples liberação de certos alimentos de preferência do paciente. “As pessoas em cuidados paliativos têm uma tratativa diferenciada. Em internação comum, alguém com diabetes teria uma dieta restrita em açúcar. Mas e o paciente terminal? Por que não comer um pedaço do bolo preferido que lhe traz boas lembranças da infância?”, questiona Maria José. A paliação ganha importância para o doente a partir do momento em que tratamentos em busca da cura perdem a efetividade. A Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) inclui nas
Cicely Saunders é referência em cuidados paliativos por criar a primeira instituição com cuidado integral
ações que auxiliam o paciente medidas terapêuticas para o controle dos sintomas físicos, intervenções psicoterapêuticas e apoio espiritual do diagnóstico ao óbito. Para os familiares, as ações se dividem entre apoio social e espiritual e intervenções psicoterapêuticas do diagnóstico no período do luto. Alguns historiadores apontam que a filosofia paliativa começou na Idade Média, quando hospices (hospedarias, em português) em monastérios abrigavam doentes, moribundos, famintos, mulheres em trabalho de parto, pobres e órfãos e aliviavam o sofrimento. Porém, a grande referência em tratamentos de cuidados paliativos foi Cicely Saunders. Enfermeira, assistente social e médica, fundou o St. Christopher’s Hospice, em Londres, na Inglaterra, primeira instituição a oferecer cuidado integral, desde o controle de sintomas, alívio da dor e do sofrimento psicológico. O local é até hoje reconhecido como um dos principais serviços com essa característica no mundo. No Brasil, os primeiros passos foram dados no final da década de 1970, mas apenas em 2005, com a fundação da ANCP, houve progresso significativo. A entidade avançou na discussão da regularização profissional do paliativista brasileiro, estabeleceu critérios de qualidade para os serviços da área, estabeleceu definições precisas do que é o procedimento e levou a discussão para o Ministério da Saúde, Ministério da Educação, Conselho Federal de Medicina (CFM) e Associação Médica Brasileira (AMB). Quatro anos depois da fundação da academia, o CFM incluiu em seu novo Código de Ética Médica os cuidados paliativos como princípio fundamental.
Com o tema tratado de maneira relevante na comunidade médica brasileira há quase uma década, em Joinville, o Hospital Dona Helena aborda a questão de diferentes formas desde 2011. Já foram realizados fóruns de discussão, cursos de formação em tanatologia, simpósios de bioética e, mais recentemente, foi criado o Comitê de Cuidados Paliativos. O grupo é composto por 10 integrantes, entre enfermeiros, psicóloga, médico, fisioterapeuta, nutricionista e pastora. Os encontros são quinzenais e objetivam o apoio às equipes de saúde por meio de consultoria, estudo e educação, além do compromisso científico de produzir conhecimento. “Entre nossos objetivos e metas futuros está a atuação mais direta com o paciente, pois os cuidados paliativos visam trazer mais vida aos dias que nos restam, não nos cabe prolongar o inevitável morrer. Isso apenas será possível a partir do trabalho de uma equipe segura e coesa que, junto ao paciente e familiares, tentará possibilitar que o processo inevitável seja vivenciado da melhor forma possível para todos”, explica Maria José Varela.
Parágrafo único do artigo 41 do Código de Ética Médica
“Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal” 21
Diferentes formas de morrer
Quais os limites do poder humano sobre o próprio processo de morte? Todos têm o direito de morrer com dignidade, mas a realidade brasileira, apoiada em valores históricos e religiosos, ainda enfrenta dificuldades em tratar temas como a eutanásia. Para desmistificar esse tabu, é importante entender outras práticas que facilitam o aceitamento do fim da vida. A eutanásia corresponde à prática de interromper a vida de um paciente com doença em estágio irreversível e sem possibilidade de melhora e tem como objetivo cessar a dor. O processo de distanásia é aquele que se refere ao adiamento da morte do indivíduo, geralmente pela utilização de fármacos e aparelhagens. O prolongamento artificial do processo de morte, por consequência, prorroga também o sofrimento da pessoa. Muitas vezes, o desejo de recuperação do doente a todo custo, em vez de ajudar ou permitir uma morte natural, acaba prolongando sua agonia. O meio termo entre esses dois procedimentos é a ortotanásia, que promove a ideia da morte no momento certo e descarta tratamentos agressivos e ineficientes que não reverterão o quadro. Cabe a esse modelo a promoção de cuidados paliativos. Esses se configuram como uma abordagem que aprimora a qualidade de vida dos pacientes e famí-
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lias que enfrentam problemas associados às doenças terminais, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, possibilitados por identificação precoce, avaliação correta e tratamento da dor e outras patologias. Além desses quatro modelos, existe mais um que está ganhando espaço nas discussões científicas, a kalotanásia. Para o médico geriatra Ciro Augusto Floriani, autor do livro “Moderno Movimento Hospice: Fundamentos, Crenças e Contradições na Busca da Boa Morte”, há duas origens para o termo. A primeira está vinculada à ritualização do processo de morrer, presente em sociedades antigas. Essa ritualização oferece a quem está morrendo a possibilidade de organizar sua vida e a de quem ficará após sua ausência, a viver rituais de despedida com seus entes queridos. “Há aqui o controle, por quem está morrendo, de seu tempo restante de vida”, afirma Floriani. A outra origem pode ser encontrada nas sociedades gregas antigas, mais especificamente na sociedade guerreira espartana, onde o modo como o guerreiro morria era o critério para aferir se ele teve uma vida feliz. Segundo o especialista, na kalotanásia o paciente enxerga a doença como uma via de realizações e de crescimento interior. “No tempo que lhe resta, há um investimento dele em questões que lhe são importantes para ressignificar sua vida. Diferentemente dos defensores da eutanásia/suicídio assistido, para os quais o tempo de vida que resta não tem mais sentido”, aponta.
Ciro Augusto Floriani
“A kalotanásia propõe um conjunto de intervenções que visam suavizar o processo de morte do paciente, ajudando a ritualizar este momento e dar um sentido para seu adoecimento”
Dr. Morte e a máquina de clemência
Um senhor de cabelos brancos, feições serenas, amante de música erudita e pintor nas horas vagas. Jack Kevorkian (26 de maio de 1928 – 3 de junho de 2011) aparentava ser mais um médico de Detroit, Estados Unidos, mas era conhecido como Dr. Morte. Ele ganhou notoriedade nos anos 80, quando passou a ajudar doentes terminais a morrer, por meio do suicídio assistido. O procedimento consiste em auxiliar outra pessoa, consciente, a pôr fim à sua vida – de forma indolor e por conta própria. A prática é diferente da eutanásia, pois esta é praticada por um médico ou outro indivíduo, uma vez que o doente encontra-se inconsciente. Em 1988, Kervokian construiu a “máquina de clemência”, aparelho controlado pelo próprio paciente, que precisava apenas apertar um botão para liberar fármacos em seu organismo. Três anos depois, ao perder a licença médica, o Dr. Morte passou a utilizar monóxido de carbono nos suicídios assistidos. Sua trajetória profissional teve fim definitivo em 1998, quando foi acusado por ho-
Você Não Conhece Jack (You Don’t Know Jack) Em 2010, Al Pacino interpretou o Dr. Morte (foto maior) no filme dirigido por Barry Levinson e produzido pela HBO. Pelo papel, foi premiado com Globo de Ouro, SAG, Satellite Awards e Emmy.
micídio, por provocar a morte direta de um paciente. Thomas Youk tinha uma doença que não permitia que ele próprio ministrasse as drogas, o que foi feito pelo médico (procedimento denominado eutanásia ativa). Kervokian não apenas ajudou Youk a morrer, mas também gravou todo o procedimento e divulgou as imagens num dos programas de maior audiência nos EUA, o “60 Minutes”. Ele foi condenado a 25 anos de prisão, mas conquistou o direito à liberdade condicional em 2007, por causa da idade avançada. Estima-se que o médico tenha auxiliado mais de 130 pessoas a morrer, utilizando suas técnicas, mas insistia em afirmar que nunca havia matado ninguém diretamente.
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Educação
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Aprendizado pela vida
O
ser humano está em constante evolução. A tecnologia e as ferramentas inventadas pelo homem levam o conhecimento cada vez mais longe e mudam paradigmas há muito estabelecidos. O direito à vida é colocado em debate, a possibilidade de criar embriões com características específicas e a reprodução laboratorial já são realidade. Além disso, a capacidade de salvar vidas a partir da doação de órgãos renova esperanças. Questões polêmicas que nascem dos avanços tecnológicos, ultrapassam seu caráter individual e devem ser geridas por um conceito de suma importância: o da ética. Em um panorama no qual as inovações aumentam progressivamente e começam a reconfigurar padrões, é essencial que o exercício da consciência permita a reflexão sobre o impacto que determinados atos têm sobre a vida comunitária. Na rotina de trabalho, profissionais enfrentam dilemas impostos pela sociedade e por suas próprias consciências e o preparo para esse embate começa ainda na universidade, na disciplina de bioética. O ensino abrange a característica da multidisciplinaridade e pode ser encontrado em diferentes vertentes de graduação. As mais comuns são as formações voltadas à área da saúde, como medicina,
farmácia e veterinária. A bioética prevê as condições necessárias para a preservação da vida humana, animal e vegetal, tendo como alguns de seus princípios a liberdade de escolha e a beneficência justa e igualitária de novas descobertas científicas. Encarada como ética aplicada, trata-se de um desafio pedagógico, dado que o ensino do que é ou não ético está longe de ser uma ciência exata. No curso de medicina da Universidade da Região de Joinville (Univille), a disciplina é oferecida na matriz curricular do segundo ano. As questões estudadas fundamentam a abordagem dos alunos em outras matérias ao longo do curso. O conteúdo programático é regido pelo conhecimento das possibilidades do agir ético responsável e a exploração dos limites de uma ciência que pode ter potencial de maleficência. Um dos idealizadores do termo bioética, o professor Van Rensselaer Potter, definiu o conceito como uma “nova ciência ética que combina humildade, responsabilidade e uma competência interdisciplinar, intercultural, que potencializa o senso de humanidade”. Dessa maneira, além dos aspectos técnicos e conceituais, os estudos também contemplam a consciência voltada para a solidariedade e a responsabilidade com a saúde e o meio ambiente. O professor de bioética Euler Renato Westphal, doutor em teo logia, analisa que a abordagem do educador precisa ser fundamentada, relevante e motivadora, conectada com aspectos da realidade. Em duas aulas, aborda assuntos como humanização das práticas médicas, cuidados paliativos, aborto, eutanásia, pesquisa com embriões e reprodução humana assistida. A partir de casos observados na tutoria de bioética no Hospital Municipal São José, questões propostas são analisadas pelos próprios estudantes, em
Luciana Guimarães
“A bioética vem para que todas as inovações sejam possíveis enquanto exercício de direitos, mas com freios que impossibilitam o desrespeito à dignidade humana” 25
dinâmicas relativas à dignidade do paciente e ao desenvolvimento de uma sensibilidade que enxergue as necessidades e fragilidades da pessoa no momento da doença. “A relação médico-paciente e os processos de humanização nas práticas médicas são imprescindíveis nas discussões. Parece-me que o principal desafio do aluno é permanecer no processo reflexivo sobre essas questões depois do término do ano letivo. O estudo de situações práticas auxilia no raciocínio”, relata Westphal. As qualidades morais necessárias para o exercício da medicina no Brasil passaram a ser enfocadas com mais afinco a partir do final do século 19. Na década de 60, houve um crescimento dos estudos e, na década de 90, o Brasil concentrou as atenções sobre a bioética, tornando, dessa forma, o ensino da ética médica gradualmente mais abrangente. Dados divulgados pelo professor e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) Daniel Romero Muñoz, apontam que, há dez anos, 26,7% das faculdades brasileiras de medicina apresentavam uma cadeira de bioética. Anteriormente, a disciplina era denominada ética médica ou deontologia e, no princípio do século 20, o tema era tratado na cadeira de medicina legal, justificada pela associação entre a lei e o exercício profissional. Essa relação é intrínseca, de tal maneira que os cursos de direito já incluem o ensino da bioética, sob a denominação de biodireito. Descobertas científicas como inseminação artificial, alimentos transgênicos e clonagem levantam uma série de questionamentos individuais e coletivos, referentes à moral e à preservação do direito à vida. O biodireito surge nesse cenário para disciplinar os aspectos jurídicos das tecnologias, não como um impedimento ao usufruto de tais avanços, mas como um
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ordenamento para que os direitos individuais sejam garantidos e a inovação seja empregada em prol da sociedade como um todo. A professora de bioética dos cursos de medicina e direito da Universidade Federal da Bahia, Camila Vasconcelos, relata que é perceptível o incremento do tema, presente em faculdades por todo o país. “Essa vertente de ensino tem sido encarada como uma perspectiva curricular imprescindível. O aumento dos estudos pode ser percebido inclusive na maior presença de estudantes de diversas universidades em eventos nacionais e internacionais de bioética, como o Congresso Brasileiro de Bioética”, explica. Nas faculdades, a disciplina de biodireito é geralmente apresentada como opção facultativa na formação profissional, mas algumas instituições já conduziram o assunto à matriz curricular fixa, como no curso da Universidade de Guarulhos (SP). A diretora adjunta, Luciana Aparecida Guimarães, conta que a matéria foi incluída em 2009, tornou-se obrigatória em 2012 e, desde então, todos os estudantes participam de debates sobre o papel da pessoa em prol dos avanços tecnológicos e as implicações legais de atos praticados. “A bioética vem para que todas as inovações sejam possíveis enquanto exercício de direitos, mas com freios que impossibilitam o desrespeito à dignidade da pessoa humana. Ou seja, nem tudo é possível a favor dos avanços científicos”, explica Luciana. Durante as aulas, os princípios que embasam direitos ineren-
Cursos da área da saúde e de direito aderem cada vez mais à bioética
tes à personalidade e os benefícios gerados pelos avanços tecnológicos são aplicados a questões amplamente discutidas, como direito à vida e à morte, aborto, pesquisas com células tronco e transsexualismo. A relação primordial entre o direito e as questões debatidas pela bioética se concretiza à medida que as descobertas tecnológicas evoluem. Dessa forma, alguns profissionais já buscam especializações para tratar do tema com maior propriedade. “Não podemos dizer que são muitos, analisando o número de advogados e juristas que temos no país, mas é um número que cresce fren-
te às novas discussões que chegam aos tribunais. Acredito que a propagação dos direitos ligados à área, ou áreas tratadas no biodireito, vem se desmistificando e as pessoas envolvidas passam a ter maior liberdade e oportunidade de discutir os temas”, relata a diretora Luciana Guimarães. Em Ribeirão Preto (SP), o Instituto Paulista de Estudos Bioé ticos está atento a essa nova demanda e oferece o curso de pós-graduação em bioética e biodireito. Segundo Tânia Mara Volpe Miele, uma das coordenadoras do curso, de modo geral, a disciplina de ética na graduação regular é focada no Código de Ética Profissional (deontologia) e, mais recentemente, algumas instituições têm criado a disciplina de biodireito, suprindo essa lacuna. No competitivo mercado de trabalho, a formação exclusivamente técnica e cognitiva perde valor se não acompanhada de uma reflexão ética concreta, fato atribuído à procura ascendente pelo curso de pós-graduação. Na opinião de Tânia, o estudo desse tema é essencial não somente para a formação de profissionais de medicina ou direito, mas vital para o aprendizado de qualquer pessoa. “A inclusão da bioética no currículo escolar poderia acontecer desde a educação básica. Poderíamos utilizar o assunto como ferramenta para despertar nas crianças uma consciência ecológica que as acompanharia pela vida toda”, ela propõe. “A bioética vem ocupando cada vez mais espaço nas discussões acadêmicas e a tendência é que este espaço cresça e se fortaleça.”
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Neuroética
Ciência que desponta
C
omo entender o comportamento altruísta? Por que algumas pes soas são mais propensas a ser generosas? Tais indagações estão ligadas a um dos temas mais discutidos na humanidade: a moral. Para Immanuel Kant, um dos filósofos que conceituaram a ideia, a razão seria a base da moral e as ações humanas se relacionariam com a identificação no outro. Assim, a ação dos que estão ao redor do indivíduo influenciaria sua forma de agir, fundando o comportamento como lei universal. Atualmente, com a evolução tecnológica, estudos já demonstram que a maneira como as pessoas tomam decisões pode ter outras correlações, envolvendo diversas áreas do cérebro. É aí que entra a neuroética, mais especificamente com o estudo da neurociência da ética, que tenta entender as decisões éticas do ser humano. O surgimento de aparelhos que podem verificar áreas cerebrais estimuladas nos processos de decisão, conhecidos como Functional Magnetic Resonance Imaging (fMRI), chamou a atenção da filósofa e neurocientista Adina Roskies, que, em 2002, citou, pela primeira vez, a neuroética como um campo que poderia auxiliar a filosofia e, em especial, a ética
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da filosofia. Um dos exemplos clássicos é a análise dos mecanismos neurais envolvidos na mentira. Cinara Nahra, doutora na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), explica que pesquisas como essas são realizadas internacionalmente, com interesse imediato em segurança pública e combate ao terrorismo, muitas vezes financiadas por órgãos vinculados a tais atividades. “O problema é que esses estudos não são compartilhados. Aí já temos uma questão de ética da neurociência: os pesquisadores deveriam aceitar desenvolver pesquisas para instituições que fazem esse tipo de restrição?”, reflete. Outro problema mencionado pela professora é a confiabilidade dos detectores de mentira que já são utilizados. “Deveríamos usar esses aparelhos em interrogatórios policiais ou como prova confiável aceita pelo sistema judiciário?”, pergunta. É aí que a neuroética, uma ciência que exige a interdisciplinaridade, dá sentido à outra área, a do neurodireito, que estuda as possibilidades e os limites do emprego de pesquisas neurocientíficas no campo jurídico. “Como disciplina, ainda é incipiente, embora esteja avançando em alguns países. Deve haver, ao menos, acesso a tais estudos e pesquisadores com conhecimento na área jurídica, dispostos a manter esse diálogo”, afirma Adrian Sgarbi, doutor em direito. Centros de pesquisa com tal perfil já foram criados nos Estados Unidos, Espanha e Austrália. Para o professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, uma das aplicações tangíveis, e que pode ser útil para a medicina, são os exames cerebrais que identificam se o órgão está ativo ou não para efeito de declaração de morte e, assim, permitir a realização de transplante de órgãos. O que se vê, portanto, é que o desenvolvimento das neu rociências tem levado a uma verdadeira “reflexão ético-normativa”, como configura o doutor em filosofia Nythamar de Oliveira, sobre a implementação de experimentos com neuroimagem e a produção de novos remédios. “Temos uma reformulação metaética à luz da abordagem moral de problemas clássicos da chamada filosofia da mente, psicologia moral e, mais recentemente, psicologia social e epistemologia social, lidando com dilemas morais, processos decisórios, livre arbítrio, entre outros”, explica. Pensar na reformulação moral é um dos projetos de pesquisa da professora Cinara Nahra. “Precisamos aprimorar os princípios morais que utilizamos em julgamentos, já que temos uma sociedade marcada pelo egoísmo extremo dos indivíduos”, ressalta. Para ela, as pessoas estão perdidas em termos de agir moralmente, sem saber definir com clareza o que é certo
ou errado. “Estou em busca da fundamentação de uma moral para o século 21, uma moral não moralista e não hipócrita, mas que ao mesmo tempo rejeita o relativismo e o vale-tudo”, explicita Cinara. Além do aprimoramento moral, a neuroética levanta questões sobre as possibilidades do melhoramento humano (enhancement). A partir dos exames de imagem e da compreensão dos mecanismos cerebrais, muitos cientistas defendem o uso de medicamentos para o aumento da cognição e até da capacidade física. É o caso da ritalina, originalmente indicada para tratamento de transtorno de déficit de atenção, e que está sendo utilizada por candidatos a concursos e vestibulares, com intuito de “turbinar” o cérebro. O médico e doutor em filosofia Marco Antonio de Azevedo explica que o tema do melhoramento humano já é debatido na
Aparelhos que analisam a atividade cerebral podem auxiliar no entendimento de comportamentos generosos e altruístas, assim como o ato de mentir
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Marco Antonio de Azevedo
“A filosofia ainda está distante do tema. É preciso criar espaços comuns de reflexão entre nós, filósofos, e os cientistas, sem falar nas demais áreas das humanidades” área médica há algum tempo, mesmo sem ser classificado assim. A medicina estética é um dos alvos de questionamentos – afinal, estaria relacionada a uma prática de promoção da saúde? “Uma pessoa mais ‘bonita’ não é mais nem menos saudável, mas muitos argumentam que o objetivo é tornar a pessoa emocional ou psicologicamente mais saudável. Nesse sentido, a filosofia poderia interferir de forma qualificada”, pondera. Substâncias químicas, alimentos e drogas específicas para estimular a cognição e até o desempenho atlético não estão disponíveis, mas o médico estima que a ciência não vai demorar para chegar a esses resultados. “Nesse caso, como disciplinar o uso? Aliás, deveríamos ‘discipliná-lo’? Caso os efeitos colaterais sejam desprezíveis, por que deveríamos limitar o uso desses ‘melhoramentos?’”, filosofa. Para Cinara, é preciso estar atento às promessas de aprimoramento ambiciosas, enunciadas pela neurociência. “A ideia é de que, no futuro, as pessoas possam desenvolver memórias artificiais, que atuariam como chip, a fim de ampliar sua capacidade de armazenamento”, exemplifica. No exterior, algumas pessoas já utilizam pequenos chips instalados na mão para abertura de portas, evitando uso de cartões ou chaves. Tais avanços também devem trazer resultados positivos e menos polêmicos, como a compreensão e a pesquisa para a cura de
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doenças como o Mal de Alzheimer. Por ter alcance tão vasto, a neurociên cia tem a necessidade de se voltar a si mesma e definir até que ponto é possível influenciar no comportamento e na fisiologia humana. “A pesquisa na área deve progredir sempre, mas devemos ter muito cuidado para evitar a manipulação e o controle do cérebro humano, ameaçando a autonomia dos indivíduos. Por isso, a importância da neuroética, através da ética da neurociência, estabelecendo princípios claros sobre como esse conhecimento deve ser usado. Ele deve ser usado para a liberação da humanidade, a autonomia dos indivíduos e o bem de todos”, destaca.
Livre arbítrio e liberdade são ilusões? Além da moral e da ética, outro assunto em constante discussão na filosofia é o livre arbítrio. Em 2008, o tema voltou à tona com a publicação do artigo de John Haynes, na revista Nature. Analisando cérebros por meio de fMRI, o pesquisador e sua equipe chegaram à conclusão de que, em decisões simples, como a de apertar um botão utilizando a mão direita ou a esquerda, duas regiões específicas do cérebro já “preveriam” o resultado de uma escolha motora, que o pesquisado ainda não tinha conscientemente tomado. “Os autores do texto e grande parte da imprensa científica tomaram isso como sendo a ‘prova’ de que o livre arbítrio não existe. Em um dos meus artigos, tento mostrar que a conclusão é falsa por vários motivos, entre os quais saliento o fato de que o experimento mostra é que há elementos inconscientes atuando em nosso cérebro quando tomamos decisões, mas não que essas decisões não sejam livres”, explica a professora Cinara, complementando que as escolhas que livremente fazemos são também influenciadas pelos mecanismos não conscientes, e isso não as torna menos livres. Para o professor Adrian, a “liberdade” pode ser considerada como a possibilidade de se autodeterminar as decisões que se toma e poder atuar conforme as escolhas feitas. Assim, existiriam os desejos de primeira ordem, que seriam os impulsos iniciais, e os de segunda ordem, quando há a reflexão sobre os impulsos iniciais, afirmando-os ou negando-os. “A condição de podermos refletir sobre nossos impulsos e decidir de outra maneira é o que nos tornaria livres no sentido de liberdade como autoderminação”, explica. Por esses e outros motivos, afirma Adrian, muitos defendem que a liberdade não passa de ilusão, mas que é importante para nossa percepção de certo e errado, correto e incorreto, bom e mau.
Uma área que depende de incentivos
Adrian e Cinara defendem a interdisciplinariedade para a evolução da neuroética
Considerada pelos pesquisadores uma ciência nova, mas que necessita de atenção, a neuroética ainda se desenvolve de maneira tímida no Brasil. “A filosofia ainda está distante do tema. É preciso criar espaços comuns de reflexão entre nós, filósofos, e os cientistas, sem falar nos demais pesquisadores da área das humanidades. Em bioética, recém começamos a tratar do tema. Mas sou uma pessoa otimista. Estamos cada vez mais integrados ao circuito de debate internacional; isso é ótimo e promissor. Mas aqui no Brasil ainda estamos limitados a nossos nichos”, ressalta Marco Antonio. Para Cinara, o trabalho interdisciplinar também é o caminho, envolvendo pesquisadores de diversas áreas como neurociências, medicina, psicologia, filosofia e biologia. “Para isso, entretanto, é preciso que os pesquisadores tenham disposição e flexibilidade para desenvolver o trabalho interdisciplinar e que os órgãos de financiamento também estimulem esse tipo de cooperação”, destaca. A diminuição do distanciamento entre as chamadas ciências da natureza e tecnológicas e as ciências humanas e sociais é o que chama atenção do professor Nythamar, apontando para a antiga oposição natureza e cultura, viabilizando um novo paradigma em filosofia da ciência, de forma a evitar extremos de concepções positivistas. Já na área do direito, Adrian percebe que a neuroética avança ano a ano, e com muita rapidez, sendo útil para responder algumas perguntas, mesmo em termos iniciais. “Questões como dilemas morais e nossas reações dependendo do que está em jogo são alguns exemplos e, principalmente, o que se passa em nossa cabeça diante de situações de escolhas trágicas”, explica. Por outro lado, ele espera que o direito possa auxiliar a neuroética limitando o uso apressado de inovações de modo a se evitar uma “caça às bruxas” aos avanços tecnológicos.
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Diálogos
Os riscos da eugenesia
José Carlos Abellán Salort Entrevista, pág. 40
Questões bioéticas da medicina preditiva
Vida saudável pode evitar infarto
Carlos José Serapião
Bruno Migueletto
Pág. 33
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Bioética no Brasil Bruno Schlemper Jr. Pág. 34
Preservação de fertilidade em pacientes com câncer Fábio Choma Pág. 38
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Carlos J. Serapião Coordenador do
Comitê de Bioética do Hospital Dona Helena e presidente da Sociedade Brasileira de Bioética/ Regional Santa Catarina
Questões bioéticas da medicina preditiva
O
desenvolvimento da medicina preditiva não se refere somente ao futuro dos pacientes, mas pesa também sobre o futuro da medicina. Como será o papel do médico frente ao atual desenvolvimento das técnicas preditivas e das práticas de prevenção? A medicina preditiva não se dirige a indivíduos enfermos, e sim a indivíduos sadios. Isso faz supor um aparente paradoxo no exercício da medicina nas sociedades contemporâneas, providas dos atuais conhecimentos de genética com suas notáveis técnicas que permitem uma nova prática médica: a predição. Os benefícios desse prévio conhecimento oferecem oportunidades para a prevenção e para a utilização de tratamentos eficazes, embora existam limites para essas duas medidas que podem ser, ainda, pouco operantes ou mesmo inexistentes. Que benefícios traria para o indivíduo o fato de conhecer uma predição que lhe informará sobre uma condenação de sua existência a uma saúde não tão boa e, por vezes, sem muitas espe-
ranças? E os múltiplos e variados riscos sociais advindos desse conhecimento? Pode ser citado, como exemplo direto, o dos critérios de exclusão ou de tratamento desigual pelas companhias de seguro. Por outro lado, a capacidade de predizer uma enfermidade futura confere um novo status à medicina, que assume, por meio das ações de predizer e prevenir, uma função de mediação do homem com seu futuro, seja do ponto de vista pessoal, familiar ou frente à sociedade. Nesse horizonte, a medicina preditiva passa a constituir um tipo de paradigma na emergência de uma nova forma do exercício do saber médico, que se beneficia e se fundamenta no conhecimento da genética e da sua prática clínica. Difere-se da medicina relacionada com sintomas e sinais. Pode ser vista como parte da prevenção, pois suas informações são baseadas no genoma e são, portanto, individuais. O propósito passa a ser a busca de informações sobre a “suscetibilidade genética” da pessoa, como base para o estabelecimento de ações preventivas, tais como modificação no estilo de vida, uso de medicamentos específicos e realização regular de testes laboratoriais. Espera-se que essa prática médica seja consideravelmente implementada pela medicina preditiva, já expressada na utilização do diagnóstico pré-natal e do “screening” pós-natal no recém-nato, bem como nas ingerências epidemiológicas, com prognósticos do estado de saúde e expectativa de vida das populações. Por outro lado, diferentes fatores podem agir independentemente ou sinergicamente, tornando a correlação linear entre um só fator genético e uma doença uma equação sabidamente com múltiplas outras variáveis. Não se pode definir a função patogênica de um gene sem considerar a influência do ambiente (exposoma). Ao se refletir sobre esse assunto, começa a surgir a preocupação de que a medicina preditiva possa se constituir numa prática que confronte a medicina, com novos e variados problemas morais, que encontram abrigo no respeito à dignidade do ser humano e colocam em destaque riscos, jamais ausentes, de discriminação via ações de eugenia.
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Bruno Schlemper Jr Doutor em medicina e um
dos fundadores da Regional de Bioética em SC
Bioética no Brasil O artigo original foi originalmente publicado no Indian Journal of Medical Ethics, vol XI, número 2, abril/junho 2014
O
marco fundamental da implantação da bioética no Brasil foi o surgimento, em 1995, da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB). A partir daí, ela se desenvolveu rapidamente por encontrar um vácuo ético na área da saúde, direcionando-se, sobretudo, para a realidade sanitária brasileira em função das desigualdades sociais. Além dessa forte participação na saúde coletiva, foi no campo da legislação brasileira sobre ética em pesquisa em seres humanos que a presença da bioética se constituiu num marco regulatório reconhecido internacionalmente. Além da SBB, outras instituições têm atuado de forma contínua na difusão da bioética, destacando-se as universidades brasileiras e o Conselho Federal de Medicina (CFM), este último pela criação do primeiro periódico científico de Bioética – Revista de Bioética – em 1993, e, mais recentemente, pela incorporação dos princípios bioéticos na revisão do atual Código de Ética Médica (2009). Uma segunda revista sobre o assunto foi criada em 2005 pela SBB e uma terceira, “Bioethikos”, em
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2007, pelo Centro Universitário São Camilo, em São Paulo. Quanto à formação em bioética no Brasil, foi dado um salto qualitativo com a implantação, a partir de 2004, de quatro programas de pós-graduação stricto sensu (Mestrado e Doutorado) em instituições universitárias de São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro e Curitiba. A SBB é a responsável pela organização dos congressos brasileiros de bioética e, desde 1996, já realizou 10 edições, a cada dois anos. Essa pujança fez com que em 2002 fosse realizado, em Brasília, o Sixth World Congress of Bioethics, promovido pela Internacional Association of Bioethics e, em 2012, em São Paulo, a 8º International Conference on Clinical Ethics & Consultation, além de vários edições do Congresso Luso-Brasileiro de Bioética. O 10o Congresso Brasileiro de Bioética foi realizado de 24 a 27 de setembro de 2013, no Centro de Convenções Baía Sul, em Florianópolis. A magnitude do evento pode ser avaliada pelos seguintes números: recorde de 1.186 inscritos, entre docentes, universitários, bioeticistas, profissionais e estudantes da área da saúde, direito, ciências humanas e sociais e filosofia. Foram aceitos 541 trabalhos, sendo 203 para comunicações orais e 338 pôsteres, 25 vídeos didáticos – atividade inédita nos congressos brasileiros de bioética – e 24 relatos de experiências de docentes sobre o ensino da bioética, outra iniciativa original. Como convidados, foram contabilizados 101 palestrantes nacionais e 21 conferencistas internacionais, dentre esses, Diego Gracia, José Carlos Abellán Salort, Maria do Céu Patrão Neves, Stephano Semplici, Ruth Macklin, Henk ten Have, Antonio Ugalde, Nuria Homedes, Jan H. Solbakk, Johane Patenaude, Georges-Auguste Legault e Miguel Kottow, entre outros. Foram realizadas 29 conferências, 36 mesas-redondas, 10 cursos pré-congresso, quatro sessões de cinema comentado e 18 lançamentos de livros de bioética. O tema central do congresso foi “Bioética: Saúde, Pesquisa e Educação”, e dentro dessa temática concentrou-se a maior parte da programação, cujos assuntos mais polêmicos e atuais para a bioética brasileira serão citados ao longo do artigo. Uso do placebo e de duplo standard em ensaios clínicos Tendo em vista a proximidade com a 64ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial que ocorreu no Brasil, em Fortale-
“A partir de 1995, com a criação da SBB, a bioética se desenvolveu rapidamente, por encontrar um vácuo ético na área da saúde, direcionandose, sobretudo, para a realidade sanitária brasileira ” za, no mês de outubro de 2013, essas temáticas foram abordadas em vários momentos do congresso por diversos palestrantes, numa mesa-redonda com três participantes e em duas conferências. Na mesa-redonda sobre “Revisão da Declaração de Helsinque: Interesses e Tendências”, o bioeticista brasileiro Volnei Garrafa mencionou que a DH é rejeitada nos Estados Unidos e Ruth Macklin, embora entenda que os Estados Unidos deveriam ater-se à declaração, referiu que ela não é importante e não é utilizada por pesquisadores e comitês de ética, pois o país tem sua norma própria (Good Clinical Practices). Quanto ao uso do placebo, a pesquisadora afirmou que não é possível utilizá-lo em doenças para as quais existem tratamentos reconhecidos, como Aids, hipertensão ou diabetes, mas que poderia ser usado em “condições menores”, como gripe, calvície e coisas do gênero. Em síntese, ela é contra o uso do placebo na maior parte das situações, mas em doenças excepcionais (doença de Parkinson ou aesclerose múltipla, que não têm cura e o quadro clínico é oscilante), e em condições restritas, o placebo pode ser usado. Já o bioeticista chileno Miguel Kottow, conferencista do tema “O Ocaso do Placebo” e da mesa-redonda sobre “Placebo: má prática ou conflito de interesses?”, concluiu que: a) o placebo sempre é uma má prática, pois seu uso é uma invasão ilegítima do território corpóreo humano; b) não há nenhuma justificativa ética para o uso de placebo; c) se não existe tratamento, deve-se fazer outro desenho metodológico ou nada usar como comparativo; d) o resultado do uso de placebo é uma transgressão ética, a qual não pode ser quantificada, pois não existe a micro e macrotransgressão; e) propõe a elaboração de um decálogo de bioética sobre pesquisa em seres humanos, cujo primeiro mandamento seria “Não usarás placebo em pesquisa”. Por sua vez, o representante da Associação Médica Brasileira, que tem voto na Assembleia da Associação Médica Mundial, o médico Miguel Jorge, apresentou o histórico do grupo de estudo sobre placebo e o resultado que será levado para apreciação e deliberação da 64ª Assembleia Geral de Associação Médica Mundial. A síntese dessa proposta foi apresentada e em nada muda de substancial em relação a DH 2008. Em relação ao duplo standard, a filósofa estadunidense fez outras declarações polêmicas ao admitir sua existência em paí
ses onde as condições de atendimento à saúde são precárias. Ao falar na conferência sobre “Double Standards in Medical Research in Developing Countries: Can they ever justified?”, Macklin disse que é fortemente contra o duplo standard, mas seus usos “não são necessariamente injustos ou ruins”, e que ser pobre, por si só, não pode ser razão para não oferecer à pessoa um padrão melhor. Porém, ressalta que isso é diferente das pesquisas que poderiam ajudar de alguma forma os voluntários, mas que ficariam inviabilizadas em locais tão carentes, que não contam sequer com estrutura, medicamentos e hospitais para realizá-las. Promovê-las, então, ainda que em duplo standard, é melhor do que deixar as pessoas sem nada. Segundo ela, o estudo é ruim e antiético se houver duplo standard em um local em que há e for disponível um padrão melhor a todos os participantes. Mencionou, ainda, que não necessariamente o estudo vá ser feito em países desenvolvidos e em desenvolvimento, mas que podem ser feitos em diferentes regiões de um mesmo país, razão pela qual essas expressões devem ser substituídas por hight resource-lower resource. Ainda sobre placebo e duplo standard, Jan Hellge Solbakk, da Universidade de Oslo, após considerações conceituais, epistemológicas e éticas sobre os temas, fez duras críticas ao papel da Associação Médica Mundial, concluindo que “By acting in this way, WMA is serving the interests of the most powerful players in the field of medical and health related research, instead of speaking tru-
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“No Brasil, esses temas ainda são desconhecidos pela maioria dos médicos e da sociedade. Não existe nenhuma lei do governo federal que regulamente diretivas, cuidados paliativos e comitês de bioética clínica”
th to power and defending the interest and well-being of the most vulnerable stakeholders in this play, i.e. individual patients and research subjects in poor and low-income countries”. Ao final do congresso, a Assembleia Geral da Sociedade Brasileira de Bioética reiterou sua posição de não autorizar o uso do placebo em doenças com tratamento reconhecido. Idêntica posição foi também aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde, órgão máximo brasileiro em matéria de deliberação em saúde, ao aprovar moção de “limitar o uso de placebo àqueles casos em que não houver outro tratamento eficaz”. Registre-se, ainda, que o sistema de controle ético de pesquisas em seres humanos no Brasil, tanto a antiga Resolução CNS 196/96 quanto a atual (Resolução CNS 466/2012), não admitem o uso de placebo nos casos em que exista tratamento. Da mesma forma, o atual Código de Ética Médica do Brasil impede o profissional da medicina de “manter vínculo de qualquer natureza
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com pesquisas médicas, envolvendo seres humanos que usem placebo em seus experimentos, quando houver tratamento eficaz e efetivo para a doença pesquisada”. No entanto, lamentavelmente, o texto da DH 2013 aprovado na revisão de 2013, no Brasil, continuou mantendo as mesmas exceções da versão de 2008. Igualmente, não se admite o duplo standard nos ensaios clínicos no Brasil. Diretivas antecipadas da vontade, cuidados paliativos e comitês de bioética clínica (hospitalar) Esses temas estiveram presentes no 10o Congresso Brasileiro de Bioética porque são assuntos recentemente introduzidos no Brasil e que se encontram em profunda discussão, tanto no seio da sociedade, como junto à comunidade acadêmica e dos bioeticistas. Por isso, uma das conferências master foi sobre “Ética dos Cuidados Paliativos”, proferida pelo doutor Diego Gracia, médico espanhol e introdutor do método de deliberação clínica. Em sua exposição, ficaram ressaltados o papel e a importância do testamento vital e do comitê de bioética clínica, o primeiro para expressar os valores do paciente e seus desejos numa etapa final de sua vida, e o segundo como suporte à decisão médica na tentativa de evitar tratamento fútil ou desnecessário. Em relação a esses dois tópicos, Gracia destacou que “ajudaria muito se os pacientes preenchessem diretrizes antecipadas de vontade, deixando claro o que é extraordinário para si, caso não consiga se comunicar”, criando a chamada “história de valores do paciente” e “o comitê de bioética hospitalar representa a oportunidade de discutir a respeito de casos clínicos, mas também sobre valores e deveres, chegando-se a uma deliberação moral e, com ela, à solução dos conflitos de valor”. O bioeticista espanhol destacou que há, pelo menos, quatro valores em conflito no contexto das decisões em fase final de vida: 1) a contraindicação médica (Não-Maleficência); 2) a futilidade terapêutica (Beneficência); 3) a gestão eficiente de recursos (Justiça); e 4) a “decisão” do paciente (Autonomia). Em outra conferência proferida pelo bioeticista brasileiro José Eduardo de Siqueira sobre “O Olhar Bioético para os Cuidados Paliativos”, o palestrante referiu que, se na 1ª metade do século 20 falar sobre “sexo” era tabu, da 2ª metade em diante isso foi
“Mesmo em hospitais que possuem comitês de bioética clínica, a demanda por consulta ainda é muito pequena, fruto de uma exacerbada formação tecnológica e medicamentosa” transferido para a palavra “morte”. No Brasil, como já mencionado, esses temas ainda são desconhecidos pela maioria dos médicos e por expressiva parcela da sociedade. Não existe nenhuma lei do Governo Federal que regulamente as diretivas, os cuidados paliativos e os comitês de bioética clínica. Os únicos instrumentos existentes são oriundos do Conselho Federal de Medicina, que dão orientação ética aos médicos. No Brasil, existe a Resolução CFM No 1.995/2012, que orienta os médicos sobre as diretivas antecipadas da vontade, a qual estabelece que “as diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não-médico, inclusive sobre os desejos dos familiares” e não sendo conhecidas as vontades do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre esses, o Comitê de Bioética Hospitalar, caso exista, deverá fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos. Ainda, há a Resolução CFM número 1.805/2006 sobre ortotanásia, que permite ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. Por sua vez, o doutor Hugo Rodríguez Almada expôs que, na América Latina, apenas Argentina, Uruguai, Chile e México possuem leis aprovadas pelo poder legislativo de seus países, enquanto no Brasil somente há norma do Conselho Federal de Medicina. Por sua vez, o bioeticista espanhol José Carlos Abellán Salort, ao falar sobre “A evolução do testamento vital na Europa”, referiu que, atualmente, apenas uma pequena minoria dos europeus tem diretivas antecipadas, concluindo que existem leis em alguns países, que elas são pouco desenvolvidas, mas se encontram em processo de organização, pouco se sabendo sobre seu uso. Finalmente, conforme o médico José Eduardo de Siqueira, em sua conferência sobre “Comitê de Bioética Clínica: entre o r eal e o ideal”, ressaltou sua importância e informou que no Brasil esses comitês são muito raros. Mesmo nos hospitais que os possuem, a demanda por consulta clínica é muito pequena, fruto de uma exacerbada formação tecnológica e medicamentosa dos profissionais da saúde, o que leva à ausência de reflexão sobre os conflitos morais em relação aos pacientes graves. Esse tema foi também abordado pelo bioeticista italiano Stefano Semplici
em sua palestra sobre “Importância dos Comitês de Bioética”, na qual identificou os níveis global, nacional e institucional dos mesmos, ressaltando a importância e as diferentes funções de cada um deles.
REFERÊNCIAS 1. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Entrevistas por Concília Ortona. http://www.bioetica.org.br/?siteAcao=Entrevista 2. World Medical Association. Declaration of Helsinki. Ethical Principles for Medical Research Involving Human Subjects. JAMA online October 19, 2013. 3. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM Nº 1931/2009. Código de Ética Médica. http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/ CFM/2009/1931_2009.pdf 4. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995/2012. Diretivas antecipadas da vontade. http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/ CFM/2012/1995_2012.pdf 5. Conselho Nacional de Saúde do Brasil. Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466. pdf 6. Revista de Bioética http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_ bioetica 7. Revista SBB www.rbbioetica.com.br 8. Revista Bioethikos http://www.saocamilo-sp.br/novo/publicacoes
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Fábio Choma
Responsável técnico pelo Banco de Células e Tecidos Germinativos do HDH
A fertilidade em pacientes com câncer
A
s doenças cancerígenas e cardiovasculares são as principais causas de morte no Brasil. Estima-se que, no ano de 2013, aproximadamente 190 mil novos casos de câncer foram diagnosticados em mulheres brasileiras, sendo os mais frequentes os de mama, cólon/reto e colo de útero. Através de novos e sofisticados métodos, as mulheres estão sendo diagnosticadas e tratadas mais precocemente, com consequente melhora na sobrevida. O efeito citotóxico dos agentes quimio e radioterápicos utilizados no tratamento dos diversos tipos de cânceres frequentemente implica em sérios danos à saúde reprodutiva da mulher. Atingem especialmente as gônadas (ovários), com consequências futuras relacionadas à diminuição dos níveis de estrogênio circulante (hipoestrogenismo), como osteoporose, falência ovariana precoce e infertilidade. A intensidade desses danos está relacionada ao tipo de tratamento utilizado, tempo de exposição da paciente, dose
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e a resposta individual de cada indivíduo, variando de lesões gonadais mínimas, sem maiores consequências futuras, até a falência gonadal completa. Após estabelecido o diagnóstico de câncer nessas mulheres, realizado o estadiamento da doença e proposto o tratamento, em muitos casos, é possível oferecer a preservação da fertilidade por meio das técnicas de congelamento de óvulos ou embriões. Nesses casos, as pacientes são submetidas à indução medicamentosa da ovulação, com consequente aumento dos níveis circulantes do hormônio estrogênio, o que pode “acelerar” o crescimento de tumores hormônio-dependentes, como alguns casos de câncer de mama. Essa situação deve ser bem explicada e compartilhada com a paciente e o médico oncologista assistente. A indução medicamentosa da ovulação é uma fase que dura, em média, de oito a 12 dias, quando são feitas entre três e quatro ecografias para controle do amadurecimento dos óvulos. Após essa fase, deve ser programada a aspiração dos óvulos, momento em que a paciente recebe uma anestesia tipo sedação. O congelamento de óvulos é mais indicado em pacientes ainda jovens, com diagnóstico de câncer, que pretendem preservar a fertilidade, ou para mulheres próximas dos 35 anos, solteiras e sem filhos. Os óvulos são congelados e armazenados em tanques de nitrogênio líquido numa temperatura de 196° negativos. Futuramente, essas pacientes podem optar pela fertilização in vitro com o descongelamento dos óvulos. Para as pacientes casadas ou em relacionamento estável, após a aspiração dos óvulos, eles podem ser fertilizados com o sêmen do parceiro, para posterior desenvolvimento embrionário inicial no laboratório, seguido do congelamento embrionário, ou seja, a fertilização in vitro ocorre antes do congelamento, ao contrário do congelamento de óvulos. A oncofertilidade é uma especialidade médica nova que ajuda a tratar pacientes portadoras de câncer com a atuação conjunta do oncologista e do profissional na área da reprodução assistida. É um direito de todas as pacientes e um dever do médico assistente dar a elas todas as informações sobre tais possibilidades.
Bruno Migueletto Cardiologista
intervencionista do corpo clínico do HDH
Vida saudável pode evitar infarto
A
doença cardiovascular é a principal causa de internações hospitalares e morte no Brasil e em países desenvolvidos. Segundo dados do Ministério da Saúde, ocorrem cerca de 320 mil mortes a cada ano por doenças cardiovasculares. Dentre essas, aproximadamente 76 mil são devidas ao infarto agudo do miocárdio. Sabe-se que, em média, 50% dos pacientes que sofrem um infarto agudo do miocárdio não chegam vivos ao hospital. Dessa forma, é de fundamental importância a prevenção, o diagnóstico preciso e o tratamento rápido e adequado. O infarto do miocárdio, também conhecido como ataque cardíaco, é uma emergência médica em que há morte de uma porção do músculo do coração, em decorrência da formação de um coágulo (trombo) que interrompe, de forma súbita e intensa, o fluxo de sangue no interior de uma artéria coronária. A principal causa do infarto é a aterosclerose, processo no qual placas de gordura se desenvolvem, ao longo dos anos, no interior das artérias coronárias,
criando dificuldade à passagem do sangue. Na maioria dos casos, o infarto ocorre quando há o rompimento de uma dessas placas de gordura, levando à formação do trombo e à interrupção do fluxo sanguíneo. Entre os fatores que predispõem uma pessoa a ter infarto estão a vida sedentária sem a prática de exercícios físicos, obesidade, alimentação rica em gorduras, estresse e tabagismo, que ainda tem elevada prevalência na população brasileira. Além do infarto, a má qualidade de vida pode resultar nas mais variadas doenças. O principal sintoma é a dor no peito ou desconforto torácico. Ocorrem geralmente no centro do peito, com características do tipo pressão ou aperto, de grau moderado a intenso. A dor pode durar vários minutos ou parar e voltar novamente. Palidez da pele, suor frio, palpitações, náuseas e vômitos também podem ocorrer. O diagnóstico é feito através da realização da história clínica, eletrogardiograma e exames de sangue. Atualmente, o melhor tratamento para o infarto agudo do miocárdio é a realização imediata do cateterismo cardíaco, seguido da realização da angioplastia coronária, técnica que usa um cateter para inflar um minúsculo balão e uma pequena tela de aço (stent) dentro da artéria obstruída, facilitando o fluxo de sangue. A angioplastia coronária é uma das áreas da cardiologia que mais têm evoluído, sendo um procedimento seguro e com baixíssimos riscos de complicações. Importante ressaltar que, quanto mais rápido for o atendimento, melhor será a evolução e menores as complicações A prevenção se baseia em um maior controle e tratamento dos fatores de risco, bem como na adoção de hábitos de vida saudáveis. O ideal é seguir uma dieta balanceada, rica em frutas e verduras, com baixa quantidade de gorduras e sal; perder peso, em caso de obesidade ou sobrepeso; parar de fumar; praticar atividades físicas regularmente, sob orientação médica; tratar adequadamente doenças como o colesterol alto, hipertensão arterial e diabetes mellitus; evitar abuso de alimentos ricos em gorduras saturadas, sódio e açúcar, que são gatilhos para doenças como infarto, derrames, hipertensão, obesidade, diabetes e até câncer. Uma alimentação equilibrada, rica em nutrientes, e a prática de exercícios físicos regulares ajudam a manter a vida saudável.
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José Carlos Abellán Salort
Diretor do Mestrado em Bioética da Universidade Rey Juan Carlos, Madri
Bioeticista espanhol alerta para riscos da eugenesia
E
m sua primeira participação em um evento de bioética no Brasil – no 9o Congresso Brasileiro, realizado em Brasília, há três anos –, o professor espanhol José Carlos Abellán Salort já impressionou os participantes, não apenas pela riqueza de seu currículo, apesar de ainda jovem, mas sobretudo pela firmeza de suas posições. Formado em direito, mestre em filosofia e leis, doutor em bioética e diretor de um dos mais prestigiados cursos de mestrado e doutorado em bioética da Europa, na Universidade Rey Juan Carlos, em Madri, Abellán surpreendeu a plateia formada por médicos, enfermeiros, profissionais das mais variadas áreas da saúde, filósofos e especialistas em bioética, ao chamar a atenção para a questão dos direitos do médico em proporcionar o melhor tratamento ao paciente. “Na Espanha, há quem tema o abandono puro e simples dos pacientes pelos médicos que sucumbirem à pressão de familiares e sociedade para que se limitem tratamentos – mesmo aqueles que podem dar resultados satisfatórios. E, pior, à revelia do próprio atendido”, alertou. O palestrante frisou a necessidade de se encontrar um maior equilíbrio, nessas situações em que a família pressiona pelo fim ou redução do tratamento, contrariando as indicações médicas. Mesmo que o próprio paciente escolha renunciar a ele, o médico precisa manter sua postura beneficente: “Contemplar seus deveres de atender, de cuidar e de curar”. Autor de diversas obras e publicações científicas com especial ênfase ao princípio de autonomia e ao conceito do consentimento informado, dois temas básicos para a bioética, Abellán,
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nesta entrevista exclusiva à Revista Conecthos, aborda vários outros assuntos paralelos aos modernos embates patrocinados pelos avanços médicos científicos e tecnológicos. Ele sublinha, por exemplo, que é duplo o papel da bioética no contexto social: proporciona o discurso moral, social e crítico da sociedade, que ajuda a identificar os limites e o controle do desenvolvimento científico e tecnológico. Como ciência, pesquisa elementos que iluminem critérios éticos racionais para assegurar que o desenvolvimento seja compatível com o respeito à natureza e à dignidade do homem. Mas talvez um de seus mais importantes pontos de vista esteja ligado ao que ele considera um dos maiores “riscos” proporcionados pelos grandes avanços da ciência médica: a eugenesia. Como se posicionar diante do fato de que, hoje, é possível selecionar os embriões mais “saudáveis” ou que melhor atendem às expectativas dos pais – que podem escolher o sexo ou a cor dos olhos, selecionar os gametas com mais probabilidade de desenvolver maior inteligência etc? O que significa, à luz da bioética, o descarte dos embriões que não são utilizados? Até onde pode ir essa “seleção”? Voltaremos aos tempos da Grécia Antiga, quando os espartanos promoviam infanticídios coletivos contra recém-nascidos que apresentassem qualquer tipo de deficiência? José Carlos Abellán comenta, também, a importância da bioética chegar a todas as instâncias sociais e a todas as áreas do conhecimento. Afinal, é a ética da vida, e precisa inspirar as pessoas a se entender
como parte de um complexo, mas maravilhoso conjunto de milhões de outros seres – dotados da mesma humanidade, dos mesmos direitos à vida com dignidade. Para o pesquisador, os seres serão plenamente humanos se entenderem que são, sempre e cada um, eu-com-o-outro.
Num mundo em que a ciência avança muito rápido e transforma nossas vidas (sobretudo, nossas referências de vida), qual deve ser o papel a ser ocupado pela bioética? Os últimos avanços das ciências biomédicas e da biotecnologia – engenharia genética, técnicas de reprodução assistida, clonagem, tecnologia de prolongamento da vida física etc. – mudaram o modo pelo qual os seres humanos do século 21 se relacionam com a natureza e com a vida física humana. Por um lado, considero que mudaram as concepções da ciência e da tecnologia, de seus objetivos e seus limites. A ciência nos proporcionou um poder biotecnológico tão imenso que hoje não apenas podemos alterar e transformar o meio natural e destruí-lo totalmente (física nuclear, organismos modificados geneticamente, cultivos transgênicos etc.) como, além disso tudo, a humanidade dispõe de uma nova capacidade para interferir e alterar sua própria estrutura genética. Significa dizer que já é possível atuar no nível mais profundo de nossa própria
“Este imenso poder biotecnológico nunca antes alcançado pelo ser humano e de difícil controle ou limitação por parte dos estados, governos ou autoridades da saúde, transfere à mentalidade da classe científica e do cidadão comum uma filosofia antes restrita à ciência e à natureza: a ideologia do domínio” corporalidade e natureza. Como já advertira o grande humanista Jürgen Habermas, há alguns anos, o potencial da biotecnologia parece não encontrar limites para interferir em nosso ser mais íntimo – no que criticamente qualificou como um risco de uma nova “eugenesia”. Não podemos controlar as consequências dessas intervenções, que já podem estar afetando a evolução de nossa identidade genética e nossas relações, como espécie, com o resto do ecossistema. Por outro lado, esse imenso poder biotecnológico nunca antes alcançado pelo ser humano e de difícil controle ou limitação por parte dos estados, governos ou autoridades da saúde, transfere à mentalidade da classe científica e do cidadão comum uma filosofia antes restrita à ciência e à natureza: a ideo logia do domínio. Isso quer dizer que o científico e o biotecnológico estarão a serviço de uma trepidante disputa pela competitividade científica e empresarial – o que poderia estar resgatando o velho modelo, da chamada era moderna, de relação com a natureza, caracterizado pela dominação – e que coisifica o meio natural e até mesmo o próprio ser humano, desrespeitando sua dignidade e direitos. Nessa nova versão do utilitarismo mais pragmático e hedonista, tudo seria justificável, toda ação clínica ou investigativa seria legítima se capaz de proporcionar bem-estar e prolongar a vida física. O papel da bioética, em sua versão dupla – de discurso moral, social e crítico da sociedade, que ajude a encontrar os limites e o controle do desenvolvimento científico e tecnológico, e de ciência, que ilumine critérios éticos racionais para assegu-
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rar que o desenvolvimento seja compatível com o respeito à natureza e à dignidade do homem – se tornou absolutamente indispensável. Como fazer para que a bioética saia do âmbito da pesquisa acadêmica e chegue à vida de todos – uma vez que é necessária em várias áreas do conhecimento? Não seria importante que a sociedade, em geral, participasse dessas reflexões? Sem dúvida, a bioética não pode permanecer limitada ao âmbito acadêmico. Tampouco deve ser uma reflexão que, mesmo necessária, sobretudo no mundo científico e tecnológico, seja feita apenas por especialistas. Não podemos deixar só para os profissionais da saúde, cientistas e biotecnólogos o esforço de estabelecer limites éticos à sua atividade. Toda a sociedade deve participar da reflexão crítica que a bioética realiza para propor, com base no pluralismo e na tolerância, elementos bioéticos, limites morais para que a ciência e a tecnologia sempre estejam a serviço de um progresso verdadeiramente humano. Esse debate deve ser feito pela sociedade civil, não apenas pelos profissionais da saúde. Deve ser rigoroso, racional e aberto. Rigoroso, propondo critérios ou princípios universalizáveis, mas com a consciência de que a casuística é enorme e que há que se pensar em cada caso, em particular. Racional, de modo que possamos sair do discurso emotivo habi tual, cheio de falácias e, no fundo, pleno de injustiça – porque os juízos bioéticos
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Para a ciência, mesmo antes de ser implantado, embrião humano já é considerado uma vida humana devem se basear na realidade das coisas, em dados específicos de cada caso, e não em sentimentos, emoções ou nas opiniões dominantes. Abertos ao diálogo tolerante e respeitoso, entre perspectivas antropológicas e morais distintas – como as que encontramos convivendo em sociedades pluralistas, como as modernas sociedades democráticas, nesta era da globalização. Com novos parâmetros, já é possível se pensar em diferentes pontos – onde começa e onde termina a vida, por exemplo? A respeito do início da vida física humana, ciências como a fisiologia, a genética, a biologia celular e a embriologia, com a ajuda de um moderno instrumental técnico de observação e análise, atestam, de forma não controversa, que cada nova vida começa com a fecundação do óvulo pelo espermatozoide, de modo que, poucas horas após a fusão dos pronúcleos dos gametas humanos, já tenhamos um zigoto humano – o que vale dizer, um novo indivíduo da espécie humana. Também o embrião clônico, originado em qualquer técnica de reprodução assistida, é igualmente considerado vida humana e merecedora da mesma consideração. Isso já sabíamos, mas agora podemos vê-lo, estudá-lo com maior detalhe e até diagnosticá-lo e tratá-lo, caso necessário. Nesse ponto, é possível discutir o estatuto moral ou jurídico do embrião humano em seus primeiros estágios de desenvolvimento, considerá-lo ou não uma pessoa e, consequentemente, garantir juridicamente uma maior ou menor proteção. Esse aspecto social, ético e jurídico centraliza muitos dos debates
bioéticos e biojurídicos. Mas o que a ciência já provou, de modo indiscutível, é que o embrião humano, mesmo antes de ser implantado – e desde suas primeiras horas de vida –, é vida humana, geneticamente humano (possui as chamadas sequên cias “Alu”, que diferenciam nossa espécie), de forma que está provada sua inequívoca condição humana, como indivíduo diferente de seus pais. Sobre o final da vida física, já dispomos de tecnologia de suporte vital e novos tratamentos de prolongamento da vida que devem ser usados com prudência, com respeito à vida e com respeito também à morte e aos direitos associados à autonomia das pessoas que estão no estágio final da existência. Já a ciência médica pode dizer, sobre o final da vida, que há determinadas certezas que se pode registrar de modo confiável, determinados signos da chegada da morte – como os critérios neurológicos da morte cerebral, a morte encefálica, parada cardiorrespiratória prolongada etc. Podemos dizer que uma vida humana física termina quando o organismo precisa de vida integrada, mas não podemos dizer se chegou a morte da pessoa. A bioética deve propor critérios que tornem compatíveis os processos da morte e o respeito à autonomia das pessoas enfermas. Por exemplo, pacientes em fase terminal devem receber toda consideração pela dignidade invariável dessas vidas, ainda que em certas condições, uma “baixa qualidade” se reconheça. Mas o fato, em si, de serem vidas dependentes e sofredoras não significa que sejam consideradas vidas de menos qualidade ou valor. O sr. identifica algum tema específico em que a bioética seja imprescindível – agente de vida ou de morte, literal ou metaforicamente? Algum desafio emergencial? O grande desafio de emergência me parece que é detectar e limitar as novas formas de risco eugenésico. A eugenesia é a ideologia subjacente a antigas práticas sociais, médicas e biotecnológicas de seleção e discriminação entre seres humanos, aplicada a grupos humanos ou populações inteiras com a finalidade de melhorar as condições genéticas da população ou das futuras gerações. Trata-se, portanto, de intervenções humanas dirigidas para “depurar” geneticamente as raças e evitar
distorções genéticas que causem o nascimento ou a reprodução de indivíduos com as mais variadas deficiências ou, ainda, de pessoas cuja existência se considera de pouco valor ou utilidade para uma melhor evolução da sociedade. Desde os tempos da Grécia Antiga, quando os espartanos autorizaram o infanticídio seletivo de neonatos com deficiências, passando pelas teorias de Francis Galton, no século 19, ou as esterilizações e experiências selvagens autorizadas nos Estados Unidos, pouco depois, até os mais conhecidos protocolos de limpeza étnica e depuração racial dos regimes autoritários do século 20, como o nazismo na Alemanha da segunda guerra, houve muitos políticos, cientistas, filósofos e médicos que, de alguma forma, justificaram a eugenesia. A bioética adverte sobre possíveis atentados contra a dignidade dos seres humanos pelas novas práticas de inspiração eugenésica, muito reais e nada metafóricas, como ocorre quando, em uma fecundação in vitro, permite-se a seleção dos embriões que apresentam sinais de maior viabilidade, descartando e destruindo os demais, centenas de embriões sadios. Ou quando o diagnóstico genético realizado antes da implantação dos embriões humanos tem a clara intenção de identificar determinadas características genéticas do embrião precoce que o tornam melhor candidato a ser levado a termo, em detrimento de seus irmãos descartados pelo sexo ou pela possibilidade de desenvolver uma enfermidade. Em alguns países, como a Espanha, ao ser
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identificada uma doença ou anomalia física, o feto pode ser abortado – justamente por não ter essa perfeição genética e apresentar alguma predisposição para desenvolver, eventualmente, no futuro, uma doença. Isso é uma forma de eugenesia negativa: não deixar nascer os imperfeitos. No extremo oposto, no que se pode considerar “eugenesia positiva”, está o que Habermas chama de eugenesia liberal e que consiste em processos biotecnológicos que melhorem geneticamente os embriões ou fetos – não para evitar enfermidades, mas para proporcionar características eleitas pelos pais ou pela família. Por exemplo, escolher, por vaidade, a cor dos olhos ou até potencializar aptidões físicas ou mesmo a inteligência nos embriões que apresentam essas possibilidades. Multidisciplinar e muito complexa, como é a própria vida, a bioética poderá inspirar também novos perfis de cidadania? Entendo que a bioética pode nos ajudar, a partir de sua visão multidisciplinar e considerando a complexidade do ser humano e das sociedades contemporâneas, a propiciar que os novos perfis de cidadania e mesmo o conjunto da sociedade sejam mais respeitosos com a dignidade e a inviolabilidade da pessoa. O relativismo e o cientificismo que imperam entre os utilitaristas poderiam nos fazer perder de vista que o ser humano é exatamente o mesmo da pré-história, da antiguidade ou da contemporaneidade, no que se refere à sua essência e natureza. Por isso,
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acredito que uma boa bioética seria aquela que, reconhecendo os novos desafios da ciência e da tecnologia, tão positivos para o desenvolvimento e o progresso, atue no resgate de uma antropologia personalista, o que quer dizer uma visão do ser humano como pessoa dotada de um valor e dignidade incondicionais. Essa nova visão de mundo não deveria chegar às pessoas mais cedo – quer dizer, desde as questões da infância? A compreensão de que há novos parâmetros de sociabilidade, quase uma nova ordem sociológica, não faria um pouco mais fácil a integração da criança à vida adulta? Penso que essa nova ordem social, que se configura na globalização econômica, social e cultural, na sociedade da informação, nas redes e nos novos movimentos sociais, nas crises das velhas ideologias e também nas crises existenciais pós-modernas, tudo isso se constitui em um grande desafio e uma oportunidade. O encontro com outras culturas, com outros paradigmas éticos, a acessibilidade da informação e a crise de alguns valores morais são um grande desafio para os educadores, para a formação, em si. Penso que a educação de nossas crianças e jovens deve proporcionar a eles critérios, princípios e valores éticos e bioéticos baseados em uma boa formação antropológica. É aí que surge a importância de, junto com as disciplinas
Em um mundo complexo, com evoluções rápidas, a formação humanística agiria como bússola para crianças se guiarem e conteúdos técnico-científicos, as crianças também adquirirem formação humanística e habilidades humanas. Precisam de uma “bússola” e diretrizes sólidas que as permitam navegar em um mundo complexo como este, de nossas modernas e sofisticadas sociedades tecnológicas. Trata-se de assegurar que recebam aquilo que o famoso filósofo espanhol Alfonso López Quintás chamou de “chaves para a interpretação da realidade”, ferramentas para que, conhecendo bem a eles próprios como seres humanos, saibam diferenciar os diversos planos que a realidade oferece. Só com um bom discernimento desses níveis, o jovem poderá começar a se relacionar corretamente com ela e ter um desenvolvimento criativo de sua existência, garantia de sua felicidade como ser humano. Portanto, trata-se de oferecer a eles os elementos antropológicos e bioéticos que os permitam conviver com outros seres humanos respeitando a igual dignidade de todos – e sendo mais criativos e mais felizes.
Qual papel exercem, nessas novas reflexões bioéticas, a dignidade e o sentimento de humanidade e de solidariedade? Considero que o reconhecimento da igual dignidade e valor de toda e qualquer vida humana deve ser a chave-mestra, o amálgama de todo posicionamento bioético. Quando reconhecemos que o ser humano sadio e o enfermo têm a mesma dignidade, assim como o de uma raça ou de outra, o recém-nascido e o que ainda está em formação, o rico e o pobre, estamos começando a defender a autêntica justiça, que se fundamenta nesse conceito metafísico de igualdade. Mas, quando as condições de justiça não são suficientes, a bioética personalista propõe a aplicação do princípio da solidariedade, porque o ser humano é um ser em relação, ou seja, dependente e necessitado dos demais, esse é seu modo próprio do ser. A solidariedade, portanto, não é uma questão apenas de voluntariado ou uma moda para tranquilizar nossas consciências. Devemos ser solidários por uma questão de justiça que se fundamenta na constatação de que somos seres racionais, que temos deveres e obrigações para com os demais, que têm sua origem em nosso ser mais essencial. Por isso, como diz o velho adágio grego, “nada do que é humano me é alheio”. Porque sou com-outros, porque somente respeitando e atendendo, sendo justo com o outro, sou plenamente humano. A solidariedade se converte, portanto, em um dever ético – e também bioético. Temos obrigações morais e bioéticas conosco mesmos e com as outras pessoas.
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Ponto final
Hospitalidade para bem atender Hilda Meneghelli
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as instituições de saúde, é constante a preocupação com a excelência no atendimento. Nesse sentido, a área de hospitalidade tem como foco principal o cuidado com o cliente em toda a cadeia de processos. A atitude do atender bem deve ter aderência em todas as ações dos profissionais que têm relação com o cliente. Assim, a hospitalidade tem o objetivo de tornar o ambiente acolhedor, demonstrando um trabalho de qualidade e atitude adequada dos profissionais envolvidos na atividade. Pela característica das pessoas que, em geral, frequentam um hospital, a hospitalidade requer acolhimento diferenciado, relacionado ao padrão de comportamento e de relacionamento entre as pessoas. A rotina e os demais procedimentos devem ser seguidos na íntegra, agregando espontaneidade nas ações e nas relações. A ideia é integrar o cliente ao ambiente, buscando garantir que ele se sinta como se estivesse em casa, tornando cada experiência vivida dentro da instituição um momento da verdade, vista de forma positiva.
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Um dos primeiros valores percebidos pelos clientes, já na entrada do hospital, é o sorriso do recepcionista, que deve estar uniformizado e bem treinado para a função. Outro diferencial é a cultura de relacionamento com os clientes, por meio da Central de Atendimento ao Cliente (CAC), que se constitui em um canal aberto ao diálogo. O “concierge”, que tem como função realizar visitas periódicas ao paciente, também estabelece uma ponte com a CAC para procurar resolver de forma rápida, clara e objetiva algumas necessidades específicas. No Hospital Dona Helena, uma de suas atividades é lembrar e levar ao cliente a celebração pela data do seu aniversário. O cliente que busca o hospital não quer apenas atendimento específico ao seu problema de saúde. Ele também quer acesso rápido, conforto e segurança. Um dos serviços de hotelaria adotados em hospitais como facilitador da hospitalidade é o estacionamento 24 horas, com seguro e vigilância monitorada. O monitor desse espaço tem a função de bem acolher, orientar seus usuários, prestar informações e controlar toda e qualquer movimentação de pessoas e veículos. A hospitalidade é um compromisso de todos, e não somente de uma pessoa ou de um setor. Todos os profissionais que trabalham no hospital precisam ser observadores e devem ser orientados a perceber o ambiente para torná-lo adequado ao cliente. Ser hospitaleiro é um conjunto de ações – ambiente agradável, equipe de profissionais atentos ao cuidado e recursos disponíveis para o exercício desse cuidado na sua integralidade. Nós, no Hospital Dona Helena, temos estimulado continuamente entre os diversos setores, o conceito dessa atenção especial e cuidado com a hospitalidade, que certamente vai agregar valor à assistência prestada. Hilda Meneghelli Coordenadora de
Hospitalidade do Hospital Dona Helena
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Rua Blumenau, 123, Centro, Joinville/SC (47) 3451-3333 www.donahelena.com.br