7 REVISTA DO HOSPITAL DONA HELENA
CAMINHOS PARA A FELICIDADE
Desde a Antiguidade, o homem procura o bem viver. Na sociedade moderna, o desafio se torna ainda maior. Mas é possível encontrar a plenitude?
HDH CONQUISTA REACREDITAÇÃO 6 Corrida auxilia o cérebro 8 O SEGREDO DO MESENTÉRIO 18 Doença de Alzheimer envolve pacientes e familiares 20 POLÊMICA NO USO MEDICINAL DE MACONHA 26 Novos parâmetros para a educação sexual 30 DIÁLOGOS 36 Automedicação é problema sério no Brasil 44 VEM AÍ O CONGRESSO NACIONAL DE BIOÉTICA 48
Nesta edição Accredited by Joint Commission InternationalTM
Associação Beneficente Evangélica de Joinville/Hospital Dona Helena Rua Blumenau, 123 Centro – Joinville/SC CEP 89204-205 (47) 3451-3333 www.donahelena.com.br Revista CONECTHOS é um projeto do IDHEP – Instituto Dona Helena de Ensino e Pesquisa – Núcleo Editorial ISSN: 2358-8217 Circulação: maio de 2017 Coordenação geral: Carlos José Serapião Conselho editorial: Ana Ribas Diefenthaeler, Antonio Sérgio Ferreira Baptista, Gizele Leivas, Letícia Caroline Editores associados: Bruno Rodolfo Schlemper Jr., Christian Ribas, Maria José Varela, Fernando Hellmann, Nelma Baldin, Euler Westphal, Wladimir Kümmer, José Carlos Abellán (Espanha) Jornalista responsável: Guilherme Diefenthaeler (reg. prof. 6207/RS) Produção: Mercado de Comunicação Edição: Letícia Caroline e Guilherme Diefenthaeler Reportagem: Letícia Caroline, Karoline Lopes, Marcela Güther, Ana Ribas Diefenthaeler e Guilherme Diefenthaeler Diagramação: Fábio Abreu Fotografia: Peninha Machado e banco de imagens Impressão: Tipotil Indústria Gráfica Tiragem: 2 mil exemplares Redação: contato@mercadode comunicacao.com.br Apoio Associação Beneficente Evangélica de Joinville/Hospital Dona Helena Sociedade Brasileira de Bioética/ Regional Santa Catarina
Em sua sétima edição, a Revista Conecthos aborda uma série de assuntos que irão despertar importantes reflexões. Começando pela reportagem de capa, que foi buscar em filósofos e psicólogos a explicação para a felicidade e a busca constante do ser humano pela plenitude da vida. Para muitos, ser feliz é colocar o tênis e correr – outra pauta da presente edição. Estudos apontam que essa prática simples também pode alterar a estrutura do cérebro. Pesquisas científicas também identificaram um novo órgão: o mesentério. Entre os temas polêmicos, esta edição levanta a questão do uso medicinal da maconha e demonstra a luta das famílias pela liberação da substância para o tratamento de certas doenças. Também joga luzes na educação sexual, que, mais do que nunca, precisa de novos parâmetros para responder às necessidades da sociedade moderna. Desejamos uma ótima leitura.
8 Corrida: para além do exercício 12 A busca constante pela felicidade 18 Novo órgão classificado 20 Os desafios de se viver com Alzheimer 26 A maconha pode ajudar? 30 Por uma educação sexual transparente 36 Diálogos 44 Os malefícios da auto-medicação 48 Novidades da SBB/SC
Nossa palavra
O pós-moderno simbólico Carlos José Serapião
Coordenador do Instituto Dona Helena de Ensino e Pesquisa (IDHEP)
O
mundo está sendo atravessado por fenômenos de uma globalização também conhecida por mundialização, que permeia todas as cadeias da vida de cada um, da economia à religião, passando pelo domínio da ética e da cultura, do direito e da comunicação e muitas outras. No entanto, essa mundialização da economia e das finanças não leva em conta realidades muito mais complexas, quais sejam a social, a política e a cultural. Não se pode imaginar assumir o papel de simples observador que deseja estar neutro e que pensa “a vida está lá, eu estou aqui”. Não aceitamos essa ou aquela ideia. Vamos nos opondo ao progresso do fatalismo, mas nada fazemos contra um verdadeiro fundamentalismo moderno. Eis o exemplo de uma imaginária alienação intoxicante ou de uma resignação inaceitável.
Essa pós-modernidade simbólica se refere menos a um espaço geográfico do que a um mental, cultural e espiritual. Esse espaço mal definido, circunscrito para alguns, à civilização dita ocidental, acaba se difundindo para outras partes do mundo. Desse modo, a mundialização se apresenta como um espelho refletindo um fenômeno que acaba por alcançar todo o planeta. Nem os filósofos nem os cientistas e muito menos os políticos ousam propor uma interpretação pertinente, como uma mensagem de positividade e otimismo. Essa mundialização, portanto, faz o mundo parecer uma comunidade de destino incerto, o que nos faz coletivamente responsáveis. Um pai, mirando o horizonte no oceano: “Nada maravilhoso este início de século!” O filho a seu lado: “Não te inquietes papai, cheguei!” Os pensamentos e reflexões dos contribuintes desse número são desafiantes, criando oportunidades para a discussão de alguns dos mais variados assuntos surgidos neste par de décadas. Vamos acompanhá-los?
Divulgação
Institucional
Nova vitória na acreditação Ao longo do primeiro trimestre deste ano, o Hospital Dona Helena passou pela reacreditação e manteve o selo da Joint Commission International (JCI). Depois de três anos da conquista inédita, a instituição recebeu os consultores para uma nova avaliação, em março. Com o empenho de toda a equipe, foi possível permanecer no seleto grupo de instituições da área da saúde reconhecidas internacionalmente pelos requisitos de segurança e qualidade no atendimento ao paciente. A preparação para a reacreditação foi organizada pelo Comitê de Qualidade e Segurança (CQS). “Esse momento reflete a nossa busca contínua em oferecer um atendimento de excelência e com segurança para pacientes e familiares”, afirma Caio Tavares, coordenador do comitê, reforçando que o HDH se mantém comprometido com a ética e os padrões de qualidade semelhantes aos dos melhores centros hospitalares do mundo. Em parceria com o Consórcio Brasileiro de Acreditação (CBA), representante da JCI no Brasil, o hospital trabalha continuamente para consolidar as melhorias alcançadas. O CBA desenvolveu o Relatório de Avaliação de Manutenção, que fundamenta as ações para a reacreditação. A partir disso, o CQS realizou
um trabalho de classificação das prioridades de acordo com a chamada tabela GUT – que avalia as atividades de acordo com a gravidade, a urgência de resolução e a tendência de evolução. Para o coordenador do CQS, manter a certificação reafirma cada vez mais a posição do Dona Helena como um centro hospitalar de excelência, além de ampliar seus diferenciais de qualidade. “A reacreditação pela JCI é uma garantia de que os pacientes podem contar com assistência, segurança, controle de infecções, ambiente atendendo às legislações, canais de informações e atendimento com padrões de excelência reconhecidos nacional e internacionalmente”, sintetiza Caio Tavares.
Campanha estimula funcionários Um trabalho de comunicação interna marcou a campanha pela reacreditação do Hospital Dona Helena. Concebidos pelas equipes de Comunicação e Marketing e Administração de Enfermagem, bótons entregues aos funcionários representavam visualmente cada uma das metas a ser atingida. A ideia era de que todos utilizassem os broches e trocassem com os colegas, estimulando
a visualização e compreensão das metas da JCI. Além dos bótons, a ação de endomarketing montou lousas utilizadas para verificação dos sinais vitais e ainda pranchetas, ambas com as metas internacionais descritas.
União
Todas as equipes juntaram forças para estimular o aprendizado e buscar a reacreditação
Espaços contribuem para humanização e segurança Um projeto multidisciplinar promoveu alterações na estrutura do Centro Hospitalar. As mudanças visam à segurança e ao conforto de pacientes e funcionários, focando na humanização do espaço. Na recepção central, a entrada e a saída de pacientes e visitantes será feita pela mesma porta. Ao lado, foi construída uma rampa para embarque e desembarque. De acordo com Andréa Jankowski, coordenadora de atendimento, a ideia é garantir segurança aos pacientes e visitantes, além de um espaço mais confortável. No subsolo, a morgue foi ampliada, tornando-se um local mais aconchegante para as famílias. Os carros funerários entrarão na área de embarque e desembarque, com acesso privativo. A família será acolhida pela recepção da internação, não tendo que sair das dependências da instituição. “A melhoria do ambiente e a ampliação da morgue possibilitam um acolhimento mais adequado aos familiares, preservando a privacidade em um momento tão difícil de sua estada no HDH”, justifica Maria
José Varela, coordenadora do Programa de Humanização, explicando que o ambiente foi concebido para receber pessoas enlutadas, mantendo o cuidado espiritual com o antigo vitral e demais itens que expressam as mensagens de fé e esperança integradas à missão do hospital. “São vários projetos que não podiam ser executados em separado. Por isso, foram ideias criadas a muitas mãos”, justifica Thiago Henning, coordenador de edificações. Osmarina Borgmann, gerente de risco, destaca que, a partir de agora, o HDH terá fluxos democráticos seguindo as normas de acessibilidade para todos. “Teremos mais agilidade e segurança nos percursos, além de segurança para paciente e funcionários”, ressalta.
Bem-estar
Prática de corrida pode alterar funções do cérebro
“
Para mim, a corrida representa uma paixão: teve o poder de mudar a minha vida de um jeito tão surpreendente que nem me imagino ficar sem correr. A corrida me traz uma paz tão grande que todos meus problemas somem a partir do primeiro passo que dou. Representa liberdade, felicidade, superação, desafios, amizades, disciplina e um aprendizado constante.” É o relato de Felipe Ristow, que, depois de alcançar 140 quilos, foi surpreendido negativamente com exames de saúde e encontrou na prática da corrida um meio para perder nada menos que 60 quilos, melhorar a autoestima, a motivação e a vontade de viver. No levantamento mais recente, realizado em 2009, calculase que 4 milhões de brasileiros são adeptos da corrida. Entre as explicações para tamanha procura estão a simplicidade para realizar o exercício, a exigência de pouco material e a possibilidade de correr em qualquer lugar, a qualquer hora. No time dos corredores, a máxima de que o esporte vicia é constante, mas, muito mais do que isso, cientistas apontam que a corrida pode mesmo trazer alterações positivas para o cérebro. O médico Drauzio Varella, reconhecido no Brasil, escreveu o livro “Correr, o exercício, a cidade e o desafio da maratona” contando sua própria vivência nesse campo. Ele afirma que o ganho mais surpreendente veio no aspecto psicológico. “A sensação de paz que se instalava no fim das corridas deixava rastros pelo resto do dia. Já no banho da manhã, quando eu pensava nos compromissos que me aguardavam, tinha certeza de que seria capaz de cumpri-los. Consegui controlar melhor a ansiedade e a agitação da vida atribulada que sempre levei, tornei-me mais confiante e disciplinado. Ganhei serenidade”,
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escreve o médico. Depois de três décadas de pesquisa na área de neurociência, cientistas identificaram uma relação intensa entre a realização de exercícios aeróbicos e a sensação de se ter renovado. Antigamente, estudiosos entendiam que o cérebro só produzia neurônios até a vida adulta.
Felipe (foto ao lado) adotou a corrida para perder peso e aumentar a autoestima. Rodrigo e Ivan (abaixo) fizeram da paixão do esporte a profissão
Experimentos com ratos apontaram que os neurônios continuam a ser produzidos durante toda a vida. Uma atividade que já comprovou o poder de estimular esse desenvolvimento é o exercício aeróbico. O neurologista Fábio Porto pesquisou o impacto da caminhada na estimulação da memória. Sua tese de doutorado deve ser apresentada ainda neste ano, na Universidade de São Paulo (USP). Analisando 65 pacientes com comprometimento
cognitivo leve, submetidos a caminhadas regulares duas vezes por semana, o médico chegou à conclusão de que a prática estimula uma porção fundamental da memória, chamada precuneus. “Os participantes da pesquisa melhoraram o metabolismo e a memória, quando submetidos novamente aos testes”, relata. O médico explica que o exercício físico melhora o funcionamento das redes cerebrais, importantes para a cognição, emoção, humor, tensão, ânimo e memória. “Os exercícios aeróbicos, principalmente, aumentam a frequência cardíaca, trazendo benefícios diversos à saúde”, ressalta. Foi o que ocorreu com Felipe Ristow. Depois de um check-up, ele percebeu que os prejuízos do aumento de peso não se revelavam apenas na aparência, mas também na saúde interna, que estava extremamente debilitada. A partir daí, começou uma série de pesquisas e se propôs a atingir duas metas: emagrecer 60 quilos e correr uma maratona – tudo no período de dois anos. Em 30 dias, já corria de 10 a 15 minutos sem parar e havia emagrecido oito quilos. Além da prática de exercício físico, Felipe mudou todo seu estilo de vida, adaptando a alimentação e cuidando melhor da saúde. Depois de 23 meses de projeto, havia emagrecido os 60 quilos desejados e participado de uma ul-
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tramaratona, correndo 50 quilômetros. “A alegria que o exercício me traz é tão grande que, durante o processo, desafieime mais ainda e mudei a meta de maratona para ultramaratona, uma distância maior”, conta. Felipe contou com o auxílio de nutricionista e de um grupo de corrida, que lhe repassaram orientações especializadas. Entre os principais benefícios da prática da corrida, ele cita a retomada da saúde. “Meu coração é mais saudável do que o de muitos jovens de 15 anos. Parei de gastar dinheiro com remédios, fiz novas amizades e me tornei uma pessoa muito mais feliz”, explica. Rodrigo Acioli, presidente da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (Abrapesp), explica que os exercícios, quando praticados com regularidade e acompanhamento adequado, aumentam as probabilidades de amplas melhorias, como alteração das funções de órgãos e sistemas do corpo, fortalecimento muscular e mudanças no humor. “Hoje, buscamos mais bem-estar e qualidade de vida. Isso explica o interesse maior pela corrida. É uma atividade simples que pode ser praticada em qualquer lugar”, justifica.
Uma mudança total nos hábitos A jornalista Carolina Spricigo sempre adorou corrida, mas demorou a aderir à prática, o que só ocorreu aos 28 anos. “O mais importante que o exercício trouxe para a minha vida foi a saúde, acompanhada de uma vontade imensa de me alimentar e viver bem, dormir cedo, seguir
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Cientistas apontam que exercício aeróbico altera funções cerebrais
rotinas de treino e ser realmente saudável, de corpo e alma”, afirma. As alterações no humor foram visíveis não apenas para ela, mas para as pessoas com quem convive. “Fiquei mais disposta, satisfeita e feliz. Deixei de ser reclamona. A corrida é meu psicólogo. Sempre tenho certeza de que voltarei do treino melhor do que fui”, confessa. Hoje, já são seis provas no currículo, em Santa Catarina, no Paraná e em São Paulo. Entre as mais marcantes, destaca a primeira, realizada em Joinville, na qual correu cinco quilômetros. A primeira vez em que correu 10 quilômetros também tem lugar especial na lembrança. Já a tão sonhada São Silvestre, em 2016, ficou registrada negativamente, segundo Caro-
“Hoje, buscamos mais qualidade de vida. Isso explica o interesse maior pela corrida” Rodrigo Acioli, presidente da Abrapesp
res, que têm sido atenciosos e carinhosos comigo”, agradece. “Certamente, carrego mais um corredor ou corredora em meu ventre.”
Da prática para a profissão Ivan Razeira encontrou no esporte sua profissão. Hoje, ele administra uma assessoria de corrida que opera em Joinville e Balneário Camboriú, contando com um total de 200 clientes. “Um treino de corrida sempre lhe deixa mais calmo, sereno, relaxado e paciente. A longo prazo, isso passa a fazer parte do comportamento”, alega. Entre os clientes, Ivan percebe constantemente mudanças nos marcadores de saúde, que passam a melhorar com a prática da corrida, além da diminuição de remédios na rotina dos praticantes. “Do ponto de vista psicológico, a autoestima aumenta muito, principalmente depois que eles começam a participar de provas e ver que podem se superar a cada dia”, conta.
lina, pela falta de organização e estrutura para os atletas. “Posso estar cansada, estressada, com preguiça, mas a corrida sempre vai me deixar melhor. É o esporte que escolhi para mim”, afirma. Carolina conta com profissionais especializados, como médicos e fisioterapeutas. Recentemente, descobriu que está grávida e teve que adaptar os treinos, por causa da placenta baixa. “Participo das provas caminhando e conto com o apoio dos organizado-
Para Carolina, corrida funciona “como um psicólogo”
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Essência
É possível ser feliz no mundo moderno? A felicidade... ... é como a pluma Que o vento vai levando pelo ar Voa tão leve Mas tem a vida breve Precisa que haja vento sem parar (VINÍCIUS DE MORAES)
A
eterna busca da felicidade, como elemento mais marcante do que se poderia chamar de essência humana, mobiliza as pessoas, vida afora. Quem não quer ser feliz? A premissa está presente tanto na vida real quanto no roteiro de novelas, de filmes, nos clássicos romances da humanidade. A felicidade está por toda a parte, como um dos maiores bens intangíveis do imaginário humano. Filósofos se perguntaram e ainda se perguntam: o que faz o ser humano feliz? Por outro lado, é possível pensar que o estado de harmonia com o exterior também tem seu caráter pessoal, uma vez que, para cada um, a felicidade significa de uma manei-
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ra diferente. “Creio que, no termo felicidade, resumimos o que tem sido o maior objetivo que perseguimos em nossas trajetórias de vida, desde os primórdios da humanidade, trajetórias que sempre foram marcadas pela mais ampla gama de realizações, confirmando, assim, a origem da palavra, do grego ‘phyo’, que significa produzir, com a conotação de fecundo”, reflete Carlos Albuquerque, psicólogo clínico, com especializações em terapia familiar e de casal, dependência química, comunidade terapêutica e assessoria familiar. “Acredito, como os gregos, que a consubstanciação do termo se verifica a tudo que realizamos de maneira fecunda, fértil e promissora da nossa existência.” O profissional, que há 22 anos atua no auxílio a jovens, famílias e comunidades conflitadas em suas caminhadas atrás da felicidade, não tem dúvidas de que esse é um conceito que precisa ser pensado no coletivo. Psicólogo de base sistêmica, Carlos crê no que diz o poeta, embora em outro universo: “É impossível ser feliz sozinho”. Isso porque, para ele, toda a humanidade integra um único organismo que, ao sofrer interferências, em qualquer de suas infinitas partes, também é sujeito da ação
dessas mudanças. Carlos enfatiza o aspecto social e coletivo porque, para ele, ao longo da vida, as pessoas recebem, copiam, acatam, reagem, transformam e acrescentam uma enorme diversidade de padrões, percepções, sentimentos e crenças que vão edificando comportamentos que, articulados de forma consciente ou não, contribuem com nossas produções pessoais e coletivas de tudo que possa ser representado por felicidade. Formado em filosofia e mestre em patrimônio cultural e sociedade, o professor Volmir Fontana observa que, apesar de o conceito de felicidade ser o mesmo desde os tempos de Sócrates, Platão e Aristóteles – “o bem maior que o ser humano busca alcançar” –, o que muda e, espera-se, evolui, são as diferentes trilhas para chegar lá. “Isso pode ser observado no decorrer dos principais períodos da história da humanidade. Por exemplo, na Antiguidade, a ênfase dessa busca estava na razão. Na Idade Média, em Deus, e na Idade Moderna, o foco já é o mundo do esclarecimento e da ciência.” E é então que o calendário nos traz ao complexo mundo de hoje. Seria, a felicidade contemporânea, alicerçada em uma
“Na plenitude da felicidade, cada dia é uma vida inteira” Johann Wolfgang Goethe
maior aproximação ao mundo do esclarecimento e da ciência, mas também da riqueza material, da ciência, do útil? “É certo que o prazer é uma questão que permeia o mundo atual. Segundo Bauman, a ênfase no prazer é identificada na busca intensa do bem-estar da pós-modernidade. Entretanto, o que provoca uma maior reflexão não é o fato de atribuirmos a busca do prazer à vontade do ser humano. Quem de nós é capaz de rejeitar radicalmente os prazeres? O filósofo Aristóteles, já no século 4 antes de Cristo, defendeu que o prazer é indispensável para a construção da grandiosidade humana – sem ele, seríamos pouco motivados no processo de construção da felicidade. Epicuro, pensador grego igualmente do século 4 a.C, enfatizou o prazer, ainda que tenha observado a necessidade de que fosse controlado pelo uso da razão”, explica o professor Fontana. Sociólogo polonês e um dos mais prestigiados pensadores da atualidade, morto em janeiro deste ano, Zygmunt Bauman vale-se da frase de Goethe para refletir sobre felicidade, no contexto que ele próprio cunhou como “sociedade líquida”. Em uma de suas últimas entrevistas, em 2015, ao filósofo curitiba-
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Zygmunt Bauman, o famoso filósofo, cunhou o termo “sociedade líquida”
no Léo Peruzzo Junior, professor da PUC do Paraná, Bauman diz que a felicidade não está em uma vida sem problemas, mas na capacidade de o ser humano confrontar, encarar e responder aos desafios da vida. E esse desejo de felicidade, no sentido de superar as dores e sofrimentos de problemas não resolvidos, é um pressuposto da condição humana. No artigo publicado pela revista Diálogo Educacional, daquela universidade, o sociólogo critica, mais uma vez, o que chama de “receita de felicidade” do mundo de hoje, forjada na esfera da indústria consumista. É um modelo que oferece uma espécie de atalho para a “felicidade instantânea”, que pode ser comprada nas prateleiras das lojas. “O tipo de felicidade promovida e propagandeada em nossa sociedade de consumidores é a compra. Seja qual for a marca das mercadorias que anunciam e vendem, as lojas assumem o status de farmácias, fornecendo medicação para toda e qualquer adversidade da vida. Encarar os desafios da vida é complicado, exige muita energia, boa vontade, habilidade e esforço? Não se preocupe – sugere tacitamente cada comercial –, encontre a loja certa com os produtos certos e eles farão isso por você; eles não vão apenas remover o problema que te assombra e atormenta como também o trabalho duro que resolvê-los de outra forma demandaria”, filosofa Bauman. O sociólogo polonês assinala que, além de absolutamente equivocados, os novos conceitos e receitas de felicidade são também potencialmente nocivos e perigosos para o ser humano, em sua verdadeira busca de uma vida feliz, como o são, também, para a sustentabilidade do planeta, “o lar que compartilhamos”.
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O mundo líquido, quase fluido – “nada é para durar” – a que se refere o sociólogo, desenha pessoas a cada dia mais individualistas. A marca desagradável da sociedade moderna é forte: o eterno conflito entre o ser e o ter. “O homem passa a se expressar pelas suas posses, elementos definidores de sua própria identidade, o que se reflete na busca por certa conformidade que ceifa a pluralidade de existências e segrega o que é diferente, estranho”, analisa Anna Carolina Cunha Pinto, em artigo na revista Prosa, Verso e Arte, na qual escreve habitualmente sobre as questões sociológicas e filosóficas contemporâneas. Avaliando o que diz Bauman, sobre a enorme dificuldade do homem moderno em amar o próximo, a advogada e escritora exemplifica o tema com o próprio modo como as cidades se dividem. “Os nichos considerados seguros são aqueles onde todos se parecem”, constata, ao acrescentar que as pessoas evitam, a todo custo, o incômodo de estar na presença de estranhos. O desengajamento e a ruptura dos laços da sociedade líquida que retrata Bauman produz pessoas que não apenas evitam interagir com quem não conhecem mas também que passam a enxergar no outro um inimigo em potencial, desconfiando de tudo e de todos. Como amar o próximo, a humanidade, o nosso semelhante, se tudo ao nosso redor nos incomoda e amedronta? “A busca pela felicidade individual nos transforma em tribunais individuais e, na disputa pela sentença a ser proferida, não raro, o que se vê é sair vencedor aquele que se recusa a ouvir o outro”, reflete Anna, apontando na solidão uma das mais significativas consequências desse moderno jeito de amar – ou não amar.
“Felicidade é uma vibração intensa. É a capacidade de ser inundado por uma alegria imensa ” Mário Sérgio Cortella, filósofo
Carlos, no alto, e Volmir, na foto acima, acreditam na felicidade compartilhada
Felicidade é ebulição Filósofo e um dos mais requisitados palestrantes brasileiros, Mário Sérgio Cortella não crê que as pessoas possam ser felizes sozinhas. Tampouco acredita que felicidade seja algo perene – se fosse, jamais seria percebida, já que identificamos o estado de felicidade porque existe o estado de carência. “Felicidade é uma
vibração intensa. Um momento em que eu sinto a vida em plenitude dentro de mim e quero que aquilo se eternize. Felicidade é a capacidade de você ser inundado por uma alegria imensa por aquele instante, por aquela situação.” Para Cortella, ser feliz sozinho pressupõe uma situação anterior – se é possível viver sozinho. Não é. Viver é viver com outros e outras. O filósofo aponta, como exemplo, Robinson Crusoé, que lida com o homem que está só. “Mas ele está só depois de ter vivido com outros. Ele traz as outras pessoas na sua memória, na sua história, no seu desejo, no seu horizonte. Não há história de ser humano em que tenha sido sozinho, da geração até o término. Se assim não há, não há possibilidade de ser feliz sozinho.” Cortella assina, com outros dois filósofos, Frei Betto e Leonardo Boff, o livro “Felicidade foi-se embora”, lançado no ano passado, e que reúne textos preciosos sobre o tema. Se felicidade é, como defende Leonardo Boff, viver em harmonia com a Terra e todos seus habitantes e recursos naturais, ou um estado de espírito diretamente relacionado à conquista de alguma coisa, ninguém ainda se atreveu a defini-la como uma conquista muito duradoura. “Aliás, felicidade não é um estado contínuo. Felicidade é uma ocorrência eventual. A felicidade é sempre episódica”, afirma Mário Sérgio Cortella.
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“Amar os outros está mais fácil, mais próximo, mas ao mesmo tempo mais distante” Léo Peruzzo, doutor em filosofia
Mais próximos, mais distantes e impessoais
Doutor em filosofia, o professor curitibano Léo Peruzzo Junior falou com exclusividade à Revista Conecthos sobre Zygmunt Bauman e os relacionamentos neste mundo em que identifica o apogeu da política neoliberal, tão propalada nos séculos 19 e 20. Considerando os “amores líquidos” de que nos fala Bauman, como o sr. vê os relacionamentos interpessoais? Está mesmo mais difícil, hoje em dia, amar o outro – já que, para Bauman, nos tornamos a cada dia mais ensimesmados e voltados a nossos próprios interesses? Amar os outros está mais fácil! Porém, há um antagonismo muito grande na afirmação anterior: amar os outros está mais próximo e mais distante. Num primeiro momento, a virtualização das relações humanas nos aproxi-
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ma cada vez mais; já num segundo momento, esquecemos que as relações interpessoais devem ser, de fato, “pessoais”. Diferentemente das gerações anteriores, os laços humanos ganham novas características, entre as quais está a superficialidade. É difícil avaliar o impacto moral, social e biológico da forma como nós, seres humanos, estamos nos comportando no universo da virtualização das relações. Mas, sem sombra de dúvida, o espaço afetivo da convivência está sendo substituído por ferramentas como “curtir”, “descurtir”, “excluir”, “adicionar”, “solicitar amizade”, “denunciar”. Concordando com os últimos escritos de Bauman, parece se tornar cada vez mais claro que vivemos, de fato, a “Era do Interregno”: caminhamos, mas não sabemos para onde vamos. Há uma boa saída para superar essas dificuldades de relacionamento, centradas nas questões político-estruturais do modelo neoliberal que domina as maiores economias do mundo e que nos introduz em uma sociedade com cada vez mais consumo e menos valores? O acesso à informação é a terceira grande revolução mundial. O sistema neoliberal, pregado ao longo dos séculos 19 e 20, parece que finalmente alcança seu apogeu no vértice do crescimento econômico. E essa concepção carrega dentro de si expectativas sobre o futuro, agregando a economia com a dinâmica da realização pessoal. Cursos universitários são propagados como ideais de sucesso e carreiras universitárias como condições sine qua non para obtenção de uma vida próspera e feliz. Tudo isso, e muito mais, cria o efeito de que não estamos submetidos ao tempo, à existência ou à nossa própria vida. Vendem-nos o sonho de uma realidade eterna e duradoura. “Obrigamnos” a viver uma mentira institucionalizada. Esquecemos de nossa finitude ou mesmo da elaboração de um projeto de vida. Se os grandes filósofos e pensadores da humanidade se preocuparam em, ao menos, tentar entender a vida e seus meandros, hoje em dia, o viver significa, para boa parte das pessoas, apenas consumir, ser um número na multidão? O conhecimento vive a fase da “navegação”. “Navegar” nada mais é do que permanecer na superfície; é isso que fazemos o tempo todo. E, associado ao navegar, o tempo deixa de ser uma variável absoluta e passa a ter “cada vez mais velocidade”. Suportar a lentidão do tempo tem se tornado um desafio. Não suportamos aguardar um e-mail, uma mensagem, ler um livro por completo. Não suportamos aguentar a semana para que logo se inicie um final de semana. Não suportamos a infância, a juventude. Não suportamos o trabalho, queremos logo viver na previdência. Não suportamos o ano, precisamos das férias. Não precisamos dos outros, apenas de nós mesmos. Essa mudança na mentalidade e no
comportamento humano tem nos tornado reféns de nós. Os teóricos da Escola de Frankfurt, por exemplo, Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin, Hebert Marcuse, entre outros, já denunciaram, em meados da década de 1930, que o processo de tecnificação e industrialização submete e destitui o mundo da vida, da cultura. Em outras palavras, a razão instrumental torna-se um poder de dominação da razão comunicativa. A razão da nossa existência passa a ser controlada por um “eu” impessoal e abstrato que confere legitimidade para nosso comportamento. Em que ponto o sr. entende que essa realidade se encontra com a falta de solidariedade, com o não enxergar o outro, com a intolerância em suas várias facetas? Por quê, enfim, andamos tão intolerantes e beligerantes? Há quem acredite que a intolerância, a agressividade e a violência são produtos biológicos da espécie humana. Todavia, isso não significa que a liberdade não possa subordiná-los para o desenvolvimento de uma sociedade que permita a convivência pacífica. Os discursos políticos de extrema esquerda e extrema direita podem ser exemplos para compreendermos que a intolerância está cada vez mais hegemônica entre as relações sociais. A alteridade, o reconhecimento pelo outro, passa a ser vista como uma obrigação, e não como uma esfera de reconhecer-se a si mesmo. Competimos com os outros porque não suportamos a nós mesmos. E,
“O conhecimento vive a fase da navegação” Léo Peruzzo, doutor em filosofia
quando não os alcançamos e os ultrapassamos, desenvolvemos uma série de psicoses para justificar nosso fracasso, entre as quais está acreditar que esse outro é culpado por nosso fracasso. A corrupção política, por exemplo, nada mais é do que a expressão estrutural de uma sociedade caótica. A política e a ética não são uma coisa apenas, como afirmava Aristóteles. Dissociamos as regras privadas das regras públicas, acreditando que mesmo roubando o erário público nossa esfera pessoal continuará incorruptível. A decência moral cedeu espaço para discursos demagogos. Não andamos intolerantes e beligerantes. Na verdade, talvez nunca tenhamos sido outra coisa. Apenas acreditávamos que éramos algo que agora já não somos mais. E as máscaras criadas pela cultura construíram essa falsa impressão. Considerando este mundo que nos cerca, como o sr. acha que poderemos construir, em nós mesmos, pessoas melhores? Bauman sempre foi um otimista em seus escritos. O diagnóstico que ele realizou ao longo de mais de meio século foi mostrar que mesmo na liquidez é possível “criar” um caminho para escolher para onde vamos. A força das novas gerações, uma democracia inclusiva e participativa, a percepção da própria consciência são sinais claros de que ainda é possível ser otimista, assim como Bauman foi. Não devemos esperar que a mudança da sociedade seja um ato rápido e fácil. Mas não podemos esquecer que a “liquidez” nos dá maiores possibilidades para almejar um novo começo a cada instante. O que precisamos discutir, urgentemente, é a criação de verdadeiros espaços públicos para a democratização do saber e o pleno exercício do poder político individual. A escolha sobre o próprio destino não pode se subordinar ao fracasso das tentativas.
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Mesentério é a membrana que une os órgãos do aparelho digestivo
Novidade
Novo órgão para explorar
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corpo humano tem 79 órgãos, e não mais 78, como se acreditava até então. Estudo divulgado recentemente, que durou seis anos, reclassificou o mesentério, antes considerado apenas um ligamento do aparelho digestivo, como órgão. O estudo foi divulgado no artigo “The Mesentery: Structure, Function and Role in Disease”, assinado por John Calvin Coffey – líder da equipe que realizou a descoberta e pesquisador do University Hospital Limerick, na Irlanda – e por seu colega Peter O’Leary, na revista científica The Lancet Gastroenterology & Hepatology, uma das mais respeitadas do meio acadêmico. A primeira menção ao mesentério publicamente conhecida foi feita por Leonardo da Vinci em um de seus escritos sobre a anatomia humana no início do século 16. Ele retratou o mesentério de uma forma única, com uma convergência central. No século 17, o anatomista austríaco Carl Toldt chegou perto de identificar corretamente, fazendo descrições anatômicas mais precisas, mas, segundo o artigo, falhou em divulgá-lo para a comunidade científica. Depois disso, difundiu-se a ideia de que o
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tecido do mesentério seria algo difuso, espalhado e até mesmo não obrigatório – o cirurgião inglês Frederick Treves foi o responsável por tal compreensão. Em 2012, a equipe de Coffey mostrou os resultados da pesquisa com microscópio que já sugeriam que o mesentério tinha uma estrutura contínua, característica básica para que fosse considerado um órgão. Desde então, os pesquisadores se dedicaram a coletar provas para embasar a reclassificação, o que culminou na publicação e formalização do estudo. O mesentério é uma dobra dupla do peritônio – como se chama a membrana serosa que reveste a cavidade abdominal – que une o intestino com a parede do abdômen e permite que ele se mantenha no lugar. Os órgãos intraperitoneais (estômago, jejuno, íleo, cólon transverso, fígado e baço) são suspensos e ficam posicionados dentro do abdômen por faixas espessas de peritônio, os ligamentos abdominais – são nove ligamentos e dois mesentérios, o mesocólon transverso e o mesentério do intestino delgado. O peritônio é composto de uma camada de mesotélio, sustentada por uma fina camada de tecido conectivo. O forro peritoneal da cavidade sustenta vários órgãos abdominais e serve como uma via para os vasos sanguíneos, linfáticos e nervos. “O mesentério faz parte do peritônio, sendo formado por tecido conjuntivo denso, vasos sanguíneos, nervos e vasos e gânglios linfáticos. Podemos defini-lo como um conjunto contínuo de tecidos, que é formado por uma dobra dupla de peritônio, unindo os intestinos à parede posterior do abdômen. O termo ‘mesentério’ é utilizado para o intestino delgado; e o termo ‘órgão mesentérico’ é usado algumas vezes em referência ao resto do
“Com os estudos, será possível identificar anomalias e doenças, além de aprimorar os tratamentos” Paulo Mafra, gastroenterologista mesentério, que inclui o mesocólon (partes do intestino grosso), meso-apêndice (apêndice vermiforme), mesossigmoide (cólon sigmoide) e mesorreto (reto)”, detalha Paulo Mafra, coordenador do Serviço de Endoscopia e Gastroenterologia do Hospital Dona Helena. De acordo com Mafra, o mesentério, classicamente, tem duas funções principais: fornecer sustentação a vários órgãos e servir como um canal de ligação com outros sistemas do corpo. “Como sustentáculo, mantém os órgãos internos em seus lugares e diminui o atrito entre eles, porém com mobilidade, permitindo que o corpo se movimente livremente, sem dano para os seus órgãos internos abdominais. O mesentério serve, ainda, como uma via de mão-dupla: os vasos sanguíneos, linfáticos e nervos alcançam os órgãos; e na contramão, os nutrientes, absorvidos pelo intestino delgado, passam pelo mesentério para chegar ao restante do corpo”, detalha. O ensino convencional descrevia o mesocólon como uma estrutura fragmentada, descontínua, com to-
Estudo que classificou novo órgão durou seis anos
das as suas partes nominadas – os mesocólons do ascendente, transverso, descendente e sigmoide; meso-apêndice e mesorreto, terminando suas inserções na parede abdominal posterior. “Nos últimos anos, notadamente a partir de 2012, após estudos detalhados de histologia, com microscopia convencional e eletrônica, o mesocólon se mostrou uma estrutura única, contínua, que começa na flexura duodenojejunal e se estende ao nível do mesorreto distal”, explica o especialista. “Sua forma correta era desconhecida. Achávamos que existiam vários mesentérios, o que fazia seu entendimento muito difícil. Agora, por causa do seu conhecimento anatômico, sabemos que é uma estrutura contínua e que todos esses ‘mesentérios’ são unidos e ocupam uma área enorme”, explicou Coffey em entrevista ao Metrópole. O pesquisador irlandês ainda justifica a designação do mesentério como um órgão baseado em características funcionais e anatômicas distintivas. “Não há uma definição standard das características mínimas para definirmos um órgão humano, sendo aceita na biologia a definição de ‘grupo de tecidos que formam uma função específica ou grupo de funções’. No trabalho citado, os autores estabeleceram padrões anatômicos e estruturais do mesentério, restando o desafio de estudos aprofundados do novo órgão, tentando elucidar suas funções”, aponta Mafra. Com o aprofundamento dos estudos, será possível identificar anomalias e doenças abdominais e digestivas, além de aprimorar os tratamentos atuais, abrindo caminhos para novos métodos cirúrgicos do aparelho digestivo, menos invasivos, com menos complicações ou com melhor taxa de recuperação do paciente. Até então, pelo que se conhece, as doenças do mesentério (mesenteropatias) podem ser primárias – vólvulos, não-rotação, trombose da artéria mesentérica superior, mesenterite esclerosante, cistos mesentéricos – ou secundárias, de fontes extrínsecas, por contiguidade ou disseminação sistêmica de uma doença – malignidade intestinal, doença de Crohn, obesidade, diabetes mellitus, aterosclerose e síndrome metabólica. Outras doenças, até então atribuídas apenas ao intestino, começam a despertar nos médicos a desconfiança de que, na verdade, partam do mesentério, em vez de apenas afetá-lo. As funções endócrinas do novo órgão praticamente não foram exploradas. Também existe a expectativa de novas terapias para doenças que não têm muitas possibilidades de tratamento, como diabetes, dislipidemias (gorduras ou colesterol elevado no sangue) e obesidade.
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Memória
Como o Alzheimer impacta pacientes e familiares
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egundo a Associação Brasileira de Alzheimer (Abraz), existem 35,6 milhões de pessoas com a doença no mundo. No Brasil, são 1,2 milhão de casos de demência, incluindo Alzheimer, a maior parte sem diagnóstico. “É uma doença neurodegenerativa, com marcante prejuízo da memória, mas que pode envolver também outras funções cerebrais, como atenção, linguagem, orientação temporal e espacial, planejamento e julgamento crítico”, explica Felipe Ibiapina dos Reis, neurologista do Hospital Dona Helena. Ele aponta que, após os 65 anos, o risco de desenvolver a doença dobra a cada cinco anos: “A idade é o principal fator de risco para o desenvolvimento de demência. Embora não se caracterize como doença hereditária – apenas 10% dos casos o são –, o histórico familiar aumenta a chance do surgimento”. Também são considerados fatores de risco baixa atividade intelectual, baixa escolaridade, hipertensão, diabetes, obesidade, tabagismo e sedentarismo. O passado, as lembranças e as memórias são importantes para todos. Mas como seguir em frente quando não há mais nada atrás? Palavras, apagões de consciência e lapsos temporais são alguns sinais do estágio inicial do Alzheimer. Foi assim que o pai da aposentada Lucienne da Costa decidiu procurar ajuda médica. O diagnóstico foi feito em 2009. “Ele mesmo percebeu que estava bastante esquecido e marcou a consulta. Hoje, com 81 anos, a doença já progrediu. Ele tem muita falta de equilíbrio e confusão mental, não reconhece as pessoas”, conta. A principal característica do Alzheimer é a perda da me-
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mória – principalmente a memória de curto prazo, sobre fatos recentes. O neurologista Felipe aconselha familiares que convivem com idosos a ficarem atentos aos sinais: “Perda frequente de objetos pessoais, esquecimento de datas e compromissos importantes, fazer as mesmas perguntas várias vezes, dificuldade para realizar atividades antes corriqueiras como cozinhar e arrumar a casa são queixas frequentes entre os pacientes”. É muito comum que os sintomas iniciais sejam confundidos com o processo de envelhecimento normal. Essa confusão tende a adiar a busca por orientação profissional. Recomenda-se que, diante dos primeiros sinais, as famílias procurem profissionais especializados para o diagnóstico precoce. “O idoso deverá ser avaliado por um neurologista que solicitará alguns exames, como exame de sangue, de imagem e de liquor, em casos específicos, para poder descartar outras doenças que também afetam a memória”, observa o médico. Em 2014, o filme “Para Sempre Alice” chamou a atenção por retratar a história de uma mulher diagnosticada precocemente com a doença. O roteiro é baseado em um livro, publicado em 2007, da escritora Lisa Genova, que também é ph.D em neurociência pela Universidade de Harvard. Durante a narrativa, o espectador acompanha Alice (protagonizada pela atriz Julianne Moore), uma mulher na faixa dos 50 anos, professora de psicologia cognitiva, bem-sucedida, casada e mãe de três filhos. Apesar de ter uma vida considerada perfeita, ela começa a notar que suas lembranças estão se esvaindo. A princípio, não sabe onde deixou as chaves do carro, perde alguns compromissos e es-
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quece alguns nomes. Ao se perder na rua e não ter noção de como voltar para casa, decide procurar um médico e descobre que sofre de Alzheimer precoce. Assim como na ficção, na vida real, jovens podem desenvolver a doença. “É necessária uma avaliação pelo especialista, pois em alguns casos, principalmente nos hereditários, os sintomas podem surgir em idades mais precoces. Já em pacientes que não apresentam o quadro compatível com o Alzheimer, não há um exame ou teste específico confiável que nos permita saber com certeza se desenvolverão a doença no futuro, mais um motivo para investir nas medidas preventivas. Em casos em que há dúvida sobre o diagnóstico, alguns exames de imagem e os chamados ‘marcadores biológicos’, substâncias que podem ser dosadas no liquor, por exemplo, podem auxiliar na definição do risco de desenvolver a doença futuramente, ainda assim, sem uma garantia”, ressalta Felipe. O Alzheimer tem um curso lento e progressivo. Não existe cura, mas o tratamento precoce ajuda a retardar o avanço e trazer mais qualidade de vida ao paciente, prevenindo complicações. Segundo o neurologista, além de medicamentos específicos, medidas não medicamentosas auxiliam o bem-estar: “É imprescindível atividade física regular orientada, fisioterapia motora para pacientes com mobilidade mais res-
Atenção aos cuidadores
“É possível prevenir a doença, investindo em hábitos saudáveis” Felipe dos Reis, neurologista
trita, terapia ocupacional para estimular as funções cerebrais e orientar devidas adaptações, fonoterapia e acompanhamento nutricional para os pacientes de maior risco ou com dificuldade para deglutição”. Para os jovens, ele faz um alerta: “É possível prevenir a doença investindo em hábitos saudáveis. Praticar exercícios regulares, não fumar, controlar a pressão arterial e os níveis de açúcar no sangue, manter a mente ativa são recomendações que devem ser seguidas por todos”.
Assim que seu pai foi diagnosticado como portador de Alzheimer, Lucienne da Costa foi orientada pelo médico a participar das reuniões da Associação Brasileira de Alzheimer (Abraz), que frequenta até hoje. “A Abraz cuida do familiar. Durante os encontros, trocamos experiências, vemos que algumas reações são normais e tiramos dúvidas”, conta. Ela observa que não há outra associação em Joinville que acompanhe pacientes e familiares. A Abraz surgiu em 1991, com a reu nião de familiares e profissionais da área. A subregional de Joinville teve início em 1998. “No dia 1º de dezembro daquele ano, foi realizado um encontro no ambulatório do Hospital Municipal São José com a presença de 40 pessoas”, lembra Francine Marchi Poleza, coordenadora da Abraz no município. Hoje, a entidade organiza as reuniões na sede da Sociedade Joinvilense de Medicina (SJM) e conta com voluntários, médicos geriatras, terapeutas ocupacionais, cuidadores familiares e profissionais. “Todas as atividades são abertas ao público, sem custos. Promovemos palestras educativas, orientações aos pacientes e cuidadores, auxiliamos familiares que nos procuram e investimos na divulgação e conscientização sobre o Alzheimer”, explica Francine. O diagnóstico de demência causa intenso impacto na vida dos cuidadores, pois, além da impossibilidade de cura, com o avanço dos sintomas, a rotina do ambiente familiar também é alterada. “Conviver com alguém diagnosticado com a doença de Alzheimer é um exercício de amor e adaptações são necessá-
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rias com o tempo. O apoio e a orientação aos cuidadores e familiares são imprescindíveis para um curso mais sereno da doença. Nesse aspecto, mais informação significa mais qualidade de vida para ambos”, aponta o médico Felipe. “Eles percebem que tudo é uma fase, que depende momento em que o paciente se encontra. O Alzheimer desestrutura toda a família”, completa Francine.
No campo científico As pesquisas nacionais sobre o Alzheimer ainda são limitadas e muitas vezes acontecem em parceria com universidades internacionais. Em 2015, a realização de uma “estimulação cerebral profunda” ganhou destaque na mídia por ter sido capaz de frear a evolução da doença e recuperar as funções da memória. A intervenção foi feita em um paciente com 77 anos, no estágio inicial da doença. Na época, o neurocirurgião responsável, Rodrigo Marmo, declarou que o procedimento melhora, de forma comprovada, a função da memória. Porém, o médico Felipe Ibiapina, do Hospital Dona Helena, faz uma ressalva: “Há muitas publicações sobre terapias inovadoras, inclusive sobre experiências com transplante de células tronco ou cirurgias, como a estimulação cerebral profunda. Vale frisar que, apesar das pesquisas em andamento, até o presente momento não há evidência científica que comprove a segurança e a eficácia de qualquer transplante ou procedimento cirúrgico no tratamento da doença de Alzheimer. Portanto, tais procedimentos não são aprovados pela
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Food and Drug Administration (FDA), nos Estados Unidos, nem pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no Brasil, e podem ser considerados apenas em âmbito de protocolos de pesquisa rigidamente controlados. Realizá-los fora desses protocolos, ainda mais com dispensas financeiras envolvidas por parte do paciente, fere os preceitos éticos da medicina”.
Evolução da doença Estágio inicial Raramente é percebido. Os sintomas podem ser vistos como uma fase normal do processo do envelhecimento. Como o começo é gradual, é difícil ter certeza exatamente de quando a doença começa. A pessoa pode: • ter problemas na linguagem • ter perda significativa de memória, particularmente das coisas que acabam de acontecer • não saber a hora ou o dia da semana • ficar perdida em locais familiares • ter dificuldade na tomada de decisões • ficar inativa ou desmotivada • apresentar mudança de humor, depressão ou ansiedade • reagir com raiva incomum ou agressivamente em determinadas ocasiões • apresentar perda de interesse por hobbies e outras atividades
Mesmo mais comum em idosos, Alzheimer pode acometer jovens
Estágio intermediário Como a doença progride, as limitações ficam mais claras e mais graves. A pessoa com demência tem dificuldade nas rotinas diárias e pode: • esquecer-se de eventos recentes e nomes das pessoas • não conseguir gerenciar mais viver sozinha • ficar incapacitada de cozinhar, limpar ou fazer compras • ficar extremamente
dependente de um membro familiar e do cuidador • necessitar de ajuda para a higiene pessoal, isto é, lavar-se e se vestir • ter dificuldade com a fala avançada • apresentar problemas como se perder e de ordem de comportamento, tais como repetir perguntas, gritar, agarrar-se e distúrbios de sono • perde-se dentro e fora de casa • ter alucinações (ver ou ouvir coisas que não existem) Estágio avançado O mais próximo da total dependência e da inatividade. Distúrbios de memória são muito sérios e o lado físico da doença torna-se mais óbvio. A pessoa pode: • ter dificuldades para comer • ficar incapacitada para se comunicar • não reconhecer parentes, amigos e objetos familiares • ter dificuldade de entender o que acontece ao seu redor • ser incapaz de encontrar o caminho de volta para a casa • ter dificuldade para caminhar • ter dificuldade na deglutição • ter incontinência urinária e fecal • manifestar comportamento inapropriado em público • ficar confinada a uma cadeira de rodas ou cama
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Tratamento
O poder medicinal da maconha
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âncer, Aids, glaucoma, epilepsia, esclerose múltipla, Alzheimer. São algumas doenças em que pacientes têm se beneficiado ao utilizar os efeitos medicinais da maconha. O uso já é reconhecido no mundo inteiro: desde 1993, países como Canadá, Estados Unidos, Porto Rico, Colômbia, Uruguai e Chile têm legalizado a utilização de princípios ativos no tratamento de doenças. Nas comunidades de aposentados e lares de idosos, os americanos estão cada vez mais se voltando para a maconha na expectativa de aliviar suas dores. Muitos a adotam como alternativa às drogas poderosas, como a morfina, alegando ser menos viciante e com menos efeitos colaterais. A maconha é um termo genérico para mais de 60 compostos que são chamados canabinoides e derivam principalmente da planta fêmea da espécie Cannabis Sativa. O canabinoide mais abundante é o gama-9-tetrahidrocanabinol (THC), sendo encontrados, em quantidades menores, o canabinol, canabidiol (CBD) e o gama-8-THC. A forma psicoativa é a gama-9-THC, existente em maior quantidade na seiva e flores da planta. Os canabinoides também ocorrem naturalmente dentro do sistema nervoso. “Quando inalada, a maconha é absorvida pelos pulmões e alcança a circulação sanguínea, sendo distribuída para o corpo e, especialmente, o sistema nervoso, no qual encontra receptores canabinoides tipo 1 e tipo 2 (CB1 e CB2). Os primeiros são distribuídos no circuito límbico do cérebro, envolvido com emoções, memória e percepções, como a dor. Também aparecem em regiões conhecidas como portais da dor no tronco do encéfalo e medula. Ao se ligar aos receptores CB1, determinam mudanças neuronais tipo hiperpolarização nessas regiões e produzem efeito analgésico, levemente sedativo, aumento do apetite e percepção de bem-estar e euforia”, explica o neurologista Wladimir Kummer, do Serviço de Neurologia do Hospital Dona Helena. “O efeito psicoativo da maconha está ligado diretamente
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Cada vez mais, estudos apresentam efeitos positivos dos compostos canabinoides
à proporção de gama-9-THC contida na mistura. Os demais canabinoides têm pouco ou nenhum efeito sobre o sistema límbico e, portanto, de pequena potência psicoativa”, completa. No Brasil, a importação de medicamento à base do canabidiol (CBD) já é permitida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O CBD, sobre o qual a comunidade científica vem creditando grandes possibilidades terapêuticas, tem efeitos analgésico, sedativo e anticonvulsivo, podendo ser utilizado no tratamen-
to de doenças como epilepsia, esclerose múltipla, esquizofrenia, mal de Parkinson e dores crônicas. Já os medicamentos à base do princípio ativo THC podem ser importados graças a uma decisão da Justiça. Com efeito antidepressivo, o THC é também estimulante do apetite e anticonvulsivo, utilizado no tratamento de mal de Parkinson, esclerose múltipla, síndrome de Tourette, asma e glaucoma. Nessa perspectiva, a Universidade de São Paulo (USP), no campus de Ribeirão Preto, terá o primeiro centro de pesquisa com foco nas propriedades medicinais da maconha. O Centro de Pesquisa em Canabinoides, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), vai desenvolver pesquisas em medicamentos contendo canabinoides. Inédito no Brasil, o projeto é resultado de parceria entre a USP e a indústria farmacêutica Prati-Donaduzzi. O centro já tem aprovado estudo clínico sobre o uso do canabidiol (CBD), um dos primeiros canabinoides descritos cientificamente. O teste será realizado em mais de 120 crianças e adolescentes com epilepsia refratária. “Pacientes têm relatado melhor controle da dor usando
maconha medicinal. Em alguns estados dos EUA, onde a maconha medicinal foi legalizada, houve redução de até 30% de medicações opioides e também redução de mortes por overdose por essas medicações. A maconha, por sua vez, não causa overdose letal”, aponta Sérgio Vidal, antropólogo e presidente da Associação Multidisciplinar de Estudos sobre Maconha Medicinal (Amemm). A Ammem é formada por uma diretoria de 10 pessoas e mais de 70 associados no Estado. “Estamos registrando a associação para entrar com o pedido para cultivo para pacientes. Nosso objetivo principal é fornecer medicação de qualidade e nos tornar ponto de referência para cultivo e seleção genética, para assim obter o melhor da planta e oferecer um medicamento de qualidade”, aponta Vidal. Recentemente, a Anvisa divulgou interesse em regulamentar o cultivo para empresas e associações até o final de 2017. A agência enviou dois técnicos para o Canadá, com o objetivo de estudar e colher informações sobre como funciona a regulamentação do plantio medicinal da erva naquele país. A agência registrou, neste ano, o primeiro medicamente à base da planta. O Mevatyl, já aprovado em outros 28 países, é indicado para o tratamento sintomático da espasticidade moderada a grave relacionada à esclerose múltipla. É destinado a pacientes adultos que não respondem a outros medicamentos comumente usados para essa finalidade. No Brasil, hoje, o maior uso da maconha, em sua forma medicinal, é por meio de extratos oleosos administrados em conta-gotas ou cápsulas. Entretanto, pomadas, sucos, a vaporização e o próprio fumo são formas de uso, dependendo da patologia. Em Israel, por exemplo, idosos
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“As famílias sentem muito medo da descontinuidade do tratamento” Fernanda Ribeiro, representante da Apepi
usam a erva fumada para alívio de dores provenientes de artrite dentro de casas de repouso, quando há a autorização da família. “O ideal é que a forma de uso seja orientada e, se possível, o início seja assistido pelo médico para que o potencial terapêutico seja aproveitado ao máximo, respeitando a resposta de cada paciente”, informa a equipe responsável pelo Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi). Criada em 2013, a Apepi nasceu a partir da união de famílias em torno da dificuldade para o acesso aos produtos importados, o que ajudou no processo de autorização na Anvisa para retirar o canabidiol da lista de produtos proscritos. Reconhecida oficialmente como instituição que representa os pacientes que fazem uso terapêutico da cannabis em órgãos públicos, é chamada para discutir e dar sugestões para as suas agendas regulatórias, além da interface com os poderes Legislativo e Judiciário. O objetivo maior é que o acesso justo e democrático do uso medicinal da cannabis para pacientes de todas as patologias seja uma realidade. Neste ano, além de avançar nas pesquisas junto com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no projeto Farmacannabis, a Apepi tem, em andamento, um grupo de
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trabalho para debater a elaboração de um fitomedicamento junto com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “Queremos também avançar na regulamentação do autocultivo para os pacientes que querem optar por esse caminho e também o cultivo coletivo por associações de pacientes de cannabis”, informa a diretora de mídias sociais Fernanda Ribeiro, representando a equipe da instituição. Na Apepi, cerca de 90% dos pacientes que fazem o uso medicinal da maconha buscam o controle da epilepsia refratária, geralmente causada por alguma patologia neurológica, como a Síndrome de Dravet, Síndrome de Rett e autismo. Também há casos de esclerose múltipla, dores crônicas, entre outros. A autorização para importação excepcional dos medicamentos à base de substâncias da maconha, expedida pela Anvisa e com validade de um ano, é obtida por meio de um cadastro eletrônico e o envio de documentos que o paciente obtém com o médico (laudo, receita e termo de esclarecimento). A cada compra é necessário o envio de receita atualizada, da autorização e de documentos pessoais para a fornecedora do produto. Toda remessa é fiscalizada ao entrar no Brasil. “A renovação deve ser realizada anualmente, com o reenvio da documentação. É um processo burocrático. Se você aliar a essa burocracia o alto custo do produto, as possibilidades de problemas logísticos, a possível incapacidade das empresas estrangeiras de garantir o fornecimento ao nosso mercado crescente e a possibilidade de uma restrição legal para a exportação dos produtos dos Estados Unidos, verá que a importação nos expõe a muitas fragilidades. Todas as famílias sentem medo da descontinuidade do tratamento. Para os casos de epilepsia, a descontinuidade pode ser catastrófica. Precisamos desses produtos sendo produzidos aqui, no menor tempo possível”, frisa a representante da Apepi.
Entidade reúne pacientes que fazem uso medicinal da substância
Sérgio organiza a associação para solicitar liberação de cultivo para pacientes
Avanços e dificuldades Mesmo com as dificuldades relatadas, o Brasil experimentou avanços consistentes nos últimos anos. Um primeiro marco foi em 2011, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que não é apologia criticar a lei de drogas e propor a legalização. Em 2014, a Justiça permitiu que uma família brasileira importasse óleo rico em canabidiol para tratamento de síndrome rara. No mesmo ano, a Anvisa passou a receber mais pedidos de autorização para importação de produtos à base de canabidiol e o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizou médicos a prescrever a substância para crianças com epilepsia e sem sucesso em outros tratamentos. No ano seguinte, a Anvisa tirou o canabidiol da lista de substâncias proibidas em remédios e o colocou no rol de controladas. O STF começou a discutir se seria crime portar drogas para uso próprio. Já em 2016, o Conselho Institucional do Ministério Público Federal decidiu que importar pequenas quantidades de semente de maconha não deveria gerar denúncia. Três famílias conseguiram habeas-corpus permitindo que plantassem e extraíssem o óleo de maconha para uso medicinal e próprio. “Agora, a evolução deve ser no sentido de o Brasil se tornar independente de produtos importados com a produção nacional. A lei deve permitir cultivos pelas associações de pessoas que fazem uso da maconha em prol da saúde e por instituições estatais para suprir o Sistema Único de Saúde (SUS), com amparo de laboratórios para beneficiamento e análise da maconha cultivada no Brasil”, reforça Fernanda Ribeiro. Segundo a Apepi, de 2014 para cá, a sociedade passou a compreender melhor a questão da maconha medicinal. “Sentimos uma maior aceitação
“O caminho é universalizar, regulando todas as formas de acesso” Sérgio Vidal, antropólogo
nas reações das pessoas, no dia a dia. Mas há muito o que avançar. Os encontros pessoais são efetivos, pois tratamos de aspectos que, muitas vezes, não entram na grande mídia. As próprias conquistas são fruto da aproximação entre pacientes e entidades reguladoras. As demandas só podem ser atendidas na medida que são compreendidas.” Para Sérgio Vidal, o caminho é universalizar, regulando as formas de acesso. Ele explana: “O paciente plantar e fazer o remédio em casa, dentro da associação ou em grupos de pessoas. Existir registro em empresas farmacêuticas. O governo deve fornecer pelo SUS, cultivar pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), fazer pesquisas nas universidades públicas. Tudo ao mesmo tempo. É a única forma de garantir que teremos diversas formas de acesso para pessoas variadas.” Wladimir Kümmer ressalta, por outro lado, que o uso regular da maconha aumenta consideravelmente o risco de induzir a transtornos psicóticos. Por se tratar de uma substância de comércio proibido e vendida de forma ilícita, expõe seus usuários ao risco aumentado de lesões e morte por causas violentas e de toxicidade por outras substâncias misturadas.
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Conhecimento
Quais os principais desafios da educação sexual?
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esde sempre, a sexualidade humana provoca curiosidade. Nomes como Sigmund Freud e Michel Foucault dedicaram parte relevante de suas obras a esse instigante tema. Em determinado momento da história, a sexualidade foi trancada dentro de casa e o sexo se calou. Virou motivo de constrangimento. A repressão, então, se tornou cada vez mais crescente. Falar sobre sexo passou a ser transgressor. Mas, se o ato sexual é natural do ser humano – somos biologicamente preparados para copular –, por que ainda provoca reações tão extremas? Para a antropóloga Patrícia Villar, a doutrina cristã tem influência na forma como abordamos o tema. “A narrativa cristã está cheia de proibições em relação ao corpo, nudez, papéis de gênero, e ao nosso comportamento. Acredito que essas restrições colaboram para a criação e fortalecimento desses tabus”, afirma. Já a psicóloga Suane Souza destaca que a diferença na visão entre homens e mulheres é outra barreira a ser vencida: “Sempre tivemos abertura para falar sobre a sexualidade masculina. A dificuldade maior está em criar espaços para trabalhar sexualidades diferentes, como a feminina e a transsexual, por exemplo”. Como seres em constante construção, não temos uma sexualidade imutável, quantificável e qualificável. Ao contrário dos animais, esse aspecto não se reduz a um instinto que é ativado pelos hormônios. Possuímos nossa sexualidade e nossos instintos, porém, não estamos submetidos a eles. Kethe Oliveira de Souza, psicóloga do Hospital Dona Helena,
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Pais devem tratar o assunto com naturalidade e tranquilidade
explica que as crianças começam a manipular os órgãos genitais a partir dos 4 ou 5 anos de idade. “O que os pais podem fazer é explicar que a manipulação não deve ser realizada na frente de outras pessoas. A proibição poderá acarretar outras questões, principalmente, se parecer algo errado”, aponta. De acordo com ela, não é apenas a religião que contribui para que o tema siga tratado como tabu. “São questões trazidas pelo processo de educação de cada família. É uma influência da sociedade machista. A melhor forma para colocar o assunto em discussão é tratá-lo de um jeito mais descontraído, durante conversas entre os familiares”, sugere. Reflexo de uma sociedade conservadora, a educação sexual é pautada pelo fator biológico. Desde pequenos, somos ensinados que a diferença entre meninos e meninas é que eles têm pênis e elas têm vagina. Somos orientados que, durante o ato sexual, se não utilizarmos as devidas proteções, o espermatozoide liberado pelo homem pode fecundar o óvulo da mulher, o que resulta em uma gravidez. Também aprendemos que, quando o sexo não é feito com a devida segurança, com o uso de preservativo, os riscos de infecções e Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs) aumentam. Ou seja, somos educados para temer, de certa forma, algo que deveria ser prazeroso. Palavras como “orgasmo”, “masturbação”, “prazer” e “tesão” não são discutidas e acabam sendo descobertas por outros meios, principalmente pela internet, que já registra um número de usuários acima dos 102 milhões, segundo dados do Ibope de 2016. A web se transformou em um dos principais meios de comunicação no iní-
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Para Kethe, muitos fatores tornaram a sexualidade um tabu, como a cultura e a criação das famílias
cio dos anos 2000, contribuindo para o acesso a diversos conteúdos. Com a sua expansão, os serviços oferecidos também passaram a ser aprimorados. Se antes a única opção era a internet discada, hoje a banda larga está cada vez mais acessível, fator que influencia o comportamento online. O avanço tecnológico também tirou dos computadores a exclusividade da conexão com o mundo virtual. Smartphones, tablets e outros gadgets permitem o acesso a várias páginas que, muitas vezes, podem não trazer informações corretas. Com o acesso ilimitado dos cidadãos a materiais que, muitas vezes, tendem a reforçar estereótipos, a antropóloga Patrícia aconselha os pais a estimularem o senso crítico dos jovens: “Se o adolescente tem, desde cedo, a prática de questionar o que vê ou ouve, vai conseguir repensar o que recebe da internet”, reitera a especialista.
Novas formas de pensar Sabendo que o caminho rumo a uma vida sexual mais saudável é a educação, é preciso identificar os agentes que contribuirão para a construção desse processo. São dois os principais: a escola e a família. Para Patrícia, o ambiente escolar precisa se aproximar de novas demandas culturais e sociais. “A cultura sexual juvenil contemporânea não condiz, muitas vezes, com a perspectiva de ensino das escolas. Está cada dia mais difícil, na sociedade em que vivemos, com todos os apelos ao corpo, com a arte explorando o tema de muitas formas e a mídia trazendo esse assunto diariamente, manter o jovem fixo ao padrão sexual conservador. Sexo antes do casamento,
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a escolha de casar, a heterossexualidade normativa e a escolha da maternidade são alguns tópicos que precisam ser relativizados”, observa. E como transportar essas questões para dentro da sala de aula? A psicóloga Kethe recomenda que os educadores trabalhem o tema nas disciplinas que lecionam. “A informação deve ser dada de forma clara. Não se trata de uma discussão sobre certo ou errado, mas de repassar o conhecimento da forma correta”, raciocina. Suane corrobora a fala da profissional: “A escola e a família devem garantir a autonomia, o espaço para que a criança descubra e desenvolva suas curiosidades”. A família também deve abrir espaço para discutir o tema e refletir sobre questões como respeito, liberdade, machismo, violência e papéis sociais. “Penso que a grande responsabilidade na quebra de tabus vem daí. O jovem precisa pensar sobre esse assunto independentemente da abordagem escolar. Nesse sentido, a forma como os pais pensam e educam se torna uma questão a ser observada. O que se percebe é que os pais preferem que os filhos aprendam sobre isso na escola, e aí se cria um enorme abismo de diálogo, compreensão e educação”, adverte Patrícia.
Educação machista No livro “Para educar crianças feministas”, a autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie escreve, no formato de uma carta
“A cultura sexual juvenil não condiz, muitas vezes, com o ensino das escolas” Patrícia Villar, antropóloga
“O menino é estimulado a pensar a sexualidade. A menina é orientada a ser um atrativo” Suane Souza, psicóloga
a uma amiga, o seguinte trecho: “Acho interessante como o mundo começa a inventar papéis de gênero desde cedo. Se não empregarmos a camisa de força do gênero nas crianças pequenas, daremos a elas espaço para alcançar todo o seu potencial”. Em outro momento, ela cita a teoria de uma conhecida que, observando os filhos no parquinho, chega à conclusão de que pais e mães, inconscientemente, ensinam desde cedo que as meninas têm mais regras de comportamento e menos espaço na sociedade, enquanto os meninos têm mais espaço e menos regras. O grande problema dessa distinção na infância são os reflexos provocados na fase adulta. “O menino é estimulado a pensar na sexualidade como uma forma de se colocar no mundo e que não pode falhar. As meninas são orientadas a agir de uma forma a dispor, a ser um atrativo sexual”, alerta Suane. Mas o cenário está mudando, e não é de hoje. A década de 1970, marcada pela revolução sexual, roupas coloridas e protestos pelos direitos civis, propôs novas
interpretações do mundo. Não apenas o comportamento, mas o modo como nos relacionamos com o nosso corpo – especialmente as mulheres – mudou ao longo dos anos. A silhueta fina entrou em voga e, no final da década de 1960, inaugurou-se uma nova geração, com novos hábitos e um novo corpo. O espírito libertário começou a ganhar força entre os jovens. A moda foi uma ferramenta importante, as mulheres passaram a utilizar minissaias e vestidos cada vez mais curtos, revelando os joelhos e as coxas, ato considerado um sinal de rebeldia pelos mais velhos. A posição da mulher na sociedade nesse momento em particular também mudou. A participação delas se intensificou em manifestações políticas, apoio às minorias étnicas e reivindicações pela igualdade dos gêneros. A pílula anticoncepcional, criada em 1957 e popularizada na segunda metade da década de 1960, levantou questionamentos sobre os valores sexuais. Inserido nessa realidade, o sexo funcionou como ferramenta de protestos. “Precisamos sempre entender o contexto em que estamos. Hoje, as tecnologias influenciam muito, para o bem e para o mal. Mas a sexualidade começou a se modificar a partir da revolução sexual e dos movimentos feministas”, finaliza Suane.
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“Acredito que a solução seja a educação. A disseminação de informação confiável não se dá apenas nas instituições formais de ensino” Luciana Walther, doutora e mestre pela UFRJ
Reflexos na vida adulta Luciana Walther, doutora e mestre pelo Instituto Coppead/UFRJ, publicou recentemente o livro “Mulheres que não ficam sem pilha: como o consumo erótico feminino está transformando vidas, relacionamentos e a sociedade”, pela Editora Mauad. A obra é resultado de quatro anos de pesquisas científicas realizadas com a observação participante em vários sex shops e entrevistas com consumidoras e vendedores de diferentes idades e classes sociais. “Encontrei mulheres bem resolvidas que utilizam produtos para aprimorar suas relações e seu prazer individual. Porém, elas também relataram explícita ou implicitamente o preconceito que sofrem. Muitas têm vergonha de ir ao sex shop, outras temem apresentar produtos eróticos a seus parceiros e ser mal interpretadas”, conta Luciana. A autora reforça que a maneira como percebemos a nossa sexualidade e a dos outros está ligada diretamente com o nosso processo de socialização: “Se uma pessoa é criada em um contexto em que sexualidade e órgãos genitais são tabu, sua identidade sexual carregará essa influência de alguma forma. Se não ensinarmos as meninas a amarem seus próprios corpos, elas possivelmente terão uma relação conflituosa com eles durante muito tempo”. Na visão de Luciana, as maiores barreiras para as mulheres descobrirem o prazer sexual são culturais e têm a ver com o julgamento moral que ainda recai sobre a brasileira que exerce sua sexualidade livremente. “Acredito que a solução seja a educação. A disseminação de informação confiável não se dá apenas nas instituições formais de ensino, mas
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Luciana reforça: é preciso ensinar as meninas a amar seus próprios corpos para, assim, desenvolver uma boa relação com a sexualidade
também na família, na mídia, e quando mulheres conversam entre si, propagando suas descobertas sobre o próprio corpo e sobre o prazer. Minha pesquisa mostrou que as consumidoras de produtos eróticos costumam compartilhar informações sobre sexualidade com as amigas, com seus parceiros ou parceiras e até entre mães e filhas. O intermédio dos produtos eróticos nesse diálogo pode ser útil”, finaliza.
Para saber mais Uma seleção de plataformas digitais sobre sexualidade Canal das Bee Criado em 2012, o Canal das Bee utiliza como principal plataforma o Youtube e promove discussões sobre homofobia, preconceito, transfobia, bifobia, lesbofobia e machismo. Hel Mother Desde 2016, Helen Ramos, a Hel
Mother, desmistifica alguns mitos da maternidade, fala sobre as mães solo e as dificuldades na gestação e criação de uma criança. Erosdita Criado pela jornalista Julieta Jacob, aborda assuntos ligados a sexo, gênero, sexualidade e
educação sexual de forma leve, descomplicada e informativa. Pimentaria É uma marca especializada em conteúdo sobre sexualidade, que conta com um blog, um canal no Youtube e uma coluna no site Yahoo Brasil.
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Diálogos
Equidade em saúde Carlos José Serapião Pág. 37
Livre-arbítrio Antonio Baptista Pág. 38
Terapia Ocupacional
Gerenciamento de protocolo de dor Melissa Perozin Pág. 41
Fabiana Domeciano Pág. 40
Pesquisa Clínica Alexandre Cavalcanti Pág. 42
Entrevista
Rogério Hoefler Pág. 44
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“Equidade na área da saúde é um valor ético de caráter normativo” Carlos José Serapião Coodernador do IDHEP
Equidade em saúde como valor ético de caráter normativo
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o latim “aequitas” a palavra possui significados que incluem: igualdade, conformidade, simetria, correção, justiça, entre outros. Conceituada por Aristóteles, tornou-se reconhecida e utilizada pelo direito romano, chegando até nós por meio das teorias da justiça, tendo sido referida enfaticamente por John Rawls, em seu livro “La Justice comme Equité”(1). Para Kant, equidade não está ligada ao direito, mas sim ao que chama de “tribunal da consciência”. Devemos entender que todo julgamento realizado sob o manto da justiça e da regência dos múltiplos “pactos” que permitem a convivência dos homens e a existência das organizações sociais, bem como de um sistema de cooperação social através dos tempos, converge para o exercício da equidade em sua expressão mais fundamental. Equidade na área da saúde é um valor ético de caráter normativo, fundamentado nos princípios da justiça distributiva, consoante aos direitos humanos expressos nos documentos que pavimentam a defi-
nição de saúde, quer na constituição da Organização Mundial da Saúde, quer na Declaração Universal dos Direitos Humanos, propugnando pelos mais elevados standards de saúde. Apresenta, como a ética, dificuldades intrínsecas para ser mensurada, mas permite observar que seu inverso, as iniquidades, são as que comprometem, sistematicamente, as populações que apresentam prévias desvantagens sociais (pobreza, desigualdades por gênero, raça, etnia, religião etc.). Tais iniquidades conduzem forçosamente a condições junto as quais se agregam, entre outras, as desvantagens com relação à saúde. Embora igualdade e equidade sejam palavras semelhantes, não são sinônimas, e representam ideias distintas, ainda que a equidade se sirva da igualdade como um instrumento de medida, mesmo assim, considerado como precário. Por outro lado, é importante destacar que os objetivos distribucionais relacionados aos cuidados de saúde e às iniciativas sociais podem levar a se confundir a equidade e a justiça social com o altruísmo e a caridade. Caridade e altruísmo são matérias de preferência e não de direito. Whitehead (2) define as iniquidades em saúde como “diferenças no estado de saúde que são desnecessárias, afastáveis, facciosas, e injustas”. E continua: “Tais diferenciais podem variar de um país para outro e dentro do tempo, podendo ser identificados como: a) Variações biológicas, naturais; b) Riscos à saúde resultantes de comportamentos de livre escolha; c) Riscos à saúde resultantes do estilo de vida; d) Exposição a ambiente de trabalho inadequado; e) Dificuldade de acesso a serviços essenciais de saúde; f) Seleção natural por conta de que pessoas enfermas se posicionam de modo inferior na escala social”. Essas causas que influenciam a saúde não são mutuamente excludentes, podendo interagir, embora existam evidências que destacam, como mais importantes, os fatores biológicos, socioeconômicos, ambientais, inclusive os estilos de vida. Deste modo, avaliar a equidade em saúde requer poder comparar a saúde com seus determinantes sociais. Sem essas informações será impossível construir políticas e programas que levem aos caminhos e na direção de maior justiça social na saúde. 1. Rawls J. La Justice comme Equité . Québec: Boréal, 2004 2. Whitehead M. The Concepts and Principles of Equity and Health. Copenhagen : World Health Organization, 1992
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Antonio Sergio Ferreira Baptista Doutor em ciências
As questões em torno do livre-arbítrio
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á algum tempo, está na moda dizer que o livre-arbítrio não existe, principalmente depois do lançamento de best-sellers como “Free-Will”, de Sam Harris, no qual o autor nega peremptoriamente a existência do livre-arbítrio. A discussão é uma das mais antigas da filosofia e se estende até os dias de hoje. Há volumosa literatura sobre o assunto, exigindo para sua exposição, devido à complexidade, um espaço muito maior do que este e um autor mais competente. De uma forma muito simplificada, poderíamos iniciar nos perguntando: afinal o que é o livre-arbítrio? É um termo filosófico para um tipo particular de capacidade de um agente racional de escolher um curso de ação entre várias alternativas, sem restrições externas (físicas ou coercitivas) ou internas (vícios, crenças, distúrbios mentais ou cerebrais etc.). Parece óbvio à primeira vista, mas e se nossas ações fossem causadas por forças sobre as quais não temos controle nem consciência? Talvez, nossa decisão entre as várias alternativas à nossa frente seja determinada por motivos inconscientes ou por outros elementos psicológicos dos quais não temos percepção consciente. Esses elementos, por sua vez, podem ser ori-
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ginários de condições genéticas hereditárias e/ou influenciados pelo meio ambiente e social; ou por alterações sutis dos hormônios e neurotransmissores em nosso corpo e nosso cérebro. A maioria de nós diria que o livre-arbítrio é uma realidade óbvia, mas sabendo que todos os objetos do universo têm que seguir obrigatoriamente leis como a gravidade, as leis associadas ao eletromagnetismo e à lei básica de que todo evento deve ter tido uma causa, que por sua vez também teve uma causa und so weiter, poderíamos supor que os pensamentos, comportamentos, decisões e ações igualmente devem ter suas causas. Assim sendo, não poderíamos ter livre-arbítrio, porque nossas decisões seriam pré-determinadas. E se tudo o que fazemos é causado por coisas anteriores que não fizemos, como podemos ser moralmente responsáveis por nossas ações? Essa não é apenas uma questão de filosofia da mente, porque envolve moralidade e tampouco é apenas uma questão de ética, pois envolve problemas da filosofia da mente. Também, para os que têm crença religiosa, a reflexão sobre a compatibilidade da liberdade humana com o fato de Deus (sendo onisciente) já saber a priori o que vamos fazer pode nos levar para a epistemologia e para a filosofia da religião. E, como é errado punir alguém que não seja responsável por seus atos, o livre-arbítrio é uma questão central na filosofia do direito e, portanto, na filosofia política. Essa visão de que nossas ações e decisões já seriam pré-determinadas é a posição dos chamados deterministas. O determinismo foi colocado em dúvida pela mecânica quântica, que diz que há eventos que são indeterminados, de maneira que ocorrem por puro acaso, sem uma cadeia de causas que possam ser responsabilizadas. Como isso ocorre em nível das partículas subatômicas, não parece possível que esse raciocínio possa ser aplicado em relação ao mundo macroscópico. Alguns filósofos argumentam que podemos agir com livre-arbítrio independentemente do nosso condicionamento biológico e cultural. O agente que quer, decide e age em uma certa direção, não somente determina, mas também está determinado; isto é, não somente se insere na trama das relações causais alterando-a ou modificando-a com a sua decisão e a sua ação, mas obedece também, no seu comportamento, a causas internas e externas, imediatas e mediatas, de modo que, longe de romper a cadeia causal, a pressupõe necessariamente. São chamados compatibilistas. Assim, o determinismo poderia ser compatível com o livre-
“Talvez nossas decisões sejam determinadas por motivos inconscientes”
-arbítrio, como pensam Tomis Kapitan, A.J.Ayer, Moritz Schlick, Donald Davidson. Outros, como Peter Van Inwagen, acreditam que não há compatibilidade entre o determinismo e o livre-arbítrio. São os chamados incompatibilistas. Outros podem, no entanto, acreditar que o livre-arbítrio é incompatível com o determinismo, mas que pode existir (negando, portanto, a verdade do determinismo). São os chamados libertários. Há outras visões desse problema que são chamados deterministas leves (soft determinists), deterministas rígidos (hard determinists), incompatibilistas leves, incompatibilistas rígidos, semi-compatibilistas, compatibilistas leves, ilusionistas, impossibilistas etc. Filosoficamente, então, o problema do livre-arbítrio, em suas linhas mais gerais, é este. O livre-arbítrio parece incompatível tanto com o determinismo quanto com o indeterminismo. O livre-arbítrio, portanto, parece impossível. Mas o livre-arbítrio também parece existir. O impossível, portanto, parece existir. Uma solução ao problema do livre-arbítrio seria uma maneira de resolver essa aparente contradição. Parece haver três maneiras pelas quais poderíamos tentar solucionar a aparente contradição. Poderíamos tentar mostrar, como fazem os compatibilistas, que, apesar das aparências, o livre-arbítrio é compatível com o determinismo. Ou poderíamos tentar mostrar, como fazem muitos incompatibilistas, que, apesar das aparências, o livre-arbítrio é compatível com o indeterminismo. Ou poderíamos tentar mostrar, como fazem muitos “deterministas rígidos”, que a aparente realidade do livre-arbítrio é uma mera aparência. Mas, além dessas análises conceituais,
uma avaliação científica não poderia nos ajudar? O que as neurociências têm a nos dizer sobre o livre-arbítrio? Benjamin Libet, professor de psicologia da UCLA, com a colaboração do neurocirurgião Bertram Feinstein, iniciou, em 1958, uma série de estudos experimentais relacionando atividades cerebrais com a produção de experiências conscientes. Esses trabalhos sugeriram que atos voluntários são precedidos por cargas elétricas específicas no cérebro (readiness potential) que começam algumas centenas de milissegundos antes das pessoas se tornarem conscientes de sua intenção de agir. Seus trabalhos foram seguidos por um grande número de autores como Daniel Wegner, Stanley Milgram e Philip Zimbardo, J.D Greene, entre outros. Mais recentemente (2008), o grupo de Chun Siong Soon replicou e estendeu o famoso estudo de Libet, reforçando a noção de que o livre-arbítrio é uma ilusão. Também merece ser citado Eliezer J.Sternberg. Tudo indicava que a ciência havia provado a não existência do livre-arbítrio. Como dizia Schopenhauer: “A human can very well do what he wants, but can not will what he wants”, ou nas palavras jocosas de Christopher Hitchens: “Yes I have free will; I have no choice but to have it”. Porém, mais recentemente, neurocientistas franceses publicaram no Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) artigo mostrando que a suposta atividade cerebral não consciente preparatória, identificada por Libet, era apenas parte de um vai e vem de atividade neuronal de fundo e que os movimentos ocorrem quando essa atividade ultrapassa um certo limiar. Estudo similar, em ratos, obteve resultados semelhantes e pesquisadores alemães publicaram um novo estudo observando que os pacientes podiam voluntariamente vetar ou cancelar o movimento depois do início da atividade cerebral preparatória não consciente, identificada por Libet, demonstrando assim que a liberdade de ação é muito menos limitada do que Libet pensava. Esses novos estudos inspiraram Aaron Schurger (PHD em neurociências por Princeton) a afirmar que é hora de reavaliar e reinterpretar um grande número de estudos como os de Libet e que por 50 anos os cientistas podem ter medido, mapeado e analisado o que pode vir a ser apenas um acidente: o Cortical Readiness Potential (CRP). De qualquer maneira, Isaac Bashevis Singer aconselhava: “Temos de acreditar no livre-arbítrio. Não resta outra opção”.
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“A terapia ocupacional ajuda a independência funcional, a integração e o trabalho” Fabiana Domeciano Terapeuta Ocupacional
Terapia Ocupacional pode gerar trabalho e renda a idosos
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Organização Mundial de Saúde (OMS) considera idoso os indivíduos de 60 anos ou mais e, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2011) a população de 60 anos ou mais é de 20 milhões, sendo aproximadamente 10,8% da população total. Esse aumento se dá devido à qualidade de vida dos idosos que se sentem mais dispostos a continuar desempenhando suas atividades produtivas. A terapia ocupacional, segundo a Associação Americana de Terapia Ocupacional (1999) apud Barreto e Tirado (2006), é uma profissão da saúde e da reabilitação que ajuda o indivíduo a recuperar, desenvolver e construir habilidades para a independência funcional, sua saúde, sua segurança e sua integração social. Segundo os autores, o objetivo da terapia ocupacional é promover o desempenho funcional dos idosos que visa os aspectos sensório-motor, os componentes de integração e os aspectos psicossociais, que são considerados essenciais para a realização das ativida-
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des cotidianas como o autocuidado, o trabalho e o lazer. O Centro de Convivência do Idoso que, em fevereiro de 2007, foi inaugurado pela Associação Beneficente Evangélica de Joinville (Abej), tem como objetivo geral “proporcionar atendimento aos idosos de forma continuada visando à autonomia, fortalecimento de vínculos familiares, convívio comunitário e no processo de envelhecimento saudável”, sendo seu público alvo, idosos acima de 60 anos, independentes nas atividades de vida diária, que estão em situação de risco e vulnerabilidade social. Um dos objetivos específicos da entidade é “promover a formação de grupos de inclusão produtiva, visando à geração de renda”. O papel da terapia ocupacional dentro do grupo é promover a independência e autonomia das idosas na escolha do artesanato, na criação e confecção das peças, facilitando os processos de construção, finalização e venda dos produtos confeccionados. A oficina de trabalho, produção e geração de renda é direcionada para a confecção de peças que serão expostas e vendidas na própria instituição, com o propósito também de encomendas. As idosas criam e recriam diversos artesanatos e trabalhos manuais e como produtos finais são desenvolvidos adornos e acessórios, peças decorativas e utilitárias. Com o desenvolvimento do trabalho, muitas conseguem renda extra ou até se manter com o lucro das peças vendidas, aumentando a autoestima e a independência.
O papel da terapia, dentro do grupo, é promover autonomia dos idosos, aumentando a autoestima e contribuindo para renda extra
“A adesão a um protocolo assistencial impacta positivamente no atendimento” Melissa Perozin
Coordenadora de gestão de protocolos assistenciais
Gerenciamento do protocolo de dor torácica
A
Síndrome Coronariana Aguda (SCA) inclui o Infarto Agudo do Miocárdio (IAM) com supradesnível do segmento ST, sem supradesnível do segmento ST e angina instável. São causas comuns de atendimentos nas emergências do mundo todo. Segundo Datasus (2014), no Brasil, o número de pessoas infartadas é estimado em 400 mil casos/ano. A SCA ainda representa a primeira causa de mortalidade, cerca de 66 mil pessoas (15,5%), número acima dos parâmetros internacionais, que é de 15%. A medida dos hospitais da Anahp em 2015 foi de 5,5%. Nas últimas décadas, ocorreu redução importante na taxa de mortalidade devido aos avanços na prevenção e no tratamento da SCA. Essa redução é mais acentuada em unidades de emergência onde é possível ter acesso, em tempo hábil, ao tratamento adequado com reperfusão por angioplastia primária ou fibrinólise, terapia antitrombótica dupla e tratamento intensivo. Em 2016, o Hospital Dona Helena, por meio do setor de Gestão de Protocolos
Assistenciais passou a gerenciar o protocolo de Dor Torácica. Através de condutas padronizadas, percebe-se que apesar do elevado número de pacientes que dão entrada por queixa de dor no peito, a triagem por meio do eletrocardiograma e de exames específicos, consegue rapidamente separar as dores atípicas das SCA verdadeiras e possíveis IAM, para que o tempo entre o diagnóstico e a tomada de decisão clínica possa ser o menor possível. Realizada uma pesquisa interna nos meses de maio/2016 a fevereiro/2017, conseguimos verificar que dos 1.254 pacientes com entrada na emergência por dor torácica, 300 (23,92%) receberam ácido acetilsalicílico profilático. Desse montante, 67 pacientes foram diagnosticados com IAM (26,87% com Infarto Agudo do Miocárdio com Supradesnível ST e 73,13% com Infarto Agudo do Miocárdio sem Supradesnível ST), representando 2,99% de mortalidade. Analisando esses dados, podemos concluir que a adesão a um protocolo assistencial embasado em evidências científicas, impacta positivamente nos números indo ao encontro do nosso principal objetivo que é a qualidade na assistência e segurança ao paciente. LEVANTAMENTO DE DADOS
Maio de 2016 a Fevereiro de 2017 (10 meses)
Pacientes com Dor Torácica na EME 1.254 pacientes Pacientes com suspeita de SCA: 300 pacientes/23,92% Pacientes diagnosticados com IAM: 67 pacientes/22,33% 49 pacientes
18 pacientes 2 pacientes IAM S/SST 73,13%
IAM C/SST 26,87%
Óbitos por IAM 2,99%
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“Instituições mundialmente famosas são reconhecidas pela qualidade das pesquisas” Alexandre Cavalcanti Médico pesquisador
A importância das pesquisas clínicas para a área da saúde
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esquisas clínicas são estudos que envolvem seres humanos e que são a base para o avanço da medicina, envolvendo aprimoramento no diagnóstico, prevenção e tratamento de doenças. No mundo todo, realiza-se pesquisa clínica, e, de fato, é característica marcante dos melhores centros de medicina do mundo a realização de pesquisa clínica em grande escala e de ponta. Instituições mundialmente famosas em medicina adquiriram esse status justamente pela qualidade dos avanços em pesquisa que se alinham à melhoria na qualidade da assistência. Há vários delineamentos e formas de conduzir pesquisas clínicas, mas em comum, todas têm a característica de seguir regulamentação muito bem estruturada, tanto internacionalmente como de nosso país. Por exemplo, toda pesquisa clínica precisa ser avaliada e aprovada por Comitês de Ética em Pesquisa das instituições participantes para poder ser conduzida. A depender de algumas características particulares, também precisam ser aprovadas pela Comissão Nacional de Ética em
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Pesquisa. Em nosso país, todas as pesquisas são submetidas aos Comitês de Ética em Pesquisa via Plataforma Brasil, uma base eletrônica mantida pelo Ministério da Saúde. Outro elemento fundamental é a necessidade do consentimento. Todas as pesquisas clínicas necessitam da anuência do participante, respeitando o princípio da autonomia. Também são princípios fundamentais maximizar os benefícios e minimizar os riscos aos participantes, da mesma forma que na prática médica, e o foco na relevância social. Em última instância, o objetivo é traduzir as informações geradas a partir de grupos de pacientes para conhecimento aplicável mundialmente por profissionais de saúde. Boa parte das pesquisas realiza observação dos participantes e coleta de dados, mas não interfere diretamente no tipo de cuidado, são chamadas de pesquisas observacionais. Outros estudos, chamados de estudos experimentais, comparam diferentes alternativas de cuidado clínico, visando identificar qual é superior. Muito frequentemente, nesses estudos a alocação de um outro tratamento alternativo para o paciente é feita por processo chamado randomização, ou seja, a decisão não é tomada pelo médico ou pelo participante, mas por um processo aleatório (sorteio). Essas pesquisas são conhecidas como estudos clínicos randomizados e têm um papel absolutamente essencial para a medicina e a sociedade porque, essencialmente, constituem o método disponível de demonstrar a superioridade de novos tratamentos e métodos de prevenção. Há várias décadas, o desenvolvimento de medicamentos e vacinas é altamente regulado por agências governamentais. A condução de estudos randomizados é etapa obrigatória para demonstrar a eficácia e a segurança dos novos fármacos e vacinas, antes que sejam aprovados e liberados para comercialização. O Hospital Dona Helena, por meio do Instituto Dona Helena de Ensino e Pesquisa (IDHEP), tem conduzido estudos clínicos. São estudos desenvolvidos por pesquisadores do Dona Helena, alguns em parceria com pesquisadores de outras instituições como o Bom Jesus/Ielusc, ou estudos colaborativos multicêntricos. A visão do hospital é a de que a integração de prática e pesquisa clínica é o caminho para um sistema de saúde capaz de aprender continuamente com a riqueza de informações resultante da assistência aos pacientes.
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Rogério Hoefler
Membro da equipe do Centro Brasileiro de Informação sobre Medicamentos (Cebrim), do Conselho Federal de Farmácia
ENTREVISTA “Com o sistema de saúde insuficiente, a automedicação não vai diminuir”
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esde 1995 ligado ao Centro Brasileiro de Informação sobre Medicamentos (Cebrim), órgão do Conselho Federal de Farmácia (CFF), o farmacêutico Rogério Hoefler enxerga o problema da automedicação com medicamentos tarjados como uma teimosa realidade no país: “É uma das ilegalidades sanitárias que permanecem há décadas”, avalia, nesta entrevista à Revista Conecthos. Para ele, existem formas de coibir a prática, como assegurar a presença do profissional farmacêutico ao longo de todo o expediente comercial dos estabelecimentos do gênero, mas alerta que a primeira mudança deve vir da própria sociedade, não comprando medicamentos tarjados sem receita médica. Rogério integrou a Comissão Técnica Multidisciplinar de Revisão da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Comare-Rename), de 2001 a 2011, e também é mestre em ciências farmacêuticas, pela Universidade de Brasília. Segundo dados do Ministério da Saúde, em um período de cinco anos, até 2014, quase 60 mil casos de internações por automedicação foram registrados no
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Brasil. O CFF dispõe de algum outro número acerca da questão? O problema vem mesmo crescendo? O CFF não realizou estudos a esse respeito nem dispõe de dados estatísticos que mostrem a magnitude do problema. Contudo, sabemos que ele existe e que é significante. A automedicação não orientada é um problema no Brasil, pois qualquer pessoa consegue adquirir medicamentos “tarjados” (de venda exclusiva sob prescrição médica) em diversas farmácias e drogarias sem apresentar prescrição médica, não obstante ser uma prática imprópria e ilegal. Essa é, de fato, uma das ilegalidades sanitárias que permanecem há décadas no Brasil. E o que se pode fazer para coibi-la? Uma importante medida seria garantir, na prática, que o farmacêutico esteja presente na farmácia em todo o período de funcionamento do estabelecimento, e que tenha total autonomia para rejeitar uma venda irregular de medicamento, imune à pressão comercial do dono do estabelecimento, como determina a legislação (Lei n° 13.021, de 08/08/2014, e Lei n° 5.991, de 17/12/1973). Outra medida seria cobrar desse profissional uma postura adequada. Se o farmacêutico dispensa ou permite a dispensação de medicamento tarjado sem a apresentação de receita, está cometendo uma infração sanitária e ao código de ética – portanto, pode ser denunciado ao Conselho Regional de Farmácia e ao órgão de vigilância sanitária local. Todavia, é importante que a sociedade colabore, não comprando medicamento tarjado sem a devida receita médica. É claro que isso pode ser difícil na prática, ao considerarmos a dificuldade de acesso dos cidadãos brasileiros a um atendimento médico ágil e efetivo e a deficiente educação em saúde. Que outras medidas seriam eficazes? O retorno dos medicamentos isentos de prescrição médica para
“Se o Estado atendesse às necessidades básicas dos cidadãos, tal prática seria menos incidente”
“É importante que a sociedade não colabore com isso e não compre remédios sem prescrição” trás do balcão. Uma proposta já manifesta pelo Conselho Federal de Farmácia foi a de que tais medicamentos fossem comercializados mediante prescrição farmacêutica, pois, embora sejam isentos de prescrição médica, também podem provocar danos, e o farmacêutico está apto a identificar a melhor conduta para o paciente que deseja se automedicar. Ainda com relação à aquisição de medicamento tarjado sem prescrição médica, permita-me uma comparação grosseira com o tráfico de drogas ou de artigos roubados. Se não houvesse quem comprasse e consumisse tais produtos, tais práticas seriam naturalmente inviabilizadas e menos incidentes. Se o Estado atendesse satisfatoriamente às necessidades básicas dos cidadãos, incluindo acesso aos cuidados em saúde, e os educasse sobre os danos potenciais da automedicação, muito provavelmente, tal prática seria menos incidente. Em tempos de acesso rápido e fácil à informação pela internet, a automedicação é inevitável, com o advento do “Dr. Google”? Que outros fatores estariam contribuindo para agravar essa prática? A automedicação é um fenômeno complexo, que requer análise cuidadosa. O acesso a tratamentos que venham a curar uma doença ou aliviar sintomas é uma questão de direito universal, de dignidade humana. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece a automedicação responsável (ou assistida) como razoável. Quando o Estado não garante atendimento integral e efetivo em saúde a seus cidadãos, é natural que busquem alternativas para minimizar seu sofrimento. Infelizmente, nesse contexto, essas pessoas se tornam vulneráveis a ofertas com forte componente
mercadológico e pouco compromisso com a cura e alívio dos pacientes. A indução imoral ao consumo de medicamentos, por meio de campanhas promocionais e publicidade, e o baixo nível de educação em saúde são fatores agravantes que levam à automedicação. Aumentar a fiscalização para coibir a venda sem receita de medicamentos e tornar a prescrição obrigatória em remédios de outras categorias são possíveis soluções? Se o sistema de saúde permanecer insuficiente, as pessoas desassistidas continuarão se automedicando de forma desmedida. A exigência de prescrição médica já ocorre para medicamentos como os analgésicos opioides, ansiolíticos, antidepressivos, entre outros, em razão do risco de causarem problemas psíquicos, inclusive dependência. Os antibióticos também passaram a ser controlados nos últimos anos, em razão da crescente resistência bacteriana. Apesar disso, ainda há relatos sobre a ocorrência de vendas ilegais desses medicamentos, por irresponsabilidade de prescritores e dispensadores, além da deficiência do sistema de fiscalização sanitária. É difícil acreditar em melhora desse contexto em curto prazo, mas me parece que, em longo prazo, isso é possível e razoável, considerando a tendência de melhoria do nível de escolaridade dos cidadãos (embora lento) e de aperfeiçoamento dos
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Profissional de saúde precisa se atualizar em fontes confiáveis
sistemas de regulação e de controle. Qual o papel do Cebrim e como se dá o relacionamento do órgão com os profissionais de saúde? O Centro Brasileiro de Informação sobre Medicamentos (Cebrim) é um órgão do Conselho Federal de Farmácia que tem como missão prover informações sobre medicamentos, fundamentadas nas melhores evidências científicas, aos profissionais de saúde, visando à promoção de práticas terapêuticas seguras, eficazes e de melhor custo-benefício à sociedade. Os médicos, farmacêuticos e enfermeiros podem encaminhar questionamentos ao Cebrim, por meio de formulário disponível na internet, mediante cadastro gratuito. E o sr. percebe um maior interesse, por parte dos profissionais de saúde, na procura por informações qualificadas sobre medicamentos, a julgar pelo movimento do próprio Cebrim? Estamos na era da informação. Não apenas os profissionais de saúde, mas praticamente todas as pessoas estão em busca constante de dados e informações para solucionar seus problemas cotidianos. Novas tecnologias são lançadas e milhares de artigos científicos são publicados a cada dia. O profissional de saúde que não se atualiza com base em boas fontes de informação se torna refém das pressões de mercado, que chegam por meio de propagandistas e do próprio paciente, o qual assiste programas de TV e lê artigos na internet e cada vez sabe mais sobre seus problemas, ainda que muitas vezes a partir de fontes enviesadas. Como o farmacêutico pode agir para
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conscientizar o paciente quanto aos riscos da automedicação? O farmacêutico deve orientar e sensibilizar os pacientes sobre os potenciais danos causados por medicamentos, especialmente quando esses são selecionados ou utilizados de forma imprópria, e sobre a importância de consultarem um médico ou farmacêutico antes de decidirem pelo uso de um medicamento por conta própria. O farmacêutico deve realizar uma avaliação completa da história clínica do paciente antes de dispensar um medicamento ou prescrever uma conduta não farmacológica ou um medicamento isento de prescrição médica. Quando necessário, deve encaminhar o paciente a um médico. E como é a atuação do CFF neste aspecto? Há campanhas ou outras iniciativas públicas ou não é este o papel da entidade? Embora o papel principal do CFF seja regulamentar e fiscalizar o exercício profissional dos farmacêuticos com o objetivo de proteger a sociedade (Lei n° 3.820, de 11/11/1960), o órgão também promove cursos de atualização e treinamentos para que os farmacêuticos melhor se qualifiquem para o exercício profissional. Além disso, contribui com a formação desses profissionais, em instância consultiva junto ao Ministério da Educação responsável pela definição do currículo das faculdades de farmácia e na aprovação de cursos de graduação e de especialização. A política dos genéricos, à medida que popularizou e barateou os medicamentos, influenciou de alguma forma no aspecto da automedicação? A política de genéricos é mundialmente aceita por sua efetivi-
dade em promover acesso aos medicamentos e os benefícios dele decorrentes. Teoricamente, considerando que os medicamentos genéricos não trazem nome de marca, deveriam ter o comércio menos influenciável por companhas publicitárias que focam principalmente na difusão de marcas. Todavia, a redução do preço e as pressões de mercado para venda de medicamentos de determinadas companhias produtoras de genéricos podem estimular maior consumo desses produtos. Em termos éticos, como evitar que o farmacêutico também acabe contribuindo para o problema ao prescrever informalmente algum medicamento a clientes que o procurem diretamente na farmácia, por não ter outro recurso a apelar? O farmacêutico pode prescrever medicamentos isentos de prescrição médica, mas isso não significa que sempre o fará. O farmacêutico deve ser capaz de diferenciar um problema autolimitado de saúde de uma doença que exige auxílio médico. Há limites para o tratamento sintomático. Há situações em que se recomenda apenas descanso, boa alimentação e hidratação,
“A automedicação sem orientação profissional pode aumentar o risco de ocorrência de eventos adversos” por exemplo; porém, há outras em que o paciente deve ser encaminhado imediatamente para um serviço de pronto atendimento. O farmacêutico deve saber seus limites de atuação e estar preparado para qualquer dessas condutas. Além de possíveis reações alérgicas e dependência, quais os maiores efeitos colaterais da automedicação? A automedicação sem orientação profissional apropriada pode aumentar o risco de ocorrência de eventos adversos previsíveis, como interações entre medicamentos, danos aos rins, fígado e estômago, entre tantos outros, a depender do medicamento, do perfil e da história clínica do paciente. Analgésicos e anti-inflamatórios, por exemplo, podem aliviar sinais e sintomas (febre, dor, inflamação) sem curar uma eventual infecção bacteriana subjacente. Assim, o paciente protela a visita ao médico e o início do tratamento da infecção com um antibacteriano apropriado. Uma infecção que inicialmente era simples pode se tornar grave.
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“O progresso é pensado não mais a partir do contexto de um desejo de corrida para a frente, mas em conexão com o esforço desesperado para se manter na corrida” Zygmunt Bauman
Em dia Inscrições abertas para o 12o Congresso Brasileiro de Bioética
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este ano, todos são convidados a participar do 12o Congresso Brasileiro de Bioética, que ocorre entre os dias 26 e 29 de setembro, em Recife, Pernambuco. Em paralelo, também será realizado o 4o Congresso Brasileiro de Bioética Clínica. Promovido pela Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), Conselho Federal de Medicina (CFM) e SBB – Regional Pernambuco, o evento traz como tema “Liberdades e Responsabilidades”. “Graças a uma política correta e assertiva da Sociedade Brasileira de Bioética e suas entidades parceiras, os congressos brasileiros de bioética e bioética clínica têm se
Projeto de Lei 200/2015 é aprovado no Senado Uma notícia infeliz no início do ano foi a aprovação pelo Senado do Projeto de Lei 200/2015 (PLS nº 200/2015), que modifica as regras existentes sobre pesquisas com seres humanos. Tal postura contraria a opinião majoritária da militância em prol dos direitos dos participantes dos estudos, 48
Pernambuco dará espaço para discussões bioéticas inserido entre os maiores e mais amplos eventos internacionais da área. Isso decorrente da visão de que as questões bioéticas se
dão em contexto complexo, plural e transdisciplinar, demandando espaços próximos da realidade, para obter as análises e proposições mais adequadas”, afirma Regina Parizi, presidente da SBB. O site para mais informações, submissão de resumos e inscrição já está disponível: www.cbbioetica.com.br. Na programação, estão previstas conferências como “Liberdades, responsabilidades e dignidade da pessoa”, além de mesas-redondas que discutirão temas variados como bioética, transexualidade, transgenitalização e finitude da vida. Até dia 30 de junho, sócios quites com a SBB têm preços de inscrição reduzidos.
pois, na prática, tira do âmbito da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) a análise dos projetos, diminuindo assim a atuação do Conselho Nacional de Saúde (CNS) na área. As alterações deixam ainda mais vulneráveis os voluntários, ao excluir a obrigação dos laboratórios ao fornecimento ilimitado das drogas pós-estudo – como acontece hoje, e conforme o respeitado em vários países do mundo – condicionando-a à disponibilização na rede pública. O projeto com as emendas sugeridas pelos senadores foi aprovado em decisão terminativa. Porém, segue agora para a análise da Câmara dos Deputados – o que significa que a luta continua. A presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), Regina Parizi, conclamou os ativistas a “manterem-se mobilizados”, no sentido de fazer contato com os deputados dos respectivos Estados, garantindo o controle social representado pela Conep/ CNS no campo das pesquisas no Brasil.
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