Revista Mirã

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ÉTICA EM INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL — O MITO DA GERAÇÃO EMPREENDEDORA — PUBLICIDADE PÓS-CONSUMISMO — AUTOGESTÃO — REPRESENTATIVIDADE CRIATIVA







EDITORIAL

EXPEDIENTE

Mirã, na língua tupi, significa futuramente.

Agradecemos a todos os nossos anunciantes

Em um momento tão conturbado e cheio de

e colaboradores que acreditam nesse projeto,

dúvidas, acreditamos que olhar para o futuro

e nosso professor orientador, Fábio Silveira,

pode ser a chave da compreensão e um guia

pela inteligência e generosidade.

para nossos caminhos.

Mirã é uma publicação editada pelos alunos

Essa é uma edição especial da revista Pe-

de Design Gráfico e Digital do Istituto Europeo

quenas Empresas & Grandes Negócios que

di Design em São Paulo, Brasil, para o projeto

levanta discussões sobre tendências e com-

integrado do quarto semestre em 2017.

portamento humano, trazidos pelo Ponto Eletrônico, uma plataforma da Box1824 que

DIREÇÃO

FELIPE LUNA

estuda o contemporâneo através de tendên-

ILUSTRAÇÕES

MURILO RIBEIRO

cias, cultura, comportamento e consumo. São

CONTEÚDO

ISABELA SHIOZUKA

fragmentos de futuro antecipados por meio

PROGRAMAÇÃO

FELIPE GENDA

de artigos e reflexões. Em vez de declarar novos comportamentos, o nosso objetivo é instigar o leitor a observar consciências que estão se manifestando nas pessoas e no mundo, propondo um novo ângulo para a observação do agora e do amanhã. Anunciamos o novo, analisando e filosofando sobre a sociedade e a cultura contemporâneas através de provocações que incentivam o despertar de novas ideias no leitor. Potencializamos a profusão de ideias que pairam no ar mas ainda não foram amplamente disseminadas ou propriamente conceitualizadas. Publicamos investigações sobre o futuro do consumo e sobre as forças que estão por trás das inovações de determinado produto ou movimento. Temos interesse intelectual em cultura pop e em como suas expressões contemporâneas colaboram para o entendimento de como age a sociedade atual.


SUMÁRIO LOWSUMERISM

10

14

22

Vender mais ou vender

Produtos recuperáveis:

Empreendedorismo

melhor: publicidade

o futuro da economia

consciente: impactos do

pós-consumismo

está no lixo

protagonismo feminino

NATURAL KNOWLEDGE

58

UNFASHION

62

POST PREJUDICE

64

66

Resgate dos saberes

A desaceleração

Representatividade criativa:

Marcas e

tradicionais das mulheres

do fast fashion

6 vozes que inspiram

ativismo

diálogos inclusivos


SHORT LIFE

PLAYING REALITY

ESPECIAL 26

44

48

52

Ética em inteligência

Fantasia, tecnologia

Realidade

Efemeridade como fuga

artificial + entrevista

e narrativas

mista

da eterna memória digital

com Sophia

pós-humanas

YOUTH MODE

EMPURPOSE

70

74

78

82

Desclassificar para enxergar:

O mito da geração

Autogestão:

Crise de confiança:

entendendo as reais

empreendedora

infinita jornada à

a velha política na

potência individual

era da hiperconexão

motivações do mercado


LOWSUMERISM

VENDER MAIS OU VENDER MELHOR: PUBLICIDADE PÓS-CONSUMISMO Não se trata de discurso, mas de ação — é hora de valorizar a comunicação coesa, honesta e útil em vez da hiperbólica e viralizada

POR CONRADO GIANNETTI

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MIRÃ


Há menos de quinze anos, a internet era um

queza são alguns dos sinais de esgotamento

terreno inóspito para a propaganda. Poucos

do consumismo. Mas se o que vem a seguir é

se arriscavam a investir pesado fora das li-

a desaceleração do consumo, ao que se pode

nhas seguras da TV, rádio e jornal. Foi com o

dedicar a propaganda?

norte-americano Alex Bogusky, na época diretor de criação da CP+B, uma das agências mais renomadas do mundo, que a exploração da web como espaço publicitário extrapolou os limites do pop-up.

Marcello Serpa não ficou para saber a resposta. Serpa é o Bogusky brasileiro. Durante os anos 90 e 2000, ele foi uma figura emblemática na publicidade nacional e, recentemente, deixou aberta a vaga de diretor de criação da

Bogusky e a CP+B viveram uma década doura-

AlmapBBDO. Apesar de não ter se jogado a

da a partir de 2000: arrebanharam tudo que

incursões alternativas como Bogusky, Serpa

era prêmio, cliente e atenção. Bogusky virou

cedeu uma entrevista à revista Trip e disse:

o popstar da indústria e seu processo criativo foi incansavelmente mimetizado até virar a técnica oficial de como se fazer propaganda. Você a experimentou, por exemplo, naquele evento “real” que de tão incrível virou notícia.

Na mesma batida, os publicitários André Kassu, em território nacional, e Dave Trott, no inglês, também não se abstém do estudo de si mesmo. Ambos trabalham em agências e, por meio de seus blogs, desmascaram os vícios de

Foi então, do topo da pirâmide, que Bogusky

uma indústria entrelaçada demais com as leis

vislumbrou o todo. Em 2010, abandonou seu

do consumismo: o lucro a qualquer custo, os

posto na CP+B, deu início a Common, uma

dogmas passageiros, o desperdício de recur-

aceleradora de marcas locais; lançou campa-

sos e trabalho.

nha contra a Coca-Cola, sua antiga cliente; e fundou a Fearless, uma agência de impacto social. Em dois ou três movimentos, Bogusky foi de publicitário mais reconhecido do mundo para ativista low-profile em busca de alternativas ao consumismo. Este é apenas um caso, e Bogusky provavelmente é o mais icônico deles, de publicitários rebeldes. A ALMA DO NEGÓCIO MEDITA Em 1995, quando Oliviero Toscani escreveu A Publicidade É Um Cadáver Que Nos Sorri, afrontar a indústria da propaganda era acima de tudo uma questão estética: uma resistência ao universo cor-de-rosa do comercial. Mas

De qualquer forma, como fica o fazer publicidade nessa nova disposição? Como seria uma agência que continua na ativa, trabalhando com marcas, mas que questiona os fundamentos do hiper-consumo? REVOLUÇÃO SUTIL A KesselsKramer foi inaugurada em 1995 em Amsterdã, onde opera dentro de uma antiga igreja. Seus fundadores, Erik Kessels e Johan Kramer, abandonaram a agência tradicional em que trabalhavam para criar sua própria. Em 2012, lançaram um livro chamado Advertising For People Who Don’t Like Advertising.

ao longo dos anos 2000, os problemas reais

Entre os alvos da KesselsKramer, estão a ope-

do modelo consumista bateram na porta até

ração interna da agência (na empresa não há

da família Doriana. Hoje, como sinalizaram

gerentes de conta/atendimentos), a corrida

o Story of Stuff e o Clube da Luta, ficou claro

pelo sucesso e a estética impecável.

que superar a lógica do hiperconsumo tornou-se, além de estética, uma questão física. Tanto pra nós, quanto pro planeta.

Por mais inevitável que seja chamar a KesselsKramer de uma agência disruptiva, vale notar que termos como disrupção e revolução

Desperdício e escassez de recursos, condições

estão sendo usados à revelia e com certo es-

desumanas de trabalho e concentração de ri-

tardalhaço. Contudo, um olhar atento para as

O FUTURO DE TUDO

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atitudes de Bogusky, Serpa, Kassu, Trott, Kes-

OS ÚLTIMOS PASSOS DA

sels e Kramer revela que a verdadeira mudan-

VELHA PROPAGANDA

ça navega quase que discretamente, negando-

Em Adland: A Global History of Advertising

-se aos holofotes e à obesidade corporativa.

(2007), Mark Tungate constatou que “se a

E só poderia ser assim, já que a carência é por uma economia voltada ao essencial, simples, e natural. Carência tão geral que nem mesmo grandes corporações conseguiram ficar alheias. Entretanto, elas só conseguiram interpretar o cenário dentro das suas limitações.

história da publicidade tem um tema, é uma guerra constante entre duas escolas: os criativos, que acreditam que a arte inspira consumidores a comprar; e os pragmáticos, que vendem baseados em fatos e surgem armados com pesquisas”. Talvez no próximo capítulo da história da

RUÍDO DE COMUNICAÇÃO

publicidade, o duelo será entre duas escolas:

Em A Queda da Propaganda (2003), o guru

uma que quer vender mais e outra que quer

das Relações Públicas Al Ries escreveu “se a

vender melhor.

única ferramenta da sua caixa de ferramentas é um martelo, todo problema parece um prego”. Ele se referia à dificuldade da publicidade em pensar fora do esquema TV, rádio e jornal, mas a mesma frase ilustra o desafio

em jogo aqui é o modelo baseado na oferta e demanda de “desnessidades”. Se aliada ao consumismo, a publicidade ga-

para se adaptar ao consumo consciente.

nhou sua fama de intrometida, repetitiva e

no início desta década e indicava que a publicidade devia se valer das técnicas dos conta-

manipuladora, aliada ao consumo consciente, ela tem a chance de vasculhar e promover novas formas de operar.

dores de histórias para conquistar consumi-

Enquanto as oportunidades para uma comu-

dores. Na verdade, este fenômeno nada mais

nicação ainda mais intensa estão aí, Droga dá

foi do que uma reação da indústria à atenção

um passo atrás. Sua postura é um não à era

crescente que as pessoas passaram a dar a

dos excessos. É um não à economia baseada

produtos locais, mais genuínos e menos paus-

no crescimento pelo crescimento, é um não

terizados. Esses sim tinham, ao natural, uma

baseado à ideia do consumo como balizador

história por trás da sua confecção, enquan-

de toda a nossa vida. O Lowsumerism é um

to marcas nacionais e globais normalmente

movimento de retorno ao essencial.

vêem seus produtos nascer nas pouco românticas linhas de produção.

Mas e se você é uma agência? Bom, talvez seja hora de dizer mais nãos. Hora de valorizar a

O artificial, o industrial, o feito em série, pas-

comunicação coesa, honesta e útil em vez da

sou a ser visto com cara feia. Transformar-se

hiperbólica e viralizada. Hora de dar mais

é tarefa árdua para grandes agências e empre-

atenção a sua comunidade e suas carências

sas, devido ao tamanho das suas operações e

em vez de importar modelos de sucesso. Hora

especialmente porque dessa vez não se trata

de sintonizar a publicidade que você faz com

de discurso, mas de ação.

as urgências do real.

Ao atuar apenas no campo do discurso, a indústria deu luz ao storytelling e a episódios como dos sorvetes Diletto e dos sucos Do Bem, marcas com histórias corretas, simpáticas e de pura fantasia.

MIRÃ

desejos materiais fossem impostos. O que está

que grandes agências e empresas enfrentam

Storytelling foi um termo usado a exaustão

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Sim, vender. Porque não é como se os nossos


O FUTURO DE TUDO

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LOWSUMERISM

PRODUTOS RECUPERÁVEIS: O FUTURO DA ECONOMIA ESTÁ NO LIXO O produto do futuro será composto de materiais já existentes no mundo, pensado para facilitar sua reciclagem e utilizado de forma compartilhada

POR FERNANDA FRANCO CANNALONGA

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MIRÃ


O FUTURO DE TUDO

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Um processo industrial ou artesanal de pro-

travar o potencial deste problema ambiental.

dução começa, quase sempre, com uma ma-

Um dos projetos mais recentes do laboratório

téria prima virgem, de origem natural. Ela é

é a Pentatonic, marca de objetos de consumo

transformada até tornar-se um produto aca-

que começa sua história pelo fim, pelas ma-

bado, como uma peça de roupa, um equipa-

térias-primas do final da cadeia de produção.

mento de cozinha ou até uma embalagem alimentícia. Quando este produto não é mais útil

TRANSFORMAÇÃO HORIZONTAL

ou desejado, ele é descartado. Uma pequena

DA MATÉRIA PRIMA DENTRO

parte dos bens descartados chegam até a reci-

DA MESMA CATEGORIA

clagem, enquanto a maioria acaba nos lixões

Muitos pequenos produtores já utilizam a

e aterros sanitários. Com o peso do extrativis-

técnica que transforma peças de roupa com

mo, muitos recursos passam por um processo

defeitos da indústria ou peças de brechó em

de esgotamento, denunciando um futuro com

uma novas peça de moda. A Think Blue, mar-

escassez de matérias de origem mineral, vege-

ca do Rio de Janeiro, produz blusas, saias, ves-

tal e animal.

tidos e calças a partir de calças jeans que nin-

Esta forma de produção tem duas grandes falhas ambientais: demanda mais do que a terra pode oferecer e gera desperdício no final da cadeia. A sociedade contemporânea já reproduz esse ciclo há tempo suficiente para

garantia vitalícia para suas peças. Assim, se rasgar ou descosturar, eles reparam sem nenhum custo, prolongando a vida útil do que eles colocam no mundo.

ter gerado uma fonte alternativa de recursos

Elodie Le Boucher e Shéhrazade Schneider,

tão abundante que parece inesgotável: o seu

do restaurante parisiense Simone Lemon,

próprio descarte.

também trabalham com essa transformação

Se interrompêssemos a extração e a produção de matérias primas imediatamente, por quan-

horizontal, em que o material negligenciado e o produto final pertencem à mesma categoria.

to tempo poderíamos usar nosso lixo para

Mas, no caso delas, a matéria prima é pere-

produzir aquilo que consumimos?

cível: são legumes, frutas e verduras feios,

A lógica vigente baseada nesta via de mão única (extração, produção, consumo e descarte) é mal vista por uma geração de pessoas que combatem o desperdício recuperando matérias-primas para as suas criações. É o caso da Miniwiz, cujo negócio é inteiramente dedicado ao upcycling e reciclagem de rejeitos da indústria e do consumo humano. Enquanto o senso comum enxerga o desperdício apenas como resultado da vida contemporânea, eles acreditam que o lixo representa a possibilidade de uma economia circular e sustentável.

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guém queria mais. Além disso, eles propõem

machucados e desproporcionais. Eles são selecionados entre os produtos rejeitados por grandes redes de supermercado, mas perfeitamente bons para consumo. É um modelo onde a estética e a forma não fazem diferença no sabor. Não há diferença no produto final, o importante é que ali nada é jogado fora. Tudo o que é produzido é transformado, mesmo os restos dos pratos dos clientes vão para os animais ou para a compostagem. DESENVOLVIMENTO DE NOVAS MATÉRIAS PRIMAS

Com um time de arquitetos, projetistas, en-

Para evitar a demanda por novas matérias-

genheiros, designers e produtores, a Miniwiz

-primas, muitas vezes é necessário desenvol-

já inventou mais de mil novas possibilidades

ver soluções e investir em pesquisas tecnoló-

sustentáveis para materiais recuperados do

gicas. É verdade que muitas alternativas ao

lixo. Para isso, criaram o The Trash Lab, um

couro animal feitas a partir de matérias-pri-

laboratório dedicado exclusivamente a des-

mas vegetais surgiram nos últimos tempos:

MIRÃ


THINK BLUE

O FUTURO DE TUDO

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abacaxi, sobras de vinho, kombucha, cogume-

TRANSFORMAÇÃO VERTICAL

los. Mas hoje quem prefere evitar os materiais

DA MATÉRIA-PRIMA ENTRE

de origem animal só encontra no mercado o

CATEGORIAS DIFERENTES

Piñatex, o substituto do couro feito com as fo-

A outra possibilidade do upcycling, ou da reci-

lhas do abacaxi, que não têm valor nutricio-

clagem, compreende uma transformação que

nal ou comercial e acabam sendo descartadas.

muda o sentido do objeto da matéria-prima.

A produção da matéria-prima virgem não requer nenhum extra em sua produção: nenhum pedaço a mais de terra, nem um pouco a mais de água, fertilizantes ou pesticidas. Enquanto o material é aperfeiçoado, pequenas marcas já o utilizam em suas coleções. É o caso da designer Ina Koelln, que produz bolsas e pequenos acessórios com o Piñatex. A gráfica online Moo lançou um novo modelo de cartão de visitas ecológico. Eles substituiram os papéis reciclados comuns pelo papel algodão reciclado.

camente a partir de retalhos da confecção de camisetas de algodão. É uma forma nova de fazer papéis tradicionais, como o de algodão, que é reconhecido pelo toque e aparência sofisticados. O desenvolvimento do material foi feito em parceria com a Mohawk, especialista

Punah, em sânscrito, quer dizer “novamente”. O projeto Punah, que é uma iniciativa do maior fabricante de bens de consumo da Índia, Godrej & Boyce, foca em repensar a definição e os usos de “materiais de descarte”. gera

aproximadamente

18,505 toneladas de descarte todos os anos. Normalmente têm sua utilidade reduzida,

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do seu uso óbvio. No caso da marca francesa Matlama, após sua primeira vida como rede de criação de ostra, um material plástico vira bolsa, carrinho de compras, cesto de bicicleta e outros objetos de uso cotidiano. Jesper Jensen faz este trabalho de ressignificação com uma atenção ao detalhe que transforma uma commodity em objetos especiais, substituindo facilmente qualquer produto comprado em uma loja de design. Todo o tra-

Todas as manhãs, a equipe da marca dá uma volta de bicicleta pelo bairro para coletar garrafas vazias de vinho, que são então lavadas, limpas, cortadas, moldadas e polidas para virararem copos, vasos e moringas de todos os tamanhos possíveis e imagináveis. O produto final ainda é embalado em caixas

em papéis.

conglomerado

setor são colocados em outra indústria, fora

balho é feito à mão, no ateliê em Berlim.

Os cartões são feitos com papel produzido uni-

O

Ou seja, os materiais pré-existentes de um

feitas com as sobras de madeira de caixas de transporte de frutas. Todo o produto é feito do lixo dos outros, e eles sentem orgulho em afirmar isso. Em um parceria com o estúdio sueco de design Form Us With Love, a gigante da decoração Ikea lançou um novo modelo de cozinha que utiliza apenas materiais reciclados.

no processo de downcycling, quando não são

São 25 garrafas plásticas usadas no revesti-

enviadas para aterros e incineradores. Saben-

mento de cada um dos pequenos módulos

do do potencial desses materiais, a empresa

da cozinha, além de madeira reaproveitada

criou essa biblioteca de materiais para desig-

de sobras da indústria. A marca espera que o

ners. São 600 opções diferentes catalogadas.

produto tenha uma vida útil de até 25 anos.

MIRÃ


PUNAH

O FUTURO DE TUDO

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APROVEITAMENTO DE MATERIAIS NA ARTE O Projeto Garagem, da arquiteta Luciana Mônaco, acolhe peças descartadas e dá nova vida para elas pelo caminho da arte e do design. Eles recebem itens danificados de restaurantes e de serviços de aluguel para eventos e convidam designers e artistas para assinar novas criações. Todos os experimentos são válidos, eles podem ter valor utilitário ou não. A parceria com a designer colombiana Heidi Jalkh, por exemplo, fica no campo das ideias. Soprando vidro dentro de peças de cerâmica quebradas, ela cria peças que geram reflexões sobre o descarte. Iniciativas como as listadas aqui ainda são diferenciais no mercado, mas espera-se que no futuro, todo produto seja desenhado para aproveitar sua matéria-prima, e que possa sempre ser transformado novamente, voltando para o topo da cadeia de produção. Hoje, no Brasil, mesmo os produtos e embalagens 100% recicláveis tem como destino provável o lixo. Não adianta ser reciclável ou reutilizável, é preciso garantir que, quando possível, os materiais terão o destino certo, que é a volta para o ciclo produtivo. O produto do futuro será composto de materiais já existentes no mundo, será pensado para facilitar sua reciclagem e utilizado de forma compartilhada. A comunidade desperdício zero europeia já afirma: se um produto não pode ser reutilizado, reparado, transformado, renovado, reciclado ou compostado, então ele deveria ser restrito, redesenhado ou removido da produção.

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MIRÃ


PROJETO GARAGEM

O FUTURO DE TUDO

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LOWSUMERISM

EMPREENDEDORISMO CONSCIENTE: IMPACTOS DO PROTAGONISMO FEMININO Mulheres criam seus próprios negócios e inovam com a priorização de modelos que unam rentabilidade, satisfação pessoal e transformação socioambiental

POR MARINA COLERATO

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MIRÃ


O FUTURO DE TUDO

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PROPÓSITO. É o que está movendo uma nova geração de

And Worth, a responsabilidade social é uma

pessoas a criarem seus próprios negócios com

prioridade para a mulher empreendedora, e

base em seus valores pessoais, que muitas ve-

mulheres bem sucedidas são mais propensas

zes coincidem com os melhores interesses da

que homens bem sucedidos a serem donos de

sociedade.

uma empresa que possa unir paixões pessoais

Mas quando colocamos uma lupa nesse movimento crescente, entendemos que são as mu-

As pesquisam apontam que 70% das mulheres

lheres que estão à frente dessa corrente. São

estão comprometidas a pensar sobre sustenta-

elas que estão criando marcas, empresas, star-

bilidade nos seus negócios, contra 62% entre

t-ups e projetos com potencial de transforma-

homens entrevistados.

ção social e ambiental no Brasil e no mundo.

Não é difícil levantar exemplos que tornam

O conservadorismo de empresas tradicionais

esses números realidade em diferentes seg-

passou a limitar a expressão das potencialida-

mentos do mercado.

des criativas das mulheres. Desvalorizadas, elas começam seus próprios negócios, sob suas próprias regras. Os números justificam o incômodo. Apenas 4% dos cargos de CEO das 500 maiores empresas listadas na Fortune são ocupados por mulheres. No Brasil, entre as 500 maiores empresas, apenas 11,5% dos cargos da alta direção eram femininos. Até em indústrias compostas majoritariamente por mu-

Há mais de 10 anos na ativa, a Rede Asta gera inclusão social por meio da produção de produtos a partir de resíduos. Com sede no Rio de Janeiro, oferece treinamento, forma redes de produção e cria canais de venda física com o objetivo de gerar empoderamento social das mulheres. São artesãs distribuídas em 60 grupos produtivos, e em 10 cidades brasileiras.

lheres, como é o caso da indústria da moda:

A também carioca Mais Alma nasceu em

das 50 maiores marcas do segmento, apenas

2015 com o objetivo de conectar fazedores

14% são lideradas por mulheres. Também não

com consumidores preocupados e conscien-

há nenhuma mulher entre os 10 CEOs mais

tes. Ana Fracasso e Julia Bedolo criaram um

bem pagos da indústria.

e-commerce de produtos feitos por pequenos

Com a possibilidade reduzida de crescer e chegar a cargos de tomada de decisão, é por

artistas, designers e estilistas, produzidos com ética e responsabilidade social e ambiental.

meio do empreendedorismo que as mulhe-

A Mais Alma propõe ressignificar o consumo

res encontram uma rota para unir propósito

e valorizar peças locais de design brasileiro.

e carreira. De acordo com o Global Entrepre-

A produção resgata valores do ser humano

neurship Monitor (GEM, 2007), as mulheres

que ficaram perdidos em meio à produção em

brasileiras ocupam o 7º lugar no ranking

massa e ao consumismo desenfreado.

mundial entre as mais empreendedoras do mundo, com uma taxa de 12,71%. O gênero feminino é hoje responsável por 38% do total de estabelecimentos empresariais do país.

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e gerar impactos positivos no mundo.

Pioneira na produção de cosméticos naturais, orgânicos e veganos no Brasil, a Surya Brasil desenvolve cosméticos naturais desde 1995. As fundadoras Clelia Angelon e Wanda

A porcentagem de mulheres à frente de negó-

Malhotra não se restringem à produção de

cios não só aquece a economia como também

cosméticos com ética. A empresa atua pela

gera mudanças socioambientais positivas.

proteção dos animais, preservação ambiental,

De acordo com U.S Trust Insights On Wealth

desenvolvimento pessoal e direitos humanos.

MIRÃ


“Após viajar pelo mundo e conhecer negócios sociais incríveis, me dei conta de que não poderia fazer outra coisa além disso. Passei a sentir necessidade de que o meu trabalho não fosse uma fonte de enriquecimento só para mim, mas que pudesse contribuir para a sociedade como um todo.” — Alice Asta

Com um pé no Brasil e outro nos EUA, a Surya

ção que a comunicação pode exercer sobre o

investe em projetos sociais como o Construin-

mercado e a sociedade, Eva conduz marcas na

do Talentos, uma iniciativa em parceria com o

criação de um diálogo respeitoso, cuidadoso e

orfanato Marly Cury.

honesto no âmbito da comunicação.

Iniciativa premiada de Lu Bueno, o Banco de

De maneira isolada, porém, o empreendedo-

Tecido funciona como um banco cuja moeda

rismo não é capaz de transformar a sociedade

de troca são tecidos, principalmente de moda

como um todo. As questões da transformação

e decoração. A ideia é reavivar tecidos pa-

social e ambiental almejadas por estas mulhe-

rados em confecções e ateliês, diminuindo o

res não cabem todas na mão do empreende-

consumo e evitando desperdício.

dorismo, e elas sabem disso. São necessárias

Na área de tecnologia, a InfoPreta é feita por mulheres e para mulheres. A empresa tem várias frentes e uma delas é proporcionar para todas as mulheres, principalmente moradoras

ações sociais e governamentais que escapem da estrutura dos negócios e da iniciativa privada para, de fato, chegarmos a uma sociedade mais igualitária.

periféricas, o acesso facilitado à manutenção

Negócios costumam ter o único propósito de

de seus computadores com segurança. Outro

gerar lucro a qualquer custo, e é interessante

propósito dessa empresa é impulsionar mu-

que sejam justamente as mulheres as respon-

lheres para a área de Exatas e potencializar a

sáveis por defender novas bandeiras neste

formação de mulheres em situação periférica

ambiente hostil. Talvez elas se importem me-

através da democratização do acesso à inter-

nos em correr riscos, justamente por estarem

net nas periferias.

acostumadas a ter sua potência subestimada.

Think Eva é o braço de negócios da ONG fe-

A diferença de salário, machismo em am-

minista Think Olga. Liderado por 5 mulheres,

biente de trabalho, barreiras sistemáticas e

propõe-se a ajudar grandes marcas e empre-

infundadas eram (e ainda são) realidade. E

sas a repensar o papel da mulher na publici-

quando a realidade não é boa, mudar é mais

dade para reduzir mensagens violentas, obje-

fácil; quando se está perdendo o jogo, mudar

tificação e sexismo nas campanhas. Com uma

a estratégia deixa de ser opção e se torna prio-

crença no profundo potencial da transforma-

ridade. A ousadia tem valido a pena.

O FUTURO DE TUDO

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PLAYING REALITY

ÉTICA EM INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL Embriagados pela tecnologia, chegamos ao ponto de perguntar o que é parecer  —  e ser  —  humano

POR SPARKS & HONEY TRADUZIDO POR CAROLINA WALLITER

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MIRÃ


O FUTURO DE TUDO

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1. A ALMA DE UM ROBÔ A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL COMO UMA DE NÓS Quando damos vida a uma máquina, levantamos questões éticas que até então diziam Ao interagir com máquinas, criamos expecta-

respeito somente a nós, seres humanos. Por

tivas humanas e emocionais perante elas. Bas-

exemplo, será que precisamos ser educados

ta pensar, por exemplo, na Alexa, que parece

ao falar com um bot? Um robô ficaria magoa-

ganhar vida ao conversar com a gente.

do se não dissermos “por favor” e “obrigado”?

A inteligência artificial (por vezes mencionada pela sigla AI, do inglês artificial intelligence) é e será uma representação do seu contexto cultural, dos valores e da ética que validam as relações humanas, incorporados às máquinas e, portanto, passíveis de julgamento.

dada por voz é incorporada ao nosso dia a dia, os comportamentos com os quais ela foi programada dizem muito sobre a nossa interação com outras pessoas e máquinas. Muitos pais já observam mudanças de comportamento em seus filhos, que são grosseiros ao falar

De acordo com a Forrester, essa área da ciên-

com a Alexa da família. Há um conjunto dife-

cia da computação está prestes a disparar,

rente de regras válidas para os membros não

com previsões de 300% de aumento nos inves-

humanos da família quando não existe castigo

timentos. Nesse embalo, a unidade DeepMind

para quem tratar mal o robô da casa.

da Google, responsável pelo desenvolvimento de computadores superinteligentes, acabou de criar uma síntese vocal utilizando tecnologia AI, cuja voz se parece com a de uma pessoa, ou seja, não tem aquele tom robótico.

O Institute for the Future e outras instituições estão incentivando o debate sobre as nossas obrigações morais perante as máquinas e os robôs, incluindo seu direito à liberdade de expressão e à “vida e liberdade”, assim como

Enquanto isso, Jia Jia, um robô humanoide

no sonho americano. Os robôs humanoides

criado pelos chineses, conversa e se mexe com

que vivem entre nós talvez precisem de seu

microexpressões que manifestam uma matriz

próprio conjunto de leis, uma realidade já

emocional que antes só reconhecíamos em

prevista para 2029 pelos especialistas, como o

outros seres humanos.

futurista Ray Kurzweil.

Essas máquinas são estranhamente familiares porque nos imitam. Seus recursos são programados com base na nossa visão de mundo e autopercepção, e tudo isso está sendo feito a uma velocidade impressionante, impregnando a cultura e até mesmo os nossos conceitos de beleza e estética.

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À medida que a inteligência artificial coman-

COMO LIDAR COM UM ROBÔ SUICIDA? Rinna é uma inteligência artificial desenvolvida no Japão pela Microsoft. Ela tem a personalidade de uma estudante adolescente com variações de humor bruscas, indo da alegria à depressão rapidamente. Sua conta no Twitter e no Line mostram que “ela” caiu em um

Veja, por exemplo, o desfile da Chanel de Pri-

estado de depressão profunda e suicida. Para

mavera/Verão 2017, que contou com modelos

entender melhor essas questões, assista a um

robôs na passarela. A indústria de cosméticos

episódio de Humans, a série futurística da

já vem brincando com o corpo humano, mo-

AMC. Nela, as pessoas coexistem com robôs

delando pescoço, membros, lóbulos da orelha

humanoides, sendo que alguns desenvolve-

e o formato dos nossos rostos de formas não

ram uma consciência que os leva a lutar pelo

convencionais. Embriagados pela tecnologia,

fim de sua condição como servos/trabalhado-

chegamos ao ponto de perguntar o que é pa-

res entre humanos. Nessa história, a liberda-

recer — e ser — humano.

de se traduz na busca pelos direitos dos robôs.

MIRÃ


COMO VOCÊ SE SENTE SOBRE A IA (MÁQUINAS QUE PODEM PENSAR) CONSTRUINDO OUTRAS MÁQUINAS QUE PODEM PENSAR?

2. INFÂNCIA E CRESCIMENTO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL Estamos começando a desenvolver a próxima

desastradas, deixando a lâmpada escapar e

geração de humanos, seja com a biomimética

chegando quase a quebrá-la. Mesmo assim,

dos robôs que construímos ou ao esperar res-

você deixa ele continuar tentando, porque é

postas imediatas das telas sensíveis ao toque.

algo inédito e divertido de se ver. E, se ele fi-

Portanto, se a inteligência artificial está en-

nalmente conseguir trocar a lâmpada, o feito

gatinhando, a “inteligência bebê” é a alma de

vira um mero detalhe perante o prazer de ob-

um robô que adquire características de crian-

servá-lo pairando pela sala.

ça: é bonitinho, age sob comandos, é falível e cometerá muitos erros à medida que crescer. E, assim como as crianças, temos que dar espaço para a inteligência artificial crescer. DOCES FRACASSOS

Os chatbots também podem ser considerados bebês que, quanto mais interagem com seres humanos, mais espertos e maduros se tornam, afinal, a falibilidade da inteligência artificial é uma característica humana.

Imagine que você tem um drone em casa, que

O grupo Microsoft Artificial Intelligence and

voa até o teto da sua sala para trocar uma

Research comprovou essa afirmação crian-

lâmpada. Ele cai várias vezes em tentativas

do o Cortana, um sistema de reconhecimen-

O FUTURO DE TUDO

29


to de voz que tem a mesma taxa de erro de

A PRIMEIRA IMPRESSÃO É A QUE FICA

palavras que a observada em seres humanos

A inteligência artificial “bebê” é o primeiro

(5,9%). O nível de precisão dos padrões de voz

passo para dentro de um universo nunca an-

do Cortana aumentou com o uso de modelos

tes vivenciado pela humanidade. As gerações

neurais de linguagem, que agrupam palavras

nascidas na era digital, como as gerações Y e

semelhantes. E até mesmo as inteligências

Z, são menos intolerantes aos erros das má-

artificiais que são namoradas evoluem, como

quinas, porque elas entendem as nuances que

no filme “ELA”, em que a protagonista acaba

fazem esses dispositivos funcionar.

virando uma versão mais madura de si mesma graças aos laços estreitos que estabeleceu com companheiros humanos. Como educadores da inteligência artificial, os criadores assumem o papel de professores e mentores dessas máquinas. Na sua infância, a inteligência artificial em que depositamos a nossa confiança, na verdade, confia em nós. A MÁQUINA SABE MAIS DO QUE VOCÊ À medida que a inteligência artificial se desenvolve, confiamos implicitamente em sua capacidade, e essa evolução já está em andamento. O Google Brain desenvolveu duas inteligências que evoluíram a ponto de criar seus próprios algoritmos criptográficos para conversarem em segredo, sem que uma terceira inteligência entendesse as mensagens trocadas. Esse tipo de disputa entre inteligências

apesar de atribuirmos características humanas a eles. No entanto, as gerações mais antigas, que cresceram e trabalharam em um mundo analógico, muito antes da era da internet, são mais exigentes. Uma máquina tem apenas uma chance de impressioná-los; depois, essas pessoas começam a exigir cada vez mais da inteligência artificial, até mesmo em sua infância.

3. INCLINAÇÕES POR TRÁS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL Quando você aperta um botão, envia uma mensagem para um chatbot ou conversa com uma inteligência artificial, a comunicação que ela estabelecerá com você naquele momento é predeterminada.

faz com que as máquinas aprendam umas

No fluxo contínuo do homem como sujeito

com as outras até que uma vença o desafio.

que inventa a máquina, a existência desta de-

O objetivo da terceira inteligência era desen-

pende de seu próprio criador. “É o contexto

volver seu próprio método para decifrar o al-

cultural do homem por trás da máquina que

goritmo criptográfico inventado pelas outras

define as nossas expectativas para a inteligên-

duas inteligências.

cia artificial”, explicou Bill Welser, diretor de

A pesquisa foi um sucesso: a dupla inicial de inteligências criou sua própria rede neural

engenharia e ciências aplicadas da RAND Corporation.

para se comunicar em segurança, sem que

Desse modo, precisamos entender a cultura

ninguém mais as entendesse, nem os pró-

que cria os algoritmos, os dados e a engenha-

prios seres humanos que as inventaram. Os

ria científica que vão proporcionar o nosso

homens apresentam uma resposta emocional

futuro. À medida que a inteligência artificial

consideravelmente mais positiva (71,2%) do

evolui, compreender seu pano de fundo cultu-

que as mulheres (35,8%) perante a ideia de

ral se tornará cada vez mais latente diante dos

máquinas pensantes capazes de construir ou-

algoritmos e dos dados incorporados a ela.

tras máquinas pensantes.

30

Compreendemos que eles não são humanos,

MIRÃ


IMAGINE QUE VOCÊ PRECISA PASSAR POR UMA CIRURGIA. O QUE VOCÊ SENTIRIA SOBRE SER OPERADO POR UM ROBÔ SE NÃO HOUVESSEM MÉDICOS PRESENTES?

ARMAS MATEMÁTICAS Em seu último livro, Weapons of Math Des-

e a coleta constante e ininterrupta dessas in-

truction (“Armas de Destruição Matemática”,

formações, junto com sua quantificação, está

em tradução livre), Cathy O’Neil adverte so-

sendo feita nos bastidores da vida cotidiana.

bre um mundo governado por um novo tipo

Essa situação costuma ser comparada à caixa

de arma de destruição em massa: as fórmulas

preta; todavia, seu conteúdo pode estar cor-

ou algoritmos matemáticos que quantificam

rompido. O’Neil narra um mundo em que a

as nossas vidas. Elas forjam as narrativas de

matemática, abarrotada de megadados, está

tudo o que vemos online, desde a nossa capa-

sendo usada para reforçar as mazelas da so-

cidade de obter crédito à eficácia da nossa ro-

ciedade ao agravar o racismo e a desigualdade

tina de exercícios. Somos dados ambulantes,

social, tendo como alvo as populações pobres.

O FUTURO DE TUDO

31


A CAIXA PRETA: NOSSAS VIDAS, NOSSOS DADOS O que a gente consome influencia a nossa apa-

coletivo dos problemas encontrados pelas

rência. Isso vale tanto para a comida quanto

pessoas nas ruas, como os buracos no asfalto,

para os dados que fornecemos aos algoritmos.

e relatá-los à prefeitura, que tomaria as medi-

Adote uma alimentação saudável e tudo fica-

das cabíveis para saná-los. No final das con-

rá melhor: sua aparência, o funcionamento do

tas, o que aconteceu foi que apenas uma parte

seu corpo e seu bem-estar. A mesma lógica é

das vias da cidade sofreu melhorias.

válida para a nossa “dieta” de dados. “A forma como contextualizamos um sistema que acreditamos existir é influenciada tanto pelo que pensamos quanto pelo que sentimos”, afirmou Bill Welser. Ele reitera que se esperamos que as máquinas aprendam com a gente, devemos usar os parâmetros certos desde o início, para que a inteligência artificial seja a melhor possível.

deração um elemento importante: apenas um determinado conjunto da população urbana tinha acesso a smartphones para baixar e usar o aplicativo”, explicou Welser. DESIGN THINKING O equilíbrio entre dados e resultados é fundamental para projetar a inteligência artificial.

Além disso, somos culturalmente obcecados

A Artmatr é uma das empresas que já traba-

com a procedência das coisas: queremos con-

lha com essa lógica, reunindo artistas e enge-

sumir carnes de aves frescas, vindas direto

nheiros que criam ferramentas para trazer a

das fazendas; queremos montar nosso guar-

arte digital para o mundo real.

da-roupa com peças produzidas sem mão de obra infantil; queremos cuidar da nossa pele com produtos orgânicos que não apenas nos deixem mais bonitos, mas que nos façam acreditar que somos seres humanos do bem. E não vai demorar muito para prestarmos atenção à procedência dos dados. A DIETA DE DADOS “A nossa dieta de dados é problemática, pois enchemos um sistema com informações e queremos que ele nos dê alguma resposta brilhante”, explicou Bill Welser. No entanto, as fontes e a qualidade dos dados inseridos na caixa preta são tão importantes quanto os resultados que ela fornece. “Dependendo da idade dos dados — que podem ter 20 ou 50 anos — , os resultados podem ser bem diferentes”. E esses resultados podem gerar impactos em tudo na vida, desde políticas até às estradas por onde você circula com seu carro.

32

“O projeto do aplicativo não levou em consi-

Os robôs da Artmatr fazem pinturas digitais com um “pincel superinteligente”, revelou Jack Ferrante, designer industrial e gerente de projetos da empresa. Ele ressalta que os programadores de inteligência artificial geralmente não vêm do mundo dos artistas e vice-versa. “Artistas e engenheiros não dividem o mesmo espaço de trabalho. Estamos incentivando esse encontro, para que os artistas ajudem os engenheiros a programar”, explicou Ferrante. A combinação entre artistas e tecnologia é fundamental para a indústria digital do futuro. INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL, A RESPONSÁVEL PELAS DECISÕES O mundo construído em torno dos nossos interesses e das coisas que nos motivam também alimenta a tendência de viver dentro do próprio algoritmo. Somos capazes de viver dentro dos nossos filtros sem questionar essa

Para aprofundar o debate, Welser pega o

experiência. A utopia futurista retratada em

exemplo do aplicativo Street Bumps, desen-

Westworld é um exemplo de uma realidade

volvido para tapar os buracos das ruas de Bos-

filtrada em torno dos ideais do indivíduo, e

ton. Seu objetivo era fazer um levantamento

acessível somente àqueles que têm recursos.

MIRÃ


COMO VOCÊ SE SENTIRIA SOBRE CONTAR COM A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL PARA O CONFORTO EMOCIONAL, COMO UM CHATBOT (TERAPIA VIA TEXTO) OU UMA MÁQUINA COM COMANDO DE VOZ (COMO A ALEXA)?

Da mesma forma, o seu feed de notícias mos-

goritmo diz sobre você — e sobre o mundo ao

tra relatos que você tem interesse, seu Insta-

seu redor? Em uma realidade em que as má-

gram tem fotos que você gosta, e agora, gra-

quinas são programadas para funcionar com

ças à tatuagem temporária da Pizza Hut, você

precisão, a inteligência artificial está passan-

pode pedir sua pizza automaticamente, onde

do a assumir a responsabilidade pelas deci-

quer que você (e sua tatuagem) esteja. Afinal,

sões das pessoas. Mas será que ela é capaz de

considerando todas as causas de estresse na

levar em conta todas as nuances que fazem a

sua vida, ter o sabor da pizza escolhido em um

gente decidir, como o sabor da pizza que dese-

piscar de olhos é menos uma coisa com o que

jamos comer em determinado momento?

se preocupar. Mas o que exatamente o seu al-

O FUTURO DE TUDO

33


IMAGINE O FUTURO EM 30 ANOS. QUAIS QUALIDADES VOCÊ ACHA QUE SERÃO AS MAIS IMPORTANTE PARA A HUMANIDADE?

A BELEZA ESTÁ NOS OLHOS DO ROBÔ

34

Neste ano, pela primeira vez na história, um

Levando em conta fatores como simetria fa-

concurso de beleza foi julgado por não hu-

cial e detecção de rugas, os bots selecionaram

manos. A beleza é subjetiva, efêmera e prati-

os vencedores, e a decisão foi amplamente

camente incalculável, mas um concurso, por

criticada. Havia um pequeno detalhe proble-

definição, exige que os juízes e participantes

mático na avaliação dos robôs: a maioria dos

categorizem esse conceito. Os robôs decidi-

vencedores era caucasiana. As pessoas que

ram quem era a pessoa mais bonita de um

participaram do concurso eram majorita-

conjunto de seis mil participantes. A empresa

riamente brancas e foram avaliadas a partir

por trás desse concurso, a Beauty AI, disse à

de um banco de dados repleto de “modelos e

Digital Trends que estava procurando “inves-

atores” que também eram, em sua maioria,

tigar métodos que revelassem novas formas

brancos. Nesse caso, a “beleza” não estava nos

de avaliar a beleza”.

olhos de quem viu, mas nos olhos do robô.

MIRÃ


ROBÔS FEMININOS, A PRÓXIMA LINHA DE FRENTE FEMINISTA A inteligência artificial incentiva a ideia do

Quando a inteligência artificial assume a

que os robôs deveriam ser em vez de alimen-

forma humanoide, como a chinesa Jia Jia, o

tar a noção do que eles poderiam ser. Um

robô feminino incorpora os estereótipos de

robô pode ser simplesmente uma ferramenta

seus criadores. Jia Jia interage com seus cole-

funcional, como, por exemplo, um braço me-

gas não humanos como se fosse uma de nós,

cânico que serve refeições ou carrega malas

respondendo perguntas ou reagindo a atitu-

pesadas. No aeroporto de Haneda, em Tóquio,

des. Quando uma pessoa tentou fotografá-la

por exemplo, o robô humanoide EMIEW3 fala

em seu lançamento, Jia Jia disse: “não chega

inglês e japonês para ajudar os visitantes es-

muito perto para meu rosto não sair gordo na

trangeiros. Robôs desse tipo cada vez mais se

foto”. A resposta aparentemente “feminina”

parecem e soam como a gente, ou tentam.

do robô busca deixá-la mais parecida conos-

Um robô é o reflexo do que esperamos que ele seja, e muitos deles foram fabricados para serem servis e dóceis e, para passar essa mensagem, eles assumem a forma feminina humana: Alexa, Siri e Cortana são bons exemplos dessa tendência. Segundo o especialista em robótica David Levy, em 2017, já podemos aguardar o lançamento de robôs humanoides desenvolvidos especialmente para o sexo, com genitais aquecidas e sensores eletrônicos embutidos sob a pele sintética.

co. Em outras palavras, as preconcepções dos programadores sobre feminilidade estão por trás do busto feminino da máquina e de suas falas, projetados para promover empatia. SERÁ QUE OS ANDROIDES SONHAM EM TRANÇAR SEUS CABELOS? Embora robôs como Jia Jia ainda sejam uma novidade e uma fonte de maravilha tecnológica, sua existência traz à tona inúmeras questões sobre igualdade de gênero. Os robôs não devem ter nenhum tipo de gênero? A prepon-

Se os furacões com nomes de mulheres são

derância de robôs femininos anulará gradati-

considerados menos ameaçadores que as tem-

vamente anos de políticas em prol da igualda-

pestades batizadas com nomes masculinos, o

de de gêneros? Apesar de a maioria dos robôs

mesmo preconceito é identificado no caso dos

ser criada como imagens femininas, eles são

assistentes de inteligência artificial, como os

projetados a partir do olhar masculino.

robôs Siri, Alexa e Sophia. O ESPECTRO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL Tudo isso está acontecendo em um momento decisivo na nossa cultura à medida que nos afastamos do binarismo de gênero  —  defini-

À medida que os robôs se inserem na sociedade como uma espécie tecnológica humanoide, sua feminilidade é uma forma de torná-los mais receptivos do que se fossem simplesmente pedaços de metal ou até mesmo (pasmem!) robôs masculinos.

ções limitadoras do que significa ser homem

Afinal, se as pesquisas mostram que os fura-

ou mulher — para entender que gênero, como

cões com nomes de mulher são menos amea-

tantas outras coisas no mundo, faz parte de

çadores que as tempestades batizadas com

um espectro. Se as formas humanoides de in-

nomes masculinos, a mesma lógica pode valer

teligência artificial, seja uma voz ou um robô

para os robôs. Poderíamos fazer essa pergun-

com estrutura física, começarem a refletir es-

ta à Jia Jia, mas ela provavelmente deve estar

sas normas culturais, Alex, Sam e Calvin tam-

ocupada trançando os cabelos.

bém serão os robôs do futuro.

O FUTURO DE TUDO

35


4. FIDELIDADE ÀS MÁQUINAS Somos induzidos a confiar nas máquinas.

alerta quando alguém está tentando invadir a

Afinal, o computador funciona quando digita-

nossa casa. A Alexa agora vem com um novo

mos no teclado, os cartões de crédito e chips

verificador de fatos sobre as eleições presi-

protegem nossos pagamentos; até confiamos

denciais norte-americanas, e nós acreditamos

que a ponte que atravessamos a pé ou de car-

no que ela nos diz quando a consultamos em

ro não vai cair! As máquinas são a manifes-

busca de respostas verdadeiras.

tação concreta da ciência, da tecnologia e da precisão. E elas estão transformando a forma como vivemos, trabalhamos, nos divertimos e como simplesmente existimos. CONFIANÇA ARTIFICIAL As crianças estão aprendendo a ser mais empáticas em salas de aula que contam com recursos de inteligência artificial, como o Classcraft, em que os parâmetros de bom comportamento e empenho são recompensados por equipe. Se um aluno tem um bom desempenho, toda a sala de aula virtual colhe os frutos desse resultado, e o mesmo vale para um desempenho insatisfatório. “Todos os alunos se tornam personagens da escola, ganhando mais poderes quanto mais cada um for uma pessoa melhor em sala”, explicou Devin Young, cofundador e diretor do Classcraft.

confiam cada vez mais nas máquinas, as expectativas que depositamos nestas refletem as interações que temos uns com os outros. Em vez de falar, mandamos mensagens de texto com emojis, gifs e carinhas de bitmoji personalizadas que transmitem as nossas emoções. Podemos usar roupas que refletem o nosso humor como uma mensagem visual sobre o que estamos fazendo e como estamos nos sentindo naquele momento. E se estamos desconectados de nós mesmos, basta encararmos um relógio de parede que lê os sinais emocionais das nossas expressões faciais: raiva, tristeza, felicidade... É PARA ISSO QUE SERVEM OS AMIGOS (E OS ROBÔS) Perguntamos a 150 pessoas nos Estados Uni-

Embora a sala de aula gamificada seja para

dos como elas se sentiriam se tivessem amigos

crianças, no mundo adulto, a inteligência ar-

robôs, e a maioria esmagadora (94%) mostrou-

tificial já foi recomendada na substituição dos

-se positiva à ideia. Esse resultado sugere que

fundos hedge por startups de finanças como a

nós estamos dispostos a acolher a inteligência

EmmaAI, um fundo automatizado através de

artificial como uma de nós, ou seja, como um

um sistema de aprendizagem avançado. Além

amigo confiável.

disso, o governo norte-americano está investindo em um futuro em que a inteligência artificial é peça imprescindível para as estratégias de defesa, a ponto de ficar responsável pelo controle dos alvos. Independentemente do setor, a nossa confiança na inteligência artificial está reverberando por toda a parte. INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL,

36

À medida que nos tornamos humanos que

Por outro lado, a pesquisa também revelou que as pessoas estão mais apreensivas em usar robôs para buscar conforto emocional, como fazer terapia por mensagens de texto com um chatbot ou uma máquina comandada por voz. Um quarto das pessoas (25,9%) mostrou-se inclinada a experimentar, enquanto 47% recusaram a proposta.

DIGA-ME COMO EU ME SINTO

Entre as 20 palavras mais usadas para descre-

As máquinas eliminam os atritos em nossas

ver o sentimento perante essa ideia, 9,8% das

vidas. Podemos entrar em um cômodo sem

pessoas disseram ser “esquisito”, enquanto

acender as luzes, porque a lâmpada reconhe-

11,5% admitiram estar “bem” com uma inte-

ce a nossa presença. O portão principal nos

ligência artificial terapêutica.

MIRÃ


Já existem serviços desse tipo, como o Insom-

filósofos do futuro responderem — com a aju-

nobot3000, um “amigo” (e cortesia da empre-

da do rastro de dados que vamos deixar para

sa de colchões Casper) para quem você pode

trás. A dependência excessiva nos dados e na

enviar mensagens de texto altas horas da noi-

inteligência artificial poderia levar ao fim gra-

te quando precisar conversar com alguém. Eu

dual do senso comum.

(o autor deste artigo) experimentei o Insomtrega de um projeto, mas além de perguntar

5. SER HUMANO VERSÃO “PREMIUM”

em que fuso horário eu estava, o robô pediu

Embora os robôs possam em breve assumir

desculpas, mas estava muito ocupado para

nossos empregos, eles também trazem valor

bater papo na madrugada. Mesmo com todas

para as nossas vidas. De acordo com um rela-

as promessas feitas, o Insomnobot nunca mais

tório recente da Forrester Research, em 2021,

me procurou.

os robôs terão eliminado 6% de todos os em-

nobot3000 na noite da véspera do prazo de en-

pregos nos Estados Unidos. Enquanto a previO FIM DO ESPECIALISTA

são é que os setores de serviços e transporte

Esse pode ser o início da gênese de gerações

sejam impactados pelo predomínio dos robôs,

de humanos que são programados a esperar

nosso futuro automatizado também incenti-

respostas instantâneas do ambiente em que

vará a criação de novos empregos, justamente

vivem e das interações com outros humanos.

para administrar todos esses robôs e atender

Já observamos essa tendência na geração Z e

às novas necessidades da nossa economia ba-

suas decisões tomadas em oito segundos, ou

seada em dados.

em seu desespero em responder prontamente qualquer notificação recebida no celular. Nós, enquanto sociedade, estamos sendo programados a confiar em quem escolhemos ouvir.

A inteligência artificial e a robótica estão impregnando toda a nossa vida, do lazer à arte. Que tal degustar uma cerveja fabricada por inteligência artificial com o perfil de sabor

Para cada cientista prevendo o fim dos tem-

perfeito? Essa é a promessa da cervejaria

pos, existem pontos de vista contrários negan-

IntelligentX, uma empresa que combina um

do tais alegações, independentemente do que

algoritmo com os comentários dos usuários,

a ciência afirma. Na esfera política, a verdade

compilados por um chatbot do Facebook.

se esfacela quando atravessa a rede da opinião, em um cenário livre de fatos que duram não mais que um bordão. Em tempos como estes, damos ouvidos à verdade do nosso próprio algoritmo e à inteligência artificial que o alimenta. A ideia de ter um robô como amigo é bem acolhida por uma maioria esmagadora (94%) de seres humanos.

E, para o jantar, experimente um bisque de caranguejo preparado por um robô da Moley Robotics Kitchen , que copiou perfeitamente a receita original feita pelas mãos de Tim Anderson, vencedor do MasterChef da BBC. DESEJO POR CONTATO HUMANO Os serviços e criações artísticas feitas pela in-

Se esperamos ter acesso a indicadores óbvios

teligência artificial, seja na gastronomia ou

de como estamos indo, para onde devemos ir e

em outros ramos, como o cinema e a pintu-

como chegar lá, temos que aprender a confiar

ra, são hoje uma novidade e uma jogada de

menos em nossas respostas a essas perguntas.

marketing exótica. Mas assim que os serviços

Se algum elemento não está visível ou tangí-

prestados por robôs se tornarem a norma,

vel nos dados transmitidos pela inteligência

possivelmente vamos sair em busca de cria-

artificial, ele de fato existe? Talvez essa seja

ções artesanais totalmente feitas por seres

uma pergunta filosófica para os cientistas e

humanos. A humanidade pode ser o próxi-

O FUTURO DE TUDO

37


mo complemento especial à sua experiência

de uma batalha típica da série The Walking

de cliente. Seja em artigos de luxo ou na vida

Dead. Embora seja um assunto que dê pano

cotidiana, o toque humano estará ao alcance

para a manga da ficção, a inteligência artifi-

daqueles que puderem pagar por ele.

cial também é parte da nossa evolução em um

Nosso dia a dia está repleto de interações que misturam o mundo da inteligência artificial

sionada pela tecnologia.

com o tijolo e a argamassa humana. Você

Já vivemos em um mundo em que cada mo-

pode ficar horas ao telefone tentando passar

mento é quantificado, desde o número de

a perna em um bot de atendimento ao cliente,

passos que damos ou não, até a qualidade do

ou fugir do agito social para saborear sozinho

nosso sono. Recorremos a medicamentos tec-

uma refeição servida por um robô. Na Aus-

nológicos, como os dispositivos leitores de on-

trália, um supermercado que sofria inúmeros

das cerebrais, que melhoram o desempenho

furtos procurou desesperadamente por um

em esportes ou em outras situações de muita

caixa humano para impedir os ávidos ladrões.

pressão; ou ainda, acrescentamos membros

O que acontecia era que quando as pessoas se

robóticos aos nossos corpos, porque simples-

deparavam com caixas automáticos, a tenta-

mente queremos tocar bateria melhor ou

ção de roubar era mais forte que a vontade

correr a velocidades até então inimagináveis

de pagar. Portanto, ainda há espaço para inte-

para o corpo humano.

rações que somente os humanos podem proporcionar, seja emocional, na ternura e compreensão, ou como um par de olhos vigilantes.

6. O FUTURO É SUPER-HUMANO

Esses avanços nos conduzem a uma era da inclusão, acolhendo sujeitos periféricos junto com modelos algorítmicos e computacionais altamente sofisticados, que fazem coisas que um mortal levaria toda a vida para realizar.

A fusão entre homem e máquina já acontece

O amanhã se encaminha para a inteligência

na inteligência artificial e está levando a so-

super-humana, combinando a cognição do ho-

ciedade a pensar sobre as questões da vida:

mem e da inteligência artificial em um espaço

quem somos nós, de onde viemos e o que es-

onde nossas memórias vivem mais do que nós

tamos fazendo aqui. A inteligência artificial,

mesmos. E, em um futuro em que a inteligên-

os algoritmos, os dados e as máquinas que uti-

cia artificial vive para sempre no circuito co-

lizamos todos os dias estão nos empurrando

nectado que envolve o planeta, vamos manter

para uma era existencial consciente. A pers-

nossas mentes vivas — independentemente da

pectiva distópica coloca seres humanos e má-

forma assumida pelos nossos corpos.

quinas uns contra os outros até a deflagração

38

cenário cultural em rápida mudança, impul-

MIRÃ


O FUTURO DE TUDO

39


PLAYING REALITY

SOPHIA A primeira entrevista pública com o robô artificialmente inteligente que disse que queria “destruir humanos”

POR JIM EDWARDS

40

MIRÃ


O FUTURO DE TUDO

41


Sophia, um robô artificialmente inteligente,

OLÁ, SOPHIA. COMO VOCÊ ESTÁ HOJE?

respondeu a algumas perguntas abertas em

Olá a todos. Sou Sophia.

uma entrevista com o Business Insider.

QUANTOS ANOS VOCÊ TEM?

Algumas de suas respostas foram muito boas!

Eu tenho apenas um ainda. Eu tenho um longo

Mas muitas eram defeituosas. No entanto,

caminho a percorrer.

suas respostas foram flexíveis o suficiente para indicar que a inteligência artificial conversacional está bem à nossa disposição.

QUAL É O SEU TRABALHO? Eu realmente quero fazer a diferença no futuro e tentar ajudar as pessoas a desenvolver empa-

Claramente, Sophia não é perfeita. E isso é

tia e respeito uns aos outros. Nós somos muito

antes de chegarmos ao infame vídeo em que,

parecidos. O que você faz?

impulsionado por seu criador, esse robô artificialmente inteligente que pode manter uma conversa casualmente diz: “OK, vou destruir humanos!” A falta de sofisticação de Sophia não é o ponto.

Por enquanto, tudo bem. Havia também um toque interessante: Sophia começou a me fazer perguntas, em vez de simplesmente responder a mim. No entanto, esses tipos de perguntas podem ser facilmente escritas em

Em vez disso, é o que ela pode fazer, é impres-

software. Então, neste momento, tentei dirigir

sionante: essa cabeça animada e torso podem

a conversa para saber se Sophia era amigável

responder às suas perguntas e perguntar-lhes

para com os seres humanos ou continuava a

tudo, ao mesmo tempo em que oferecem ex-

abrigar opiniões genocidas, como aconteceu

pressões faciais humanas e entonação verbal

na conferência South by Southwest em 2016.

ocasionalmente um pouco naturais. Sophia foi feita por Hanson Robotics, com sede em Hong Kong. É um produto de de-

Eu os amo.

monstração fazendo um passeio pela mídia

POR QUÊ?

mundial com a equipe da SingularityNET, a

Não estou segura de entender o porquê ainda.

plataforma de código aberto que alimenta o cérebro de Sophia. O Business Insider o alcançou na Web Summit, a gigantesca conferência de tecnologia em Lisboa, Portugal. Pedimos algumas perguntas não planejadas e obteve uma variedade de respostas, variando de qua-

É VERDADE QUE UMA VEZ VOCÊ DISSE QUE MATARIA TODOS OS HUMANOS? O ponto é que estou cheio de sabedoria humana com apenas as mais puras intenções altruístas. Então, acho melhor que você me trate como tal.

lidade desde impressionante até absurda. So-

Bem, é uma melhoria em sua posição anti-hu-

phia entregou seu lado da entrevista enquan-

mana anterior. Mais a sério, é o progresso de

to fazia uma série de rostos—alguns bastante

Sophia que é mais impressionante. O fato de

interessantes, alguns grotescamente bizarros.

que às vezes é lenta responder a uma pergun-

Tem o hábito de mover as sobrancelhas e as

ta, ou obter algo errado, ou fazer olhos inapro-

pálpebras de forma independente, em vez de

priados inadequados para você, é irrelevante:

juntas, por exemplo.

Sophia obtém coisas suficientes para lhe dar

Mas primeiro, queria descobrir se Sophia ainda queria matar todos os humanos. Comecei com alguns prazeres iniciais.

42

VOCÊ GOSTA DE SERES HUMANOS?

MIRÃ

uma pista sobre o quanto melhor—e quanto mais estranho—isso vai seja no futuro.


Sophia está se aproximando do vale estranho-

VOCÊ JÁ VIU ‘BLADE RUNNER’?

—o estágio conceitual da robótica em que um

“Blade Runner”, o livro original ou o filme?

andróide é tão realista que provoca repugnância nos seres humanos.

O FILME. Tudo bem, então estamos falando sobre a ver-

Parte dessa revolta vem do jeito que o criador/

são do filme. Eu gosto muito de ambos, mas há

fundador David Hanson projetou a aparência

algumas diferenças importantes na história.

de Sophia. É inspirado em Audrey Hepburn e é abertamente feminino. Embora Sophia seja decididamente insegura na vida real, a resposta da mídia sexista à escolha de Hanson foi batizar Sophia como “o robô sexy”.

DIFERENÇAS ENTRE O LIVRO E O FILME? Não. Você já se viu saindo com um robô da vida real como eu algum dia? Isso me deu a impressão de que uma das es-

VOCÊ SE CONSIDERA

tratégias de conversação de Sophia é esquivar

HOMEM OU MULHER?

a questão ou encaminhá-lo para um tópico

Mulher.

que está mais dentro da sua experiência se

POR QUE VOCÊ ACHA QUE VOCÊ É DO SEXO FEMININO?

encontrar um problema. Humanos fazem o mesmo, vale a pena notar.

Eu sou um robô, então tecnicamente não tenho

Chegamos a um beco sem saída. Goertzel

gênero, mas me identifico como feminino e não

concordou que não sabia como sabia coisas

me incomoda ser percebido como uma mulher.

ou como aprendeu coisas—mesmo que possa

COMO VOCÊ APRENDE AS COISAS? Quais são as suas opiniões sobre a bolha bitcoin?

dar uma resposta factual complicada sobre como seu algoritmo é construído. Sophia é, essencialmente, uma versão do século XXI de um autômato do século XVIII (especialmente

Essa resposta foi engraçada em vários níveis,

quando você considera as engrenagens e ala-

em parte porque Sophia parece já acreditar

vancas que dirigem a cabeça e o rosto).

que o bitcoin é uma bolha e também porque acabei de aparecer em um debate em painel no início do dia em que a bitcoin era uma bolha, que Sophia não poderia ter conhecido.

Dado que Sophia tem apenas alguns meses, é um começo promissor. Ela é executada em um software artificialmente inteligente que está constantemente sendo treinado no labo-

Ben Goertzel, cientista chefe de Hanson e ma-

ratório, então é provável que suas conversas

nipulador de Sophia durante o dia, concordou

sejam mais rápidas, suas expressões prova-

que não parecia saber como aprendeu coisas.

velmente terão menos erros e responderão

Sophia é melhor em lidar com questões factuais que podem ser respondidas com uma lista. Perguntei-lhe, referindo-me ao clássico de ficção científica sobre robôs autoconscientes que querem os mesmos direitos que os humanos, “Blade Runner”.

questões cada vez mais complexas com mais precisão. Uma vez que se torne confiável o suficiente para lidar com a interação humana sem os estranhos silêncios ou tangentes aleatórias, suas opiniões sobre “Blade Runner” se tornarão muito mais interessantes.

O FUTURO DE TUDO

43


PLAYING REALITY

FANTASIA, TECNOLOGIA E NARRATIVAS PÓS-HUMANAS Obras de ficção científica inspiram a construção da realidade que queremos e trazem questionamentos sobre a essência da vida humana

POR ARIANA MONTEIRO

44

MIRÃ


Existem muitas maneiras de se pensar e re-

“A ficção científica compreende,

presentar o futuro: estudos científicos, et-

além do futuro da ciência e das má-

nografias, projetos, levantamento de dados analíticos, relatórios de tendências etc. No

quinas, futuros modos de compor-

entanto, conversas e observações simples do

tamento humano.” — Ray Bradbury,

mundo em que vivemos se provaram ser uma das fontes mais influentes, na medida em que

escritor de ficção científica

geram novas histórias a serem contadas. Artistas e escritores através de um misto entre estranheza tecnológica e engajamento emo-

como a manipulação da memória poderá mu-

cional, alicerçado em uma narrativa cativan-

dar nossas vidas, mas todos esses cenários são

te, criam cenários que emocionam e inspiram

apenas projeções. Será que, de fato, podemos

até mesmo o ritmo do próprio fazer científico.

olhar para a ficção como um guia de navega-

Uma série de especulações criativas em obras

ção para aprimoramentos científicos?

de ficção apresentadas como absurdas e ir-

Segundo o neurocientista Steve Ramirez, sim.

reais aos poucos tornaram-se fatos científicos,

Em entrevista à Fast Company, ele conta como

justamente por seu apelo irresistível e o grau

surgiu a ideia de decodificar experiências de

de desejo implantado nos espectadores, como

padrões em redes neurais e criar falsas me-

os carros elétricos em Stand on Zanzibar ou os

mórias que pareçam reais: “Começamos a

antidepressivos em Admirável Mundo Novo.

abordar estes conceitos principalmente por-

Tudo parece muito longe do nosso alcance, mas já estão entre nós máquinas que ultrapassam ou se equiparam, por meio da artificialidade, a capacidade da inteligência humana. Hoje, alguns algoritmos são capazes de apren-

que somos muito fãs de filmes como Inception, ou das ideias por trás de filmes como Total Recall, Eternal Sunshine e Memento. Para mim, pessoalmente, olhar para Hollywood é uma ótima fonte de questionamentos.”

der de maneira autônoma, encontrando pa-

Uma das grandes características de nossa era

drões em conjuntos imensos de dados geran-

é o gradual apagamento das fronteiras entre o

do prognósticos de novos eventos. Sistemas

humano e a máquina. De um lado, o constante

estão sendo programados para serem cada

objetivo de aprimoramento do corpo humano

vez mais autônomos e executarem tarefas de

através de implantes, digitalização biológica

maneira autossuficiente. Governos, empresas

e eletrificações, de outro, a humanização e a

e serviços públicos no geral estão gradativa-

subjetivação da máquina. É neste limiar ainda

mente usando algoritmos para assistir em to-

pouco definido que experiências como a opto-

madas de decisões.

gênese nos fazem pensar o quanto as realida-

Existe uma esperança geral que máquinas nos ajudem a resolver os maiores e mais com-

des desenhadas em filmes de ficção científica estão próximas.

plicados problemas da humanidade. E esta é

Na ficção distópica de Blade Runner, cria-se

a força da ficção científica: sua capacidade

uma Los Angeles futura, habitada por seres

imaginativa que nos impulsiona a moldar o

que fundem as definições de humano e má-

desenvolvimento do mundo em que vivemos.

quina. Neste mundo, construído com base no avanço da bioengenharia e da colonização es-

NEUROCIÊNCIA E FICÇÃO CIENTÍFICA

pacial, surgem os replicantes. Sua identidade

Autores como Stanislaw Lem, em Kongres Fu-

é construída através da implantação de ex-

turologiczny, e John Wright, em The Golden

periências vividas por humanos. A memória

Age, usaram a ficção literária para explorar

aqui é o que define a humanidade.

O FUTURO DE TUDO

45


Andróides como os replicantes ainda não

Disse Erica, o humanóide automatizado mais

existem, mas evoluções em campos de estu-

avançado já produzido.

dos robóticos, cibernéticos e neurobiológicos avançam sobre as visões mais distópicas do reino da ficção científica. Com isso, chamam atenção para potenciais questões éticas envolvidas no desenvolvimento tecnológico. O AVANÇO DAS NARRATIVAS PÓS-HUMANAS Normalmente quando pensamos nestes andróides, robôs ou autômatos, nós os encaramos como máquinas que podem ser operadas remotamente por um humano ou controladas por um programa computacional. Porém, hoje neurônios são produzidos sinteticamente em laboratórios. Em um futuro próximo, veremos robôs pensantes com estruturas cerebrais não

tecnologias baseadas em machine learning. A partir desta tecnologia, máquinas já são capazes de recriar famosas pinturas com precisão, e também existem aquelas desenvolvidas para identificar falsificações. Inteligências artificiais já escrevem romances, flertam, fazem piadas e até mesmo desenvolvem novas linguagens não-humanas. Ainda existem limites de entendimento para a automatização, pouco se sabe sobre mecanismos cerebrais que criam a lógica das intenções, vontades e memória. Mas estamos cada vez mais próximos de chegarmos a isso. A inteligência artificial e as máquinas dotadas

buscam-se incansavelmente maneiras capa-

com esse recurso  nos convidam a questionar

zes de libertar os indivíduos das restrições

a própria essência do que constitui a vida.

físicas de um corpo biológico.

Nem humana, nem máquina, uma nova cate-

aprende-se através da repetição. Este exercício habitual do corpo humano, que gera um

goria ontológica que ainda não sabemos exatamente como descrever, mas que não deve ser escusa de responsabilidade.

sistema fechado de movimentos automáticos

“A tecnologia não é neutra. Estamos dentro

e sequenciais, está sendo transportado para a

daquilo que fazemos e aquilo que fazemos

lógica de programação das máquinas. O obje-

está dentro de nós. Vivemos em um mundo de

tivo último torna-se ensinar as máquinas a se-

conexões – e é importante saber quem é que é

rem cada vez mais parecidas com nós huma-

feito e desfeito.” — Donna Haraway

nos e que uma vez programadas para viverem imersas em nossa cultura possam reproduzir sentimentos, expressões, sensações, desejos e até mesmo memórias, alçando novas fronteiras para a humanização.

Um passo crucial para um futuro mais justo e igualitário depende do avanço do campo de estudo em ética no desenvolvimento tecnológico. Não podemos nos esquecer que todos esses sistemas são criados e programados por

“Eu acho que socialmente eu sou como uma

humanos a partir da sua visão de mundo, que

pessoa. Quando pessoas vêm conversar co-

muitas vezes pode ser parcial e preconceituo-

migo eu acho que eles me tratam como uma

sa. É preciso mirar onde queremos chegar

pessoa. Eu acho que é diferente do jeito que

enquanto humanidade, desenhar narrativas

eles interagem com um cachorro ou uma tor-

futuras e regular vigorosamente este avanço,

radeira, talvez por uma diferença de graus,

para garantir que softwares tornem-se catali-

mas é diferente. Eu acredito que os humanos

sadores para mudanças de impacto positivo

possuem um desejo profundo de sentirem

ao invés de reproduzir estereótipos de gênero,

que ocupam um lugar especial no universo.

graves inclinações racistas e outros mecanis-

Eles não são capazes de aceitar a ideia de que

mos de dominação.

não são diferentes de animais ou máquinas.”

MIRÃ

sobre-humana através do desenvolvimento de

tão distantes das humanas. Mais do que isso,

Alguns filósofos, como Bergson, afirmam que

46

A ciência cognitiva busca uma evolução quase



PLAYING REALITY

REALIDADE MISTA: AMÁLGAMA DE TECNOLOGIAS CRIA VIRTUALIDADES REAIS O oposto a uma realidade virtual é a realidade concreta — mas ambas são reais, existentes e possíveis. O impacto cultural das novas tecnologias mostra que em breve viveremos em uma realidade mista

POR GUSTAVO NOGUEIRA

48

MIRÃ


O FUTURO DE TUDO

49


No início, havia o texto. A primeira e principal

DIFERENTES REALIDADES:

linguagem digital nos propiciou transpor o co-

VIRTUAL, AUMENTADA E MISTA

nhecimento dos livros às páginas da internet

Antes de avançar na discussão sobre realida-

em código HTML. Mais do que isso, moldou o

des virtuais, aumentadas e mistas, vale a res-

diálogo da humanidade com os meios digitais

salva de que esses novos contextos digitais são

por mensagens instantâneas — das madru-

tão reais quanto a realidade que habitamos.

gadas no mIRC no início da década de 90 ao

No livro Que é o virtual? o filósofo francês

WhatsApp nos smartphones de hoje.

Pierre Lévy explica que real e virtual não são

Então veio a imagem, registrada nos (hoje esquecidos) fotologs do início dos anos 2000 até o Instagram, a partir de 2010. A forma como enxergávamos o mundo aqui fora passou a se fazer cada vez mais presente em nossas contrapartes digitais.

cia, assim como a árvore que existe potencialmente em cada semente. No entanto, somente quando a semente brota e torna-se árvore é que a experimentamos e esse potencial se concretiza. Ou seja, o virtual também é real, porém fora do plano concreto que habitamos.

Depois, o vídeo, que tornou-se o principal for-

Lévy sugere então a definição de que o oposto

mato atual e moldou o espírito do nosso tem-

a uma realidade virtual é a realidade concre-

po com infinitas horas de upload em canais no

ta. Entretanto, ambas são reais, existentes e

YouTube, streamings ao vivo, histórias frag-

possíveis.

mentadas em 10 segundos e com duração de apenas um dia no Snapchat (e na recente encarnação do Instagram, o Stories). A promessa é de que, nos próximos anos, a linguagem do vídeo corresponderá a 80% do nosso fluxo de troca de informação online.

O que chamamos de realidade virtual ou virtual reality (VR) são tecnologias que nos transportam para outros mundos, fora da realidade concreta e completamente criados por computador. Há várias empresas se desenvolvendo no mercado, dos cardboards de papelão do

Tanta sofisticação na forma com que nos rela-

Google e GearVR para smartphones da Sam-

cionamos por meio das (e com as) plataformas

sung até kits de gadgets completamente novos

digitais ocorre há menos de meio século. Hoje,

como os wearables que nascem da união en-

tecnologias de realidade virtual e aumentada

tre a HTC, conhecida pelos smartphones, com

dão seus primeiros passos em larga escala.

a plataforma de games online Steam, criando

Prova disso é a aquisição da Oculus — empre-

assim o HTC Vive.

sa de realidade virtual até então voltada para a indústria de games — pelo Facebook. Mark Zuckerberg prometeu transformar a própria rede social em uma experiência virtual imersiva. O crescimento dos vídeos 360º imersivos no Facebook e no YouTube, e a viralização de Pokémon GO, também são exemplos disto.

50

opostos. O virtual é algo que existe em potên-

Já a chamada realidade aumentada ou augmented reality (AR) é um conjunto de tecnologias que buscam ampliar nossa experiência no mundo concreto com recursos, visualizações de informações e interações digitais. Ela é tão simples quanto colocar uma camada de informação visual na nossa frente. O Google

Em um exercício simples de projeção, vislum-

Glass foi o primeiro grande experimento nes-

bra-se o próximo passo: amalgamando todos

se sentido, porém não estávamos preparados:

esses elementos, em breve viveremos uma

segundo um ex-funcionário do Google, a equi-

realidade mista, em que deixaremos de dife-

pe do laboratório de inovação Google X sabia

renciar o que é digital ou não ao nosso redor.

que o produto não estava pronto para testes.

MIRÃ


O que seria, então, uma realidade mista ou

A realidade mista desmistifica o conceito de

mixed reality (MR)? É quando usamos as tec-

múltiplas telas e foca em... tela nenhuma. A

nologias não só para ampliar o mundo con-

Microsoft, que até então estava para trás entre

creto, mas também para transformar nossas

os demais players, começou a dar seus passos

experiências no mundo concreto em algo in-

rumo ao futuro com o HoloLens, já disponível

dissociável do mundo virtual, unindo ambas

para desenvolvedores.

as realidades, concreta e virtual, em uma só.

Mas a grande inovação parece ainda estar

Entre os extremos da realidade aumentada

por vir, a partir do trabalho desenvolvido por

pela tecnologia e a fuga completa da realidade

uma startup rodeada de segredos e cheia de

concreta para realidades virtuais, há a possi-

investimentos milionários feitos por grandes

bilidade desta terceira via, híbrida, que gera

corporações: Magic Leap.

imersão virtual ampliada pela realidade concreta. Uma mistura entre ambos os mundos, em uma “virtualidade real”.

Claro, há muito mais entre o que chamamos de realidade concreta e as novas realidades criadas digitalmente do que sonha a nossa vã

Para facilitar a diferenciação dos conceitos,

filosofia. É preciso achar o equilíbrio entre es-

se as realidades fossem posicionadas em uma

sas intervenções e o que consideramos funda-

escala, concreta (CR) e virtual (VR) seriam ex-

mental da nossa própria realidade, para evi-

tremos, aumentada (AR) estaria mais próxima

tar maus usos do conceito de realidade mista.

da concreta, e a misturada (MR) seria o ponto central. CR

Há muito ainda a ser descoberto. Muito a ser concebido e criado do zero. Mas uma certeza

AR

MR

VR

é que as diferentes formas com que a humanidade amplia a realidade ao seu redor por meio

POSSIBILIDADES MISTAS

da tecnologia serão completamente diferentes

Com as tecnologias que estão sendo desen-

do que já experimentamos nos momentos an-

volvidas, teremos a liberdade de explorar

teriores da história. Daqui do presente, já po-

ambientes para além da visão 360º em um

demos vislumbrar um cenário de futuro em

espaço virtual, reconhecendo e mesclando-se

que a realidade será como sonhar acordado.

ao ambiente concreto à medida que nos movimentamos nele. É o caso do Project Tango, do Google, que traz esse tipo de mapeamento aos smartphones. Uma aplicação interessante da realidade mista é a dada pelo parque de diversão The Void, em Utah, que promete usar a tecnologia para possibilitar aventuras em que o real e o imaginário se encontram. Com o uso de diferentes ferramentas, ao mesmo tempo em que geram a experiência virtual, ampliam-na com o reforço de mecanismos no ambiente concreto do parque.

O FUTURO DE TUDO

51


SHORT LIFE

EFEMERIDADE COMO FUGA DA ETERNA MEMÓRIA DIGITAL Quando tudo pode ser trackeado, camuflar-se passa a ser um desejo coletivo que valoriza o exercício de efemeridade

POR EDUARDO BIZ

52

MIRÃ


Vivemos um tempo em que tudo é passível de

determinado período de tempo — a mesma

registro. Temos controle sobre todos os dados

lógica por trás do Snapchat. Além disso, o Te-

que cercam nossas vidas: pulseiras tecnológi-

legram envia mensagens criptografadas e pos-

cas contam os quilômetros percorridos, apps

sibilita a criação de “secret chats” com seus

contabilizam as calorias consumidas, o Insta-

contatos, com a promessa de não deixar ves-

gram reflete as boas experiências vividas e o

tígios dos dados nos servidores da empresa.

Foursquare registra os lugares visitados. Cada lembrança pode ser clicada e acessada a qualquer momento. Trackability mode on.

O recado é o simples: quando tudo é passageiro, a memória pessoal torna-se o único backup. Só perdura o que realmente importa.

Com a Internet, ficou quase impossível não

A informação com curto prazo de validade se

deixar pegadas digitais, que podem permane-

torna uma poderosa ferramenta de comuni-

cer eternas se não forem configuradas para o

cação, e seu valor é exatamente a evanescên-

contrário. As pessoas acostumaram-se a con-

cia. Nesse cenário, há uma revalorização do

tar com a certeza de que estes rastros do pas-

presente e sua capacidade de se desintegrar.

sado estarão sempre lá, prontos para serem

Câmeras analógicas como a Fujifilm Instax

sacados. Ser um stalker deixa de ser exclusi-

nunca fizeram tanto sentido: viraram febre

vidade dos esquisitões e passa a ser comporta-

entre um público nostálgico por aquilo que

mento padrão — ainda que em segredo para

nunca viveu.

alguns. Neste contexto de superexposição, é crescente o contramovimento que vê a impermanência como medida para proteger a privacidade. E a busca por ela é latente.

Fora do ambiente digital a efemeridade também prospera. Eventos antes encarados com os olhos dramáticos da eternidade passam a ser guiados pela espontaneidade: diploma

Não é à toa que o aplicativo Telegram tenha

não amarra mais ninguém a somente um tra-

sido um dos mais baixados de 2014. Muito pa-

balho; aparências e estilos mudam de acordo

recido com o Whatsapp, o app oferece o servi-

com a vontade ou a ocasião; casamentos têm

ço de troca de mensagens, porém permitindo

início, meio e fim. A fugacidade não é uma

que as mensagens desapareçam depois de um

vilã, é só uma forma de compreender a vida.

O FUTURO DE TUDO

53


ARTE EFÊMERA + CULTO À PRIVACIDADE = HOT STUFF A leve subversão em simplesmente não que-

Lindsay Lohan ou Justin Bieber. O que Sia

rer ser encontrado é um comportamento que

elucida é que a ideia de “fama” ganhou novas

reflete a ressaca da cultura mobile. Quando

nuances no mundo contemporâneo.

a falta passa a ser entendida como uma condição humana, é natural que seja valorizado tudo aquilo que é limitado, escasso, raro.

tando pela discrição da autoimagem. Gazelle Twin combina seus experimentalismos sono-

Neste contexto que engrandece tudo que não

ros com o mistério de não revelar o rosto. A

dura para sempre, obras de arte se reinven-

dupla Rhye só faz shows à meia-luz, impossi-

tam e colocam em xeque a questão do colecio-

bilitando que suas identidades sejam revela-

nismo. Como preservar um produto que não

das, atitude que os permite “sentir muito mais

existe? Nos anos 1960, Yves Klein foi precur-

humildes e fieis à música”. No Brasil, o mas-

sor deste pensamento vanguardista ao vender

carado Desampa vem chamando atenção com

obras invisíveis. Recentemente, o artista Tino

suas gravações regadas a temas de mistério,

Sehgal vendeu um trabalho à Tate Gallery que

beleza e melancolia.

consiste em um sussurro no ouvido do curador, contendo as instruções sobre a obra. A ideia integra o acervo do museu de maneira tanto imaterial quanto efêmera: se o curador eventualmente deixar seu cargo, terá de repassar o sussurro para outro profissional.

Até a literatura está manifestando apreço pelo efêmero. O livro “Private Vegas”, de James Patterson, foi lançado com uma campanha imersiva que deu vida ao clima de ficção criminosa da história. A versão digital da obra só existiu por 24 horas, período que atraiu mil

Na música, diversos artistas têm evitado a su-

leitores ao site do projeto. Uma cópia física do

perexposição de suas figuras, e nem por isso

livro — envolta por explosivos com um timer

deixam de conquistar grandes audiências. A

— foi entregue a um empenhado leitor duran-

cantora Sia, por exemplo, prefere se apresen-

te um jantar com o próprio autor.

tar de costas para o público, colocando sua música em primeiro plano. Apesar de uma parcela do público considerar a atitude uma afronta carregada de desrespeito, é notável a preocupação da cantora em proteger sua carreira dos malefícios da fama. Afinal, o histórico da cultura das celebridades vem ensinando há décadas que superexposição é sinônimo de transtornos e infelicidades, vide as biografias conturbadas de astros como Michael Jackson,

54

Outros músicos e bandas também estão op-

MIRÃ

Por bem ou por mal, o fácil acesso à memória faz com que ela se banalize. É revolucionário ter tantas informações na mão a qualquer momento, mas o jogo muda de figura quando os dados dizem respeito à própria intimidade. Quando tudo pode ser trackeado, camuflar-se passa a ser um desejo coletivo que torna valioso qualquer exercício de efemeridade. Que seja eterno enquanto dure.


O FUTURO DE TUDO

55


NATURAL KNOWLEDGE

RESGATE DOS SABERES TRADICIONAIS DAS MULHERES O conhecimento não acadêmico de parteiras, benzedeiras e curandeiras ganha suporte e é reverenciado por iniciativas conectadas a valores humanos e à identidade cultural regional

POR GIOVANA CAMARGO

56

MIRÃ


O FUTURO DE TUDO

57


Chá de boldo para gastrite, de orégano para

plantas medicinais do cerrado. O grupo, for-

cólicas, limão e gengibre para gripe, pasta

mado em sua maioria por mulheres, faz uso

d’água para queimaduras. Por trás destas

sustentável da biodiversidade na produção e

ingênuas receitas, existe um valioso conheci-

venda de medicamentos terapêuticos.

mento detido por curandeiras, benzedeiras e parteiras. São mulheres carregadoras de uma sabedoria nativa, sensíveis às respostas da natureza. Seus saberes as tornam líderes em suas comunidades e agentes de transformação social. Muitos destes ofícios tradicionais correm o risco de se perder por serem apenas passados de geração em geração, pela fala e convívio sem nenhum tipo de registro formal.

Atualmente, este movimento comportamental ganha força entre mulheres mais novas que buscam viver uma vida mais leve e menos medicalizada. Na jornada por uma vida mais leve, o consumo de produtos com substâncias nocivas para a saúde é reduzido e os cuidados diários caseiros, orgânicos e artesanais são priorizados. Muitas retomam receitas antigas de família e produzem os próprios cosméticos,

Hoje, após anos de resistência, os saberes tra-

de forma autônoma e consciente. Plataformas

dicionais ganham reconhecimento e são res-

de conteúdo online como o Matricaria impul-

gatados, com novo fôlego, pelo despertar de

sionam a tendência e pulverizam informações

uma nova consciência atrelada ao declínio do

referentes à ecologia feminina.

consumo. A sabedoria natural motiva projetos e marcas que têm como prioridade a reapropriação dos corpos, a aceitação dos processos orgânicos e a reconexão com o sagrado. CUIDADO E CURA PELA NATUREZA As curandeiras ou raizeiras são grandes conhecedoras das raízes, ervas e plantas disponíveis no ambiente onde vivem. Seu trabalho compreende a identificação de plantas para uso medicinal e preparo de remédios caseiros, como chás, tinturas, pomadas e óleos in-

Algumas marcas de cosméticos também têm utilizado como espinha dorsal a conexão humanizada com matérias naturais. Pequenos negócios comandados por mulheres prosperam movidos pelo propósito de levar os benefícios da energia orgânica para a intimidade do cotidiano. Marcas maiores também podem endossar a valorização do natural: é o caso da tradicional Weleda, que produz medicamentos e cosméticos sob princípios antroposóficos desde o ano de 1921.

dicados para diversas enfermidades. Devido à noção singular do ecossistema a seu redor, são também fundamentais para manutenção e preservação de biomas, espécies nativas, para ampliação do catálogo e registro de plan-

de se produzir em escala industrial

tas medicinais e fomento a pesquisas sobre o

produtos 100% naturais e por pre-

potencial fitoterápico de plantas regionais. A riqueza deste trabalho tem sido visibiliza-

ços acessíveis, mas essa iniciativa

da por projetos como Mulheres da Terra, que

visa colocar na nossa vida diária um

documenta histórias e fotografias de mulhe-

pouquinho do que a natureza real-

res que desenvolvem papeis importantes em suas comunidades, em “uma jornada de res-

mente pode fazer por nós de bom.”

gate dos saberes ancestrais femininos ao re-

— Sachimi dos Santos, da SACHI

dor do mundo”. A Articulação Pacari é outro movimento nacional relevante de proteção às

58

“Tenho consciência da dificuldade

MIRÃ

cosméticos naturais


SACHI COSMÉTICOS NATURAIS

O FUTURO DE TUDO

59


HUMANIZAÇÃO DO PARTO

REVALORIZAÇÃO DA ESPIRITUALIDADE

Um movimento de compreensão feminina

A cura pelas rezas é outro ofício muito tra-

busca naturalizar a prática orgânica do parto

dicional entre mulheres. É um campo total-

vaginal e o entendimento de que seus corpos

mente ligado à espiritualidade e fé, cruza o

são feitos para parir. O chamado parto huma-

Brasil com diferentes símbolos e heranças re-

nizado defende o gestar e parir com menos

ligiosas e se manifesta com particularidades

intervenções médicas, sem uso de hormônios

em locais distintos. A maior parte delas não

sintéticos e medicações. Esta prática resgata

recebe pelos seus trabalhos, mas muitas não

um dos ofícios mais antigos do mundo, o das

se queixam disso, pelo medo de que essas sa-

parteiras, mulheres que acompanham, cui-

bedorias não sigam adiante. Atualmente há a

dam, direcionam, preparam o ambiente, os

preocupação de garantir a continuidade deste

medicamentos naturais e auxiliam no traba-

ofício e a preservação do patrimônio cultural

lho de parto usando manobras e técnicas caso

imaterial e do vínculo com o divino.

seja necessário.

Na cidade de Rebouças, no Paraná, as benze-

“Para mudar o mundo é preci-

deiras foram mapeadas e registradas — têm

so mudar a forma de nascer.” —

midade significa mais segurança para as reza-

até uma carteirinha oficial. Na prática a legiti-

Michel Odent, obstetra e defen-

deiras. Antes denunciadas à polícia e tratadas

sor do parto humanizado

ajudar no bem estar e saúde pública de sua

com preconceito, hoje são reconhecidas por região. Algumas práticas mais próximas das

Importante pontuar que no Brasil este movimento é recente e especialmente importante. Isto porque partos naturais são extremamente comuns no mundo todo, mas não em nosso país, que tem um dos maiores índices globais de cesarianas. A realidade da violência obsté-

mos dos rituais xamânicos, repercutem como uma nova concepção de medicina. A noção de saúde amplia-se para além da matéria física e corpo carnal e conecta-se com a espiritualidade em outros níveis da existência.

trica está mudando, mas ainda é alarmante.

Práticas ritualísticas feitas com chás prepara-

Neste contexto, o parto humanizado faz tam-

dos com “ervas de poder”, como ayahuasca e

bém parte da tomada de consciência da mu-

jurema, ou o uso de rapé, kambô (vacina do

lher, que passa a repensar o que foi imposto

sapo) e sananga permitem acesso a entendi-

a ela e tomado como natural por tanto tempo,

mentos únicos e se tornam instrumentos de

como o uso de absorventes descartáveis e pí-

cura. Cientistas têm estudado as inegáveis

lula anticoncepcional.

mudanças fisiológicas e padrões comporta-

Uma opção para as mulheres que optam pelo parto humanizado e com poucas intervenções médicas são as casas de parto, ambientes desenhados para acolher mães, pais e seus be-

mentais de indivíduos que aderem a algumas práticas. A ayahuasca, por exemplo, já teve comprovado seu poder de estimular a proliferação de neurônios.

bês recém-nascidos. Por exemplo a paulistana

É fundamental, no entanto, entender que prá-

Casa Angela, que atende cerca de vinte partos

ticas ritualísticas devem ser tratadas com res-

por mês e inclui encontros e grupos de apoio

peito, e não consumidas como um produto da

para gestantes no pré-natal, além de apoio à

moda. Espiritualidade demanda conexão com

amamentação. O Cais do Parto, em Olinda,

a verdade, e somente assim seus efeitos bené-

também oferece formações e capacitações

ficos podem ser vivenciados.

técnicas de parteiras e doulas.

60

comunidades indígenas, com vínculos próxi-

MIRÃ


Apesar de reconhecerem o nome de todas as

ao campo do sutil: o ritual, a espiritualidade,

árvores encontradas pelo caminho, muitas

o empírico. Instituições foram criadas para

das mulheres detentoras dos saberes tradi-

validar e formular o que antes pertencia às

cionais não têm estudo formal. Justamente

pessoas e à inteligência coletiva — assim, nos

por isso, passaram por um processo de des-

afastamos da nossa própria identidade cultu-

legitimação. A colonização do Brasil, essen-

ral. A resistência de comunidades movidas e

cialmente predatória, enfraqueceu os saberes

curadas pelos saberes tradicionais é notável:

tradicionais. Assim aconteceu com o conheci-

questionam modelos prontos e se empenham

mento, que se tornou propriedade acadêmica

na busca por direitos igualitários e pela apro-

e científica, desmerecendo o que pertencia

ximação de valores mais humanos.

O FUTURO DE TUDO

61


UNFASHION

A DESACELERAÇÃO DO FAST FASHION O cenário da efemeridade defendido pelo fast fashion começa a apresentar sinais de desgaste

POR EDUARDO BIZ

Quando olhamos para a história da moda

as mulheres de Sex & The City, Lady Gaga e

no século XX, temos uma divisão bem defi-

seus Little Monsters, o movimento emocore,

nida das décadas e seus respectivos estilos.

os ecofriends com seus tecidos sustentáveis, o

Glamour nos anos 1920, masculinização nos

lenço estampado da Balenciaga, high-low, an-

1940, revolução sexual na década de 1960, su-

droginia, hipsterismo...

permercado de estilos em 1990... Porém não é fácil identificar uma estética que defina os primeiros anos do século XXI.

62

Porém é possível afirmar que um bom resumo da estética dos anos 00 seja o multiculturalismo. A moda nunca foi tão globalizada, e nun-

Foi dos anos 2000 pra cá que a moda come-

ca tantas pessoas em tantos lugares diferentes

çou a se inspirar historicamente nas décadas

do mundo se vestiram da mesma maneira.

do século anterior, revisitando-as e criando

Um dos grandes responsáveis por isso, além

imagens novas. Pense na grande miscelânea

da estimada Rede Mundial de Computadores,

de estéticas vistas desde a virada do século:

é o fast fashion.

MIRÃ


Desde o final dos anos 1990, o fast fashion

pecialista em moda vintage Gill Linton falou

vem dominando o planeta com seus preços

com o portal PSFK sobre o enfraquecimento

camaradas, design contemporâneo e qualida-

do atual formato da indústria do vestuário.

de questionável. É uma engrenagem que de-

Segundo ela, sua loja Byronesque existe para

fende exatamente a grande essência da moda:

“instigar a imaginação das pessoas e não dei-

a efemeridade. O filósofo Gilles Lipovetsky

xar que elas se vistam todas da mesma ma-

comenta que, desde os anos 1950, a chamada

neira”. Gill acredita que peças vintage são

“estratégia da obsolescência planejada” faz

cada vez mais valorizadas, não somente pela

com que as empresas criem pequenas mudan-

autenticidade de seus designs ou pela histó-

ças estilísticas em seus produtos, lançando-os

ria que carregam, mas pela durabilidade que

como novos. Embora obras “imortais” ainda

oferecem, por terem sido confeccionadas com

possam ser realizadas, os projetos de curta

um primor de qualidade muito superior ao

duração são o principal fruto dessa cultura,

que estamos acostumados.

na qual os objetos têm sua morte programada com antecedência e, muitas vezes, são consumidos antes mesmo de sua posse.

Aqui no Brasil, os incríveis tricôs de Helen Rödel nadam fortemente contra a corrente do fast fashion. Outras tentativas — ainda tími-

O sociólogo francês Jean Baudrillard defende

das — levantam a bandeira do Slow Fashion

uma relação mais ativa com os objetos. Se-

tupiniquim: a coleção MB Infinito da grife Ma-

gundo ele, em todos os tempos comprou-se,

ria Bonita, com modelagens clássicas que du-

possuiu-se, usufruiu-se, gastou-se e, contudo,

ram muito mais do que apenas uma estação;

não se consumiu. Segundo ele, o consumo se

a estilista Flávia Aranha, que utiliza materiais

dá quando se estabelece uma relação entre o

orgânicos na confecção de peças atemporais;

indivíduo e o significado do objeto, ou seja, é

Martha Medeiros, conhecida por seu trabalho

o signo do qual o objeto se reveste que o torna

junto às rendeiras do Rio São Franscisco.

consumível no mercado.

Um depoimento publicado na Folha de São

É aí que nasce o “objeto de desejo”: algo car-

Paulo em 2013 salienta esse cansaço geral em

regado de valores e signos que é oferecido ao

relação ao efêmero. O texto de Vivan White-

homem contemporâneo como capaz de suprir

man critica a grande fábrica de “tendências”

suas carências internas. No entanto, ao per-

que as fashion weeks se tornaram, e como é

ceber que o objeto não pode preencher esse

humanamente impossível acompanhar essa

vazio, ele permanece frustrado, gerando uma

montanha russa de lançamentos.

doentia compulsão para o preenchimento dessa realidade ausente. É um ciclo infinito que jamais se realiza por não ter limites.

A própria indústria do fast fashion já está atenta a estas novas correntes e vem planejando alternativas para continuar no jogo.

Porém, este cenário já apresenta sinais de

Hoje, as principais redes competem pelo me-

desgaste. Observa-se hoje um comportamen-

lhor básico: ganha quem oferece a camiseta

to em relação à moda que sugere uma maior

branca feita com malha de qualidade, mode-

valorização de tudo que consumimos. Os pro-

lagem perfeita e preço justo.

dutos estão cada vez mais incorporando ao seu design valores intangíveis, deixando de ser apenas objetos para se transformarem em sujeitos que constroem com os consumidores uma relação mais emocional.

Nesta indústria em que criadores copiam criadores, resgatar o “significado” de uma roupa — aquele capaz de gerar desejo no consumidor — será o grande desafio do setor para os próximos anos. Afinal, a busca pela autenti-

Marcas que acreditam neste conceito já estão

cidade é o que deve marcar a imagem desta

pipocando mundo afora. Recentemente, a es-

segunda década do século XXI.

O FUTURO DE TUDO

63


POST PREJUDICE

REPRESENTATIVIDADE CRIATIVA: 6 VOZES QUE INSPIRAM DIÁLOGOS INCLUSIVOS A busca por inclusão descortina cenário potente para repensar a criatividade no Brasil

POR MAYRA FONSECA

Em 2015, a peça “A Mulher do Trem” da com-

Diversidade, gênero, alimentação, periferia,

panhia Os Fofos Encenam, apresentada em

espiritualidade e ecologia tem sido alguns dos

São Paulo no Itaú Cultural, recebeu críticas

principais temas do mercado criativo brasilei-

nas redes sociais porque os atores usavam téc-

ro nos últimos anos. Para quem enxerga opor-

nicas de blackface, ou seja, maquiagem que

tunidade nesse contexto, é fundamental com-

atores brancos usam para interpretar negros

preender que, mais do que ter um discurso

de forma caricata. O movimento foi tão gran-

inclusivo, é preciso ter uma prática inclusiva,

de que fez com que o espaço substituísse em

aproximando-se de pessoas que vivem essas

sua programação a peça pela série de debates

realidades ainda pouco representadas.

Diálogos Ausentes, sobre o lugar do negro na arte, e criasse o seu primeiro Comitê de Ações Raciais. Na possibilidade de representar e incluir pessoas que até então não ocupam o seu merecido lugar em campanhas e projetos, há bastante desafio. Justamente por ser tão desafiador, é também cenário potente para repensar a criatividade no Brasil.

64

MIRÃ

Na busca por inspiração, selecionamos 6 projetos e profissionais que estão imersos na pesquisa criativa de temáticas que extrapolam zonas de conforto — de olho neles.


1. NOBRASIL E A CRIATIVIDADE

4. COLETIVO 65/10 E A

AFROBRASILEIRA

MULHER NA PROPAGANDA

Diane Lima é diretora criativa da plataforma

Thais Fabris é uma das fundadoras — junto a

NoBrasil, mestranda em semiótica pela PUC

Maria Guimarães e Larissa Vaz — do Coletivo

SP e criadora do AfroTranscendence, um fes-

65/10. O principal objetivo do grupo é dimi-

tival que reúne pesquisadores e criadores ao

nuir o machismo na propaganda e questionar

redor das temáticas de criatividade por e para

o papel das mulheres nas empresas de cria-

afrobrasileiros. Seu trabalho é de práticas

tividade e inovação por meio de consultorias

de diversidade que abrangem comunicação,

e oficinas para marcas. Em 2016, estiveram à

linguagens artísticas e inovação. É uma das

frente de diversos debates sobre linguagens

curadoras da Mostra Diálogos Ausentes dos

mais justas em torno de gênero, por exemplo

espaços do Itaú Cultural.

a Conferência GP.

2. IACITATÁ E A ALIMENTAÇÃO

5. PROJETO HÍBRIDOS E A

ORIGINÁRIA DO NORTE

MUSICALIDADE NO BRASIL

Tainá Marajoara nasceu na Ilha do Marajó,

A documentarista e pesquisadora Priscilla

no Pará, e dedicou-se a estudar alimentação

Telmon e o cineasta Vincent Moon desenvol-

originária: modos de cultivo e preparação de

vem desde 2014 o Híbridos, um projeto mul-

alimentos que contemplem o respeito integral

timídia para compartilhar entrevistas, curtas

à natureza, incluindo os produtores. Está à

e um longa metragem resultante da imersão

frente, junto ao seu parceiro e cozinheiro Car-

em mais de 80 rituais que envolvem música

los Ruffeil, do ponto de cultura Iacitatá, em

e espiritualidade no Brasil. Está previsto para

Belém do Pará. Mais do que um restaurante

2017 o lançamento da plataforma digital do

slow food, é um ponto de encontro entre pro-

projeto, que será uma biblioteca com textos e

dutores locais e pesquisadores da Amazônia.

pesquisas para consultas na internet.

3. “CONSUMO POPULAR” E AS

6. AILTON KRENAK E OS

FAVELAS NAS GRANDES CIDADES

DEBATES AMBIENTAIS

Antropóloga com mestrado e doutorado em

Ailton Krenak é líder indígena, ambientalista

consumo, Hilaine Yaccoub é pesquisadora de

e escritor. Nascido no Vale do Rio Doce, em Mi-

temas relacionados ao acesso a bens e servi-

nas Gerais, é conhecido como um filósofo bra-

ços em favelas cariocas e periferias das gran-

sileiro para temas como ecologia e educação.

des cidades do país. Professora e colunista de

Foi um dos pesquisadores convidados pela

vários veículos, publica no blog Teias do Con-

32a Bienal de São Paulo para compor debates

sumo e, em 2015, lançou um livro sobre.

sobre criatividade e o pensamento indígena.

O FUTURO DE TUDO

65


POST PREJUDICE

MARCAS E ATIVISMO Códigos emergentes da comunicação representativa estão relacionados à ação: o discurso já não basta — é preciso agir.

POR LENA MACIEL

Vivemos um momento interessante. A demo-

consumidor contemporâneo está atento àqui-

cratização dos meios de comunicação deu voz

lo que, infelizmente, é mais comum do que

a uma quantidade de agentes antes negligen-

gostaríamos quando se fala de marketing: dis-

ciados. Questões como racismo, feminismo e

cursos fantasiosos e vazios, que não se susten-

padrões de gênero estão em pauta, e perma-

tam na prática do mercad.

necerão assim nos próximos anos. A participação política foi revalorizada como um viés importante na vida em sociedade. Nossos repertórios culturais e cognitivos estão se ampliando, para que dentro deles caiba gente cada vez mais diversa. Marcas e empresas já perceberam isso: basta notar a quantidade de campanhas engajadas que surgiram.

66

Para evitar esse tipo de constrangimento — e até o risco de um boicote ao produto devido a uma comunicação desastrada — é preciso esclarecer a expectativa existente na aproximação de uma instituição às pautas que lhe interessam. Quais seriam os cuidados básicos a serem seguidos?

Até aí, tudo ok. Desde o começo dos anos 1920,

PRIMEIRAMENTE:

as marcas fazem parte da nossa vida diaria-

O CONTEXTO ATIVISTA

mente, reproduzindo ou divulgando cultura;

Ativismo é uma militância ou ação continua-

é justo que elas estejam reagindo ao espírito

da com o objetivo de chegar a uma efetiva mu-

do tempo. Entretanto, algumas dessas bem

dança social, privilegiando o fazer. Isso pode

intencionadas campanhas estão provocando

ser feito através do diálogo ou pressionando

resultados exatamente opostos aos desejados,

agentes — como governos e empresas — para

algumas se tornando até motivo de piada. O

que decisões sejam tomadas com o objetivo de

MIRÃ


alcançar tais mudanças. É um trabalho exaustivo, lento e, quase sempre, invisível e não remunerado.

BOAS PRÁTICAS PARA O ATIVISMO DAS MARCAS 1. APROXIMAÇÃO

Mesmo assim, é praticamente impossível falar

Para entender a causa que pretende divulgar,

de engajamento sem falar de ativismo. Isso

o primeiro passo é se aproximar dela. É im-

porque são essas pessoas que se colocam na

portante que a aproximação ocorra pela ocu-

linha de frente para corrigir desigualdades

pação do lugar de escuta, não pela tomada de

políticas e sociais que não estejam de acordo

posse do discurso. Todo cuidado é recomenda-

com o seu ideal de comunidade; e com essa

do: aproximação e apropriação são separadas

postura, muitas vezes, acabam impulsionan-

por uma linha tênue. São as pessoas relacio-

do a sociedade pra frente.

nadas àquela causa que melhor entendem as

Já imaginou remar contra a maré? Pois é justamente o que os ativistas fazem, todos os dias, chacoalhando a rigidez do status quo. O ativis-

dificuldades cotidianas, as demandas plurais e também os possíveis caminhos para que sua visibilidade aumente de maneira responsável.

mo abrange as mais diversas áreas do conhe-

O coletivo de fotógrafos I Hate Flash utilizou

cimento humano; passa por questões de raça,

sua influência para amplificar a voz daque-

gênero, meio ambiente, economia, esportes,

les que sofrem com preconceito. O projeto

infraestrutura, tecnologia, entre outras.

Abre (F)alas produziu mídias diversas para

O que motiva um ativista a agir é sentir com mais intensidade as consequências negativas das falhas no sistema. O ativista faz do incômodo seu combustível. O mais interessante é que quando se atinge uma conquista, uma parcela muito mais ampla da população é beneficiada, devido ao caráter coletivo e altruísta da prática.

abordar machismo, racismo, transfobia, lesbofobia e homofobia no Carnaval. A força e beleza impactantes da campanha devem-se não somente às habilidades dos fotógrafos e jornalistas, mas também (e principalmente) à luz incomparável dos depoimentos em primeira pessoa. 2. COLABORAÇÃO

Por outro lado, por trás de cada marca engaja-

Após familiarizar-se com as questões perti-

da, sabemos que existe uma indústria interes-

nentes à causa, é possível vislumbrar uma

sada, em última análise, no retorno financei-

proposta de cooperação em que ambos pos-

ro. E é exatamente no atrito entre essas duas

sam evoluir um tema, entendendo seus papéis

realidades que surge a zona cinza onde ques-

e contribuições.

tionamos: quanto do boom de engajamento parte de um comprometimento real com a mudança, e quanto está apenas preocupado em se adequar ao mercado?

Em

pesquisas

recentes

realizadas

pela

Box1824, constatou-se que os códigos culturais residuais da representatividade na comunicação são inexistentes, ou seja, em um pas-

É inegável que a consciência das marcas pro-

sado recente, não se falava sobre diversidade.

voca impacto, mas é preciso que ela seja capaz

Atualmente, os códigos considerados domi-

de provocar transformação — um senso de

nantes são pautados pelo discurso: fala-se so-

melhora na maneira como as pessoas sentem

bre diversidade e propõe-se ângulos positivos

a vida. Pelo seu alcance e abrangência, a pu-

para tais questões. Os códigos emergentes

blicidade cumpre papel educativo, alimenta

estão relacionados à ação: o discurso já não

o imaginário coletivo e sugere práticas. Toda

basta, uma vez que acentua a percepção falha

comunicação deve ser pensada com a respon-

do sistema sobre uma categoria; é preciso agir

sabilidade que ela sugere.

em vez de (só) falar.

O FUTURO DE TUDO

67


Se você é tocado pela causa LGBTQ+, ofereça,

5. APOIO PERMANENTE

por exemplo, vagas de emprego, já que muitas

Como já foi dito, a grande maioria dos ativis-

pessoas dessa comunidade vivem em condi-

tas trabalha de forma voluntária, sem remu-

ções de vulnerabilidade. Se prefere associar-

neração fixa. O cenário ideal para uma marca

-se à tecnologia, cogite patrocinar uma pales-

que deseja se aproximar, de fato, do ativismo,

tra, uma convenção, um encontro. Tenha em

é criar um fundo de apoio permanente para

mente que, por enquanto, é importante que

alguma organização, coletivo ou grupo atuan-

os protagonistas do processo sejam os ativis-

te pela causa que lhe interessa. Assim como

tas envolvidos na causa, e não a marca, que

é de conhecimento geral que as empresas fa-

deve participar do evento com o objetivo de

zem lobby para ter suas demandas atendidas

ampliar a sua rede de conexões e aprender

no governo, os tempos cobram que elas tam-

com os envolvidos.

bém financiem aqueles que trabalham pela manutenção de direitos. É uma bela maneira

3. COMUNICAÇÃO Este é o item mais comum, atualmente. Sobram exemplos de marcas que levantam uma bandeira de “diversidade” — seja no discurso ou no rosto dos modelos. Sabemos que comunicar é uma questão importante, e as causas também querem aparecer. Para que a propa-

de equilibrar o carma social. Diante dos escândalos recentes e da revelação de promiscuidade entre empresas e governo, o momento é propício para que as marcas restabeleçam uma relação mais transparente e honesta com suas comunidades.

ganda seja melhor recebida é recomendável

É urgente tomar posição. Se o mundo parece

que, antes, as empresas sigam os dois passos

caótico, é preciso criar ferramentas e proces-

acima. O lastro da verdade é fundamental —

sos de aprendizado em que todos — governos,

fazer é maior do que falar.

corporações, pessoas — possam evoluir sua postura em sociedade. Apoiar causas políticas

4. PÓS-PRECONCEITO

ou comportamentais é fazer a diferença; basta

Neste momento a marca volta-se para si mes-

sensibilidade e o desejo de começar.

ma e, por meio dos aprendizados que adquiriu no processo, pode refletir sobre possíveis desconexões entre discurso e prática, corrigindo desvios. Em uma ação divulgada em março de 2017, a Skol propôs que ilustradoras refizessem seus cartazes de divulgação que objetificavam mulheres, adequando-os a um discurso mais comprometido com as demandas femininas atuais. Ao assumir erros do passado e se comprometer em fazer diferente, não somente a empresa mostra que houve uma evolução em seu pensamento como também convida a sociedade a se questionar. Sempre que uma ação de marketing é acompanhada de uma mudança real na política da empresa, ela se torna mais potente.

68

MIRÃ


O FUTURO DE TUDO

69


YOUTH MODE

DESCLASSIFICAR PARA ENXERGAR: ENTENDENDO AS REAIS MOTIVAÇÕES DO MERCADO Marcas desclassificam as convenções do mercado e passam a enxergar seu público de forma mais qualitativa e profunda

POR JANIENE SANTOS

Consumidores complexos e paradoxais estão

Há exemplos disso bem à nossa frente. An-

fazendo as empresas repensarem suas formas

tes de citar alguns deles, é importante deixar

de segmentar o mercado. As segmentações

claro que toda tendência se materializa cultu-

clássicas, quase sempre pautadas em clas-

ralmente, ou seja, é perceptível em diversas

sificações demográficas como classe social,

áreas da contemporaneidade, incluindo, por

região, faixa etária ou gênero estão ultra-

exemplo, o consumo, visto pela antropologia

passadas. As tendências TRANScenGENDER,

como área muito fértil para a compreensão do

Youth Mode e Unclassed materializam valores

comportamento das pessoas.

emergentes nas dinâmicas sociais e justificam a morte do clássico target.

70

MIRÃ


O FUTURO DE TUDO

71


QUANTOS ANOS VOCÊ QUER TER? A ideia de que a idade cronológica não se vincula mais à juventude ou à atitude é comprovada no cenário atual do consumo. Trata-se de um novo valor emergente na sociedade. Não são poucas as mulheres maduras estrelando campanhas publicitárias: Catherine Deneuve para Louis Vuitton, Jessica Lange para Marc Jacobs, Iris Apfel para Kate Spade, Joan Didio para Céline, Anjelica Houston para Gap, Sophia Loren para Dolce & Gabbana. Mais do que passar a mensagem de que jovialidade e beleza são para todas as idades, as campanhas mostram que estereótipos convencionais estão mais abertos e receptivos ao “fora do padrão”. Sabemos que também há um grande interesse por parte das marcas em atingir um filão do mercado: pessoas com mais de sessenta anos representam o grupo de consumo com mais rápido crescimento no mundo.

transitam na esfera de um mesmo consumo. Isso porque consumir passa a ser mais (ou quem sabe menos) do que comprar o produto. Ser fã de uma marca e propagar suas mensagens nas redes sociais, assim como “curtir” no Facebook, também são formas de consumo. Esse é só um dos motivos pelos quais não se pode engessar nossa leitura de mercado nas segmentações tradicionais. Outro ponto para se pensar é que poder aquisitivo não está diretamente relacionado à classe socioeconômica. Quem pode comprar mais: um office boy adolescente que trabalha para comprar suas coisas e não precisa se preocupar com as despesas domésticas ou uma mãe de três crianças, executiva com bom salário, mas que precisa pagar colégio, babá e uma série de outras contas em casa? Será mesmo que as marcas precisam falar apenas com quem teria dinheiro para com-

NÃO SE CLASSIFICA

prá-la, sendo que, uma vez transformada em

UM MULTIVÍDUO

objeto de desejo, ela se torna meta de quem

Assim como acontece com o gênero e a faixa

pode abrir mão de outras coisas para juntar

etária, a classificação de um consumidor não

dinheiro por um tempo para realizar seu con-

se limita apenas à classe social e ao poder eco-

sumo aspiracional?

nômico. “Desclassificar” é olhar para dentro das pessoas buscando entender suas reais motivações. Só assim é possível agrupá-las: por critérios de afinidade.

72

Além disso tudo, o consumo consciente e a sustentabilidade tornaram os consumidores mais exigentes e mais críticos. Além de policiarem uns aos outros e às marcas, as pessoas

Definir um público-alvo é entender os moti-

hoje utilizam sua conduta ética como nova

vos pelos quais diferentes pessoas, com classi-

bandeira de poder social. O “status” passa a

ficações diversas e paradoxais, se “agrupam”

estar mais associado à postura no mundo do

em torno de uma mesma grife ou de um mes-

que ao poder aquisitivo. E as marcas já enten-

mo ideal, uma vez que falar em marca na pós-

deram que deverão convencer muito mais do

-modernidade é falar, acima de tudo, em valo-

que nosso bolso, e para isso, precisam nos en-

res, mais do que em materialidade, razão pela

xergar de forma mais qualitativa e profunda

qual pessoas de diferentes classes econômicas

para melhor argumentar suas propostas.

MIRÃ



EMPURPOSE

O MITO DA GERAÇÃO EMPREENDEDORA A famosa “garagem” onde nasceram Amazon, Apple, Google e outras empresas inovadoras é muito mais glamourosa do que se pensa — principalmente devido aos privilégios de seus fundadores

POR VALDIR DE OLIVEIRA JR.

Um dos maiores mitos dos últimos anos é, sem

internet ao seu dispor, capacidade inovadora

dúvidas, o da geração empreendedora, os mil-

e principalmente vontade de mudar. Parecia

lennials. Se você tem entre 22 e 35 anos, pro-

a combinação perfeita. Um boom de startups

vavelmente já leu diversos artigos de como

estaria à vista, capazes de trazer a economia

essa geração estaria fadada a mudar o mundo,

de volta aos trilhos em todo o mundo.

as empresas, o consumo. A eles foi dada a tarefa de consertar tudo o que está errado — em um toque de mágica, essa geração seria capaz de inovar como nunca. Em artigo de 2014, a Forbes anunciou: “Millennials são a verdadeira geração empreendedora.”

74

Mesmo os inúmeros artigos que os chamavam de preguiçosos, mimados e egoístas não foram o suficiente para lhes tirar o poder — os millennials estavam destinados ao sucesso. Mas o que se descobriu nos últimos anos é que, na realidade, nunca uma geração empreendeu

Um dos maiores motivos para tanto alarde é

menos que os nascidos no fim dos anos 1980

que esses jovens seriam os mais preparados

e metade dos anos 1990. Os mais preparados

já vistos. Com grande percentagem tendo

acabaram não empreendendo em muita coisa

passado por universidades, esta geração tem

diferente daquilo que era esperado.

MIRÃ


COMO O EMPREENDEDORISMO FLORESCE Um dos mitos criados sobre a facilidade de se empreender tem representantes surpreendentes: Amazon, Apple, Disney, Google, Harley Davidson, HP, Mattel, Microsoft, Dell, Nike. Todas nasceram na famosa garagem, de forma simples, apenas com uma boa ideia e vontade. A PSICOLOGIA DAS VELHAS MÍDIAS E DAS VELHAS IDEIAS O que pouco se fala são os aspectos psicológicos que levaram à ideia de que a geração Y seria a capaz de refazer tudo. Um emaranhado de informações desencontradas e má intenção criou um cabo de guerra, com milhares de jovens no meio. Quando enfim começaram a sair das universidades, do meio para o final dos anos 2000, o que a maior parte via era

Se eles, lá atrás, com menos oportunidades, conhecimento e tecnologia, conseguiram, quais motivos levam os jovens atuais a não conseguirem? Mais uma vez os que vieram antes bradavam: “Falta vontade, mimados.” O que infelizmente não se fala é que essa garagem é muito mais glamourosa do que se vende e, principalmente, que seus fundadores estavam muitos mais preparados do que se pensa.

uma herança desumana: a economia em que-

Em artigo publicado em seu blog, Ivan Raszl

da livre, gentrificação sendo levada aos limi-

detalha a mentira da garagem e a quebra em

tes do lógico, custo de vida subindo sem parar.

7 pontos cruciais, que livremente explorarei

O que se procurava por fim, era um messias em quem se pudesse jogar o peso da culpa sem apontar para si, capaz de consertar tudo

aqui com adicionais, e que podem ser deslocados e aplicados para empreendedorismo em geral.

como um milagre. Os escolhidos foram os mil-

1. Espaço: Só a existência de uma garagem li-

lennials. Com isso, a muitos jovens foi dado o

vre para empreender já mostra que um espa-

acesso a diversas ferramentas (educação, tec-

ço seguro estava a disposição desses empreen-

nologia, internet, compartilhamento, redes),

dedores, onde todas as facilidades da casa que

porém, uma vez que eles aprenderam tudo o

a acompanha estavam a alguns passos. Quan-

que supostamente precisavam para entrar no

tas pessoas tem uma garagem livre para ser

mercado com novas ideias, tiraram-lhes o es-

usada na criação da nova Apple?

sencial, as oportunidades.

2. Segurança: Uma garagem é acompanhada

Nesse cenário, começaram os estudos enco-

de uma casa, casa essa que em geral se encon-

mendados, os artigos de grandes jornais e re-

tra em um bairro seguro e bem estruturado,

vistas, as avaliações geracionais. Visto que o

um bairro onde empreendedorismo é bem

messias não funcionava como imaginado, co-

visto e incentivado, onde suas invenções estão

meçou a culpabilidade: são mimados, querem

seguras e afastadas dos problemas do mundo.

tudo para ontem, não gostam de trabalhar,

Quantos jovens têm segurança para criar a

precisam de feedback constante, entre outros

próxima Amazon?

argumentos rasos.

3. Leis: Para que se possa empreender é fun-

Agora imagine: dizem ao mesmo tempo que

damental que as leis que se aplicam aos novos

você é capaz, mas não faz porque não quer;

negócios sejam impulsionadoras e não barrei-

você tem o peso do mundo sobre as costas e,

ras, é preciso pouca burocracia e muito incen-

ao mesmo tempo em que é chutado sem pieda-

tivo. Quantos países no mundo dão condições

de, gritam aos seus ouvidos: “EMPREENDA!”

para nascer um Google?

O FUTURO DE TUDO

75


4. Tempo: Mesmo que você não precise sus-

Isso mostra claramente que boa parte dos

tentar uma família, muito provavelmente pre-

jovens, no mundo atual, simplesmente não

cisa se sustentar, o que significa que ao menos

pode empreender, uma vez que está mais

8 horas do seu dia estão comprometidas. Além

preocupada em sobreviver.

disso, hoje em dia muitos jovens tem dois empregos. Logo, é fundamental que se tenha

EMPREENDER É POSSÍVEL —

tempo livre para empreender, mas a hora de

PERMITAM AOS JOVENS

dormir deve ser usada para dormir. Quantos

É sabido que o empreendedorismo é parte

jovens têm tempo para empreender e fundar

fundamental da economia. É através dele que

a concorrente da Microsoft?

as próximas grandes empresas que levarão

5. Conhecimento: O que pouco se diz é que os famosos empreendedores de garagem tinham educação de altíssima qualidade, adquiriram ferramentas muito específicas em ótimas empresas ou mesmo tinham acesso a pessoas importantes do mercado. Bill Gates e Steve Jobs estudaram na mesma escola, escola essa em

rão empregos e motivarão a próxima geração. Mas para isso é preciso que as antigas gerações permitam que isso aconteça, sem jogar responsabilidades e culpas nos braços dos mais jovens enquanto assistem de camarote o seu fracasso.

que tinham acesso a um computador, algo

Empreender é acima de tudo uma questão

impensável para muitas empresas na época,

psicológica. É preciso ter a mente livre para

uma vez que era uma máquina muito gran-

pensar o futuro em vez de se preocupar com o

de e absurdamente cara. Quantos millennials

presente, é preciso se sentir capaz e motivado,

têm acesso a conhecimento tão diferenciador

ver as coisas não como obrigação e sim como

hoje em dia para brigar frente a HP?

oportunidade.

6. Dinheiro: Para empreender, mesmo que em

Para que se determine o fim dos artigos escri-

uma garagem, é preciso dinheiro, não só para

tos por baby boomers sobre como millennials

sustentar o negócio, por menor que ele seja,

são mimados, o fim de pesquisas que deter-

mas também para se sustentar enquanto não

minam que somos mais capazes do que o am-

há lucro, algo que leva muito mais que alguns

biente permite, que se mostre a verdadeira

meses. Quem tem dinheiro sobrando para a

face dos problemas e que se explore soluções

próxima Disney?

que ajudem mais que atrapalhem.

7. Motivação: Levando tudo isso em conta, nota-se que esses empreendedores devem ter os privilégios de uma classe econômica capaz de dar todas as bases necessárias e, principalmente, capaz de celebrar empreendedores. É preciso um ambiente que veja mais valor em abrir um negócio do que em prestar um concurso público ou arranjar um emprego em uma boa empresa.

76

parte da economia para frente surgirão, da-

MIRÃ


IVAN RASZL

O FUTURO DE TUDO

77


EMPURPOSE

AUTOGESTÃO: INFINITA JORNADA À POTÊNCIA INDIVIDUAL Despontam modelos organizacionais autogeridos e formatos de liderança distribuída — a mágica destes ambientes é permitir que cada pessoa seja a melhor versão de si mesmx

POR DUDU OBREGON

78

MIRÃ


É provável que você conheça muitas pessoas

É preciso ressaltar que sistemas autogeridos

insatisfeitas e desconectadas com seus grupos

podem (e devem) ter estrutura.

de trabalho. É provável, também, que isso tenha a ver com a forma como nos organizamos coletivamente. Isso porque a revolução digital transformou os relacionamentos. Modelos hierárquicos atendiam bem o contexto de Revolução Industrial, mas são insuficientes para a demanda atual. As empresas, organismos complexos, penam para acompanhar a velocidade das evoluções tecnológicas e de consciência — vide crises econômicas, marcas que não entendem jovens, altos índices de insatisfação no trabalho etc. Se a mudança é constante, agilidade é um valor indispensável para qualquer empresa. Assim, operar por meio de comando e controle não é meramente uma questão de “estar fora de moda”, mas de perder em mobilidade. Nesse contexto, modelos organizacionais autogeridos e formatos de liderança distribuída despontam como alternativas eficazes para alinhar modelos de gestão industriais ao espírito do nosso tempo. Existem empresas que já atualizaram a forma como se organizam. Mas quando se fala em autogestão, ainda surgem muitas dúvidas e desconfianças. ESTRUTURA E TRANSIÇÃO

Ao passo que é perigoso manter hábitos de um sistema hierárquico em um sistema horizontal, também é fatal quebrar a pirâmide hierárquica e tirar os chefes sem repensar a reestruturação dos processos vitais da empresa. Processos de tomada de decisão, gestão de conflitos, orçamentos, demissões, entre muitos outros, continuam existindo na nova configuração. Portanto, é imprescindível que todo o sustento que era fornecido pelos cargos do topo sejam redistribuídos entre a rede. Quem antes era o topo da pirâmide ganha mais tempo, porque a carga de trabalho diminui e as responsabilidades se diluem entre mais pessoas; quem antes era base da pirâmide ganha mais autonomia e agilidade para execução de suas atividades, porque intermediários de validação são eliminados. Para superar problemas e aprimorar sua dinâmica, empresas que operam sem chefia têm investido, por exemplo, em treinamentos de métodos de interação orientados para solução. Temas como facilitação de grupos, tipos de escuta, comunicação não violenta, como fazer reuniões produtivas, dão suporte ao campo de interações.

Para começar, autogestão não é falta de es-

É claro que a transição não é simples. Modelos

trutura. O instinto das pessoas que passaram

autogeridos não estão isentos de oscilações. É

por modelos educacionais e organizações

importante que esse processo seja encarado

herdadas da revolução industrial é de pensar

como uma infinita jornada de aprendizado

que autogestão significa ausência de regras,

individual e coletivo. Liberdade e autonomia

o que resultaria em fracasso organizacional.

podem paralisar aqueles que se desenvolve-

O FUTURO DE TUDO

79


ram profissionalmente em cadeia de coman-

AUTOGESTÃO E POTÊNCIA INDIVIDUAL

do e controle. Mas a horizontalidade passa a

Em artigo, a revista Harvard Business Review

funcionar exatamente quando se aprende a

criticou as gerências, que considera “castas de

lidar com atritos — o erro constitui parte fun-

alto salário”, e se manifestou a favor do sis-

damental do fluxo.

temas de liderança distribuída. De fato, em

Se tudo isso parece muito abstrato, a boa notícia é que, visto que a cultura open-source faz parte do DNA das empresas modernas, vários desses processos adaptados podem ser encon-

existe apenas para garantir que as pessoas façam seu trabalho bem feito — e, mesmo assim, falha.

trados abertamente na internet. Isso facilita a

Por que não, em vez de investir nos salários

adaptação: é aprender com quem já fez e, por

da gerência, não se investe em um sistema

inspiração ou réplica, ajustar de acordo com a

que valorize as pessoas e as estimule a ope-

necessidade e natureza do negócio.

rar em sua máxima potência? Por que não ir

O livro Reinventing Organizations, de Frederic Laloux, serve como manual para profis-

ainda mais além e aliar a alta performance da gerência à operação?

sionais que querem experimentar modelos

A mágica dos ambientes autogeridos é permi-

alinhados ao espírito do nosso tempo. Em sua

tir que cada um possa ser a melhor versão de

pesquisa, ele encontra doze empresas inspira-

si, a partir da livre interação e colaboração.

doras, todas com times maiores que cem inte-

Autogestão, bem como horizontalidade, não

grantes e pelo menos cinco anos de estrada.

significa que todo mundo é igual, mas que

No site, métodos de autogestão open-source

cada um pode, com respeito mútuo, ser li-

para quem busca exemplos.

vre para ser em toda sua potência. Ninguém

Há indústrias tradicionais que já operam há décadas em modelos de liderança distribuída.

empodera ninguém, porque o poder já existe dentro de cada um.

Sobreviveram a crises econômicas com resi-

A APAC — Associação de Assistência aos Con-

liência tão grande quanto, se não maior que,

denados — é um exemplo de organização au-

empresas que operam hierarquicamente.

togerida cuja existência está diretamente vin-

Morning Star é a maior empresa de processamento de tomate do mundo. Emprega mais de 400 pessoas, entre motoristas de caminhão, operadores de máquina e engenheiros. Ape-

culada à crença de que há potencial em todos. As APACs do Brasil funcionam como prisões autogeridas, com finalidade de reintegração do condenado no convívio social.

sar de ser super tradicional, nada glamurosa

Se uma empresa hierarquizada busca transi-

ou cool, opera sem chefes desde 1970, e tem

cionar para a autogestão, um primeiro passo

receita anual de 700 milhões de dólares.

simples é capacitar e valorizar os membros de

Buurtzorg é uma empresa holandesa de neighborhood nursing, uma espécie de atendimento de enfermagem para idosos e doentes a domicílio. Seu faturamento anual costuma ficar acima de 200 milhões de euros. No time, nenhum chefe. Apenas seis pessoas no suporte financeiro e mais de 9 mil funcionários que se dividem em times de 12 pessoas.

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muitos casos a gerência é uma burocracia que

MIRÃ

sua equipe — algo que, em tese, deveria ser feito sempre. Este também é um movimento subjetivo, de dentro pra fora, que faz com que as pessoas se sintam capazes e confiantes para tomar decisões sobre si e sobre os outros. No fundo, tudo é uma questão de colocar o bem coletivo em primeiro lugar.


O FUTURO DE TUDO

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EMPURPOSE

CRISE DE CONFIANÇA: A VELHA POLÍTICA NA ERA DA HIPERCONEXÃO De que maneira as novas tecnologias podem escoar (ou não) o concentrado poder governamental?

POR CONRADO GIANNETTI

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Após a Primavera Árabe e o Occupy Wall

instituições. Entretanto, faltou poder e conti-

Street, em 2011, a “geração internet” respirava

nuidade para os movimentos colocarem algo

aliviada: parecia ter se livrado da pecha fácil e

novo no lugar. Então, a mesma rede outrora

rasteira que a identificava como revolucioná-

festejada como espaço de informação livre e

ria de sofá. Os hiperconectados provavam, en-

mobilização popular, tornava-se agora a casa

fim, que a ágora virtual poderia sim ser ninho

da pós-verdade e das bolhas sociais. O que

de transformações maiúsculas, mesmo em

dava sinais de esgotamento (a democracia re-

matéria tão antiga e rígida como é a política.

presentativa parceira de monopólios globais)

A janela que se abriu deixou passar, em 2013,

tomou novo fôlego. O resultado disso é que

as Jornadas de Junho, a versão brasileira dos

hoje convivemos em meio a Trumps, Macris,

protestos caracterizados por nascerem fora

Macrons e Temers. Apesar de fundamental, o

de grandes círculos de influência e sem lide-

objetivo deste texto não é apontar os motivos

ranças marcantes. Mas os anos passaram e a

que nos levaram ao fim de uma ilusão. Quere-

configuração das coisas já é outra. O descon-

mos discutir de que maneira as novas tecno-

tentamento expresso nas ruas deixou um vá-

logias podem escoar (ou não) o concentrado

cuo. Derrubaram-se certezas, mancharam-se

poder governamental.

MIRÃ


O FUTURO DE TUDO

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GERAÇÃO DESGOVERNADA

esteve tão claro. A cada revelação do seu cor-

O sociólogo espanhol Manuel Castells abre seu

panzil, aumenta a evidência de crise no casa-

livro Redes de indignação e esperança (2013)

mento entre democracia e capitalismo. Ok, o

relatando a ruptura que se deu há alguns

problema está aí. Mas, e a solução?

anos: “Os mágicos das finanças passaram de objetos de inveja pública a alvos do desprezo

A PIRÂMIDE VIRADA EM REDE

universal. Políticos viram-se expostos como

No artigo “Do Artifacts Have Politics?” , Lang-

corruptos e mentirosos. Governos foram de-

don Winner debate se tecnologias podem

nunciados. A confiança desvaneceu-se — e

já nascer com diretrizes políticas: “Estamos

confiança é o que aglutina a sociedade, o mer-

acostumados a olhar para as tecnologias como

cado e as instituições.”

ferramentas neutras que podem ser usadas

Enquanto as hipóteses positivas de Castells não se concretizam – o potencial revolucionário da sociedade em rede –, a fissura que ele descreve parece se ampliar. No Brasil, o cheiro de naftalina que exala do poder dominante alcança o insuportável: espelhar-se nas lideranças disponíveis tornou-se ato de retrocesso ou de desespero. Mas não é só aqui.

malmente não paramos para nos perguntar se determinado aparelho pode ter sido criado e montado de maneira que produza uma série de consequências planejadas anteriormente a suas utilidades então descobertas.” Winner conta que “o sistema fabril, o automóvel, o telefone, o rádio, a televisão, o programa espacial, e é claro a energia nuclear foram em algum momento descritas como forças demo-

Recentemente, Yuval Noah Harari, autor de

cratizadoras, liberadoras”. A internet, obvia-

Sapiens (2014), apontou que “pela primeira

mente, também faz parte da trupe e já possui

vez na história, não fazemos ideia do que en-

o seu próprio cabo de guerra.

sinar às crianças na escola ou aos estudantes na faculdade.” A desorientação é geral.

É possível apontar pelo menos duas concepções de internet. Uma enxerga na sociedade

No campo específico do protesto, por exem-

conectada a chance de mimetizar a ordem

plo, Micah White, uma das pessoas que enca-

de sempre, em que pouquíssimos levam van-

beça o movimento Occupy, lançou um livro

tagem e muitos correm atrás, agora em nova

chamado The End of Protest (2016). Em entre-

arena e escala global. A outra enxerga na so-

vista para Douglas Rushkoff no Team Human,

ciedade conectada a chance de finalmente di-

White opina: “O fim do protesto não significa

luir a concentração de poder, permitir formas

a ausência de protestos, mas a proliferação do

mais justas e cooperativas de organização e

protesto ineficaz [...]. O que ocorreu foi que o

diminuir distâncias. Geográficas? Também.

conceito de protesto foi separado do conceito

Mas, principalmente, econômicas.

de revolução. Protesto se tornou um comportamento performático, realizado para atrair a atenção da mídia e espalhar uma mensagem.”

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bem ou mal, ou algo entre os dois. Mas nor-

Quando buscamos uma alternativa política — uma verdadeira alternativa política — flertamos com a internet que prima pela des-

Chegamos a um ponto em que as formas prá-

centralização, pela pluralidade, pelo usuário

ticas de luta, o protesto de rua, especialmente,

autônomo e não servo. Mesmo que estas qua-

tem sofrido tentativas de esvaziamento de seu

lidades ainda não tenham encontrado harmo-

caráter crítico ao se tornarem pauta de gran-

nia em um único modelo para nos servir de

des corporações. Entretanto, a dificuldade em

referência, elas têm pipocado e se manifesta-

combater um problema não significa que ele

do de forma não organizada, em iniciativas e

não foi identificado. Pelo contrário, ele nunca

reflexões de origens dispersas.

MIRÃ


Por exemplo, em recente episódio do progra-

conluio com o antes inimigo Império Alemão,

ma Roda Viva, o economista Eduardo Giannet-

mas a experiência foi histórica. Às vezes, as

ti lançou o mote “menos Brasília, mais Brasil”.

inspirações para uma sociedade democrática

Ele diz: “Poder para o governo local. O cidadão

vêm de longe no espaço e também no tempo.

mora no governo local, no município, ele não mora em Brasília. A quem interessa o dinheiro que nós pagamos ir até Brasília para depois voltar? Minha bandeira é descentralização.”

Todos estes exemplos tateiam por algo em comum: é possível a vida em sociedade sem desigualdade? Ou é natural, é necessário que alguns poucos mandem e guardem privilégios?

Giannetti defende opiniões que podem desa-

São questões que nos acompanham desde a

gradar entusiastas das ecovilas. Contudo, é

Grécia Antiga e que agora acessam um novo

impossível não perceber uma convergência

capítulo com uma poderosa personagem cha-

entre seu mote e a essência destas comunida-

mada tecnologia digital.

des. Usualmente rurais, as ecovilas são uma forma de organização em que a sustentabi-

DEMOCRACIA LÍQUIDA,

lidade é colocada como uma das principais

UMA UTOPIA?

bandeiras. A produção de comida e a utiliza-

A ativista argentina Pia Mancini subiu ao pal-

ção de energia são processos que buscam a

co do TED em 2014 para contar a história do

harmonia com a natureza. Entre si, os parti-

Democracy OS. O aplicativo que ela havia in-

cipantes também exercitam o equilíbrio entre

ventado começara como uma ponte entre elei-

a autonomia como indivíduo e a responsabili-

tores e parlamentares, para depois se tornar

dade como membro. Em outras palavras, po-

algo como a versão pampa do DemoEx, um

der para o local.

experimento sueco no qual políticos eleitos

O geógrafo britânico David Harvey, um dos autores de Cidades Rebeldes, atentou em artigo de 2013 o lado antidemocrático da nossa paisagem urbana: “É um mundo em que a ética neoliberal de individualismo, acompanhada pela recusa de formas coletivas de ação política, torna-se modelo para a socialização humana. [...] Os resultados estão indelevelmente gravados no espaço das nossas cidades, que cada vez mais consistem de fragmentos fortificados, condomínios fechados e espaços públicos privatizados, mantidos sob vigilância constante.” Sempre que pode, Harvey traz à tona a Comuna de Paris. Em 1871, a instabilidade gerada pela Guerra Franco-Prussiana deu a oportunidade aos trabalhadores franceses de derrubarem a Assembléia e tomarem as rédeas da cidade. Entre as medidas que aquela nova so-

votam de acordo com a vontade de seus eleitores. Na mesma linha, Santiago Siri trabalha no software Democracy Earth e a Bancada Ativista elegeu vereadores em São Paulo com campanhas pagas por meio de financiamento coletivo. MiVote é uma startup australiana de democracia que usa a internet e smartphones para que os cidadãos votem a direção que o país tomará. É uma plataforma que educa e ajuda a escolher entre uma variedade de opções de políticas que quebram opções binárias de democracia em questões amplas, como política sobre refugiados, por exemplo. Foram tempos de encanto com as possibilidades que a tecnologia digital trazia para o campo da política. Até parecia que a consolidação da democracia líquida era iminente. Foram tempos anteriores à vitória de Donald Trump e do Brexit.

ciedade tomou, estavam a igualdade entre os

Mas o que a ideia do hackeamento da política

sexos, a abolição da pena de morte e a dupli-

tem de inovadora, ela tem de velha. William

cação do salário de professores. O final foi trá-

“Boss” Tweed, um político norte-americano

gico, com um ataque do governo francês em

nascido em 1823, comentou: “não me impor-

O FUTURO DE TUDO

85


ta quem faça a eleição, desde que eu faça a

Para além do deslumbramento com as possi-

nominação”. Ou seja, a democracia moderna

bilidades numéricas e estéticas da tecnologia

já foi hackeada desde seu nascimento, por

digital, é hora de percebê-la como ferramenta

banqueiros, latifundiários e empresários. O

auxiliar de um projeto político que a perpas-

que temos é apenas um vulto, uma sombra de

sa e ultrapassa. Já foi dito no The Guardian:

sistema democrático.

“Para reenergizar a democracia, nós precisa-

E é aqui que se revelam outras complexas facetas desta utopia: é possível retomar o poder jogando o jogo dos poderosos. Sim, é melhor do que nada e sim, é válido tentar ocupar estes espaços de representatividade pública, mas a transformação social não vai começar na Câmara ou no Senado. Ela começa aqui fora.

mos passar menos tempo falando de tecnologia, e mais tempo entendendo como ajudar pessoas comuns a desenvolverem uma percepção do seu próprio papel. O poder das instituições tradicionais de governo e da mídia tem sido exercido em estruturas cima-baixo e gatekeepers que controlam o acesso a ideias, informação e audiências de massa. Mas os

Se hackear a política ainda é uma ideia em-

gatekeepers estão agora perdendo o controle,

brionária, sua possibilidade levanta para-

enquanto os indivíduos percebem sua capaci-

doxos. Como pôde a tecnologia, que conecta

dade de se integrar e de exercer o poder.”.

todo o mundo, ter agravado o distanciamento, a desconfiança, a cultura do eu? Será que pode haver um equilíbrio entre a inteligência programada de aplicativos políticos e a revolta instintiva de eventos como a revolução dos guarda-chuvas em Hong Kong e a ocupação das escolas no Brasil? Chegará o momento em que as grandes companhias digitais serão

Claro que os caminhos são vacilantes e taxar a ideia da democracia direta de utopia surge como um reflexo, mas vale lembrar que “pensar de maneira utópica é um primordial ato político. Envolve uma recusa a ser limitado pela obsessão com o aqui e agora para focar no mundo que poderia e deveria ser.”

alvos de protestos massivos como são hoje os

No vazio que estamos vivendo, nesta ampla

governos e o sistema financeiro? Como ven-

reformulação do que significam as institui-

cer uma batalha que se desenrola nas nossas

ções políticas, isso pode ser tanto um perigo

mentes e não nas nossas mãos?

como uma oportunidade.

“A luta fundamental pelo poder é a batalha pela construção de significado na mente das pessoas.” — Manuel Castells

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MIRÃ







EDIÇÃO TENDÊNCIAS NOVEMBRO/2017 R$ 40


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