1 REVISTA DO HOSPITAL DONA HELENA
Maio/2014
Ciência em escala nano produz avanços gigantescos para o tratamento de doenças 8
HDH CONQUISTA ACREDITAÇÃO PELA JCI 6 MAIS MÉDICOS, MAIS INFRAESTUTURA? 12 DILEMAS DA TECNOLOGIA 18 INOVAÇÕES NA ACADEMIA 22 REFLEXÕES E ANÁLISES 30
Número 1. maio 2014
Revista do
O Hospital Dona Helena conquistou o “Joint Comission International’s Gold Seal ApprovalTM”
Nesta edição 6 A conquista da acreditação pela JCI 8 Micropartículas auxiliam no desenvolvimento da medicina 12 Visões sobre o Mais Médicos 18 Ciência e saúde unidas pelo bem do paciente 22 Tecnologia é incorporada em cursos da saúde 26 Banco de dados: uma alternativa para o diagnóstico 30 Análises dos especialistas do HDH 36 Alcindo Ferla destaca pontos fortes do sistema público de saúde 42 Para ser feliz e sustentável
Um projeto do Ceped – Centro de Estudos, Pesquisa, Extensão e Desenvolvimento da Associação Beneficiente Evangélica de Joinville (Abej). Coordenação geral: Carlos José Serapião/Conselho Editorial: Ana Ribas Diefenthaeler, Antonio Sérgio Ferreira, Christian Ribas, Gizele Leivas, Letícia Caroline, Maria José Varela, Wladimir Kummer/Jornalista responsável: Guilherme Diefenthaeler (reg. prof. 6207/RS)/ Produção: Mercado de Comunicação/ Edição: Guilherme Diefenthaeler e Letícia Caroline/Reportagem: Letícia Caroline, Karoline Lopes, Fernanda Lange, Laís Mezzari, Mayara Pabst, Marcela Güther, Karoline Lopes, Ana Ribas Diefenthaeler e Guilherme Diefenthaeler/ Edição: Guilherme Diefenthaeler e Letícia Caroline/ Diagramação e infográficos: Fábio Abreu/Fotografia: Peninha Machado e banco de imagens/Impressão: Impressora Mayer/Tiragem: 2 mil exemplares/Redação: contato@ mercadodecomunicacao.com.br
Nossa palavra
O desafio da reflexão Carlos José Serapião
Presidente do Comitê de Bioética do Hospital Dona Helena
N
asce a Revista Conecthos – publicação que, já no título, foi buscar na interdisciplinaridade os fundamentos do comportamento holístico que deve habitar o “ethos” universal, em uma oportuna conjugação de letras que conecta a ética com as demais áreas do conhecimento humano. Com sua temática acolhendo matérias correlatas em cada um dos quatro números de planejada edição sazonal, neste primeiro ano agrupados em duas edições, espera-se despertar a curiosidade do leitor e atender à crescente onda de inovação que acalenta as gerações do novo milênio. Para um hospital recentemente certificado por
uma acreditação internacional, por suas iniciativas e comprometimento com a qualidade e a segurança do paciente, nada mais lógico do que esperar pronunciamentos que iluminem o caminho de quem queira acompanhar esta jornada institucional. É o eixo deste número de estreia, que sucede uma edição experimental distribuída em 2013, no Congresso Brasileiro de Bioética. Adiante, no segundo grande tema, uma resposta aos anseios de conhecimentos de ponta na área da saúde, estarão sendo expostos artigos e abordagens distintas relacionadas com as fronteiras do conhecimento tecnocientífico nas múltiplas especialidades da assistência hospitalar. Ao despontar da primavera, quando as mentes ficam povoadas com propósitos que induzem à compreensão do comportamento humano, o tema bioética almeja oferecer uma visão poligonal da vida e ajudar a preenchê-la com valores que enriquecem nossa consciência. Tais composições temáticas, somadas a tantas outras que constroem o conceito de saúde em sua plenitude conceitual, culminam com o convite a pronunciamentos sobre a qualidade de vida. A reflexão acerca dessas e de outras questões tão relevantes, por meio de reportagens e artigos de especialistas, é o desafio a que se propõe a Revista Conecthos. Boa leitura!
Institucional
Hospital Dona Helena é o primeiro do Estado a conquistar o selo da JCI Conquistar a acreditação da Joint Commission International (JCI) foi o desafio que mobilizou as equipes do Hospital Dona Helena nos últimos seis anos. Para chegar lá, foram mensurados aspectos como a qualidade e a segurança dos pacientes, de seus familiares e dos funcionários, ao lado da prevenção de riscos e contínuo treinamento dos profissionais. Com 98% dos elementos con siderados conformes, a institui ção se tornou a primeira de Santa Catarina a receber o selo. A partir de agora, integra a lista de 26 hospitais brasileiros acreditados pela mais conceituada certifica dora internacional da área da saúde. A avaliação, realizada entre os dias 10 e 14 de março, envolveu diversos setores, em uma análise de 1.181 elementos aplicáveis à instituição. Uma série de ações foram tomadas para fortalecer a cultura da qualidade. “A identidade de conceitos e pressupostos preconizados pelo hospital e exigidos pela JCI, aliados à importância de
perseguir sempre a excelência, foi uma das principais razões para a escolha da acreditação internacional”, afirma Carlos José Serapião, coordenador do processo de acreditação do Dona Helena. Durante o processo, foi criado o Comitê de Gestão de Qualidade (CGQ), responsável pela elaboração das atividades e produção de documentos, que subsidiaram a equipe em todo o trabalho que acabou resultando no selo. “Esse é o fruto de um esforço voltado à educação continuada e que tem como consequência a absorção da cultura da qualidade e segurança. O Dona Helena vem assimilando uma transformação na sua dinâmica organizacional, influenciada principalmente por uma mudança de comportamento institucional”, ressalta Serapião.
"Esta conquista confere ao Dona Helena a segurança do caminhar seguro e tranquilo de quem conhece o caminho, ainda mais quando pavimentado por princípios garantidos internacionalmente.” Carlos José Serapião,coordenador do Comitê de Bioética do Hospital Dona Helena
Tecnologia no CDI
Uma imagem Uma nova turma de voluntários do Projeto Hospirrisos entrou em cena no Hospital Dona Helena. Depois de passar por capacitação com o Studio Escola de Atores e o Pró-Humano, setor de humanização do hospital, os integrantes estão preparados para levar alegria, conforto e carinho aos pacientes e familiares. Em 2014, o programa completa oito anos, com coordenação da psicóloga Maria José Varela.
Congresso na Dinamarca discute doenças inflamatórias intestinais O coordenador do Ambulatório de Doenças Inflamatórias Intestinais do Hospital Dona Helena, Harry Kleinübing Júnior, participou do congresso anual da Organização Europeia de Doenças Inflamatórias Intestinais, em Copenhagen, Dinamarca. Estiveram no evento os maiores especialistas e pesquisadores mundiais, que lançaram as novidades decorrentes das últimas pesquisas e tratamentos para essas doenças. Kleinübing relata que o principal tema do congresso de 2014 foi “doenças fistulizantes”. Para prestar atendimento especializado ao volume crescente de pacientes, o Dona Helena conta com o Ambulatório de Doenças Inflamatórias Intestinais. Com médicos clínicos e cirurgiões especialistas, é possível tratar esses pacientes com os melhores serviços do mundo.
O Centro de Diagnóstico por Imagem (CDI) conta com um novo aparelho de Densitometria Óssea. Com a tecnologia de feixe Fan Beam, o iDXA realiza a medição da massa óssea, com avaliação corporal completa (massa magra e gorda), suporta até 200 quilos e compara exames, permitindo o acompanhamento da evolução do paciente. A equipe técnica responsável pelo equipamento recebeu a capacitação no Rio Grande do Sul, por meio de treinamento intensivo.
Novos leitos Na última semana de abril, o Hospital Dona Helena inaugurou o oitavo andar do Centro Clínico. São 37 novos leitos, entre apartamentos e suítes, que proporcionam ainda mais conforto e bem-estar durante o período de internação.
Serviço neurológico O atendimento em Neurorradiologia Intervencionista passa a integrar o Serviço de Neurologia do HDH. Com procedimentos pouco invasivos, a opção permite tratamento de doenças neurovasculares com efetividade.
Nanomedicina
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Nanocarreadores permitirão tratamento de câncer com dose exata de medicamento no local da enfermidade
Partículas que vão revolucionar o diagnóstico e o tratamento de doenças
R
obôs que trafegam pelo organismo humano e atuam na destruição de células cancerígenas, na regeneração de tecidos, no tratamento de doenças e na dosagem e aplicação de medicamentos. Pode parecer ficção científica, mas são os nanorrobôs produzidos a partir dos avanços da nanotecnologia. Um nanômetro equivale a um bilionésimo de metro, e essas partículas, milhares de vezes menores que um fio de cabelo, mas resistentes como aço, estão prestes a transformar a medicina. A ciência em escala nano revela um cenário de grandes expectativas em inovação para o tratamento de patologias e regeneração de tecidos destruídos. Uma revolução que pode estar mais perto do que se imagina. Os primeiros traços da nanomedicina se popularizaram das mãos do físico norte-americano Richard Feynman. Em 1959, ele sugeriu a manipulação de elementos químicos em nível atômico e vislumbrou a ideia de minúsculas estruturas capazes de navegar na corrente sanguínea e efetuar reparos em células danificadas. No Brasil, os investimentos em nanomedicina começaram na virada do século. Os principais centros de pesquisa estão vinculados a universidades e SC já entrou na rota da inovação: com mais de 40 pesquisadores líderes, o Estado se destaca como uma das regiões em que essa ciência mais se desenvolve.
Produtos de engenharia tecidual e de medicina regenerativa, tais como pele e vasos sanguíneos artificiais, sistemas de cultura de células 3D, hidrogéis para encapsulamento de fármacos e modelos experimentais para estudos tumorais, são desenvolvidos pela empresa BioCellTis, com sede em Florianópolis. O trabalho, viabilizado em parceria com universidades e centros de estudos, concentra-se na exploração das propriedades de sistemas biológicos e biomateriais no nível molecular mais elementar. A empresa atende demandas de laboratórios de medicina regenerativa e a expectativa é de que os avanços na tecnologia resultem em dispositivos biomédicos inteligentes e implantáveis. Os nanorrobôs atuariam dentro do corpo humano, introduzidos por via oral ou intravenosa.. Especialistas assinalam que os produtos em escala nano sempre fizeram parte da natureza e operam com grande eficiência. O atual domínio sobre esses materiais permite aos pesquisadores enxergar, estudar e incorporar propriedades sobre as quais não havia conhecimento há alguns anos. O futuro, nessa perspectiva, será cada vez mais nanodirigido, com produtos e dispositivos mais eficientes. “Neste caso, o objetivo de nossa empresa é complementar o papel das instituições e transformar resultados em produtos de bioengenharia de valor comercial, que possam atender necessidades reais da população”, relata um dos fundadores da BioCellTis, Luismar Marques Porto. O avanço tecnológico desse tipo de iniciativa em Santa Catarina está calçado em uma plataforma de trabalho que já agrega mais de 60 empresas. O Arranjo Promotor de Inovação em Nanotecnologia (API.nano), implementado pela Fundação Certi, em parceria com líderes da UFSC/SisNANO, Unesc e Udesc, oportuniza a ação em rede cooperada entre fornecedoras e usuá rias da tecnologia, grupos de pesquisa, institutos de ciência, agentes de desenvolvimento e instituições governamentais. A atuação do API.nano visa à união de competências e ações que embasarão projetos para o setor econômico em nanotecnologia na região. As empresas que compõem a rede desenvolvem produtos e serviços para os mais diferentes setores, entre eles têx-
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Leandro, do API,nano, e Betina, da Nanovetores: união de competências e ações comuns para diversos segmentos
til, metalúrgico, cerâmico, alimentício, biomédico, cosmético, de construção civil, odontológico e médico. O secretário executivo do API. nano, Leandro Antunes Berti, relata que a nanomedicina avança no desenvolvimento de nanocarreadores para tratamento de câncer, nanopartículas carregadas com fármacos que liberam a dose de medicamentos no local da enfermidade e curativos que aceleram a regeneração de tecidos lesados, por exemplo. No ramo de diagnósticos, um laboratório de análises clínicas está sendo desenvolvido para permitir que materiais sejam verificados com mais rapidez, precisão e baixo custo, e tratamentos genéticos baseados em terapias de RNA estão em estudo, podendo futuramente auxiliar no combate às doenças antes mesmo de o paciente desenvolver a condição adversa. Pós-doutor em nanobiotecnologia e doutor em nanotecnologia pela Universidade de Sheffield, na Inglaterra, Berti realizou trabalhos voltados à nanomedicina. No doutorado, criou uma técnica para a movimentação de nanocarreadores dentro do corpo humano, que permite às partículas realizarem diferentes tarefas. “Podemos, por exemplo, projetar um nanocarreador que misture diferentes matérias em nanoescala ou uma partícula que explore grandes áreas, uma espécie de reconhecimento do local a ser tratado”, explica. O trabalho foi o primeiro caso prático, realizado pelo homem, de transformação de energia química em deslocamento. Um processo que só tende a evoluir, a médio e longo prazo.
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API.nano oportuniza rede cooperada entre empresas, fornecedores e usuários de nanotecnologia Investimento bilionário, com previsão de crescimento vigoroso Por ser considerados promissores, os investimentos em projetos de escala nano são significativos e aumentam gradativamente. A ciência é um dos principais focos de inovação em todos os países e seu desenvolvimento é considerado estratégico também para o Brasil. Segundo dados do Panorama de Nanotecnologia, divulgado pela Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), em 2010, o mercado nacional investiu aproximadamente US$ 58 milhões em nanotecnologia, cifra modesta se comparada ao aporte em escala global de US$ 383 bilhões, no mesmo ano. Prevendo-se um crescimento vigoroso para os próximos anos, a expectativa é atingir um mercado de US$ 3,3 trilhões em 2018. Valores tão representativos podem despertar a preocupação de que o investimento em nanotecnologia resulte em menor visibilidade a ações básicas à sobrevivência, como sanitarização e educação. O secretário executivo da rede API.nano, Leandro Berti, explica, contudo, que a nanotecnologia é vista como uma ciência complementar, vinculada aos diferentes aspectos do conhecimento humano, e por essa razão não impacta na diminuição do financiamento de outros ramos de pesquisa. “Os investimentos não interrompem o fluxo habitual de inovação, mas sim incrementam este processo nos mais diferentes setores.” As empresas que investem em nanotecnologia no Brasil contam com verbas do governo, via editais federais da Agência Brasileira de Inovação (Finep), Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Segundo Berti, o surgimento de novas competências pode contribuir para o aumento do arrecadamento de impostos, criação de empregos e profissões e atração de investidores, mas o incentivo no país ainda está aquém do que se espera. “Estamos vivenciando um momento em que a imaginação é o limite, portanto o governo precisa estar mais atento e estimular essas oportunidades, proporcionando mais incentivos para o avanço da nanotecnologia em Santa Catarina e no Brasil”, explica.
“O governo precisa estar atento e estimular essas oportunidades, incentivando a nanotecnologia” Leandro Antunes Berti, secretário executivo do API.nano
Ciência impacta em quase todas as áreas do conhecimento Leandro Berti, do API.nano, enxerga a nanotecnologia como a “engenharia da vida”, à medida que a natureza já utiliza as nanoestruturas na evolução dos organismos. “Esta ciência não compreende apenas um segmento, mas abrange diferentes setores como o da engenharia, saúde humana, saúde animal, social, ético e legal. O estudo é pervasivo e multidisciplinar, impactando em praticamente todas as áreas do conhecimento”, sustenta Berti. Em Santa Catarina, há projetos consistentes em áreas de pesquisa como odontologia e estética. No primeiro caso, a ciência inovadora prevê a criação de tratamentos que podem tornar mais rápida e eficaz a recuperação de pacientes. Mas a preocupação com o corpo e a saúde costuma ir além dos aspectos vitais: está relacionada também com as aparências. Por isso, a encapsulação de substâncias em escala nanométrica é aplicada a ativos utilizados para fins cosméticos. Máscaras de rejuvenescimento, roupas fitness que hidratam a pele durante o uso, calças jeans que ajudam no tratamento da celulite e roupas de cama que promovem relaxamento, ao liberar óleos essenciais, são algumas vertentes da nanotecnologia na estética. Para a doutora em bioquímica Vanessa Eid da Silva Cardoso, da FGM Produtos Odontológicos, os próximos anos serão de contínua inovação, tendo a nanotecnologia como ciência estratégica no desenvolvimento de novos processos e produtos. “Os investimentos em pesquisa associam o desenvolvimento de produtos à geração e à disseminação de capital intelectual, direcionando novas perspectivas em tratamento”, analisa Vanessa. “Essas ações impactam diretamente na melhora do padrão de saúde geral da
população e ajudam a gerar novas demandas de trabalho para clientes e parceiros comerciais, o que impulsiona o crescimento do país e seu posicionamento tecnológico no âmbito internacional.” Betina Ramos, diretora técnica da Nanovetores, fabricante de produtos cosméticos, relata que o entusiasmo pela tecnologia nano é fundamentado nos diferenciais que essa ciência possibilita, tanto assim que a inovação em escala nano chega a ser comparada a uma nova Revolução Industrial. “Inúmeros centros de pesquisa estão trabalhando com a nanotecnologia na saúde. Nos próximos 20 anos, vivenciaremos um novo patamar relacionado a diagnósticos e tratamentos de doenças de forma menos invasiva e mais efetiva”, relata Betina. Quanto ao segmento farmacêutico, estudos demonstram a segurança no uso dessa tecnologia para a encapsulação de fármacos antitumorais, melhorando a qualidade de vida dos pacientes submetidos ao tratamento.
Em números
US$ 58 mi
foram investidos no mercado nacional em nanotecnologia no ano
de 2010. No mesmo ano, o aporte mundial no setor foi de estima-se que
US$ 3,3 tri
US$ 383 bi
. Para 2018,
serão usados no segmento.
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Saúde pública
Mais médicos demandam mais infraestrutura
O
sistema de saúde brasileiro enfrenta sérias dificuldades, o que não chega a ser novidade. E, embora Santa Catarina, considerando a realidade de outras regiões do país, esteja em uma situação quase privilegiada – vivem aqui os brasileiros mais longevos, com 77 anos, em média, de expectativa de vida, 81,1 para as mulheres e 74,4 para os homens –, ainda há muito o que avançar para que o Estado possa oferecer saúde e qualidade de vida, de verdade, a seus cidadãos. Lançado pelo governo federal em julho do ano passado, o Programa Mais Médicos traz profissionais de outros países – a maioria, de Cuba – para o atendimento à população. Em abril deste ano, mais 117 estrangeiros concluíram a preparação para atuar em território catarinense, que agora já soma 416 profissionais no programa. O secretário-adjunto de Estado da Saúde, Acélio Casagrande, elogia o programa e aposta, especialmente, na Estratégia de Saúde da Família (ESF), que foi conhecer em Cuba. “Fiquei impressionado, pois os profissionais da saúde conhecem a família, a história e a origem de cada membro, mostrando
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por que é um país com atenção básica de primeiro mundo.” Segundo ele, Santa Catarina está investindo seriamente para ter uma ESF nos mesmos padrões. “Aumentamos para R$ 50 milhões, em 2014, o cofinanciamento em ESF, e estamos concluindo as Centrais de Regulação Hospitalares, em todo o Estado, que irão auxiliar ainda mais os municípios. Tudo isso, com o apoio ativo do Ministério da Saúde”, relata Casagrande. Mais de 200 municípios do Estado receberam profissionais pelo programa – 15 deles atuam em Joinville. São clínicos gerais, que atendem em vários postos de saúde dos bairros, com especial dedicação à atenção básica. De acordo com o mais recente levantamento do Conselho Federal de Medicina (CFM), de 2012, o país tem 388.015 médicos, o que equivale a 1,8 por mil habitantes. Apesar de a Organização Mundial da Saúde (OMS) defender como parâmetro ideal para o cuidado eficiente da população a relação de um médico para cada mil habitantes, o Ministério da Saúde entende que os profissionais estão mal distribuídos regionalmente e a taxa considerada ideal pelo governo é de 2,7, seguindo os passos do Reino Unido, que mantém um sistema de saúde gratuito considerado de alta eficiência. Nações como Paraguai, Chile e Equador têm a média mais baixa, variando entre 0,9 e 1,7. Países como Austrália, Argentina e Espanha mantêm suas taxas entre 3 e 4. Cuba, por sua vez, é o que mais se destaca neste índice, com 6,7 médicos a cada mil habitantes. O elevado número de profissionais da saúde, aliado à política local, estimula os médicos a migrar para o Brasil por meio do programa. Não à toa, hoje, dos 6,6 mil profissionais que atuam pelo Mais Médicos, 5,4 mil vieram de Cuba. A meta do governo era receber 13 mil novos médicos e, para atingi-la, pode trazer ainda 5 mil novos cubanos. A polêmica, no viés da classe médica brasileira, também passa pela não exigência do exame de revalidação do diploma dos estrangeiros, pela necessidade de especialistas e falta de estrutura para o serviço.
O programa surgiu da necessidade de mais profissionais em cidades do interior. Depois de capacitações com o Ministério da Saúde, médicos são enviados aos postos de trabalho
No Distrito Federal e no Rio de Janeiro, as taxas são de 3,46 e 3,44 médicos por mil habitantes. Já no Maranhão, por exemplo, a proporção não passa de 0,58, e no Amapá, de 0,76
O Mais Médicos convoca profissionais para atuar na atenção básica de periferias de grandes cidades e municípios do interior, onde não existem médicos. Os profissionais recebem bolsa de R$ 10 mil mensais e mais ajuda de custo. A primeira chamada é destinada aos médicos brasileiros e, posteriormente, as vagas não preenchidas são destinadas aos brasileiros graduados no exterior e estrangeiros. Entre os principais requisitos, ter habilitação para o exercício da medicina no país de origem, conhecer a língua portuguesa e não ser de um país com a taxa de médicos por habitantes menor que a do Brasil. O médico Cyro Soncini, presidente do Conselho Superior das Entidades Médicas de Santa Catarina (Comesc), não enxerga pontos positivos no Mais Médicos. “O programa traz pessoas de outros países que não fizeram a prova do Revalida e as coloca para atender em locais sem estrutura. Mesmo que fossem médicos habilitados, não há ambulatórios, centros farmacêuticos etc. Seria como trazer professores do exterior para uma escola que não tem giz, quadro e caneta. O governo joga muito para frente a solução, que é melhorar a estrutura, com plano de carreira para os profissionais da saúde, assim como existe o plano dos advogados”, raciocina Soncini.
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“Temos muita concentração de profissionais nas grandes cidades, mas o médico não quer ir para o interior virar um pajé, lugar em que não tem infraestrutura” Cyro Soncini, presidente do Conselho Superior das Entidades Médicas de Santa Catarina (Comesc)
Como o próprio nome indica, o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos (Revalida), aplicado pelos ministérios da Educação e da Saúde, valida os diplomas na área da medicina que foram obtidos no exterior, autorizando a atuação do profissional no Brasil. Na última edição, dos 1.595 inscritos, apenas 109 foram aprovados, o que equivale a 6,83%. Para suprir a necessidade do exame, o Ministério da Saúde alega que faz avaliação e acolhimento por três semanas em universidades públicas brasileiras e os médicos atuarão somente na atenção básica. Mas Soncini insiste que um curso rápido não é suficiente e a qualidade do atendimento deve ser assegurada pelo Revalida. E, ainda assim, segundo ele, várias regiões não teriam condições de oferecer o serviço pela falta de estrutura. “Antes da divulgação do programa, o CFM enviou uma carta com propostas para melhorar essas questões, porém, ela nem entrou em pauta”, lamenta. O documento sugeria três propostas, começando pelo Programa de Interiorização do Médico Brasileiro, que objetiva – por meio de adequações do sistema e estímulos aos profissionais – a alocação de médicos em cidades de até 50 mil habitantes nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. A segunda medida seria a concordância com a vinda de médicos estrangeiros, desde que tenham seus diplomas aprovados pelo Revalida e critérios para comprovação do domínio da língua portuguesa. A terceira proposta, com caráter de médio a longo prazo, consistia na implantação da carreira federal no Sistema Único de Saúde (SUS) para médicos, cirurgiões-dentistas, enfermeiros, farmacêuticos e bioquímicos. “Muito mais importante do que interiorizar o médico é interiorizar a infraestrutura em saúde para atender a população. Isso, em síntese, significa interiorizar a assistência como um todo, o que expressa o real desejo da população, em lugar de medidas paliativas e de efeito duvidoso”, sinaliza um dos trechos da carta enviada pelo CFM ao Ministério da Saúde. Nesse sentido, Soncini defende a relação entre estrutura e a falta de profissionais nas cidades interioranas: “Claro que precisamos de médicos, temos muita concentração de profissionais nas grandes cidades, mas o médi-
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co não quer ir para o interior virar pajé, um lugar em que ele não tem nem um eletrocardiograma”. Para o presidente do Comesc, os dois principais problemas enfrentados pela saúde brasileira são o subfinanciamento e a gestão. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), em países tidos como referências na saúde pública, como é o caso da Inglaterra, a participação do Estado no gasto nacional no segmento chega a 84%. Na Argentina, o percentual é de 66%, enquanto no Brasil a participação do governo é de 47%. Na prática, em uma internação no SUS que custaria R$ 100, por exemplo, R$ 47 são pagos pelo governo federal, enquanto o restante é financiado pelos governos estaduais e municipais, o que acaba onerando as duas instâncias. Somente a prefeitura de Joinville, por exemplo, deve gastar 25,3% do seu orçamento com a saúde, em 2014, enquanto o orçamento atual da União destina menos de 5% para o segmento. Em contrapartida, o governo federal afirma que está intensificando seus gastos em infraestrutura de hospitais e unidades de saúde, com investimentos de R$ 15 bilhões até 2014, divididos entre obras em 16 mil Unidades Básicas de Saúde, compra de equipamentos para 5 mil unidades, beneficiando ainda hospitais e unidades de pronto atendimento.
“O governo deveria ter elaborado uma carreira de Estado para o médico, criando estímulos para que eles migrem para áreas remotas” Roberto D’Ávila, presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM).
2,04
2,0
Nordeste
O gráfico abaixo mostra a evolução do número de médicos por mil habitantes no Brasil entre 1980 e 2013. A OMS considera uma taxa ideal de 1 médico para cada mil habitantes, taxa que o país alcançou em 1982. Em 2013, a taxa, que era de 2,04, colocava o país em 60º lugar num ranking dos 100 principais países no quesito. Cuba liderava, com 6,04. Ao lado, a tabela com as taxas por unidade da federação mostra desequilíbrio na distribuição. Enquanto os Estados do Sul e Sudeste apresentam taxas altas, Norte e Nordeste ainda registram déficit.
Norte
Médicos no Brasil
1,80 1,51 Centro-oeste
1,40 1,03
Sul
Sudeste
1,0 0,94
0 1980 1982
1995
2001
Distribuição dos médicos pelo Brasil, em 2013
2009
2013
Rondônia 1,19 Acre 1,08 Amazonas 1,12 Roraima 1,38 Amapá 0,95 Pará 0,84 Tocantins 1,36 Maranhão 0,71 Piauí 1,05 Ceará 1,16 Rio Grande do Norte 1,43 Paraíba 1,38 Pernambuco 1,57 Alagoas 1,24 Sergipe 1,42 Bahia 1,25 Goiás 1,73 Distrito Federal 4,09 Mato Grosso 1,26 Mato Grosso do Sul 1,69 Minas Gerais 2,04 Espírito Santo 2,17 Rio de Janeiro 3,62 São Paulo 2,64 Paraná 1,87 Santa Catarina 1,98 Rio Grande do Sul 2,37 Média nacional 2,04
O gasto per capita brasileiro com saúde registra alta constante desde 2005, ano em que os gastos privados tiveram forte aumento. Mas nos últimos anos foi a saúde pública a responsável pelo avanço VALORES EM US$, POR PARIDADE DE PODER DE COMPRA GASTO PERCAPITA BRASILEIRO GASTO PERCAPITA BRASILEIRO PRIVADO GASTO PERCAPITA BRASILEIRO PÚBLICO 1.109
695 594 531
515 416
418 294 238 180 FONTE: OMS/DEMOGRAFIA MÉDICA DO BRASIL FEV/2013, DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
1995
237
2002
279
2005
2013
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“Não se ouviu a sociedade”, diz Roberto D´Ávila Cardiologista e médico do trabalho que atuou por 35 anos em saúde pública – entre o antigo Inamps e o SUS –, o catarinense que preside o Conselho Federal de Medicina (CFM) defende carreira de Estado para os profissionais.
“Importar médicos não resolve o problema”
Consideramos este programa como mais uma ação de caráter político e eleitoreiro. Criticamos a forma autoritária com a qual a medida foi concebida e implantada, sem a participação da sociedade e dos setores diretamente envolvidos, sobretudo das entidades médicas. A “importação” de médicos estrangeiros e de brasileiros portadores de diplomas obtidos no exterior não resolve o problema da falta de assistência nos municípios do interior e na periferia das grandes cidades, além de expor a saúde da população a sérios riscos por falta de qualidade. Em vez de investir em ação desse tipo, o governo deveria, por exemplo, ter criado uma carreira de Estado para o médico, criando estímulos para que os profissionais que estão em sua maioria no Sul e no Sudeste migrem para essas áreas remotas e ali exerçam sua missão. Foi isso que ajudou a fortalecer a atuação do Judiciário e do Ministério Público, que tiveram suas carreiras criadas pelo Estado. O mesmo deveria acontecer na saúde.
“Falta investimento no SUS”
No Brasil, ainda há muita desigualdade, e no SUS
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não é diferente. Há áreas de excelência, locais onde o sistema funciona muito bem. No entanto, são exceções. Na maioria dos municípios brasileiros, o quadro beira o caos. Há falta de investimentos por parte do governo federal e, por consequência, graves problemas de infraestrutura, de equipamentos, de insumos e nas equipes de atendimento, atingindo especialmente os médicos. Um exemplo dessa situação é o fechamento de milhares de leitos nos hospitais. Os relatos que chegam aos Conselhos Regionais de Medicina dão conta de um quadro de total desrespeito para com o profissional e, sobretudo, para com o cidadão que, se não é bem atendido, tenderá a manifestar essa insatisfação. (Veja entrevista sobre o SUS na página 36.)
Movimento Saúde +10
Na avaliação dos conselhos de medicina, não adianta apenas ter médicos, mas é preciso oferecer a esses profissionais e aos pacientes as condições para que a assistência aconteça. De forma resumida, elencamos algumas medidas fundamentais para que esse processo seja corrigido. Em primeiro lugar, é preciso ampliar o volume de recursos destinados ao setor. É isso o que pede o Movimento Saúde+10, do qual o CFM é um dos apoiadores. Luta pela aprovação do projeto popular que prevê a destinação de, no mínimo, 10% da receita bruta da União no setor. No entanto, não basta ter mais dinheiro. O país precisa de melhor gestão no SUS, pois o governo tem tido dificuldades em gastar o pouco que está disponível. Por exemplo, mesmo com toda reclamação por falta de verbas, nos últimos 12 anos, cerca de
Para D’Ávila, a questão da falta de especialistas precisa de uma reflexão mais ampla
destas áreas remotas e há anos milhares de médicos brasileiros lutam diariamente contra a falta de infraestrutura e em favor da vida e da saúde da população. Talvez seja um dos motivos para a baixa adesão dos profissionais brasileiros à proposta do governo, pois eles sabem que, mais do que salário, é preciso ter como lastro medidas consistentes que ofereçam segurança aos médicos e aos pacientes. Além disso, sabe-se que esse programa não foi feito para médicos brasileiros, submetidos a 7.200 horas de formação, enquanto muitos dos estrangeiros têm cerca de 2.800 horas de estudos.
Faltam especialistas?
R$ 94 bilhões não foram aplicados. Esse montante equivale ao orçamento inteiro do Ministério da Saúde, em 2013. Isso não aconteceu porque sobrou dinheiro, mas porque não se soube gastar o disponível. Finalmente, de forma pontual, consideramos fundamental criar e aprovar uma carreira de estado para os profissionais da saúde, o que, em nossa opinião, é a saída para levar e fixar médicos e as equipes no interior e nas áreas de difícil provimento. Dessa forma, com a garantia de remuneração adequada, condições de trabalho, apoio de equipe multiprofissional, existência de rede de referência e contrarreferência, possibilidade de progressão funcional e de acesso a cursos de educação continuada (conforme prevê a proposta apoiada pelo CFM), será possível tornar a ampliar a presença de profissionais dentro do SUS.
“Medidas consistentes”
Existem péssimas condições de trabalho em muitas
Esta pergunta exige uma reflexão mais ampla. Em primeiro lugar, a formação médica no Brasil está em crise por conta de equívocos sucessivos na esfera da gestão. Os gestores têm autorizado a abertura desenfreada de escolas médicas e de novas vagas naquelas já existentes. Em consequência, temos um volume cada vez maior de estudantes, em escolas incapazes de oferecer corpo docente qualificado e estrutura adequada aos seus alunos. Finda a etapa de graduação, o jovem médico não encontra vagas para residência, ou seja, acaba excluído desse processo. Recentemente, o governo anunciou a ampliação dessas residências para Medicina de Família, agravando ainda mais a demora na formação de especialistas. Mesmo assim, sem ter qualquer preo cupação com a qualidade da formação oferecida, estendendo para esta etapa os mesmos vícios que atingem a graduação. É preciso estar atento, pois corremos o risco de com esta medida ter mais quantidade, sem que isso represente qualidade. Estamos atentos à formação dos médicos e nos preocupam futuros equívocos que possam comprometê-la ainda mais. Inclusive há informações de que um projeto do governo pretende criar um curso de medicina de somente quatro anos, sem exigência de que o aluno passe por hospitais. Somos totalmente contra esse tipo de mudança.
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Evolução
Exoesqueleto Ekso Bionics criado na Inglaterra é alternativa para paraplégicos poderem andar
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Medicina e ciência: caminhos paralelos
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ntes mesmo de receber seus diplomas, os novos médicos já estabelecem sua relação com a ciência no tradicional juramento: “Prometo que, ao exercer a arte de curar, mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência”. Esse conceito foi formulado por Hipócrates, considerado o pai da medicina ocidental, que viveu entre os anos 460 e 377 a.C. e, já naquela época, enfatizava a importância da conciliação entre as duas esferas. Cada vez mais, ciência e tecnologia são atributos indispensáveis da medicina e acompanham a evolução da sociedade, assim como ditam tendências de comportamento. Um exemplo são as cirurgias, até a metade do século 19 realizadas sem anestesia, em ambientes inadequados e com equipamentos sem esterilização – o que naturalmente resultava em índices elevados de mortalidade. Situações como essa são impensáveis hoje, quando microcirurgias, exames com alto deta-
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lhamento e até mesmo a decodificação dos genes já fazem parte da realidade. Em outra vertente, a evolução da ciência e da tecnologia permite que os conhecimentos da medicina também se expandam. O entendimento da anatomia e do funcionamento do corpo humano, por exemplo, que começou com o processo de mumificação pelos egípcios, ganhou novos horizontes com a invenção do microscópio no século 16. A partir daí, mais doenças foram desvendadas, compreendeu-se melhor o corpo humano e o homem passou a ter maior controle sobre sua própria natureza. E é justamente esse controle que se mostra como um viés para a medicina dos próximos anos. Os sinais de evolução, e do que ainda está por vir, são inúmeros. A partir da compreensão e manipulação dos genes, já é possível realizar um tratamento
mais personalizado e barato. Quando a técnica de mapeamento genético começou a ser aplicada, uma análise custava cerca de US$ 1 bilhão. Hoje, com empresas como a 23andMe, por US$ 99 é possível ter o seu DNA listado em qualquer lugar do mundo. Para cirurgias, reabilitações e transplantes, os médicos dispõem da cirurgia robótica, feita por robôs controlados por humanos, o que gera uma precisão muito maior a cada toque. Tecnologias como o Ekso Bionics, um exoesqueleto biônico, ajudam as pessoas que sofrem de paralisia a andar novamente, e a bioimpressão 3D ainda não está difundida, mas já é viável. Com desenho e detalhamento do órgão em softwa res específicos, células tronco do próprio paciente e certo tempo para maturação da impressão, o órgão produzido pela bioimpressora 3D poderá ser implan-
Especialistas devem organizar informações com o paciente “Em meio a tantas novidades, o médico que não souber lidar com todas estas informações e com o conhecimento do paciente vai perder espaço”, analisa Leonardo Aguiar, cirurgião plástico que foi um dos 80 selecionados para participar do FutureMed, principal evento de capacitação para uso de alta tecnologia na área da saúde, promovido pela Nasa e pela Singularity University, instalada no Vale do Silício (EUA). O projeto de Aguiar, apresentado no simpósio, pretende funcionar como um elo entre a tecnologia, os médicos e a sociedade, promovendo um processo de humanização da medicina, a partir do “olho no olho”, além da co-criação da saúde, multidisciplinaridade e envolvimento do paciente no seu próprio tratamento. “Existem muitas tecnologias, mas as pessoas não querem ser atendidas por máquinas. Elas desejam ser tratadas por pessoas, como pessoas. Cada vez mais, o paciente está participando das decisões, no processo central do tratamento. O médico vai precisar aprender a agir como membro da equipe, será como um coach para o paciente”, explica.
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Hoje, os pacientes têm acesso a um volume enorme de informações, mas estas não vêm de forma estruturada. A função do especialista, portanto, passa a ser a de entender e organizar todas essas informações e criar, junto com o paciente, o conceito de saúde, por meio de um diagnóstico completo. Isso exige que entenda a pessoa, os impactos na família, as expectativas e fantasias a respeito daquilo, e traga para a realidade. Assim, precisa saber ouvir, deve estar preocupado com o paciente e as suas interações. “Entramos no campo do tratamento multidisciplinar. Quem faz isso muito bem são os nutricionistas e fisioterapeutas. São esses os verdadeiros promotores de saúde”, exemplifica Aguiar. Na estrutura antiga, o paciente era passivo e se entregava às decisões do profissional, que decidia tudo, julgava-se dono do conhecimento e não o compartilhava com ninguém. No modelo que atende às novas demandas, o paciente já chega ao consultório bem informado, o médico está disposto a interagir com ele, e a estrutura busca beneficiar ambas as partes.
tado e diminuirá consideravelmente as filas de espera dos hospitais. Há mais. É possível replicar órgãos como pele, vasos sanguíneos, bexiga e estômago. Ao alcance do paciente, sensores e aplicativos de smart phones para monitoramento da saúde, tanto de atividades físicas quanto alimentação, configuram uma tendência entre o público jovem, e a evolução dessa tecnologia, que deve auxiliar no diagnóstico e tratamento de doenças, está se encaminhando. Com lançamento previsto ainda para o primeiro semestre de 2014, o Scanadu é um pequeno aparelho conectado por Wi-Fi ao smartphone, que realiza a medição de temperatura, da pressão, do batimento cardíaco e do estresse, além de análises de sangue e urina. A partir dessas informações, o smartphone acessa seu banco de dados e alerta possíveis diagnósticos.
Vilar participou de capacitação em alta tecnologia, no Vale do Silício: “O médico que não souber lidar com essa realidade vai perder espaço”
“Não somos mais donos do conhecimento” O desenvolvimento de tecnologias voltadas para a saúde, muito forte em países como Estados Unidos e Índia, tem recebido atenção especial ao redor do mundo. No final de 2013, entre diversos empreendimentos na área de robótica, a gigante Google anunciou a criação da Calico, companhia focada na qualidade de vida, saúde e bem-estar dos idosos, por meio de pesquisas sobre envelhecimento e enfermidades associadas. Levantamento da consultoria Frost & Sullivan estima que, em 2013, a receita das empresas de tecnologia com vendas para o setor de saúde chegou a R$ 1,16 bilhão, um crescimento de 25,6% sobre o ano anterior. O Brasil desponta nesse ramo, vinculado a capital externo. Uma das empresas nacionais de maior destaque no segmento é a Pixeon Medical Systems. Desenvolvedora de sistemas para análise de exames por imagens, armazenamento de laudos e diagnósticos médicos e administração das atividades diárias, a companhia recebeu, em 2013, um aporte de R$ 50 milhões do fundo Riverwood Capital. Com o recurso, o objetivo é crescer 50% anuais nos próximos cinco anos.
“Temos muito para evoluir, mas já crescemos bastante nos últimos anos, justamente por conta do potencial das empresas pequenas de receber grandes investimentos. Para melhorar ainda mais o desempenho do setor, podemos nos inspirar na Índia: investir em educação e incentivar o trabalho colaborativo, algo que eles fazem bem. Até os concorrentes sabem que precisam trabalhar em conjunto”, comenta o cirurgião Leonardo Aguiar. Para alinhar todas essas novas tecnologias e ajudar o paciente a organizar as diversas informações sobre sua saúde, a Microsoft se adiantou e criou o HealthVault, plataforma que agrupa os dados dos aparelhos e dispositivos, oferecendo maior quantidade e qualidade de informações ao usuário. “É o processo de empoderamento do paciente, que, com tantas informações, já não precisa mais ir ao médico. O profissional do futuro deverá estar preparado para lidar com essa mudança e oferecer um diferencial. O médico não é mais o dono do conhecimento”, resume Aguiar.
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Estudo
Incorporação de novas tecnologias aos cursos de medicina traz avanços para o Brasil
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oftwares que permitem o aprendizado sobre o corpo humano sem contato com sangue ou fluidos, assistência e orientação à saúde por videoconferência, robôs que fazem cirurgias minimamente invasivas. São situações já integradas aos cursos de medicina do Brasil, que, a cada ano, obrigam-se a acompanhar os avanços tecnológicos, ajustando currículos para melhor atender aos estudantes, sem se esquecer da parte reflexiva e crítica, principalmente nestes tempos em que a assistência pública sofre com tantos obstáculos. Há 10 anos, a Faculdade de Medicina
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da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Famed/UFRGS) se sobressaiu em âmbito nacional ao ser pioneira na substituição completa do uso de animais por modelos anatômicos sintéticos para treinamento de habilidades clínicas e cirúrgicas. Era um recomeço para os cursos da área da saúde. “O processo é lento e gradual e não pode parar nunca”, afirma Lúcia Maria Kliemann, vice-diretora da Famed. Hoje, o destaque fica por conta do Hospital das Clínicas, que funciona como hospital-escola e absorve mais rapidamente as mudanças. “Nossos professores e alunos são expostos permanentemente a essas inovações e necessitam estar sempre atualizados para acompanhar a evolução tecnológica”, ressalta. Ao pensar em um novo método para transmitir conhecimentos sobre saúde, os professores György Miklós Böhm e Chao Lung Wen, da disciplina de telemedicina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), chegaram ao “Homem Virtual”. O projeto, desenvolvido com recursos da computação gráfica, traz imagens tridimensionais das estruturas do corpo humano, facilitando o estudo e fortalecendo outra característica desse novo tempo: a integração de diversas áreas. “A tecnologia muda o conceito de aprendizagem, que ultrapassa livros e vídeos. Estudantes e professores precisam de uma visão multiangular”, frisa o professor Chao Lung Wen. O “Homem Virtual” pode ser instalado em computadores e tablets. A ideia da universidade é desenvolver um projeto de educação e saúde, disponibilizando acervo e o transformando em um roteiro de educação. A partir desse programa, os alunos poderiam estudar de casa ou da faculdade, somente utilizando uma interface compatível. “O objetivo da tecnologia é refinar cada vez mais os estudantes para torná-los agentes ativos e curiosos. Quem faz o show é o aluno, o professor proporciona os meios para isso”, atesta o doutor em medicina. Por meio da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), o governo federal também fornece ferramentas para que diversas áreas de ensino da medicina se integrem e auxiliem no atendimento da saúde pública. Um dos projetos de maior expressão é a Rede Universitária de Telemedicina (Rute), que tem por objetivo aprimorar a infraestrutura de comunicação para telessaúde, presente em hospitais universitários e instituições certificadas de ensino e saúde. O programa contabiliza 88 núcleos Rute em todos os Estados brasileiros, além de 57 Grupos de Interesse Especial (SIGs) em várias especialidades da saúde. De acordo com Luiz Ary Messina, coordenador nacional da Ru-
Com programas avançados, o Brasil tem sido modelo para vários países vizinhos te, com o avanço da rede e de outros dois programas nacionais – o Telessaúde Brasil Redes, com foco maior na atenção básica remota, e a Universidade Aberta do SUS (Unasus), com formação continuada dos profissionais do sistema público de saúde –, o Brasil tem servido de modelo a vários países da América Latina. A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) se atraíram pelas iniciativas e lançaram respectivamente os Diálogos em e-Saúde e o eTAG, eHealth Technical Advisory Group, para recomendações na área aos ministérios de saúde, em âmbito global. Um dos exemplos de aplicação da Rute ocorreu no fim de 2013, quando foi realizada a primeira transmissão de cirurgias em 4k (resolução quatro vezes superior à full HD), em tempo real, de forma instantânea, do Hospital das Clínicas de Porto Alegre (HCPA) para os Estados Unidos. O procedimento contou ainda com a participação dos hospitais universitários federais de Brasília (HU-UnB), do Espírito Santo (Hucan/Ufes) e do Rio Grande do Norte (HUOL/UFRN). “O binômio UFRGS/HCPA é ímpar. Recentemente, a instituição obteve o selo internacional de acreditação da Joint Commission e o engajamento de professores e alunos foi decisivo”, fortalece Lúcia Kliemann. A vice-diretora da Famed ainda afirma que, entre os próximos passos, estão a criação de um laboratório com múltiplas estações de treinamento em cirurgia, com avaliações bem estabelecidas, em que o sucesso destas será requisito para que alunos de graduação e médicos residentes possam participar de cirurgias reais. “Com treinamento prévio, estima-se uma significativa melhora nas habilidades ao atender o paciente real”, planeja a professora. É justamente a aplicação das tecnologias como instrumento de promoção da qualidade de vida das coletividades um dos desafios éticos explicitados pela professora Mirelle Finkler, doutora em odontologia em saúde coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Não podemos utilizá-la como um fim em si mesma, como muitas vezes se tem visto. As tecnologias devem estar a serviço da humanidade e da saúde, e não o contrário”, complementa. Na opinião de Mirelle, o tratamento pedagógico do fator ético no âmbito universitário, para além de mudanças curriculares que possam ser necessárias ou da incorporação de novas tecnologias, implica em mudança de perspectiva do corpo docente em relação ao que se considera uma boa formação universitária. “É necessário não separar biotecnociência e humanidades, cidadania de ética, e buscar a construção de uma sociedade igualitária”, afirma.
“O objetivo da tecnologia é refinar os estudantes para tornálos agentes ativos e curiosos. Quem faz o show é o aluno, enquanto o professor proporciona os meios para isso” Chao Lung Wen, da USP
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“Se queremos profissionais mais éticos, precisamos tirar das entrelinhas os valores mais ou menos presentes, mais ou menos valorizados no processo de socialização profissional” Mirelle Finkler, doutora em odontologia pela UFSC Nesse sentido, a bioética surgiria como meio para desenvolver a capacidade crítico-reflexiva, se considerada como o núcleo de um projeto pedagógico. “A inserção pontual de uma disciplina de bioética nos currículos acadêmicos é fundamental, mas insuficiente para o aprimoramento ético”, alerta Mirelle, reforçando a ideia de que o comprometimento com a dimensão ética da formação profissional precisa ser de todos os docentes, em todas as disciplinas e, sobretudo, “naquelas em que o processo de ensino-aprendizagem ocorre por meio de relações clínicas, palco frequente de conflitos éticos”. Foram os conflitos éticos vivenciados por Thales de Astrogildo e Tréz, no curso de biologia da UFSC, que o fizeram levantar a bandeira da proteção dos animais e a implantação de métodos substitutivos nas faculdades. Assim, há dez anos, surgiu a 1RNet, com a intenção de problematizar o uso dos animais, devido ao alto potencial de conflito que tais práticas provocam entre estudantes e professores. Na opinião de Thales, ainda falta um debate mais sistematizado e o reconhecimento da necessidade de migrar do método tradicional para outros mais modernos e com menos impacto do ponto de vista ético pedagógico. “A questão do custo foi superada, à medida que empresas brasileiras começaram a produzir esses recursos. Além disso, se o custo inicial for alto, é recuperado com o tempo, pois a ‘vida útil’ desses materiais é bem maior”, alega. O professor Chao Lung Wen avalia que o principal obstáculo para os avanços está na cultura sobre o processo educacional no Brasil, que tende a não utilizar a tecnologia. Ele avalia que, nos próximos cinco anos, a telemedicina deve contribuir para essas transformações, uma vez que a conectividade e os recursos já baratearam muito. “Com investimento de R$ 50 mil nos pontos remotos, uma universidade fica habilitada a receber uma carga educacional imensa”, analisa. Para a vice-diretora da Famed, é preciso prestar atenção na formação pessoal, que também vai mudando com o tempo. “Talvez esse deva ser um ponto de maior preocupação para nós, educadores. Propiciar ambientes de grande raciocínio clínico e pessoal, desenvolvimento de ideias, autoconhecimento e auto-
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gestão”, alerta. Como a informação é facilmente acessível, Lúcia Kliemann afirma que é necessário pensar o que fazer com ela, “considerando que devem se formar pessoas que, além de absorver o conhecimento e as tecnologias disponíveis, saibam gerar conhecimento e ter condições de selecionar o que é importante para si e para seus pacientes”. Em relação à cultura no âmbito educacional, Mirelle Finkler, que também faz parte da Sociedade Brasileira de Bioética/Regional Santa Catarina, chama atenção para um ponto muitas vezes esquecido: o chamado currículo oculto, que compreende a vivência e a aprendizagem dela decorrente das experiências e estímulos não previstos no currículo oficial. “O resultado desse processo é a incorporação da cultura social e profissional pelo estudante, que identifica os atributos que gozam de prestígio profissional e adquire uma escala hierárquica de valores, tomando para si comportamentos e valores do grupo no qual quer ingressar”, explica. Por isso, é necessário conhecer conflitos éticos experimentados pelos acadêmicos, analisando questões de prestígio das diferentes áreas de atuação profissional. “Evidentemente sempre existirá um currículo paralelo ao formal, mas, quanto mais desvelado ele for, maiores serão nossas possibilidades de atuação intencional, planejada e responsável enquanto formadores de profissionais e cidadãos”, ressalta.
“É preciso formar pessoas que, além de absorver o conhecimento e as tecnologias, também saibam gerar conhecimento” Lúcia Kliemann, vice-diretora da Famed
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Pacientes mais participativos necessitam de informações de qualidade Tantas mudanças acabam afetando também a relação médico-paciente, o que se reflete nos consultó rios. É cada vez mais comum o doente que chega com uma série de pesquisas feitas na internet, com dados sobre os sintomas que apresenta. Para o professor Chao Wen, convém ter cautela, pois a maior parte das informações é cientificamente duvidosa. Ao mesmo tempo, o médico precisa estar preparado, de maneira a não encarar essa postura como algo pessoal e entender o lado positivo, ao receber um paciente participativo. “O profissional será um orientador e o paciente se sentirá mais confortável. É necessário maturidade para discernir o que é relevante. O grande valor disso está na experiência. Afinal, a medicina, acima de tudo, é uma obra artística de relacionamento”, justifica. Por meio da telemedicina, a USP desenvolve projetos para disseminar conhecimentos na área da saúde e, assim, deixar a comunidade mais informada. Em março, a universidade iniciou a primeira turma do curso “Projeto Jovem Doutor: educação e promoção de saúde por meio de Teleducação Interativa”. Com vídeos e outros materiais, o programa demonstra situações cotidianas e promove debates sobre o tema, formando os participantes para que sejam replicadores em suas comunidades, ambientes de trabalho e família. Entre os assuntos abordados, destacam-se sexualidade, métodos contraceptivos, gravidez indesejada, doenças sexualmente transmissíveis, vida de pessoas com sorologia HIV positiva, saúde oral, obesidade e anorexia. Além disso, o curso conta com uma biblioteca de vídeos sobre drogas, álcool, tabagismo, para citar alguns temas. “É o que chamo de espírito de cidadania, no qual a pessoa aplica o que conhece de melhor. Nosso objetivo é fortalecer o conhecimento de saúde da população, desenvolvendo cuidados para prevenir doenças”, afirma o professor Wen, que também coordena o curso.
À esq., o Fórum RNP, que realiza a terceira edição em setembro; ao centro, o professor Chao Wen, da USP; à dir. Messina, coordenador da Rede Universitária de Telemedicina
Telemedicina em expansão Neste ano, a organização da Rede Universitária de Telemedicina (Rute) pretende inaugurar entre 20 e 25 núcleos, além da implantação em faculdades de medicina das instituições federais, conectando as instituições de ensino aos hospitais universitários. “Isso vai permitir a integração e demonstração em tempo real de ações de ensino, assistência e pesquisa colaborativa, aproximando alunos, residentes, professores e profissionais da saúde”, explica Luiz Ary Messina. As outras faculdades da área da saúde devem vir na sequência, com a proposta da integração multiprofissional, que pode trazer o avanço mais adequado às novas tecnologias, beneficiando formas de aplicação e divulgação do conhecimento. O destaque fica por conta do 3o Fórum RNP, a ser realizado em Brasília. Com o tema “Telessaúde”, o evento vai debater o papel das tecnologias da informação e comunicação no desenvolvimento da saúde e na capacitação de recursos humanos, imprimindo uma visão de futuro comum e inovadora.
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Virtual
Dados podem salvar vidas?
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orge Furtado, no filme “Ilha das Flores” (1989), diferencia o ser humano dos outros animais por duas caracte rísticas: o telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor. O primeiro permite armazenar informações, relacioná-las, processá-las, entendê-las. O segundo, por sua vez, torna possível a manipulação de precisão. É claro que outras distinções podem ser apontadas, porém, o homem foi o único animal a conseguir criar um mundo além do qual está fisicamente inserido. Nesse novo planeta, de natureza virtual e em constante crescimento, circundam dezenas de dados que, se armazenados, comparados e confrontados, podem ajudar o indivíduo a prevenir e solucionar diversos problemas, principalmente na área da saúde. Segundo o IDC Networking Tracker, o volume mundial de informações digitais alcançará 5,4 Zettabytes em 2014 – para se ter uma noção da quantidade, 1 zetta corresponde a 1 trilhão de gigabytes. Vale lembrar que o “mundo dos dados” vai além, muito além, daqueles que tradicionalmente salvamos em computadores por meio de documentos e arquivos pessoais. A web é constituída principalmente por dados não estruturados, que correspondem a 90% dos existentes. Estes são gerados, por exemplo, a partir do
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que se manda por e-mail, postagens em redes sociais ou compras online. Novas tecnologias estão sendo desenvolvidas para a leitura massiva e processamento rápido desse grande volume de informação, porém, a sua utilidade prática é o que mais atrai o olhar dos pesquisadores. Se for armazenado e bem analisado, o “lixo” acarretado na web é capaz de gerar algoritmos que podem resultar em diversas ações. Para essas metodologias de armazenamento e análise
de dados produzidos massivamente, dá-se o nome de Big Data. Em outras palavras, Big Data é a união entre estatística, matemática e arranjo de dados que podem, através de seus resultados, ajudar a prever comportamentos. Na área empresarial, a metodologia tem sido amplamente explorada como uma forma de antecipar tendências de mercado. No entanto, o potencial do cruzamento de dados é infinitamente maior: eles podem salvar vidas. Seria o início de uma nova era médica?
Big Data é a união entre estatística, matemática e arranjo de dados que podem, por meio de seus resultados, ajudar a prever comportamentos
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Supercomputador da IBM batizado de Watson promete erradicar oito tipos de câncer, entre eles, a leucemia
Cruzamento de informações permite antecipar ameaças e definir tratamentos Através de recursos e tecnologias como o Big Data, o Business Analytics and Optmization (BAO) e a computação cognitiva, a montanha de dados está sendo usada para fazer diagnósticos e determinar tratamentos na medicina. Um hospital do Canadá usou a tecnologia desenvolvida pela Internacional Business Machine (IBM) e Universidade de Ontário para monitorar, em tempo real, dezenas de indicadores de saúde de bebês prematuros. O cruzamento de dados permitiu aos médicos antecipar ameaças às vidas das crianças. A IBM também conta com o Watson, um supercomputador que promete erradicar oito tipos de câncer, entre eles, a leucemia. Concebida em parceria com o MD Anderson Cancer Center, da Universidade do Texas, a máquina é capaz de ler cargas colossais de dados e “entender” o que eles dizem. A tecnologia está sendo aplicada nos Estados Unidos. Mas como funciona? A máquina puxa os dados da pessoa, inclusive o histórico de saúde, e faz o diagnóstico em interação com o médico. “Verificamos que mais da metade dos diagnósticos dos médicos é errada”, expôs o presidente da IBM Brasil, Rodrigo Kede, durante palestra em Joinville. Para Kede, a atuação do médico é insubstituível, entretanto, com esse tipo de máquina, a decisão nos tratamentos é facilitada – o que seria um grande auxílio no Brasil, em que estudos do Ministério da Saúde apontam para o surgimento de cerca de 576 mil novos casos de câncer em 2014. “Computação cognitiva é o novo nome dado à inteligência artificial. Já desenvolvemos e estamos desenvolvendo sistemas que simulam o comportamento do cérebro humano. São sistemas que
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aprendem sozinhos”, disse o presidente da IBM. “Dados são o próximo recurso natural. Assim como o petróleo foi fundamental para a Revolução Industrial, os dados mudarão a forma como as pessoas trabalham e vivem.” Os dados trazem a possibilidade de abertura para uma nova era médica – mais preditiva, personalizada, antecipatória, preventiva e participativa. “Na medicina, existe uma grande quantidade de dados não numéricos ou quantitativos que ainda não foram explorados em todo o seu potencial, como prontuários, notificação de agravos, detecção de efeitos adversos a medicamentos em redes sociais e monitoramento sindrômico via internet. A era do Big Data fará com que passemos a ‘enxergar’ oceanos de informação que antes eram apenas pilhas de formulários em um arquivo, ou meramente massas de dados impossíveis de interpretar”, aponta Flavio Coelho, organizador do 1o Simpósio em Saúde Pública e Big Data, promovido pela Fundação Getulio Vargas, em parceria com a Fiocruz e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). De acordo com o professor, que é pesquisador na área de modelagem matemática e computacional de doenças infecciosas, os métodos de Big Data encontram aplicações “importantíssimas” na saúde pública. Mas, no Brasil, ainda existem dificuldades, como a importância da coleta, manutenção e acessibilidade dos dados disponíveis. “Até hoje, os dados não se encontram integrados e ainda são de difícil acesso.” Também faltam profissionais. “Pessoas capazes de lidar com esses problemas e sobrepujá-los são raras, mas as escolas de saúde pública e de estatística já estão começando a se adaptar a essa demanda, e devemos ver uma melhoria nos quadros profissionais nos próximos anos”, prevê.
Os dados abrem a possibilidade de uma nova era para a medicina: mais preditiva, antecipatória, preventiva e participativa
O médico Luiz Henrique Melo, o estudante Klaus Schumacher e o programador José Andrade desenvolveram o “SmartDengue”
Dengue é o foco de pesquisa no Brasil No Brasil, segundo o International Data Corporation (IDC), a tendência para este ano é o amadurecimento de estruturas de Big Data/Analytics, que deve movimentar cerca de US$ 426 milhões. O uso de Big Data e redes sociais para auxiliar a saúde pública é um dos setores que mais crescem, uma vez que a análise e o cruzamento de dados podem ajudar na prevenção e controle de doenças como a dengue. Desde 2011, existe o projeto “Dengue na rede”, um sistema colaborativo de monitoramento usado em Salvador (BA) e que tem por objetivo analisar, em “tempo real”, a evolução da epidemia na região. Os participantes informam, no site, a presença ou não de sintomas da doença, ou ainda a ocorrência de casos nos diversos locais da cidade. Depois de cadastrados, eles recebem semanalmente um boletim informativo com curiosidades e notícias sobre a dengue e são convidados a responder questionários sobre os sintomas da dengue (ou a ausência deles), para comparação com as informações passadas na semana anterior. Os dados obtidos são analisados por investigadores do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. Através de modelos matemáticos e plataformas computacionais com capacidade para simular a propagação da dengue na cidade, é possível avaliar cenários de intervenção. A Escola de Matemática Aplicada da Fundação Getulio Vargas, em parceria com instituições como a Fiocruz, também investe em pesquisas relacionadas à dengue. “Estamos envolvidos no desenvolvimento de uma alerta de risco em tempo
real para dengue no Brasil que combina múltiplas fontes de informação, desde incidência de casos, passando pela distribuição do mosquito transmissor, até dados de redes sociais”, informa Flavio Codeco Coelho. Segundo o professor da instituição, o “Alerta Dengue” deve entrar em operação antes da Copa do Mundo, sendo implantado no Rio de Janeiro e passando, em seguida, para Belo Horizonte e Curitiba. No Sul do Brasil, três pesquisadores de Joinville criaram o “SmartDengue”, um aplicativo que faz avaliação em tempo real da situação do paciente através dos dados preenchidos pelo médico durante a consulta. A ideia é a realização de um diagnóstico mais rápido da doença. O trabalho foi ganhador do Prêmio Inovação Medical Services, de 2013, e é inédito no país. “Estamos em negociação para sua utilização por secretarias de saúde na vigência de epidemia de dengue no sentido de comprovar que uniformizar o atendimento pode levar a melhor efetividade do serviço e, acredito, em menor mortalidade”, diz o médico e professor Luiz Henrique Melo, que desenvolveu o aplicativo com o programador de informática José Alberto Andrade e o estudante de medicina Klaus Schumacher. O aplicativo, que pode ser utilizado em celulares, tablets e computadores, tem versão em espanhol. “Nossa ferramenta foi uma das primeiras nesse campo e observamos grande aceitação, principalmente com a distribuição do ‘SmartDengue’ na América Latina”, comenta o médico. Na visão do programador de informática integrante da equipe, ferramentas para uso de dados com aplicações práticas são ainda pouco utilizadas no país. “Hoje se ganha mais dinheiro com um game do que com um aplicativo na área médica. Tem muita coisa a ser feita, mas pouca gente para financiar ou pagar”, aponta Jorge Andrade. Para Klaus Schumacher, a área ainda precisa ser mais explorada no Brasil, podendo trazer grandes avanços na medicina social básica e especializada. Ele aponta dois fatores que limitam a relação entre medicina e tecnologia. “O primeiro é por parte dos desenvolvedores de tecnologia em saúde: a inexperiência e/ou desconhecimento do ambiente de saúde real causa um atraso ou déficit da criação de soluções tecnológicas na área ou as tornam inadequadas antes mesmo de existirem. O segundo é por parte dos médicos que, muitas vezes, desconhecem ou renegam o auxílio que as soluções tecnológicas podem trazer à medicina prática.”
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Fábio Antônio Tironi Médico patologista
Ponto de vista
do Hospital Dona Helenaa
Patologia e avanço diagnóstico
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patologia exerce fascínio por conjugar tradição e vanguardismo. Tronco de ligação entre a ciência básica e a aplicada, sustenta a medicina moderna através de um caule robusto de conhecimento. Suas ferramentas abrangem desde seculares técnicas de dissecção anatômica até modernos métodos moleculares, desvendando mecanismos de adoecimento e estabelecendo critérios diagnósticos. Nesse contexto, não poderia ser das áreas menos beneficiadas, e também exigidas, pelos avanços da tecnociência. Tampouco deixaria de caminhar ao lado dos aprimoramentos das demais especialidades. O exame macroscópico de espécimes cirúrgicos, etapa vital do processo diagnóstico, é constantemente refinado. Pesam detalhes como a avaliação de estruturas anatômicas infil tradas por tumores, o estudo das margens radiais, métodos para auditar a qualidade de ressecção de tumores, a exemplo da ressecção total de mesorreto, além da adequada quantidade e localização dos linfonodos dissecados. As biopsias constituem outro exemplo notável de avanço no último meio século. Exigiram que fosse desenvolvida uma habilidade diagnóstica própria para avaliar diminutas amostras de lesões obtidas não mais por ressecções cirúrgi-
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cas dos órgãos, mas pelas mais diversas modalidades de endoscopia e de biopsias por agulha. Em complementação ao estudo histológico, agrega-se rotineiramente exames imunohistoquímicos e biomoleculares para verificar a histogênese de tumores, pesquisar a expressão de receptores hormonais ou de mutações, e identificar agentes infecciosos como infecções virais diversas. Uma possibilidade recente é a aplicação de marcadores imunohistoquímicos para caracterizar as lesões precursoras de neoplasia das regiões oral, anal e genital, ou seja, para diferenciar lesões intraepiteliais de baixo grau das de alto grau. Seu uso é reservado a casos selecionados onde não é possível a aplicação precisa dos critérios diagnósticos. As longamente controversas e recentemente aceitas classificações moleculares de tumores foram beneficiárias da associação de métodos. Fundamentadas nos critérios histológicos clássicos acrescidos do perfil de expressão proteica, ganharam credibilidade recente nos carcinomas mamários. Essa modalidade de classificação configura uma tendência moderna que dificilmente será contida. Sequer o exame pré-operatório deixa de ser provocado por novas técnicas. Artigo publicado em março de 2014 na revista “Modern Pathology” propõe a adaptação de microscopia confocal fluorescente como método alternativo à consagrada técnica de congelação. Segundo os autores, entre outras vantagens, permitiria avaliar uma porção mais ampla de margens cirúrgicas. A título de pesquisa básica, entra em cena a proteômica, técnica que permite analisar proteínas extraídas de tecidos e caracterizá-las através de espectrometria de massa. Permite, por exemplo, contrastar um amplo perfil de expressão proteica entre o tecido normal e o neoplásico do mesmo órgão. O método promete avanços substanciais e de caráter prático na compreensão da biologia dos tumores.
Wladimir Kümmer
Coordenador do Serviço de Neurologia do Hospital Dona Helena
Inovações em neurologia
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novação é a palavra da moda. Significa trazer novidades mas também renovar. Na neurologia, há necessidade de mais alternativas para o tratamento das doenças e afecções dessa área, desde a mais simples, como a enxaqueca, até a mais complexa, que é a recuperação de funções neurológicas perdidas. Assim, escolhi quatro inovações que já estão entre nós e que prometem oferecer mais oportunidades de tratamento aos nossos pacientes. 1. Toxina Botulínica: conhecido pela sua marca mais famosa, o BOTOX®, não é necessariamente uma inovação, pois já é conhecida há mais de 50 anos. Porém, somente na última década é que foi redescoberta, e desde então seu uso e indicações crescem exponencialmente. Além da aplicação na área de estética, a toxina botulínica tem outras utilidades na neurologia. É um tratamento estabelecido e eficaz para a enxaqueca crônica. A toxina botulínica consegue restabelecer o equilíbrio muscular nos portadores de transtorno do movimento e nas sequelas do Acidente Vascular Cerebral (AVC) e da paralisia cerebral. A inovação mais recente ocorreu para o tratamento dos problemas de incontinência urinária e como alternativa para emagrecimento. 2. Consultas virtuais: um interessante estudo realizado nos Estados Unidos identificou que cerca de 70% dos pa-
cientes preferiam ser consultados no conforto de sua casa ou escritório do que ir ao consultório médico. Toda a estrutura para a implementação da telemedicina já está desenvolvida. Os dados do paciente seriam guardados na nuvem e apenas o paciente teria uma chave biométrica para consultá-los. O encontro com o médico ou profissional da saúde poderia ser feito por telefone com imagens. O próprio smartphone ou relógio inteligente do paciente já teria acessórios para medir os dados vitais como pulso, pressão, glicose etc. Esses acessórios já existem e outros que permitem inclusive exames mais complicados estão em desenvolvimento, como monitorizar pacientes com epilepsia. Na neurologia, os médicos de plantão conseguem tratar vítimas de acidente vascular encefálico, em que o tempo é fundamental, à distância, ou até mesmo dentro da ambulância. Isso se faz por meio da transmissão ao vivo de dados do paciente atendido pela equipe de resgate ou em um hospital, que não tenha neurologista, para um centro de controle, onde está o médico de plantão. Na Alemanha, o uso dessas ambulâncias superequipadas conseguiu reduzir em até 40 minutos o tempo para o paciente receber a medicação para combater o AVC. É muito, considerando que só se tem quatro horas e meia para começar a medicação contadas a partir do primeiro sintoma. 3. Interfaces homem x máquina: a base do funcionamento do cérebro e sua comunicação com o resto do organismo é a troca de informações que os neurônios fazem entre si e com outras células como os músculos. As informações são transportadas e processadas através de impulsos elétricos e químicos. Na Copa do Mundo, neste ano, será apresentado um protótipo de exoesqueleto que permitirá que uma pessoa com lesão na medula – principal via de comunicação do cérebro com o corpo – consiga movimentar novamente seus músculos, fique de pé e dê o primeiro pontapé. O computador do exoesqueleto conseguirá ler os impulsos elétricos cerebrais e transformar essa informação em movimento.
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Christian Ribas
Coordenador do Serviço de Oncologia do Hospital Dona Helena
Fronteiras do tratamento oncológico
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oncologia clínica, ou cancerologia clínica, é a especialidade médica que se dedica ao estudo e tratamento medicamentoso do câncer, adjetivado, em recente e interessante obra, como “o imperador de todas as doenças”, pela ideia de sofrimento, dor e morte que evoca. A relevância epidemiológica do câncer é inegável e seu impacto mundial cresce em velocidade alarmante; com atuais 14 milhões de casos novos por ano, estima-se para 2035 uma incidência de 22 milhões. A mortalidade pelo câncer também aumentará nas próximas duas décadas, passando dos atuais 8.2 milhões de óbitos/ano para 13 milhões. Devido ao crescimento e envelhecimento das populações, é previsto que os países em desenvolvimento sejam desproporcionalmente afetados, com mais de 60% dos casos e até 70% dos óbitos ocorrendo na Ásia, África, América Central e América do Sul. A abordagem exitosa do câncer tem em sua fórmula uma série de elementos: o conhecimento técnico da doença e de seus possíveis tratamentos; o paciente, sua família e seu contexto social; a estrutura financiadora do tratamento; as estratégias preventivas. O diagnóstico do câncer tem sempre contado com a patologia. Modernamente, observa-se o reconhecimento de crescente número de subtipos genético-moleculares de câncer, em cuja caracterização são cha-
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mados a contribuir métodos avançados, e por vezes onerosos, como a análise do DNA tumoral por técnicas de biologia molecular, a citogenética e a citometria de fluxo. Além das informações diagnósticas, essas técnicas podem fornecer resultados preditivos de resposta a determinadas intervenções, tornando-se indispensáveis para o correto planejamento terapêutico. O arsenal terapêutico da oncologia clínica encontra-se em franca expansão. A cada ano, novas opções enriquecem um já avantajado conjunto de medicamentos, utilizados isoladamente ou em combinações. O profundo conhecimento da biologia do câncer tem ensejado o desenvolvimento de fármacos mais específicos, que agem sobre os mecanismos fundamentais dos quais depende a célula neoplásica e/ou atuam sobre o microambiente tumoral. Reconhecida igualmente a importância da cirurgia, em suas diversas especialidades, da radioterapia e das outras áreas relacionadas ao diagnóstico e tratamento do câncer, o planejamento oncológico contemporâneo é feito através de um entendimento multidisciplinar, com vistas ao tratamento individualizado, que tem por alvo as necessidades e características do paciente, utilizando-se das melhores evidências científicas para atender a situações clínicas específicas. Acresce notar que, se o tratamento específico do câncer deve ser maximizado, o das comorbidades (doenças coexistentes), deve sê-lo igualmente. Estima-se que mais de 50% dos pacientes com mais de 50 anos tenham pelo menos uma comorbidade, cuja presença se traduz por fator independente para pior sobrevida. Não é incomum a solicitação familiar para que se oculte ao paciente o diagnóstico de câncer, no pressuposto de evitar acréscimo de sofrimentos. No entanto, a participação do paciente no processo de decisão terapêutica é fundamental, respeitando-se sua autonomia e preferências. Ele pode optar por não se envolver, mas alguém que o representa deverá fazê-lo. Desejável e oportuno, portanto, a designação, pelo paciente, de um “cuidador” – pessoa de sua confiança, apta a interagir e tomar decisões em conjunto com a equipe médica.
Caio Tavares
Coordenador do Laboratório de Análises Clínicas do Hospital Dona Helena
Qualidade na área laboratorial
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m sistema de gestão da qualidade bem implantado proporciona à empresa uma estrutura que lhe permite a identificação de eventuais problemas ou desvios de processos, com agilidade tal para que possam ser corrigidos antes que interfiram na qualidade de seus produtos ou serviços, de forma que estes sejam cada vez melhores. Para tanto, faz-se necessário definir uma política da qualidade e que as atividades desenvolvidas sejam planejadas e executadas de acordo com essa política. Também é indispensável que cada membro da equipe seja devidamente qualificado para o desempenho de sua função. A partir de então, deve ser feito o monitoramento do trabalho para que, quando os resultados obtidos não são aqueles planejados, seja feita a sua correção e, como consequência disso, o aumento da eficiência e produtividade e obviamente da satisfação dos pacientes. Dessa forma, o Hospital Dona Helena estabeleceu como sua política da qualidade ser um “centro hospitalar fundamentado na filosofia cristã, cujo objetivo é a preservação e valorização da vida, oferecendo serviços de excelência, mantido o equilíbrio entre atendimento, conhecimento, tecnologia e humanização”. Essa política é sustentada e monitorada por um sistema de gestão da qualidade que promove sua melhoria contínua, agregando valor aos laudos por nós emiti-
dos. Com esse objetivo, toda a equipe do Laboratório de Análises Clínicas (LAC) do Dona Helena trabalhou na implementação de um sistema de gestão da qualidade, tendo como base a NBR ISO 9001/2000, sistema que foi auditado e certificado pela BRTÜV certificadora e chancelado pelo Inmetro desde 2008. Entretanto, não paramos por aí, agora da mesma forma trabalhamos intensamente para alcançar, em março, a acreditação da Joint Commission International (JCI). Toda a equipe do LAC continua envolvida com a manutenção dos dois sistemas, com requisitos específicos para laboratórios de análises clínicas, possibilitando um melhor controle dos processos e proporcionando melhoria contínua todos os dias. Afinal, um laboratório de análises clínicas deve assegurar que os resultados produzidos reflitam, de forma fidedigna e consistente, a situação clínica apresentada pelos pacientes, satisfazendo as necessidades de seus clientes e possibilitando a determinação e a realização correta de diagnóstico, tratamento e prognóstico das doenças. A garantia da qualidade só é alcançada em um laboratório de análises clínicas tendo total e absoluto controle sobre todas as etapas do processo, o qual compreende as fases pré-analítica, analítica e pós-analítica. Para isso, é preciso treinar, treinar e retreinar pessoas. Um processo que nunca termina. É por essa razão que a gestão de um hospital passa pela profissionalização, afastando-se cada vez mais dos “achismos”. A busca por pessoas bem preparadas e focadas em resultados será cada vez maior. Nesse sentido, a comunicação passa a ter um papel importante, auxiliando no diálogo com públicos diversos e profissionais de níveis diferentes. É necessário que a comunicação seja eficiente para que a assistência seja de qualidade. Gestão de pessoas de qualidade, envolvidas com assistência, respeitadas e tratadas com dignidade irá garantir um quadro de profissionais com habilitação e experiência comprovadas. O mesmo cuidado deve ser tomado com médicos, fornecedores e terceiros, para que todos retransmitam os valores da instituição aos pacientes e visitantes.
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José Tadeu Chechi
Gerente de Recursos Humanos do Hospital Dona Helena
Gestão de pessoas: desafio para líderes
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tema gestão de pessoas é muito amplo, mas devemos fazer algumas reflexões para tentar entender sua importância ao longo do tempo, desde os primórdios da humanidade até os dias de hoje. Aspectos como comportamento, produtividade e motivação foram contemplados em diversas pesquisas, pois entender a integração das pessoas às organizações sempre foi – e continuará sendo – um grande desafio. Antes de falar de gestão de pessoas, precisamos entender a definição de comportamento organizacional, que é um campo de estudo voltado a prever, explicar, compreender e modificar o comportamento humano no contexto das empresas. Gostaria de citar também a abordagem da Teoria Geral de Sistemas, tão difundida nos livros de administração, que se baseia nos trabalhos do biólogo alemão Ludwig von Bertanlanffy. Publicados entre os anos de 1950 e 1968, os estudos pressupõem a integração entre as várias ciências naturais e sociais e que, sob o aspecto administrativo, foi aprimorada por Daniel Katz e Robert Kahn, destacando a importância de se avaliar a organização como um todo e não somente em departamentos ou setores. Assim, uma organização é um sistema aberto que mantém interrelacionamento entre as variáveis internas e externas que afetam seu comportamento. Após essa introdução, devemos tentar
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responder às seguintes perguntas: como as pessoas afetam o funcionamento das organizações? E como as empresas afetam o comportamento das pessoas? A resposta é lógica: se uma organização é formada por um conjunto de pessoas, sua existência depende das pessoas, existindo influência mútua. Analisando o cenário atual da economia no país, onde existe grande busca por mão de obra qualificada, com empresas criando plantas fora dos grandes centros, há uma necessidade urgente não apenas de formação, mas também de políticas para a retenção e desenvolvimento dos recursos humanos. Assim, selecionar a pessoa para o lugar certo envolve muito mais do que uma avaliação criteriosa do currículo e das experiências do candidato, mas também como ele irá se adaptar à cultura organizacional e como essa cultura será por ele incorporada. O sucesso, o desempenho, o desenvolvimento e consequentemente o tempo de permanência de um funcionário na empresa depende – além das políticas institucionais de RH – da integração entre o líder e o liderado. Alguns podem pensar: como manter um funcionário na empresa se ele está insatisfeito com o salário? A resposta pode ser convertida em outra pergunta: você permaneceria em uma empresa se tivesse um péssimo ambiente de trabalho ou um péssimo relacionamento com o seu chefe, mesmo tendo bom salário? Por quanto tempo? O principal desafio da área de Recursos Humanos é desenvolver nos gestores a cultura de gestão de pessoas, fazendo com que cada um seja o gerente de RH dos seus subordinados, tratando-os com equidade, sabendo respeitar as diferenças, disseminando os valores da empresa, os quais devem estar alinhados com os valores pessoais do funcionário. Todos temos líderes que foram referência para nossa carreira, mas você, como gestor, considera-se igualmente uma referência para seus subordinados? Se daqui a 10 anos alguém lhes perguntar qual gestor foi relevante em suas carreiras, qual será a resposta? Espero que o seu nome seja lembrado.
Renata Gonçalves
Pediatra, coordenadora da UTI Neonatal do Hospital Dona Helena
Sobre a importância do pré-natal
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abe-se que a boa saúde materna contribui para uma gestação saudável. Uma das primeiras recomendações à futura mamãe é procurar um obstetra para acompanhamento pré-gestacional pelo menos três meses antes de engravidar. Hoje, já se reconhece como importante a reposição de ácido fólico para a prevenção de malformações do sistema nervoso do feto. O bom estado nutricional, a pesquisa de infecções e a mudança de hábitos devem ser encorajadas. A gravidez pode ser divida em três estágios de, aproximadamente, três trimestres. O primeiro é crítico para o embrião: todos os seus órgãos estão se formando e qualquer efeito adverso materno, principalmente as infecções, pode alterar a boa formação do bebê. Por isso, o pré-natal deve ser iniciado bem no princípio da gravidez. Muitas infecções descobertas nessa fase são passíveis de tratamento, protegendo o bebê de intercorrências, geralmente graves. Os exames são periodicamente repetidos na gestação. O controle da pressão arterial deve ser sempre realizado. Doença hipertensiva específica da gravidez é uma condição que, se não controlada, pode levar a acometimento severo da saúde da mãe e do feto. É uma causa importante de restrição do crescimento fetal, de nascimento prematuro, além de colocar em risco a saúde da mãe. A eclâmpsia é o estágio mais grave da hipertensão da
gestação, levando à convulsão materna, que indica a interrupção imediata da gravidez. A glicemia e outros exames específicos são determinados durante a gestação e detectam o diabetes gestacional. Durante toda a gestação, atividade física regular (quando não contraindicada) e alimentação saudável também ajudarão a prevenir o diabetes gestacional. O segundo trimestre é a fase mais tranquila. O papel da mãe é essencial para um bom desenvolvimento psíquico do filho. O vínculo criado vai além do cordão umbilical. O feto já demonstra capacidade de audição a partir da sexta semana da gravidez, reconhecendo a voz dos pais e os batimentos cardíacos da mãe. A criança é também capaz de acompanhar todas as emoções que a cercam. O bem-estar físico e mental da gestante pode garantir um bom desenvolvimento fetal, evitando o nascimento de bebês com baixo peso, hiperatividade e distúrbios em geral. O terceiro trimestre é fase de rápido crescimento fetal: a barriga cresce e se torna o centro das atenções. Nesse período, a gestante pode ter dificuldade para dormir e para respirar. Por isso, convém reduzir o seu ritmo e descansar com mais frequência. Os exames de pré-natal devem ser repetidos nesta fase, novamente pesquisando infecções que ainda podem ser tratadas ou que serão importantes para o acompanhamento pediátrico. As consultas de pré-natal devem ser mais frequentes no final da gestação, garantindo o bem-estar materno e fetal. A ultrassonografia nessa fase avalia o crescimento do feto e a função da placenta, responsável pela oxigenação e nutrição do feto durante toda a gestação. E já é o momento de conversar com o obstetra sobre o parto. O Brasil tem elevada incidência de cesarianas, mas o parto normal traz muitos benefícios para o bebê. Entre eles, o verdadeiro amadurecimento do feto, que quando pronto faz desencadear o trabalho de parto. Há menor incidência de desconforto respiratório nos bebês que nascem de parto normal, pois a maioria do líquido amniótico contido nos pulmões do feto é eliminada durante o parto.
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Diรกlogo
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Alcindo Ferla
“O SUS é uma política inovadora”
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m dos maiores especialistas brasileiros em saúde coletiva, professor do bacharelado e na pós-graduação dessa área na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o gaúcho Alcindo Ferla é, também, um entusiasmado defensor do Sistema Único de Saúde (SUS) vigente no Brasil. Segundo ele, o modelo adotado pelo país pode ser considerado, ainda, “uma grande inovação” – fato reconhecido pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS). “Nosso sistema de saúde chama a atenção pela proposta de universalidade, pela discussão da participação da população e pela articulação com a formação de profissionais”, defende, nesta entrevista exclusiva. Ele alerta, contudo, que sua implementação, em curso nos últimos 25 anos, não pode ser considerada um processo linear: “A cada etapa, diferentes atores e interesses voltam à cena”. Alcindo Ferla é professor adjunto da Escola de Enfermagem da UFRGS, além de professor colaborador e pesquisador em diversos cursos e instituições, como o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz. Nas próximas páginas, a entrevista de Ferla.
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“A política e o sistema de saúde brasileiros despertam o interesse de autoridades governamentais e acadêmicas em outros países, pelos avanços aqui testemunhados” Que avaliação o sr. faz do modelo atual do SUS? Poderia elencar pontos positivos e negativos? Em seu ponto de vista, qual o papel dos municípios no atual contexto do SUS e o que pode ser feito de concreto nessa esfera? O SUS, como política de saúde, é uma grande inovação. Publicação recente da Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece isso, depois de anos em que fazia uma avaliação pejorativa, julgando que políticas sociais universalizantes e com desafio de integralidade eram uma opção delirante de países pobres. Avaliação que se embasava em uma posição ideológica, dos países capitalistas centrais, em favor de estados mais enxutos e com controle de gastos sociais, para apoiar o desenvolvimento econômico e industrial, e também em um certo preconceito com a situação de vulnerabilidade das populações nos países com menor grau de desenvolvimento. Agora, reconhece que parte significativa dos avanços no estado de saúde, como em relação ao tratamento de pessoas doentes de Aids e transplantes, por exemplo, e a ampliação da atenção básica, para utilizar alguns exemplos, são associados à política de saúde conquistada pelos brasileiros e brasileiras nos últimos 25 anos. Estive, no início deste ano, na Itália, num seminário de cooperação entre a UFRGS e a Universidade da Bolonha, com a interveniência da Agência Regional para a região da Emiglia-Romana e do Ministério de Saúde do Brasil, e a política e o sistema de saúde brasileiros têm despertado o interesse de autoridades governamentais e acadêmicas, assim como de outros países, universidades e agências de fomento e avaliação de políticas de saúde. Que aspectos do SUS, em particular, chamam atenção destes países? Há algum país que tenham adotado modelo semelhante ou que tenha se inspirado no SUS para sua implementação? Nosso sistema de saúde chama atenção pela proposta de universalidade, pela discussão da participação da população e pela articulação com a formação de profissionais. Mesmo que ainda não estejam completamente resolvidas internamente, essas questões vêm se destacando também pelas dimensões territoriais e populacionais que o sistema de saúde brasileiro abrange. Na Itália, a cooperação que fizemos no seminário esteve centrada nas políticas de educação para os profissionais da saúde, as iniciativas de partici-
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pação social na saúde e nas políticas públicas e na ampliação de serviços ambulatoriais, em particular o que é chamado lá de “casas de saúde”, muito próximas ao que denominamos unidades de saúde da família no Brasil e inspiradas na nossa experiência, inclusive com a incorporação de agentes comunitários de saúde. O SUS é, assim, uma política inovadora e sua implantação está em andamento nos últimos 25 anos. Como estudioso, preciso alertar, entretanto, que a etapa de implementação de políticas nunca é um processo linear. Os diferentes atores e interesses voltam à cena na etapa de implementação. Quais são os principais atores, neste caso, que interesses divergentes surgiram e por quê? São colocados em tensão, na implementação de políticas de saúde universalizantes e com regulação pública, corporações e interesses profissionais, como estamos vendo em relação aos médicos e sua reação ao programa do Mais Médicos, o que chamamos de complexo produtivo na saúde e que envolve a produção e comercialização de equipamentos e fármacos, como vimos em relação às patentes dos medicamentos antirretrovirais há alguns anos, entre outros. Não foi sem tensões a definição do SUS como política e não está sendo trivial a implementação. Ou seja, não se trata apenas de um caminho linear em direção ao que está previsto na lei; trata-se, isso sim, de uma disputa constante de interpretação e de estratégias que preservem interesses e compreensões. Temos resistências em várias questões fundamentais do SUS. Mas é inegável a quantidade de avanços que tivemos nestes 25
anos. As mais visíveis são relativas à regulação pública do trabalho e da gestão, à mudança de lógica das práticas de cuidado e da formação das profissões da saúde, às questões relativas ao financiamento estável e suficiente para a saúde, à definição de níveis de autonomia e codependência entre as três esferas de governo. Essas resistências se embasam na cristalização de práticas profissionais, ao financiamento do conjunto das políticas e iniciativas de manutenção e organização da sociedade e, mesmo, à compreensão da diversidade de condições de vida dos diferentes grupos territoriais e sociais num país com as dimensões do Brasil, que se modifi-
“Precisamos avançar, já e rápido, na ampliação do acesso e na qualidade da atenção básica. Não é admissível que haja segmentos ainda excluídos do acesso”
cam e se complexificam a todo o instante. O aumento importante de postos de trabalho, de serviços, de acesso e de organização é visível e indiscutível. Também melhorou muito a qualidade da intervenção do sistema sobre a saúde da população, visível na redução de doenças evitáveis e o prolongamento da vida. Em parte pela intervenção do sistema de saúde, o perfil etário da população brasileira se ampliou nos últimos 25 anos, mais do que os países da Europa alcançaram em mais de 50 anos. Isso não resolveu todos os problemas de saúde e contribuiu para dar destaque a outros, como as doenças crônicas, que se destacaram ainda mais com o aumento da expectativa de vida e diminuição das doenças agudas, que ainda são um grande problema. Nosso padrão de desenvolvimento econômico e social também sofreu idas e vindas, sobrecarregando o sistema de saúde pelo aumento de doenças e agravos e pela restrição do financiamento. Como em todos os demais países, temos o crescimento das doenças crônicas, dos acidentes e violências, convivendo com problemas mais antigos, como a falta de acesso de determinados segmentos da população. Ainda temos alguns problemas, portanto, na organização do sistema de saúde, na formação dos profissionais e na cultura de saúde. Precisamos avançar já e rápido na ampliação do acesso e da qualidade da atenção básica. Não é admissível que existam segmentos da população ainda sem acesso ao sistema de saúde. Situação que se reproduz por regiões inteiras, como em Estados do Norte e Nordeste, em territórios de maior vulnerabilidade e dispersão populacional espalhados pelo país inteiro, nas periferias dos grandes municípios e regiões metropolitanas, por exemplo. Iniciativas governamentais de ampliação de serviços e distribuição de profissionais, como o Mais Médicos, ajudam muito. Mas é preciso avançar em soluções definitivas, como ampliar vagas no ensino superior, interiorizar a formação (já sabemos que a oferta de vagas em lugares distantes dos grandes centros tem capacidade de ampliar a fixação de profissionais nessas localidades, como também de ampliar a pesquisa e o desenvolvimento do sistema de saúde) e diversificar o acesso de segmentos da população ao ensino superior (já sabemos que os filhos da classe média, que têm muito mais facilidade de acesso ao ensino superior, levam para a formação e para a prática, seus interesses de classe; precisamos que os segmentos mais pobres, negros, índios, quilombolas, ciganos etc. cheguem, com seus interesses e suas características culturais, ao ensino superior e
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ao mundo do trabalho médico, de enfermagem, de fisioterapia, de psicologia etc.). Sobre os aspectos da cultura, vou me restringir a dois: a cultura de consumo de procedimentos e a baixa participação da população. Nossa política de saúde aposta na participação da sociedade para a adequada condução e desenvolvimento do sistema de saúde. Mas, muitas vezes, a participação é muito tênue, e, com alguma frequência, os gestores ignoram os conselhos de saúde. Ainda precisamos avançar na participação do usuário no momento do atendimento: ele não é apenas portador de sintomas de doenças, mas de práticas e saberes que precisam ser considerados no atendimento prestado pelos profissionais para organizar o cuidado. É possível fazer isso – valorizar a participação do usuário no momento do atendimento – em uma realidade na qual há filas enormes de pacientes esperando a vez para também ser atendidos? O sr. acredita que mudanças como essa seriam viáveis? Veja-se que aqui não é o problema da grande demanda o principal aspecto a ser considerado. Mesmo em serviços com uma pressão grande de atendimento, o que tem acontecido também no componente privado do sistema de saúde brasileiro, a clínica dos profissionais de saúde parece ter se empobrecido com a formação dependente de equipamentos e tecnologias sofisticadas, e a fala do usuário fica, regularmente, secundarizada. Há uma reforma da clínica necessária e urgente, como a que acontece com alguma frequência com os profissionais que atendem em unidades de saúde da família. A formação multiprofissional e voltada para a saúde das pessoas, como temos visto nos programas de especialização e residências de caráter multiprofissional e em saúde da família, além de algumas experiências inovadoras de cursos técnicos e de graduação, mostra que essas mudanças são possíveis e têm efeito grande nos níveis de saúde da população. Por fim, o sistema de saúde mais tecnológico tem ensinado a parcelas da população que a saúde é a capacidade de consumir procedimentos mais sofisticados. E a população, em resposta, tem formulado demandas de consumo de procedimentos caros, de baixa efetividade e de grande risco, muitas vezes inadequados. A clínica das profissões da saúde tem ficado empobrecida com isso. A formação de profissionais precisa mudar, para
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termos uma capacidade maior de cuidar das pessoas e de suas necessidades, restringindo o consumo de procedimentos e insumos desnecessários. Voltando aos aspectos organizativos, o papel dos municípios é fundamental para o SUS. É neles que a população vive e constrói sua saúde e, portanto, é neles, na atenção básica, que deve ser gerenciado o cuidado. Mas precisamos avançar muito na regionalização do sistema e das redes de cuidado, para ampliar a oferta e a qualidade da atenção. Já temos inúmeras experiências municipais e regionais de organização dessas redes e as atuais políticas nacionais têm priorizado o fortalecimento desse aspecto. O sr. acha possível discutir um novo modelo para o SUS já nas eleições presidenciais? A questão da saúde, prioridade para o cidadão, também deve ser prioritária na campanha? Pode-se aguardar alguma expectativa de mudança real, que permita ao sistema atender mais e melhor aos brasileiros? Não acho necessário buscar outros modelos neste momento. Precisamos é avançar na implementação do SUS, no sentido registrado na legislação e em todo o território nacional. Precisamos, nas eleições nacional e estaduais, que a saúde esteja no centro das propostas dos candidatos e que a população exerça seu papel e interrogue os candidatos. Não tenho dúvidas de que o debate da saúde estará no centro da agenda eleitoral nesse ano. Em 25 anos de sistema implementado, ainda há, como o sr. menciona, avanços que se fazem necessários para sua plena
adoção. Não seria razoável que, a esta altura, o sistema já funcionasse de forma mais ampla? É importante considerar que temos o maior sistema universal de saúde do mundo, que envolve 200 milhões de pessoas, e que a saúde é uma condição que se altera significativamente, à medida que se transformam as condições que interferem nos níveis de saúde. Um sistema de saúde precisa estar constantemente atento a novos desafios. Nos próximos anos, a sociedade brasileira precisa enfrentar decisivamente a questão do financiamento da saúde, que é deficitário. E construir formas de acompanhar a gestão dos sistemas locais de saúde, produzindo mais transparência e compromisso com as necessidades sociais. Isso não se faz apenas com reivindicação aos governantes. Faz-se também com iniciativas que ampliem a cultura de saúde das pessoas e a responsabilidade com que fazem suas escolhas nas eleições, por exemplo. O Mais Médicos fez com que as pessoas se posicionassem sobre esse e outros temas da saúde e a chegada de profissionais estrangeiros mostrou que a saúde pode mobilizar bastante a avaliação dos governos. É fundamental que a sociedade aproveite essa condição. Que os candidatos se comprometam com a implementação do SUS e com a defesa de dispositivos que fazem esse avanço. Na campanha que vem aí, espera-se que os candidatos digam se são contra ou a favor do Mais Médicos, da ampliação e qualificação da atenção básica, da organização de redes regionais, da ampliação de fontes de financiamento da saúde. O país tem necessidade de candidatos que reconheçam o conselho de saúde como instância de deliberação
“Em situações de crise, fica mais visível a capacidade dos sistemas de saúde de produzir desenvolvimento, mantendo a saúde da população e gerando emprego”
sobre as políticas. Ou seja, dos avanços que ainda travam a implementação do SUS. O sistema de saúde deve ser universal, inclusivo e buscar a equidade, atendendo a todos, priorizando aqueles que têm maior necessidade. Que comparação o sr. faria entre o SUS e modelos adotados por países com realidade semelhante à do Brasil? O SUS é um sistema universal, ou seja, que reconhece a saúde como direito de todos e busca responder a esse direito. As crises econômicas mundiais das últimas duas décadas produziram alguns recuos em países europeus e americanos, mas a direção da universalidade vem sendo mantida. Em outros países, os sistemas de saúde são segmentados, com ofertas definidas por padrões de renda e contribuição. O exemplo mais forte desse modelo são os Estados Unidos, cujo sistema é sabidamente ineficiente e ineficaz. Mas o equilíbrio dos setores vigentes da política naquele país tem impedido reformas. Enquanto isso, os indicadores da situação de saúde vão piorando e a saúde dos norte-americanos vai sendo preterida, mesmo com um dos maiores gastos percentuais no setor saúde entre os países acompanhados pelo organismo de cooperação internacional. Há uma tendência grande de reconhecimento da supremacia de sistemas universais, principalmente em situações de crise, onde a situação de saúde das pessoas costuma ser sobrecarregada. Também em situações de crise é que fica mais visível a capacidade dos sistemas de saúde de produzir desenvolvimento, de um lado mantendo a saúde da população, de outro gerando emprego, renda e circulação de riquezas entre um grande segmento da população. Se a política de saúde estiver articulada com outras políticas sociais, esse efeito é ainda maior.
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Ponto final
Felicidade sustentável Oded Grajew
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ó teremos um modelo de desenvolvimento sustentável se houver ampla reflexão sobre a felicidade e do que precisamos para ser felizes. A maioria dos cientistas e dos indicadores nos mostra que o atual modelo de desenvolvimento está esgotando os recursos naturais, aquecendo o planeta, dizimando a biodiversidade, derrubando nossas florestas, transformando terras férteis em desertos, poluindo o ar e as águas, aumentando a desigualdade, incentivando o desemprego e os empregos precários, fomentando a competição e a violência, solapando a democracia e a confiança nas instituições e nos governos e piorando a qualidade de vida, no campo e nas cidades. Foi vendida a ideia de que o caminho da felicidade passa pelo consumo, pela aquisição da roupa de grife, do carro do ano, do último modelo de celular ou do eletrodoméstico. É o consumo e o acúmulo de bens sem limites e nunca saciados que propulsionam esse modelo suicida de desenvolvimento. A Rede Nossa São Paulo desenvolveu o Irbem (Indicadores de Referência de Bem-Estar nos Municípios) para avaliar a qualidade de vida nas cidades. Para montar os indicadores, perguntou-se aos habitantes quais seriam os itens importantes para sua qualidade de vida. A maioria respondeu que a felicidade é ter uma boa, carinhosa e fraterna convivência com a família, os amigos e a comunidade; uma relação amorosa saudável; equilíbrio entre trabalho
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e vida pessoal; acesso à educação e transporte público de qualidade; proximidade da natureza; frequentar cinema, espetáculos, teatros e museus; hospital e posto de saúde perto de casa; melhor convivência com animais; vida espiritual rica; prática de atividades físicas; ações comunitárias e a chance de viver numa sociedade solidária e segura (veja a pesquisa completa em www.nossasaopaulo.org.br). É claro que condições materiais razoáveis de vida são importantes, e é fundamental que as políticas públicas objetivem proporcionar essa realidade para todos. Mas centrar a felicidade no consumo e no acúmulo de bens é insustentável. Ao olhar todos os apelos que hoje relacionam consumo à felicidade, é de se perguntar: como fizeram antigas gerações, antes de todas essas invenções, para ser felizes? Como fazem as pessoas sem carros ou sem últimos modelos para ser felizes? Por que muitas pessoas que têm todos esses bens são infelizes? Em vez de promovermos investimentos e empregos em atividades artísticas, culturais e educacionais que favoreçam a saúde e o bem-estar; apoiem idosos, pessoas com deficiência, crianças e populações menos favorecidas; priorizem o transporte público de qualidade; preservem a natureza e apostem na pesquisa médica e no desenvolvimento de energias sustentáveis, concentramos nossos esforços em produzir bens de consumo que rapidamente tornamos obsoletos para podermos, enfim, consumir suas novas versões. Só teremos um modelo de desenvolvimento sustentável que preserve o planeta, reduza a desigualdade e promova a paz, a solidariedade e a qualidade de vida das pessoas e das futuras gerações, se houver uma ampla reflexão pessoal e coletiva sobre a felicidade, sobre o que realmente precisamos para sermos felizes. E se essa reflexão pautar a vida das pessoas, empresas, instituições e governos.
Oded Grajew é coordenador-geral da Rede Nossa São Paulo, presidente emérito do Instituto Ethos e idealizador do Fórum Social Mundial.
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