nº 1/2007 periodicidade anual
Instituto dos Museus e da Conservação ano I, nº 1, maio 2007
dossiê museus e arquitectura
museologia.pt
museologia.pt nº 1 / maio 2007 Director do Instituto dos Museus e da Consevação Manuel Bairrão Oleiro Direcção da revista Clara Frayão Camacho
Subdirectora do Instituto dos Museus e da Conservação
Conselho editorial Alice Semedo
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Graça Filipe
Ecomuseu Municipal do Seixal
Marina Chinchilla Gómez Mário de Souza Chagas Paulo Providência Pedro Redol Pio Gonçalo Alves de Sousa Raquel Henriques da Silva Rosário Azevedo Suzana Fernandes Suzana Menezes Teresa Soeiro
João Brigola
Traduções
João Castel-Branco
Marina Chinchilla Gómez Museus de Espanha. A configuração de uma Rede
Universidade de Évora Museu Gulbenkian e Comissão Nacional do ICOM
Luís Raposo Museu Nacional de Arqueologia
Raquel Henriques da Silva
Tradução de Fernando Montesinos Resumos
Tradução de Michelle Nobre Dias e Clotilde Mendes
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
Edição e propriedade Instituto dos Museus e da Conservação
Coordenação editorial Maria Amélia Fernandes Michelle Nobre Dias Nuno Fradique
Palácio Nacional da Ajuda Ala Sul, 4.º andar 1349-021 Lisboa Telefone: +351 21 365 08 00 Fax: +351 21 364 78 21
Textos Álvaro Siza Vieira António Portugal Cândido Chuva Gomes Carlos Guimarães Clara Mineiro Cláudio Torres Fernando Távora Francisco Clode Sousa Gonçalo Byrne Graça Filipe Graça Soares Nunes Henrique Coutinho Gouveia Isabel Aires Isabel Silva João Manuel Neto Jacob Joaquim Oliveira Caetano José Bernardo Távora José Cid José Gameiro José Luís Porfírio José Manuel Oliveira José do Nascimento Junior Luís Raposo Luís Soares Carneiro Madalena Braz Teixeira Manuel Maria Reis María Jesús Ávila
museologia.pt@ipmuseus.pt www.ipmuseus.pt Design gráfico Moritz Elbert Pré-impressão e impressão SOCTIP Distribuição e comercialização Lojas de Museus Palácio Foz, Praça dos Restauradores 1250-187 Lisboa
Periodicidade anual Preço por número 18 € Tiragem 1000 Exemplares ISSN 1646-6705 Inscrição na ERC nº 125160 Depósito legal nº 258753/07 Agradecimentos Fundação Calouste Gulbenkian Guta Moura Guedes - Associação Experimenta João Fernandes - Fundação de Serralves Luciana Fina Maria Manuel Conceição Mariano Piçarra Os artigos são da inteira responsabilidade dos respectivos autores. Os textos e as imagens não podem ser reproduzidos sem autorização prévia do Instituto dos Museus e da Conservação ou de outros eventuais proprietários.
nº 2 / maio 2008 tema do dossiê: gestão de museus
Na capa: Sem Título Exposição “Casa Portuguesa” ExperimentaDesign 2005, Bienal de Lisboa © Moritz Elbert
museologia.pt
apresentação Manuel Bairrão Oleiro director do Instituto dos Museus e da Conservação
A
publicação de uma revista, de âmbito nacional e de cariz institucional, sobre museus e museologia era, desde há muito, sentida como necessidade premente a que urgia corresponder. Vicissitudes de cariz diverso impediram sucessivas direcções do Instituto Português de Museus de concretizar esse projecto que agora finalmente é concretizado sob a responsabilidade do recém-criado Instituto dos Museus e da Conservação (IMC). A edição de Museologia.pt constitui um passo de grande significado para o IMC e, é esse o nosso desejo, também para o conjunto dos museus portugueses e dos profissionais que neles exercem funções. Para o Instituto, a publicação desta revista significa o reforço de uma linha de trabalho que privilegia o contacto com os públicos, através de diferentes formas de comunicação, servidas por suportes diversificados, a qual se tem concretizado numa actividade editorial globalmente reconhecida como enriquecedora do panorama bibliográfico sobre os museus, as suas práticas e as suas colecções. Dirigindo-se prioritariamente aos museólogos, a revista terá igualmente motivos de interesse para outros profissionais (nomeadamente conservadores-restauradores, arquitectos, designers, antropólogos, arqueólogos, docentes, juristas ou gestores) cujo percurso se cruza com as actividades e projectos desenvolvidos pelo IMC e pelos museus portugueses. Pretendemos que Museologia.pt se constitua como um fórum de apresentação e de debate das questões que se colocam nas várias frentes de trabalho da museologia. Daremos a conhecer experiências, inovações, projectos e iniciativas nas diferentes áreas de desenvolvimento da museologia e da museografia. Publicaremos o resultado da investigação e de estudos sobre as colecções nacionais. Forneceremos informação sobre as linhas da política museológica noutros países, permitindo cotejar outras realidades com o que se passa no domínio dos museus, no nosso País. Estaremos abertos ao confronto de perspectivas, numa perspectiva de diálogo e de cooperação mutuamente enriquecedora. Estaremos pois ao serviço da museologia, cumprindo a missão de serviço público que é a nossa, numa plataforma que esperamos possa contribuir para alargar o conhecimento público do muito que se faz nos museus portugueses. Aos membros do Conselho Editorial que aceitaram partilhar com a direcção do IMC as responsabilidades no delinear e concretizar de Museologia.pt, cumpre expressar um agradecimento especial pela disponibilidade e apoio sempre demonstrados.
III
editorial Clara Frayão Camacho subdirectora do Instituto dos Museus e da Conservação
P
ublicar uma nova revista constitui para a entidade editora forte motivo de júbilo e esperançoso sinal de confiança. Júbilo, porque a edição de uma publicação periódica significa contribuir para impulsionar o debate, enriquecer a bibliografia da especialidade, estimular a informação e a novidade. Confiança, porque ao enveredar por um projecto de continuidade, com cadência anual, esta iniciativa editorial perspectiva-se para o futuro, desejando-se adaptada aos tempos e à mudança, e inscrevendo-se nos desígnios das políticas em curso e a desenvolver no campo dos museus. Ao publicar um novo título, vale a pena questionar a sua necessidade e oportunidade. A carência de revistas sobre temas de museus e de museologia em Portugal é constatada no meio profissional e académico há longos anos. Se é de salientar o crescimento da acção editorial periódica promovida pelos museus, através da publicação de boletins, é notória a ausência de edições regulares de maior fôlego, excepção feita, no passado, ao Boletim do Museu Nacional de Arte Antiga e à revista Museu, ainda hoje editada pelo Círculo Dr. José de Figueiredo, Grupo de Amigos do Museu Nacional Soares dos Reis. Ao contrário do que sucede nalguns países, esta lacuna não encontra resposta por parte das associações de profissionais de museus, que editam, com ritmos desiguais, boletins de ligação entre os associados. Da parte dos organismos de tutela da administração central, não chegou a ser concretizada uma publicação periódica especializada em museus, pese embora a edição pelo Instituto Português do Património Cultural nos anos oitenta do século XX de escassos números da revista Bibliotecas, Arquivos e Museus. Importa mencionar no mesmo período e até à década seguinte a publicação de Património e Museus Locais, editada pelo Instituto Rainha D. Leonor.
IV
Recentemente a acção editorial de alguns museus conduziu a alterações neste panorama, com a publicação de três novos títulos: com um âmbito académico e internacional, Museologia: an international journal of museology (2000-2003), editada pelo Museu de Ciência da Universidade de Lisboa, com um âmbito regional, Musa: museus, arqueologia & outros patrimónios (2004), promovida pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal e Museal (2006), pelo Museu Municipal de Faro. Tendo presente o diagnóstico da situação, a constatação da inexistência na actualidade de uma revista portuguesa, de âmbito nacional, subordinada a temas museológicos constituiu o ponto de partida para conceber e concretizar um projecto institucional que desembocasse no nascimento de uma nova publicação nesta área cultural. O enquadramento de Museologia.pt, gizada ao longo do ano de 2006 no Instituto Português de Museus e editada em 2007, já sob a égide do novo Instituto dos Museus e da Conservação, beneficiou naturalmente da consistente experiência editorial do IPM que, através de mais de quatro centenas de títulos, distribuídos por diversas linhas de edição, enriqueceu consideravelmente a literatura sobre os museus, o património cultural e os temas museológicos. Beneficiou ainda este projecto da experiência, iniciada em 2001, da publicação trimestral do Boletim da Rede Portuguesa de Museus e da avaliação do seu expressivo acolhimento por parte do meio museológico nacional. Doravante, a coexistência destes dois instrumentos de comunicação, cujos diferentes ritmos e programações se desejam complementares, contribuirá certamente para o aprofundamento da reflexão e para o incremento da circulação de ideias.
Museologia.pt pretende afirmar-se como um fórum de debate de questões e problemas dos museus e da Museologia, divulgar práticas inovadoras, reflectir linhas e tendências culturais contemporâneas, contribuir para o aprofundamento da reflexão museológica e constituir um instrumento de referência para os profissionais do sector dos museus. Muito embora o epicentro da revista se situe claramente nas temáticas de índole museológica, o lugar do cruzamento interdisciplinar, próprio da Museologia, não deixará de constituir primordial foco de atenção e de abertura ao contributo de diferentes domínios do conhecimento. Se os seus leitores naturais serão certamente os profissionais dos museus portugueses, a par dos docentes e estudantes dos cursos de Museologia, de Património, de Conservação e Restauro, espera-se ir também ao encontro dos interesses de outros profissionais com actuação no campo dos museus – arquitectos, designers, educadores, técnicos de património, sociólogos, artistas –, dos profissionais da área cultural, dos responsáveis tutelares, autarcas, corpos directivos de associações e fundações, em suma, dos amigos dos museus. Espera-se ainda que Museologia.pt encontre nos países de língua oficial portuguesa um potencial espaço de interesse, de divulgação e de leitura. A concepção da nova revista no contexto institucional não impediu que, desde o seu arranque, fosse constituído um conselho editorial que generosamente concorreu com as suas questões, opiniões, propostas e sugestões para o desenho da estrutura geral e do primeiro número em particular. À Alice Semedo, à Graça Filipe, ao João Brigola, ao João CastelBranco, ao Luís Raposo e à Raquel Henriques da Silva agradeço o inexcedível entusiasmo e o inestimável contributo a este projecto. Museologia.pt estrutura-se em torno de um conjunto base de rubricas, a par de um dossiê central, que em cada número é dedicado a um tema específico. Se a organização sectorial pareceu indispensável à arrumação das matérias e à facilitação da consulta, não se pretende, contudo, imobilizar em rígidas regras a própria evolução de uma publicação que se quer flexível e ajustada aos desafios que se vierem a colocar. Projectos e experiências será a primeira rubrica, acolhendo neste número artigos que incidem, ora sobre práticas desenvolvidas a partir dos museus e percorrendo diferentes funções museológicas, designadamente a investigação, a conservação e a educação em artigos de Cláudio Torres, de Joaquim Caetano e de Rosário Azevedo, ora albergando reflexões a partir de temas da actualidade, com destaque para a problematização e as repercussões de recentes diplomas legislativos, em textos de Luís Raposo e de Madalena Brás Teixeira. Com a rubrica Exposições concede-se lugar de destaque a esta função museológica, abordada sob diferentes prismas:
divulgação de experiências madeirenses, por Francisco Clode, problematização do papel dos textos nas exposições, por Clara Mineiro e crítica a uma das mais marcantes exposições apresentadas em Portugal em 2006, Amadeo de Sousa Cardoso, por Maria de Jesús Ávila. História e Memórias visa constituir mais um testemunho para a construção da História da Museologia Portuguesa, seja através da realização de entrevistas a profissionais que marcaram a vida museológica nacional, e a quem muito devemos, seja acolhendo artigos enquadrados em investigações históricas neste campo do conhecimento. Neste primeiro número Adília Alarcão é entrevistada por Graça Filipe e José Luís Porfírio, enquanto Henrique Coutinho Gouveia traça o retrato museológico do século que findou. A rubrica Internacional prefigura a abertura a realidades contemporâneas extra-nacionais, que esta revista almeja alcançar. As políticas museológicas e os sistemas de museus de Espanha e do Brasil são apresentados, respectivamente por Marina Chinchilla Gómez, e por José do Nascimento Júnior e Mário Chagas. Sendo evidentes as proximidades de ordem geográfica, cultural e linguística, não é demais sublinhar a oportunidade de conhecer e de comparar as linhas orientadoras e as concretizações atingidas por ambos os países, num momento em que Portugal já percorreu um caminho estruturante nesta área, no plano legislativo, através da Lei Quadro dos Museus Portugueses e no plano da qualificação, através da Rede Portuguesa de Museus. O Dossiê da revista, que constitui o seu caderno central, explora e aprofunda em cada edição um tema significativo da actualidade museológica. A realidade dos museus portugueses tem vindo claramente a alterar-se nos últimos anos. Entre os sinais mais visíveis dessa mudança, aquele que talvez tenha sobre o público um efeito mais imediato, estão as novas instalações dos museus, as suas ampliações e renovações. Estes novos espaços, estes museus renovados, que recentemente abriram ao público ou que preparam a sua inauguração, constituem o tema do Dossiê do primeiro número. Escolheu-se, assim, a relação entre os Museus e a Arquitectura para apresentar a qualificação de nove museus, através de artigos sequenciais dos seus directores e dos arquitectos que os projectaram. Museus em construção, chama-lhes Raquel Henriques da Silva no texto que abre o Dossiê. Para uma nova revista deseja-se também uma apresentação institucional, clara e actual. O grafismo adoptado visa ir ao encontro das linhas de força explanadas: abertura, flexibilidade e actualidade. Sendo, por natureza, um projecto colectivo, uma revista é finalmente o resultado dos textos que os autores partilham a partir destas páginas com os leitores. Às quatro dezenas de autores que confiaram a Museologia.pt as suas reflexões e análises, um vivo agradecimento.
índice
Manuel Bairrão Oleiro III Apresentação Clara Frayão Camacho IV Editorial
projectos e experiências Cláudio Torres 4 Mértola Vila Museu. Um projecto cultural de desenvolvimento integrado Luís Raposo 9 Acerca da problemática subjacente à definição de tesouros nacionais Joaquim Oliveira Caetano 12 O retábulo flamengo da Sé de Évora. Algumas reflexões sobre um processo de investigação em curso Rosário Azevedo 18 A acção pedagógica do serviço educativo do Museu Calouste Gulbenkian Madalena Braz Teixeira 24 Quatro inovações legais em 2004
exposições María Jesús Ávila Clara Mineiro Francisco Clode Sousa
27 Amadeo de Souza-Cardoso, de tudo um pouco 33 Mas as peças não falam por si?! A importância do texto nos museus 39 Experiências museológicas recentes na ilha da Madeira. O Museu de Arte Sacra do Funchal e o Núcleo Histórico de Santo Amaro
história e memórias José Luís Porfírio e Graça Filipe Henrique Coutinho Gouveia
41 Museus, um assunto por resolver: uma conversa com Adília Alarcão 43 Evocação da museologia portuguesa novecentista. A propósito da Lei-quadro de 2004
na capa: Exposição Casa Portuguesa Experimentadesign 2005, Bienal de Lisboafoto © Moritz Elbert
Isabel Silva Carlos Guimarães e Luís Soares Carneiro
45 Museu de D. Diogo de Sousa, Braga 46 O Lugar de Encontro com a História de uma região 47 Projecto de Arquitectura e Integração Urbana do Museu
dossiê - museus e arquitectura Raquel Henriques da Silva
44
45 Isabel Silva 46 Carlos Guimarães e Luís Soares Carneiro 47 Pedro Redol Gonçalo Byrne Dalila Rodrigues Eduardo Souto Moura Jõao Manuel Neto Jacob António Portugal e Manuel Maria Reis José Manuel Oliveira Álvaro Siza Vieira José Gameiro Isabel Aires e José Cid Suzana Menezes Suzana Fernandes Graça Soares Nunes Cândido Chuva Gomes Pio Gonçalo Alves de Sousa Rui Correia e Paulo Providência Teresa Soeiro
48 50 52 53 55 57 58 60 65 90 123 150 170 177 178 180
Museus em contrução Museu de D. Diogo de Sousa, Braga O Lugar de Encontro com a História de uma região Projecto de Arquitectura e Integração Urbana do Museu Projecto de Requalificação do Museu Nacional Machado de Castro Projecto de Requalificação do Museu Nacional Machado de Castro Museu Grão Vasco Museu Grão Vasco As intervenções mais recentes no Museu do Abade de Baçal Museu do Abade de Baçal - Registo de uma intervenção Uma casa, uma memória Casa Camilo Um programa museológico para Portimão. Da fábrica ao museu, do museu à comunidade Museu de Portimão. Do projecto ao museu Museu da Chapelaria: do seu conceito e programa museológico Museu da Chapelaria: do projecto de arquitectura Museu Municipal de Vila Franca de Xira. Reinstalação do Núcleo-Sede Museu Municipal de Vila Franca de Xira Tesouro Museu da Sé de Braga. Um Tesouro - Um Museu Museu de Arte Sacra da Sé Catedral de Braga
185 189 Novas instalações para um velho museu
internacional Mário de Souza Chagas 190 e José do Nascimento Júnior Marina Chinchilla Gómez 192
Veredas e construções de uma política nacional de museus Museos de Espanha. La configuração de uma Rede
projectos e experiĂŞncias
Cláudio Torres Mértola Vila Museu Um projecto cultural de desenvolvimento integrado
A experiência científica, museográfica e pedagógica do projecto Mértola Vila Museu, não pode ser dissociada de um programa estruturante de cariz marcadamente político: no interior empobrecido e em despovoamento, a memória do local, na sua potencialidade dignificante, pode tornar-se em poderoso factor de desenvolvimento. The scientific, museographic and pedagogic experience of the project Mértola – Vila Museu (Mértola – Town Museum) can not be disassociated from a structural political programme: in a poor and depopulated area of Portugal’s interior, the local memory, in all that it is dignified, can become a powerful cause of development.
PALAVRAS-CHAVE: Museologia, turismo cultural, desenvolvimento local.
Director do Campo Arqueológico de Mértola e do Museu de Mértola | camertola@sapo.pt
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Q
uando em finais dos anos setenta do século passado foi iniciado o projecto que hoje chamamos Mértola Vila Museu, os seus objectivos não eram muito diferentes daquilo que agora, felizmente, é já um lugar-comum: envolvimento da população, numa tentativa de consolidar a sua identidade e contribuir para o desenvolvimento local. Depois de algumas dificuldades iniciais, o ponto de viragem aconteceu com o reconhecimento externo: quando os mertolenses verificaram que o trabalho lento e minucioso dos arqueólogos e museólogos era reconhecido no exterior, começando a sair nos media constantes referências e reportagens. Entre outras notoriedades, a Secretaria de Estado do Ambiente e a Secretaria de Estado da Cultura atribuíram em 1989 ao Campo Arqueológico de Mértola (CAM) o Prémio Nacional de Conservação da Natureza e do Património Histórico-Cultural; em 1990 é o Ministério do Planeamento e Administração do Território a conceder o Prémio Nacional para o melhor Plano de Salvaguarda para um núcleo histórico; em 1998 o Ministro da Cultura atribui ao Campo Arqueológico de Mértola a Medalha de Mérito Cultural. Desde o início que para nós ficou muito claro que fazer investigação científica fora dos grandes institutos e universidades, não seria nada fácil, acrescido ainda o facto de estarmos sediados no fim do mundo, completamente arredados dos circuitos viários e institucionais. Para sobreviver e, mais ainda, para sermos credíveis no meio científico, para aceder a bolsas de investigação em pé de igualdade e no mesmo terreno que os laboratórios e universidades de todo o país, fomos obrigados a apostar na excelência da nossa equipa de investigadores e portanto na máxima qualidade dos resultados científicos. Desta forma, depois de submetidos a uma avaliação internacional com a classificação de “Muito Bom”, em 2002 fomos admitidos como centro de investigação da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Entre as quase três dezenas de técnicos e investigadores que constituem hoje a nossa equipa, contam-se oito doutorados pelas universidades de Madrid, Lyon ou Lisboa, alguns dos quais começaram entre nós a sua carreira técnica e académica. Depois de concluídos vários projectos sobre “Cerâmica islâmica” (desde os primeiros congressos sobre a Cerâmica medieval no Mediterrâneo Ocidental), “estruturas habitacionais do bairro almóada”, “Património de Niebla e Mértola” – (em colaboração com a Universidade de Huelva), “Igreja – Mesquita” e “Mosteiro de S. Salvador – Estudo e recuperação”, continuam a ser desenvolvidos trabalhos de levantamento e sistematização de dados arqueológicos referentes ao território de Mértola na Antiguidade tardia e Idade Média. Também não está ainda concluído o estudo dos “Espaços e funções da Alcáçova de Mértola entre a Antiguidade tardia e a Reconquista Cristã”, nomeadamente na conservação dos painéis de mosaicos anexos ao baptistério. Um sector a que nos últimos anos temos dado muita importância tem sido o estudo das necrópoles e a análise osteológica como fonte de informações paleo-patológicas e mesmo genéticas - (colaboração com o Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto - IPATIMUP). Também neste sector estamos a desenvolver projectos de investigação com a Universidade de Coimbra. Através da Anna Lindh Euro-Mediterranean Foundation for the Dialogue between Cultures, coordenada em Portugal pelo CAM, temos vindo a colaborar com vários países mediterrânicos, especialmente do Magreb, em projectos de levantamento e salvaguarda do património comum, virado sobretudo para a arquitectura vernacular. Participamos desde o início e continuamos responsáveis em Portugal pelo programa “Discover Islamic Art” do Museu Sem Fronteiras. Os resultados destes variados projectos de investigação têm vindo a ser editados autonomamente ou publicados na revista anual de Arqueologia Medieval editada nos últimos 15 anos pelo CAM. Esta revista, especializada na divulgação científica dos últimos resultados disponíveis em investigação medieval e islâmica para toda a Península Ibérica, tem vindo a impor-se pela sua regularidade e qualidade.
Fig. 1 Vista geral de Mértola arquivo fotográfico do CAM
projectos e experiências
O nosso esforço divulgativo tem passado também por um interesse pedagógico na criação e apoio à delegação local da Escola Profissional Bento de Jesus Caraça, que nos últimos dez anos formou umas dezenas de jovens como técnicos em arqueologia, turismo e arquitectura tradicional. Em 2006 iniciámos um outro ciclo da nossa actividade pedagógica, lançando-nos na formação superior especializada. Em colaboração com a Associação de Defesa do Património de Mértola (ADPM) e com a Universidade do Algarve, iniciámos o “Mestrado em Economia Regional e Desenvolvimento Local” que inicialmente funcionou em Faro e que agora, com uma renovação de cadeiras e corpo docente, está em pleno funcionamento com duas dezenas de mestrandos. A partir do ano lectivo de 2007/8, começa mais um outro mestrado, desta vez sobre a civilização islâmica, remodelando um outro originário da Universidade do Algarve. Desenvolvendo esta colaboração com a Universidade de Faro e alargando-a às universidades de Évora, Granada e Tunis, a partir de 2008 vão também abrir em Mértola cursos de doutoramento sobre o Islão e o Mediterrâneo. Toda esta actividade lectiva é, para a nossa equipa, uma forma de aferir a própria pesquisa científica e também, de abrir novas linhas de investigação em campos por trilhar onde já não chega a nossa capacidade. Em simultâneo com este esforço pedagógico e sobretudo com esta actividade de investigação histórico/arqueológica, a grande opção de fundo do nosso projecto integrado foi também a aposta na divulgação local que passa necessariamente pela musealização. Além da divulgação científica, codificada na sua linguagem própria e dirigida a um público especializado, falar claro e acessível é a única forma convincente de justificar localmente os trabalhos em curso, capaz de identificar as mais fortes referências culturais e, por conseguinte, consolidar potenciais endógenos. Na dinâmica museográfica não só se difundem os resultados de uma forma mais eficiente para o público em geral, sobretudo o local, como se torna possível atrair outro tipo de visitantes, desde que esta oferta seja devidamente divulgada. Assim, Mértola foi-se tornando um conhecido destino de turismo cultural. De facto, o número de visitantes do museu foi aumentando até que, ultimamente, foram ultrapassados os 25 000 por ano. Destes, cerca de metade são estrangeiros e 20% dos nacionais são escolares integrados em visitas de estudo. Há ainda um número residual de grandes grupos de outro tipo (excursões em autocarro de idosos, grupos culturais e recreativos, etc.). Além destes visitantes que utilizaram directamente o posto de informação, devemos referir uma percentagem significativa avaliada em dez mil ao ano - que entra na Vila Velha, sobe ao castelo e entra na igreja matriz sem registar a sua presença. Estes visitantes procuram não tanto exotismo ou espaços monumentais, e sim um projecto dinâmico e ambicioso que,
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numa zona isolada e longe dos grandes centros, conseguiu envolver a população local, construindo propostas científicas e museológicas de grande qualidade. Todo este esforço de investigação, investimento e divulgação tem sido maioritariamente conduzido pelo Campo Arqueológico de Mértola de parceria com a Associação de Defesa do Património e com o apoio da Câmara Municipal. Mais recentemente juntaram-se a este projecto a delegação local da Escola Profissional Bento de Jesus Caraça e o Parque Natural do Vale do Guadiana, naturalmente vocacionado para a gestão da natureza e educação ambiental de um vasto território com cerca de 70 000 hectares. O tecido urbano do centro histórico de Mértola apresenta-se como um conjunto de alto valor histórico, patrimonial, plástico e mesmo vivencial. Assim, tem sido parte fundamental do trabalho da equipa do CAM incentivar, apoiar e desenvolver actividades e projectos de valorização patrimonial a ele associados. Um trabalho mais aturado nesta área, em colaboração com as equipas do Gabinete Técnico Local, conduziu a projectos de intervenção arquitectónica, assumindo particular relevância o cruzamento das informações provenientes dos trabalhos de prospecção arqueológica e documental, nomeadamente no caso da recuperação de alguns troços das muralhas da vila, da Basílica Paleocristã, do edifício da Cadeia, hoje Biblioteca Municipal, das ruínas seiscentistas dos antigos celeiros da Casa de Bragança (onde se encontra instalada a colecção de Arte Islâmica do museu) e de algumas casas de habitação. Procurase, assim, que determinados espaços edificados possam ser componentes integráveis no conjunto museológico, dandose também resposta às necessidades sociais e de usufruto quotidiano que o local contém em si. Neste contexto, o Projecto de Museologia Local insere-se numa filosofia de intervenção que visa, antes de tudo, projectar a recuperação social e patrimonial do centro histórico, conhecido por Vila Velha. É que, embora os vectores mais importantes de expansão da vila estejam hoje extramuros, o núcleo primitivo permaneceu a imagem de marca dos registos do passado e, de certa forma, continua a ser o símbolo e motor do seu próprio desenvolvimento turístico. Este quadro ajuda a perceber como o museu é a própria vila. De facto, historicamente tão importantes como os achados arqueológicos que enchem os expositores, são as ruas, a organização dos espaços públicos, a estruturação e usufruto das fachadas, volumes arquitectónicos, materiais e técnicas de construção, assim como uma sustentada requalificação habitacional. A museologia, aqui, não podia alhear-se da reabilitação urbana. Assim, facilmente se apercebe o princípio que tem presidido ao projecto da Vila Museu: o da polinuclearização, isto é, o de organizar/instalar em pontos distintos do centro histórico espaços museográficos organizados de forma temática e
Fig. 2 Volumes arquitectónicos arquivo fotográfico do CAM
sempre que possível no próprio local do achado arqueológico ou relacionado directa ou indirectamente com o objectivo pedagógico pretendido. Desta forma, proporciona-se a leitura e o conhecimento de conteúdos históricos específicos, evitando-se a concentração expositiva e sobrecarga informativa, ao mesmo tempo que se faculta o acesso a um percurso histórico de visita que se interpenetra com os espaços e traçado urbano da vila, ela mesma entendida como espaço de fruição estética. Um dos objectivos deste percurso museográfico, e que tem sido coroado de êxito, é incentivar a variação dos circuitos, levando o turista a aumentar o tempo/visita, com benefício evidente para os serviços de restauração e alojamento. Aqui chegados, encontramo-nos agora num ponto de viragem: os recursos, incluindo os turísticos, têm de ser planeados e geridos, sob pena de não serem devidamente acautelados. É necessário definir objectivos e estratégias. E estes parecem apontar para uma melhor gestão das visitas temáticas
Fig. 3 Conjunto urbano que mantem o traçado antigo arquivo fotográfico do CAM
organizando mais circuitos fora da vila, aproveitando pólos de qualidade ambiental e paisagística, nomeadamente para a vertente do turismo etno-antropológico e de natureza. Para além destes aspectos, estamos agora empenhados em melhorar a qualidade do serviço prestado dando formação aos que mais directamente contactam com o visitante, em envolver a população de uma forma mais participada na actividade turística e, sobretudo, em que o planeamento, para além de permitir uma melhor operacionalidade, reduza ao mínimo os impactos negativos. Estamos conscientes de que o êxito do factor turístico está na excelência de serviços sem subserviência, na qualidade da informação disponibilizada e na variedade dos elementos complementares de animação. Todos estes aspectos, devidamente estruturados e solidamente ligados aos interesses dos habitantes, podem ser um obstáculo ao crescimento desregrado e incontrolado que, mais tarde ou mais cedo, pode levar à agonia e morte por massificação, como sucedeu em alguns dos destinos turísticos mais procurados.
projectos e experiências
Fig. 4 Castelo construído pela ordem de Santiago arquivo fotográfico do CAM
O Museu de Mértola: núcleos concluídos ou em vias de conclusão (circuito de visita) 1 | Centro de acolhimento e informação turística Este espaço, logo à entrada da Vila Velha, funciona como centralizador das actividades de divulgação e atendimento turístico. Como todos os núcleos do Museu, este Centro de Acolhimento está sob a responsabilidade da Câmara Municipal (o CAM é apenas o responsável técnico e científico do espólio exposto e depositado). Aqui foram instalados equipamentos informáticos onde pode ser consultada a base de dados turísticos e logísticos. Dotada com um sistema de projecção em ecrã, a sala pode ser usada como espaço para uma conversa introdutória com os visitantes, explicando algumas das componentes do projecto. A sala funciona também como local de visionamento de pequenos filmes produzidos pelo CAM, pela ADPM ou outros relacionados com aspectos da cultura e do património de Mértola. Este local assegura ainda o local de venda de bilhetes, de publicações e guias de visita. Esta centralização tem permitido a gestão e controlo de todo o serviço de apoio turístico em torno dos núcleos e sítios arqueológicos. Neste local está sempre de serviço um funcionário de atendimento, que organiza e faz a distribuição dos fluxos de visitantes, bem como vendas e alugueres; também este é o local de congregação dos visitantes com guia, caso seja este o tipo de visita (previamente) solicitada.
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Todo o tipo de informações que se prendem com outros aspectos logísticos ou outros serviços, podem também ser facultados neste espaço. A concentração do fluxo de visitantes neste local, como ponto de partida para qualquer percurso de visita, permite manter um registo de visitantes, assim como conhecer a sua profissão, origem social e nacionalidade, dados esses preciosos para gerir com maior agilidade todo o processo. 2 | Castelo Ocupando o local de antigas construções romanas e de um pequeno bairro fortificado de época islâmica, o castelo domina todo o povoado e serve de referência ao fragor de antigas batalhas, à memória de outros feitos. A torre de menagem, ainda imponente no seu formidável volume, assinala a época em que Mértola foi durante um século, a sede nacional da Ordem de Santiago. Na sala de armas coberta por uma abóbada de cruzaria de ogivas, estão reunidos alguns elementos arquitectónicos recolhidos na vila e nos arredores e atribuíveis a um período de transição entre os séculos VI e IX. É uma época dominada pelas formas decorativas ao gosto visigótico. Esta mostra, além de um catálogo temático, possui um painel didáctico referindo a implantação topográfica dos objectos expostos.
Fig. 5 Criptopórtico do séc. V d.C. arquivo fotográfico do CAM
Fig. 6 Igreja matriz Antiga mesquita do séc. XII arquivo fotográfico do CAM
Numa sala superior, recentemente recuperada, está prevista a montagem de um outro programa expositivo dedicado à história da própria fortaleza. No recinto do castelo, cujas muralhas foram recentemente consolidadas, o acesso está actualmente condicionado por obras de reabilitação. Em finais de 2007 ficará disponível um outro espaço para exposições temporárias. 3 | Acrópole romana e bairro islâmico A arqueologia abriu as primeiras portas do passado. Ano após ano são descobertas outras formas e objectos que valorizam os museus e respondem a muitas dúvidas de uma história por vezes ainda mal contada. Interrompendo a vertente norte da encosta do Castelo, o possível forum da cidade romana cria uma plataforma artificial, suporte do mais imponente conjunto monumental da velha Myrtilis. Todo este espaço, aplanado artificialmente, assentava numa galeria subterrânea - o criptopórtico - com cerca de 30 metros de comprimento e 6 de altura que serviu de armazenamento alimentar e mais tarde de cisterna. Em época islâmica, no decurso dos séculos XI e XII, toda esta zona é ocupada por um bairro habitacional que, depois da conquista cristã de 1238, é completamente arrasado para ser adaptado a cemitério. Este recinto, agora de acesso reservado, pode vir a ser visitado futuramente percorrendo um passadiço metálico que levará o visitante aos locais de maior interesse. Entre estes contam-se as ruínas de um baptistério do século
VI, na altura rodeado por um belo conjunto de mosaicos policromos de que restam alguns fragmentos significativos. 4 | A igreja / mesquita Inserida directamente no recinto da acrópole e integrandose no seu circuito monumental, ergue-se a Igreja matriz (antiga mesquita). No local onde teria existido um templo romano e depois paleocristão e onde, em finais do século XII, foi construída de raiz uma mesquita, situa-se hoje a igreja matriz de Mértola. Da antiga mesquita almóada restam dois capitéis, reutilizados nas obras quinhentistas, quatro portas de arco ultrapassado e o altar muçulmano ou mihrab. Neste pequeno nicho, é ainda claramente perceptível a linguagem decorativa dessa época. Logo após a conquista, a mesquita é cristianizada e a Ordem de Santiago impõe na fachada o seu símbolo. Em meados do século XVI a igreja é completamente reconstruída. As suas 5 naves, inicialmente cobertas por madeiramento policromo, são substituídas por um belo conjunto de abóbadas com destaque para o tramo polinervado do altar mor. Ao contrário da abobadagem e dos pináculos exteriores muito ao gosto mudejar do último gótico, a porta principal da igreja segue os modelos do Renascimento italiano. No adro do templo, um painel didáctico, além de prestar algumas informações históricas, indica os horários de abertura do monumento que, de uma forma geral, tem coincidido com a dos outros museus.
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Fig. 7 Oficina de ferreiro / ferrador arquivo fotográfico do CAM
Fig. 8 Tigela com cena de caça do séc. XI arquivo fotográfico do CAM
A caminho do conjunto monumental localizado na ponta sul da Vila Velha, a descida deve ser feita pela rua da Afreita onde se localizava uma antiga oficina de ferreiro. 5 | Forja do Ferreiro Esta oficina, já desactivada, pretende guardar a memória de uma das muitas profissões do nosso passado que não conseguiu resistir às novas tecnologias. Além da bigorna e da forja com o seu fole, são expostas todas as ferramentas necessárias ao trabalho do ferro. Um painel explicativo descreve o local e as principais operações desenvolvidas pelo artesão. 6 | Colecção de arte islâmica Aproveitando os espaços e volumes dos antigos celeiros da Casa de Bragança, um moderno projecto arquitectónico e museográfico abriga, ao longo dos seus dois pisos, a mais importante colecção de arte islâmica do nosso País. Destaca-se o espólio cerâmico e nomeadamente um excepcional conjunto de artefactos decorados com vidrado em “corda seca”. Esta técnica decorativa oriental, apurada nas olarias do al-Ândalus, será mais tarde difundida pela azulejaria quinhentista. Os motivos decorativos animais e vegetais passam a geométricos ou epigráficos, atingindo um forte barroquismo ornamental. A arte dos metais especializa-se na fundição de bronzes e aperfeiçoa a sua tecnologia no fabrico de armas. O sistema
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monetário é sobretudo em prata, embora por razões de prestígio, alguns pequenos reis locais cunhem moedas de ouro. A ourivesaria em ouro, prata ou bronze, nas suas técnicas de repuxado, encastoado, fundido e cinzelado parece ter sido também oriunda de oficinas locais que aproveitavam os metais extraídos nas cercanias. Todas estas técnicas e formas decorativas estão representadas nos expositores do museu. 7 | Centro de Estudos Islâmicos e do Mediterrâneo
Num belo edifício, parcialmente recuperado, fronteiro ao Núcleo Islâmico, encontram-se instalados vários organismos dependentes do Campo Arqueológico de Mértola. Uma biblioteca especializada na Civilização Islâmica com cerca de 20.000 volumes; a sede da associação Multiculti; a sede da Rede portuguesa da Fundação Anna Lindh; um espaço duplo de Exposições temporárias e, sobretudo, um Centro de Formação Superior vocacionado para leccionar mestrados e doutoramentos versando a cultura e civilização islâmicas do Mediterrâneo. Entre outras unidades de crédito a acordar com os formadores e temas de dissertação a propor aos orientadores, podemos citar: Introdução geo-histórica ao Mediterrâneo com cadeiras específicas de História Social, Politica e Mentalidades da Península Ibérica, Magreb e Próximo Oriente. Abordagem das grandes linhas históricas das Civilizações fluviais e Clássicas. Impérios Bizantino
Fig. 9 Terracota pintada representando São Sebastião. Finais do séc. XV arquivo fotográfico do CAM
Fig. 10 Construção monumental do séc. VI integrada num sistema de defesa do porto antigo arquivo fotográfico do CAM
e Persa. Nascimento e expansão das grandes religiões do Livro. Génese da civilização islâmica e sua expansão para Ocidente. Al –Ândalus e Gharb-al-Ândalus; Moçarabismo e Mudejarismo. Rotas e portos marítimos. O fenómeno urbano e a inovação tecnológica. Espaços rurais, arquitectura vernacular e saberes da terra. Sistemas feudais e tributários. Arquitectura civil, militar e urbanismo clássicos e a sua transição para o mundo islâmico. Linguagem das formas: naturalismo e geometrismo.
algumas pertencem a grandes escolas europeias do século XVI e a grande maioria foi trabalhada em oficinas regionais. A primeira parte da exposição permite uma visita virtual a todas as igrejas paroquiais, assim como uma visão fílmica da procissão anual do Senhor dos Passos. Estão expostas também algumas peças da antiga Misericórdia e três tábuas monumentais que pertenceram a antigos altares quinhentistas da igreja matriz. Entre as alfaias litúrgicas expostas destacamse três importantes peças em prata cinzelada do século XVI: uma arqueta/hostiário, uma cruz processional e uma custódia. Do século XVIII, sobressai um conjunto de cálices e outras pequenas alfaias litúrgicas.
Este Centro de Formação assenta num protocolo de colaboração entre o CAM e as universidades do Algarve, de Évora, de Granada e de Manouba na Tunísia. O corpo docente é constituído por uma dezena de doutorados membros do CAM e por uma dúzia de prestigiados professores doutorados e catedráticos destas universidades e de outros centros universitários de Coimbra, Lisboa, Paris e Sevilha. 8 | Arte sacra - Porta da Ribeira Construída no século XVI sobre a porta de acesso ao porto antigo e medieval, a igreja da Misericórdia, hoje parcialmente desafecta ao culto, guarda um interessante acervo de arte sacra cristã. O corpo da igreja, a sacristia e outros anexos, servem hoje de espaço expositivo. A colecção de estatuária, pintura e alfaias religiosas foi durante os últimos vinte anos, recolhida em algumas igrejas do concelho, dada a pouca segurança e o abandono a que tinham sido votadas. Entre um conjunto de três dezenas de peças esculpidas em madeira policroma,
9 | Percurso de Beira Rio Saindo pela Porta da Ribeira em direcção ao rio e partindo das antigas muralhas romanas (indicadas por sinalização local), alinham-se ainda imponentes os pegões de um pontão que dava acesso, em época tardo-romana, à Torre do Rio. Além de permitir o acesso à água sem sair das muralhas, esta construção era um importante ponto de apoio na defesa do porto, não só por poder abrigar uma guarnição militar, como também por controlar uma corrente de ferro que, de uma margem à outra impedia as embarcações inimigas de subir o rio. Poderosos talha-mares resistiam à violência das águas invernais. Pela sua técnica construtiva e funções, é um monumento único no nosso país. A zona envolvente destas ruínas foi consolidada e ajardinada.
projectos e experiências
Fig. 11 Cubelo da muralha antiga aproveitada come Torre do Relógio arquivo fotográfico do CAM
Fig. 12 Núcleo Romano do Museu de Mértola arquivo fotográfico do CAM
Um caminho calcetado leva o visitante a visitar um sistema de túneis e poços que em épocas antigas introduzia as águas do rio no interior das muralhas. Subindo a escadaria da Torre do Relógio chega-se ao largo da Câmara. 10 | Casa romana Sob o edifício dos Paços do Concelho encontra-se instalado o núcleo romano do Museu. Antecedendo obras no subsolo, uma intervenção arqueológica pôs a descoberto as ruínas de uma habitação romana. A musealização deste sítio permitiu instalar um conjunto de fragmentos arquitectónicos sugerindo formas e funções da época em que a casa foi habitada. São expostos objectos encontrados no próprio local, alguns outros associados ao mesmo contexto cultural e finalmente a reprodução de vidros e esculturas dessa época que, desde os finais do século XIX, foram depositados no Museu Nacional de Arqueologia. Este pequeno museu de sítio, embora integrado no edifício dos Paços do Concelho, segue os horários dos outros núcleos museológicos. 11 | Oficina de ourivesaria Reatando com antigas tradições e aproveitando velhos motivos artísticos, a oficina de ourivesaria produz réplicas de alguns materiais arqueológicos provenientes das escavações. As memórias arqueológicas são também o ponto de partida para a criação de peças onde a imaginação criativa abre
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Fig. 13 Oficina de ourivesaria fotografia de António Cunha
novos horizontes para a estética contemporânea. As mesmas técnicas e gestos artesanais modelam a prata e o ouro numa profusão de formas e motivos inscritos na tradição islâmica e mediterrânea. 12 | Oficina de tecelagem Uma das mais antigas artes tradicionais da região é certamente a tecelagem de mantas de lã. Nesta oficina, onde é ministrada formação contínua, uma cooperativa de tecedeiras encarregase de fazer sobreviver esta tradição. Os motivos decorativos destas mantas assemelham-se a uma gramática ornamental filiada em antigas tradições berberes e que também encontramos impressas em materiais arqueológicos. No espaço da própria oficina está organizada uma mostra de antigos instrumentos ligados à actividade da lã e do linho, assim como uma exposição de tecidos fabricados na oficina e nos povoados serranos do concelho. 13 | Basílica paleocristã Sob o invólucro despojado de um moderno edifício, ocultamse as ruínas de uma grande basílica paleocristã aberta ao culto do século V ao século VIII. De três naves e absides contrapostas, o que resta deste templo funerário é hoje valorizado por uma museografia que apenas sugere as principais linhas arquitectónicas. Das dezenas de sepulturas estudadas apenas uma proporcionou uma fivela em bronze com decoração cinzelada e um
Fig. 14 Basilica paleocristã, séc. V ao séc. VIII fotografia de Ricardo Grilo
Fig. 15 Capela de São Sebastião recuperada durante a musealização de uma necrópole tardo romana fotografia de António Cunha
lacrimário de vidro. A importância excepcional deste museu é a colecção lapidar paleocristã constituída por seis dezenas de lápides epigrafadas, trinta das quais se encontram expostas no local. Antónia, Festelus ou Amanda foram habitantes da cidade de Myrtilis e contemporâneos de Andreas regente do coro da igreja. Esta basílica funerária foi construída sobre uma necrópole romana, onde já tinha havido enterramentos da Idade do Ferro (6 séculos antes de Cristo) e, numa época posterior, também aproveitada como assentamento de um vasto cemitério muçulmano. 14 | Ermida e necrópole de S. Sebastião No pátio da Escola secundária foi escavada e museografada a parte mais significativa de uma grande necrópole romana e tardo-romana sobre a qual se implantou no século XVI uma pequena capela dedicada a S. Sebastião. O cemitério, escavado na rocha, é visitável através de um passadiço metálico e ostenta um painel indicativo. A ermida, completamente reconstruída, numa operação pedagógica, com a ajuda dos alunos de arqueologia da Escola Bento de Jesus Caraça, abriga um pequeno museu de sítio onde, entre outros artefactos, pode ser admirada uma medalha-crismon do século V em ouro encontrada na sepultura de uma criança.
Fig. 16 Sistema de moagem medieval em utilização até ao séc. XX arquivo fotográfico do CAM
15 | Percurso complementar - Azenhas do Guadiana Nas imediações deste complexo escolar, o rio Guadiana é cortado por um açude onde estão implantados cinco moinhos de água. Dois deles, solidamente abobadados para resistir às grandes cheias do rio, estavam adaptados ao regime das marés. Podemos concluir que toda a sociedade, qualquer comunidade procura guardar, proteger os seus bens mais preciosos, as provas e documentos identitários, os objectos e artefactos portadores de uma marca ou sinal da memória colectiva. Este local de abrigo pode e deve ser o museu. Um espaço sacralizado capaz de concentrar e sintetizar a alma de um sítio ou território, capaz de dignificar o carácter mais profundo de uma comunidade. O gesto que transforma o insignificante pedaço de barro ou a pequena fivela em objecto de cultura, em peça sacralizada, é um gesto demiúrgico, um acto de afirmação colectiva que reforça a auto-estima e o orgulho local. Mais significativo se torna o museu local quando este se fracciona em vários núcleos temáticos e quando estes, gradativamente, vão incluindo áreas de protecção, vias de acesso, portas e poiais, muros, hortas e pomares. E sobretudo quando lá dentro, vivendo a sua vida e beneficiando desse passado, se encontra toda uma população interessada, conivente e solidária. Este é, a pouco e pouco, o Museu de Mértola.
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A espantosa realidade das coisas É a minha descoberta de todos os dias. Cada coisa é o que é, E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, E quanto isso me basta. Fernando Pessoa
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Luís Raposo Acerca da problemática subjacente à definição de tesouros nacionais
A partir da experiência resultante da realização em 2003, e adopção em 2006, de uma lista de “bens de interesse nacional” (também designados por “tesouros nacionais”) dos museus do Ministério da Cultura, dependentes do Instituto Português de Museus, referem-se neste texto sucessivamente e em tese geral os aspectos conceptuais, legais, metodológicos e práticos inerentes à definição deste tipo de listagens. Salientando embora as numerosas dificuldades e debilidades reais destas classificações, a começar pela delimitação dos conceitos de “tesouro” e “nacional”, adopta-se aqui uma postura positiva, considerando que a apropriação simbólica e jurídica do passado por parte do presente constitui não somente um factor de cidadania, como de facto uma inevitabilidade histórica, a qual deve competir em cada País ao Poder Político democrático e não à mera actuação das leis do “mercado”, na sua procura de satisfação consumista e epidérmica das necessidades sociais. The list of “movable property of national interest” (also known as “national treasures”) of all the museums of the Ministério da Cultura (Ministry of Culture), under the direction of the Instituto Português de Museus (Portuguese Institute of Museums), was established in 2003 and adopted in 2006. This article discusses the conceptual, legal, methodological and practical aspects of the definition of these types of lists. These classifications entail numerous difficulties and debilities, starting with the delimitation of concepts such as “treasure” and “national”. Nevertheless, a positive position has been adopted, considering that the symbolic and legal appropriation of the past by the present constitutes a factor of citizenship, as well as a historical inevitability. The policy concerning this issue has to be defined by each country’s democratic political power, rather than by market laws that aim to meet society’s consumist satisfaction.
PALAVRAS-CHAVE: Bens culturais de interesse nacional, tesouros nacionais, classificação, Lei de Bases do Património Cultural, apropriação simbólica e jurídica do passado.
Director do Museu Nacional de Arqueologia | director@mnarqueologia-ipmuseus.pt
Fig. 1 O Grupo do Leão (1855) Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929) Adquirido pelo Estado em 1953 Museu do Chiado | Museu Nacional de Arte Contemporânea, Lisboa, inv. nº 1524 © Instituto dos Museus e da Conservação
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losando uma frase célebre acerca do homem e da sua condição, poderíamos dizer que cada texto, sendo aquilo que é, não deixa de ser também, porventura em maior grau, aquilo que o contexto lhe suscita ser. E disto se trata neste caso, como é justo advertir o leitor.
Durante um ano, desde Dezembro de 2002, o autor destas linhas integrou o grupo técnico que preparou uma lista de “bens de interesse nacional” (também designados por “tesouros nacionais”), conformemente ao disposto na Lei de Bases do Património Cultural Português (Lei nº 107/2001, art. 15º), aprovada por unanimidade na Assembleia da República1 . Após quase três anos de espera, a lista assim preparada foi finalmente adoptada através do Decreto nº 19/2006, publicado no Diário da República de 18 de Julho de 2006 (sendo depois corrigida pela Declaração de Rectificação nº 62/2006, publicada em 15 de Setembro do mesmo ano), mas ficou reduzida a expressão mínima o longo e denso texto preambular que o referido grupo técnico elaborara e considerara indispensável à plena compreensão quer das opções tomadas, quer das expectativas que entendia deverem ser satisfeitas através deste instrumento legal. Não foram obviamente casuais as circunstâncias de tempo e modo que levaram à elaboração da citada lista. Estiveram ambas muito marcadas, para o bem e para o mal, pelo clamor nacional que sobreveio ao roubo de seis jóias do Tesouro Real português, ocorrido no Museu de Haia dias antes da constituição do grupo técnico acima referido, no âmbito do circuito de itinerância da exposição “Diamantes - No coração das Estrelas, no coração da Terra, no coração do Poder”, que fora inaugurada em Março de 2001 no Museu de História Natural de Paris e tinha entretanto já passado por Roma. Esta conjuntura originou efeitos contrários: negativos, porque a pressão do momento e a rapidez exigida por quem pretendia rapidamente colocar “trancas nas portas” não propiciariam a reflexão atenta e participada que esta matéria exigiria; mas positivas também, porque não se vê como de outra forma poderia a sociedade e o poder político terem sido despertos para esta problemática, a ponto de efectivamente exigirem resultados. A experiência vivida no grupo técnico foi rica de reflexões, que importaria porventura partilhar de forma mais estruturada, principalmente para apresentação da lista elaborada e justificação das opções concretas que conduziram à sua exacta configuração (o que não é feito no presente texto). No entretanto e para além desse quadro de ponderação colectiva, existe obviamente margem para a expressão de opiniões no plano estritamente pessoal e é isso que o autor destas linhas aqui faz, não representando de modo nenhum as posições do grupo que integrou, onde aliás se cruzaram pontos de vista muito distintos, e em alguns casos até opostos a várias das considerações e opiniões aqui defendidas. Trata-se apenas de dar um testemunho e contribuir para um debate que forçosamente continuará em aberto, porque a complexidade do que está em causa assim o exige.
1 O grupo técnico em referência, criado por despacho do Director do Instituto Portugûes de Museus, de 18 de Dezembro de 2002, e coordenado por Isabel Cordeiro, então Subdirectora do IPM, contou com a participação de quatro directores de museus (Joaquim Caetano - Museu de Évora, Joaquim Pais de Brito - Museu Nacional de Etnologia, José Luís Porfírio - Museu Nacional de Arte Antiga e Luís Raposo - Museu Nacional de Arqueologia) e de técnicos e responsáveis dos serviços centrais (Amélia Fernandes, Anabela Carvalho, Elsa Garrett Pinho, Fernando Mota Carneiro, Inês Cunha Freitas e Paulo Ferreira Costa).
Comecemos pelo princípio: os próprios conceitos de “tesouro” e de “nacional”, observados seja no plano simbólico, seja no plano jurídico. Para arqueólogos em especial, o termo “tesouro” incomoda sobremaneira, porque afinal ele parece contrariar toda a insistente pedagogia que realizamos para distinguir os bens patrimoniais, de tesouros no sentido venal e corrente do termo. Seriam inúmeros e por demasiado evidentes dispensáveis de citar aqui os exemplos em que valor patrimonial e valor venal não se conjugam. E estamos em crer que este desconforto em relação ao nome é comum a numerosos outros especialistas.
Fig. 2 Auto-retrato (c. 1900) Aurélia de Sousa (1866-1922) Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto nº inv. MNSR 878 P © Instituto dos Museus e da Conservação
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Não será talvez por acaso que em todos os textos de direito europeu, desde o Tratado de Roma, sempre a expressão “tesouros nacionais”, usada nas versões francesa e inglesa dos diplomas legais, foi substituída por “património nacional” na maior parte das restantes versões linguísticas, entre as quais a portuguesa. Quanto ao qualificativo “nacional”, trata-se igualmente de algo que provoca inegável mal-estar, aqui mais amplo e substantivo talvez: como assim classificar um objecto ritual etnográfico, obtido em África? Ou uma pintura de autor estrangeiro apenas circunstancialmente recolhida no nosso ou noutro País? Ou o busto de imperador romano, muito anterior a todo e qualquer sentido nacional actual? Sendo reais todas estas objecções e suscitando inquietações que também partilhamos quando se trata de analisar cada caso concreto, elas nem por isso se nos afiguram pertinentes em termos conceptuais e, em todo o caso, mesmo que parcialmente o fossem, jamais poderiam servir para contrariar os princípios maiores que passaremos a expor resumidamente. É certo que o conceito de tesouro nacional está intimamente ligado à apropriação que o presente faz do passado. Neste caso sobretudo o presente que se continua a rever na figura do Estado-Nação. Como diz Virgílio Vercelloni, “o conceito de tesouro é antes de tudo o do conjunto de bens de vária natureza que tendem sempre a avalizar o presente através da história e da interpretação que lhes é dada; por isto serão sistematicamente utilizados como instrumentos de comunicação por parte da classe dirigente” (2005: 166). Será isto mau ? Nem bom, nem mau: simplesmente inevitável, já que não existe memória do passado, fora do uso que o presente entenda fazer dele, com especial relevo para quem no dito presente seja detentor do poder político – um uso totalitário, como a história nos ensinou ser frequente, ou um uso democrático e “mais autêntico”, na expressão de Patrice Béghain, onde “o património pode converter-se num pensamento sensível da memória, inscrito simultaneamente no espaço crítico que lhe faculta o conjunto das ciências que concorrem para a sua constituição, e no espaço afectivo onde se pode efectuar a sua apropriação” (1998: 104). A ideia da apropriação do passado pelo presente constitui porventura o valor mais sedimentado da modernidade, desde as teses iniciais de Aloïs Riegel (“não existe um valor da arte eterno, mas somente um valor relativo, moderno… um valor actual”, 1903: 43) até aos conceitos pós-modernos de consumo e legitimação do saber (Poulot 2001: 202; Lyotard 1979), passando evidentemente pelas posturas estruturalistas de Roland Barthes, ao afirmar que a eternidade da obra de arte está nos seus múltiplos sentidos para os sucessivos presentes por que foi passando, inclusive o nosso (1966: 51).
Fig. 3 Saleiro (séc. XVI) África, Benim Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa nº inv. 750 Esc © Instituto dos Museus e da Conservação
Ora, sendo assim em geral, é talvez no estabelecimento de tesouros nacionais que mais radicalmente se coloca toda a problemática da “tradição inventada”, de que nos fala Eric Hobsbawn (1983), ou da necessidade vital da existência de “objectos memoriais” e de “sutura”, a que se refere Marc Guillaume (1980). E é ainda com os tesouros nacionais que melhor se cumprem os postulados daquilo a que Michel Lacroix (1997) chama de “ética da salvaguarda”, ao convocar Noé (o passado; os outros) e Narciso (o presente; nós próprios) para um mesmo olhar sobre o passado, humilde porque aprendemos do positivismo comtiano que “a Humanidade é composta por mais mortos do que vivos”, mas activo e interveniente também, porque afinal importa escolher, já que, citando novamente Lacroix, o conceito de “um património ilimitado, universal, ecuménico, aberto a todas as culturas e tradições” constitui em si mesmo “uma contradição a nível dos termos”, posto que “herdar tudo equivale a não herdar nada” (1997: 190).
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Finalmente e ainda no plano simbólico são também os tesouros nacionais que mais limpidamente nos deixam ver como “cada coisa é o que é”, na expressão poética pessoana, que usamos como mote para este texto. É esta a sua “aura”, no sentido em que Walter Benjamin, pela primeira vez, se referiu às circunstâncias únicas de tempo e lugar (“o hic e o nunc”) que fazem a matriz da obra de arte e a distinguem com toda a radicalidade da reprodução, por mais perfeita que esta seja. “A autenticidade de uma coisa – diz Benjamin – é a suma de tudo o que desde a sua origem é nela transmissível, desde a sua duração material ao seu testemunho histórico” (1935: 79). E em nenhumas outras coisas, mais do que nos tesouros nacionais, se coloca de modo imperativo a questão da autenticidade, na perspectiva da densa teia de relações que o objecto estabelece connosco e com os nossos predecessores, em todo o percurso que seguiu, desde que foi criado. Existe, pois, uma legitimidade de fundo, simbólica e política na acepção mais ampla do termo, para que cada sociedade possa sentir-se de tal modo ligada a determinados objectos do passado, que deles faça seus tesouros nacionais, independentemente das circunstâncias concretas de tempo e lugar que lhes deram origem. Como procurámos demonstrar noutro local (Raposo 2004), consideramos, por exemplo, muito mais justificada a apropriação por parte de um Estado europeu de uma peça da Antiguidade, peça detentora de um percurso histórico que por hipótese a ligue à emergência da cultura e da ciência desse país e do ambiente civilizacional em que se inscreve, no seu todo, do que a reclamação de pertença a determinada comunidade índia americana do esqueleto de um hipotético antepassado com vários milhares de anos, sem que para tal existam quaisquer suportes, seja de racionalidade científica, seja de contingência histórica. Sendo assim, esclarecida a questão conceptual de fundo, o que importa é sobretudo analisar as modalidades de concretização da legitimidade acima enunciada. O que significa saber como e com que fins tem sido delimitada, no plano do direito, a faculdade da definição de tesouros nacionais por parte de cada Estado. Fig. 4 Báculo (Neolítico Final / Calcolítico Inicial - 3º / 2º milénios a. C.) Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa nº inv. MNA 989.29.1 © Instituto dos Museus e da Conservação
Neste sentido, justifica-se talvez primeiro realizar uma breve evocação histórica, recordando a importância que o inventário e a defesa dos bens patrimoniais tiveram na ordem internacional emergente do pós-guerra, quando no âmbito da UNESCO se estabeleceu pela primeira vez, em 1954, uma “Convenção para a protecção dos bens culturais em caso de conflito armado”, da qual decorre, entre outros, o princípio da necessidade de definição dos bens móveis considerados como de interesse nacional. H. Lavachery e A. Noblecourt (1954) referem-se então explicitamente quer à responsabilidade dos Estados nacionais em seleccionar os bens culturais a proteger (“nunca será infelizmente possível assegurar a salvaguarda completa da totalidade do património cultural de uma nação. O Estado, nomeadamente, não poderá senão intervir em favor dos culturais julgados de primeira ordem”), quer ao conteúdo muito restrito dos bens assim classificados (“bens insubstituíveis, aqueles cuja perda constituiria um empobrecimento sensível não apenas para a nação interessada, mas para a humanidade inteira”, uma lista “muito reduzida, resultante de uma escolha severa”). O percurso seguido pela comunidade internacional na defesa dos bens culturais foi depois conceptualmente alargada já não apenas à sua protecção em caso de conflito armado, mas em todas as situações conducentes à sua destruição ou ao seu descaminho. Dois exemplos deste percurso foram a Convenção da UNESCO destinada a proibir e impedir a importação, exportação e a transferência de propriedade ilícitas de bens culturais, subscrita em 1970, e a Convenção com o mesmo fim adoptada em
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1995, em Roma, pelo Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT). As preocupações com o tráfico ilícito de obras de arte e todas as matérias conexas relacionadas com a devolução dessas obras aos países de origem constituem hoje o principal motivo de reflexão mundial sobre estas matérias, alargando-se mesmo o âmbito do debate a épocas anteriores ao estabelecimento da ordem emergente do pós-guerra (veja-se o caso mais emblemático da polémica em torno dos frisos do Parténon, adquiridos pelas autoridades inglesas no início do século XIX, incorporados nas colecções do Museu Britânico, e agora reclamados pelas autoridades gregas). Entretanto, nas organizações regionais foram-se construindo ordenamentos jurídicos particulares, normalmente de maior conteúdo regulamentar. É o caso do direito da União Europeia, que nos cumpre ter presente porque não apenas delimita conceptualmente, como de facto obriga a legislação portuguesa. A salvaguarda dos tesouros nacionais está na matriz do contrato europeu. Em concreto, estabelece o artº 36º do Tratado de Roma, de 1957, que todas as disposições referentes às práticas do mercado comum têm como limite “as proibições ou restrições à importação, exportação ou trânsito justificadas por razões de… protecção do património nacional [ou dos tesouros nacionais, nas versões francesa e inglesa do Tratado] de valor artístico, histórico ou arqueológico”. O entendimento dado a este conceito de “património” ou “tesouro” nacional foi depois especificado pelo Regulamento comunitário nº 3911/92, relativo à exportação de bens culturais e pela Directiva nº 93/7/CEE, referente à restituição de bens culturais que tenham saído ilicitamente do território de um Estado-membro. A lista de objectos que podem ser considerados como tesouros nacionais é aqui vasta, adoptando-se uma postura tecnocrática e essencialmente arbitrária: antiguidades superiores a 100 anos para o caso de peças arqueológicas e elementos integrantes de monumentos; a 50 anos no caso da maior parte dos restantes bens móveis; a 100 anos no caso de livros e a 200 anos no caso de cartas geográficas; a 75 anos no caso dos meios de transporte; etc., etc. Trata-se de uma regulamentação severa, tendencialmente exaustiva, mas estritamente mercantil. Nada é dito sobre questões relacionadas com a origem remota e propriedade actual de tais peças. Ou seja, fica ao inteiro critério de cada Estadomembro definir os recortes conceptuais que pretende dar ao seu entendimento de tesouro nacional.
Fig. 5 Adoração dos Magos (1503-1506) Vasco Fernandes Museu Grão Vasco, Viseu nº inv. MGV 2144 © Instituto dos Museus e da Conservação
Não pretendemos aqui realizar qualquer reflexão sobre o conceito de património cultural, em termos globais, questão que transcenderia muitíssimo o escopo do nosso texto. Basta lembrar, como Xavier Greffe por exemplo (1999: 45), que podem convergir na delimitação do mesmo motivações de ordem comunicacional (“um objecto tornase património quando está carregado de sentido para uma colectividade”), científica (“um objecto torna-se património se se vê reconhecido no meio de outros objectos como de valor histórico ou artístico insubstituível”) e económica (“um objecto tornase património quando apresenta valor económico e o seu desaparecimento pode constituir uma perda para a colectividade”). Assim, dirigimos a nossa atenção mais concretamente para os critérios teóricos susceptíveis de serem usados na definição de tesouros nacionais, utilizando para o efeito as sugestões de Pierre Lavile (1998): a) a nacionalidade do artista, o que se afigura muito simplista já que, desde logo, deixaria de fora todas as obras sem artista definido, assim como todas as que remontassem a períodos anteriores ao estabelecimento das nacionalidades actuais, isto já para não falar nos casos de países em que a identidade entre “Nação” e “Estado” seja pouco mais do que ficcional; b) o país de origem, critério que ganha cada vez mais adeptos, mas suscita questões de princípio semelhantes ao anterior e
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implicações práticas inimagináveis (veja-se o caso dos grandes museus de arqueologia e de etnologia em todo Mundo, que, a aplicar-se este critério, se veriam desapossados da maior parte das suas colecções); c) o país de destino, entendido aqui tanto na condição de encomendante original como na de mero depositário final, por qualquer modalidade que seja, desde que suportada civilizacionalmente na época em que ocorreu; d) enfim, o sentido comunitário de pertença, critério mais subtil e problemático, mas também mais realista, abrindo conscientemente a possibilidade de comunidades diferentes conflituarem entre si na reivindicação de um mesmo tesouro nacional, cabendo apenas à história (muito mais do que ao direito) dirimir em cada momento essa disputa. É muito no sentido da inclusão ampla decorrente deste último critério que se têm dirigido os textos legais internacionais e nacionais. A Convenção da UNESCO de 1970, por exemplo, indica que por património cultural de cada Estado pode entender-se: “a) bens culturais criados pelo génio individual colectivo de nacionais do Estado em causa e bens culturais importantes para esse mesmo Estado e que tenham sido criados no seu território por nacionais doutros países ou por apátridas que neles residam; b) bens culturais encontrados no território nacional; c) bens culturais adquiridos por missões arqueológicas, etnológicas ou de ciências naturais, com o consentimento das autoridades competentes do país de origem desses bens; d) bens culturais que tenham sido objecto de trocas livremente autorizadas; e) bens culturais recebidos a título gratuito ou adquiridos legalmente com o consentimento das autoridades competentes do país de origem desses bens”. E a legislação portuguesa vai no mesmo sentido, conforme fica estatuído no art. 55º, da Lei nº 107/2001, relativamente aos objectos móveis, os quais se diz serem “de autor português ou sejam atribuídos a autor português, hajam sido criados ou produzidos em território nacional, provenham do desmembramento de bens imóveis aí situados, tenham sido encomendados ou distribuídos por entidades nacionais ou hajam sido propriedade sua, representem ou testemunhem vivências ou factos nacionais relevantes a que tenham sido agregados elementos naturais da realidade cultural portuguesa, se encontrem em território português há mais de 50 anos ou que, por motivo diferente dos referidos, apresentem especial interesse para o estudo e compreensão da civilização e cultura portuguesas.” Encontra-se, pois, suficientemente definido o quadro conceptual e legal, internacional e nacional, dentro do qual é admissível a classificação legal de um qualquer bem patrimonial. Alguns países europeus adoptam mesmo esta classificação legal como praticamente equivalente do conceito de tesouro nacional. É especialmente assim no caso daqueles em que nos textos de direito europeu se usa precisamente esta expressão. Em França, por exemplo, confere-se ao conceito
de tesouro nacional uma enorme amplitude: a) os objectos classificados como “monumentos históricos”; b) os arquivos classificados como históricos; c) todas as peças das colecções públicas (regime do domínio público); d) as colecções abrangidas pela classificação de “Museu de França”, ou seja, todas as colecções dos museus reconhecidos como tal. Na Alemanha, pelo contrário, o conceito de tesouro nacional é apenas aplicado a um número restrito de peças, assim classificadas pelos Estados regionais (os “Länder”), que são cerca de um milhar na actualidade. A via seguida em Portugal é intermédia e julgamos que representa uma opção muito sensata. De facto, sem abdicar dos efeitos produzidos pela tutela legal instituída quer internamente, quer através dos diplomas europeus para o conjunto dos bens patrimoniais, qualquer que seja a sua classificação, entendeu o poder político português apartar dessa totalidade um subconjunto a que chama “tesouros nacionais”. E fê-lo bem, segundo cremos. Dito de outra forma: uma coisa é defender, como pessoalmente defendemos e a lei portuguesa garante, que todos os nossos bens patrimoniais móveis, numa versão ampla próxima do conceito de tesouro nacional francês, estão ipso facto defendidos do tráfico, comércio ou deslocação ilícita; ou ainda que estão protegidos, dentro do nosso país, contra agressões que os alienem, violentem ou descaracterizem; ou ainda que simplesmente a nossa sociedade se interessa por lhes seguir o rasto. Outra coisa totalmente diversa é não perceber que não é possível acorrer a tudo ao mesmo tempo e que a categorização dos bens (de interesse nacional, de interesse público ou de interesse municipal) pode constituir um excelente instrumento para alicerçar a definição de políticas operativas nesta área. Ora, é neste sentido que vale a pena apartar do universo dos bens patrimoniais um subconjunto chamado de tesouros nacionais, entendidos como todos os bens móveis a que se julgue relevante atribuir “interesse nacional”. Perguntar-se-á se não merecem ser defendidas todas as colecções que se encontrem nos museus ? E a resposta é simples: com certeza. Mas, em caso de catástrofe, incêndio ou inundação, só para dar exemplos intuitivos, que fazer ? Haverá algum director ou conservador de museu que não entenda, nesse momento, existirem prioridades e deixar-se-á sucumbir, procurando acorrer a tudo, para assim arriscar perder o mais importante ? É óbvio que não. O que se trata aqui é de exigir a responsabilidade do Estado para que, como lhe compete, instrua as equipas dos museus e não deixe a definição do que deve ser privilegiado unicamente ao bom senso ou às preferências circunstanciais de cada um. Ora, ninguém senão o Poder Político tem legitimidade democrática para, ao mais alto nível do simbolismo nacional atribuído a certas peças, determinar atribuir-lhes tratamento privilegiado.
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Claro que a categorização legal dos bens patrimoniais móveis tem uma longa história no nosso sistema jurídico. Elsa Garrett Pinho (2002), em síntese sobre esta matéria, faz remontá-la a 1901 (quando pela primeira vez se sugere uma tutela legal para “objectos de reconhecido valor”) e especialmente à legislação cautelar derivada da implantação de República, em 1910. Nós próprios, noutra ocasião (Raposo 1993), tínhamos indirectamente abordado esta matéria, fazendo recuar o seu enquadramento até à inicial definição parlamentar oitocentista dos primeiros “monumentos nacionais” e desenvolvendo depois o impacte que a centralização administrativa imposta pelo Estado Novo teve sobre o conjunto dos bens patrimoniais. Em vários dos diplomas portugueses produzidos ao longo do século XX, à classificação hierarquizada dos bens corresponderam algumas medidas de salvaguarda diferenciadas, porém quase todas dirigidas para o estabelecimento de ónus de propriedade sobre os mesmos, por parte de privados. E de há muito se vinha sentido a necessidade de ir mais além, de prever todo um conjunto muito diversificado de medidas susceptíveis de melhor garantir a preservação dos bens classificados. A adopção do conceito de tesouro nacional pela Lei 107/2001 – o qual, tanto quanto sabemos, nunca antes fora empregue em diploma legal português, no contexto e com o significado aqui considerado (totalmente diverso do uso do termo “tesouro” em toda a legislação relacionada com a descoberta, encaminhamento e estabelecimento dos direitos de propriedade de bens de valor venal descobertos fortuitamente) – poderia constituir uma janela de oportunidade, aconselhando a pensar em novas direcções. E foi o que, acertadamente segundo cremos, fez o grupo técnico que preparou a lista que hoje possuímos. Ao avaliar esta lista convém talvez começar por reconhecer as dificuldades decorrentes dos limites, já não apenas filosóficos (arbitrariedade essencial de qualquer listagem porque dependente da percepção social, dos conhecimentos científicos, das circunstâncias político-administrativas e do ordenamento jurídico em que é feita) ou teóricos (toda a problemática decorrente dos equívocos inerentes aos conceitos de “tesouro” e de “nacional”, já antes evocada), mas sobretudo metodológicos e político-administrativos que lhe foram impostos. No plano metodológico citem-se a incompletude, inconsistência e desequilíbrio disciplinar / temático interno de qualquer lista – limitações que nuns casos decorrem das lacunas de conhecimento e dos vícios de procedimento dos autores das listagens, noutros decorrem da natureza própria das colecções dos museus. Cite-se ainda o apriorismo que sempre lhes será imposto pela necessidade do estabelecimento de limites temporais, designadamente quando se abordam os trabalhos de autores subactuais, que podem ver parte ou todas as respectivas obras excluídas do campo de análise, apenas pelo virar de um ano (no caso vertente estabeleceu-se como baliza um período de 70 anos após a morte do respectivo autor). No plano políticoadministrativo, saliente-se o confinamento da listagem elaborada aos museus tutelados pelo IPM, condição indispensável para que fosse viável o desempenho da missão atribuída, dentro dos prazos requeridos.
Fig. 6 Relicário (séc. XIV-1ª metade) Prov. Convento de Santa Clara-a-Velha Museu Nacional de Machado de Castro Coimbra, nº inv. MNMC 6036 © Instituto dos Museus e da Conservação
A este tipo de limitações, somam-se as que decorrem da Lei de Bases (Lei nº 107/2001) de que uma listagem desta natureza constitui desenvolvimento regulamentar. Ora, esta Lei é bastante parca na indicação dos critérios que sirvam à definição de tesouros nacionais. Apenas estabelece (art. 15º) que “um bem considera-se de interesse nacional quando a respectiva protecção e valorização no todo ou em parte represente um valor cultural de significado para a Nação”, sendo que a classificação de grau imediatamente inferior, “bem de interesse público”, também é definida de forma insuficiente e até algo tautológica, porque se diz ser todo aquele bem em que
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“a respectiva protecção represente ainda um valor cultural de importância nacional, mas para a qual o regime de protecção inerente à classificação como de interesse nacional se mostre desproporcionado”. É certo que a Lei nº 107/2001 aponta, noutra passagem, um caminho, ao enumerar os critérios genéricos de apreciação para a classificação ou a inventariação dos bens patrimoniais: o carácter de autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade do bem; o génio do respectivo criador; o interesse do bem como testemunho simbólico ou religioso; o interesse do bem como testemunho notável de vivências, factos históricos e identidades colectivas, o valor estético, técnico ou material intrínseco do bem; a indissociabilidade entre o bem e o respectivo contexto arquitectónico, urbanístico e ou paisagístico; a extensão do bem e o que nele se reflecte do ponto de vista da memória colectiva, designadamente no que respeita à articulação entre aquele e qualquer forma ou categoria de património imaterial; a importância do bem do ponto de vista da investigação histórica ou científica; as circunstâncias susceptíveis de acarretarem diminuição ou perda da perenidade ou da integridade do bem (art. 17º). Mas tudo isto é aplicável, sem qualquer distinção de espécie ou grau, tanto aos bens de interesse nacional, como aos de interesse público e até aos de interesse municipal. Foi por isso necessário apresentar novos critérios, que se pretendem constituir desenvolvimentos dos anteriores, e surgem expressos no Decreto que formaliza a listagem (Decreto 19/2006, art. 1º): carácter insubstituível, no sentido em que a perda ou degradação constitua dano irreparável para o património cultural; valor patrimonial de excepção, passível de integração num regime ou sistema de formas de protecção de âmbito internacional; quando de autores estrangeiros, exemplaridade ou raridade em território nacional, bem como pelo valor de referência patrimonial tal que se imponha cometer ao Estado Português a obrigação da sua protecção através de todos os instrumentos legais ao seu dispor; capacidade de gerar conhecimento que se constitua num marco que assegure a transmissão de uma herança cultural visando o enriquecimento das sucessivas gerações, bem como a fruição e a democratização da cultura; enfim, conveniência do estabelecimento de severas restrições de circulação no território nacional e internacional (aspecto que a Lei nº 17/2001 igualmente considera, no art. 65º). Claro que estes critérios podem ser objecto de aplicações substancialmente diversas. Algumas conduziriam a listagens altamente restritivas; outras, pelo contrário, seriam demasiado abrangentes. No nosso entendimento do que deve ser uma posição equilibrada neste âmbito, alinharíamos os seguintes princípios orientadores: a) não limitação da listagem ao conceito de “obra-prima” (e muito menos ao de “tesouro” no
sentido venal do termo), de valor supostamente absoluto, fora de qualquer tipo de contextualização; b) em consequência, consideração de peças cujo valor é sobretudo dado pela sua contextualização no interior de conjuntos artefactuais, o que remete para os conceitos de conjunto e de colecção (“conjunto coerente de peças mantido substancialmente intacto, que, pela sua raridade ou apresentação assume um interesse especial ou excepcional; cujo valor é superior ao da soma dos elementos que a compõem enquanto individualmente considerados, e que ficaria comprometido ainda que só parcialmente, em caso de dissociação ou desmembramento”, nos termos da definição seguida pelo Comité para os Bens Culturais do Conselho da Europa); c) adopção do princípio da amostragem, o que significa considerar apenas uma vez, a título paradigmático, peças ou conjuntos mesmo que possam existir outras idênticas noutros locais, as quais não serão obviamente de considerar (exemplo: conjuntos de peças mais característicos de culturas arqueológicas particulares do território português; selecções de obras de um determinado autor; etc.); d) entendimento do carácter nacional nos exactos termos de Lei de Bases, ou seja, não limitando tal qualificação à estrita vinculação da produção das obras a Portugal, entendido como entidade política autónoma, mas sim como unidade cultural permanente, com dimensões temporais que remontam às origens da ocupação humana no território e com dimensões espaciais universais, na exacta medida dos relacionamentos estabelecidos com a totalidade de ecúmena humana; e) no caso especial de peças não portuguesas (no sentido amplo dado anteriormente), cuja relação com Portugal se fica a dever exclusivamente ao acto coleccionista de portugueses ou de residentes em Portugal, considerar a sua inclusão apenas quando se trate de exemplares tão raros ou tão relevantes que possam também ser considerados como tesouros mundiais, cabendo ao Estado português a sua preservação através de todos os instrumentos legais ao seu dispor; f) selecção de peças através do método da “purificação regressiva”, ou seja, do cruzamento das listagens parcelares elaboradas por cada museu, organizadas por categorias artefactuais e por áreas disciplinares ou temáticas e confrontadas transversalmente, por forma uniformizar ao máximo os critérios adoptados; g) em geral, atitude de contenção, procedendo sempre mais por exclusão do que por inclusão. Julgamos que estes princípios foram seguidos no caso português e que a lista final obtida é equilibrada, atento o universo de que partiu (colecções do museus tutelados pelo IPM). Existem obviamente riscos significativos inerentes a este tipo de fixação legal. Alguns autores, e numerosos colegas com quem temos discutidos estas matérias, duvidam mesmo da utilidade real deste tipo de instrumentos, por falta de fundamento científico bastante e eventual desajustamento à realidade social contemporânea (não serão estas listagens instrumentos remanescentes de uma concepção patrimonial oitocentista,
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Fig. 7 Grande Panorama de Lisboa (1700-1725) Prov. do antigo palácio dos condes de Tentúgal Museu Nacional do Azulejo, Lisboa nº inv. MNA 1 © Instituto dos Museus e da Conservação
nacionalistico-romântica ?). Existe ainda o risco inegável destes procedimentos contribuírem para cristalizar a reflexão social nestes domínios, isolando umas tantas “obras-primas”, que rapidamente se separam dos seus contextos originais e adquirem o estatuto de ícones indiscutíveis. Finalmente, “last but not least”, ocorre reconhecer que qualquer processo de selecção implica a exclusão dos bens que ficam de fora, os quais podem, por essa via, passar a ser mais desconsiderado, senão desprotegidos. Não obstante reconhecermos a pertinência de todas estas observações, que são também objecções sérias, mantemos uma postura optimista, dado que ao colocarmos no outro prato da balança os possíveis efeitos positivos da opção por elaborar listas de tesouros nacionais, os consideramos muito mais atendíveis. Senão vejamos. Antes de tudo a fixação de tesouros nacionais constitui um acto político. E quanto tal é concretizado em regime democrático, pode representar um valioso instrumento de cidadania consciente, ou seja, de participação crítica e plural na vida comum. Vêm depois todos os possíveis efeitos positivos instrumentais decorrentes desta fixação legal: a) a maior consciencialização social das mais importantes colecções existentes nos museus (neste caso apenas nos do IPM); b) o reforço das medidas visando a sua segurança, especialmente em caso de catástrofes naturais, mas também em caso de conflitos armados; c) o reforço das medidas visando a sua conservação (preventiva e curativa); d) o reforço das medidas visando a sua divulgação; e) a instituição de padrões de referência para a valorização e eventual classificação de colecções idênticas pertencentes a outras entidades públicas ou privadas.
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Para que estes efeitos se produzam é necessário extrair destas listagens diversas consequências derivadas, de que salientamos: a) a edição exaustiva dos ditos tesouros nacionais, sob a forma impressa ou outra, para amplo conhecimento público; b) a promoção da sua divulgação junto do grande público, através dos meios de comunicação de massas (programas televisivos; artigos de jornal; etc.); c) a elaboração, museu a museu, das propostas de medidas reforçadas visando a sua adequada preservação em caso de catástrofe de origem natural ou humana, de conservação preventiva e curativa, de exposição pública, de empréstimo para o exterior do museu (propostas todas elas consideradas separadamente nos respectivos regulamentos, planos de intervenção e programas de actividade); d) adopção, por parte do Ministro da Cultura, sob proposta de direcção do IPM e em articulação com todos os departamentos governamentais relevantes, das medidas legais e administrativas susceptíveis de garantir a concretização dos efeitos positivos acima enunciados. Neste sentido, julgamos que seria necessário perspectivar a próxima elaboração de três documentos orientadores essenciais, a saber: um “Plano Nacional de Segurança dos Tesouros Nacionais em Caso de Catástrofe” (ao qual se reportem os planos de segurança de cada museu onde existam tesouros nacionais); um “Regulamento de Circulação dos Tesouros Nacionais, no País e no Estrangeiro” (ao qual se reportem os regulamentos da mesma índole em vigor para o conjunto dos bens dos museus subordinados a uma mesma tutela); e um “Programa de Conservação e Valorização dos Tesouros Nacionais” (ao qual se reportem os programas de actividades nesta área dos museus detentores de tesouros nacionais)
Quando tudo isto é feito, então a definição de tesouros vale realmente a pena. Mas ainda que, tomados do fatalismo português, antecipemos que talvez assim não aconteça em terras lusitanas, subsistem as razões de fundo que nos fazem convencer da necessidade política deste empreendimento e do acerto técnico de quem em cada País aceita participar nele. Ousamos afirmar que não existe sequer alternativa. Ou será que quem defende o contrário considera que todos os bens guardados em museus são ipso facto “tesouros nacionais” e que por isso não se justifica existirem definições de prioridades quanto à sua salvaguarda e promoção pública ? Ora, como na realidade ”cada coisa é o que é”, se o Estado se demitir de as hierarquizar, será fatalmente o mercado a fazê-lo, pelo livre jogo da oferta e da procura, com evidentes consequências na gestão dos acervos dos museus. E, sendo assim, não haverá nas
posições dos que desdenham deste tipo de medidas normativas uma inadvertida (ou consciente) rendição a concepções ultra-liberais de entrega do património colectivo à gestão de privados, segundo as suas prioridades ? Quem escreve estas linhas não se encontra preparado para a capitulação que uma tal postura implica. Acredita na responsabilidade de, sentindo-se habilitado para o efeito, contribuir modestamente que seja para a cada coisa ser dado o seu justo valor, na avaliação subjectiva que colectivamente dela se faça, com compensador ganho de causa pessoal, umas vezes, e arreliante perda, outras. É assim mesmo, ainda que por vezes seja difícil explicar a alguém quanto isso o alegra, e quanto isso lhe basta.
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Joaquim Oliveira Caetano O retábulo flamengo da Sé de Évora Algumas reflexões sobre um processo de investigação em curso
Os conjuntos retabulares da Vida da Virgem e com passos de Paixão de Cristo, ambos provenientes da Sé de Évora, são de invulgar importância no contexto da pintura flamenga da transição do século XV para o século XVI, das colecções do Museu de Évora, do património da cidade e dos museus portugueses. O encerramento do Museu de Évora para obras de remodelação abriu a oportunidade de iniciar sobre estes conjuntos um projecto de investigação e de preservação que envolve uma equipa alargada de âmbito internacional. The group of panels of the Life of the Virgin and Scenes from the Passion of Christ, both from the Évora Cathedral, are of unusual significance to the context of Flemish painting from the 15th and the 16th century transitional period, to the collections of the Museu de Évora, to the city’s heritage and to Portuguese museums. The closing of the Museu de Évora for refurbishment work was the perfect opportunity for the beginning of a research and preservation project involving a large team of international members.
PALAVRAS-CHAVE: Museu de Évora, pintura flamenga, investigação, processo de estudo, prática de trabalho de ateliê, história da arte, conservação.
Director do Museu de Évora | director@mevora-ipmuseus.pt
O
s treze painéis de grandes dimensões da Vida da Virgem, provenientes do antigo retábulo da Sé de Évora e os seis outros, mais pequenos, com passos da Paixão de Cristo, também provenientes da Catedral eborense, formam um conjunto de pintura flamenga da passagem do século XV para o século XVI, de invulgar importância, não só no contexto das colecções do Museu de Évora, como do património da cidade e dos museus portugueses. A sua importância decorre de vários factores – desde logo da grande qualidade da pintura, identificável com as oficinas de Bruges, de cerca de 1500, próximas da obra de Gerard David, embora se reconheçam influências de outros mestres brugenses, sobretudo de Hugo van der Goes; mas também das enormes dimensões do conjunto, e da sua provável integridade em relação ao primitivo retábulo, o que torna particularmente interessante o seu estudo, não só como exemplo de uma grande empreitada flamenga de exportação para o Sul da Europa, como pela influência que pode ter exercido sobre a pintura portuguesa de início de Quinhentos, nomeadamente sobre o modelo de grandes retábulos historiados que são comuns no reinado de D. Manuel. No seu século de ouro, entre meados do século XV e os anos centrais do século XVI, em que a presença continuada da corte fez da cidade um enorme estaleiro de palácios, conventos e obras públicas, Évora foi um dos mais importantes centros de pintura do país, só comparável a Coimbra e só suplantado por Lisboa. Porém, o processo de extinção das Ordens Religiosas não deixou, ao contrário do que sucedeu naquelas duas cidades, grande enriquecimento do espólio pictórico no Museu local. Os melhores exemplares de pintura quinhentista, como os retábulos dos Conventos de S. Francisco, do Espinheiro, ou de S. Bento de Cástris, foram recolhidos na Academia Nacional de Belas-Artes e mais tarde no Museu Nacional de Arte Antiga.
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Fig. 2 Disposição do Retábulo da Vida da Virgem segundo desenho de José de Queirós Apontamentos de José Queirós, 1901-1905 © Instituto dos Museus e da Conservação
<< Fig. 1 Apresentação do menino no Templo Pormenor do painel © Instituto dos Museus e da Conservação
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Só dos conventos de frades contavam-se, em 1865, 95 pinturas sobre madeira que saíram de Évora para o depósito de S. Francisco de Lisboa. A maioria das obras de pintura que permaneceram na cidade foram vendidas ou entregues à Diocese e apenas deram entrada no Museu anexo à Biblioteca Pública, ou já no Museu autonomamente criado em 1915, algumas poucas pinturas sobre tábua, na maioria dos casos de mestres regionais e quase sempre em muitíssimo mau estado de conservação. De tal forma que, para dar uma ideia ainda que pálida, da importância da pintura quinhentista na história artística da cidade o Museu de Évora teve sempre que recorrer a empréstimos do Museu das Janelas Verdes, mesmo para documentar mestres de quase exclusiva actividade local como Frei Carlos. A excepção neste desencontro entre o Museu de Évora e a tradição artística da cidade foi precisamente o retábulo da Sé de Évora cuja apropriação pelo Estado ocorreu de forma quase contemporânea com a individualização do então Museu Distrital de Évora, durante a Primeira República. E mesmo neste caso a incorporação esteve longe de ser pacífica. Apesar de retirados da catedral na sequência da transformação da capela-mor no século XVIII, as pinturas permaneceram sempre na esfera do arcebispado. Frei Manuel do Cenáculo, que mandou restaurar as obras em Lisboa, no início do século XIX, colocou por lhe ter parecido o tema apropriado um dos painéis, representando o Menino entre os Doutores, na Biblioteca Pública que inaugurou em Évora em 1805, mas todos os outros permaneceram no Paço Episcopal, colado à Catedral, no edifício onde actualmente se instala o Museu de Évora. Aí o viu o conde Raczynski em 9 de Julho de 1844, considerando então a Virgem da Glória como o melhor dos quadros góticos que vira em Portugal. Aí desenhou a posição das restantes pinturas José Queirós (fig. 2), mostrando a sua colocação, nos primeiros anos do século XX, na sala grande do Paço (onde curiosamente viriam também a ser expostas no Museu) com excepção da pintura maior, da Virgem da Glória, transformada em altar da capela palatina, conforme ainda se pode ver numa fotografia dos alvores do século XX do espólio do Grupo Pró-Évora. Na conflituosidade social da Primeira República, depois dos protestos que moveu contra a lei da Separação do Estado das Igrejas, de 20 de Abril de 1911, acabou o arcebispo eborense, por ser impedido pelo governo de residir no distrito por dois anos, refugiando-se em Elvas em 8 de Abril de 1912. O seu Paço foi imediatamente ocupado, tendo sido destinadas sete salas ao futuro Museu a criar na cidade. Um ano depois, no início de Maio de 1913, o Director do Museu Nacional de Arte Antiga, e Presidente da 1ª Delegação do Conselho de Arte e Arqueologia, e os pintores Veloso Salgado e Luciano Freire, deslocaram-se ao Paço para avaliar e separar as peças de interesse artístico que deveriam dar entrada no Museu Regional que se pretendia criar, mas as pinturas não surgem nas primeiras relações entregues ao director indigitado do Museu,
Lopes da Silva, que o era de facto também da Biblioteca. Certo é que em 1914 quatro das tábuas maiores do retábulo foram para o Museu Nacional de Arte Antiga, o que levou ao protesto dos jornais locais e ao impedimento popular do embarque no comboio de outras tábuas do retábulo. Luciano Freire verse-à obrigado a montar atelier em Évora para aí proceder ao restauro da pintura central do retábulo, por a opinião pública não permitir a sua saída da cidade, e lançará mais tarde, num relatório inédito, algumas sombras quanto aos interesses de colecionadores, concretamente o Visconde de Monserrate Herbert Cook, na aquisição de parte destas obras. Quando o Museu foi criado, em Fevereiro de 1915, as pinturas, por força do seu interesse artístico mas também da sua história recente, tinham-se tornado ícones da grandeza artística da cidade, motivo de visitas ilustres e de referências internacionais, como Raczynski, que já citámos, mas também Carl Justi (1888), Joaquim de Vasconcelos (1890), Bodenhausen (1905) e Joseph Destrée (1914). A própria criação do Museu de Évora se tornou um problema mais candente devido à polémica das pinturas e, provavelmente, a ela devemos o facto de, ao contrário do que veio a suceder em todo o Sul do País, o Museu eborense ter sido criado como Museu Distrital, ligado à administração central, permanecendo até hoje como o único museu a sul do Tejo integrado no conjunto dos Museus do Estado. A consciência desta importância do conjunto de pinturas permaneceu ao longo da vida quase centenária do Museu de Évora. Mário Chicó, que dirigiu o Museu entre 1942 e a sua morte em 1966, batalhou afanosamente até conseguir reintegrar no conjunto, em 1962, os quatro painéis que haviam saído para as Janelas Verdes e, finalmente, o projecto de remodelação lançado durante a direcção do Dr. Artur Goulart, pelo Arquitecto Raúl Hestnes Ferreira, contemplou uma encenação de reconstituição do conjunto, embora incorporando apenas as treze maiores tábuas da Vida da Virgem, o que reforçará no futuro, após a conclusão da obra, a centralidade deste retábulo no acervo e no percurso oferecido pelo Museu aos visitantes. O encerramento do Museu de Évora para extensas obras de remodelação, deu-nos a possibilidade de iniciar sobre este conjunto um projecto de investigação e de preservação. Era evidente a necessidade de uma intervenção de consolidação e preservação das pinturas que apresentavam algumas zonas de destacamento da camada cromática, ataques de xilófagos, oscilação de suportes e degradação de algumas cores apostas em anteriores intervenções de restauro. Para além das intervenções que documentalmente se sabe terem acontecido no retábulo, a primeira ainda antes de 1537, outra cerca de 1565, duas outras no século XVII e finalmente uma última na passagem para o século XIX, as pinturas tiveram, já dentro de uma perspectiva de conservação museológica várias intervenções no século XX, primeiro de Luciano Freire, depois de Fernando Mardel e finalmente já dentro da oficina de restauro do Instituto de José de Figueiredo.
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Fig. 3 Adoração dos Reis Magos Pormenor do painel © Instituto dos Museus e da Conservação Fig. 4 O Menino entre os Doutores Pormenor do painel © Instituto dos Museus e da Conservação
Fig. 5 Fuga para o Egipto Levantamento de fluorescência do ultravioleta © Instituto dos Museus e da Conservação
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Estas intervenções ocorreram em datas diferentes e não cobriram em cada momento a totalidade das pinturas, pelo que era indispensável aproveitar a ocasião para lançar uma intervenção mais profunda e sobretudo semelhante em todo o conjunto, que pudesse vir a manter-se durante as próximas décadas, já que o esquema de reinterpretação retabular proposto no projecto de arquitectura torna mais sensível a comparação e a unidade de todas as obras, ao pretender integrá-las numa unidade evocativa da sua primeira situação. Era também evidente que este trabalho de conservação teria de ser servido pela máxima informação possível, quer do conhecimento histórico sobre a obra, quer de aproximação à sua construção material através de análises químicas e físicas, tanto no espectro visível como invisível. Desta forma, a intervenção de conservação seria um momento privilegiado para o estudo das pinturas, não só pela aproximação que permite às pinturas, como pela circunstância de abranger a totalidade do conjunto como, sobretudo, por se poder aproveitar toda a documentação produzida e eventualmente poder alargar o âmbito destes documentos das necessidades específicas do restauro para uma interrogação mais concreta para a compreensão histórica e artística das pinturas. Deste ponto de vista o conjunto retabular trazia consigo uma série de questões que podiam vir a tornar o seu estudo um caso interessante não só para a historiografia nacional, como para o estudo de um certo tipo de produção flamenga, de grandes conjuntos de exportação para o sul da Europa, o que o tornaria um problema atractivo, também no âmbito dos estudos mais gerais sobre a pintura flamenga dos séculos XV e XVI. As invulgares dimensões do conjunto, a sua situação na pintura de Bruges no início do século XVI, referenciando-se com claras influências tanto da emergente oficina de Gerard David, como com o recém disperso atelier de Van der Goes, torna o retábulo de Évora um caso de estudo particularmente interessante. Sendo obvio que as dimensões exigiam uma junção de vários ateliês, a obra pode ser encarada como um modelo de trabalho colectivo onde se sintetizam e cruzam influências de várias oficinas e onde se tornam particularmente visíveis usos e processos de trabalho na construção material, que podem vir a ser muito esclarecedores, sobretudo se conseguíssemos cruzar a informação que a nossa própria pesquisa devia gerar com outros trabalhos recentes e processos de investigação em curso. Com estas premissas ficou claro que o encerramento do Museu de Évora seria uma oportunidade única para a conservação destas peças, que esse processo seria acompanhado por uma exaustiva documentação com generalizada cobertura fotográfica, de raios-x, de fotografia à luz ultravioleta e de reflectografia de infra-vermelhos, para além de análises químicas a pigmentos, ligantes e camada preparatória das pinturas e análise dendrocronológica dos suportes. Ficou também claro que este processo devia incorporar um estudo histórico, com levantamento de documentação não só sobre a feitura do retábulo, mas também
sobre a sua história posterior até à actualidade, abrindo linhas de pesquisa para a autoria da obra, os processos de criação artística, a iconografia, o encomendador e as condições da encomenda, quer do ponto de vista religioso e social. Por fim, pareceu-nos fundamental que se pudesse dar a este estudo uma componente internacional, não só de forma a suprir algumas fragilidades internas no estudo da pintura flamenga, como sobretudo para facilitar o cruzamento da nossa investigação com outros projectos semelhantes recentes ou em curso. Foi neste sentido que antes do início do projecto endereçámos à Profa. Maryan Ainsworth, conservadora de pintura flamenga do Metropolitan Museum de New York, uma explicação do que pretendíamos levar a cabo e um convite para o seu envolvimento nesses estudos. O convite não foi motivado apenas pela enorme admiração que tinha sobre a obra da Profa. Ainsworth, nem tão pouco pelo facto de ela ser hoje o nome de referência no conhecimento da oficina de Gerard David, particularmente relevante para o estudo das pinturas de Évora, mas sobretudo pelos seus trabalhos mostrarem uma preocupação muito central sobre os problemas da prática de trabalho de ateliê e da migração e cruzamento de influências que a circulação de oficiais e a reunião de oficinas para grandes empreitadas motivava. Interessava-nos antes de mais a forma como esta historiadora abordava os resultados da documentação técnica para a partir deles construir uma interpretação histórica sobre a pintura e a sua produção. Felizmente a Profa. Maryan aceitou incorporar o grupo de trabalho, propondo além disso a colaboração de dois outros especialistas, George Bisacca, especialista em suportes de madeira, também do Metropolitan Museum e Cathy Metzger da National Gallery de Washington, conservadora-restauradora, que fora responsável pelo tratamento do Retábulo de Santa Ana, um conjunto disperso por vários museus, adstrível à órbita de David, e com fortes similitudes com o retábulo de Évora, levantando o mesmo tipo de problemas decorrentes das dimensões dos painéis, da situação cronológica e artística e do facto de se tratarem ambos de obras de exportação flamenga para o mercado ibérico. O apoio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento veio permitir a materialização do apoio destes especialistas, no que tem sido até agora um pilar decisivo do processo de estudo. Um acordo entre o Instituto Português de Museus (IPM) e o Instituto Português de Conservação e Restauro (IPCR) estabelecido em Março de 2004 permitiu a entrada dos painéis nas oficinas de Restauro do IPCR, onde uma equipa de conservadores-restauradores ficou exclusivamente encarregue do seu tratamento. Nesta equipa incluíam-se para além das técnicas do IPCR Dulce Delgado, Mercês Lorena e Teresa Homem de Mello, três outros conservadores contratados por dois anos ao abrigo da candidatura do projecto ao Programa Operacional da Cultura, Sónia Pires, José Mendes e Miguel Garcia, este último com responsabilidade na área de tratamento e estudo dos suportes.
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Fig. 6 Fuga para o Egipto Levantamento radiográfico © Instituto dos Museus e da Conservação
Fig. 7 Fuga para o Egipto Vista integral do painel, uma das treze tábuas que constitui o Políptico da Vida da Virgem © Instituto dos Museus e da Conservação
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O processo de restauro veio a ser, dentro do mesmo Grupo de Trabalho acompanhado por nós e por José Alberto Seabra Carvalho do Museu Nacional de Arte Antiga, na área da História da Arte e contou ainda com a participação do fotógrafo José Pessoa da Divisão de Documentação Fotográfica do IPM, com responsabilidade na captação de imagens tanto do espectro visível como invisível, bem como Pedro de Sousa da Divisão de Fotografia do IPCR, a quem caberia a documentação do processo de restauro, e o Departamento de Estudos Materiais do IPCR, através da sua directora Isabel Ribeiro e de Lília Esteves responsável pelas análises dendrocronológicas. De uma forma mais alargada a própria direcção de ambos os institutos e os Directores de Serviços de Inventário do Instituto Português de Museus e do Departamento de Conservação e Restauro do Instituto Português de Conservação e Restauro, participaram no projecto e em várias reuniões do mesmo. Passados mais de dois anos do início do projecto, e numa altura em que o novo desenho do Ministério da Cultura incorpora ambos os Institutos envolvidos numa mesma unidade impõe-se fazer um primeiro balanço do projecto. Do ponto de vista histórico conhecemos bastante mais sobre o retábulo do que conhecíamos há dois anos atrás. Sabemos por exemplo que a sua encomenda não foi isolada, mas que derivou de grandes obras de remodelação da Sé iniciadas em 1492 pelo Bispo D. Afonso, que incluíram, para além da capela-mor, a nave sul da igreja, o baptistério e o coro-alto. Sabemos muito mais sobre a personalidade deste D. Afonso, erudito, reformador e truculento personagem da corte de D. João II e D. Manuel. Conhecemos com relativo detalhe a conturbada história do retábulo, reformado por completo em 1565 na sequência das alterações do cadeiral da capela-mor, respondendo às determinações tridentinas e no seio de um autêntico braço de ferro entre o bispo e o cabido, que haveria de se prolongar por mais de um século. Podemos ainda detectar diferentes modos de preparação dos painéis, quer na assemblagem, quer no preparo, quer em diferentes soluções de trabalho, o que confirmou a presença de artistas ou grupos de artistas, com práticas de atelier diversas. Podemos também comprovar a alteração das dimensões actuais em relação às originalmente apresentadas pelos painéis, chegandose, de acordo com o estudo levado a cabo pelo grupo de restauradores, a uma razoável certeza sobre a área perdida em cada uma das pinturas. A dendrocronologia por seu turno forneceu dados importantes, não só para a datação, que se enquadrará dentro do que lhe estava atribuído, grosso modo na passagem do século XV para o século XVI, mas também acentuou não só a unidade do grande conjunto, mas também deste com o chamado Retábulo do Esporão, levando a um reequacionamento do problema historiográfico da ligação entre os dois ciclos de pintura provenientes da Sé, isto é, o da Vida da Virgem e o da Paixão de Cristo, tendo em conta não só estes dados, como também a comparação com outro grande
conjunto retabular coevo, narrativamente muito semelhante, o retábulo Maior da Igreja de Santa Maria da Assunção de Trujillo, de Fernando Gallego. Deve recordar-se a este propósito que os trabalhos de restauro realizados até ao momento incidiram apenas sobre a série da Vida da Virgem e que não dispomos ainda de qualquer elemento de análise material da série da Paixão de Cristo à excepção da dendrocronologia, o que deixa em aberto a hipótese de ligação dos dois ciclos. O atraso na produção e na entrega da documentação tem sido um dos factores mais negativos neste projecto, levando nomeadamente ao adiamento das duas últimas visitas projectadas dos colaboradores americanos, o que tem vindo a criar uma desmotivadora descontinuidade no processo de investigação. Neste momento de balanço não foi ainda entregue ao grupo de trabalho o relatório com os resultados das análises químicas e estratigráficas da pintura e faltam-nos mais de dois terços da área coberta pelas reflectografias de infravermelhos, essencial para a compreensão do desenho subjacente, incluindo todo o conjunto da Paixão de Cristo. Como o trabalho a fazer na análise material das obras é essencialmente comparativo, quer entre as várias pinturas, quer entre estas e os exemplos disponíveis na historiografia recente, a não finalização destes materiais prévios mas centrais para a investigação paralisou em grande parte uma área essencial do projecto. Obviamente que este atraso se deveu ao facto de, à excepção dos restauradores, mais nenhum outro elemento do grupo trabalhar em pleno no projecto, o que obriga a uma definição de prioridades compatível com outras atribuições e necessidades dos respectivos serviços, mas não deixa de ser um problema a ser forçosamente resolvido a curto prazo. Outro evidente problema do projecto resulta de não se ter concluído, nem a investigação nem o restauro, durante os dois anos de vigência da candidatura que o suportou. Desta forma o trabalho deverá continuar sem a presença dos elementos especificamente contratados para o restauro, perdendose experiência e conhecimento acumulado e seccionando desta forma um grupo de conservadores que funcionou de forma muito interessante, quer no trabalho específico, quer no projecto de investigação, evidenciando uma assinalável capacidade de trabalho de grupo, na articulação interna e com as demais especialidades que incorporam o projecto. Por fim torna-se evidente que o modelo de financiamento do projecto não contempla áreas essenciais de estudo, como a actualização bibliográfica, a aquisição de imagens necessárias para comparação e estudo ou a investigação necessária em centros de documentação mais consistentes do que as modestíssimas e desactualizadas bibliotecas dos museus portugueses na área da pintura flamenga. Parece-nos também evidente que, no futuro, o desenvolvimento da investigação deverá passar a contar com o recurso a fontes de financiamento mais directamente voltadas para o apoio a projectos de
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Fig. 8 Encontro entre Santa Ana e S. Joaquim Pormenor do painel © Instituto dos Museus e da Conservação
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investigação e mais de acordo com as suas necessidades. A análise do andamento do processo que apresentamos, e que esperamos possa vir a estar concluído no final de 2008, ano do oitavo centenário da Sé de Évora e da reabertura do Museu, não pode deixar de nos interrogar sobre o papel que nos nossos museus, sobretudo nos museus do Estado, tem hoje a investigação. Se pensarmos que no campo da pintura sobre madeira, dos séculos XV e XVI, não só o melhor do nosso património, como a sua esmagadora maioria está à guarda dos museus nacionais, não podemos deixar de comparar a responsabilidade que esta posição dominante traz consigo com a insignificância do esforço de investigação aprofundada produzido institucionalmente neste campo dentro dos museus. Projectos como o estudo da pintura do século XV, de 1994, que afinal se ficou, e muito superficialmente, pela obra de Nuno Gonçalves, ou este que agora levamos a cabo, assumem carácter excepcional, no pior sentido do termo, não permitindo, pela sua descontinuidade, manter equipas, acumular conhecimentos, aprofundar os níveis de documentação e de interrogação da realidade da nossa pintura nos séculos XV e XVI. Para além dos seus resultados concretos gostaríamos sobretudo que este projecto relançasse no seio dos responsáveis dos Museus Nacionais, do Instituto e dos profissionais de museus um debate sério sobre o papel destas instituições como produtoras de conhecimento, sobretudo em áreas onde detêm uma parte tão significativa da herança nacional, e onde, como é o caso da pintura antiga, essa investigação passa necessariamente por um estudo material que terá sempre de ser feito no universo dos museus.
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projectos e experiências
Rosário Azevedo A acção pedagógica do serviço educativo do Museu Calouste Gulbenkian
O Serviço Educativo do Museu Calouste Gulbenkian foi criado em 1970, um ano depois de o museu ter aberto as portas ao público. As linhas estruturantes deste Serviço em termos da sua missão, objectivos e orientações têm-se mantido, no geral, praticamente inalteráveis desde a sua criação, entendendo que a sua missão não era só educativa, lúdica e cultural, mas também de intervenção cívica junto da comunidade, cumprindo desta forma a sua função social. Neste sentido, a nova realidade transcultural da sociedade portuguesa tem levado este Serviço a desenvolver um conjunto de iniciativas que visam sobretudo a colaboração regular e continuada com entidades envolvidas no novo panorama multicultural português. The Education Service of the Museu Calouste Gulbenkian was created in 1970, a year after the museum opened to the public. The structure of this Service, in terms of its mission, goals and guidelines, has remained practically unchanged since its creation. Its mission is regarded as not only educational, entertaining and cultural, but also as a civic intervention within the community, fulfilling its social function. Therefore, the new multicultural Portuguese society has led this Service to develop a number of initiatives that include the regular and continuous collaboration of entities involved in the new Portuguese reality.
PALAVRAS-CHAVE: Acção educativa, serviços educativos, Fundação Calouste Gulbenkian, Museu Gulbenkian
Serviço Educativo do Museu Calouste Gulbenkian | mrazevedo@gulbenkian.pt
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Fig. 1 A grande aventura - férias no museu (2006) Actividade para férias lectivas de Verão © Serviço Educativo do Museu
Os primórdios
C
alouste Sarkis Gulbenkian nasceu em 1869, em Istambul, capital do Império Otomano à data. Descendente de abastados comerciantes arménios, cedo revelou o seu gosto pelo coleccionismo, ao adquirir diversos exemplares de moedas antigas com apenas 14 anos, ao qual aliou uma carreira profissional de sucesso, que se desenvolveu nos campos da política, da alta finança e da indústria do petróleo. A sua vida foi partilhada entre Oriente, onde nasceu e viveu durante a infância e a adolescência, e Ocidente, em Londres – onde adquiriu a cidadania britânica – Paris e Lisboa, onde fixou residência em 1942, e onde viria a morrer em 1955. Um ano após a sua morte, e conforme desejo testamentário, foi criada a Fundação com o seu nome que, desde o início, tem tido um papel relevante para o desenvolvimento da sociedade portuguesa, através da acção em quatro grandes áreas: Benemerência, Arte, Educação e Ciência. Tendo legado a Portugal a sua excepcional colecção de obras de arte, foi construído um museu para a acolher, de acordo com a vontade expressa por Calouste Gulbenkian no seu testamento. Um ano após a morte do Coleccionador o Conselho de Administração da Fundação decidiu construir um edifício destinado a instalar um museu, cujo acervo seria constituído pela colecção de obras de arte legada à mesma fundação por Calouste Gulbenkian. Foi elaborado um programa para o futuro museu que deveria assentar em fundamentos que permitissem “a transformação do conceito de uma Colecção privada numa Colecção pública, transpondo um conjunto empírico, criado para exclusiva fruição do Coleccionador, para um conjunto sistemático, aberto ao público científico, para fins de pesquisa, e ao público em geral para fins de educação e cultura, obrigando-se por outro lado ao dever de respeitar a mensagem do Fundador” (SILVA, 1983: 80-81). Este programa, coordenado por Maria José Mendonça à data, Directora do Serviço de Belas-Artes e Museu, acentuava claramente a vocação pedagógica do Museu Gulbenkian.
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projectos e experiências
Fig. 2 Tecelagem no Parque (2006) © Francisco Amorim Ferreira
A Colecção Gulbenkian foi inicialmente apresentada em Portugal através de exposições temporárias no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa (1961 e 1963) e no Museu Nacional Soares dos Reis (1964), onde se organizaram visitas orientadas dirigidas a grupos escolares e universitários, grupos de empresas e associações culturais. Estas visitas foram efectuadas por monitores convidados pela Fundação Calouste Gulbenkian, que participaram num breve curso de formação a cargo dos técnicos do próprio Museu. Neste curso foram também convidados a participar professores de instituições escolares para que reunissem as necessárias informações que lhes permitissem dar uma prévia orientação aos seus alunos anteriormente à realização das visitas. Depois deste curso, os monitores passaram a colaborar regularmente, contando-se entre eles educadores de infância, orientadores de ateliês infantis, professores do ensino primário, técnico e universitário e ainda guias-intérpretes. Foi ainda editado, para ser distribuído aos participantes das visitas, um breve roteiro. A título de exemplo cite-se os resultados das visitas orientadas efectuadas à exposição de Arte do Oriente Islâmico, que se realizou em 1963 no Museu Nacional de Arte Antiga. No total realizaram-se 191 visitas com a participação de 2286 visitantes, um resultado considerado surpreendente e demonstrativo do bom acolhimento que estas primeiras iniciativas educativas tiveram (FERREIRA, s.d.). Paralelamente, no início dos anos 60, projectou-se um plano de actividades que se dividia em quatro partes: acção junto das crianças, acção junto do público, acção junto dos artistas e acção junto dos investigadores e especialistas em história da arte, crítica de arte, estética e arqueologia (PERDIGÃO, 1961: 102-103). A acção junto das crianças seria concretizada, sobretudo, através da criação de um Centro de Arte Infantil, que constituiria uma instituição piloto e um modelo para futuras organizações congéneres na província com a finalidade não de “preparar futuros artistas, mas ensinar à criança uma nova linguagem que simultaneamente serve a sua vida interior, a põe em contacto mais directo com o mundo que a rodeia e a dispõe a compreender mais tarde as obras de arte” (PERDIGÃO, 1961: 103). Nesse sentido, foi criado, em regime de experiência, um Centro Artístico no Funchal patrocinado pela Fundação Gulbenkian. Enquanto a Fundação não criou o seu próprio Centro Artístico
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Infantil1, apoiou o Serviço de Educação Escolar do Museu Nacional de Arte Antiga, criado em 1953 pelo Dr. João Couto, director deste Museu de 1938 a 1962 e figura de referência na história da museologia portuguesa pelo seu dinamismo, pioneirismo, humanidade, espírito visionário e empreendedor. Desta forma, o Museu Nacional de Arte Antiga tornou-se numa verdadeira “escola” de profissionais de museus, tendo alguns dos seus profissionais vindo posteriormente a integrar os quadros do Museu Gulbenkian. A acção junto do público traduzia-se num leque de propostas que incluíam exposições itinerantes, cursos de iniciação e divulgação e a edição de publicações, o que tem sucedido desde então, com carácter regular e continuado até aos dias de hoje. Em relação à acção junto dos artistas, distinguiu-se sobretudo a atribuição de bolsas de estudo no país e no estrangeiro a estudantes de escolas de Belas-Artes, a artistas diplomados, quer autodidactas, quer de comprovado mérito e a organização de exposições “um dos meios mais eficazes de assegurar o colóquio do público com as obras de arte e, por consequência, concorrer para a cultura estética do mesmo”, oferecendo simultaneamente uma oportunidade de apresentação e divulgação de novos trabalhos e permitir “ter a visão panorâmica do estado e evolução das artes plásticas em determinadas épocas” (PERDIGÃO, 1961: 107).
1 O Centro Artístico Infantil do Serviço de Educação da Fundação Gulbenkian foi criado em 1984 e extinto em 2002. Organizou diversos cursos de Expressão Artística vocacionados para a formação de educadores e professores nos vários domínios da Arte (expressão poética, expressão musical, expressão dramática, expressão plástica, artes integradas e técnicas narrativas), que em muito promoveram a educação em contacto directo com a obra de arte no espaço do museu (PAIS E CORREIA, 1996).
A acção junto dos investigadores e especialistas em História da Arte, Crítica de Arte, Estética e Arqueologia preconizava então a atribuição de bolsas de estudo e de subsídios de viagem para aperfeiçoamento e valorização profissional, o que também tem sucedido desde então até hoje, proporcionado por outros Serviços da Fundação (PERDIGÃO, 1961).
2 O Museu Calouste Gulbenkian foi inaugurado em Lisboa, a 2 de Outubro de 1969.
Entre 1965 e 1969 a colecção esteve exposta provisoriamente no Palácio do Marquês de Pombal em Oeiras, onde se organizou um programa de actividades culturais, nomeadamente visitas orientadas e oficinas de experimentação plástica. Foram também seleccionadas as primeiras monitoras que viriam a integrar o Serviço Educativo, o que aconteceria, quando o museu já estava instalado em Lisboa2.
3 De acordo com a Comunicação da Comissão Europeia, Tornar o espaço europeu de aprendizagem ao longo da vida uma realidade, a aprendizagem formal, informal e não-formal são definidas da seguinte forma:
1970
• Aprendizagem
formal: “aprendizagem tradicionalmente dispensada por um estabelecimento de ensino ou de formação, estruturada (em termos de objectivos, duração e recursos), conducente à certificação. É intencional do ponto de vista do aprendente”
O Serviço Educativo do Museu foi criado em 1970, um ano depois de o Museu ter sido inaugurado em Lisboa e em 1971 realizaram-se as primeiras iniciativas. A primeira responsável pelo Serviço Educativo até 1979 foi Glória Riso Guerreiro, simultaneamente Conservadora dos núcleos de Arte Egípcia e de Têxteis da Colecção. A partir de então a acção cultural do Museu foi redimensionada “através de uma programação global e evolutiva, determinada pelos seus próprios objectivos, como lugar de convívio, como estímulo de iniciativa e escolha crítica, como meio de desenvolvimento das capacidades de comunicação e de expressão” (SILVA, 1983: 101). Glória Guerreiro destaca também a dimensão cívica da acção educativa do Museu: “O Museu que é mais do que uma simples exibição de obras de arte, um centro de atracção e de ensino, deve organizar actividades educativas que se estendam a todos os sectores da vida do país, de modo a servir as comunidades que o rodeiam” (GUERREIRO, s.d.). Desta forma o museu tornou-se, até aos nossos dias, num espaço de diferentes sinergias sociais, lúdicas, educativas e culturais, num contexto de aprendizagem informal e não-formal3, em prole do enriquecimento e “crescimento” global do indivíduo. Nesta fase inicial, as linhas orientadoras do Serviço Educativo e os seus objectivos globais, sobretudo na relação Museu-Escola, assemelhavam-se às dos seus congéneres
• Aprendizagem
informal: “aprendizagem decorrente das actividades da vida quotidiana, relacionadas com o trabalho, a família ou o lazer. Não é estruturada (em termos de objectivos, duração e recursos) e tradicionalmente não conduz à certificação. Pode ser intencional mas, na maioria dos casos, não o é (carácter ‘fortuito’/aleatório)” • Aprendizagem
não-formal: “aprendizagem não dispensada por um estabelecimento de ensino ou de formação, que não conduz tradicionalmente à certificação. É todavia, estruturada (em termos de objectivos, duração e recursos). É intencional do ponto de vista do aprendente” (Comissão Europeia, 2001: 42-43).
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Fig. 3 A grande aventura - férias no museu (2006) © Francisco Amorim Ferreira
nacionais e também estrangeiros, havendo, no entanto, diferenças na formação dos monitores, que incluía “um plano institucional (organização, funcionamento e relação com as Escolas), um plano artístico (História, Técnica e Estética das Artes) e um plano psico-pedagógico” assegurado pelo Centro de Investigação Pedagógica4 (SILVA, 1983: 103). Esta formação era complementada com estágios em museus estrangeiros, sobretudo europeus, e participações em reuniões de Organismos nacionais e internacionais, nomadamente a APOM5, o ICOM6 e CECA7. A divulgação das iniciativas que o Serviço Educativo oferecia aos diversos públicos foi desde o início feita através do envio de pequenas publicações com a descrição das actividades propostas, datas e locais da sua realização, contactos e outras indicações úteis, o que se mantém até hoje. No caso dos grupos escolares, as primeiras escolas contactadas situavam-se na região da Grande Lisboa, mas gradualmente foram-se alargando os contactos a outras zonas do país. Desde o início da sua existência, o Serviço Educativo organizou actividades dirigidas ao público com necessidades especiais, contando desde logo com monitores com experiência de trabalho com este público e contando também com a colaboração dos técnicos das entidades que participavam nas iniciativas. No primeiro ano de actividade foram contactadas 1850 escolas e 148 professores, tendo sido efectuadas 406 visitas orientadas, com a participação de 6680, crianças, sendo que 42 eram deficientes motores e 115 invisuais (PERDIGÃO, 1973: 92).
4 O Centro de Investigação Pedagógica da Fundação Gulbenkian integrou a formação das monitoras de 1970 a 1974. Este Centro foi coordenado pelo pedagogo Rui Grácio. 5 Associação
Portuguesa de Museologia.
6 International
Council of Museums – organismo que pertence à UNESCO.
No início o Serviço Educativo era constituído por duas monitoras responsáveis a tempo inteiro e quatro monitoras bolseiras a tempo parcial. Actualmente conta com a colaboração de dez elementos: a conservadora-coordenadora, duas técnicas assistentes, seis monitores e um gestor de conteúdos da webpage8 deste serviço, responsável também pela sua concepção gráfica.
7 CECA
– Comité Internacional para a Educação e Acção Cultural do ICOM.
8A
webpage do Museu foi criada em 2001 e a webpage do Serviço Educativo foi criada em 2005.
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A par do Serviço Educativo foi criado um núcleo de acolhimento de Público, constituído por guias do Museu, que complementava a acção do Serviço Educativo. A acção das guias inseria-se num contexto informativo e de divulgação da colecção junto do público adulto português e estrangeiro, enquanto que a acção do Serviço Educativo assumiu desde o início uma componente didáctica e pedagógica acentuada, estando orientada sobretudo para o público jovem e para o público escolar. As guias cessaram a sua actividade em 1993, passando os monitores do Serviço Educativo a assumir as duas funções.
A acção educativa do Serviço Educativo do Museu As linhas estruturantes deste Serviço em termos da sua missão e objectivos e linhas orientadoras têm-se mantido, no geral, praticamente inalteráveis desde a sua criação. O Serviço Educativo desenvolve um conjunto de actividades lúdicas e pedagógicas dirigidas a públicos diversos. Tendo como principal objectivo a divulgação das suas colecções artísticas este Serviço pretende ainda atingir os seguintes objectivos: • Fomentar o gosto pela arte e pelo património e a sua valorização; • Contribuir para o desenvolvimento social, cultural, cognitivo e afectivo do indivíduo; • Fomentar o conhecimento, o respeito e a valorização da diversidade cultural, numa perspectiva da educação para a cidadania; • Criar experiências sociais e culturais gratificantes com vista a fomentar visitas regulares ao museu e outras instituições culturais, na perspectiva de uma educação informal e não-formal; • Proporcionar uma aprendizagem interdisciplinar através de iniciativas em colaboração com outros Serviços e noutros espaços da Fundação, nomeadamente o Parque dada aqui a sua relação directa com a colecção Gulbenkian, onde a representação da Natureza é um dos temas constantes. Actualmente a sua acção engloba um conjunto de propostas bastante diversificado, destinado a vários tipos de público: • Visitas orientadas temáticas ao Museu Gulbenkian e a exposições temporárias organizadas pelo Museu ou por outros serviços da Fundação, nomeadamente o Serviço de Belas-Artes; • Oficinas de expressão criativa que se realizam aos fins-de-semana, ou durante o período de férias lectivas que se destinam às famílias e às crianças; • Acções de formação de agentes de acção educativa. A acção de formação mais recente decorreu este ano em colaboração com a Rede Portuguesa de Museus e dirigiu-se sobretudo aos profissionais de serviços educativos; intitulou-se A acção educativa dos museus frente aos desafios da contemporaneidade; • Acções de sensibilização para guias-intérpretes • Parcerias com instituições escolares e outras. Colaboração com escolas pertencentes a territórios educativos de intervenção prioritária e com instituições de solidariedade social, de forma a promover a integração social. Neste âmbito, citem-se dois exemplos: o projecto de parceria com a Escola EB 2.3. Professor Pedro d’Orey da Cunha, da Damaia, desde 1999 e com a Associação Moinho da Juventude, no bairro da Cova da Moura, na Amadora, desde 2005. • Necessidades especiais. O Serviço Educativo tem colaborado regularmente com instituições escolares e sociais vocacionadas para as necessidades especiais. Como membro do GAM – Grupo para a Acessibilidade nos Museus tem participado
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projectos e experiências
activamente nas suas iniciativas, tendo o Museu Gulbenkian assegurado a realização nas instalações da Fundação Gulbenkian, do seminário anual deste Grupo, em 29 de Janeiro de 2007. • Áudio-guia. Foi criado em Outubro de 2006, tendo o Serviço Educativo colaborado na elaboração dos conteúdos, estando também prevista a sua colaboração na actualização e desenvolvimento. A divulgação das actividades do Serviço Educativo é um dos pontos fundamentais para o seu sucesso. Se inicialmente as suas actividades eram divulgadas essencialmente através de publicações enviadas pelo correio, hoje em dia o suporte informático é o seu principal veículo. Desde a criação duma webpage do museu em 2001, que se verificou um aumento exponencial de participação de visitantes nas actividades deste Serviço, que se alargou ainda mais com a criação da webpage do Serviço Educativo em 2005. Daí a importância da sua constante actualização, o que é feito através de uma agenda on-line. Por outro lado, outro veículo fundamental é o próprio Serviço de Comunicação da Fundação Gulbenkian, que mantém um contacto constante e regular com os órgãos de comunicação social. Recentemente a divulgação das iniciativas deste serviço insere-se num âmbito mais alargado de divulgação de todas as iniciativas educativas da Fundação Gulbenkian, ou seja, englobando também as iniciativas do Sector de Educação e Animação Artística do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão e do projecto Descobrir a Música na Gulbenkian do Serviço de Música, o que já sucedeu este ano com a publicação dum calendário conjunto de actividades educativas artísticas previstas para 2006-2007. Nesse sentido estes três projectos educativos estão também a elaborar uma base de dados comum para uma divulgação mais eficaz e rápida das suas iniciativas.
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projectos e experiências
Fig. 1 Sem Título, 1968 (pormenor) Ana Vieira, Colecção da Fundação de Serralves Exposição “O Poder da Arte”, Serralves na Assembleia da República fotografia de Luciana Fina 2006
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Madalena Braz Teixeira Quatro inovações legais em 2004
O texto atende às principais inovações que a Lei-Quadro de museus apresenta e que constituem o cerne do desenvolvimento do processo museológico, procurando reflectir sobre a Política de Incorporações, a Conservação Preventiva, o Plano de Segurança e a obrigatoriedade de cada museu ter o seu próprio Regulamento. Os quatro documentos obrigatórios constituem-se como o âmago das alterações legais que implicam uma substancial transformação na forma de gerir os museus, definindo contornos, delimitando procedimentos e conduzindo a uma qualificada maneira de “normalizar” o desempenho em certas áreas-chave da museologia, as quais irão servir como ferramentas de orientação e de acrescida competência aos profissionais dos museus. This article pertains to the main innovations of the Framework Law on museums, which constitutes the basis of the development of the museological process, while also analysing the Incorporation Policy, the Preventive Conservation, the Security Plan and the Regulation that is required for every museum. The four mandatory documents have become the basis of the legal changes that involve a substantial transformation in the way museums are run - defining outlines, delimitating procedures and leading to a qualified way of “standardizing” the performance of certain areas of museology, which also serve as guiding tools to museum professionals.
PALAVRAS-CHAVE: Política de Incorporações, valores dos bens museológicos, conservação preventiva, plano de segurança, plano de emergência, regulamento dos museus, gestão integrada.
Directora do Museu Nacional do Traje | mntraje.directora@ipmuseus.pt
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projectos e experiências
Introdução
A
recente e bem elaborada Lei-Quadro foi publicada em 19 de Agosto de 20041. Representa uma conquista pela qual os profissionais de museus ansiavam e que foi expressa pela Associação Portuguesa de Museologia (APOM), há oito anos, no Documento para uma lei de bases do Sistema Museológico Português elaborado em 1995, o qual veio a ser publicado no ano seguinte no Boletim da APOM, n.º 2 de 1995 e n.º 3 de 1996. A Lei-Quadro resulta também de um grupo de trabalho criado para o efeito pelo Instituto Português dos Museu (IPM), em 2003, e apresenta em relação à legislação anterior aspectos de estruturação que correspondem às recentes reflexões que os museólogos vinham formulando e desenvolvendo em práticas de rigor e de vanguardismo. O diploma estabelece ainda directrizes sobre temáticas que faziam já parte das estratégias museológicas, após a criação do IPM, em 1991, e sobretudo da Estrutura de Projecto, Rede Portuguesa de Museus, em 2000. Esta Lei, que só tem paralelo histórico no diploma de 1965, fixa, regula e inova todo o processo museológico nacional, o que veio contribuir para a normatividade e a qualificação de todos os museus portugueses.
1 Lei
nº 47/2004 – Aprova a Lei-quadro dos Museus Portugueses, D. R. I Série-A, nº 195 de 19 de Agosto de 2004. Disponível, entre outros sítios, em www.ipmuseus.pt ou em www.digesto.pt
Pontos prévios 1 - A lei desenha algumas inovações que já se encontravam integradas nos últimos Estatutos do International Council of Museums (ICOM), publicados em 2002 e aprovados na Assembleia-geral que teve lugar em Seul. Não são menos relevantes os regulamentos do ICOM, publicados em 2001. No Código Deontológico para os Museus, também aprovado em Seul, estão expressas as obrigações relativas às colecções2. Abaixo se citam outras normas que devem ser seguidas relativamente, por exemplo, à aquisição de objectos em situação ilícita e à cooperação entre os museus para a implementação de políticas das colecções3.
2 Código
Deontológico para os Museus, ICOM, Comissão Nacional Portuguesa, Lisboa, 2003. p. 6 e segs. “Aquisição de objectos em situação ilícita: O comércio ilícito de objectos e espécimes encoraja a destruição de sítios históricos, de culturas étnicas e de habitats biológicos; incentiva o roubo a nível local, nacional e internacional. (…) Um museu não deve incorporar nenhum objecto ou espécimen por compra, doação, empréstimo, legado ou troca sem que a entidade responsável e o responsável pelo museu se tenham certificado que podem obter um título de propriedade válido.”
2 - A nível nacional devem referir-se os documentos publicados, em 1981, pelo Instituto Português do Património Cultural (IPPC), organismo que tinha a tutela dos museus. São de destacar o Regulamento Interno dos Museus dependentes do IPPC4 que incluía as normas referentes à autorização de reprodução de fotografias e às fotografias a realizar nos museus; outro documento refere-se às Normas sobre a cedência de espécies de museus ou palácios para exposições no estrangeiro. Neste conjunto de regulamentações também se estabelecia o Planeamento Museológico aprovado por Sua Excelência o Secretário de Estado em 3 de Dezembro de 1981 e ainda as Normas de Preenchimento de fichas de inventário, visando a uniformização e a elaboração de uma ficha normalizada para computador.
3 Cooperação entre os museus para a implementação de políticas das colecções: cada museu deve reconhecer e aceitar a necessidade de colaboração e consulta entre museus com temáticas e políticas de recolha semelhantes. Há ainda a referir as responsabilidades profissionais para com as colecções e com as aquisições para as colecções dos museus: o director e o pessoal profissional devem tomar todas as medidas possíveis para garantir que a entidade responsável adopta uma política de colecções escrita, revista e actualizada regularmente. Esta política, oficialmente adoptada e actualizada pela entidade responsável, deve servir de base a todas as decisões e recomendações profissionais relativas a aquisições.”
3 - Desde então, desenvolveu-se uma dinâmica de grande expansão dos museus portugueses, sobretudo após a criação do IPM, em 1991. A proliferação das instituições a nível camarário e a crescente exigência profissional decorrente da inovadora formação académica em museologia, história da arte e antropologia leccionadas em diversas universidades do país, veio transformar os quadros dos museus onde se integraram pessoas com qualificações complementares que vieram enriquecer a abordagem da prática museológica. 4 - Foi acontecendo, paralelamente, uma acção de grande voluntarismo na administração central e local que permitiu o progresso museológico apoiado em políticas de desenvolvimento sócio-culturais, algumas delas financiadas e cofinanciadas com verbas europeias. A multiplicação de experimentações e de práticas
4 Relatório Sucinto de Actividades do Instituto Português do Património Cultural, 1981, Lisboa, IPPC.
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conduziu à alteração das metodologias no sentido de um crescente profissionalismo. Deu azo com alguma frequência a questionamentos museológicos e ao rigor técnico e científico, o que apenas era característico dos principais museus do país. A inovação passa a desenhar-se também nalguns museus municipais e o mesmo aconteceu aquando da gestação, do planeamento e da avaliação de grandes empreendimentos museológicos que vêm ocorrendo a partir dos anos 80 de que é de salientar o Museu de Serralves. 5 – Por outro lado, foram elaborados na academia e fora dela diversos estudos e publicações que prospectam a renovação dos conceitos e das fórmulas no devir da vida museológica portuguesa. Há ainda a salientar a organização de encontros, cursos, seminários e demais permutas entre instituições e personalidades portuguesas e estrangeiras, estabelecidas por iniciativas pessoais, pelos próprios museus, bem como outras, geradas pelo ICOM e pela APOM e, mais recentemente pelo IPM, através da Rede Portuguesa de Museus. Destas acções têm decorrido o enriquecimento e a actualização dos profissionais e a consequente viragem de posturas face à função e à intervenção cultural dos museus. 6 – A necessidade de normalizar o registo e o inventário dos bens dos museus dependentes do IPM veio sendo experimentada desde o início dos anos 90, em fórmulas que se aproximavam do que veio a designar-se como Programa Matriz, criado em 1994. Este programa constitui-se como uma relevante ferramenta de inventariação e de gestão de colecções. Posteriormente procedeu-se a dois vectores diferenciados. Por um lado, o IPM iniciou, no final de 1999, a publicação sistemática dos Cadernos e Normas de Inventário.5 Por outro, procurou expandir o Programa Matriz para os museus portugueses. Esta proposta de estender ao universo das instituições o mesmo programa informatizado de registo das colecções foi conduzindo a uma gradual organização interna dos acervos. Embora a adesão tenha sido significativa, alguns museus havia que já tinham os seus programas e outros que não optaram por esta solução. Todavia, o que importou sempre assegurar foram os normativos e os padrões exigidos internacionalmente pelo ICOM e por outras organizações congéneres. A compreensão da lógica das existências e a necessidade de conter o crescente número de bens a inventariar, proporcionou, de algum modo, a urgência em desenhar um conjunto de normas que tivessem como objectivo a restrição das incorporações, por motivos de ordem financeira e de capacidade de conservação dos bens à guarda dos museus. A avaliação e a selecção das peças a serem inventariadas veio a traduzir-se na definição de uma Política de Incorporações.
5 Foram
publicadas até ao presente 6 cadernos sobre as colecções de Têxteis, Cerâmica/Cerâmica de Revestimento, Etnologia/Alfaia Agrícola, Arqueologia e Escultura. Deverá no entanto destacar-se as Normas Gerais, editadas em 1999.
7 – Foi também determinante para se ter produzido a Lei-Quadro o levantamento das instituições museológicas portuguesas encomendado pelo IPM, em 1998, ao Observatório das Actividades Culturais do Ministério da Cultura. Este Inquérito6 serviu para aferir e, de algum modo, definir a quantidade e a qualidade dos museus no nosso país. O resultado desta acção teve como consequência o conhecimento e a avaliação mínima do que é e pode ser um museu em território nacional. O Inquérito foi aplicado a mais de quinhentas unidade museológicas, de um levantamento inicial de 700, de acordo com parâmetros de grande flexibilidade. A publicação desta análise sociológica dos museus veio a determinar a necessidade do estabelecimento de critérios de selecção de instituições a serem integradas na Rede Portuguesa de Museus, critérios esses que foram delineados após a sua criação em 20007. Na verdade, a necessidade de definir conceptualmente os museus a serem integrados na Rede deu azo a uma prática que, depois de testada, analisada e ponderada, veio a traduzir-se numa fórmula designada como certificação dos museus, que foi inovadoramente estabelecida pela Lei-Quadro no seu Capítulo IX, Credenciação de Museus.8
6 IPM/OAC,
2000, Inquérito aos Museus de Portugal, Lisboa, Ministério da Cultura.
7 “A adesão à RPM está aberta a todo o tipo de museus, independentemente da sua tutela, da abrangência do seu campo temático, das suas colecções e do seu âmbito territorial”, in Boletim trimestral da Rede Portuguesa de Museus, Lisboa, nº1, Junho 2001, p. 3. Cf. Regulamento para Adesão à RPM, Programas de Apoio a Museus, segundo Despacho Normativo nº28/2001 de 23 de Maio, publicado na I Série-B do Diário da República, 132 de 7 de Junho. 8 Art.
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110º a 138º.
projectos e experiências
Documentos Estruturantes 1. O Decreto Regulamentar nº19-A/2004, de 14 de Maio sobre a reformulação da avaliação de desempenho relativa à Gestão dos Recursos Humanos, constitui-se como um diploma basilar na organização interna dos museus e, mais incidentemente no quotidiano dos mesmos. Pressupõe, de alguma maneira, a definição da vocação (estabelecida pela lei-quadro) bem como da missão e da visão para cada museu. Por outro lado, esta legislação obriga à definição de entre três cinco objectivos para todos e cada um dos funcionários. Relativamente aos objectivos de cada um dos funcionários houve que aferir, depois de um ano de avaliações, as questões dos tempos, da qualidade de trabalho e das metas a atingir. Estes elementos foram introduzidos com alguma dificuldade inicial mas têm tendência para conduzir à implementação de um novo tipo de organização e a uma concertada e desejável Gestão por Objectivos. 2. O outro factor relevante para a consciencialização da necessidade de reestruturação dos museus deveu-se à necessidade da formação e até à obrigatoriedade da mesma, relativa ao Curso de Alta Direcção, orientado para os directores, e o optativo Curso de Avaliação de Desempenho, ambos ministrados pelo Instituto Nacional de Administração no Palácio dos Marqueses de Pombal, em Oeiras, que tiveram início no mesmo ano de 2004. 3. É exactamente sobre as quatro principais inovações legais da Lei-Quadro que este texto diz respeito, procurando reflectir sobre o art. 12 º referente à Política de Incorporações, sobre o art. 28º, relativo à Conservação Preventiva, sobre o art. 33º, relativo ao Plano de Segurança e sobre o art. 53º, relativo à obrigatoriedade de cada museu ter o seu próprio Regulamento. Os quatro documentos obrigatórios constituem-se juntamente com o estabelecimento das mudanças institucionais acima referidas, o cerne das alterações legais que implicam uma substancial transformação, frequentemente uma ruptura, na forma de gerir os museus, definindo contornos, delimitando procedimentos e conduzindo a uma qualificada maneira de regular e “normalizar”o desempenho em certas áreas-chave da museologia, as quais irão servir como ferramentas de orientação e de acrescida competência aos profissionais dos museus. Política de Incorporações 9 “O
carácter de autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade do bem, o génio do respectivo criador, o interesse do bem como testemunho simbólico ou religioso, o interesse do bem como testemunho notável de vivências, factos históricos e identidades colectivas, valor estético, técnico ou material intrínseco do bem, a indissociabilidade entre o bem e o respectivo contexto arquitectónico, urbanístico e/ou paisagístico, a extensão do bem e o que nela se reflecte do ponto de vista da memória colectiva designadamente no que respeita à articulação entre aquele e qualquer forma ou categoria de património imaterial, a importância do bem do ponto de vista da investigação histórica ou científica, as circunstâncias susceptíveis de acarretarem diminuição ou perda da perenidade ou da integridade do bem.”
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A obrigatoriedade de cada museu estabelecer a sua política de incorporações através de um documento escrito apela à reflexão sobre a lógica, a coerência e a estratégia de uma colecção ou de um conjunto de colecções que decorre da vocação e da missão de cada museu. Revela também a urgência no diagnóstico dos acervos e do seu entendimento em termos cronológicos e temáticos. Obriga, por sua vez, ao estabelecimento de critérios de selecção que podem basear-se nas categorias definidas na constituição dos Tesouros ou Bens de Interesse Nacional e na atribuição de Bens de Interesse Público derivados da Lei nº 107/2001 de 8 de Setembro (art. 15º a 17º)9. Mas também é necessário que se proceda à análise, caso a caso, da incorporação de uma peça ou conjunto de peças ou mesmo de uma nova colecção, a qual tem de ser observada à luz de uma série de razões como: o Valor Circunstancial que corresponde ao contexto histórico relativo à data da incorporação; o Valor Histórico que tem de ser avaliado de acordo com as balizas cronológicas de cada instituição; o Valor Social consoante a significância do ponto de vista sociológico; o Valor Cultural, identitário de uma civilização, de uma cultura, de um grupo étnico ou urbano ou ainda de uma personalidade, mas também derivado da realização de um evento ou facto especial, de carácter político ou outro; o Valor Científico desde que sirva à pesquisa
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e à documentação da colecções; o Valor Técnico devido à sua especificidade técnica ou material, independentemente do seu estado de conservação; e ainda o Valor do Bem com suas especificidades de ordem estética, económica, comercial ou outra, relativo ao valor intrínseco ao próprio objecto, testemunho cultural ou natural. Conservação Preventiva O exigido documento sobre a conservação preventiva debruça-se sobre o cerne da acção museal, a qual juntamente com a exposição, constituem os dois vectores axiais dos museus. Diz explicitamente o nº 2 do art. 27 que: “o museu garante as condições adequadas e promove as medidas preventivas necessárias à conservação dos bens culturais nele incorporados”. No nº 1 do art. 28 refere ainda que: “a conservação dos bens culturais incorporados obedece a normas e procedimentos de conservação preventiva elaborados por cada museu”. Deste modo, a elaboração de um texto implica o conhecimento global e específico das normas relativas à preservação do património móvel, imóvel, imaterial e natural que se encontram à guarda da instituição. Este documento é um instrumento de ordem técnica que define os procedimentos a ter em conta relativamente ao edifício em que a instituição está instalada e à respectiva área envolvente. Do mesmo modo e, muito principalmente se atende à interacção entre áreas edificadas, as colecções e os recursos humanos que directa ou indirectamente estão implicados na conservação preventiva, em que se devem incluir os públicos. Por outro lado, estabelecem-se normas de utilidade para todos os sectores relativamente à forma de se proceder, aos preceitos, deveres e modos de actuação da instituição face ao edifício, às colecções, aos utentes, aos visitantes e à envolvente externa na medida em que os museus têm como prioridade a prestação de um serviço social e cultural à comunidade. O IPM e o Instituto Português de Conservação e Restauro têm vindo a editar várias publicações referentes à conservação dos bens e testemunhos do homem que servem de consulta nomeadamente nas especificidades da diversa tipologia de acervos10. Foi recentemente elaborado o documento “Normas e procedimentos de conservação preventiva”, por um grupo de trabalho composto por técnicos do IPM e do IPCR, que foi divulgado a todos os museus da Rede Portuguesa de Museus (RPM) e apresentado publicamente e discutido em Junho de 2006 em duas sessões de trabalho em Lisboa e no Porto.
10 Existem
ainda preceitos editados ou policopiados que circulam nos diferentes Committees do ICOM que costumam servir de guia para alguns acervos. A título de exemplo refere-se As Recomendações de Conservação e Manuseamento das Colecções Têxteis (pol, s/d) do Committee do Traje que serve como manual de preservação dos mesmos, elaborado há anos por um grupo de trabalho do mencionado Committee.
11 “Os edifícios e equipamentos devem permitir ao museu cumprir as suas funções básicas de recolha, estudo, reserva, conservação, educação e exposição. Devem estar de acordo com a legislação nacional relevante no que respeita à saúde, segurança e acesso às instalações, incluindo as necessidades específicas das pessoas com deficiências. Devem estabelecer-se e aplicar-se normas de protecção apropriadas contra riscos como roubo, fogo, inundações, vandalismo ou deteriorações”, acrescentando ainda que o plano de acção a ser implementado em caso de emergência deve estar claramente definido (p. 4). “The governing body has an obligation to provide a suitable environment for the physical security and preservation of the collections. The buildings and facilities must be adequate for the museum to fulfil its basic functions of collection, research, storage, conservation, education and display. They should comply with all appropriate national legislation in relation to the health, safety and accessibility of the premises, having regard for the special needs of disabled people. Proper standards of protection should be in place at all times against hazards such as theft, fire, flood, vandalism and deterioration. The course of action to be taken in the event of emergency should be clearly specified” (sublinhado meu).
Plano de Segurança Os roubos ocorridos nalguns museus europeus, os constantes conflitos bélicos e o terrorismo internacional têm propiciado que a sociedade e a governação estejam atentas a estas questões que foram correcta e ponderadamente tratadas nesta Lei-Quadro. A consciencialização da vontade política para estes problemas é fundamental para a resolução dos mesmos porque estes implicam um investimento financeiro inicial a que se sucederão despesas, mensais e anuais de vulto, relativas à manutenção que só podem vir a ser custeadas se as tutelas propiciarem a sua inclusão nos respectivos orçamentos. Parece serem também de citar os dois fundamentais parâmetros dos Estatutos e Código de Ética do ICOM que abaixo se transcrevem e que estabelecem a divisão entre as Normas Gerais que se devem tratar numa primeira parte do Plano de Segurança e o Plano de Acção propriamente dito com os seus procedimentos. A tradução deste recente documento, Código Deontológico para os Museus, editado pela Comissão Nacional Portuguesa do ICOM com o apoio do Instituto Português de Museus e da Rede Portuguesa de Museus em 2003, é menos clara que o texto inglês.11 Quando trata das instalações refere que a entidade responsável pelo museu tem a
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projectos e experiências
obrigação de garantir inequivocamente um ambiente apropriado para a segurança física e a preservação das colecções12. A necessidade de todos os museus terem o seu Plano de Segurança corresponde a uma prioridade que tem de ser implementada com o apoio técnico do IPM a fim de se estabelecerem as premissas e os trabalhos prévios à elaboração de um documento que venha a integrar as normas gerais que serão comuns a todos os museus, as que virão a ser as específicas para o Plano de Acção de cada instituição e para o seu Plano de Emergência. A elaboração deste documento tripartido terá que obedecer a um grande rigor, na medida em que a Lei-Quadro é mais exigente do que vem sendo praticado em qualquer museu português, incluindo os casos que são apontados como exemplares. A especificidade destes Planos conduz por si própria a parcerias com entidades exteriores, nomeadamente com as Polícias e os Bombeiros. É de referir que o IPM já iniciou a elaboração dos Planos Gerais nos museus dependentes com a orientação técnica adequada, o que irá conduzir ao diagnóstico das situações e das necessidades a par da implementação desses mesmos Planos. Regulamento Este conjunto de normas atende à necessidade de criar uma “constituição” para cada museu, estabelecendo os direitos e deveres das pessoas, dos cuidados a ter sobre os bens que tem à sua guarda e os serviços a prestar à comunidade. O desenho de um organigrama, quer ele seja um acto escrito ou esteja subjacente ao real, constitui a base sobre a qual se estabelece a hierarquia de uma Gestão Integrada. O Regulamento estrutura a organização na globalidade das suas áreas de intervenção interna e externa, segundo os normativos da Lei-Quadro e os princípios gerais da função pública, empresarial ou outra, de carácter privado, tendo em conta: A Gestão dos Recursos Humanos (ordenando e estabelecendo a orgânica das relações e funções de cada grupo profissional e da sua coordenação, interacção e formação); A Gestão Técnica (relativa à problemática das instalações, nomeadamente do edifício, sua tipologia, dimensão, características e conservação); A Gestão da Investigação (estabelecendo a distribuição basilar dos estudos a realizar por sector, a fim de se criar uma política de edições e a publicação de textos científicos, gerais e temáticos); A Gestão das Colecções (relativa ao inventário e informatização do acervo e de todos os procedimentos documentais e logísticos referentes a todas e cada uma das peças); A Gestão Cultural (criando normativos e prioridades de acção cultural, desenhando critérios de actuação nos diferentes espaços que o museu integra e os respectivos planeamentos e projectos); A Gestão Pedagógica (relativa à função didáctica e de animação, prioritariamente sobre as colecções do museu e expansiva a todos os públicos); A Gestão do Centro de Documentação (estabelecendo a normatividade do tratamento documental e informatizado das espécies biblioteconómicas e iconográficas e a sua divulgação junto do público interno e externo); A Gestão da Informação e da Divulgação; (distribuindo e regulamentando o processo da transmissão interna e externa da informação gerada pelo museu e advinda quer da tutela quer do exterior); A Gestão Administrativa e Financeira (relativa à orgânica dos serviços, à interacção com a tutela e com o exterior, do mesmo modo que se atende à informatização da contabilidade nos cânones legais); A Gestão Comercial (criando a ordenação da função de divulgação através de objectos-réplicas e de mediador com a comunidade, implicando a tarefa de informação junto do público e registo de receitas e estatísticas).
12 “Colecções. Toda a instituição museológica deve adoptar e publicitar uma declaração escrita aplicada às colecções. Este documento dever abordar as questões respeitantes à protecção e utilização das colecções públicas existentes. Deve indicar claramente o âmbito de recolha e incluir indicações para a manutenção duradoura das colecções. Deverão também ser incluídas instruções sobre aquisições, com condições ou limitações (ver 3.5: Aquisições Condicionadas. As doações, legados ou empréstimos só podem ser aceites se estiverem conformes com a política de colecções e de exposição definidas para o museu. As ofertas sujeitas a condições especiais devem ser recusadas se as condições propostas são consideradas contrárias aos interesses a longo prazo do museu e do seu público), bem como restrições à aquisição de materiais que não podem ser inventariados, conservados, guardados ou expostos de forma adequada. As declarações da política das colecções devem ser revistas pelo menos de cinco em cinco anos. … todos os objectos adquiridos devem enquadrar-se nos objectivos definidos pela política das colecções e ser seleccionados visando a perenidade e não para um eventual abatimento no inventário…”
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Conclusões 1. Do que foi referido anteriormente parecem ser de retirar-se três principais conclusões. A primeira tem de ser analisada no contexto legislativo actual da função pública, relativo à avaliação de desempenho, às normas da credenciação e ao reequacionamento da gestão derivado da obrigatoriedade de formação em Alta Direcção das chefias, como foi referido anteriormente. Por sua vez, os quatro documentos inovadores constituem-se como fundamentos que contribuem para a criação da identidade e da “cidadania” de cada museu. Representam ainda os alicerces da consolidação de uma qualidade de acção acrescida, do mesmo modo que contribuem acentuadamente para que se evite a eliminação ou a supressão do todo ou de parte da própria existência de cada instituição. Estes quatro documentos são ainda elementos-chave da gestão que permitem suprir as rupturas que ocorrem com as mudanças de chefia que se vão acentuar de ora em diante. 2. A própria Lei-Quadro que especifica as diferentes actividades e tarefas museológicas, pressupõe um quadro de profissionais a trabalhar no seio de cada unidade museológica. Longe de dispersar todo o processo, representa pelo contrário, a necessidade de existência de uma equipa de trabalho que desenhe sob a orientação da direcção o seu próprio campo de intervenção sócio-cultural. A personalidade do dirigente passou a definir-se com uma intervenção de gestão acrescida, parecendo que a componente técnica virá a ter menor incidência dada a multiplicação das tarefas que, no pormenor a que o diploma obriga, conduzem à atribuição e delegação da responsabilidade de algumas das actividades por várias pessoas com adequada e, se possível, continuada formação, desenvolvendo competências específicas. 3. Os quatro documentos contribuem ainda para delinear os diferentes vectores e sectores de cada unidade, não descurando a globalidade das funções museológicas. No todo, estas ocasiões servem para repensar as instituições, para verificar o caminho percorrido e para testar e/ou alterar a orientação seguida. A elaboração dos documentos acima citados projecta-se como condutor e motor das alterações e ajustamentos a processar. Estes textos definem as linhas mestras e os principais fundamentos de cada unidade museológica em que assentam as respectivas metodologias. Concorrem para se proceder ao seu diagnóstico e para obviar, integrar ou estabelecer os princípios estruturantes da base da hierarquia de uma política de conservação e gestão do património cultural móvel que provém, de acordo com a nova orgânica, do IPM e do Ministério da Cultura.
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projectos e experiências
exposições
Fig. 1 Vista da entrada da exposição Fotografia de Amadeo de Souza-Cardoso e Maiastra de Constantin Brancusi © Fundação Calouste Gulbenkian fotografia de Paulo Costa
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María Jesús Ávila Amadeo de Souza-Cardoso de tudo um pouco1
Neste artigo pretende-se realizar uma avaliação da exposição dedicada a Amadeo de Souza-Cardoso, a partir da análise do conceito e objectivos que a orientam, dos objectos que a integram e da sua disposição física no espaço, isto é, considerando a organização dos núcleos que a compõem e a sua articulação em termos espaciais e atendendo também a aspectos estritos de montagem. A base de investigação que a suporta, apontou ainda para a necessidade de determinar o estado em que se encontram as investigações sobre o artista e o contributo do catálogo para tais investigações. Finalmente, uma caracterização da exposição tenta definir o seu papel face aos públicos. This article is intended as a review of the exhibition dedicated to Amadeo de SouzaCardoso, based on the analysis of its concept and objectives, the works of art and their display, keeping in mind specific aspects of the exhibition’s installation. The basis of the investigation has led towards the need to determine at which stage the research on the artist is at the moment and the contribution of the catalogue to this research. Finally, a characterization of the exhibition tries to define its role with regards to the public.
PALAVRAS-CHAVE: Amadeo de Souza-Cardoso, diálogo movimentos de vanguardas, retrospectiva-colectiva, percurso, organização espacial, recursos museográficos, investigação, novas leituras, públicos.
Conservadora do Museu do Chiado - MNAC���| mchiado.mavila@ipmuseus.pt
1 “Sou impressionista, cubista, futurista, abstraccionista? De tudo um pouco” entrevista a Amadeo de Souza-Cardoso por João Moreira de Almeida in O Dia. 4 de Dezembro de 1916.
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ecorridos quase vinte anos sobre a última exposição retrospectiva da obra de Amadeo de Souza-Cardoso em Portugal, apresentada também nas salas da Fundação Calouste Gulbenkian, em Julho de 1987, o Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão apresenta agora, fazendo coincidir a inauguração com a data de nascimento do artista e da sua ida para Paris (14 de Novembro de 1887 e de 1906, respectivamente), aquela que se oferece como a maior e mais actual revisão da obra deste artista, à luz das recentes investigações, realizadas no contexto da elaboração do catálogo raisonné, cuja publicação está anunciada para inícios de 2007. Amadeo de Souza-Cardoso representa um dos casos mais singulares e significativos, mas também mais complexos, do passado artístico recente de Portugal. A relevância do seu contributo para a modernidade nacional, que nos chegou através de uma obra tão determinada como fecunda, em que nem a sua curta vida nem a distância do centro do mundo da arte dificultaram a elaboração e o aprofundamento das pesquisas iniciadas nos anos 10, funde-se com o vislumbrar de tudo quanto deixou por realizar – surpreendido que foi por uma morte prematura – para fazer dele uma figura mítica. Mas o seu percurso, rico em experimentação, decidido em objectivos e diversificado em referências, apesar de breve (1910-1918), apresenta-se como as diminutas peças de um puzzle que nos desafiam à sua reconstrução. Árdua empresa, se considerarmos, por um lado, os escassos rastos documentais para o recompormos: anotações nas agendas do artista, correspondência mantida com familiares e amigos, assim como os testemunhos de alguns deles, artigos e notas de imprensa e alguns catálogos, que nem sequer conseguem documentar todas as exposições que o próprio artista refere ter realizado, nem a trama de relações pessoais e artísticas. Muito menos nos ajudam a conhecer preocupações plásticas precisas ou das obras que o ocupavam em cada momento. Por outro lado, a posição que ele ocupa dentro do contexto de criação não é a de um artista derivativo de experiências e teorias por outros praticadas e elaboradas, mas a de um discreto protagonista destas experiências e, portanto, um dos exploradores dos possíveis caminhos das questões centrais sobre espaço, dinamismo e cor, fora das ortodoxias de qualquer movimento. Facto que o faz aparecer, contrariando a óptica tradicional que entendia a modernidade como uma evolução linear em que os movimentos se dividiam de modo estanque e se sucediam numa progressão em direcção a um fim, como um artista na deriva entre questões e procedimentos de diferentes movimentos – por vezes, até contrapostos –, não só no conjunto da obra de um mesmo período, mas fazendo-os confluir no espaço de uma mesma obra. A inexistência de datação num conjunto importante de obras e as intervenções realizadas sobre obras já finalizadas2, tornam ainda a reconstituição do seu percurso e do seu mapa de relações numa tarefa quase impossível; pois que nem sempre as investigações dão o merecido fruto. Um percurso pelo universo Amadeo de Souza-Cardoso Partindo destas dificuldades a comissária, Maria Helena de Freitas, responsável também pela investigação para o catálogo raisonné, tarefas para as quais contou com a colaboração de Catarina Alfaro, propõe esta exposição como uma mostra monográfica com um sentido retrospectivo, que pretende, simultaneamente, apresentar o artista, e assim o lemos na folha volante da exposição e na nota introdutória do seu texto no catálogo, “a partir da sua relação com Paris (ou entre Paris e Manhufe), não como emigrante mas como um entre tantos outros vindos de várias partes do mundo” (FREITAS 2006: 19). Para este fim, como também se afirma, marcaram-se uma série de objectivos, que visam a clareza do percurso, o carácter selectivo da escolha de obras e a abertura ao diálogo com as obras internacionais representadas.
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As intervenções do artista após a data de conclusão de algumas obras estão documentadas em 12 Reproductions. Cf. França, J.-A.: Amadeo de Souza-Cardoso. Lisboa: Editorial Inquérito, 1972 (2ª ed.), p. 60.
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Fig. 2 Piso superior Amadeo de Souza-Cardoso, Avant la Corrida, c. 1912 © Fundação Calouste Gulbenkian fotografia de Paulo Costa
Para tal, fez-se uma selecção de 190 obras de Amadeo de Souza-Cardoso que, deixando de fora a sua aprendizagem inicial, transcorrida entre a prática do desenho, da ilustração e da caricatura, oferece um exaustivo percurso pelo mais significativo da produção do artista. Logo aqui radica um dos maiores triunfos desta exposição. Embora a obra de Amadeo conte com dois pólos fundamentais de colecção, o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, e o Museu de Amadeo de Souza-Cardoso, em Amarante, ela possui um difícil acesso. Por um lado e por razões óbvias, dada a exiguidade da representação na exposição permanente do CAM da obra de Amadeo, relativamente à extensão dos seus fundos, por outro, pelo carácter descentralizado do segundo museu. A isto acresce a pouco representativa obra pertencente ao único museu do Estado, o Museu do Chiado – MNAC, limitada a duas pochades iniciais e a um conjunto posterior de quatro cabeças (ocasiões como esta não podem deixar-se passar sem alertar para esta situação, cuja resolução, à medida que o tempo passa e se perdem oportunidades, se vai tornando progressivamente mais difícil). Se a isto juntarmos a quase inexistência de exposições que desde 1987 tenham mostrado em Portugal conjuntos de obras do artista, fora daquelas mais conhecidas – como única excepção encontramos a exposição Amadeo, Mondrian (Museu de Serralves, 2001), que exibiu um núcleo significativo de trabalhos centrados na paisagem –, esta exposição revela-se como uma ocasião ímpar para contemplar uma representação exaustiva do trabalho de Amadeo. Significa isto que a geração surgida nos últimos vinte anos terá
acesso, pela primeira vez, à obra do artista. Entretanto, aqueles que tiveram oportunidade de assistir à mostra de 1987 poderão rever, após todo este tempo, grande parte da obra de Amadeo, então mostrada, e outros trabalhos, até agora inéditos. Pois que esta exposição permitiu não só mostrar os relevantes fundos do CAM (c. 104 trabalhos), incluindo a sua mais recente aquisição Avant la corrida (obra desconhecida, só agora localizada, no decurso das investigações do catálogo raisonné) [fig. 2], e trazer para Lisboa as obras de Amarante (c. 17 obras), Museu do Chiado – MNAC ou Colecção Berardo/Museu de Sintra, como, e mais importante, reunir perto de 60 obras pertencentes a particulares e um conjunto de obras provenientes do Centre Georges Pompidou, do Muskegon Museum of Art de Michigan e do Art Institute of Chicago, estas pela primeira vez dadas a conhecer ao público português, junto com mais 10 pinturas, 2 aguarelas e 12 desenhos igualmente inéditos e ainda mais 5 obras nunca expostas desde os anos cinquenta. O público especializado e conhecedor da obra de Amadeo encontra na base de investigação que sustenta esta exposição o incentivo de assistir a uma abordagem diferente, em que novas relações internas e externas se traçam e as datações se apuram. Se tivermos de descrever o conteúdo relativo ao artista português que integra a exposição diríamos que está tudo o que de mais importante fez e, numa sequência cronológica, encontramos, desde as rápidas cenas de café, datadas de 1908-1910, em que pulsa a influência de Anglada-Camarasa, passando por paisagens iniciais (1910) de ritmo curvo e
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arrastado, onde certo simbolismo se alia a preocupações espaciais novas, até à absorção e veloz reelaboração de referências várias. Entre elas se destacam as linhas ondulantes do simbolismo e da art noveau, o sintetismo de esculturas africanas, um decorativismo de natureza orientalista e os ritmos circulares das estilizadas e sensuais formas femininas, em que já o sentido do movimento é questão central e se torna latente o diálogo e recíproca relação de influência entre Amadeo de Souza-Cardoso, Amedeo Modigliani e Constantin Brancusi. Daqui surgem o conjunto de desenhos de tema feminino (1910-1912), o voluptuoso e exótico álbum XX Dessins (1911-1912) ou o manuscrito ilustrado La Légende de Saint Julien L’Hospitaler (1912). Nas obras deste conjunto, os arabescos e a elegância geométrica e angulosa da linha misturam-se com certas memórias africanas e com elementos gráficos densamente imbricados, de aparência próxima à xilogravura, e, sobretudo em XX Dessins, a perspectiva torna-se já um elemento dinâmico. Também nesta fase se enquadram um conjunto de pinturas iniciais que partilham idêntica estilização e dinamismo. A partir daqui, Amadeo entra num vertiginoso jogo de relações entre movimentos e tendências artísticas, onde salta do cubismo para o futurismo e deste para o expressionismo e o orfismo, lançando-se posteriormente para outras composições de natureza mecanicista e, finalmente, ou simultaneamente, fazendo confluir numa mesma obra valores estruturais e preceitos plásticos procedentes de diversas correntes. Deste modo, veremos obras em que a realidade é submetida a uma decomposição em planos de ritmos triangulares, que disparam as linhas de força das composições, cuja raiz cubista é negada pela rica gama tonal, pela intersecção de planos curvos e pela repetição de formas, introduzindo assim uma componente de natureza dinâmica (1912). Noutro conjunto de paisagens são a luz e as formas que se desfazem em pequenas manchas circulares habitadas por construções de planos cubistas (c. 1910-1912) ou em manchas de luminosas cores, que se sucedem em altura, sugestivas de formas e luzes (c. 1912). E imediatamente, 1913, o veremos praticar em simultâneo, em séries diferentes, uma espacialidade que ganha movimento no prolongamento das linhas após o ponto de encontro, a intensificação do movimento por sobreposição de planos, em que as formas curvas adquirem uma função rítmica, e a assunção plena da bidimensionalidade da tela, em obras de colorido mais vivo e ritmo circular. Tudo isto sobre manifestos referentes da realidade. Mas também, e no mesmo ano, 1913, assume plenamente a abstracção, através do ritmo puro de formas geométricas, orquestradas em planos de cor, lineares ou circulares, apropriados estes ao orfismo [fig. 3].
Fig. 3 Piso superior, vista parcial da exposição Obras abstractas de Amadeo de Souza-Cardoso 1913 © Fundação Calouste Gulbenkian fotografia de Paulo Costa
As confluências continuam no ano seguinte, 1914, com obras onde a técnica pontilhista, rarefeita por tons complementares, se alia às sólidas formas geométricas das arquitecturas [fig. 4], ou em paisagens com elementos arquitectónicos, que se decompõem em planos através de grandes e espontâneas manchas de cor, de aplicação e força expressionistas, parecendo contestar a pureza cubista. Obras muito próximas, em feição e espírito, de uma série de cabeças. Neste mesmo ano, no indesejado retiro de Manhufe, a que se vê obrigado pelo eclodir da I Grande Guerra, Amadeo não cancela as suas pesquisas e, entre projectos falidos de exposições internacionais, o contacto com os Delaunay e os breves encontros com alguns artistas e poetas portugueses (Viana, Santa-Rita, Almada e Pessoa), dá continuidade a uma série de cabeças, agora completamente transmutadas em máscaras por efeito da exacerbação da componente expressionista e das referências da arte primitiva (c. 1915). Em simultâneo, outras linhas de experimentação se iniciam entre 1914-1916: um conjunto de cabeças de marginais que se encerram
Fig. 4 Piso superior, vista parcial da exposição Obras de Amadeo de Souza-Cardoso © Fundação Calouste Gulbenkian fotografia de Paulo Costa
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Fig. 5 Piso superior, vista parcial da última sala Obras finais de Amadeo de Souza-Cardoso, c. 1917 © Fundação Calouste Gulbenkian fotografia de Paulo Costa
com a grande composição Música Surda; uma série de pinturas e desenhos de teor mecanicista, em que os problemas de indiferenciação de forma e fundo são resolvidos e onde os títulos adquirem forte dimensão metafórica, acompanhando o movimento ascendente, mecânico ou ziguezagueante da composição e, por vezes, pontuando os seus motivos; e, finalmente, um conjunto de pinturas de inspiração popular, onde o expressionismo abandona problemas de articulação espacial anterior. O gosto pelo folclórico particulariza-se em pequenas cenas protagonizadas por guitarras e figuras femininas transformadas em bonecas do artesanato minhoto. A planificação e a confluência de motivos na bidimensionalidade do plano, a introdução de círculos de ascendência órfica – mas já relevados da sua função lumínica – e a inserção de palavras e algarismos, presentes nestes trabalhos, preparam a magnífica produção final, datada c. 1917. Nela, da memória e da distância espacial e temporal que Portugal lhe impõe, reelabora motivos e estruturas procedentes do cubismo e do futurismo, mas já convencionados pelo uso, e mistura-os com uma multiplicidade de referências e modos de representação, entre as quais se contam já a colagem de papéis e objectos – lançando assim uma ponte com Schwitters –, e a introdução de areias e outros agregantes nas tintas. Uma acumulação que, para além de correntes estéticas, aglutina diversos níveis culturais, que vão da cultura erudita, a outra mais mundana e moderna, até às referências à cultura popular do Minho. Não obstante esta diversidade fragmentária de elementos e sistemas representativos consegue, mercê de uma perfeita integração, uma leitura uniforme [fig. 5]. Assistimos, pois, nesta exposição a um percurso demorado e completo pelo melhor da produção do artista.
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Fig. 6 Piso superior, vista parcial da exposição Obras de Sonia Delaunay, Eduardo Viana, Puni e Exter © Fundação Calouste Gulbenkian fotografia de Paulo Costa
Amadeo de Souza-Cardoso em diálogo O interesse desta mostra não acaba aqui. Em conformidade com os objectivos expressos, junto com as obras de Amadeo reuniram-se setenta e nove obras pertencentes a outros autores nacionais (uma obra de Viana e outra de Almada Negreiros) e internacionais (um total de setenta e sete trabalhos). Vemos desfilar perante os nossos olhos um sem-fim de nomes, todos pretendendo situar a obra do português no contexto internacional, na teia de relações de amizades e cumplicidades plásticas que fizeram dele um protagonista activo da arte radicada em Paris nos anos 10. A título de exemplo, e seguindo algumas das articulações expressas no catálogo por Maria Helena de Freitas, orientadoras dos núcleos da exposição, encontramos: Anglada-Camarasa pontuando os anos de aprendizagem inicial; Derain e Gleizes, as primeiras experiências paisagísticas e Modigliani e Brancusi, os novos caminhos empreendidos num conjunto de desenhos entre 1910-1911. Nos desvios do cubismo ortodoxo, baseados na introdução do movimento, acompanham-no novamente Gleizes e também Metzinger e na dinamização do espaço e liberdade temática e cromática fazem-no Feininger e Rozanova. No simultaneísmo de 1913 Robert Delaunay aparece junto de Amadeo, enquanto Macke se junta a ele na tendência para a abstracção, nos registos paisagísticos desse ano. Uma rede de relações com o expressionismo germânico instaura-se através de Otto Freundlich e de uma breve experiência de decomposição da cor, de Jawlenski nas cabeças de 1915, de Kokoschka e do
espírito das cabeças e dos marginais de 1914. Paralelamente, outra se estabelece com os artistas russos através das pesquisas cubo-futuristas destes, centradas na decomposição dinâmica e na fragmentação de planos cubistas, do valor plástico da palavra, das dinâmicas associativas de imagens e modelos de representação ou de proximidades temáticas. Relação em que se cruzam os nomes de Puni, Malevitch, Gontcharova, Udaltsova, Rozanova e Popova, entre outros. Cabe citar ainda a aproximação da componente futurista de Amadeo com as obras de Severini e Boccioni, assim como as relações, claras e estudadas, entre a fase final de Amadeo e o casal Delaunay [fig. 6]. É inquestionável a conveniência de colocar Amadeo em diálogo com os seus pares, mas, isso, tal como está concebido este diálogo, constitui uma arma de dois gumes. O que aqui se ensaia é um misto entre duas tipologias de exposição dificilmente conciliáveis, sobretudo, para obter o propósito pretendido: “pontuar o eixo expositivo de Amadeo, sem que essa marcação tenha qualquer sentido rígido ou ilustrativo”. Por um lado, deparamos com uma exposição retrospectiva, onde todos os momentos da evolução plástica acima referidos são dados ao espectador nos diferentes estádios e qualidades da sua pesquisa. Por outro, estamos perante uma exposição colectiva, em que os artistas mostrados pretendem desempenhar uma função de diálogo com o artista português. Ora bem, como todos sabemos, para se instaurar um diálogo é necessário existir igualdade de condições entre as partes.
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Fig. 7 Piso inferior, vista parcial da exposição Obras de Kokoshcka e Amadeo de Souza-Cardoso, c. 1914 © Fundação Calouste Gulbenkian fotografia de Paulo Costa
Neste caso e dada a complexidade das buscas e experimentações de Amadeo, teria sido necessário circunscrever um ou vários aspectos delas, procedendo a uma muito mais estrita selecção, para depois mostrar as experiências e caminhos que lhe são coetâneos, não por um ou outro nome, mas na ampla pluralidade de questões que na época, no artista e, como já dissemos, por vezes num único trabalho confluíram. Não é suficiente “pontuar” cada núcleo, já que os nomes que aí aparecem se transformam, precisamente, naquilo que se deseja evitar: uma referência ou fonte directa de onde o artista partiu ou se inspirou em cada momento, tornando o seu trabalho como derivativo, o que, em nenhum caso, ele é; para além de o simplificar. Até porque nalguns casos, as obras de artistas estrangeiros são obras de primeira qualidade que, inseridas no contexto de experimentação de Amadeo – próprio de uma retrospectiva, onde se mostram obras de diferente nível quanto à consecução dos objectivos procurados pelo artista –, fazem ler as obras do pintor português como ensaios para chegar àquilo que nos artistas internacionais aparece como plenamente conseguido. Acresce ainda o facto de se exporem duas excelentes máscaras procedentes da Costa de Marfim (col. Museu Nacional de Etnologia, de Lisboa), uma boneca regional (espólio do artista), duas obras da Takanobu School, e um conjunto de livros sobre pintores primitivos e a escola japonesa, ilustrativos de fontes iconográficas do artista, que induzem também àquela leitura. Um sintoma dos problemas que esta articulação tipológica coloca é constituído pelo facto de, tanto na exposição como no catálogo, cujo “eixo articulador” é Amadeo de Souza-Cardoso (FREITAS 2006: 19), ser a Maiastra de Brancusi a primeira obra com que deparamos (cf. fig. 1). Mesmo considerando-a parte de um diálogo, neste caso concreto, cabe perguntar com o que dialoga esta escultura adjacente às primeiras experiências paisagísticas de Amadeo.
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Um espaço para a circularidade Vejamos porém como este complexo “universo Amadeo” e os seus interlocutores são apresentados. Os objectivos manifestos pelos responsáveis quanto à instalação física das peças referem dois aspectos: salvaguardar o sentido circular que caracteriza a trajectória artística de Amadeo e a clareza no percurso. A exposição articula-se em dois espaços diferentes, ambos regidos por uma sequência cronológica. A sala principal é dividida em três corredores paralelos que avançam em profundidade, ao mesmo tempo que, internamente, se compartimentam por painéis, quase sempre isentos, em salas não regulares nem simétricas, que permitem a circulação transversal entre elas. Em cada uma delas vão-se articulando momentos da produção de Amadeo, pontuados por artistas internacionais. Mas esta compartimentação, provavelmente determinada pela necessidade de ganhar superfícies de exposição de obra num espaço que, de outro modo, seria insuficiente, é excessiva, pois origina a fragmentação e uma proliferação de pequenos espaços que impedem uma visão mais unitária e, sobretudo, uma disposição espacial mais aberta e diáfana, mais conforme com as obras expostas. A tipologia de percurso livre, resultante do projecto arquitectónico, situa o espectador no meio de uma exposição complexa, física e conceptualmente, onde a liberdade proposta para transitar o leva a percorrer as salas sem ordem, surpreendendo-se em avanços e recuos e reparando na necessidade de iniciar trajectos transversais, para dar continuidade a uma ordem cronológica que, sem dominar, orienta a disposição das obras. O único dado certo em termos de trajectória, com que o espectador sai desta sala principal, é que as pequeninas paisagens situadas à direita da entrada constituem o ponto de partida e que as magníficas e destacadas obras dispostas no topo da sala conformam o núcleo de obras finais, resultando difícil articular entre ambos a sucessão de núcleos que percebe avançarem em datas. A circularidade da obra de Amadeo é ainda potenciada, na sua complexidade, por agrupamentos de obras que por vezes se tornam pouco claras ou confusas. Por exemplo, a separação de uma pequena paisagem alongada, situada junto de obras cronologicamente posteriores e numa zona oposta à obra Montanhas, c. 1912, com a qual claramente se relaciona, ou a separação de duas obras abstractas, do núcleo centrado nas investigações de c. 1913 em torno da abstracção. O facto de não ser fornecida ao visitante nenhuma ferramenta interpretativa, nomeadamente textos que o orientem no conteúdo das numerosas salas ou o guiem entre as derivas estilísticas e cronológicas da obra de Amadeo e entre a complexa trama de relações estabelecidas, não ajuda na apreciação total do conjunto3. Parece ter existido alguma preocupação em diferenciar as obras da autoria de Amadeo das realizadas por outros artistas. Para tal, concebeu-se um esquema que alia a diferenciação cromática a painéis destacados (cf. figs. 6 e 7). Assim e de modo geral – nem sempre é norma, como vemos no topo da sala onde o lugar destacado é ocupado pelas obras de Amadeo (cf. fig. 5) – as paredes que acolhem obras do artista português são lisas e estão pintadas num tom beige claro, ao passo que as obras dos restantes artistas se situam sobre painéis destacados, em tom mais escuro da mesma cor. A cor, surda, retira a luminosidade e os contrastes que um branco teria propiciado, reduzindo os efeitos dos baixos níveis de iluminação – estes necessários. Para além de, ocasionalmente, estes painéis se revelarem pequenos, chegando a coincidir em dimensões com a moldura da obra a ele sobreposta, a solução de destaque, de certo modo, contribui para realçar não só visual como conceptualmente as obras internacionais relativamente às de Amadeo, provocando, portanto, a interpretação derivativa atrás referida. Esta dinâmica quebra-se num dos núcleos do corredor central em que a presença das máscaras da Costa de Marfim motivou uma encenação de paredes pintadas num forte tom azul que acaba por ser
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As dificuldades indicadas de leitura de percurso e articulações estão apoiadas pela observação directa dos visitantes no espaço da exposição e por conversas mantidas com alguns deles.
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Fig. 8 Piso inferior Vídeo a partir de uma fotografia encontrada no espólio de Amadeo de Souza-Cardoso © Fundação Calouste Gulbenkian fotografia de Paulo Costa
cenográfica, não se conciliando com a apresentação de arte moderna, onde as cores primárias e fortes das obras mostradas perdem em força e contrastes por efeito da cor do fundo. Na segunda sala, o número de obras e espaço adequam-se perfeitamente, atingindo-se melhor equilíbrio e uma sensação diáfana, e os núcleos, diferenciados por uma arquitectura rígida, adaptam-se bem às obras e sequências procuradas. Pela sua localização é, de um modo geral, a segunda sala a ser visitada pelo público, no entanto obriga-nos a recuar aos tempos anteriores à produção existente na primeira sala. Assim, começamos no ano de 1908 (acima era 1910 a primeira data) e depois avançamos por várias salas, cuja cronologia é comum à sala principal, em que vamos entrando em contacto com experiências diferentes, mas também com outras muito próximas daquelas. Esta divisão não está motivada por determinações de tamanho e necessidades de conservação preventiva derivadas do suporte, pois predominando a pintura na sala principal, existem nela também núcleos de obras sobre papel. Que razão conduz, então, a separar as cabeças de c. 1914 das paisagens da mesma data, formal e compositivamente próximas, para além de uma questão temática? Ou, igualmente, as obras de tipos marginais de Música surda? [fig. 7] E os desenhos femininos de 1910-1911 e La légende de Sain Julien L’Hospitalier do álbum XX Dessins ou os desenhos mecanicistas da obra Par ímpar, a cujo universo pertencem? Podendo alguns ser considerados obras preparatórias destes trabalhos finais, muitos possuem um carácter claramente independente e acabado. Se a exposição se ressente, na sua clareza, de um excesso de fragmentação, de um percurso não orientado e da falta de textos – para além da mencionada folha de sala que esclarece sobre os propósitos do projecto, mas não elucida sobre um possível percurso e as suas articulações internas –, duas iniciativas devem ser salientadas na sua apresentação, dirigidas para propiciar o conhecimento de uma obra e o processo
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criativo do artista, na fase final. Referimo-nos a dois apoios museográficos: uma apresentação em computador e outra em vídeo. Se este tipo de recursos goza de um uso normalizado em exposições de outras disciplinas, parece existir uma certa resistência a introduzi-los num diálogo directo com obras de arte, devido à ameaça que a sua presença pode representar quanto à correcta leitura das peças. Num caso, uma certa independência física para o vídeo, e noutro a escolha de uma dimensão reduzida para o ecrã do computador e a disposição deste numa parede adjacente, portanto, autónoma relativamente à obra que acompanha, garantem a sua eficácia e a não interferência visual. Destacá-los é importante, já que constituem exemplos de integração, onde a consecução da finalidade pretendida se alia ao equilíbrio entre meios e fins. O primeiro destes recursos centra-se na obra La Légende de Saint Julien L’Hospitalier, obra de Flaubert, manuscrita e ilustrada por Amadeo de Souza-Cardoso, cuja natureza de livro, embora um exemplar se encontre em exposição, impede que seja apreciada na sua totalidade. Por este motivo, colocou-se junto da obra um ecrã onde vão passando as páginas ilustradas pelo artista, fornecendo assim uma informação visual mais completa do trabalho e a apreciação da unidade estilística que lhe preside [fig. 9]. O segundo recurso tecnológico parte de um interessantíssimo documento encontrado no espólio do artista [fig. 8]. Trata-se de uma fotografia, provavelmente realizada pelo próprio (FREITAS, 2006: 65), que não permite afirmar se se trata de uma fotografia de uma obra acabada ou de uma maquete que servisse de apoio para outras obras. Se a forte componente objectual, a recorrência de elementos iconográficos e esquemas compositivos apontam para a sua natureza de fonte, o carácter manual de outras zonas e as diferenças que apresentam com pormenores comuns a outros trabalhos fazem-nos pensar que se possa tratar de uma obra final. A partir desta fotografia realizou-se uma interessante peça de vídeo, a cargo de Alexandre Azinheira, em que se dá a ver a intertextualidade presente nos trabalhos finais do artista, através de uma montagem que chama a atenção para diferentes pormenores, elementos ou estruturas, destacando-os da imagem fotográfica e sobrepondo depois outros trabalhos de Amadeo, em que esses mesmos elementos se repetem. A pergunta que aqui colocamos, considerando que as obras a que se refere se apresentam na zona final da sala superior, é se de facto o lugar para a sua projecção (sala final da segunda sala) é o mais adequado; mais, se atendermos à existência junto daquelas obras finais de uma pequena sala sem condições ideais de exposição, mas que serviria na perfeição para este efeito e evitaria misturar, como agora acontece, obras de arte (A ascensão do quadrado verde e a mulher do violino e um trabalho de Léger), com os créditos da exposição e os catálogos para consulta. O catálogo, balanço de uma longa investigação Sem entrar na arqueologia das exposições individuais anteriores, reflexo da valoração do artista no contexto da historiografia portuguesa, entre as exposições feitas em 1987 e 2006, outros momentos expositivos importantes se deram, decisivos não só pela oportunidade brindada para a apreciação pública da obra de Amadeo em conjuntos antológicos ou em núcleos temáticos, mas também pela ocasião de revisão histórica e teórica que propiciaram. Refiro-me em concreto às exposições, Mondrian, Amadeo (Museu de Serralves, 2001), Amadeo de Souza-Cardoso. Um pioneiro do modernismo português (Museu Pushkin, Moscovo, 2001) e a pequena antologia que integrava Cinco pintores da modernidade portuguesa. 1910-1965 (Fundación La Caixa, Barcelona/MAM, S. Paulo, 2004) e At the Edge: A Portuguese Futurist, Amadeo de Souza-Cardoso (Michigan, 2000). Sobre a base de estudos anteriores determinantes4, cada uma destas exposições aportou um contributo significativo em
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Cf. as obras referidas na bibliografia de 1987 e anos anteriores.
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Fig. 9 La Légende de Saint Julien l’Hospitalier Obra de Flaubert, manuscrita e ilustrada por Amadeo de Souza-Cardoso © Fundação Calouste Gulbenkian fotografia de José Manuel Costa Alves
termos de leitura ou documentação. As primeiras supuseram novas leituras e teorias: numa, Cornel Bierens aborda as possibilidades da abstracção no seio do seu trabalho e a impossibilidade de nunca atingir uma abstracção pura, ao estilo de Mondrian – com quem dialoga –, dado o facto de nunca se libertar da carga emocional e subjectiva que a sua pintura sempre transporta; na outra, Pedro Lapa, apoiando-se no conceito de disseminação do autor e da hibridez da obra, elabora uma teoria sobre o trabalho de perlaboração de uma configuração da Modernidade a que Amadeo procede, revelando, a partir de condições de enunciação semiperiféricas e da negociação de tempos que as caracterizam, a transitoriedade da própria identidade como complexo de identificações. Interpretação esta que se articulará com Almada, Vieira da Silva, Rodrigo e Paula Rego na exposição de Barcelona e S. Paulo, onde foram apresentadas, novamente, algumas das obras localizadas em 1999. A última exposição, foi especialmente importante em termos de documentação e localização de obras emblemáticas para o modernismo português, em concreto das pinturas que estiveram presentes no Armory Show, ao mesmo tempo que, abrindo o estudo para investigadores e olhares críticos internacionais, nomeadamente Kenneth E. Silver, Rosemary O’Neill e Laura Coyle, permitiu rastrear relações de trabalho e amizade com alguns protagonistas das vanguardas, radicados ou de passagem por Paris e Nova York, através de documentos em primeira-mão.
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Ao mesmo tempo que estas investigações revelaram novos dados, colocavam também novas questões ou a necessidade de precisar outras. Apuradas já as relações com Modigliani, com Walter Pach e o contexto americano, para além das relações mais conhecidas com os Delaunay, restava ainda uma questão fundamental por esclarecer: como se processa o contacto de Amadeo com o expressionismo alemão. Este repto foi assumido por Helena de Freitas, dando continuidade ao trabalho já desenvolvido em 1987, coordenando um trabalho de investigação focado na verificação e documentação do percurso vivencial e artístico que permite delinear com segurança exposições e viagens e na procura destas relações com o expressionismo germânico e com certas linhas da modernidade russa, que abre novos caminhos de leitura do artista. Helena de Freitas estuda e articula todas as investigações relativas ao diálogo com outros protagonistas das vanguardas, as antigas e as actuais agora traçadas, na teia de produção de Amadeo de Souza-Cardoso, salvaguardando sempre a sua independência e singularidade, num texto que se torna também instrumento importante de leitura para o visitante se guiar no percurso da exposição. Propõe ainda a Joachim Heusinger von Waldegg um texto onde o autor analisa detidamente os contactos alemães e outro a Jean-Claude Marcadé para definir as relações russas. Waldegg rastreia – adoptando como ponto de partida, da mesma forma que os restantes textos do catálogo, a investigação de Catarina Alfaro para a biografia – os contactos estabelecidos entre o pintor português e Otto Freundlich, articulando-os com o círculo em que este se movimenta, em especial com Wilhelm Niemeyer, quem viria a propiciar a exposição e difusão do álbum XX Dessins na Alemanha. Mostrando-se difícil uma articulação plástica directa, consequência da não ortodoxia de Amadeo, Waldegg aproxima este e Freundlich ao nível vivencial, teórico e plástico, elaborando uma teia de aproximações em torno da condição semiperiférica de ambos, e da partilha de gostos pelo Jugendstil, pela arte popular e o primitivismo e, muito concretamente na consciência da insuficiência que a ortodoxia de cubismo, futurismo e abstracção supõem perante a dimensão emocional que conferem à cor e aos desvios formais. A par desta relação vão surgindo correspondências estilísticas e de pressupostos estéticos com outros nomes como Erich Heckel, Jawlensky, Der Blaue Reiter e Feininger, entre outros. Jean-Claude Marcadé ajuda a definir as relações com o grupo de artistas russos, que centram parte das suas pesquisas na articulação dos preceitos do proto-cubismo e do futurismo. Fazendo parte do mesmo círculo que Archipenko e Baronoff-Rossiné, provavelmente tendo visto as obras mostradas em Paris por Popova, Oudaltsova, Exter ou Malevitch, Amadeo, segundo Marcadé, aproxima-se do cubo-futurismo em obras de 1912, no desaparecido Der Athlet, nas obras abstractas de 1913, na luz interior das cabeças oceânicas e nos alogismos e confronto entre o real e o pictórico das obras de 1916. Isso sim, garantindo-lhe uma posição singular mercê de uma luz muito “portuguesa” e da elegância que sobreviveu das suas obras iniciais. Ainda cabe mencionar, quanto às obras propriamente ditas, o apuramento de datas – que depreendemos se encontram em conformidade com o futuro catálogo raisonné – relativamente a estudos anteriores. Se nalguns casos não foi possível uma exacta aproximação, noutros as datas apuradas permitiram ligeiros avanços ou recuos ou a fixação num ano concreto. Outras publicações foram realizadas ou anunciadas no contexto da exposição. O quase desconhecido manuscrito ilustrado por Amadeo, La Légende de Saint Julien L’Hospitalier, será editado em duas versões, uma popular, já na rua, e outra de luxo, cuja edição está prevista para o mês de Dezembro, ambas precedidas por um ensaio de Filomena Molder. Esta obra, peculiar na concepção pelo seu grafismo híbrido em recursos representativos e pelo tratamento que torna a escrita parte da imagem, fica assim à disposição do público e dos investigadores para sua fruição e estudo.
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Para inícios de 2007 está anunciada a edição do catálogo raisonné, dividido em três volumes, o primeiro dedicado à fotobiografia, o segundo à pintura e um terceiro, ao desenho. Resultado de uma investigação iniciada em 2001, o catálogo constituirá uma ferramenta essencial não só para investigadores, que aí poderão encontrar um levantamento exaustivo da produção íntegra do artista – c. 500 obras foram identificadas –, com o percurso público de cada obra, análise e contexto de produção, assim como diferentes estádios de execução, nos casos em que se dão alterações de obras já acabadas. Do mesmo modo que aspectos, propositadamente limitados no presente catálogo, serão incluídos, completados ou acompanhados da documentação fotográfica esclarecedora. Referimo-nos, por exemplo, à biografia, que calculamos seja transformada naquilo que habitualmente é denominado fotobiografia, e à inclusão de uma bibliografia exaustiva e de uma fortuna crítica completa e actualizada. O catálogo virá também criar um clima de maior confiança no mercado de arte que gira em torno de Amadeo, pondo fim às numerosas falsas atribuições. Este catálogo raisonné será o quinto empreendimento deste género realizado sobre artistas portugueses, a seguir ao de Vieira da Silva, Joaquim Rodrigo, Júlio Pomar e ao dedicado às edições numeradas de Julião Sarmento. Ao encontro dos públicos Se são frequentes as exposições monográficas – antológicas ou retrospectivas – de grande dimensão de artistas nacionais ou estrangeiros5, não são muitos os exemplos – frequentes noutros países – que encontramos em Portugal, em que novos métodos de apresentação comparativa sejam ensaiados6. Provavelmente, pelas dificuldades associadas à sua organização, nomeadamente na obtenção de empréstimos. Apesar do CAMJAP/FCG ser um reputado centro fora das nossas fronteiras, parecem ter sido frequentes as situações de recusa de empréstimos de museus internacionais, que dificilmente encontram em Portugal e nas suas instituições um lugar de troca para o futuro, que justifique as cedências de obras. Mas existem outros motivos, entre os quais, e reatando com o anteriormente apontado, a necessidade de garantir o rigor conceptual ou, inclusivamente, o sentido ou a necessidade (no caso de Amadeo, como já se disse, perfeitamente justificado pela sua plena inserção no movimento moderno e no contexto parisiense). Aquilo com que deparamos é uma mega-exposição – herança suavizada pela experiência daquilo que foram os blockbusters – no sentido estrito de quantidade de obras (282 no total) e no carácter especial que assume como ponto de reunião de obras determinadas por uma grande dispersão, que se faz acompanhar do correspondente catálogo de luxo (e elevado preço, 72 €) e de outras publicações, assim como de uma campanha divulgativa não agressiva, pois que o conteúdo da mostra não o exige. Ao nome mítico de Amadeo e às comentadas circunstâncias que rodeiam a sua apresentação (vinte anos passados desde a última retrospectiva, obras inéditas), colocando um público muito vasto e diversificado nas suas características como público-alvo desta exposição – caberia dizer que todos os grupos se tornam alvos da mesma –, junta-se a amostragem de algumas das linhas e vias de experimentação da modernidade através do conjunto de trabalhos internacionais, que respondem a todos aqueles nomes que o público geral conhece e anseia e aos quais tem muito difícil acesso em território português; mais-valia que faz desta mostra um acontecimento cultural que vai ao encontro dos interesses da comunidade. Não é de estranhar, portanto, a expectativa que precedeu esta exposição nos meios de comunicação e seu posterior bom acolhimento, e o sucesso de visitantes, já constatado em números, que poderíamos estender aqui a aspectos laterais como a visível aceitação que os produtos a esta exposição associados – não só o catálogo e o fac-símile, também todo o merchandising produzido no seu âmbito – estão a ter. Tudo leva a supor que nos questionários anualmente realizados nos meios de comunicação a agentes
5 Basta consultar o curriculum de exposições do próprio CAMJAP e de outros centros de exposições como o Museu do Chiado – MNAC, Museu de Serralves, Culturgest ou Centro Cultural de Belém. 6
Não incluímos aqui exposições paralelas em que a produção nacional se situa lado a lado com a internacional – para citar um exemplo recente: O olhar fauve, realizada com os fundos do Musée des Beaux-Arts, e A cor como experiência, a partir da colecção de arte portuguesa do Museu do Chiado-MNAC – nem a leitura de obras de diferentes épocas a partir de conceitos ou categorias que lhes são transversais – sirva de exemplo a mostra que esteve patente no Museu do Chiado – MNAC, Retratos e figuras na paisagem.
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culturais e venha a ocupar um lugar destacado. A isto acrescem as possibilidades de visita que a Fundação Calouste Gulbenkian propiciou, com a ampliação de horários da exposição e com a oferta de actividades complementares que tornam acessível ao público não especializado o conteúdo e as ligações internas da mesma, através de um completo programa de visitas guiadas, duas gerais, a cargo das comissárias da exposição, e visitas semanais todos os domingos e sextas-feiras que medeiam entre a data de inauguração e encerramento da mostra. Este programa público completa-se com uma componente musical, através de concertos concebidos a partir da obra de Amadeo. Podemos concluir, muito embora sejam alguns os problemas aqui apontados, afirmando que sobre qualquer outra apreciação, à saída da exposição – e assim o constatámos no diálogo com visitantes e com a observação no espaço de exposição – se impõem duas conclusões claras: de um lado, a qualidade e grandeza da obra de Amadeo de Souza-Cardoso e a satisfação obtida a partir do contacto que esta exposição propicia e, de outro, o exaustivo trabalho de investigação que a precedeu e que se revela determinante na proposta expositiva apresentada que, apesar dos riscos comentados, lança novas vias de leitura plástica e crítica sobre a obra de Amadeo através da teia de relações instaurada.
Referências bibliográficas BIERENS, Cornel, 2001, “Um deus democrata”, Mondrian, Amadeo, Porto, Museu de Serralves, ASA. LEAL, Joana Cunha, FRANÇA, José-Augusto, SILVER, Kenneth E., O’NEILL, Rosemary, COYLE, Laura, LAPA, Pedro, SANTOS, Rui Afonso, 1999, At the Edge: A Portuguese Futurist, Amadeo de Souza-Cardoso, Lisboa, Ministério da Cultura, Gabinete de Relações Internacionais. FERREIRA, Paulo (ed.), 1981, Correspondance de Quatre Artistes Portugais: Almada Negreiros, José Pacheco, Souza-Cardoso, Eduardo Vianna avec Robert et Sonia Delaunay: Contribution à l’Histoire de l’Art Moderne Portugais (Années 1915-1917), Fondation Calouste Gulbenkian, Centre Culturel Portugais, Presses Universitaires de France. FERREIRA, Paulo, 1995, Amadeo de Souza-Cardoso: Peintre Portugaise, 1887-1918, Paris, Centre Culturel C. Gulbenkian. FERREIRA, Paulo, AZEVEDO, Fernando de, CARDOSO, António, RODRIGUES, António, FREITAS, Maria Helena de, 1987, Centenário do Nascimento de Amadeo de Souza-Cardoso. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. FRANÇA, José-Augusto, 1956, Amadeo de Souza-Cardoso, Lisboa, Editorial Sul Limitada. FRANÇA, José-Augusto, 1972, Amadeo de Souza-Cardoso, Lisboa, Editorial Inquérito [2ª ed.], p. 60. FREITAS, Maria Helena de, MARCADÉ, Jean-Claude, WALDEGG, Joachim Heusinger von, CARDOSO, António, ALFARO, Catarina, OLIVEIRA, Leonor de, 2006, Amadeo de SouzaCardoso, Diálogo de Vanguardas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão. LAPA, Pedro, ÁVILA, María Jesús, 2001, Amadeo de Souza-Cardoso: Um Pioneiro do Modernismo em Portugal, Lisboa, Museu do Chiado – MNAC. MACEDO, Diogo de, 1930, 14, Cité Falguière, 1930, Seara Nova. MACEDO, Diogo de, 1959, Amadeo Modigliani e Amadeo de Souza-Cardoso, Porto, Panorama. PAMPLONA, Fernando de, 1983, Chave da Pintura de Amadeo: As Ideias Estéticas de SouzaCardoso através das suas Cartas Inéditas, Lisboa, Guimarães.
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Clara Mineiro Mas as peças não falam por si?! A importância do texto nos museus
O artigo incide sobre a importância que tem o texto para os visitantes dos museus. São eles que fazem a mediação entre a informação que se pretende transmitir e aquela que o visitante já traz consigo e que é um produto de muitos factores, entre os quais os seus conhecimentos, valores e cultura. Sublinha a necessidade de tornar esse textos acessíveis, pois está provado que as pessoas procuram de facto informação nos textos escritos, sobretudo nas tabelas das peças. Por isso é preciso trabalhá-los de modo a que sejam compreendidos pela maior parte dos visitantes. This article focuses on how important a text is to museum visitors. They mediate between the information the museum wants to convey and the information the visitor already possesses, which is a product of many factors, among which are his/her own knowledge, values and culture. The article underlines the need to make these texts accessible, since it has been proven that people look for information in written texts, especially in labels of works of art. Therefore, these texts must be written in a way that visitors can better understand them.
PALAVRAS-CHAVE: Textos, acessibilidade, novos públicos, necessidades especiais, inclusão, equipa, escrever, serviço educativo, frases, parágrafos, pontuação, vocabulário, textos de sala, tabelas, linguagem, conteúdo, exposição temporária, exposição permanente.
Assessora no Instituto dos Museus e da Conservação Coordenadora do Projecto Museus e Acessibilidade���| claramineiro@ipmuseus.pt
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Enquadramento da questão
M
useu é uma instituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento e aberto ao público, que adquire, conserva, pesquisa e exibe para finalidades do estudo, da educação e da apreciação, a evidência material dos povos e seu ambiente. Esta definição, contida no Artigo 2 dos estatutos do International Council of Museums (ICOM) aprovados na 16ª Assembleia-Geral de Haia em 1989, constituiu uma revolução em relação à concepção tradicional de museu. Para além de poder incluir, no seu sentido lato, os jardins botânicos, zoológicos, parques naturais, aquários, planetários, ou outras instituições semelhantes, atribui ao museu, a par da sua função tradicional – coleccionar, conservar e estudar as suas colecções – uma função social que fica deste modo consagrada. Espera-se do museu que preste um serviço à comunidade, que coleccione, guarde, preserve, estude e mostre à sociedade os testemunhos do seu passado e do seu ambiente, contribuindo duma forma activa para a sua educação e deleite, em última instância para o seu desenvolvimento. Fig. 1 Museu de Évora Mancha do texto de parede © Instituto dos Museus e da Conservação João Herdade
A importância dos museus na formação do indivíduo e no desenvolvimento da sociedade está também subjacente aos princípios da política museológica nacional consagrados na Lei-Quadro dos Museus Portugueses (Lei nº. 47 / 2004, de 19 de Agosto), a saber: • O primado da pessoa, através da afirmação dos museus como instituições indispensáveis para o seu desenvolvimento integral e para a concretização dos seus direitos fundamentais (Artigo 2º, nº. 1, alínea a); • A promoção da cidadania responsável, através da valorização da pessoa para a qual os museus constituem instrumentos indispensáveis no domínio da fruição e criação cultural, estimulando o empenhamento de todos na sua salvaguarda, enriquecimento e divulgação (Artigo 2º, nº. 1, alínea b); • O serviço público, através da afirmação dos museus como instituições abertas à sociedade (Artigo 2º, nº. 1, alínea c). Assim sendo, podemos afirmar que tornar os museus e as suas colecções acessíveis a todos é um objectivo consensual defendido pelas organizações internacionais de profissionais de museus e até consagrado na nossa lei, mas a preocupação com a acessibilidade não está interiorizada e muito menos assumida pela cultura portuguesa. O conceito é muitas vezes menosprezado por ser confundido com paternalismo ou infantilização. A problemática da escrita em museus, encarada como uma das componentes relativas à sua acessibilidade, é uma questão relativamente recente. As atenções dos profissionais de museus recaíram sobre este assunto quando, em 1994, apareceu pela primeira vez o livro The educational role of the museum, editado por Eilean Hooper-Greenhill, professora no departamento de Museum Studies em Leicester, e publicado pela Routledge. Entre textos de muitos outros especialistas, o livro incluía um artigo da escritora sueca Margareta Ekarv (n. 1936), relatando a sua experiência quando escreveu textos para um museu de Estocolmo (EKARV 1999). Na verdade, desde a década de 60 do século XX que o Ministério de Educação da Suécia atribuía bolsas aos escritores que quisessem publicar livros para adultos com pouca literacia. O sucesso dos livros de Margareta Ekarv levou a que fosse convidada pelo Postmuseum de Estocolmo para escrever os textos para a exposição Uma carta faz toda a diferença, onde a escritora aplicou com sucesso a sua técnica de escrever
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Fig. 2 Museu de Évora Cadernos com informação na recepção © Instituto dos Museus e da Conservação / João Herdade
Fig. 3 Museu de Évora Cadernos em Portugûes, Inglês e Braille © Instituto dos Museus e da Conservação / Rita Melo
textos acessíveis para adultos. Neste artigo caracteriza o seu estilo, referindo designadamente que usa frases curtas, com linhas que têm no máximo 45 caracteres, fazendo coincidir o fim da linha de texto com o fim natural da frase. Diz como prefere as palavras correntes e a estrutura simples da linguagem falada, evitando subordinações desnecessárias ou uma carga excessiva de adjectivos e advérbios, e como divide o texto em parágrafos curtos. Explica também que ler os textos em voz alta leva a encontrar as pausas naturais do discurso, e portanto a pontuação mais adequada. Foi assim que se tornou pioneira numa nova técnica de escrever textos para museus. A 1ª edição deste livro saiu simultaneamente no Reino Unido, nos Estados Unidos da América e no Canadá. Este artigo teve um grande impacto sobre os profissionais dos museus nestes países e levou a que fossem feitas muitas experiências de sucesso. No Reino Unido, as novas ideias passaram a ser abordadas e discutidas nos cursos de Museum Studies e várias experiências de campo foram objecto de dissertações de mestrado no âmbito destes cursos. A linguagem em museus é também objecto de teses de doutoramento e há quem trabalhe como profissional liberal nesta área, prestando serviço especializado de escrita para museus ou fazendo consultadoria e formação de técnicos de museus sobre linguagem acessível e inclusiva. Para escrever textos inclusivos é preciso pensar não só na sua forma, mas também no seu conteúdo. Serão mais apreciados se tiverem uma dimensão humana que os relacione com as
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experiências de cada um. Há histórias para contar sobre as pessoas que estão por trás dos objectos – quem os fez, quem os usou, quem os coleccionou. Essas histórias darão vida aos objectos e aproximá-los-ão do visitante, fazendo com que perdurem na sua memória (COXALL 2000:56-58). O caso do Victoria and Albert Museum é paradigmático, no que toca à importância dada à comunicação escrita nas suas exposições. Tem publicado um conjunto de orientações para quem escreve textos para exposições no museu que também estão acessíveis para serem descarregados no portal do museu (Victoria and Albert Museum, British Galleries Text Guide: http://www.vam.ac.uk/files/file_upload/10808_file.pdf). Este documento é um manual de boas práticas que fornece indicações muito concretas para escrever textos acessíveis, de modo a que o maior número possível de visitantes compreenda o que lê. Existe no museu um Interpretation Editor - um editor para os textos produzidos para o grande público - cuja função é implementar e assegurar o cumprimento das orientações definidas. É preocupação que o documento seja sempre do conhecimento prévio da pessoa que vai escrever o texto, faça ou não parte da equipa do museu, para que não necessite de grande intervenção por parte do editor. Ainda que em Portugal estejamos longe do quadro atrás descrito, os profissionais dos museus, particularmente os que trabalham nos Serviços Educativos, começam a estar sensibilizados para a questão da comunicação escrita. O
Fig. 4 Museu de Cerâmica Hierarquização da informação © Instituto dos Museus e da Conservação João Herdade
Fig. 5 Museu de Cerâmica Ponto de acessibilidade © Instituto dos Museus e da Conservação João Herdade
GAM – Grupo para a Acessibilidade em Museus (www.gam. org.pt) – é uma associação de profissionais de museus criada em 2004 com o objectivo de melhorar o acesso aos museus a todo o público com necessidades especiais, sejam elas de natureza física, intelectual ou social. Pretende disponibilizar informações sobre o tema, bem como divulgar e promover actividades e debate. É muito significativo que o primeiro seminário internacional organizado pelo GAM em Janeiro de 2006 tenha tido como tema Sabe escrever para todos? A acessibilidade da comunicação escrita em museus, e mais ainda que as inscrições tenham esgotado bem antes do previsto. A experiência do Instituto Português de Museus A experiência do Instituto Português de Museus nesta área enquadra-se no âmbito do Projecto Museus e Acessibilidade, iniciado em 2003, Ano Europeu da Pessoa com Deficiência, e teve como ponto de partida a assinatura de um protocolo de colaboração com entidades ligadas a pessoas portadoras de várias deficiências – sensoriais, motoras ou mentais. Depois da edição de um manual de boas práticas intitulado Museus e Acessibilidade – segundo número da colecção Temas de Museologia – a realização de acções de formação para os técnicos dos museus tem decorrido em simultâneo com a intervenção em exposições temporárias em que foi possível considerar a sua acessibilidade desde o início. As primeiras experiências piloto decorreram no Museu de Évora e no Museu de Cerâmica, nas Caldas da Rainha.
A equipa envolveu a DDF (Divisão de Divulgação e Formação) e a DPO (Divisão de Projectos e Obras) do IPM, com a assessoria técnica da ACAPO (Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal) e da FENACERCI (Federação Nacional de Cooperativas de Solidariedade Social). Intervenção em exposições temporárias MUSEU DE ÉVORA Núcleo provisório na Igreja de Santa Clara O Museu de Évora, instalado no Paço Arquiepiscopal em pleno centro histórico da cidade, fechou para obras em meados de 2004 e não se prevê a sua reabertura antes de 2008. Durante este período optou-se por ter patente ao público um conjunto de peças importantes e representativas das colecções do museu na Igreja de Santa Clara, espaço cedido pela Diocese de Évora. Foi por isso concebida uma exposição temporária a que se chamou Núcleo Provisório na Igreja de Santa Clara. A exposição abriu ao público em Agosto de 2004 e continuará patente até ao final das obras do museu. A iniciativa de incluir esta exposição no Projecto Museus e Acessibilidade deveu-se ao facto de este ser o projecto que a equipa da DPO do IPM ia iniciar pouco depois da edição do manual Museus e Acessibilidade e da realização das primeiras acções de formação junto dos técnicos dos museus do IPM. Os objectivos de motivar a equipa do museu para as questões da
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os professores (26 pessoas), engenheiros (7), gestores (4), médicos (4), advogados (4) e profissionais de museus (3). O caderno-roteiro com informação foi usado por 64% dos inquiridos, tendo os restantes preferido visitar a exposição livremente. De entre as pessoas que o consultaram, 74% achou que o facto de haver informação em três níveis diferentes facilitou muito a compreensão das peças; 40% preferiu o nível de informação mais simples, 32% o nível intermédio e 28% o mais complexo. Isto apesar de a maior parte dos inquiridos ter formação superior. Curiosamente, algumas pessoas disseram ter consultado textos dos três níveis, de acordo com o interesse que lhes suscitavam as peças. Os comentários sugeridos pelo caderno foram positivos e negativos. Algumas das apreciações positivas: • “Elemento essencial que ajudou a visita.” • “Bem pensado.” • “Experiência interessante.” • “Substitui um guia.”
Fig. 6 Museu de Cerâmica Folhas Para saber mais e Simplificando © Instituto dos Museus e da Conservação João Herdade
Ou negativas: • “Devia ser mais simplificado, porque é muito volumoso, pesado e difícil de manusear.”
acessibilidade não foram cabalmente alcançados, bem como a sua adesão e envolvimento no projecto. Como alternativa à informação escrita colocada nas paredes, com textos algo longos e complexos, (fig. 1) e às tabelas de tipo clássico, foi feito um caderno-roteiro com textos mais simples em português (também em versão Braille / letras ampliadas) e inglês (fig. 2). Estes roteiros propõem um percurso de visita com pontos de paragem nas peças mais importantes e contêm textos em três níveis de linguagem (fig. 3): • Nível 3 - textos mais complexos e compridos, uns reproduzindo os textos de parede e outros baseados no catálogo da exposição. • Nível 2 - textos simplificados, mas ainda com muita informação. • Nível 1 - textos resumidos, simples e curtos. Para fazer uma avaliação das questões de acessibilidade foi elaborado um inquérito que foi preenchido voluntariamente pelos visitantes (um total de 1.651 pessoas, 847 em Março e 804 em Abril de 2005, representando cerca de 8 % do número total de visitantes nesse período). Caracterizando o público inquirido, concluímos que 89% das pessoas que responderam ao inquérito eram visitantes individuais e destes só 1 tinha necessidades especiais. O grupo etário dos 25 aos 34 anos foi o mais representado (37%). A maioria tinha formação superior ou frequência universitária (69,5%) e era constituída por mulheres (60%). Relativamente às profissões, houve grande diversidade nas respostas; foram indicadas 32 profissões diferentes, mas entre as mais representadas estavam
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• “Tem um aspecto pouco atraente. Conteúdo bom, mas imagem fraca.” • “Devia ter uma tamanho A5.” • “Pouco prático.” •“Devia estar fragmentado em folhas junto às peças referenciadas.” A 17 de Março de 2006, no âmbito dos Prémios Turismo para Valorização do Espaço Público, o Instituto de Turismo de Portugal atribuiu ao Instituto Português de Museus uma menção honrosa pela instalação do núcleo provisório do Museu de Évora, o que de alguma maneira constitui um reconhecimento da qualidade das soluções ensaiadas neste projecto, onde se inclui a componente relativa à acessibilidade do espaço, da informação e também do contacto com o acervo - algumas das esculturas podem ser tocadas por portadores de deficiência visual. No entanto, ficou claro que em futuras experiências seria necessário um maior envolvimento da equipa do museu. Esta preocupação foi tida em conta na segunda intervenção em exposições temporárias. MUSEU DE CERÂMICA Rafael Bordalo Pinheiro e a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha O Museu de Cerâmica está instalado no Palácio dos Visconde de Sacavém nas Caldas da Rainha e ainda não foi objecto de obras de remodelação. No jardim deste museu foi construído um anexo onde são montadas as exposições temporárias deste museu. A exposição em causa esteve patente de 2 de Julho de 2005 a 27 de Fevereiro de 2006.
A escolha deste museu como objecto da segunda experiência piloto foi devida ao facto de o museu já ter um longo trabalho com públicos com necessidades especiais. A equipa é portanto sensível às questões da acessibilidade, como ficou provado pela adesão imediata da directora do museu ao projecto. Tivemos assim a possibilidade de levar a cabo uma experiência com características diferentes da anterior e experimentar novas soluções para os problemas, a começar pela elaboração de textos de parede simples. Partindo do princípio que os textos de parede são uma fonte de informação importante para a maior parte dos visitantes, tivemos a preocupação de elaborar textos pequenos e com um tamanho de letra grande. No entanto, não foi esta a única fonte de informação disponibilizada. Em vários pontos do circuito da exposição foram espalhados locais bem assinalados onde qualquer visitante podia encontrar auriculares para ouvir informação gravada (alternativa ao Braille), folhas com textos de sala mais simples e outros mais complexos do que aqueles que foram colocados nas paredes (alternativa ao cadernoroteiro usado no Museu de Évora) – fig. 4 - bem como filmes sobre vários assuntos e réplicas de peças expostas para todos tocarem. Disponibilizámos assim informação em vários formatos (escrito, áudio e vídeo) – fig. 5 - e também em três níveis de linguagem – (fig. 6). • Nível 3 - textos mais complexos baseados nos do catálogo da exposição, nas folhas de sala PARA SABER MAIS…e nos textos gravados).
classe (2 + 11 pessoas). Pensamos que alguns deles podem ser ainda filhos de antigos trabalhadores da Fábrica. Foram identificadas 30 profissões diferentes, com destaque para os reformados (12), professores (11), funcionários públicos (4), domésticas (5) e artistas plásticos (3). A principal fonte de informação dos inquiridos foi a dos textos de parede, lidos na totalidade ou em parte por 97% dos visitantes e considerados acessíveis. No entanto, 38% das pessoas não compreenderam que havia informação em três níveis diferentes e 47% afirmou não ter consultado as folhas de sala. Algumas das razões apontadas para isso prendem-se com o facto de não ter sido necessário, porque os textos de parede eram simples, mas também porque essas folhas não estavam colocadas em local bem visível. Curiosamente, as folhas mais consultadas foram as de Nível 3 – PARA SABER MAIS... o que mostra que a maior parte das pessoas não precisou de textos mais simples do que aqueles que estavam nas paredes. A maior parte dos comentários às folhas de sala foram positivos: • “Ajudam a compreender a exposição” • “Estão bem pensadas” • “São acessíveis e bastante práticas” • “Foram feitos de uma forma prática e apelativa” • “São fáceis de consultar” • “Gostei muito”
• Nível 2 - textos simples e curtos nos resumos afixados nas paredes.
No entanto, registaram-se também alguns comentários negativos:
• Nível1 – textos mais elementares, nas folhas de sala SIMPLIFICANDO…
• “Estão mal localizadas”
Tal como em Évora, foi preparado um inquérito que foi voluntariamente preenchido pelos visitantes em Dezembro de 2005, Janeiro e Fevereiro de 2006. Foram preenchidos 97 inquéritos, representando cerca de 4 % do número total de visitantes nesse período (um total de 2.246 pessoas, 898 em Dezembro de 2005, 540 em Janeiro de 2006 e 808 em Fevereiro).
Grande parte dos visitantes (77%) não usou o equipamento áudio, ou porque não sentiu necessidade ou porque não conseguiu pôr o equipamento a funcionar. Em contrapartida, os vídeos foram vistos total ou parcialmente por 84% das pessoas, que afirmaram terem contribuído para melhor compreensão da exposição.
A maior parte dos inquiridos eram visitantes individuais (92%) e destes só 5 eram pessoas com necessidades especiais. Ainda que o grupo etário mais representado fosse o dos 15 aos 24 anos, podemos dizer que os números foram bem distribuídos pela escala etária do inquérito, o que quer dizer que, relativamente a Évora, esta exposição teve visitantes de idade mais avançada. Tal como em Évora, os homens foram a minoria (32%). Relativamente às habilitações, 37% dos inquiridos eram licenciados, mas houve visitantes que não sabiam ler nem escrever (2) e outros que só tinham frequentado a 2ª ou 4ª
• “Devia haver em inglês”
O balanço feito após as experiências do Museu de Évora e do Museu de Cerâmica é certamente positivo, mas confirma a necessidade da motivação e envolvimento das equipas dos museus na preparação de exposições acessíveis. Prova disto é o que se passou no Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto, durante a Acção de Formação sobre Acessibilidade em Museus que teve lugar naquele museu a 22, 23 e 24 de Maio de 2006. Estas acções de formação têm vindo a ser promovidas pela Rede Portuguesa de Museus e enquadram-se no âmbito do protocolo atrás referido celebrado em 2003 com associações representativas de pessoas portadoras de deficiência. Verificou-se que a maior parte das
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pessoas inscritas na acção, que teve lugar no Museu Nacional de Soares dos Reis, eram técnicas superiores daquele museu. No decorrer da parte teórica da acção, a equipa de formadores compreendeu que a audiência estava especialmente motivada para a problemática da escrita. Logo nesse momento procedeu a algumas alterações ao programa previsto, pondo a tónica na escrita acessível. Estas acções de formação têm uma parte prática em que, com os conhecimentos teóricos adquiridos na primeira parte, é feito um trabalho de campo no próprio espaço do museu em que acção decorre para testar as suas condições de acessibilidade. No que toca à informação escrita – textos de parede e tabelas das peças - foi muito curioso verificar o entusiasmo das participantes, algumas delas autoras desses textos, propondo alternativas mais simples ao trabalho que elas próprias tinham efectuado. A avaliação da acção de formação feita pelos participantes foi muito positiva, tendo sido salientado como um dos temas mais interessantes o da comunicação escrita. No final foi aprovada a ideia de que seria feita uma avaliação relativa à mudança efectiva das suas práticas profissionais seis meses após o fim da acção de formação, o que está a decorrer. Intervenção em exposições permanentes Por indicação da Direcção do Instituto Português de Museus e com o acordo dos Directores dos Museus a seguir mencionados, as próximas intervenções serão feitas sobre exposições permanentes a serem projectadas a partir de 2007 para o Museu Nacional de Arqueologia e Museu Nacional de Etnologia. Contamos desta vez formar desde o início uma equipa pluridisciplinar que inclua os Directores, os Conservadores, os técnicos dos Serviços Educativos, os Designers, os Arquitectos e os Consultores para as questões de Acessibilidade e esperamos que os benefícios trazidos pelos investimentos financeiros e humanos feitos perdurem mais no tempo.
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Reflexão final Não, as peças não falam por si. É esta a resposta à pergunta que serviu de título a este artigo. Para serem compreendidas é necessário que se estabeleça um diálogo circular entre a peça e o seu observador. Esse processo parte do todo para o pormenor e nele as informações transmitidas pelos objectos são contextualizadas no universo dos conhecimentos e valores que o visitante traz consigo, o que lhe permite dar um sentido à obra de arte. De imediato, esta informação já processada é devolvida pelo observador ao objecto que, mais uma vez, fornece outros elementos para novo processamento de dados. E assim sucessivamente (HOPER-GREENHILL 1999). Em todo este processo é, portanto, fundamental o papel mediador do texto, que faz a ponte entre a informação a transmitir e aquela que o visitante já possui. É por isso que o texto deve ser simples e apelativo, embora isso implique um trabalho longo e complexo que deverá envolver uma equipa composta por todos aqueles que colaboram na montagem de exposições num museu. Acredito que o sucesso das boas práticas tem o efeito multiplicador dos espelhos, e em Portugal já há muitos profissionais de museus atentos ao reflexo das imagens destas boas práticas. Dezembro de 2006
Referências bibliográficas LIVROS Colwell,P. e Mendes, E., 2005, Museus e Acessibilidade, Lisboa, zInstituto Português de Museus HEIN, G., 1998, Learning in the Museum, Londres, Routledge. Hooper-Greenhill, E., 1994, Museums & Their Visitors, Londres e Nova Iorque, Routledge. Hooper-Greenhill, E., 1991, Museum and Gallery Education, Londres e Nova Iorque, Routledge.
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DOCUMENTOS NA INTERNET The Ekarv exhibit labelling philosophy - http://museums.4t.com/Pages/articles.htm e��������� também http://museums.4t.com/Pages/museums.htm Smithsonian Guidelines for Accessible Exhibition Design - http://www.si.edu/opa/ accessibility/exdesign/start.htm Victoria and Albert Museum, British Galleries Text Guide - http://www.vam.ac.uk/files/file_ upload/10808_file.pdf Writing interpretation - http://www.snh.org.uk/wwo/Interpretation/pdf/writing.pdf
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Francisco Clode Sousa Experiências museológicas recentes na Ilha da Madeira O Museu de Arte Sacra do Funchal e o Núcleo Histórico de Santo Amaro A Madeira tem desenvolvido uma série de projectos museológicos, com o objectivo de valorizar o património artístico. Nos anos de 1940, é fundado o Museu de Arte Sacra do Funchal, cuja colecção de pintura flamenga ganhara particular importância e pertinência quando apresentada em Lisboa, em 1949. Para a renovação do museu têm contribuído as posteriores reorganizações das colecções, bem como as diferentes exposições, que têm colocado enquadramentos contemporâneos em diálogo com as peças do museu. Mais recentemente destacamos o projecto de valorização da Torre do Capitão, um dos mais antigos vestígios de arquitectura civil no arquipélago, bem como da Igreja de Santo Amaro, reconstruída no século XVIII e hoje alvo de restauro. Madeira has developed a series of museological projects, with the purpose of valuing its artistic heritage. During the 1940s, the Museu de Arte Sacra do Funchal was founded, with its collection of Flemish painting gaining a particular importance and relevance when displayed in Lisbon in 1949. Further reorganizations of its collections have contributed to the renovation of the museum, along with different exhibitions that have brought together contemporary pieces with the museum’s own works of art. More recently the Captain’s Tower, considered one of the oldest remnants of the archipelago’s civil architecture, is being recovered, as well as the Church of Santo Amaro, rebuilt during the 18th century and today undergoing restoration.
Director de Serviços de Museus e Responsável pelos Museus de História e Arte do Departamento de Cultura da Câmara Municipal do Funchal | franciscoclode@netmadeira.pt
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PALAVRAS-CHAVE: Projectos museológicos, Museu de Arte Sacra do Funchal, pintura flamenga, Núcleo Histórico de Santo Amaro, colecções patrimoniais e artísticas da Madeira, arte contemporânea, apresentação integrada das colecções.
A
Madeira, ao longo do século XX, foi marcada por algum pioneirismo na defesa e divulgação do seu património artístico. Após as campanhas de redescoberta e posterior conservação e restauro das suas colecções de pintura flamenga, nos anos 40, deu-se início ao projecto de instalação de um Museu de Arte Sacra do Funchal. Este ganha, com o problema do futuro destino da colecção de pintura flamenga, apresentada em Lisboa no Museu Nacional de Arte Antiga, em 1949, particular importância e pertinência. Algumas tentativas de levantamentos patrimoniais tinham sido iniciadas e desenvolvidas, com a publicação em 1949, do catálogo e exposição Lampadários- Património artístico da Ilha da Madeira. Em 1951, realizou-se a exposição Ourivesaria Sacra no Convento de Santa Clara do Funchal, seguida em 1954, de Esculturas Religiosas de Padre Pita Ferreira e Luís Peter Clode. Estas exposições ajudaram a compreender as necessidades de intervenção no património artístico da igreja, permitindo em alguns casos, a entrada de peças para o Museu nascente de Arte Sacra, situado no antigo Paço Episcopal e que abriria ao público em 1955. Com o inequívoco apoio da então Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal e do Bispo do Funchal, D. António Pereira Ribeiro, foi possível a
Fig. 1 Museu de Arte Sacra Entrada principal © Museu de Arte Sacra do Funchal fotografia de Pedro Clode Fig. 2 Museu de Arte Sacra Vista geral, salas de arte flamenga, 2º andar © Museu de Arte Sacra do Funchal fotografia de Pedro Clode
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concretização do projecto, e das condições mínimas da sua sustentabilidade, entre a boa vontade das entidades públicas e da Igreja madeirense. Na colecção, desde logo se organizaram duas áreas principais: a de Pintura Flamenga, mais tarde também de Escultura, e a de Arte Portuguesa, balizada por Escultura e Pintura desde o século XVI até aos meados do século XVIII. Refira-se ainda um núcleo de ourivesaria, em que o Tesouro da Sé do Funchal se destacava com evidência, com obras desde o século XVI ao século XVIII. Particular importância teve desde cedo a pintura flamenga, pela sua qualidade e gigantismo das proporções das obras, como Descida da Cruz atribuída a Gerard David, o Tríptico dos Reis Magos da Ribeira Brava, atribuído ao designado Mestre do Tríptico Morrison, A Adoração dos Reis Magos, atribuído hoje ao anónimo Mestre da Adoração de Machico, A Anunciação, o Tríptico de São Pedro, São Paulo e Santo André, a Joos Van Cleve, Maria Madalena e os volantes da Anunciação da Matriz da Calheta, a Jan Provoost, ou a Nossa Senhora do Amparo a Jan Gossart, dito Mabuse. Destaque especial ainda para o Tríptico de São Tiago e São Filipe atribuídos a Pieter da Coeck van Aelst. Na escultura flamenga, reconhecem-se obras de oficinas de Malines, Bruxelas e Antuérpia, datáveis entre o fim do século XV e o primeiro quartel do século XVI. Refira-se aqui a Nossa Senhora da Conceição e Santa Luzia, ambas de uma oficina de Malines ou o conjunto escultórico da Deposição no Túmulo. No Museu ainda duas obras de ourivesaria flamenga, um cálice e uma bandeja, puncionadas da cidade de Antuérpia de inícios do século XVI, muito raras no contexto nacional e mesmo internacional. A presença destas colecções no arquipélago justificava-se pela existência entre o final do século XV e a primeira metade do século XVI, de um intenso tráfego comercial com a Europa do norte pelo comércio do açúcar, e das enormes mais-valias que os proprietários de canaviais ou engenhos possuíram, levando a encomendas de obras de arte, nos principais círculos de Bruges e Antuérpia. Nas colecções de arte portuguesa, a maioria das peças entrou no Museu, logo na sua fundação. A maioria encontrava-se fora de culto nas igrejas da ilha, ao qual muitas vezes se acumulava o mau estado de conservação. Em muitos casos, a transferência para o Museu foi razão da sua sobrevivência. Destaque-se a colecção de escultura portuguesa dos séculos XVII e XVIII, assim como a de ourivesaria, com exemplares desde o século XV até ao século XVIII. Após a exposição de 1949, no Museu Nacional de Arte Antiga, sob a iniciativa do Dr. João Couto, só em 1991, com o Festival Europália na Bélgica, voltariam as colecções da Madeira a serem alvo de atenções especiais, com a participação de algumas obras nas mais importantes exposições como, Feitorias em Bruxelas e depois em Lisboa. A saída de algumas obras de arte flamenga para a exposição acima referida, assim como as condições precárias da conservação de outras, e o estado geral do edifício, levaram à concretização de obras de conservação e restauro e à revisão do programa científico e museológico. Foi criado um programa de intervenção com definição de prioridades na conservação e restauro de obras de arte, asseguradas que foram primeiro, condições mínimas de conservação preventiva das espécies museológicas. Realizaram-se ainda alterações sensíveis no plano da museografia, que procurou encontrar na cor e numa renovação de suportes, novos aliados de apresentação e valorização das espécies artísticas. A reconversão da imagem do museu passou pela introdução de alterações na relação dos objectos com os suportes e uma revisão dos suportes informativos. Uma primeira fase de reorganização do Museu permitiu a sua reabertura em 1994, com uma nova apresentação das colecções portuguesas, em que se privilegiava uma evolução estilística e cronológica, que avançava também com uma disposição integrada das colecções, no primeiro andar do edifício.
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Fig. 3 Museu de Arte Sacra Recepção / loja - renovação de 2006 © Museu de Arte Sacra do Funchal fotografia de Pedro Clode
Se uma natureza técnica ou material era dominante numa determinada sala, existiam sempre pontes de contacto com outras obras que introduzissem um especial diálogo de contraste. Surgiram por exemplo, salas dedicadas preferencialmente à ourivesaria, mas com a presença de escultura e pintura, ou, salas de escultura com exemplares relevantes de ourivesaria. Na mesma época, foi possível abrir ao público pela primeira vez a Capela de São Luís de Toulosa, integrante do edifício do antigo Paço Episcopal, onde o Museu estava instalado, assim como se organizaram circuitos de visita à Torre Avista Navios, com a possibilidade de acesso condicionado às reservas do Museu. Foram também, com as obras de 1994, apresentados e instalados os Serviços de Educação com a requisição de duas técnicas da especialidade, do corpo de pessoal da Secretaria Regional da Educação, com o apoio para a sua instalação da Drª Ana Duarte, do Museu de Setúbal, assim como o Museu pôde apresentar uma portaria-loja, tendo desenvolvido produtos de merchandising próprio. Refira-se aqui a utilização dos motivos dos paramentos litúrgicos, aplicados e interpretados em lenços de seda bordados a ponto Madeira. A reabertura, em 1996, do segundo andar do Museu, onde voltou a ser apresentada a colecção de Arte Flamenga, sob
novo programa científico, libertou a sala de exposições temporárias, onde esta colecção permanecera desde 1991. Este projecto, assim como a publicação, em 1997, do catálogo de investigação da arte flamenga, foi trabalho da Drª. Luiza Clode e do Prof. Dr. Fernando António Baptista Pereira. Este catálogo foi o resultado de anos de investigação e contacto com muitos dos mais importantes museus europeus e americanos possuidores de colecções de arte flamenga da mesma época. Ponto forte do Museu foi sempre a existência de uma sala de exposições temporárias no rés-do-chão do edifício, que desde a sua fundação serviu a apresentação de exposições de produção própria, tendo em vista um trabalho desde há muito desenvolvido, de estudo e inventariação do património artístico da diocese. Por vezes era acordada a cedência do espaço, para a concretização de projectos de outra natureza, consentâneos com a vocação de divulgação patrimonial do Museu, como a realização de exposições de parceria com a Direcção Regional dos Assuntos Culturais. Já em 1973, se organizara neste espaço uma exposição de artes decorativas pertencentes a colecções privadas sob o título Cobres e Latões, assim como mais tarde uma exposição do escultor João Charters d’Almeida, em 1978. Em 1984, realizouse uma exposição antológica da artista madeirense Martha
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Telles, e no mesmo ano, a apresentação da Colecção de Escultura do Dr. Frederico de Freitas, enquanto decorria a adaptação da sua casa para a instalação da futura CasaMuseu Frederico de Freitas, no Funchal. No ano seguinte, foi organizada a exposição Colecção de Azulejaria Estrangeira da Colecção Frederico de Freitas. Em 1988 o Museu volta a organizar uma exposição temporária, tendo por base o património artístico da diocese do Funchal sob o título Exposição Mariana, com a edição de um roteiro. Após a instalação provisória da colecção de arte flamenga na sala de exposição temporária, enquanto decorriam obras de beneficiação no Museu, só em 1996 volta a ser apresentada uma exposição, sob o título Santo António, propondo um levantamento da iconografia do Santo na diocese do Funchal, com exemplares desde meados do XVI ao século XVIII. Em 1997, com a colaboração da Galeria Porta 33 do Funchal foi apresentado na Torre Avista Navios do Museu uma exposição de obras de Ilda David, incluídas no lançamento do livro do poeta Tolentino de Mendonça, Cântico dos Cânticos. Em 1999, foi organizada uma exposição sob o título A Madeira na Rota do Oriente, que reunia obras pertencentes a museus, outras instituições, assim como a coleccionadores privados da Madeira, onde se apresentavam obras de arte que reflectiam o encontro entre o Oriente e o Ocidente, enquadradas pela expansão portuguesa. Na exposição, foi apresentado um catálogo de investigação, onde se notava o aparecimento de algumas peças que tinham ao longo de séculos permanecido inéditas. O Museu, desenvolvendo uma iniciativa já de alguma tradição, procurava encontrar enquadramentos contemporâneos que pudessem dialogar com a sua colecção, praticamente inédito no contexto da museologia portuguesa. Surgiu, assim, em 2002, a exposição Alguns Santos Mártires Revisitados, de Rui Sanches, que colocava em confronto escultura e desenho do artista, nas salas de arte flamenga. Para tal foi editado catálogo com texto de João Miguel Fernandes Jorge. No mesmo ano, foi organizada a exposição Jesus Cristo, Ontem Hoje e Sempre, integrada ainda nos comemorações do Milénio na Igreja Católica, e que apresentava obras de arte pertencentes à diocese do Funchal, sobre os temas do Antigo e Novo Testamento. Foi para a ocasião desenvolvido catálogo de investigação, sobre as obras de arte em presença. Em 2003, voltou o Museu a apresentar a ideia de diálogo ou confronto entre a produção artística contemporânea portuguesa e as colecções do Museu, com a exposição CopyCat de Adriana Molder. Ainda em 2003, foi também inaugurada uma exposição que procurava sensibilizar para a necessidade da conservação e restauro das espécies patrimoniais e artísticas postas à guarda dos Museus e ainda para a possibilidade de apresentar aquilo a que se designou por trabalhos secretos. Do que não se vê quando se visita um museu ou uma exposição, os vários passos que são dados desde a investigação, a conservação preventiva e activa das colecções. Assim se abriu ao público a exposição O Futuro do Passado, onde se mostravam os trabalhos de conservação e restauro realizados nos últimos tempos, mas também se referia as urgências de implementar o restauro de obras que permaneciam a aguardar financiamento. Foi, aliás, para este projecto, desenvolvido trabalho específico pelos serviços de educação do Museu. Em 2005 apresentou-se ao público a exposição Eucaristia Mistério de Luz, que comemorava o ano da Eucaristia, a fundação da Diocese do Funchal e os próprios 50 anos do Museu de Arte Sacra Na exposição estiveram presentes obras de arte das colecções da diocese, sobretudo de ourivesaria sacra, como custódias, lanternas, lampadários, castiçais, etc., entre os meados do século XVI e o século XVIII, estando a ser desenvolvido catálogo de investigação. Nos finais do ano de 2005 foi remontada a exposição A Madeira nas Rotas do Oriente por ocasião da realização do Congresso Internacional dos Amigos do Oriente, com a
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publicação de novo catálogo e alterações sensíveis nas obras em presença. Assim, o Museu de Arte Sacra do Funchal, sendo a unidade museológica por excelência da Madeira, tem vindo a desenvolver a sua acção na protecção, conservação, investigação e divulgação das colecções patrimoniais e artísticas existentes na diocese do Funchal. Apesar das dificuldades existentes, desde sempre, no financiamento dos seus vários projectos, a colaboração de várias vontades tem permitido a persecução dos seus objectivos. O Museu pretende desenvolver o trabalho iniciado e concretizar, por exemplo, o seu próximo desafio, respondendo à sociedade da informação. Assim está a ser criado um Sítio na Internet, previsto para o primeiro trimestre de 2007 e a informatização dos seus inventários, recorrendo ao programa Matriz, neste momento em início de implementação. Na Direcção Regional dos Assuntos Culturais, Direcção de Serviços de Museus, inicia-se agora um projecto, o da implementação do Núcleo Histórico de Santo Amaro, que dá continuidade à reformulação iniciada nos anos 90 das unidades museológicas em presença na Madeira, assim como ao da continuidade na criação de novos projectos. Desde o final dos anos 80 do século XX, que nasceram novos Museus como a Casa-Museu Frederico de Freitas, o Museu Etnográfico da Madeira, ou, já em 2004, o reequipamento e alteração radical do programa científico da Casa-Colombo, Museu do Porto Santo. Foi ainda dado apoio à criação de outros projectos de natureza institucional diversa, como o Núcleo Museológico A Cidade do Açúcar e o Museu Henrique e Francisco Franco, ambos do Departamento de Cultura da Câmara Municipal do Funchal. Estas alterações permitiram ainda mudanças no Museu da Quinta das Cruzes, iniciado que foi, por exemplo, o trabalho de criação de catálogos monográficos sobre as suas colecções, ou o seu equipamento em monitorização das condições de conservação preventiva, ou ainda a realização de eventos temporários, como a exposição Um Olhar do Porto, Colecção Jorge Mota. Esta exposição concretizou uma vontade antiga de equacionar o coleccionismo de artes decorativas, raiz do próprio Museu, com a presença de uma exposição integrada sempre que possível nas áreas de exposição permanente. Algum pioneirismo tem tido esta unidade na aquisição patrimonial, preenchendo, dentro de limitações, áreas em falta ou prioritárias nas suas colecções. Neste momento, a Direcção de Serviços de Museus organiza a implementação de um novo projecto nas cercanias da cidade do Funchal, que visa reconhecer a importância da posição estratégica do arquipélago da Madeira na expansão portuguesa, e desenvolver a ideia da formação da propriedade e do primeiro povoamento. No que é uma pequena parte da antiga fazenda de Garcia Homem de Sousa, genro de João Gonçalves Zarco, primeiro Capitão Donatário do Funchal, sobrevive uma construção, hoje, de apenas um piso, atribuída
à segunda metade do século XV e que é um dos mais antigos vestígios de arquitectura civil no arquipélago, popularmente designada Torre do Capitão e um dos primeiros exemplos de arquitectura portuguesa fora do território continental. Neste espaço, assim como na Igreja de Santo Amaro reconstruída no século XVIII, que lhe é fisicamente muito próxima, está a ser desenvolvido um projecto de natureza museológica, que tem por objectivo dar a ver os vestígios patrimoniais arquitectónicos sobreviventes, e as espécies arqueológicas recolhidas a quando de várias campanhas realizadas, com a colaboração do departamento de arqueologia da Câmara Municipal do Funchal. O projecto de intervenção nasce do trabalho conjunto da Direcção de Serviços de Património, do arquitecto Victor Mestre e da Direcção de Serviços de Museus da Direcção Regional dos Assuntos Culturais. No plano inclui-se uma pequena Casa de Romeiros e um edifício contemporâneo, onde se apresentará a maioria dos conteúdos programáticos. O projecto em desenvolvimento, estabeleceu como prioridade programática a criação de um circuito pedonal que envolve os três edifícios principais, criando como princípio ordenador a leitura da arquitectura, dos conteúdos arqueológicos e de referentes patrimoniais artísticos adquiridos, que permitirão um reforço na análise das várias épocas históricas, balizadas sobretudo entre o século XV e o século XVII. A criação de níveis de leitura, assim como o apelo à interactividade e às novas tecnologias, com particular relação com os serviços de educação, criará novas formas de atenção às várias camadas populacionais que a nova unidade pretende chamar ao Museu. A igreja de Santo Amaro, que faz parte do circuito, completamente ardida nos anos noventa do século XX, é agora alvo de trabalho profundo de restauro. Foi decidida a recuperação da sua funcionalidade, como vector primeiro da sua preservação e entendido o seu reequipamento, com materiais contemporâneos. Assim, foi feito convite ao pintor Pedro Calapez para que, recuperando a ideia de retábulo ou políptico, criasse uma peça destinada à parede cimeira do altar-mor e ao escultor Rui Sanches uma mesa-altar, que marque fisicamente o espaço da original, hoje desaparecida. Assim, a apresentação de dois casos sintomáticos, como o Museu de Arte Sacra do Funchal e o novo projecto do Núcleo Histórico de Santo Amaro, podem revelar parte do impulso renovador dos Museus da Ilha da Madeira e da forma como se tem vindo a processar uma nova preocupação em actuar perante os desafios da sociedade contemporânea.
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exposições
hist贸ria e mem贸rias
Fig. 1 Adília Alarcão no Museu Nacional de Machado de Castro © Catarina Alarcão, 2007
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José Luís Porfírio e Graça Filipe Museus, um assunto por resolver Uma conversa com Adília Alarcão
A partir da articulação de fragmentos de uma longa conversa com Adília Alarcão, os autores procuram contribuir para um retrato desta, embora incompleto, considerando-a uma das profissionais mais marcantes das últimas décadas da museologia em Portugal, reconhecida pela sua personalidade e pela sua presença tão discretas quanto fortes. Centrando-se nos testemunhos sobre o seu percurso e as experiências projectadas sobretudo no Museu Monográfico de Conímbriga e no Museu Nacional de Machado de Castro (em Coimbra), foram privilegiados os aspectos da acção e do trabalho dos museus ligados à formação, às competências e aos perfis profissionais, à administração e à direcção de museus e ao seu papel social. Following a long conversation with Adília Alarcão, the authors try to give an account, albeit incomplete, of one of the most remarkable professionals of Portuguese museology of the last decades, known for her discreet yet strong personality and presence. Focusing on the legacy of her experiences, mainly at the Museu Monográfico de Conímbriga and the Museu Nacional de Machado de Castro (in Coimbra), the authors value aspects related to the work of museums, in connection with professional training, competences and profiles, museum administration and direction and their social role.
PALAVRAS-CHAVE: Adília Alarcão, Museu Monográfico de Conímbriga, Museu Nacional de Machado de Castro, conservador de museu, director de museu, profissionais de museu, gestão de museus.
José Luís Porfírio: Conservador de museu Graça Filipe: Directora do Ecomuseu Municipal do Seixal gracafilipe@mail.telepac.pt
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história e memórias
“I
sto não é uma entrevista, está a ser uma conversa” disse Adília Alarcão (A. A.) sensivelmente a meio do dia, de um dia iniciado relativamente cedo, à porta da sua casa de Coimbra e terminado cerca de 10 horas depois, quando achámos que era necessário regressar a Lisboa, com algumas notas manuscritas e muitas horas de gravação nem sempre entendível, como se veio a revelar depois. Sobrava a memória viva do nosso encontro e uma multidão de fragmentos que, pouco a pouco, se foram reconstituindo enquanto discurso, articulando-se num bom número de temas fortes, que podem contribuir para um retrato, incompleto embora, de A. A. Com uma personalidade e uma presença tão discretas quanto fortes, a nossa entrevistada só fala de si porque tem de ser. Fala de problemas, de situações, de pessoas marcantes e, através deles, de si vai falando. O seu testemunho não é memorialístico e, quando o é, nunca é saudosista; porque é, sempre, feito de uma presença, quando não de uma urgência, que tem a ver com a acção, com o trabalho. É essa acção e é esse trabalho que estes fragmentos de um discurso sobre os Museus, “um assunto por resolver”, procuram evocar. Formação e percurso inicial Depois de, em 1958, se licenciar em histórico-filosóficas na Faculdade de Letras de Coimbra, A. A. não se sentia com vocação para ser professora mas, por necessidades económicas, deu aulas, primeiro em Abrantes, no ano lectivo 1958-59, e depois no Porto, onde Jorge Alarcão, seu marido, fora colocado. O casal tinha antes tentado uma colocação em Guimarães, já com o objectivo do que seria depois o trabalho de toda uma vida - a arqueologia - já que a Sociedade Martins Sarmento necessitava, naquela época, de muito apoio e trabalho. A. A. trabalhou assim no ano lectivo de 1959/60 na Escola Industrial do Infante D. Henrique. Decisivo para a sua formação humana e profissional foi o encontro com o Dr. João Manuel Bairrão Oleiro, seu professor em Coimbra, arqueólogo muito conhecedor, moderno e actualizado “a primeira pessoa em Portugal a ter uma ideia correcta da conservação científica”. Foi fundamental o papel de Bairrão Oleiro na atribuição ao casal Alarcão não de duas bolsas mas de “bolsa e meia para ficar mais barato”, segundo os económicos costumes do tempo que A. A. sublinha sem ironia. Em Inglaterra, A. A. frequenta, de 1960 a 1962, o curso de conservação e tecnologia de objectos arqueológicos e artísticos do Instituto de Arqueologia da Universidade de Londres, uma formação mais prática e menos académica que a pós-graduação em arqueologia europeia que o seu marido, depois de uns meses como ouvinte, foi convidado a fazer “a sério”, embora tenha levado igualmente a sério e até ao fim, o curso de conservação em que estava desde início matriculado. O curso de conservação e tecnologia era aberto a candidatos com ensino secundário o que acontecia sobretudo com alunos provenientes das ilhas britânicas, enquanto os não ingleses eram, na generalidade, já licenciados. Só anos mais tarde o curso teve uma correspondência universitária com o equivalente diploma; assim sendo, de um ponto de vista oficial e burocrático, ele não “servia para nada” em Portugal. Em Inglaterra, obviamente era o contrário que acontecia. A seguir à sua formação londrina, A. A. teve convites que lhe deram a possibilidade de continuar a trabalhar naquele país, em Londres, no British Museum, ou em Oxford, no Ashmoleum. Particularmente tentador para ela e seu marido, foi um convite para os Estados Unidos vindo do Corning Museum of Glass, com as possibilidades de estudo, formação contínua e viagens que uma instituição economicamente poderosa confere. O regresso a Portugal, ainda no verão de 1962, foi sobretudo motivado por uma noção do dever e por “sentimentos de lealdade para com o país”. Esse sentido de obrigação que se sobrepõe ao interesse ou ao gosto pessoal aparece como algo continuamente assumido na atitude de A. A. – que nada ambiciona, mas que “faz o que é preciso”.
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De Conímbriga (Museu Monográfico) a Coimbra (Museu Nacional de Machado de Castro) É também em 1962 que se inicia o seu longo trabalho no Museu Monográfico de Conímbriga. Para tal teve que contornar o excesso de habilitações, já que tomou posse como preparadora, uma profissão ao tempo existente nas listas oficiais para a Função Pública, no âmbito dos laboratórios e que poderia, com facilidade, ser adaptada ao trabalho na área da arqueologia. Quando para lá foi “o Museu tinha apenas dois meses e era excessivamente pobre, estava tudo por fazer, tudo por conservar, com dezenas de caixotes cheios de terra e de material não estudado”. O primeiro trabalho foi mesmo esse, tirar a terra dos caixotes, lavar, distribuir os objectos e os fragmentos. O pessoal era escassíssimo - “tive de o inventar”, afirma como que a sublinhar a dificuldade da tarefa. A. A. estava sozinha, primeiro, mais tarde com duas pessoas, depois, com quatro. Mais uma vez valeu o apoio do Dr. Bairrão Oleiro que, então director do Museu, numa atitude de grande abertura à colaboração internacional, no domínio da arqueologia, convidou R. Etienne, da Universidade de Bordéus, a desenvolver um projecto de longa duração (1964-79) em Conímbriga. No apoio financeiro colaboraram três entidades: a Fundação Calouste Gulbenkian, o Ministério dos Negócios Estrangeiros Francês, e o nosso Ministério da Educação, que nesse tempo era a tutela oficial dos Museus. O subsídio atribuído permitia pagar em cada ano um mês de escavação, assim como muito do trabalho de conservação e estudo dos materiais recolhidos. A propósito desse tempo A. A. lembra, divertida, a muita gente nova e inexperiente que então trabalhou com ela e que ajudou a formar na área das actividades arqueológicas de campo e de gabinete, com especial relevo para o desenho, que considera particularmente importante. Ajudava-os também na gestão doméstica do dinheiro, já que muitos lhe pediam para guardar os valores anuais recebidos, disponibilizando-os depois mensalmente, como se de um salário se tratasse. Ao cabo de quatro anos em Conímbriga, em Dezembro de 1966, a fim de poder contratar um desenhador sem acréscimo de despesa para o erário público, procede a uma manobra particularmente perigosa do estrito ponto de vista do funcionalismo: pede a exoneração do cargo de preparador, que oficialmente vinha exercendo. Para esta operação, mais uma vez contou com o apoio de Bairrão Oleiro e logo em Abril do ano seguinte “regressa” oficialmente à casa, desta vez como auxiliar de naturalista, uma profissão inventada ou emprestada, a partir da geologia. A. A. será oficialmente auxiliar de naturalista por muito pouco tempo. A saída de Bairrão Oleiro para Lisboa abriu-lhe um novo destino profissional. Em Maio de 1967 foi nomeada directora do Museu Monográfico de Conímbriga e será como directora, primeiro em Conímbriga, depois no Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra, que irá processar-se, até 2005, a sua longa carreira. Embora muito mais recente, a experiência no Museu Machado de Castro pode ser comparada nas dificuldades iniciais com a de Conímbriga, até porque a situação de “projecto de requalificação do MNMC” impunha com urgência medidas que preparassem o espaço e as colecções para uma intervenção iminente. “Quando necessário devemos fechar um museu e eu fechei-o duas vezes embora dissessem que era uma vergonha fechar um museu tão importante e único na cidade como o Machado de Castro” – afirma A. A., justificando: “Mais importante era conhecer bem a situação, diagnosticar os problemas mais graves, desinfectar, desinfestar, ir percebendo o que eram as colecções, a partir de umas reservas inexistentes ou que «eram nada» e inventar reservas provisórias mas funcionais”! Teve uma enorme necessidade, quando entrou como directora, de ler toda a documentação existente, de ver todas as fotografias que mostrassem a evolução do Museu e, sobretudo, de “não mexer no Museu sem ver tudo o que os outros tinham feito antes”.
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A situação do pessoal no Museu Machado de Castro, parcialmente desmotivado e dando uma imagem injustamente negativa para o exterior era, essa sim, bem diferente da situação inicial de Conímbriga. Foi preciso apanhar a motivação das pessoas, sobretudo daquelas que tinham ideias “mas não estavam suficientemente amadurecidas por falta de prática ou incentivo”. Coisas tão simples como reorganizar os espaços, “tornando-os mais agradáveis, operacionais e confortáveis“, ajudaram à diferença traduzida em mais concentração no estudo e mais alegria no trabalho de cada funcionário. O lema era aproveitar ao máximo as potencialidades de todos, incluindo guardas e (ou) auxiliares, numa limpeza mais especializada (móveis), no tratamento dos têxteis ou nos domínios da arqueologia, fugindo às mais estritas e limitativas definições oficiais das carreiras, relacionando todos o mais possível, desde que devidamente enquadrados, com a gestão das colecções do Museu. Outra preocupação foi a da ligação com a cidade de Coimbra, numa certa esfera cultural e académica, não só abrindo o Museu ao estudo e à divulgação de colecções particulares, mas também na abertura a uma educação patrimonial centrada em alguns dos espaços relevantes da cidade, ampliando desse modo a programação das actividades educativas do Museu. Dado que muitos “médicos, professores e comerciantes, entre outros, possuíam pintura portuguesa dos finais do séc. XIX e do séc. XX, sobre a cidade, surgiu a ideia de convidá-los a deixar estudar e expor essas obras”. O convite resultou e foi um momento de convívio alargado, dos mais profícuos para a divulgação do papel deste museu. Directores de Museu Uma tão longa experiência, de quase 40 anos, como dirigente, conduz A. A. a debruçar-se sobre os problemas da situação de director que tão bem conhece. Problema maior, constante e permanente ao longo de toda a sua carreira, é o do dinheiro – as famosas verbas, no vocabulário da função pública, cuja evolução ao longo dos tempos sintetiza em três exemplos: - Antes do 25 de Abril, o dinheiro não só era muito pouco como estava severamente controlado com imediata responsabilização do director, obrigado a repor as faltas que se verificassem. Contudo, havia uma grande estabilidade que se reflectia beneficamente no trabalho. - Pelos anos 80, há um período de relativo desafogo, com “mais possibilidades e mais dinheiro” muito embora este nunca estivesse garantido, já que “na segunda metade do ano e muito especialmente no seu período final, a partir de Novembro, podiam sempre aparecer os cortes que nos deixavam completamente desarmados”. - A situação mais recente, depois do aparecimento do Instituto Português de Museus (IPM), muito mais interventivo na gestão dos museus, tendeu, muitas vezes, para uma desresponsabilização dos directores, pois passou muita coisa a ser gerida ou simplesmente paga directamente pelo Instituto. Actualmente, a informatização generalizada da contabilidade, disponível em linha, permite ao próprio Ministério das Finanças uma intervenção directa, não anunciada, “em coisas que são da gestão do dia-a-dia” interrompendo, perturbando ou modificando o trabalho interno dos museus. O mais prejudicado é, naturalmente, o planeamento. Para A. A. “Os Governos deviam ter pelos museus o mesmo interesse que admitem ter pelas escolas ou pelos hospitais”, daí que uma missão fundamental do director seja fazer sentir essa necessidade muito para além do aspecto meramente decorativo que tantas vezes é oficiosamente atribuído às instituições museológicas. As relações com a tutela são a primeira linha dessa relação com o Estado. Por vezes, a tutela é claramente tutelar em excesso e nem sempre tem sabido mostrar
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sensibilidade e trato humano adequados para resolver assuntos delicados; em certos casos, seria preferível a tutela apoiar um director em exercício, informando-o, contribuindo para lhe aperfeiçoar o gosto e a sensibilidade, através, por exemplo, de um “grupo de trabalho que trabalhe”, fugindo ao voluntarismo que conduz a processos sumários de exclusão, que trazem consigo danos morais consideráveis. A tutela deve sentir-se responsável pelo pessoal dirigente que tem a seu cargo e apoiá-lo, o que, segundo a opinião de A. A. é uma situação preferível a alternativas que nem sempre são válidas e podem deixar muito a desejar. A figura, hoje cada vez mais apreciada, do director/gestor suscita dúvidas a A. A.: “só um museu muito, muito grande admite um director/gestor. Recordo quando tal sucedeu em 1970 no Metropolitan Museum de Nova Iorque, uma opção nessa altura recebida com muita precaução.” Num caso como esse o director até pode ser um gestor de carreira porque a instituição está organizada em departamentos cujos directores completam e contrabalançam a falta de formação específica na área da museologia. “Ganhar competências?” - é igualmente pela dúvida que A. A. encara a actual formação de pessoal dirigente, incluindo os directores dos museus, levada a cabo pela Administração Pública. Não tendo sido obrigada a frequentá-la, uma vez que entretanto se aposentou, não se desinteressou pelo assunto no contacto com colegas no activo: “Ainda não encontrei um director que me dissesse que este curso na Administração Pública está adequado às necessidades dos museus” e acrescenta, citando literalmente um testemunho pessoal, que um director lhe disse: -“Eu não me lembro de ter estado tão cansado nem de me sentir tão estúpido!”. Para A. A. as pessoas sabem que não têm preparação para entender aquilo que lhes é ministrado e pouco encontram de útil nesses ensinamentos, não por incompetência dos professores, mas pela total inadequação da formação relativamente às suas necessidades: “Afinal há todo um problema que é preciso equacionar e que não se resolve com colagens. É aqui que se coloca, ou recoloca, o problema dos gestores”. Abordada a eventual vantagem de chamar à direcção dos museus professores universitários, A.A adverte que “pode até ser muito perigoso”, para logo a seguir acrescentar: “mas também pode ser um bem, existem entre nós exemplos nos dois sentidos”. O que conta para o trabalho da direcção “não é tanto o conhecimento em profundidade” próprio do universitário, “é mesmo a sensibilidade e a liderança”, já que “não sendo assim não funciona” e insiste nos aspectos para si mais importantes, que são “ a qualidade do olhar”, “a sensibilidade ao objecto”, “ o registo rápido de situações”, “a atenção às pessoas”, “a cultura insatisfeita”. A. A. tem bem presente o tempo em que a situação financeira dos directores era “uma vergonha”, facto que foi publicamente assumido por Vasco Pulido Valente quando, em 1980, foi Secretário de Estado da Cultura. Antes dessa data, com a proliferação de contratados “além do quadro” houve situações de escândalo em que directores de museu ganhavam substancialmente menos do que os conservadores seus subordinados (o mesmo acontecendo com os Chefes de Secretaria). A situação mudou, mas permaneceu uma classificação dos directores de museu que sempre indignou A. A., pois é desprestigiante para as pessoas e as instituições. Pessoalmente sentiu-se beneficiada quando, por acção de Maria Alice Beaumont em grupo de trabalho, a direcção de Conímbriga passou a estar equiparada a museu nacional, isto é a uma Chefia de Serviço. Neste aspecto em particular, com a possível excepção do Museu de Arte Antiga, pela sua complexidade, sempre defendeu o sistema anglo-saxónico, no qual os directores são classificados, e pagos, segunda a sua competência, curricularmente comprovada, e não pela importância aleatória e discricionariamente atribuída ao museu onde trabalham.
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Ser Directora A. A. diz ser “um director-operário, porque tenho mais jeito para trabalhar do que para teorizar e gosto muito de tudo, de fazer coisas” e essas coisas são mesmo todas as coisas, da mais importante à aparentemente mais banal, fazendo, sempre, “o que é preciso”. Daí que A. A. não escolha ou deliberadamente não queira eleger o seu trabalho preferido, ou o seu museu preferido. Conímbriga ou Machado de Castro tanto faz, porque “era trabalho” e, por isso mesmo, tinha que ser feito e, por isso mesmo, era bom! Esse gosto, que também é uma exigência ética, é fruto de uma atitude e de um comportamento pessoal, já que “a gente faz porque quer e pode fazer; e se quiser fazer mais, pode fazê-lo, só que ninguém no-lo pede!” “Não vale a pena ser director pelo dinheiro ou pela posição social, mas sim pelo projecto. Eu ponho tudo ao serviço do projecto, interessa-me tudo e em primeiro lugar mobilizar pelo exemplo o restante pessoal” – diz-nos A. A., que actua numa linha transversal às hierarquias, mais atenta às pessoas e às suas capacidades reais do que a uma definição oficial de funções. Ao trabalho interno, a essa abertura exigente às pessoas, corresponde um não menos exigente trabalho externo, numa deliberada abertura “da casa” à vida local, urbana, da cidade, não apenas num sentido de atrair públicos, mas também de consciencialização e de formação artística patrimonial e, logo, cívica. Assim, deve-se “aproveitar toda a espécie de colaboração”, quer a nível individual (bolseiros), quer ao nível das mais variadas instituições. Passa por aqui uma atenção às colecções que não se deve limitar à sua dimensão artística, arqueológica ou histórica, entendendo cada objecto e o seu conjunto de um ponto de vista físico, material, para que “a nossa relação com o objecto e o nosso entendimento sobre ele sejam o mais completos possível.” Profissionais de museu – vocação, saberes e saber-fazer Para A. A. os museus, enquanto “organismos complexos”, que “não devem ser estereotipados nem normalizáveis”, “devem reflectir a pessoa ou o grupo que está à sua frente”, ou seja, “o museu que tal não faça é uma mera exposição, não está vivo!”. A importância que atribui aos profissionais engloba assim, quer os aspectos da liderança, da responsabilidade pessoal e da coordenação interna, entre todas as pessoas, quer a adequação e a adaptação de perfis, face à especificidade do trabalho de museu, em geral e de cada instituição, em particular. Não obstante serem atributos de forma geral valorizadores de qualquer desempenho profissional, A. A. aponta como particularmente relevantes entre os profissionais que se dedicam aos museus a autodisciplina, uma boa autogestão do tempo de trabalho, a entreajuda e a capacidade de reflectir sobre a sua própria actividade, assim como de tomar iniciativa dentro de uma equipa. Sem perder a perspectiva da integração e do aproveitamento de recursos, defende uma certa polivalência de funções em profissionais de museu, atendendo às exigências de funcionamento de equipas em geral pequenas. Dando o exemplo dos guardas que estejam confinados a essa função, constata, através da sua experiência, que “a organização habitual dos museus gera preguiça mental e aquela gente sente-se segregada”. Mas “gostar do ofício” é para A. A. uma das qualidades ou características básicas para um profissional se adequar ao trabalho de museu, assim como “gostar de objectos, senti-los – há muita gente, técnicos e outros, que não gosta de objectos – ser
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polivalente – ser «manual», saber investigar, gostar de técnicas, ser curioso acerca delas – interessar-se pelo funcionamento da matéria”. Por outro lado, evocando-nos a sua experiência em termos museográficos na concepção do espaço e do ambiente expositivo, A. A. elege a “sensibilidade à cor” como indispensável, no que concerne as qualidades sensoriais, isto independentemente de se tratar ou não de um museu vocacionado para a arte. As necessidades de formação e dos meios devidos à qualificação dos saberes, em particular na área da conservação, merece uma ênfase constante por parte de A. A., ao ponto de acabar por nos revelar um projecto acarinhado por si e não realizado: “ A minha maior ambição foi, no início de 1990, deixar de ser directora de Conímbriga para me dedicar exclusivamente à conservação, podendo trabalhar lá, criando lá e desenvolver uma verdadeira escola prática de conservação, na sequência das experiências dos cursos realizados em 81 e 87. Não aconteceu, não me levaram a sério!” No conjunto dos profissionais de museu, A. A. atribui particular importância aos conservadores e aos técnicos que actuam como tal, considerando que este grupo não está suficientemente reconhecido na regulamentação profissional actual e que tal facto deve ser revisto, em função da experiência e da qualidade de desempenho das pessoas que trabalham nas instituições: ”eu acho vexatório para os museus, mais ainda do que para os técnicos, quando não podem chamar-lhes conservadores, não obstante há anos desempenharem essas funções, muitas vezes em grande solidão”. Analisa também de forma crítica o resultado da integração de numerosos técnicos superiores, como um meio de providenciar recursos humanos “globalmente infeliz e uma invasão de licenciados na mesma área sem preparação específica”. A. A. considera que “a existência de não conservadores pode ser essencial, embora sempre como complemento [àqueles]”. Para ela, mesmo na área educativa, “os SE devem existir com a orientação de um conservador especialmente vocacionado e com pessoal limitado, devendo utilizar prestadores de serviços especiais contratados projecto a projecto”, evitando que a estrutura do museu se torne demasiado pesada e rotineira. Mas tal só é possível quando o orçamento anual do museu é conhecido com suficiente antecedência e se mantém estável ao longo do ano a que diz respeito.
Este, “para além da indispensável formação universitária, deve passar por uma triagem que o Instituto Português de Museus – agora em conjunto com a Rede Portuguesa de Museus – pode e deve estabelecer, não bastando uma avaliação de curriculum (ainda inexistente no caso de um primeiro contrato) seguido a meia hora de conversa”. A par dos saberes, A. A. acentua a necessidade incontornável do saber-fazer, do efectivo desempenho profissional, em contexto de museu. Quando presidente do Instituto Português do Património Cultural, J. da Palma Ferreira, advogou a existência de, pelo menos, três museus normais. A. A. aplaudiu a ideia, embora reduzindo o número, para garantia de qualidade e propondo a integração, nas provas de acesso, de oito dias de trabalho intensivo num desses museus. Uma questão que a incomoda é, pois, a “facilidade com que se chega ao topo da carreira”, mesmo “os que não têm de modo algum o perfil adequado”. Num campo profissional tão complexo e exigente, A. A., cujo percurso se reflectiu indelevelmente na construção de saberes de quantos tiveram o privilégio de progredir profissionalmente junto dela, coloca em realce o factor da avaliação de desempenho, que em sua opinião se deveria centrar no trabalho pessoal. “Eu sou muito eclética”, diz. Mas esse ecletismo não é diletante, assume-o com uma exigência do cargo onde a profundidade e a vastidão do saber têm que ser temperadas com a vastidão e a multiplicidade dos problemas e até das urgências. Por isso, frente ao saber próprio, valoriza sobremaneira os saberes alheios, resultado muitas vezes de um testemunho que pretendeu passar e que resume de um modo lapidar: “Pôr toda a gente a saber mais do que eu! “
Embora manifestando-nos indiferença pela terminologia de conservador versus museólogo – “se querem chamar-lhes museólogos podem ser museólogos” – mantém-se muito atenta aos problemas ligados com o seu perfil e a sua formação. Adverte que “um curso de Museologia não forma pessoal de museus”.
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Fig. 1 Museo do Chiado - MNAC Exposição Columbano Bordalo Pinheiro. 1874-1900 © Maria Manuel Conceição, cortesia Museu do Chiado - MNAC
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Henrique Coutinho Gouveia Evocação da museologia portuguesa novecentista1 A propósito da Lei-quadro de 2004
Evocação sumária do panorama museológico português do século transacto, tendo em atenção a Lei-quadro publicada em 2004. Referência inicial às principais balizas legislativas desse período, seguindo-se uma apreciação do panorama pós-25 de Abril feita em função dos factores considerados mais significativos. Trabalho opinativo fruto de uma observação atenta da realidade museológica actual, cuja importância deve ser salientada na produção de bibliografia da especialidade. Brief invocation of Portuguese museology of the last century, focusing also on the Framework Law published in 2004. With initial reference to key legal policies of that period, followed by an appreciation of the post 25 April reality, bearing in mind factors considered more significant. Although essentially a personal point of view, this article is, nonetheless, based on a careful observation of the current museological reality, whose importance must be emphasized when considering specialized bibliography.
PALAVRAS-CHAVE: Museologia histórica, legislação, século XX, Portugal, educação, ensino, inovação museológica, avaliação museológica.
Doutoramento e Agregação em Antropologia / Museologia (FCHS / UNL) | mhgouveia@sapo.pt
O
século findo perfila-se como quadro de referência do panorama legislativo da museologia portuguesa, ainda que se possa apontar um ligeiro desfasamento inicial pois só com a mudança de regime, ocorrida no final da primeira década, se viriam a introduzir as mudanças que tornam possível estabelecer com precisão uma primeira baliza cronológica. Na perspectiva que se pretende contemplar, um balanço de situação aponta hoje em dia para a legislação de base vigente a partir de 2004 como um novo marco. O estudo da evolução do pensamento museológico tem na legislação da especialidade uma referência tanto mais significativa quanto permite prever um potencial no tocante à aplicação que lhe é inerente e cujo sucesso constitui afinal o objectivo pretendido. Uma avaliação dos desfasamentos ocorridos adquirirá também por certo a evidência necessária para que possam ser convenientemente assinalados. Nessa óptica, a opção por 1911 e 2004 para a delimitação histórica desta evocação não parece susceptível de objecções.
1 A versão inicial deste texto foi preparada em 2003 na intenção de que viesse a ser integrada, a título introdutório, na Lei-quadro dos Museus Portugueses em preparação na altura e que o Autor assessorou. Posto que seja evidente a sua utilização na apresentação oficial desse diploma que viria a ser feita, o distanciamento tornar-se-ia sensível pelo que acabaria por servir de base à súmula opinativa que agora vem a público.
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Estar-se-á portanto perante um horizonte secular no âmbito do qual poderão ser apontados três diplomas legislativos de maior alcance, a que será no entanto possível adicionar mais algumas iniciativas que permitem ter em consideração aspectos complementares de interesse. Pormenorizando, serão de citar a este respeito o Decreto Nº 1 de 26 de Maio de 1911, o Decreto Nº 20.985 de 7 de Março de 1932 e o Decreto-lei Nº 46.758 de 18 de Dezembro de 1965, compreendendo este o Regulamento Geral dos Museus de Arte, História e Arqueologia. Em 1917 seria avançada uma proposta legislativa para substituição do diploma então vigente que não se chegaria contudo a efectivar. Na década de vinte publicar-se-ia a Lei nº 1700, de 18 de Dezembro de 1924, cujo Regulamento, datado de 13 de Fevereiro de 1926, se situaria já a poucos meses de nova mudança política, pelo que o seu horizonte ficaria reduzido a seis anos, coincidentes com um contexto de mudança pouco propício à sua aplicação. O diploma datado dos começos dos anos trinta acabaria também por ser complementado por legislação saída passados quatro anos. O primeiro dos três diplomas principais citados constituiria a base da acção desenvolvida no domínio museológico no decurso da 1ª República, sendo de assinalar que se poderá qualificar esse período como correspondendo à tentativa de implementação no país de uma política para o sector. Isto porque se patenteiam então vectores que procuram imprimir ao panorama português da especialidade um desenvolvimento coerente. Um propósito de consolidação dos museus localizados na província mediante a tutela da administração central, por certo mais consistente do que as anteriores no geral municipais, procurava conciliar-se com uma via de descentralização que a divisão do país em circunscrições e as competências que eram atribuídas a essas entidades no domínio museológico vinham consagrar. No projecto de lei de 1917, bem como na legislação saída nos anos vinte, o propósito de descentralização manter-se-ia posto que manifestando-se igualmente a tendência para uma coordenação unificada. O diagnóstico da situação anterior contido no Decreto publicado no início dos anos trinta, que vinha justificar a extinção dos órgãos de descentralização criados, não seria suficiente para conferir à componente desse diploma especificamente dedicada aos museus uma projecção de relevo. Avultava apenas a formulação de uma tipologia para os estabelecimentos existentes no país, mas cuja fundamentação carecia de um maior apuramento. Residirá aí por certo a razão pela qual este decreto viria a ser apelidado de “carta orgânica dos Museus” portugueses2. De acrescentar contudo que em 1936 seria organizada a Junta Nacional de Educação, entidade à qual seriam subordinadas em parte as actividades dos museus3.
2 A expressão é de João Couto, tendo este escrito que “é ainda a carta orgânica dos Museus”. De notar portanto que na Tese por ele apresentada ao II Congresso Transmontano era frisada “a necessidade de rever e ampliar a legislação” em vigor, recomendação que figuraria nas Conclusões do encontro. V. COUTO 1941: 10, 13 e 25.
O Regulamento Geral vindo a público em meados da década de sessenta pode considerar-se como o culminar de um processo de modernização dos museus portugueses em vias de concretização que teria na figura de João Couto o seu principal protagonista e no Museu Nacional de Arte Antiga a instituição motora4.
3 V. Decreto-Lei nº 26.611, de 18 de Maio de 1936. Este aspecto foi também sublinhado por João Couto numa apreciação feita aos dois diplomas legislativos agora citados. V. COUTO 1941: 10-13.
Evidencia-se aí muito especialmente a existência de um capital de conhecimentos e de experiência relativos ao mundo dos museus que se não encontrava ainda presente nos diplomas precedentes e que denunciava influências das mudanças globais operadas ao longo das três décadas entretanto decorridas que, muito embora comportando um período de tragédia europeia, se tinham revelado ricas dadas as transformações verificadas. De salientar será ainda o facto de se estar pela primeira vez perante legislação consagrada exclusivamente aos museus, explanando um
4 Segundo informação transmitida por Natália Correia Guedes, a preparação do documento viria a ser cometida a Mário Tavares Chicó, o que não retira peso à influência tutelar focada.
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pensamento coerente e devidamente actualizado, muito embora com uma incidência parcelar tanto do ponto de vista disciplinar como patrimonial. Ao excluir formalmente a presença da etnologia do domínio museológico, a legislação a que se acaba de fazer menção parece passível de crítica, inclusive porque se tinham registado já tomadas de posição contraditórias a esse respeito no plano regional5. Um exame mais detalhado do diploma permite no entanto detectar o papel atribuído a essa disciplina tanto a nível central como no caso dos museus regionais6. O quadro museológico do país explicava também por certo o alheamento da história natural, não obstante a importância que detinha. Como achega a esta questão, será ainda de salientar que na vigência do Regime do Estado Novo, que se iria prolongar ainda por cerca de uma década, seria para o contexto da museologia etnológica que iria transitar o papel inovador até então desempenhado pelo sector da arte. A instituição protagonista seria então o Museu de Etnologia do Ultramar, que teria em Jorge Dias e Veiga de Oliveira as figuras mentoras. Os últimos vinte e cinco anos do século passado configuram igualmente um quadro de mudança no contexto museológico português, de que a alteração de regime ocorrida se patenteia como baliza cronológica intermédia. O relacionamento internacional tornar-se-ia sensivelmente mais notório, sendo também manifestas as consequências daí resultantes a nível interno, tal como seria de esperar numa época em que as repercussões dos acontecimentos e inovações mais salientes atingem uma escala planetária. A carência de nova legislação de base ir-se-ia assim evidenciando progressivamente, impondo por assim dizer que se viesse a desencadear o processo conducente à definição de um novo enquadramento museológico. Essa definição viria contudo a tardar, posto que nos anos oitenta tivessem surgido medidas legislativas, melhorando o exercício profissional, implementando uma nova orgânica central e renovando a situação do ensino e da formação7. Entre os factores comprovativos da mudança interna a que se acaba de fazer referência emerge claramente o crescimento muito acentuado do número de museus existentes no país, elemento de diagnóstico entretanto comprovado por inquérito. Esse trabalho de pesquisa contribuiu todavia para mostrar que a esse aumento quantitativo acabaria por contrapor-se um acentuado desfasamento qualitativo8. Nesse âmbito é facilmente constatável a importância crescente do universo museológico autárquico, que excede hoje em dia largamente o dos estabelecimentos tutelados pela administração central. E daí que se assista a uma deslocação para o contexto municipal de uma parte substancial dos problemas que urge enfrentar. Importará por conseguinte renovar o quadro do relacionamento entre administração central e local, preocupação que viria a animar a elaboração do diploma presentemente em vigor. Será de sublinhar que devem ser creditados como contributos autárquicos aspectos inovadores da evolução do panorama nacional, em que avulta a adopção de modelos museológicos descentralizados com acentuada projecção nos seus territórios de intervenção, que se procuram documentar tanto numa perspectiva sincrónica como diacrónica. Nesta óptica afigura-se necessário salientar igualmente as achegas afins advenientes dos contextos arquipelágicos madeirense e sobretudo açórico, posto que tendo esses dois contextos vindo a revelar preocupações diferentes. A maior dispersão
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V. GOUVEIA 1985: 17-25, e LEMOS 1931.
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V. Decreto-Lei nº 48.758, de 18 de Dezembro de 1965, artºs 1º, 10º e 12º.
7 V. Decreto-Lei nº 45/80, de 20 de Março, Decreto Regulamentar nº 34/80, de 2 de Agosto, e Despacho de 8 de Julho de 1981. 8
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V. Inquérito... 2000.
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do último gera naturalmente dificuldades próprias em que é patente um esforço de descentralização administrativa regional, secundado de um modo por enquanto quase restrito à ilha de maior dimensão pela intervenção autárquica. No caso da Madeira, é manifesto o propósito de renovação do panorama museológico mediante uma diversificação acentuada dos estabelecimentos que têm vindo a ser criados a um ritmo acentuado, sendo de sublinhar a emergência de novas tutelas e de novos modelos institucionais. De notar que os panoramas museológicos dos territórios atlânticos continuam a patentear um défice bibliográfico que alguns trabalhos recentes têm vindo a atenuar9. Na generalidade das situações apontadas está-se por enquanto perante um panorama largamente experimental, que será necessário debater e avaliar numa perspectiva abrangente de modo a que se possam vir a consolidar as vias já encetadas e a fundamentar melhor a sua prossecução. No plano regional e local serão de ter igualmente em atenção os reforços concretizados em matéria de recursos humanos, inclusive os de índole mais especializada, promovendo-se assim nessa linha a mudança que se perspectiva para o país. Em sintonia com estes avanços julga-se indispensável que se venha a operar no contexto autárquico uma maior autonomização dos museus dependentes e consolidação da sua estrutura, daí derivando por certo melhorias apreciáveis no plano da actuação, constando esta matéria dos elementos de diagnóstico que se devem implementar. Um outro factor a salientar na mudança ocorrida no panorama museológico e patrimonial do país reside na presença significativa de novos sectores governativos na condução da política da especialidade. Essa situação traduz novas preocupações, nomeadamente de índole desenvolvimentista – biológicas, ambientais e paisagísticas – cujos contributos se torna indispensável ter em conta, sob pena de se incrementar o divórcio entre o homem e a sua realidade envolvente, posição difícil de compreender na contemporaneidade. O diálogo intergovernamental acerca de matérias de interesse comum parece continuar contudo eivado de dificuldades que não proporcionam o incremento dos contactos que se prefigurariam como imprescindíveis no tocante à definição de políticas transversais. Numa óptica de análise paralela são de destacar as dificuldades sentidas por sectores governativos com uma presença já antiga no domínio museológico em prosseguir um papel consentâneo com tais antecedentes, o que implica um maior acompanhamento da evolução verificada nos estabelecimentos com as quais mantêm um relacionamento privilegiado. Têm-se aqui sobretudo em mente realidades como as da museologia universitária ou militar, cuja presença em campos disciplinares como os compreendidos na história natural ou no âmbito histórico-patrimonial são por enquanto insubstituíveis. A contracção do papel confiado à administração central no contexto museológico, decorrente do aparecimento e reforço progressivo de um órgão governativo próprio mais vocacionado para um tal exercício terá de ser ponderada, pois poderá contrariar o enriquecimento da realidade museológica do país.
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A crescente afirmação da iniciativa privada no cenário museológico português tem conduzido a novos modelos de enquadramento jurídico-institucional em que uma maior operacionalidade se prefigura como sedutora. Uma tal presença tem levado a que se sublinhem problemas relativos à gestão, não só financeira, que são hoje comuns à generalidade dos museus existentes e que surgem na primeira linha das preocupações quando se trata da criação de novos estabelecimentos. Estes são também aspectos particularmente significativos no quadro de mudança em que o país se encontra.
V. ORMONDE 1996, SILVA 2002, e GOUVEIA 2006.
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São de ter também em atenção as alterações ocorridas na configuração museológica do país tanto do ponto de vista disciplinar como temático. De citar a tal respeito uma maior presença de sectores patrimoniais como o da arqueologia, com uma influência crescente no plano autárquico, a que parece de adicionar o da arte contemporânea, muito embora as repercussões tenham aqui contornos com uma acentuada especificidade. Pelo contrário, áreas como as da história natural, das ciências exactas ou mesmo da etnografia mantêm-se em posições mais modestas, posto que seja indiscutível o papel fulcral que incumbe aos estabelecimentos correspondentes no plano educativo ou da salvaguarda da memória colectiva. Como sector em crescimento a nível regional e mesmo local importa atentar no do património industrial, colocando-se aí problemas específicos como os da dimensão e características dos testemunhos a conservar, do papel desenvolvimentista que se pretende associar com frequência às iniciativas desencadeadas e dos custos envolvidos. Apesar de sensíveis, as alterações do panorama museológico agora focadas não parecem susceptíveis de conferir à inovação o lugar de destaque que seria desejável. Julga-se assim que será de incrementar o aparecimento de estabelecimentos que evidenciem claramente um espírito de renovação, ainda que apenas no plano interno, podendo estar em causa factores de índole temática e disciplinar, de carácter organizativo ou relativos aos modelos institucionais propostos. Uma abordagem mais detalhada deste tópico permite apontar a Madeira e o leque museológico aí emergente como tema de análise, exemplificativo da importância que reveste esta linha de intervenção. Inovação e avaliação criam naturalmente um relacionamento estreito, afigurando-se patente que se depara, no âmbito da segunda, com um dos défices mais expressivos do panorama museológico português. Tem-se aqui em mente um balanço tanto global como sectorial, bem como no tocante às diferentes metodologias utilizáveis. Acresce que as avaliações feitas deverão ser obrigatoriamente divulgadas, conforme se verifica noutros países, pois só desse modo adquirem o alcance pedagógico que se afigura desejável10. Como pano de fundo serão de apontar as ligações que se estabelecem entre o panorama evolutivo esboçado e o advento de novos contextos tecnológicos. Abremse assim novas perspectivas aos museus portugueses, exigindo-lhes novos recursos – humanos, técnicos e financeiros – e confrontando-os com as novas potencialidades que se lhes oferecem mas também com a necessidade de reavaliação e de apuramento de parte das noções museológicas vigentes, devendo ser conferido a este último aspecto particular ênfase. A transferência para o âmbito dos museus de responsabilidades acrescidas em matéria de obtenção de receitas provocaria modificações substanciais na condução das suas actividades, sendo esse um desafio colocado à generalidade do universo museológico. A nível do país as preocupações daí decorrentes têm-se vindo a incrementar de forma notória, traduzindo-se em factores de mudança que emergem claramente nos contornos de caracterização do período em análise. Ausentes quase por completo do rol das preocupações prioritárias dos responsáveis pelos museus, os problemas de índole terminológica e conceptual exigem hoje um esforço de actualização que será prejudicial vir a protelar demasiado. As dificuldades com que se depara a este respeito tornaram-se patentes quando da elaboração da Lei-quadro recentemente publicada, comprovando-se desse modo a importância que as questões agora apontadas revestem. Esta apreciação sumária dos principais vectores de evolução da realidade museológica portuguesa não poderá abstrair-se do plano das realizações, sendo de procurar
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A fim de sublinhar este comentário, será de referir o trabalho Museu Etnográfico da Madeira: Estudo, diagnóstico e reorganização como exemplo de uma iniciativa de maior alcance, a cargo de uma equipa especializada, desencadeado pela Secretaria Regional de Cultura e Turismo daquela Região Autónoma. V. GOUVEIA 2006.
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extrair daí os tópicos de análise mais significativos e linhas de orientação explícitas ou subjacentes. Impõe-se aqui menção ao esforço levado a cabo ultimamente em termos de instalação e reinstalação dos museus portugueses, que se perfila contudo como um campo de reflexão insuficientemente aproveitado. Revendo o que ficou dito, parece que não se deverá deixar de referir o cuidado a dispensar à formulação e aplicação do conceito de museu, visto que este acaba por ter de reflectir a generalidade das apreciações feitas. O tema reveste a maior importância dado terem surgido entre nós novas realizações cuja credenciação se torna impeditiva face aos parâmetros aceites, ainda que estas denotem acentuado interesse tanto em termos organizativos como de funcionamento. Em causa encontrar-se-ão sobretudo o carácter não lucrativo da instituição museu, as competências funcionais que lhe são inerentes ou a política de gestão das colecções e a sua inalienabilidade. Ao considerar-se a evolução operada no plano nacional, avulta naturalmente o facto de a área da cultura e consequentemente os domínios museológico e patrimonial terem sido dotados com sede própria, tendo passado a existir um ministério autónomo. Ocorreria portanto a criação de institutos centrais de enquadramento e tutela para o sector, cuja evolução evidenciaria muito claramente um processo de desdobramento e progressiva especialização. A fim de comprovar essa tendência, será de evocar o percurso iniciado com o projecto de criação de um Instituto para a Salvaguarda do Património Cultural e Natural, que teve sequência no Instituto Português do Património Cultural e de que o Instituto Português de Museus constituiria por sua vez uma nova etapa. Constata-se no entanto que se continua a operar um esforço de ajustamento nesse domínio, traduzível em nova configuração, sendo essa uma realidade de base que poderá comportar aspectos redutores atendendo à complexidade e diversidade das temáticas envolvidas e à interferência de factores determinantes como os de ordem financeira. Numa perspectiva de apreciação afim notam-se diferenças quanto à dependência administrativa dos museus portugueses que, embora benéficas visto envolverem de modo alargado o aparelho do Estado na prossecução das finalidades desses estabelecimentos, propiciam também uma dispersão e desfasamentos que serão de procurar atenuar. A evolução verificada a nível central patenteia assim claramente na área dita da cultura ou no âmbito paisagístico e ambiental uma dinâmica própria que deverá ser sublinhada. Sobressai aqui o sector da educação em que as diversas vias de envolvimento no panorama museológico do país, tanto na qualidade de promotor como de utente, carecem contudo de reavaliação, aspecto a comentar adiante. Depreende-se do que ficou dito que o acentuado desenvolvimento promovido pela administração local na área dos museus, sendo aí também manifestos desequilíbrios e insuficiências, terá que ser apreciado em consonância com as perspectivas de análise global anteriormente avançadas. Não se poderá omitir aqui naturalmente o domínio da iniciativa privada cuja importância crescente não deverá ser omitida, tendo dado origem a novas figuras de enquadramento e modalidades de tutela enriquecedoras do panorama museológico nacional. Para além das assimetrias de índole disciplinar e temática, a realidade portuguesa mostra também desequilíbrios evidentes quanto à distribuição geográfica dos museus existentes, que o trabalho de inquérito que tem vindo a ser realizado permitiu comprovar e aprofundar. São requeridos assim mecanismos de correcção a accionar no seio de uma política museológica lata e coerente, cuja implementação constitui uma das finalidades da legislação recentemente aprovada. Na apreciação da distribuição geográfica dos museus portugueses surgem como critérios de diagnóstico os binómios norte/sul e litoral/interior, prefigurando-se essa
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realidade como um dos problemas que devem ser abordados nos diversos cenários de reflexão. Torna-se essencial neste contexto conceder a máxima atenção ao panorama das regiões autónomas, com problemas específicos já equacionados e que tem vindo a surpreender dada a diversidade das soluções avançadas e a pertinência que algumas delas têm demonstrado no plano local. O empenho posto na cobertura do território no caso da região arquipelágica mais vasta, ou sejam os Açores, merece ser apontado neste contexto, primando na Madeira a diversificação dos estabelecimentos criados, ainda que acompanhada por um propósito descentralizador com efectiva execução. Conforme foi já assinalado, é constatável logo a partir do período oitocentista que a evolução da realidade museológica portuguesa apresenta claras sintonias com o plano internacional, evidenciando assim um clima de abertura naturalmente benéfico. Num passado mais recente resultaram dos contactos havidos com o exterior concepções museológicas que contribuíram para as mudanças operadas a nível regional e local, que foram já postas em relevo. Circunstâncias comparáveis encontram-se na origem de grandes projectos museológicos que marcaram a renovação do panorama nacional, como o do Jardim Zoológico oitocentista, tendo essa via continuidade em realizações mais recentes em que avultam estabelecimentos como o Visionarium, o Pavilhão do Conhecimento / Centro de Ciência Viva ou o Oceanário. A multiplicação de museus com colecções de espécimes vivos – sendo de salientar a tal respeito o panorama meridional do país – deverá ser tema de reflexão obrigatório para aqueles que se venham a debruçar sobre as questões da política museológica portuguesa. Uma visão mais lata deverá remeter mesmo para a projecção em espaço aberto que caracterizou a inovação museológica oitocentista e que entre nós não parece ter tido ainda repercussões com a vitalidade desejável. A presença de museus representativos das ciências naturais e exactas continua todavia a ser insuficiente no país, malgrado os esforços desenvolvidos nesse domínio, de que parecem ter resultado sobretudo realizações de impacto. O impulso de promoção global também desencadeado visando a disseminação pelo país de realizações dessa índole carece por enquanto de uma avaliação concludente. A estrutura sectorizada que fundamenta a noção de museu foi objecto, ao longo da segunda metade do século, de mudanças que tendem a alterar significativamente as características do seu leque funcional. Em causa tem estado sobretudo a possibilidade de uma maior disponibilização dos recursos informativos desse tipo de estabelecimentos e os esforços desenvolvidos nesse sentido. Sucede todavia que as insuficiências funcionais se perfilam como um dos aspectos dos museus portugueses merecedores de um juízo rigoroso, avultando aí o estado crítico de sectores como o dos serviços de documentação ou de reserva, pelo que a inversão dessa situação constitui uma
condição necessária para que se possam promover entre nós projectos análogos àqueles que têm sido tema de debate no âmbito internacional. Está-se aqui em presença de temáticas sedutoras que têm despertado interesse entre nós, concretizado mediante iniciativas pioneiras mas que não suscitaram ainda o estudo, debate, avaliação e divulgação inerentes à importância que lhes deverá ser forçosamente atribuída. A ligação fulcral do domínio museológico com a investigação e o ensino implica que seja conferida à escola uma especial atenção, quer em termos dos seus estabelecimentos de cúpula – como é o caso das universidades – quer no tocante a instituições situadas noutros patamares, mais vocacionadas portanto para intervenções junto de diferentes escalões etários. Os públicos escolares passaram a constituir uma percentagem muito significativa dos visitantes dos museus, envolvendo as camadas jovens que importa fidelizar, proporcionando-lhes o enquadramento adequado sob pena de se introduzirem afastamentos prolongados e difíceis de neutralizar. Importa todavia alertar para o processo de massificação detectável na condução do relacionamento entre os museus e os estabelecimentos de ensino, que carece de correcção, sob pena de se acabar por subverter a aproximação pretendida precisamente em idades em que esta se poderia revelar como mais promissora. O protagonismo das universidades no actual contexto museológico do país advém sobretudo da integração do ensino da especialidade no sistema oficial, tanto em termos polivalentes como das vias de especialização e dos graus conferidos. Tratase de uma aspiração já antiga mas cuja concretização se viria a prolongar, porventura demasiado, como resultado da falta de confluência de esforços das entidades envolvidas no processo. O diálogo com as gerações de profissionais mais antigas viria a revelar-se difícil, não tendo sido possível explorar devidamente o cenário que se patenteava. A evolução ocorrida posteriormente continuaria a processarse sem uma articulação conveniente entre as partes e sem que se tivesse produzido um quadro legislativo apropriado. Os contactos entre as universidades mantêm-se num patamar incipiente, permanecendo ainda por abordar problemas centrais como o dos perfis dos docentes e habilitações requeridas para o exercício de actividades lectivas numa área de ensino especializada e exigente. Insuficiente é também o diagnóstico do panorama de aplicação do ensino ministrado, suscitando-se assim problemas que, embora fulcrais, permanecem em aberto. Como aspecto determinante acresce igualmente a falta de aprofundamento das ligações entre os processos de ensino e de profissionalização, com repercussões manifestas nas capacidades de exercício dos diplomados. É incontestável que do desempenho das universidades no ensino da museologia advieram já contributos sensíveis para a realidade profissional, sendo detectável hoje em dia uma presença significativa nesse contexto da formação aí
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ministrada. A afluência dos estudantes tem sido também manifesta, parecendo importante prevenir consequências negativas que uma situação potencialmente favorável poderá vir a gerar caso não se proceda à avaliação atempada de uma realidade que suscita por enquanto múltiplas interrogações. O trabalho de investigação desenvolvido no contexto universitário a que os estabelecimentos de ensino politécnico poderão vir a prestar contributos de relevo tem deparado com uma situação editorial aparentemente pouco propícia à divulgação dos estudos produzidos. A certificação do panorama editorial apoiado pelo Estado apresenta-se aqui como um problema em suspenso e mesmo esbanjador de recursos, situação porventura mais comprometedora no plano local. A consolidação de publicações periódicas da especialidade não tem sido até agora conseguida, sucedendo-se títulos que se ficaram pelo número de estreia ou que não ultrapassaram uma fase de arranque. O desempenho pleno, por parte das universidades, do papel que lhes deverá ser cometido no âmbito da realidade museológica portuguesa pressupõe naturalmente a redinamização dos museus, cuja tutela lhes foi conferida inclusive porque daí depende a melhoria do exercício do papel pedagógico já mencionado. A tal propósito são de saudar novas realizações promovidas no âmbito universitário, em que as ciências exactas e o património industrial constituem as áreas de incidência, tornando-se indispensável que tais iniciativas frutifiquem. E as vantagens inerentes à participação universitária na realidade museológica envolvente podem ser comprovadas pelo exemplo açoriano, em que uma tal presença permitiu acumular um capital de experiência que terá de ser obrigatoriamente objecto de reflexão. Dir-se-á em síntese que o aperfeiçoamento do projecto pedagógico nacional implica que sejam tidas em atenção as capacidades de intervenção dos museus no seio dos vários universos educativos, em particular daqueles em que se integram os discentes mais jovens. Ora a preocupação educativa marca de forma indelével o universo museológico do século findo, manifestando-se de forma continuada ao longo desse período. Não se pretende naturalmente ignorar que as potencialidades educativas dos museus não se esgotam no relacionamento com o universo escolar e que serão de propiciar as condições que possibilitem o seu pleno aproveitamento. A sua intervenção pedagógica contempla por certo outras dimensões, encontrando-se aqui em causa a condição de estabelecimentos normais que já lhes foi outorgada e que carece hoje de ser devidamente repensada e reavaliada, mas que importa recuperar no âmbito da formação profissional, em particular na de reciclagem. Uma tal situação parece inerente à categoria de museu nacional, que tem vindo a ser objecto de reflexão atenta noutros contextos museológicos, afigurando-se indispensável que se desencadeie entre nós idêntico processo. A reapreciação da figura dos museus nacionais implica que sejam evocadas as principais características detectáveis ao longo de uma presença continuada no país, baseando no diagnóstico daí decorrente a redefinição das suas características e a configuração do papel a atribuir-lhes na realidade contemporânea. A dimensão educativa dos museus terá contudo de ser assumida também nos planos regional e local, devendo as situações decorrentes ser encaradas nas suas especificidades. Daí emergem problemas como os das identidades que se pretendem manter e mesmo reforçar e do envolvimento dos territórios e valores patrimoniais neles sedeados. E são de ter igualmente em conta não só a atenção crescente dedicada pelas populações residentes às questões museológicas e patrimoniais como as aspirações que manifestam quanto ao desempenho de um papel mais participativo nesse domínio.
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Na evocação sumária do panorama museológico do país no decurso do século transacto a que se acaba de proceder a modernização patenteia-se na sua segunda metade como um vector principal, tendo vindo mesmo a intensificar-se nas duas décadas finais. Avultam no entanto linhas de orientação ainda por concretizar em pleno e projectos que se podem considerar em fase de percurso. A oportunidade e pertinência da legislação tida como acontecimento de remate afiguram-se inquestionáveis, posto
que a sua aplicação possa conferir uma maior evidência a algumas das situações menos positivas que acabam de ser apontadas. Terminando com uma referência ao texto em si, dir-se-á que se está sobretudo perante um trabalho de carácter opinativo, fruto de uma observação atenta da realidade focada, entendendose todavia que este é um tipo de intervenção que convirá incrementar na produção de bibliografia da especialidade.
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Legislação Decreto nº 1, de 26 de Maio, Diário do Governo, Nº 124, 29 de Maio de 1911. Projecto de lei, Diário da Câmara dos Deputados, 20 de Abril de 1917, 11-21. Lei nº 1700, Diário do Governo, I Série, Nº 281, 18 de Dezembro de 1924. Decreto nº 11445, Diário do Governo, Nº 34, 13 de Fevereiro de 1926. Decreto nº 20985, Diário do Governo, I Série, Nº 56, 7 de Março de 1932. Decreto-Lei nº 46758, Diário do Governo, I Série, Nº 286, 18 de Dezembro de 1965. Decreto-Lei nº 45/80, Diário da Republica, I Série, Nº 67, 20 de Março de 1980. Decreto Regulamentar nº 34/80, Diário da República, I Série, Nº 177, 2 de Agosto de 1980. Despacho de 8 de Julho, Diário da República, II Série, Nº 160, 15 de Julho de 1981. Lei nº 47/2004, Diário da República, Série I-A, Nº 195, 19 de Agosto de 2004.
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dossiĂŞ museus e arquitectura
Fig. 1 Museu Municipal de Penafiel Obras de construção do museu fotografia de Maria José Santos, Dezembro 2005
Raquel Henriques da Silva Museus em construção Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa rha@fcsh.unl.pt
Este texto introdutório ao dossiê Museus e arquitectura esboça uma primeira apreciação sobre o conjunto das 9 intervenções que o constituem, umas já concluídas, outras em fase final de obras ou em pleno estaleiro. Assinala como principais características deste painel a metodologia consolidada de trabalho articulado entre programa museológico e projecto arquitectónico; a diversidade geográfica, de tutelas e temática; o forte empenho social de alguns dos projectos; a qualidade das concretizações arquitectónicas em que se empenharam algumas das mais relevantes personalidades da arquitectura portuguesa; por fim, o facto de os museus serem componentes decisivas de requalificação dos lugares, servindo-os e representando-os simbolicamente. This introduction to the dossier on Museums and architecture outlines an initial appreciation of a group of 9 interventions, some of which are finished, while others are in the final stages of completion or still undergoing work. A series of key features define this group: the methodology acquired from the combination between the museological programme and the architectural project; the geographical diversity, the different tutelages and themes; the strong social effort of some of the programmes; the quality of the architectural projects by some of the most relevant names in Portuguese architecture; finally, the fact that museums are crucial elements in the renewal of places, serving and symbolically representing them.
PALAVRAS-CHAVE: Museu, arquitectura, programa museológico, projecto arquitectónico, requalificação urbana, empenho social, domínio pluridisciplinar, cultura
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O
dossiê, que aqui se apresenta, reúne um conjunto diversificado de intervenções em museus, umas já concluídas, outras em fase final de obras ou em pleno estaleiro. As narrativas são feitas a duas vozes: a do director ou responsável pelo museu que elaborou ou assumiu o programa, a do ou dos arquitectos que as concretizaram em projecto. Proporciona-se, assim, não uma conversa mas um discurso às vezes quase dobrado, manifestando um dos traços mais positivos deste painel: os trabalhos desenrolaramse em diálogo profícuo sobre os programas museológicos que, na fala dos arquitectos, fundamentam o essencial das opções projectuais. Sendo esta a boa regra de trabalho, segundo os preceitos da museologia, sabe-se que não faltam situações em que ela não é cumprida. Vale a pena salientar também que não só o “lado da museologia” é o definidor do campo da intervenção, como o faz com visível segurança e determinação. O que espelha a qualidade e diversidade de recursos humanos da especialidade, actualizados e pluridisciplinares. Já o sabíamos mas é reconfortante confirmá-lo. O segundo traço marcante do dossiê é a sua imediata diversidade. Geográfica, em primeiro lugar: de Braga a Portimão, passando por Bragança mas concentrando-se, claramente, no lado norte do país. Diversidade de tutelas também, repartidas entre a administração central, via IPM, e os municípios, e, no caso do Tesouro da Sé de Braga, estendendo-se à Igreja. Diversidade, finalmente, de âmbito temático: predominando os museus tradicionais (de colecções mistas onde os conjuntos artístico-históricos sobrelevam) há um museu de arqueologia, outro de literatura, outro de arte sacra, dois de história local e regional, dois de indústria. Estes patamares de diversidade manifestam que a qualidade dos recursos humanos da museologia portuguesa, antes já verificada, se apresenta notavelmente descentralizada: quer em relação à tradicional macrocefalia lisboeta, quer em relação a pretéritas hierarquizações das tipologias de museus, valorizadoras de prévia existência e prestígio das colecções. O terceiro aspecto relevante do conjunto em análise, que decorre dos anteriores, é o forte empenho social de alguns dos projectos onde se pressente uma militância de causas. Este traço é mais imediatamente visível nos dois museus de indústria (Museu de Chapelaria de S. João da Madeira e o Museu de Portimão, instalado numa desactivada Fábrica de Conservas) que representam memórias produtivas recentes, caracterizadoras das respectivas cidades e regiões. Por isso, estes museus têm profícua capacidade de diálogo com as populações, nomeadamente as que não são frequentadoras habituais de equipamentos culturais, reapresentando-lhes instrumentos de trabalho e vivências quotidianas como situações de valor patrimonial. Também os museus de
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história local e regional (em Vila Franca de Xira e Penafiel) visam idêntica museologia de proximidade, que conjuga os episódios da história local sobre memórias e traços antropológicos definidores de identidades regionais. No entanto, a militância cultural voltada ao exterior é também constitutiva de outros museus de âmbito disciplinar. É o caso da continuada acção do Museu Regional de Arqueologia D. Diogo de Sousa. Chegando agora ao fim da longuíssima concretização projectual, há mais de uma década que se afirmou como pólo de apoio a toda a arqueologia da região, praticada na perspectiva ampla da salvaguarda e valorização de sítios, paisagens e memórias. Caso a destacar, no aspecto de museologia militante e social, é também o da Casa- Museu Camilo. Tendo salvaguardado e valorizado o anteriormente existente, acrescentou-se um módulo construído de raiz onde funciona o Centro de Estudos Camilianos que é biblioteca, arquivo e museu, lugar de referência para especialistas mas permanentemente empenhado em enriquecer a visita sentimental à Casa. Em relação aos museus de arte, sobrepõem-se as responsabilidades de estudo, preservação e exposição de colecções mistas onde avultam patrimónios nacionais da maior relevância. Os programas são por isso mais fechados e tradicionais, jogando com a dimensão aurática dos seus tesouros e os pesados constrangimentos da sua preservação material. Mesmo assim, no Museu do Abade de Baçal, há situações museográficas interessantes e atractivas que cativam imediatamente os públicos pela via de uma esteticidade celebratória. Acresce que a dimensão de proximidade que não é apanágio desta tipologia de museus pode, evidentemente, ser conquistada, através do acompanhamento de visitas e do uso renovado de informação de apoio, bem como das possibilidades abertas pela criação ou requalificação das áreas de acolhimento e circulação dos públicos (loja, cafetaria, jardins, biblioteca e auditório, salas adequadas aos serviços educativos e à recepção de estudantes ou especialistas). Neste domínio, é com a maior expectativa que acompanharemos a reinstalação do Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra, que certamente procurará ultrapassar alguns erros ou insuficiências de projectos já concluídos. Por exemplo, no Museu do Abade de Baçal, a museografia, delineada pelos arquitectos com grande liberdade propositiva, embora esteticamente pregnante, criou um circuito demasiado fechado e imobilista, desadequado a um museu que ainda não encontrou plenamente a sua definição conceptual e comunicacional. O quarto e último traço comum a este conjunto diversificado de museus é a qualidade da sua concretização arquitectónica em que se empenharam algumas das personalidades mais relevantes da arquitectura portuguesa. Não sendo necessário voltar a referir todos os nomes envolvidos, compreender-se-
á a excepcionalidade da situação que se alarga por quatro gerações, as primeiras das quais aqui representadas pelo saudoso Fernando Távora (Museu de Penafiel) e Siza Vieira (Casa de Camilo Castelo Branco). Deste facto decorrem outros: em primeiro lugar, claro, a qualidade dos museus em si mesmos, quer do ponto de vista da conservação das colecções, quer do conforto dos visitantes e de quem ali trabalha; mas, simultaneamente, interessa relevar que o entusiasmado envolvimento de grandes arquitectos nestas obras complexas (quase todas em edifícios pré-existentes, alguns monumentos nacionais) significa que eles consideram que projectar um museu (de raiz ou em readapatação e alargamento) é um dos programas mais aliciantes do seu ofício, pela complexidade das questões em presença e pelo desafio de construir lugares que têm muitas faces, umas voltadas para dentro, outras para fora; umas para a memória e a história, outras para o acolhimento de públicos diversificados que se deseja ser uma teia atractiva de fruição lúdica, de surpresa imaginosa e de saberes renovados. Não foi por acaso que Eduardo Souto Moura, o arquitecto da renovação do Museu Grão Vasco, em Viseu, disse um dia que, para o ofício de arquitecturar, os museus são hoje as catedrais da Idade Média. Por outro lado, os corpos identificáveis dos museus, associados a sítios e edifícios históricos, são componentes decisivas de requalificação dos lugares urbanos que, também através deles, adquirem pertinência e reconhecimento. Aliás, todos os programas museológicos presentes no dossiê referem este aspecto, integrando-o na missão das instituições: servir a cidade, representá-la simbolicamente e requalificá-la fisicamente, provando que a cultura é hoje, em todo o mundo, um dos meios mais eficazes de gerar urbanismo de qualidade, manejando, de modos articulados, conhecimentos de ponta com a riqueza inesgotável de pensar a História a partir das nossas actuais inquietações. Estaremos todos a pensar em casos paradigmáticos de mediatização como o Museu Guggenheim de Bilbao ou a Tate Modern em Londres, ambos envolvidos na requalificação de lugares industriais daquelas cidades, entretanto desactivados e abandonados. Como se sabe, num caso como noutro, desenvolvidos na última década do século XX, a referência é o Centro Georges Pompidou de Paris que, na década de 1980, se instalou no sítio dos demolidos Halles, gigantesco mercado de ferro e vidro, característico da arquitectura oitocentista. Também a instalação do Museu de Orsay numa das gares de caminho de ferro mais importantes de Paris foi um gesto de grande amplitude e ansiosa descendência, mesclando o tema nobilitante do museu com as questões de reconversão de edifícios utilitários, até então bastante desprezados pelas suas inconfundíveis marcas de estéticas eclécticas e revivalistas. Mas houve, nesses anos de efervescência do pós-modernismo cultural, outros exemplos de escala contida
que foram referências importantes. Pense-se, por exemplo, citando casos de todos conhecidos, o Museu Picasso de Paris, instalado, com extraordinária pregnância, estética e funcional, num palacete urbano ou, com outra dramaticidade e fundura de memórias, o Museu de Mérida. Outras reflexões vêm a propósito. A primeira é de ordem política, no sentido amplo do termo. As requalificações aqui reunidas (a que poderiam juntar-se ainda algumas outras em curso ou em fase de pré-lançamento) manifestam que as diversas tutelas estão culturalmente empenhadas, não só do ponto de vista da obrigatória salvaguarda e valorização de patrimónios consolidados, mas da abertura de novos campos museológicos, comprometidos com a história mais recente e as suas articulações com operações urbanas de requalificação. Esta situação que, numa linha quase contínua, se prolonga desde há cerca de vinte anos, tem beneficiado de programas financeiros europeus de apoio que, na vigência do 2ª Quadro Comunitário, quase se restringiram aos equipamentos tutelados pela administração central, mas que, no 3º Quadro que agora termina, através do POC (Programa Operacional da Cultura), se alargou substantivamente, sobretudo aos municípios, tal como aconteceu noutras áreas, como a dos cine-teatros. O delineamento e a execução dos programas não são, como se calculará, isentos de crítica. Perdeu-se sempre tempo de mais na sua operacionalização e execução, podem questionar-se algumas prioridades em detrimento de outras. Sabe-se que os recursos europeus nem sempre puderam ser totalmente utilizados porque os organismos portugueses não conseguiram assegurar a sua quota-parte, a chamada contrapartida nacional. Por outro lado, os constrangimentos administrativos na preparação e execução de concursos públicos algumas vezes comprometeram a capacidade de resposta dos museus e das suas tutelas. Todavia, apesar destas e de outras falhas, vive-se, neste sector, uma situação inédita em Portugal, pela continuidade, num tempo já relativamente longo, das políticas de requalificação de museus, reconhecidos também como instrumentos de melhor vida para as comunidades. Como afirmei no início deste texto, é evidente que a qualidade dos recursos humanos da museologia portuguesa contemporânea, bem como ao seu reforço no quadro da Rede Portuguesa de Museus, é uma das bases mais sólidas do trabalho em curso, reclamando e propondo que os novos museus tenham o seu cerne significativo em programações ambiciosas, cientificamente fundamentadas e socialmente empenhadas. Não é menos importante, volto a dizê-lo, a aliança estratégica com os arquitectos e a sua visível paixão pelo tema do museu. Se pensarmos em termos históricos, ele tem um percurso de excepcionalidade, inaugurado, no final dos anos de 1950 com o projecto para o Museu
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Gulbenkian, à época, e ainda hoje, situação referencial, em todos os aspectos da programação de um museu, associado a um complexo cultural. Outras realizações posteriores (o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, a requalificação do Museu do Chiado, a instalação da Fundação Arpad-Szènes-Vieira da Silva em edifício industrial setecentista, e, sobretudo, o Museu de Serralves) criaram um continuum com outros elos que (à semelhança do tema da Biblioteca e do Centro Cultural) dão consistência reflexiva a este domínio pluridisciplinar. Assim, com grande visibilidade, continua a cumprir-se uma das mais antigas vocações da cultura: erguer memoriais vocacionados para a eternidade que, representando uma cultura concreta, conseguem, ao mesmo tempo, conquistar perturbadora e indagante atemporalidade. Não são isso, por exemplo, as Pirâmides do Egipto, túmulos-museus, construídos por desígnio do poder, mas que hoje representam relações de trabalho, conhecimentos tecnológicos, produções artísticas onde ainda nos espelhamos? Há, muito claramente, lugar ao optimismo, mas sem esquecermos quanto, em Portugal, estamos longe de indicadores europeus também neste sector. Investimos mais, embora muito menos do que seria necessário. Demoramos tempo excessivo a consolidar os projectos e ultimá-los. Hesitamos frequentemente nas direcções a tomar. O que seria desejável, para ultrapassar estes e outros aspectos críticos, é que o governo da nação, envolvendo as tutelas das administrações central, regional e municipal, delineasse um programa de actuação (sobretudo ao nível dos financiamentos) para colmatar inexistências intoleráveis (de um Museu de Ciência, Técnica e Indústria referencial, por exemplo), para resolver insuficiências há muito apontadas (a indispensável ampliação do Museu Nacional de Arqueologia, por exemplo), ao mesmo tempo que estimulasse as parcerias entre os museus mais dinâmicos, por afinidades tipológicas e/ou geográficas. Finalmente, interessa salientar que os belos museus aqui evocados - concluídos ou em vias de o ser – carecem todos eles de meios adequados de financiamento. Mantendose os constrangimentos orçamentais a todos os níveis da governação, pode temer-se que esta situação se venha a tornar mais constrangente do que já é. Como sou optimista, acredito que um museu fisicamente renovado (ou construído de raiz) tem mais possibilidade de atrair investimentos diversos. Mas é indispensável maleabilizar os sistemas de administração, confiar mais nas equipas e na sua capacidade de multiplicar os recursos orçamentais, se não tiverem de submeter-se a critérios de funcionamento irracionais. Por este lado, há longo caminho a percorrer em que as boas práticas devem ser analisadas, ponderadas e ampliadas.
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No entanto, por mais imaginosas e propositivas que sejam as equipas dos museus, e que o mecenato se amplie, o Estado tem de continuar a investir fortemente no sector, talvez inventando ele próprio meios novos de angariação de recursos que não cabe aqui propor. Mesmo assim, atrevo-me a sugerir que, à semelhança do que se faz na Grã-Bretanha, se poderia estudar a possibilidade de afectar à cultura uma percentagem dos rendimentos oriundos dos jogos de âmbito nacional e europeu. Depois deste atalho – que me levou dos edifícios aos meios dos seus desempenhos – volto ainda à arquitectura de museus para salientar um aspecto que, no panorama museológico português, se foi tornando uma marca identitária. Refiro-me a facto já mencionado: com uma única excepção (o Dom Diogo de Sousa de Braga), os museus do dossiê funcionam em espaços pré-existentes, quase sempre carregados de História. O caso mais extraordinário é o do Machado de Castro que, em si mesmo (como bem analisa o arquitecto Gonçalo Byrne) é um museu de arquitectura histórica que vai de Roma à Idade Média, do Renascimento ao Barroco através de fragmentos e recontextualizações do mais elevado valor histórico e artístico. Sem atingirem idêntica dimensão, as outras situações são também muito relevantes do ponto de vista patrimonial, estendendo-se de colégios e paços episcopais a fábricas oitocentistas: de modos diversos, o programa dos museus e os arquitectos que lhe dão corpo funcionam bem com este facto aparentemente paradoxal. Ele é constrangimento determinante mas também desafio aurático, estimulando a imaginação e novas tecnologias, fazendo destes novos museus corpos plenamente contemporâneos que têm raízes e almas vibrantes, delineadas em espessuras sobrepostas de tempo e utências. Sendo verdade que esta particularidade de muitos museus portugueses se deve à crónica falta de meios para os construir de raiz (desde a instalação, em 1884, do então Museu Nacional de Arte e Arqueologia no Palácio Alvor, em Lisboa, hoje Museu Nacional de Arte Antiga), ela acaba por se constituir como marca enriquecedora que integra, muito profundamente, a gestão dos museus com a gestão dos patrimónios, no espaço comum dos sítios e das cidades. Creio que a imagem dos museus e a reflexão sobre eles adquire assim uma dimensão de maior complexidade que metaforiza, com adequação, a sua permanente abertura de campo. Por isso, como a seguir sucintamente se indica, a bibliografia sobre este tema de múltiplos cruzamentos tem vindo a crescer, nomeadamente em termos de investigação académica, articulando as esteticidades que definirão a arquitectura portuguesa contemporânea no panorama internacional com as exigências e utopias da nossa museologia. Março de 2007
Referências bibliográficas BARRANHA, Helena Silva, 2001, Museus de Arte Moderna e Contemporânea - Conceitos, conteúdos, arquitecturas. Das tendências internacionais ao caso português, Tese do Mestrado Europeu em Gest Europeu em Gestão Cultural, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve (policopiado). BARRANHA, Helena, 2005, “A arquitectura do museu, entre a invenção do presente e a (re)construção da memória”, Actas do Colóquio Adaptação de edifícios históricos a museus 2003, Museu Municipal de Faro/Câmara Municipal de Faro, 11-21. BARRANHA, Helena, 2006, “Arquitectura de museus e iconografia urbana: concretizar um programa/ construir uma imagem” in SEMEDO, Alice; LOPES, João Teixeira (Coord.), Museus, Discursos e Representações, Porto, Afrontamento. GRANDE, Nuno, 2006, “Museus e Centros de Arte: ícones de urbanidade, instâncias de poder, in SEMEDO, Alice; LOPES, João Teixeira (Coord.), Museus, Discursos e Representações, Porto, Afrontamento. GUIMARÃES, Carlos, 1999, Arquitectura e museus em Portugal. Entre reinterpretação e obra nova, Dissertação de Doutoramento em Arquitectura apresentada à Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (dactilografada). LAMPUGNANI, Vitorio Magnano e SACHS, Angeli, 1999, Museums for a New Millenium (catálogo da exposição), Prestel, Munique. NEVES, Victor, 1999, Espacio y poética en la arquitectura portuguesa contemporánea de los años 70 a 90, Tesis doctoral para la obtención del título de Doctor Arquitecto, Universidad Politécnica de Catalunya, Escuela Superior de Arquitectura de Barcelona (policopiado). TOSTÕES, Ana, 1997, “El museo como programa en la arquitectura contemporánea. Espacio para ocio y lugar de la memoria” in NOLASCO, Maria da Luz (Coord.), Museos y museología en Portugal. Una ruta ibérica para el futuro, Número monográfico da Revista de Museología, Associación Española de Museólogos.
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Fig. 1 Museu de D. Diogo de Sousa Pรกtio interior - miliรกrios Arquivo do Museu
Isabel Silva O museu - lugar de encontro com a História de uma região Directora do Museu de D. Diogo de Sousa | mdds.directora@ipmuseus.pt
Arquitectos | arquit.cg.lsc@mail.telepac.pt
Revitalizado, em 1980, como Museu Regional de Arqueologia, o Museu de D. Diogo de Sousa tem como missão a salvaguarda e valorização das colecções, a divulgação da informação e o apoio ao desenvolvimento e promoção do conhecimento sobre a Arqueologia da região. O seu programa e actividade reflectem a preocupação com a abertura do museu à comunidade em que se insere, procurando desta forma tornar-se o lugar de encontro com a História, na região. O edifício do museu, projectado de raiz, está implantado no centro da antiga cidade romana de Bracara Augusta. O projecto de arquitectura, concluído em 1991, incorporou, assim, aspectos da história do lugar e da tradição museológica europeia, para além de exigências complexas de natureza programática. Com sobriedade linguística e formal, o edifício procura contribuir para expressar uma nova identidade urbana. Revitalized in 1980 as Regional Museum of Archaeology, the Museu de D. Diogo de Sousa’s mission has been the protection and appreciation of the collections, the dissemination of information and the support of the development and encouragement of knowledge of the region’s archaeology. Its programme and activity reflect the concern for bringing the museum into the community, as a place where one can encounter the region’s History. The museum’s building is situated in the centre of the ancient Roman city of Bracara Augusta. The architectural project, which was finished in 1991, included aspects of the region’s history and aspects of European museological tradition, as well as complex demands of a programmatic nature. With a formal and linguistic sobriety, the building’s purpose is to convey a new urban identity.
PALAVRAS-CHAVE: Museu, arqueologia, missão, parcerias, programa museológico, projecto arquitectónico de raiz, região, identidade urbana.
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Carlos Guimarães e Luís Soares Carneiro Projecto de arquitectura e integração urbana
Isabel Silva O museu - lugar de encontro com a História de uma região
Breve historial e missão do Museu
A
criação do Museu de D. Diogo de Sousa, como museu de arqueologia e arte geral, então a cargo da Câmara Municipal de Braga, data de 1918, quando do advento da República. Vicissitudes várias não permitiram que o Museu se afirmasse, mantendo-se num estado de letargia até 1980. Nessa altura, a acentuada expansão urbana, a necessidade de salvaguarda do património arqueológico que estava então a ser posto a descoberto na cidade, e a conjugação de esforços, por parte da Universidade do Minho e da Comissão de Defesa e Estudo do Património (CODEP), conduziram à criação do Campo Arqueológico e posteriormente à revitalização do Museu. Este contexto marcou decisivamente a vocação do Museu, que se tornou num Museu Regional de Arqueologia, com uma Lei orgânica, um quadro de pessoal, dependente da administração central, sendo actualmente tutelado pelo Instituto Português de Museus (IPM) e pelo Ministério da Cultura. De então, para cá, a Missão do Museu passou a desenvolver-se em torno de três grandes vectores: • a salvaguarda e valorização dos bens arqueológicos à sua guarda, relacionados com projectos de investigação em curso na região; • a divulgação dessas colecções e respectiva informação, junto de públicos diversificados; • o apoio ao estudo dos materiais arqueológicos e à promoção e valorização de sítios, como uma mais valia socio-esconómica, e um contributo para o desenvolvimento turístico-cultural da região. Tendo em vista o cumprimento da sua Missão, o Museu tem procurado desenvolver parcerias com instituições ligadas à investigação, ao ensino, à promoção turístico-cultural, para além de apoiar organismos de natureza museológica, ou que intervêm a nível patrimonial, contribuindo, assim, para a consolidação de uma Rede de museus e sítios com potencial interesse turístico-cultural. Esta relação de colaboração com entidades de natureza complementar, em torno do património arqueológico, reflecte-se na colecção, no programa e na actividade do Museu. O programa e a actividade do Museu Do programa do Museu transparece a preocupação que tem sido constante, no sentido de fomentar o conhecimento e a valorização do acervo, mas também de mediar essa informação, de modo a torná-la apelativa, junto dos vários públicos-alvo. Assim, ao acolher o espólio e a informação recolhida pelos investigadores, o Museu tem desenvolvido conjuntamente com os mesmos, todo um trabalho de classificação e valorização, que culmina na conservação e restauro das peças, grande parte das quais integram a sua exposição permanente. Por sua vez, as colecções expostas, articulam-se com informação de natureza mais didáctica, — tais como, registos em suporte multimédia, alusivos às tecnologias de fabrico de materiais, à metodologia de trabalho arqueológico e de conservação e restauro —, ou com informação complementar, sob o ponto de vista do conhecimento arqueológico, traduzida no Roteiro,
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Fig. 2 Estela funerรกria ร poca romana Arquivo do Museu
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Fig. 3 Taça de prata Época romana Arquivo do Museu
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Fig. 4 Espectáculo de Teatro no jardim Arquivo do Museu
em trabalhos de investigação de índole curricular e em exposições de natureza temporária. No entanto, a informação disponibilizada no Museu transcende o seu próprio espaço, para se articular com roteiros de sítios arqueológicos visitáveis, — para cuja valorização, nalguns casos, o Museu também contribuiu, — quer a nível da cidade de Braga, quer a uma escala regional. Desta forma, o Museu tem promovido uma Rede de museus e sítios arqueológicos, com potencial interesse turísticocultural, muitos dos quais beneficiaram de apoios comunitários. A componente programática da divulgação no Museu estende-se ainda ao público escolar, tendo em vista a exploração lúdico-didáctica dos conteúdos de natureza histórica-arqueológica dos programas curriculares. A este nível, está em desenvolvimento, um Projecto a integrar no Portal do BragaDigital, em parceria com o Museu dos Biscainhos (também dependente do IPM) e que visa a exploração da Arqueologia e do Barroco em Braga. Para além de espaço de conhecimento e de encontro com a memória da cidade e da região, o Museu é também um espaço de fruição e lazer. Nesse sentido, em parceria com a Autarquia e outras entidades culturais, o Museu tem acolhido espectáculos de teatro, música e animação. Em complemento destas actividades culturais, o jardim, a cafetaria e a loja oferecem ao visitante uma outra forma de se relacionar com o espaço do Museu. Em suma, o projecto de arquitectura, o programa e a actividade conjugam-se de forma a tornar o Museu simultaneamente no espaço de encontro com a memória e com a contemporaneidade, nas suas várias formas de expressão cultural, ou seja, no encontro de cada um de nós com a História desta região.
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Carlos Guimarães e Luís Soares Carneiro Projecto de arquitectura e integração urbana
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elaboração do Projecto do Museu de D. Diogo de Sousa dá-se por terminada, na sua configuração global, no primeiro ano da década de noventa. Nessa altura, ganhava expressão significativa um novo surto de museus. Este surto, particularmente na Europa, lembrava o movimento que, cerca de cem anos antes, havia dado origem à criação de um número impressionante de museus, no que se constituiu como uma das principais fases de afirmação e reconhecimento público destes espaços de memória e cultura. Nesse intervalo de cem anos, muitas transformações e experiências se consumaram e se repercutiram no campo museal e, nomeadamente, na concepção dos espaços e na arquitectura, que configuraram os museus. No entanto, para além de particularismos que certos programas aceitaram e do risco experimental de novas formas de organização, foram permanecendo e ganhando consistência algumas características tipologias nos espaços museais. São disso exemplo a organização interna estruturada com base num percurso público principal e a persistência da sala como referência espacial para a conformação dos espaços de exposição, expressas em várias realizações como a Staatsgalerie de Estugarda ou a expansão da National Gallery em Londres. A importância destas e outras leituras sobre o universo das experiências arquitectónicas no campo dos museus revela-se e está presente nos momentos em que, face ao desafio e exercício de concepção de um novo museu, se impõe informar o acto criativo com a selecção crítica das lições contidas nas experiências que a história nos lega, num arco de tempo que envolve a própria contemporaneidade. A arquitectura do Museu D. Diogo de Sousa, para lá do que de específico ajudou a conformar a sua expressão, radica e traduz uma postura que procura cruzar e sintetizar elementos da história e do lugar, respondendo às exigências complexas de natureza programática. Da história, porque assume e incorpora aspectos da “tradição” dos espaços museais, de que as invariantes referidas do Percurso estruturador e da Sala são exemplos reconhecíveis na presente obra. Do lugar, porque entendemos que o objecto arquitectónico e particularmente um museu, deve servir a cidade e não servir-se dela. Isto é, houve que interpretar as linhas de força — físicas, formais e contextuais — que, presentes no terreno de forma visível ou oculta, deveriam incorporar-se no novo edifício, contribuindo para expressar uma nova identidade urbana. A correspondência entre os eixos compositivos do museu e o cardo e decumanus de Bracara Augusta confirmam essa leitura. Do Programa, porque a diversidade de funções e de objectivos de cada uma das áreas que integra impunham uma clareza na organização e funcionamento do museu no seu conjunto sem a qual o seu desempenho poderia estar comprometido. Da configuração final da obra importa salientar três aspectos gerais que podem ser considerados como os mais determinantes. O primeiro diz respeito à relação com a envolvente urbana, relativamente à qual o Museu se afirma como um conjunto de volumes discretamente perceptíveis por detrás de um elemento mural que reforça o alinhamento da rua e que se constitui como um plano monumentalizante que o revestimento a granito reafirma. A definição de uma praça do museu — novo espaço
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Fig. 5 Salas para Exposição Permanente com iluminação zenital © Luís Ferreira Alves
público de acesso livre — por onde se faz a aproximação às entradas do museu (a do público e a de serviços), constitui outro dos elementos fundamentais na relação com o espaço urbano. É através destes dois elementos que o Museu se afirma e dá a conhecer, relegando para outros momentos a percepção e a importância específica dos seus espaços. O segundo aspecto refere-se à configuração dos volumes e sua expressão formal. Todo o conjunto volumétrico se compõe de formas geometricamente simples, articuladas segundo uma modulação e ritmo que simultaneamente desmassifica e cria unidade. O tratamento de todas essas formas joga na articulação dos seus revestimentos que, definindo um nível comum de revestimento com granito em todos os volumes, permite articulá-las com o terreno e aligeirar a expressão final e global, já que, acima desse nível, todas as superfícies exteriores são tratadas por forma a definirem planos e volumes com cor branca rematados superiormente por uma cornija em granito. O terceiro aspecto prende-se com a organização e configuração interior. No que respeita à organização, todos os espaços foram articulados por forma a garantir uma clara funcionalidade e independência de zonas diferentes, particularmente no que respeita à distinção de zonas públicas e de serviços. Já no que toca à expressão dos seus espaços interiores, e mantendo-se ainda uma atitude de depuração formal, criaram-se condições para garantir uma diversidade espacial ao longo de todos os percursos que os visitantes farão quando percorrerem o museu.
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Fig. 6 Mosaico Romano conservado in situ © Luís Ferreira Alves
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Fig. 7 Mezanino ligando salas de Exposição Permanente © Luís Ferreira Alves
Fig. 8 Sala do Mosaico com iluminação zenital © Luís Ferreira Alves
Podem apontar-se como exemplos significativos os espaços das galerias de entrada e saída da zona da exposição permanente, assim como os vários espaços que compõem esta última zona, nos quais se criaram variações de altura e de iluminação natural que constituem potencialidades para organizações diversas a explorar. Na sua configuração global, a solução arquitectónica desenhada assumiu uma postura formal que simultaneamente cuida da sua afirmação e presença, sem contudo o fazer através de elementos linguísticos ruidosos. A verificação temporal da sua resistência e reconhecimento serão, em última instância, a prova crítica que importará avaliar e assumir como experiência particular no quadro mais vasto da construção e funcionamento dos museus em Portugal.
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Pedro Redol Programa de requalificação
Gonçalo Byrne Projecto de remodelaçãoe ampliação Arquitecto | geral@byrnearq.com
O Museu Nacional de Machado de Castro é um exemplo, entre muitos, de sobreposição de memórias, muitas delas deslocadas. À semelhança de outros museus, ocupa edifícios antigos, a cujo património próprio outro se veio juntar. Na Alta de Coimbra, no local do antigo forum de Aeminium, o novo Museu, assimilando dois milénios de sucessivas contemporaneidades arquitectónicas, volta a recriar em chave necessariamente contemporânea os seus conteúdos acumulados, expondo aos visitantes o que poderá ser uma importante ponte de convergência cultural e criativa, provavelmente nalguns aspectos próximos do que terá sido o forum inicial. Breve nota sobre a história do edifício em que o Museu foi instalado, elenco de necessidades e programa que estiveram na base do projecto de requalificação e apresentação do próprio projecto, bem como brevíssima descrição do processo arquitectónico que informa a obra em curso. The Museu Nacional de Machado de Castro is an example, amongst many, of the overlapping of memories, many of which have been misplaced. Like other museums, it occupies older buildings, lending the site yet another type of heritage. Situated on the apex of Coimbra, where the old forum of Aeminium would stand, the new Museum, assimilating two millennia of successive architectures, brings together accrued knowledge, thus, becoming a meeting point of culture and creativity, in some ways similar to what had been the first forum. The article also provides a brief note on the history of the museum’s building and programme, which were the basis for the renovation project and its presentation, as well as a brief description of the architectural process underlying the current work.
PALAVRAS-CHAVE: Programa museológico, princípio orientador, discurso expositivo, autenticidade, crítica neo-idealista, processo projectual arquitectónico, fragmento, monumentalidade
Fig. 1 Museu Nacional de Machado de Castro Enfiamento de celas ligando as galerias norte e sul do piso superior do criptopórtico © Arquivo do Museu Nacional de Machado de Castro fotografia José Meneses
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Director do Museu Nacional de Machado de Castro | mnmc.director@ipmuseus.pt
Pedro Redol Programa de requalificação
O edifício – memórias de um século
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erdou o Museu como instalações o Paço Episcopal de Coimbra, sob o qual a arqueologia viria a descobrir restos das primeiras duas igrejas da invocação de S. João de Almedina, ambas românicas, e do seu claustro, bem como do forum do tempo de Nero, da sua basílica e do monumental criptopórtico que o sustentava.
Desde que o Museu foi fundado, em 1911, não pararam as obras de adaptação dos seus edifícios a espaços expositivos informados por diferentes ideais – desde os da educação popular até àqueles que derivaram da consolidação dos estudos de história e crítica de arte. Em particular as que se arrastaram desde a década de quarenta até aos anos setenta do século XX, modificaram significativamente o facies do conjunto, oferecendo à memória inusitadas referências de monumentalidade. Cabem aqui as transformações que se seguiram à demolição do Arco do Bispo, que ligava o Paço à Sé Nova, e que compreenderam a elevação das alas norte e poente, após a inclusão de portais provenientes do Colégio de S. Tomás e do Convento de Santa Ana nas respectivas fachadas. Deste convento foi trazido um outro portal para a fachada seiscentista da igreja de S. João de Almedina. Para o seio da ala norte viria a colateral de S. Domingos encomendada pelo tesoureiro da Sé de Coimbra a João de Ruão. Por outro lado, desde os anos vinte que se vinham fazendo importantes descobertas de vestígios ou de partes relativamente íntegras de edifícios mais antigos: primeiramente, o criptopórtico romano; mais tarde, os restos da igreja românica de S. João de Almedina e do seu claustro, remontado em voluntariosa anastilose. As fachadas norte e nascente do antigo Paço assumiram, para as gerações que nasciam enquanto a sua edificação se concluía, uma aparência decorosa de impossível palácio setecentista, enaltecido de lampejos renascentes e maneiristas que, não sendo convincentes, tão-pouco impeliam a grandes questionamentos. Por trás delas, diversos pisos destinados à administração do Museu, moldaram-se em torno da capela-mor de S. João e da Capela do Tesoureiro, numa sinuosidade centrifugadora, de desconfortável efeito espacial. Os restos arquitectónicos aqui e além encontrados apareciam associados aos limites físicos de ulteriores configurações, sem que a correspondente percepção permitisse identificar inequivocamente o seu carácter de testemunho. Disso são exemplo as grandes sapatas da igreja românica de S. João de Almedina, intrigantemente alinhadas ao centro da sala que flanqueia a igreja seiscentista. Programa para um novo Museu Durante a década de 1990, a requalificação do Museu Nacional de Machado de Castro tornou-se uma prioridade para o Instituto Português de Museus. Diversas circunstâncias concorreram para tal: • A coexistência equívoca de preexistências arquitectónicas, restos de edifícios que integravam a história do sítio e peças arrancadas a outras arquitecturas; • A inexistência de um discurso consistente que ligasse as colecções e as resgatasse, na medida do possível, à perda de contexto formal ou de uso; • A falta de espaço para exposição e reserva do acervo;
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Fig. 2 Fachada norte Após a incorporação do portal do Colégio de S. Tomás (1934-39)
Fig. 3 Fachada norte Em reconfiguração (anos 50-60 do séc. XX)
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• A inexistência de circuitos de visita; • A falta de distinção entre áreas públicas e áreas de acesso restrito (técnicas e administrativas); • A carência de infra-estruturas, serviços e condições de acesso e segurança adequados às necessidades dos visitantes; • A falta de condições ambiente e de segurança adequadas à preservação e salvaguarda das colecções; • A necessidade de tratamento de numerosas peças do acervo; • A carência de condições de trabalho nas áreas técnicas. O programa posto a concurso teve em conta este conjunto de necessidades. A então Directora do Museu, Drª Adília Alarcão, e a sua equipa técnica definiram como objectivo do programa museológico garantir um discurso de amplo espectro e transversalidade, designadamente na relação dos objectos com o edifício do Museu, por um lado, e com a história da cidade e das suas instituições, por outro. Foram, assim, privilegiadas as colecções provenientes do forum e da cidade romana, do paço episcopal e dos conventos e igrejas de Coimbra, cobrindo um arco temporal que vai do século I ao século XVIII. O princípio orientador do programa museológico foi o da autenticidade nos termos em que a crítica neo-idealista o entendeu a partir de Benedetto Croce, de cujo pensamento Cesari Brandi é um dos tributários. A mesma ideia de autenticidade subjaz, como se verá, ao projecto de arquitectura para remodelação e ampliação do Museu. Mais do que uma história, procurou-se que as exposições de longa duração contassem o maior número possível de histórias sobre as casas de onde as peças provêm, quem as encomendou, produziu, utilizou e eventualmente coleccionou, as afinidades ou diferenças formais que entre elas se observam e a interacção cultural de que fazem prova. A organização temática, não formalista, do discurso expositivo seria, à primeira vista, a melhor maneira de atingir este objectivo. Entendeu-se, no entanto, que a aplicação sistemática de uma tal solução não garantiria a percepção de valores estéticos essenciais, sobretudo no que se refere à escultura e pintura monumentais, nem facilitaria o entendimento de conjuntos de objectos (por exemplo, de ourivesaria, cerâmica) através da associação por tipologias funcionais, formais ou decorativas. As futuras exposições de longa duração serão de dois grandes tipos: galeria tradicional de Belas Artes apresentada em ordem de disciplinas (arquitectura, escultura, pintura) e cronológico-estilística (Românico, Gótico, Renascimento, Maneirismo e Barroco); exposição temática de artes decorativas, organizada de acordo com tradições de produção que são testemunho de interacção cultural, caminhando da Península Ibérica e da sua relação com o mundo islâmico para os laços de Portugal com o Extremo Oriente. O primeiro tipo de exposição ocupará os novos edifícios; o segundo desenvolver-se-á no ambiente doméstico do antigo paço. As relações transversais serão possíveis através do encaixe sucessivo de esquemas formais (aqueles que são imediatamente percepcionáveis), por parte do visitante, associados a informação de vários níveis – tanto em suportes tradicionais como multimédia – que darão azo a percursos temáticos ao longo de grandes extensões do circuito. O compromisso assumido deixará ao visitante uma grande margem de liberdade, que lhe permitirá optar por um passagem mais ou menos contemplativa pelos espaços do Museu, com a certeza de que será necessário voltar para conhecer mais. Não estão excluídas algumas associações temáticas importantes, nas galerias mais tradicionais como é o caso da sala de arquitectura medieval, a par dos restos de S. João de Almedina, a galeria destinada à pintura e escultura flamengas ou, dentro dos espaços reservados à ourivesaria, o tesouro de D. Isabel de Aragão. O novo Museu pretende, em última instância, ajudar a melhor conhecer a cidade e as relações que, durante os últimos 2000 anos, foi (ou não) capaz de gerar com o mundo à sua volta.
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Fig. 4 Fachada nascente Demolição do Arco do Bispo e da Residência Episcopal (anos 40-50 do séc. XX)
Fig. 5 Fachada nascente Nova contrução, incorporando um portal do desaparecido convento de Santa Ana (anos 50-60 do séc. XX)
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Gonçalo Byrne Projecto de remodelação e ampliação
Contemporaneidades sucessivas
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o espaço de dois milénios a história do sítio acumula o cruzamento de muitas histórias e mostra-nos não um mas vários edifícios que se continuavam, ou sobrepuseram ou se cruzaram, gerando residualidades, hesitações, abusos, mas também revelações fantásticas, fascinantes, belíssimas. Após o caminho que fizemos pelas leituras históricas convocadas, pelos relatos e relatórios arqueológicos, pelas arquitecturas que percorremos do despertar ao entardecer, se algo surge como comoventemente belo nesta Alta Coimbra, é a extraordinária simbiose entre as formas construídas e a geografia da colina, em que a tectónica adquire o valor topográfico, numa globalidade de sistema cristalino de vazios e emergências em que a imanência do criptopórtico romano de Aeminium é decisivamente germinal. Esta fabulosa construção destinada a domesticar o declive transformando-o em chão plano está no entanto construída sobre um assentamento urbano pré-romano directamente ajustado à pendente. A revelação arqueológica deste aglomerado na fundação da abside, constitui o momento zero da cronologia do edifício, ele mesmo conteúdo e contentor museológico. Numa breve caracterização das sucessivas lógicas formais e construtivas do edifício do Museu destacam-se: o período romano, a sucessiva implantação românica de S. João de Almedina, o reforço do carácter residencial do paço renascentista, a rotação “híbrida” da nova igreja barroca e finalmente a descaracterização casuística dos sucessivos “enxertos”, restauros e consolidações iniciados com o alvor do nosso século até à actualidade. Este nosso século, marcado pela utilização museológica dum espaço de fortes características domésticas ou residenciais assiste a uma crise de intervenções avulsas com implicações no edifício que reflectem os critérios de restauro da ideologia dominante. O facto é, no entanto, que os critérios museográficos se confundiam por vezes com interferências nas estruturas edificadas gerando situações de descontrole de escala e de definição ambiental que oscilam entre o adossamento doméstico de fragmentos arquitectónicos avulsos até à clara “frankensteinisação” de conjuntos que embora valiosos e em perigo se implantam em clara rotura de escala e de contexto agravando a já existente residualidade global. Esta condição híbrida, a meio caminho entre uma espacialidade doméstica herdada do paço episcopal e a fragmentária e pontual promoção a encenações de monumentalidade, instauram uma promiscuidade em que o edifício se confunde com as obras expostas. Sem dramatizar, aceitamos que essa condição já faça parte do historial recente do edifício, sobre a qual pensamos adoptar uma posição de “aceitação crítica”, corrigindo quando possível e oportuno, recontextualizando quando recomendável, ou simplesmente autonomizando quando aconselhável, mas para todos os efeitos, integrando numa nova estratégia global os vários edifícios e colecções dentro dum espaço museológico que busca uma nova condição unitária. O edifício e a cidade
A localização do museu no contexto da futura remodelação urbana da Alta ocupa um dos pólos dum triângulo de grande atracção turística em que os outros dois são o complexo
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Fig. 6 Esquisso (concurso 1999) © Gonçalo Byrne Fig. 7 Vista áerea, maqueta © Gonçalo Byrne
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histórico monumental dos Estudos Gerais e o futuro núcleo museológico universitário em torno do Colégio de Jesus. Esta posição sai reforçada com a localização na transição da Alta para a Sé Velha, Almedina e cidade baixa (circuito turístico pedonal). É facilmente previsível um aumento razoável de fluxo de visitantes, incluindo a população universitária a que não será indiferente o reforço dos equipamentos de acolhimento e actividades paralelas diversificadas para além dos núcleos de exposição permanente. Se é verdade que a evolução do sítio se inicia com o carácter eminentemente público do forum para passar à condição religiosa e doméstica do Paço Episcopal, a valorização do actual e futuro uso cultural e museológico deve repor o reforço da sua condição pública, cívica e pedagógica procurando uma escala e ambiente arquitectónico ajustado a esse objectivo. Neste aspecto o novo museu aproxima-se do antigo forum, ou seja, deve recuperar a dimensão de espaço público apelativo reforçando as valências de permanência e uso quase quotidiano, sem descurar as limitações e condicionamentos necessários às zonas museológicas. Interessa fazer convergir no pátio central, na loja e na cafetaria (áreas de livre circulação) acessos que se interliguem com a cidade (eventualmente em mais de um lado e distintas cotas do quarteirão). Em relação à inserção e presença no tecido arquitectónico envolvente, o novo Museu propõe o destaque da “fachada” do criptopórtico romano que estabelece um plano superior de referências dum embasamento geral extensivel aos novos edifícios periféricos contaminando o seu carácter volumétrico introvertido. Embora estes três volumes se encontrem seccionados entre si por caminhos do traçado medieval, a sua leitura recupera um valor unitário e de algum modo identitário com as construções históricas de escala idêntica que se diluem nos tecidos urbanos residenciais de menor dimensão e maior fragmentação. No plano superior do criptopórtico potencia-se o jogo expressivo das diferentes contemporaneidades volumétricas: galeria renascentista, igreja barroca, a que se associam as novas volumetrias em diálogo com revestimentos e transparências da nossa contemporaneidade. O novo Museu Tornar claro ao visitante que o valor unitário do edifício reside precisamente em torno da sua evolução histórica convergente no uso actual. Neste sentido a diversidade e diferentes especificidades do seu longo percurso ajudam a solidificar o seu valor unitário como Museu, tornando o edifício como peça museográfica referencial em leitura paralela aos outros conteúdos expostos. Para tal suceder é necessário clarificar no próprio edifício as marcas arquitectónicas representativas das fases marcantes da sua evolução formal, evocando e deixando antever ao visitante que a apreensão unitária se baseia numa sucessão de marcas culturais impressas no edificado. A enorme riqueza e variedade arquitectónica acumulada ao longo de mais de dois milénios é valorizada, assimilada e tornada presente no novo Museu simultaneamente como conteúdo e contentor desse longo caminho de estratos arqueológicos e dos conteúdos entretanto reunidos no espólio adquirido. Esta releitura em chave contemporânea deverá integrar ainda todos os conteúdos programáticos e requisitos necessários ao bom desempenho de um museu actual. A enorme diversidade espacial proposta procura registos de continuidade e de autonomia ambiental e arquitectónica que se foram desenvolvendo em sintonia com os conteúdos museológicos, eles próprios bastante diversificados. O projecto de pormenorização museográfica que agora decorre segue as grandes opções de articulação com os distintos espaços que foram tomando no desenvolvimento do projecto. Espera-se que de algum modo o futuro Museu possa transmitir a quem o visita a riquíssima dinâmica do próprio processo projectual nas sucessivas reformulações que foram sendo necessárias, fruto de descobertas reveladas e que testemunham a vitalidade do tempo longo que aqui se condensa e de igual modo se pretende transmitir.
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Fig. 8 Planta do piso térreo © Gonçalo Byrne Fig. 9 Corte © Gonçalo Byrne
museu nacional de machado de castro
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João Manuel Neto Jacob As intervenções mais recentes Director do Museu do Abade de Baçal | mabacal.director@ipmuseus.pt
Arquitectos | aportugal.mreis@netcabo.pt
Relato sumário da filosofia museal de suporte ao programa que a campanha de obras – iniciada em 1993, continuada em duas fases subsequentes e ultimada em 2006 – aportou ao Museu do Abade de Baçal, rápida descrição do percurso museológico final da mostra permanente, bem como síntese do projecto de remodelação e ampliação do Museu. O projecto, iniciado em 1992, teve como objectivo essencial a integração do Museu no que se pretendia ser uma Rede Portuguesa de Museus activa e actualizada. A intervenção procurou salvaguardar de forma integral os espaços e as características marcantes do edifício, que remonta à instalação do Paço Episcopal em Bragança no século XVIII, fazendo simultaneamente a imprescindível actualização dos meios e critérios museológicos; a área de expansão procurou responder à necessidade de criação de novos espaços incompatíveis com a escala e configuração da estrutura existente. Starting with a brief summary of the museum philosophy which supported the campaign of works – begun in 1993, continued in two subsequent stages and finished in 2006 - the article goes on to describe the final museological process which brought together the permanent display, and also outlines the museum’s refurbishment and enlargement project. The project, which began in 1992, intended to include the museum in an active and updated Portuguese Network of Museums. The intervention attempted to safeguard the most remarkable spaces and features of the building, which dates back to the foundation of the Episcopal Palace in Bragança in the 18th century. The project also allowed for an imperative update of the museological means and criteria. The purpose of the enlargement was to create new spaces, which were incompatible with the scale and configuration of the existing structure.
PALAVRAS-CHAVE: Campanha de obras, museografia, museologia, nova museologia, programa museográfico, percurso museológico, projecto arquitectónico, preexistente.
Fig. 1 Museu do Abade de Baçal Aspecto parcial do Jardim © IMC, J. M. Neto Jacob / M. A. B.
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António Portugal e Manuel Maria Reis Registo de uma intervenção
João Manuel Neto Jacob As intervenções mais recentes
Apresentação
O
projecto de intervenção de 1992, da responsabilidade dos arquitectos António Portugal e Manuel Maria Reis, foi elaborado no seguimento das intervenções conduzidas no Museu Nacional de Arte Antiga e Museu do Chiado e imbuído da nova atitude em relação à política museológica do país defendida por Simoneta Luz Afonso, no sentido de remodelar e revalorizar os espaços e os equipamentos museais. É neste contexto genérico que surge este programa de remodelação e ampliação, sendo o Museu do Abade de Baçal o primeiro museu regional a receber estes cuidados. Esta campanha de obras pretendeu resolver os graves problemas que o Museu apresentava em quase todas as vertentes museográficas, desde a deficiente coerência programática da exposição permanente que fora sendo acrescentada consoante os ritmos da incorporação de peças ou legados, até aos próprios circuitos ou percursos museológicos que não favoreciam uma leitura globalizante e identitária da região e impediam o acesso a público fisicamente debilitado, assim como a total ausência de condições técnicas e ambientais de conservação das espécies e, ainda, deficientes e precárias condições de exposição, iluminação e segurança das colecções tanto em mostra permanente como em reserva. Este projecto foi concebido segundo uma linha programática firmada nas concepções museológicas mais recentes onde, a par da valorização das peças e dos ambientes e percursos museísticos, se salvaguardam as condições de conservação e segurança e se estabelece uma nova relação com os públicos através da disponibilização de equipamentos de acolhimento, apoio e lazer. A remodelação da arquitectura do espaço expositivo – com integral respeito pelo edifício original e sua historicidade e tentando evidenciar algumas das suas estruturas e intervenções de maior vulto, como a dos anos 40 – foi trabalhada e desenvolvida em consonância com o programa museológico no sentido de fornecer suporte físico à nova lógica organizadora das colecções e aos novos suportes museográficos, desde a luminotecnia e estrutura dos suportes expositivos, passando pela legendagem, esteticidade e funcionalidade dos mesmos. Assim, tendo por base uma estrutura expositiva de ardósia que confere unidade e coerência formal ao discurso expositivo ao longo de quase todo o percurso museológico, apresenta-se ao público uma selecção de obras previamente objecto de restauro (Instituto Português de Conservação e Restauro e Museu de D. Diogo de Sousa) e caracterizadoras da história local e regional e do próprio edifício. A 1ª fase da campanha de obras (1993-95) Nesta 1ª fase de obras inicia-se o percurso, depois de atravessada a Recepção, pela Sala Multimédia onde se pode assistir a um videograma sobre o Nordeste Trasmontano, em que se dá especial relevo à sua riqueza histórica e patrimonial. Desta sala acede-se directamente à Sala da Região, inteiramente dedicada ao Nordeste Trasmontano, onde se apresentam espécies reveladoras da diversidade e riqueza patrimonial, artesanal e artística desta área cultural. De seguida acede-se à Sala de Arqueologia Pré-Clássica onde estão presentes artefactos e objectos de manifestações simbólicas das sociedades recolectoras e metalúrgicas que habitaram esta região, salientando-se exemplares variados dos períodos Neolítico e Idade dos Metais, com algum relevo para o acervo da cultura castreja local.
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Fig. 2 Aspecto geral da Sala Sá Vargas © IMC, J. M. Neto Jacob / M. A. B.
A Sala de Arqueologia Clássica é dedicada à romanização da zona de influência do museu. Neste contexto, são mostradas colecções variadas de estelas funerárias diversas, aras, árulas, marcos miliários, instrumentos agrícolas, cerâmicas, objectos de adorno e numismática do período. No segundo piso já, a Sala 4 da mostra permanente corresponde à antiga capela do Paço e, do conjunto, salientamos o tecto prospéctico e, ligado à liturgia diocesana, duas casulas, um excelente pluvial quinhentista e três esculturas barrocas ricamente estofadas e policromadas. Na Sala de Numismática é mostrada parte da colecção doada pela família do coronel Barbosa Ramires, enquadrada por duas arcas (ou burras) dos séculos XVIII/XIX. A sala imediata é dedicada ao importante legado da família Sá Vargas (fig. 2), aqui representada pelo retrato a óleo do Conselheiro. Em vitrine própria é exposto a maior parte do excelente e variado legado de ourivesaria e, do lado oposto, salientamos o contador indo-português seiscentista desta colecção. As Salas de Arte Sacra (7, fig. 3, e 8) são reveladoras do mecenato que a igreja nordestina desempenhou junto de pintores e escultores de técnica variada e salientamos, de entre as várias espécies de pintura e escultura em presença, a Virgem com o Menino, quatrocentista, e o tríptico Martírio de Santo Inácio (c. 1560) atribuído a Pedro de França, e a colecção de prataria vinda do serviço dos prelados da diocese.
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Fig. 3 Aspecto geral da Sala de Arte Sacra © IMC, J. M. Neto Jacob / M. A. B.
A Sala 9, dedicada à memória do antigo Paço Episcopal (fig. 4), também reúne importantes testemunhos da arte sacra em geral, sendo bem visível o gosto pela decoração áulica em espécies diversas seiscentistas e setecentistas, como sejam a Arca dos Santos Óleos, a Anunciação e, até, a cama indo-portuguesa em pau-preto. São, ainda, de salientar entre as variadas espécies apresentadas, os marfins dos séculos XVII e XVIII, os doze bustos-relicário e o tecto de caixotões vindos da antiga igreja dos jesuítas, ambos seiscentistas. A 2ª e 3ª fases da campanha de obras (1999/2001 - 2005/2006) O projecto da 2ª fase das obras foi objecto de reformulação, sendo apresentado ao público em finais de 1998, e passando a incluir somente a arquitectura da ala nascente do ex-Paço Episcopal e da Casa José Faria. Em termos funcionais, englobava uma área de Reservas no piso inferior, uma nova Recepção e uma Sala Polivalente no rés-do-chão e 4 salas no piso superior. Ficou decidido que a museografia das novas áreas expositivas, a reformulação das áreas técnica e administrativa e de alguma luminotecnia e legendagem e os arranjos exteriores integrariam uma nova fase de trabalhos, mas mantendo-se fidelidade à filosofia museística da intervenção
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Fig. 4 Aspecto parcial da Sala do antigo Paço Episcopal © IMC, J. M. Neto Jacob / M. A. B.
inicial. É esta fase que agora se ultimou e disponibilizou ao público, activando-se o percurso museológico já previsto há uma década atrás, iniciando-se agora, depois de ultrapassada a nova Recepção e a Sala Polivalente, pela Sala da Região. Retomamos o novo percurso, já depois da Sala do antigo Paço em que ficáramos na 1ª fase das obras, e em que nova sala mostra uma papeleira setecentista e permite, lateralmente, o acesso à Sala da Faiança da colecção Cagigal onde se apresenta, fundamentalmente, produção das zonas de Coimbra, Gaia, Porto e Viana. De regresso à sala anterior podemos aceder, agora, à Sala de Pintura onde, para além de autores como Silva Porto, Marques de Oliveira, Joaquim Lopes, Veloso Salgado, Aurélia de Sousa, Melo e Castro, José Malhoa e Sara Afonso privilegiámos, em representação feminina, o espólio de Abel Salazar e concluímos a mostra, somente a preto e branco, com colecção alargada (mas em rotação) de desenhos de Almada Negreiros. O espaço seguinte é a Sala de Exposições Temporárias e permite, por elevador, o acesso a diminuídos fisicamente a este piso. A visita pode terminar aqui, se já se incluiu a varanda no percurso museológico para descanso e delícia do olhar sobre o jardim (fig. 1); se não foi o caso, aceda-se então e usufrua-se deste deleitoso espaço, agora remodelado com estudo artístico de Cristina Valadas.
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António Portugal e Manuel Maria Reis Registo de uma intervenção
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“Projecto de Remodelação e Ampliação do Museu do Abade de Baçal” teve início em 1992 com o objectivo essencial de o integrar no que se pretendia ser uma “Rede Portuguesa de Museus” idealizada pelo recém-criado Instituto Português de Museus, completando-se a obra em 2006; durante este tempo, vários pressupostos evoluíram e alguns compromissos foram assumidos, acabando os trabalhos por ser executados nas diferentes fases de intervenção a que corresponderam três empreitadas: - na primeira (1993-1995) foi feita a remodelação da área principal do edifício existente e a instalação da maior parte da exposição permanente; - na segunda (1999-2001) foi executada a remodelação da área restante do mesmo edifício e construído o novo corpo correspondente à ampliação; - na terceira e última (2005-2006) foram instaladas as novas áreas de exposição permanente e executados os trabalhos relativos à remodelação dos espaços exteriores. Assim, o Museu adquiriu uma forma próxima da planeada inicialmente, quando ficou previsto um conjunto significativo de mudanças no respectivo edifício: construção que remonta à instalação do Paço Episcopal em Bragança no século XVIII, profundamente alterado na passagem a Museu e outros serviços públicos no início do século XX e marcado por uma intervenção importante durante os anos 40 do mesmo século — que lhe conferiu algumas das características fundamentais do que chegou ao início dos anos 90. Desde o início foi contemplada a ampliação do Museu para uma parcela a Nascente, longa e estreita e na qual, do antigo imóvel ali existente, apenas subsistia o alçado principal — com características idênticas às que conformam a construção corrente da rua e do núcleo urbano histórico em que se insere. A área de expansão procura responder à necessidade de criação de novos espaços incompatíveis com a escala e configuração do edifício existente: reservas, recepção, loja, apoio ao público e exposições temporárias, possibilitando ainda a reorganização de todo o percurso expositivo a partir de um ponto único inicial e final. Este percurso desenvolve-se essencialmente no núcleo central da construção existente, em dois pisos ligados pela antiga escadaria nobre; é no piso superior que se incluem os espaços mais fortemente caracterizados (nomeadamente por tectos de madeira trabalhada ou pintada), como a antiga capela e outros salões que remetem para a história do antigo Paço Episcopal. No limite Poente do edifício, com entrada independente e numa área de antigos espaços com carácter mais doméstico, foram instalados os Serviços Administrativos; estes relacionam-se directamente com o Serviço Educativo, que faz a transição para as áreas expositivas. De modo geral, procurou salvaguardar-se de forma integral os espaços e as características do edifício existente, fazendo simultaneamente a imprescindível actualização dos meios e critérios museológicos; foram feitos os reforços estruturais considerados necessários e introduzido um conjunto significativo de infra-estruturas compatíveis com os actuais níveis de serviço, de segurança e de conforto. No novo edifício procura-se que os diferentes espaços arquitectónicos sejam fortemente caracterizados: a partir da entrada, com pé direito triplo, revelam-se os volumes da nova sala de exposições temporárias (com iluminação zenital) e do elevador, e faz-se a relação com os diversos espaços interiores e exteriores. No piso inferior, para além da casa das máquinas e dos novos sanitários públicos, localizaram-se as áreas de reservas (armazenagem vertical, horizontal e cofre) e de apoio a
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Fig. 5 Vista parcial da Sala de Arqueologia Clássica © Luís Ferreira Alves
exposições temporárias, bem como a entrada de serviço para cargas e descargas - indispensáveis ao funcionamento do Museu, no que respeita à sua componente técnica específica. No exterior, em que a intervenção se destaca apenas do lado Norte e se mantêm no essencial os elementos existentes, utiliza-se o carácter abstracto do corpo intermédio para criar a transição entre o volume marcado do alçado Estado Novo e a linguagem contemporânea da nova construção, na qual se utiliza o granito como revestimento. O desenho para a mostra permanente (com um conjunto de colecções muito diversificado que inclui Iconografia local, Arqueologia, Numismática, Ourivesaria, Mobiliário, Arte Sacra, etc.) procura construir um percurso formal e materialmente coerente, criando um conjunto autónomo de estruturas que conformam a exposição e que tomam o edifício como suporte abstracto, ele próprio parte da mesma exposição. A partir do suporte vertical básico desenvolvem-se os restantes módulos — vitrinas horizontais e verticais — que se adaptam às exigências dos materiais a expor: ao painel de ardósia sobre estrutura metálica acrescentam-se o vidro, o aço, a chapa de alumínio negra e a iluminação, quando necessários. No espaço exterior a intervenção foi executada nas áreas que constituíam o antigo jardim do Museu (desenhado e plantado nos anos 40) e na parte não edificada do lote contíguo; foi prevista, essencialmente, a manutenção das áreas lajeadas existentes (que se relacionam com a cota do piso de entrada no Museu) e o alargamento da plataforma ajardinada - aumentando a sua expressão e reforçando o carácter unitário da intervenção. Foi executada a colocação de novos lajeados em áreas pontuais e de transição (entre espaços com cotas e características distintas), a pavimentação dos percursos de serviço a Nascente e a Poente e a construção ou reformulação dos muros envolventes, procurando criar uma imagem institucionalmente digna e mais aberta ao exterior. Com a participação da artista plástica Cristina Valadas, e utilizando o material vegetal existente (árvores e buxo), o carácter formal do antigo jardim foi ainda questionado, transformando-se numa vasta plataforma lúdica, marcada por um percurso/labirinto em espiral que termina num pequeno espelho de água, centro de uma composição essencialmente orgânica. Porto, 2006
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Fig. 1 Casa de Camilo - Centro de Estudos Fachada sul Š Fernando Guerra / FG + SG
Bibliotecário e Museólogo da Casa de Camilo | jmro@netcabo.pt
Álvaro Siza Vieira A Casa de Camilo Arquitecto | siza@mail.telepac.pt
Em torno da Casa de Camilo Castelo Branco nasceu um programa coerente e regular orientado para o conhecimento e divulgação do legado do escritor, que deu origem ao Centro de Estudos Camilianos. Este complexo, inaugurado em 2005, baseia-se num programa museológico que contempla valências de conservação, investigação, divulgação e educação, com espaços de reserva de acervos, de leitura, de exposições temporárias, auditório, cafetaria, esplanada e palco ao ar livre, disponibilizando ao público excepcionais condições de fruição cultural. Numa descrição sumária do projecto arquitectónico do Centro, que integra a Casa de Camilo e a Casa do filho Nuno, percorremos os diferentes espaços deste complexo, inserido num plano global que requalifica toda a área envolvente ao museu, enquadrando a recuperação e as novas construções previstas, que incluem o Centro Paroquial e Social, na malha urbana da aldeia de S. Miguel de Seide. From the house which once belonged to Camilo Castelo Branco (Casa de Camilo Castelo Branco), a logical and regular programme based on the knowledge and promotion of the writer’s legacy was created, which culminated in the Centro de Estudos Camilianos (Studies Centre on Camilo Castelo Branco). This centre, founded in 2005, is based on a museological programme which takes into consideration preservation, research, promotion and education, with areas dedicated to storerooms, library, temporary exhibitions, auditorium, coffee shop, terrace and outdoor stage, providing excellent conditions for cultural enjoyment. A brief description of the Centre’s architectural project, which is part of the Casa de Camilo and the Casa do filho Nuno (the house which belonged to his son, Nuno), covers the different areas of the centre, which in itself belongs to a wide plan of renovation of the area surrounding the museum, including recovery and new constructions, such as the Parochial and Social Centre of the village of S. Miguel de Seide.
PALAVRAS-CHAVE: Camilo Castelo Branco, memória, romantismo, património literário, programa museológico, projecto arquitectónico, espaço expositivo.
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José Manuel Oliveira Uma casa, uma memória
José Manuel Oliveira Uma casa, uma memória
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modo como se tem olhado e cuidado, na aldeia de S. Miguel de Seide, da memória de uma personalidade cuja obra adquiriu o estatuto de bem intemporal, pode representar, para a cultura e museologia portuguesas, um exemplo de permanente dedicação e empenho para que a existência do local referencial da vida e da actividade literária de um escritor, e o trabalho em torno dos bens culturais que contém, constituam intermediários da maior valia para facultar o conhecimento do homem e do criador literário, seja através da aproximação do leitor aos espaços da sua intimidade e dos seus textos, seja pela implementação de um programa coerente e regular orientado para a divulgação de tudo quanto se relacione com o seu percurso biográfico, a respectiva bibliografia, a sua estética e o seu tempo histórico. Foi a iniciativa de um grupo de amigos de Camilo que possibilitou a abertura do museu ao público, em 1922, fazendo renascer das cinzas a moradia onde ele se entregou febrilmente à actividade da escrita, recheando-a com o que puderam, então, reunir da mobília que lhe pertencera, dos manuscritos, dos livros e dos seus objectos pessoais. Sem depreciar o esforço realizado, o empreendimento suscitou, até à década de 40, uma forte contestação de vários intelectuais, sobretudo porque a criação do museu ficava sujeita à condição de acolher os alunos da Escola Primária local, e de ser residência do professor nela colocado. Concluíam que a memória camiliana teria outra importância e alcance se desentranhassem do museu funcionalidades que se lhe não ajustavam e se ele beneficiasse da ocupação de toda a vivenda. Os apelos teriam enorme reflexo, dado que, em 1956, após vários anos de meticuloso trabalho de reconstrução de todo o edifício, de restabelecimento de interiores, e de recolha agenciada de um conjunto muito completo e valioso de bens ali existentes no tempo do escritor e, agora, colocados nos locais próprios, a casa reabriu as suas portas, liberta da sala de aula e dos aposentos do professor, e apresentando, com muita fidelidade, a ambiência coeva do romancista, de maneira a sugerir o seu viver quotidiano e o ambiente doméstico que o rodeava, bem como os dramas de Camilo e da sua família nuclear. Porém, cedo se percebeu que ela não podia limitar-se à função de expor objectos mostrados e explicados ao público com maior ou menor interesse para o visitante, mas devia assumir-se também como pólo catalizador do estudo e da investigação sobre a vida e a obra do seu patrono. A Casa de Camilo deveria ser, cumulativamente, Centro de Estudos Camilianos1. O aparecimento do “Boletim da Casa de Camilo”, em 1966, foi o primeiro passo dado com essa finalidade, uma vez que os estudos de temática camiliana encontravam nele um lugar privilegiado de publicação, e, por seu intermédio, se passava a dar informação actualizada da bibliografia activa e passiva editada. Facto proeminente foi, depois, a criação, em 1987, do Centro de Estudos Camilianos, incumbido de elaborar o inventário dos acervos reunidos na Casa-Museu, promover a investigação no domínio dos estudos camilianos e criar condições para essa promoção […], e o acolhimento a quantos [quisessem] desenvolvê-los; levar Camilo às escolas e ao grande público, através de programas sistematizados e adequados2.
1 TORRES, António
Maria Pinheiro, 1964, O Boletim da Casa de Camilo, Boletim da Casa de Camilo, Vila Nova de Famalicão, 1.ª Série, 1 (Jan.-Mar.) 1.
2
CASTRO, Aníbal Pinto de, 1987, O sonho que alguns de nós acalentamos durante vinte e cinco anos e hoje se torna realidade, Boletim da Casa de Camilo, Vila Nova de Famalicão, 3.ª Série, 9/10 (Dez.) 110.
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Fig. 2 Fachada sul - pormenor Š Fernando Guerra / FG + SG
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A concretização progressiva destas atribuições funcionais, a multiplicidade e variedade das acções levadas a cabo, o enriquecimento do acervo da instituição, a necessidade de espaço físico que garantisse quer o melhor acondicionamento e conservação das colecções quer a adequada recepção aos seus diferentes públicos, e que redimensionasse as vertentes didáctica, pedagógica e científica do museu e do centro de estudos, foram alguns dos argumentos que fundamentaram a construção em terrenos fronteiros à casa do escritor de um complexo estrutural idealizado pelo Arquitecto Álvaro Siza Vieira. Inaugurado em 1 de Junho de 2005, o edifício contempla basicamente áreas destinadas ao público (sala de leitura, sala de exposições temporárias, auditório, cafetaria, esplanada e palco ao ar livre) e outros para os serviços técnicos (gabinetes dos funcionários e reservas). O aproveitamento das potencialidades dos espaços disponibilizados ao público e a exploração das condições de excepção para ocasionar a fruição cultural a todos os cidadãos abriu o leque das relações do museu com a sociedade, possibilitando implementar programas no âmbito da educação formal, não formal e informal; diversificar a programação cultural e, consequentemente, a respectiva oferta para os diferentes públicos alvo; permitir a consulta e o estudo dos bens culturais que integram os acervos camilianos; explorar as afinidades e as cumplicidades entre a Literatura e as Artes; e aprofundar o debate sobre as obras do autor e o conhecimento do enquadramento histórico-cultural inerente aos múltiplos aspectos que se entrelaçam nos seus textos. Tudo isto, sem descurar a vertente do lazer e do bemestar. Por sua vez, as reservas propiciam o adequado acondicionamento e preenchem os requisitos estruturais e técnicos para a conservação dos espólios bibliográfico, documental e iconográfico, e os gabinetes dos funcionários possibilitam que se continue o trabalho de tratamento e disponibilização da informação concernente ao romancista. Um dos méritos do projecto museológico de Seide reside na capacidade de transformar a ampliação de instalações que colmatam carências estruturais significativas, num empreendimento que requalifica toda a área envolvente ao museu e o oxigena de condições que exponenciam sobremaneira a sua acção e intervenção no conjunto das instituições culturais portuguesas e de outros países. Ao conjugar, com invulgar suavidade e beleza, a memória do escritor com o risco do arquitecto, numa espécie de diálogo harmonioso entre a construção de tipo tradicional e a de cariz contemporâneo, a Casa de Camilo coloca-se na rota da melhor arquitectura actual, aproveitando o prestígio mundial de Siza Vieira e utilizando-o como um recurso de inestimável importância e valor para a divulgação do escritor e para a promoção da sua obra muito além das fronteiras nacionais e da lusofonia. Mas esta aposta cultural é também a expressão de uma enorme gratidão para com Camilo Castelo Branco e o seu legado. Se o país herdou dele um património literário que, embora circunscrito a um período muito preciso que é o Romantismo, é de indiscutível valia para o estudo e compreensão do povo português, cabe-lhe continuar a garantir que o refúgio das dores do Mestre, que foi também lugar privilegiado da sua escrita, se transmita, vivo, de geração em geração, para agir como um dos valores máximos da arte da criação ficcional e do culto da língua portuguesa, como símbolo ad perpetuam gloriam sermonis Lusitanae gentis.
Fig. 3 Auditório © Fernando Guerra / FG + SG Fig. 4 Sala de leitura - pormenor © Fernando Guerra / FG + SG
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Álvaro Siza Vieira A Casa de Camilo
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Centro de Estudos Camilianos integra um complexo que inclui a Casa de Camilo Castelo Branco e a casa do filho Nuno. Cada um dos edifícios dispõe de um terreno murado de dimensões apreciáveis. Juntamente com a Igreja de Seide (recentemente restaurada) e algumas construções privadas arquitectonicamente interessantes, o Complexo Camiliano delimita o Largo do Cruzeiro, espaço arborizado onde foi colocado o busto em bronze de Camilo. Este belo espaço público tem todas as condições para ser recuperado e optimizado. A Direcção da Casa de Camilo definiu com precisão o programa necessário à instalação do Centro de Estudos Camilianos; e compreendeu, tanto quanto a Câmara Municipal de Famalicão, a indispensabilidade de um plano global, enquadrando a recuperação e as novas construções previstas (para além do Centro de Estudos Camilianos, está projectado o Centro Paroquial e Social de Seide). Sendo contíguas as propriedades – da Casa do Nuno e do Centro de Estudos Camilianos – foi decidido manter um só acesso, correspondente à entrada principal da primeira construção. A partir daí e de acordo com o novo traçado do jardim farse-á o acesso quer à Casa do Nuno (a transformar em casa de hóspedes) quer ao próprio Centro de Estudos. Não se realizou ainda a recuperação da Casa do Nuno, o Centro Paroquial de Seide e o arranjo do Largo do Cruzeiro. O percurso definido conduz a um pátio, ladeado por três corpos, ocupados pelo átrio e recepção, pela sala de leitura e pela sala de exposições. O espaço expositivo, dotado de iluminação natural e eléctrica, está subdividido em três áreas de diferente dimensão, e dispõe de acesso directo, a partir do pátio. O grande átrio é o espaço de acesso a todas as áreas constituintes do programa, públicas ou de serviços internos, das quais se destaca, para além das já citadas, o auditório, a cafetaria e os espaços administrativos. Em piso inferior, com acesso directo a partir do arruamento envolvente da propriedade (possível pela pendente do mesmo), situam-se os espaços técnicos e os arquivos. Todo este conjunto, que abrange uma área de 2315 m2, está articulado em torno de três pátios ajardinados, de modo a conseguir uma boa distribuição de luz natural e a escala justa para as dimensões e carácter da envolvente. Os diferentes volumes, nunca visíveis na globalidade, estão envolvidos pelo jardim e pelos muros e ramada recuperados. O novo Centro de Estudos Camilianos está apto a responder ao funcionamento interno, à organização de eventos vários e à afluência de visitantes, cada vez em maior número, em resultado do crescente interesse pela obra e personalidade de Camilo Castelo Branco, para o qual muito tem contribuído o constante empenho da direcção da Casa de Camilo. Fig. 5 Sala de exposições temporárias © Fernando Guerra / FG + SG Fig. 6 Átrio - pormenor © Fernando Guerra / FG + SG
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Fig. 7 Entrada principal © Fernando Guerra / FG + SG
Fig. 9 vista aérea © António Freitas
Fig. 8 Fachada norte © Fernando Guerra / FG + SG
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Fig. 1 Museu de Portimão Casa do Descabeço da fábrica a museografar e incluir no percurso expositivo © José Gameiro, Dezembro 2006
José Gameiro Um programa museológico para Portimão Director de Projecto - Museu de Portimão | jose.gameiro@cm-portimao.pt
Isabel Aires e José Cid Do projecto ao museu Arquitectos | pgi.cid@netcabo.pt
The acquisition of an old preserves factory in Portimão, with its restoration and adaptation to museum in mind, made it possible to create a specific museological programme, based on cultural and scientific principles and an urban renewal. It would also include and acknowledge the most significant elements of its architecture, as part of the industrial heritage and the city’s riverside. The adaptation resulted from a progressive approach towards the project – through the combination of museology and architecture, an added factor towards the appreciation of a final solution. While capable of including alterations dictated either by the building’s conditions, or by the programme’s evolution, solutions of great flexibility were adopted to better support unforeseen situations or future developments.
PALAVRAS-CHAVE: Programa museológico, requalificação, património industrial, projecto, arquitectura, conhecimento, multidisciplinar, flexibilidade.
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A aquisição de uma antiga fábrica de conservas em Portimão, visando a sua reabilitação e adaptação a museu, possibilitou a elaboração de um programa museológico específico centrado nas valências cultural, científica e de requalificação urbana, integrando e valorizando os elementos mais relevantes da sua arquitectura, enquanto elemento do património industrial e da envolvente ribeirinha da cidade. A adaptação decorreu de um processo multidisciplinar interactivo de aproximação progressiva ao projecto – num diálogo entre a museologia e a arquitectura, factor acrescido para a valorização da solução final – capaz de integrar as alterações ditadas, quer pelas condicionantes entretanto identificadas a nível dos edifícios, quer pelas evoluções programáticas determinadas por esse mesmo processo de (re)conhecimento, mediante a adopção de soluções técnicas de grande flexibilidade, suportando melhor imprevistos ou as evoluções que o futuro venha a aconselhar.
José Gameiro Um programa museológico para Portimão Da fábrica ao museu, do museu à comunidade
A
pós a aquisição da antiga fábrica de conservas “Feu Hermanos”, em 1996, pela Autarquia de Portimão, a acção museológica local assume, a partir dessa data, uma orientação claramente motivada e direccionada para a transformação daquele edifício industrial, nas futuras instalações do Museu de Portimão (fig. 2). Definidas as práticas museológicas e o trabalho em curso no Município, desde 1983, numa perspectiva interdisciplinar de um Museu de Sociedade, de Identidade e de Território, cuja missão apontava o Museu de Portimão como um observatório permanente e uma estrutura de mediação cultural para investigar, conservar, interpretar, divulgar e valorizar os testemunhos materiais e imateriais mais relevantes, da história, do património, do território, da memória e identidade da comunidade local e regional, na sua interacção com o mundo, interessava agora, perante o contexto da referida aquisição, lançar as bases programáticas que integrassem o “corpus” museal já adquirido, na solução museológica final que se impunha e estabelecia, entre os dois lugares: o de origem (a Fábrica) e o de destino (o Museu). Deste modo, haveria que ter em conta a complexidade e o grau de preservação das fronteiras sempre frágeis, entre o nível simbólico, histórico e patrimonial das memórias que habitaram o imóvel, acautelando a integridade e manutenção das referências e preexistências construtivas significantes (fig. 1), presentes na modulação do edifício/espaço fabril. A estas condicionantes haveria que associar as necessidades induzidas pelas novas relações de funcionalidade, comunicação, mediação museológica e cultural, a estabelecer pelo Museu, pensadas e dirigidas à diversidade dos seus públicos. No caso de Portimão, o programa museológico constituiu-se assim, como uma visão prospectiva das opções e políticas globais do Museu, definindo o modelo, a estrutura e a escala de prioridades das suas actividades, enunciando com clareza a correspondência entre a missão e objectivos do Museu e a correspondente organização espacial e funcional pretendida. O programa museológico começa por recensear e definir as linhas gerais norteadoras da futura acção do Museu (conteúdos históricos, bens patrimoniais, actividades museológicas, científicas e culturais a desenvolver), e as condicionantes que a segurança e as normas de conservação preventiva aconselham, tendo em conta o próprio edifício. Os condicionalismos naturais, geográficos e geológicos do terreno de assentamento da fábrica, as suas características tipológicas, incidência solar, poluição, índices anuais de temperatura/humidade e o grau de sismicidade da região, foram alguns dos principais aspectos a considerar no desenho final das opções, presentes na programação enquanto Museu, reforçando um estatuto de “invólucro protector”, condição base na perspectiva da conservação preventiva, para assegurar um grau de eficiência intrínseco à própria solução arquitectónica e estrutural do edifício, em termos de resistência e inércia, como primeira barreira física aos agentes poluentes, face à diversidade dos factores de agressão externos. Três eixos programáticos, programa cultural, programa científico e programa de requalificação urbana, foram igualmente considerados, na antecipação da selecção das opções dos espaços e funcionalidades a desenvolver.
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Fig. 2 Vista aérea do museu em construção © Foto Tempera, Abril 2006, Museu de Portimão
O programa cultural espelha o grau da capacidade de comunicação da instituição, prevendo desde logo a adaptabilidade dos seus espaços públicos com as funções de acolhimento, encontro, exposição, animação, formação e fruição. Ao programar para as pessoas, o Museu revela a sua função social, enquanto parceiro do desenvolvimento local e factor de democratização cultural, numa perspectiva de centro multifuncional, prestador de serviços à sua comunidade de referência e públicos-alvo. O programa científico pressupõe uma forte relação de proximidade com o âmbito e a tipologia do Museu, na decisão, igualmente programável, do perfil e valências profissionais da equipa, do seu quadro de pessoal, na definição dos trabalhos de investigação, intervenção e divulgação científica, condicionando e facilitando a inclusão dos espaços técnicos de trabalho, controlo e monitorização, sala de estágios, de documentação, áreas oficinais, laboratórios, reservas, etc... Deste modo o Museu constitui-se também como um centro de estudos e recursos educativos, lugar privilegiado da formação contínua, acautelando as condições do seu envolvimento com as especialidades específicas e de acordo com o seu programa científico, com evidentes repercussões no programa cultural da instituição. O programa de requalificação urbana reforça a oportunidade para uma reformulação qualitativa da envolvente urbana, na qual se integra o imóvel industrial, representando simultaneamente uma mais-valia pela inclusão de elementos patrimoniais (no exterior) a museografar e directamente conexos com o “espírito do lugar”, (guindaste Marion 2, transportador de peixe, passadiço do cais embarque, etc.), democratizando espaços e acessibilidades, introduzindo equipamentos colectivos, regenerando a área enquanto elemento aglutinador de novas vivências e futuro destino público de referência, na zona ribeirinha da cidade. Assim optou-se por considerar duas tipologias de espaços funcionais: espaço público (subdividido em acesso livre exterior, interior e condicionado) e espaço reservado (área técnica, administrativa e reservas), constituindo entre eles um todo coerente, organizado segundo o princípio da flexibilidade e complementaridade funcionais, dotado em síntese,
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Fig. 3 Quadro da organização espacial e funcional © Museu de Portimão
das áreas específicas constantes da sua organização espacial e funcional (fig. 3), sem comprometer as volumetrias e principais referências do património industrial como a fachada principal, as grandes naves, asnas, sheds, chaminé, “casa do descabeço”, cisterna, socos, frisos de massa cheia, etc.). O programa museológico preliminar, incluído desde logo no Programa do Concurso Público (GAMEIRO 1999), para o Museu de Portimão, lançado em 1999, surge assim, como um instrumento indispensável, para reflectir o modo como a política cultural e científica do Museu, seria colocada à consideração das cerca de 18 equipas projectistas, concorrentes ao estudo prévio de arquitectura, transformando-se num importante documento de referência, para a cooperação e o permanente diálogo, praticado entre a equipa vencedora e a equipa do Museu. O Museu de Portimão, cuja construção se encontra em fase de conclusão, abrirá ao público em 2007, representando um investimento global, estimado em 9.378.454 €, comparticipado com uma taxa de 50%, pelo Programa Operacional da Cultura (POC), procurando-se desenvolver, na reutilização da antiga fábrica, 4 grandes objectivos programáticos: 1 - Reabilitar o património histórico-industrial; 2 - Valorizar a relação da Cidade com o Rio; 3 - Interpretar e divulgar a evolução histórica, territorial e social da comunidade; 4 - Potenciar a formação e fruição de novos públicos, desenvolvendo uma oferta cultural de qualidade. Portimão, Dezembro de 2006
Referências bibliográficas GAMEIRO, José, 1999, “Programa Museológico Preliminar”, Caderno de Encargos do Concurso Público, para a Elaboração do Estudo Prévio do Projecto do Museu Municipal de Portimão, Portimão, C.M.P.
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Fig. 4 Antigo edifício administrativo © Isabel Aires e José Cid, Novembro 2006 Fig. 5 Planta do piso 0 © Isabel Aires e José Cid, Novembro 2006
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Isabel Aires e José Cid Do projecto ao museu
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projecto do futuro museu de Portimão tinha por objecto central a instalação deste equipamento numa antiga fábrica de conservas – a Fábrica Feu Hermanos – para o qual o caderno de encargos estabelecia um detalhado programa, ao mesmo tempo que definia com rigor os conceitos museológicos que lhe serviam de base. Perante um edifício de tipo fabril, que vai ser simultaneamente contentor e agente do próprio conteúdo museográfico, resultava para nós evidente, o interesse de preservar a sua estrutura arquitectónica, incluindo o seu carácter industrial, de modo a integrá-lo também no discurso expositivo e na articulação entre os vários sectores do novo Museu, em consonância com os objectivos programáticos de interpretação e divulgação da identidade, da história e do património das comunidades locais. O sucesso da remodelação e adaptação a novas utilizações de um edifício existente depende em larga medida de conseguir-se introduzir o mínimo possível de alterações, maximizando o aproveitamento da sua lógica estrutural e dos espaços preexistentes. Para tanto, é indispensável que dois processos projectivos avancem em paralelo, aprofundando simultaneamente o conhecimento do edifício (e da sua envolvente) e a interpretação do programa e novos usos propostos, segundo critérios de adaptação e flexibilidade que promovam a sua adequação e sugiram, até, a sua valorização funcional mediante o recurso a valências não previstas. Flexibilidade - tal como o Programa do Concurso exigia - foi um dos conceitos chave que fundamentou a solução proposta, que veio a revelar-se decisivo logo durante as fases subsequentes de desenvolvimento do projecto, já que na sequência dos resultados das prospecções e levantamentos entretanto realizados, nomeadamente das patologias existentes, foi necessário introduzir inúmeras correcções na solução original, que se revelou capaz de as integrar, sem desvirtuar as principais opções arquitectónicas e programáticas. Da mesma forma, foi possível enquadrar posteriormente todo um conjunto de novas valências ou o redimensionamento de outras, em função da própria evolução do programa das instalações resultante do processo interactivo levado a cabo entre equipa responsável do Museu e os projectistas. Neste campo, deve-se salientar a importância decisiva que tem a existência de um diálogo permanente entre os principais intervenientes no projecto de um museu, onde o sucesso do empreendimento depende em larga medida da capacidade comunicação e de interpretação comum das exigências técnico-funcionais colocadas em cada momento, tanto no plano cientifico e museológico como no plano arquitectónico, única forma de garantir a adequação efectiva das soluções adoptadas aos objectivos programáticos, museológicos e científicos estabelecidos. A entrada no museu far-se-á pelo Átrio Principal preferencialmente pelo lado do Rio e é um espaço de grande largueza e expressividade - marcado fortemente pelo seu tecto semicilíndrico – situado em posição estrategicamente central, na charneira entre os locais de exposição, que ocupam as grandes naves centrais e as reservas do museu, implantadas na nave situada mais a Sul na extremidade da qual se localizou a Entrada de Serviço, no único ponto onde era possível viabilizar o acesso de veículos pesados.
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Fig. 6 Átrio © Isabel Aires e José Cid, Novembro 2006
Fig. 7 Exposição permanente © Isabel Aires e José Cid, Novembro 2006
Dito desta forma parece simples, mas é precisamente essa aparente simplicidade que se pretende atingir com a metodologia aproximação ao Programa acima esboçada. O espaço de Exposição Permanente, o de maior extensão do Programa, ocupou de modo natural a grande nave fabril central - Edifício D - relacionado-se orgânica e espacialmente tanto com a nave adjacente do lado do rio, a chamada “casa de descabeço” que se pretendia reabilitar e museografar com todo o seu antigo equipamento fabril, como com as salas destinadas às Exposições Temporárias que, do lado oposto, ocupam ambos os pisos do corpo central do antigo edifício administrativo - Edifício A2 - que margina a rua. As possibilidades de interacção entre estes espaços expositivos são inúmeras. As Reservas e as Áreas Técnicas foram instaladas na segunda maior nave fabril - Edifício E - e no nível térreo do Edifício A3 (Oficinas e Laboratórios), em cujo piso superior se posicionaram os Serviços Administrativos, situados assim numa posição muito vantajosa do ponto de vista funcional. Refira-se que esta nave (Edificio E) correspondia à zona mais antiga da fábrica, onde eram mais evidentes os problemas de fundação que se comprovaram atingir todo o conjunto fabril, de tal maneira que houve que ponderar e eventualmente decidir, a sua integral reconstrução, de forma a conter os custos dentro de limites aceitáveis. Esta decisão permitiu, por outro lado, duplicar a área inicialmente destinada a reservas já que tornou possível, introduzir um piso intermédio suplementar e, ao mesmo tempo, aumentar decisivamente as qualidades construtivas desta importante parte do museu, dotando-a de excelentes condições de protecção térmica e de segurança física (estrutura anti-sísmica) indispensáveis no quadro dos actuais conceitos de conservação preventiva. Os restantes espaços fabris mantêm, contudo, muito do seu cariz, centrando-se a intervenção projectada numa cuidada recuperação estrutural, incluindo o reforço das fundações com micro-estacas e na remodelação qualitativa das respectivas áreas e da sua envolvente, dos acabamentos e das infra-estruturas e instalações especiais previstas.
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A antiga Cisterna, existente sob a Sala de Exposições Permanentes, foi aproveitada para a criação de um percurso museológico que o visitante realizará caminhando, na penumbra, numa estreita passarela implantada sobre a água que recobre o seu fundo, criando-se, com recurso a meios multimédia de alta qualidade, um momento de forte impacto cenográfico dotado de óbvias possibilidades de evolução e actualização, susceptível de se afirmar como um dos pontos altos da visita. Na nave fabril de construção mais recente – Edifício G - com a sua cobertura em “shed” implantou-se o Arquivo Histórico/Centro de Documentação, que pode ter um funcionamento autónomo ou interligado com a Entrada Principal (flexibilidade acrescida) e conferindo-lhe, ao mesmo tempo, o desejado destaque arquitectónico e um melhor aproveitamento interior, através da utilização do piso intermédio criado sobre o novo corpo interior do respectivo Depósito. Neste local, a demolição das restantes construções muito degradadas e sem valor arquitectónico relevante, que existiam entre a Fábrica e o rio, permitiu a construção de um novo volume de dois pisos destinado à Cafetaria/Restaurante de apoio ao Museu e que vai dispor de uma panorâmica espectacular sobre o rio Arade. Por fim, o Auditório é também uma construção totalmente nova, implantada na parte oposta da fábrica, na zona de fronteira com os edifícios das fábricas adjacentes a norte, onde se revelava igualmente mais difícil proceder à recuperação e reaproveitamento das construções existentes, constituindo-se a nível da imagem do conjunto num remate que propõe uma linguagem arquitectónica claramente diferenciada, apta a estabelecer a separação/ligação entre o Museu e os referidos edifícios da sua vizinhança. Também aqui, a solução proposta tirou partido das características do espaço disponível, cuja forma em trapézio se revela particularmente apta para receber o Auditório, ficando os serviços conexos situados na parte do corpo inicial do antigo Edifício Administrativo (Edifício A1), dispondo de entradas autónomas tanto do lado da Rua como do Rio. A terminar, uma referência à complexidade das obras de reforço estrutural de fundações e paredes que houve que projectar e das instalações especiais que constituem as infraestruturas de apoio ao funcionamento do museu, em cuja concepção se procuraram respeitar critérios actuais de sustentabilidade e de facilidade de manutenção, os quais, entre outros aspectos, ditaram a existência de generosas áreas técnicas, incluindo galerias enterradas que asseguram também uma fácil adaptação a novas exigências, que venham a surgir nas salas de exposição situadas no piso superior. A proximidade do Rio Arade foi aproveitada para conseguir importantes ganhos energéticos, através da utilização da sua água no pré-arrefecimento dos sistemas de climatização, os quais foram concebidos de forma diferenciada consoante as utilizações e a dimensão das áreas que vão servir. O aquecimento das grandes salas de exposição é garantido por piso radiante, apoiado por adequada renovação do ar ambiente. O Museu de Portimão será, portanto, o culminar de um vasto e participado trabalho de equipa, envolvendo tanto, os técnicos das muitas especialidades de projecto que aqui intervieram, como os técnicos e os responsáveis do Município. Lisboa, 6 de Dezembro de 2006
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Fig. 8 Casa do Descabeço © Isabel Aires e José Cid, Novembro 2006
Fig. 10 Cisterna © Isabel Aires e José Cid, Novembro 2006
Fig. 9 Arquivo histórico © Isabel Aires e José Cid, Novembro 2006
Fig. 11 Áreas técnicas © Isabel Aires e José Cid, Novembro 2006
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Fig. 1 Museu da Chapelaria Sala de exposições de longa duração - piso 1 fotografia de Aníbal Lemos Fig. 2 Rampa de transição entre o 2º e 3º piso fotografia de Aníbal Lemos
Fig. 3 Sala de exposições de longa duração - piso 2 fotografia de Aníbal Lemos Fig. 4 Exposição de longa duração - piso 3 Bancada de Apropriagem fotografia de Museu da Chapelaria
Suzana Menezes Do seu conceito e programa museológico Coordenadora do Museu da Chapelaria | menezes.suzana@gmail.com
Arquitecta da Câmara Municipal de S. João da Madeira | suzanafernandes@cm-sjm.pt
Apresentação sumária do conceito museológico subjacente à criação do Museu da Chapelaria e do respectivo programa, enquanto museu de “quem trabalhou nesta indústria”, reflectindo especificamente em torno da construção das exposições de longa duração, de interactividade e de experiências multisensoriais. Na adaptação a museu da antiga Empresa Industrial de Chapelaria mantiveram-se as características duma tipologia de edifício industrial ainda reconhecível localmente. Uma das particularidades mais marcantes do edifício consiste numa estrutura metálica de pilares e vigas sobre as quais assenta o pavimento de placas metálicas perfuradas que receberam soalho de tábua corrida, criando uma situação original de transparência e visibilidade da maquinaria exposta. O museu foi dotado de áreas de exposições e de apoio ao desenvolvimento e manutenção das exposições, administrativa, educativa, de centro de documentação, arquivo e reservas, auditório, restaurante/bar e loja e parque de estacionamento. This article describes the museological concept underlying the creation of the Museu da Chapelaria and its respective programme, while museum of “those who have worked in this industry”, and reflects specifically on the creation of permanent exhibitions, interactions and multisensory experiences. While the old Industrial Hat Company was being transformed into museum, the main features of the industrial building, still recognizable locally, were maintained. One of the building’s most remarkable features is a metallic structure made of pillars and beams, supporting a floor of metallic perforated sheets covered with parquetry, providing transparency and visibility to the exposed machinery. The museum was furnished with exhibition areas, areas dedicated to the development and maintenance of exhibitions, administrative and educational rooms, a documentation centre, archives and storerooms, an auditorium, a restaurant/ bar, a shop and a car park.
PALAVRAS-CHAVE: Indústria da chapelaria, programa museológico, exposições de longa duração, histórias de vida, interactividade, interpretação/instalação, edifício industrial, projecto de arquitectura.
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Suzana Fernandes Do projecto de arquitectura
Suzana Menezes Do seu conceito e programa museológico
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Museu da Chapelaria nasceu da articulação entre um programa museológico e um projecto de arquitectura. Se por um lado havia que museografar a indústria da chapelaria, por outro, havia que pensar no tipo de recuperação e valorização que se pretendia para o edifício da antiga Empresa Industrial de Chapelaria. Numa primeira fase de trabalhos foi realizado um levantamento das divisões (mesmo as amovíveis ou temporárias) impostas aos espaços arquitectónicos, tendo sido assumida a necessidade de preservar, sempre que possível, todo o mobiliário existente nas instalações. Em simultâneo, foi realizado um inventário completo de todo o espólio, tendo sido assegurada a preservação da documentação encerrada na cave do edifício ou espalhada pelas suas diferentes salas. A fase seguinte prendeu-se com a articulação daqueles dois projectos1, sendo que foram definidas duas grandes áreas funcionais, uma de acesso público e outra de acesso reservado, correspondendo cada uma delas a serviços diferenciados. A área de acesso público seria constituída por zonas destinadas às exposições permanentes e de longa duração e a exposições temporárias, por um auditório, uma zona para desenvolvimento de actividades didáctico-pedagógicas (serviço educativo), um centro de documentação, reservas visitáveis, cafetaria/restaurante, parque de estacionamento e loja; a área de acesso reservado seria destinada aos gabinetes de trabalho, ao espólio em reserva, a operações de conservação preventiva e/ou restauro e a áreas técnicas. Este organigrama serviria posteriormente de linha orientadora para o desenvolvimento do projecto de arquitectura.
1 Refira-se que ao longo de todo este período foram desenvolvidas diversas acções que não apenas as
que aqui se referem. Aliás, em simultâneo com o desenvolvimento de estudo prévio e do organigrama do museu, decorria um exaustivo e importantíssimo trabalho de pesquisa antropológica, realizado por alunos de Antropologia da Universidade Fernando Pessoa, instituição com a qual a Câmara Municipal de S. João da Madeira estava protocolada. Como refere Sérgio Lira, foi desenvolvido “(…) trabalho de terreno, no âmbito da recolha das memórias dos que trabalharam nas fábricas de chapelaria, (…) desenvolvido por alunos do curso de Antropologia que elaboraram um ficheiro de informantes e usaram a metodologia das entrevistas semidirectivas para construir histórias de vida; a organização do espólio foi também iniciada permitindo obter uma ideia clara do existente; por outro lado foi também realizada observação directa de indústrias ainda em laboração no sentido de descrever a cadeia operatória e a organização espacial dos espaços industriais; sobre este trabalho de terreno desenvolveu-se o programa museológico que, para além de definir as diferentes áreas funcionais do museu, estabelece as utilizações das diversas áreas das exposições permanentes, prevendo o(s) percurso(s) de visita e as áreas de exposição e de interpretação.” LIRA, S., 2002, O Museu da Indústria de Chapelaria de S. João da Madeira (original, com autorização do autor, s.d., s.p.).
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Fig. 5 Bancada de demonstração de acabamento de chapéus - piso 3 fotografia de Paulo Marcelo Fig. 6 Centro de Documentação fotografia de Paulo Marcelo
Fig. 7 Vista da Sala de Exposições temporárias Exposição: “Os dias do Holocausto” fotografia de Paulo Marcelo
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Do ponto de vista das funcionalidades atribuídas a cada um destes espaços, e que resultavam necessariamente do conceito e vocação2 definidos para o museu, o que este programa museológico e projecto de arquitectura espelhavam era a criação de zonas próprias em função dos serviços que se pretendiam vir a implementar, sendo que o desafio maior se colocava relativamente à construção das exposições permanentes ou de longa duração. Toda a ala norte do edifício foi reservada para as exposições de longa duração, sendo que, se por um lado era objectivo apresentar a cadeia operatória do ponto de vista da sua cronologia operativa e do ponto de vista da sua cronologia tecnológica, por outro, assumia-se como premissa fundamental garantir que o museu não seria apenas depósito destas máquinas mas, mais do que isso, um museu de quem trabalhou nesta indústria. Finalmente, entendia-se que estas exposições deveriam ser interactivas e, nessa medida, possibilitar aos seus visitantes experiências multisensoriais, o que implicaria concebê-la de forma a que o cheiro, o toque, a audição e, naturalmente, a visão, pudessem entrar em jogo no momento da visita. Para a criação destas exposições existia uma significativa colecção material, composta por máquinas, ferramentas, artefactos variados, matérias-primas, mobiliário de escritório e produtos em diversas fases de acabamento, uma interessante colecção de sons de máquinas e ferramentas em funcionamento3, uma importante recolha de testemunhos orais4, uma vasta colecção fotográfica que ia da fábrica ainda em plena laboração ao momento do seu encerramento5, passando ainda por fotografias de todos os informantes que trabalharam com a equipa do museu e, finalmente, uma vasta colecção de documentos e fotografias que havia feito parte do espólio documental da fábrica. Com aqueles pressupostos e com estas colecções foi definido o discurso expositivo do ponto de vista museográfico e museológico. Recolhendo todos os testemunhos possíveis que permitiam reconstituir os cenários produtivos da fábrica e trabalhando especificamente aquilo que os ex-operários, agora informantes do museu, consideravam fazer sentido dentro do museu, estabeleceu-se uma exposição compartimentada em seis áreas funcionais6.
2
Conforme se lê no Projecto de Regulamento Interno do Museu da Chapelaria (ainda não formalmente aprovado), na sua Secção II, do Capítulo I, “Conceptualmente orientado para a temática da Indústria da Chapelaria nos seus contornos de produção, comercialização, usos sociais e impactos económicos, o museu da chapelaria assume-se como um espaço de reflexão, estudo e investigação de uma realidade que moldou toda a História do Concelho, em particular, e da Indústria, em geral. Será um espaço socialmente activo, cultural e pedagogicamente útil, que evocará histórias e memórias, contribuindo dessa forma para aprofundar e divulgar o conhecimento da identidade e cultura sanjoanenses. O museu integrará um plano mais vasto - regional e nacional - de ordenação do património cultural, edificado, arqueológico, etc., sendo entendido como um núcleo a partir do qual outros pólos possam vir a ser criados. Será o ponto de partida para itinerários culturais que toquem outros pontos de interesse da história da indústria do município e da região, ou mesmo que alarguem o âmbito da visita a outras temáticas, oferecendo aos seus visitantes uma visão mais apurada e interessante da realidade municipal ou regional. Desta forma o museu cumprirá uma das suas funções principais, a de dinamizar a vida cultural e social da comunidade em que está inserido e a de promover o conhecimento sobre essa comunidade, nas suas mais variadas facetas.” (Secção II, Capítulo I do Projecto de Regulamento Interno do Museu da Chapelaria).
3
Esta recolha e posterior tratamento foi realizada por Hugo Morango, no âmbito de um projecto de investigação financiado pela Rede Portuguesa de Museus.
4
Esta recolha foi realizada ao longo de vários anos, por intermédio de projectos financiados pela Rede Portuguesa de Museus.
5
Fazia ainda parte desta colecção um conjunto de fotografias retiradas após o ‘abandono’ da fábrica e ao longo de alguns anos, registando-se assim diferentes momentos de degradação do edifício. Esta colecção de imagens foi realizada entre 1995 e 1997 pelo fotógrafo Aníbal Lemos, tendo dado origem a diversas exposições temporárias, nomeadamente, a exposição “Imagens do Fim e do Princípio” realizada em 2001 aquando das I Jornadas de Museologia da Indústria de Chapelaria e a exposição “Os Rostos da Chapelaria” inaugurada em 18 de Maio de 2006.
6 Apresentadas
ao longo dos 3 pisos desta ala, as áreas expositivas são “Do pêlo”, “Do pêlo ao feltro”, “Do feltro ao chapéu”, “Dedos mágicos”, “Comércio” e “Usos Sociais”.
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Ao entrar na exposição de longa duração, o visitante é confrontado com uma grande nave industrial e uma azáfama intensa de sons, que o fazem sentir estar a entrar dentro de uma fábrica. Surge aqui a primeira torre de interpretação7 intitulada “Do pêlo” onde, para além de uma explicação mais técnica acerca do processo em questão, se pode ler a explicação de Rui Matos Silva, ex-operário da Empresa Industrial de Chapelaria. Este é, de resto, um procedimento comum a todas as legendagens do museu, uma vez que a par de uma explicação técnica é sempre inserido o testemunho do operário que trabalhou nas próprias máquinas. Olhando à sua volta o visitante descobre também diversos armários de experimentação, onde se lê “Veja com a ponta dos dedos” e, lá dentro, diversas matérias-primas em diferentes fases de fabrico estão disponíveis para serem sentidas e cheiradas e até para serem levadas de recordação para casa. Um olhar mais atento permitirá ver ainda as grandes fotografias de operários que nos olham do alto das paredes como se nos quisessem dar as boas vindas. Dito de outro modo, ao visitar o museu, é-se então confrontado com um conjunto diferente de ‘objectos’ que apelam para todos os sentidos, nomeadamente, os sons das máquinas, os rostos e as palavras dos operários, os cheiros e as texturas das matérias-primas e as próprias máquinas. E este é um discurso e uma lógica expositiva que se repetem secção após secção, e ao longo dos três pisos do museu, num labirinto de máquinas cuja disposição nem sempre faz sentido (nem estético nem mesmo produtivo) a não ser para quem de facto conhecia bem esta indústria e sabia que se havia algo que a caracterizava era efectivamente o caos produtivo que obrigava a ‘obra’ a andar para trás e para a frente dentro da mesma secção. Ainda no primeiro piso de exposição o visitante é convidado a entrar numa pequena sala denominada “Caixa Multimédia”, forrada com uma grande imagem de início do século XX que retrata a fase de trabalho que deu o nome de ‘unhas negras’ aos chapeleiros, a fula. Esta é uma sala de interpretação/instalação, com várias possibilidades de utilização do ponto de vista do multimédia. É, por exemplo, o local onde são apresentados vídeos da cadeia operatória, registos áudio de entrevistas realizadas a ex-operários e onde, sempre que possível são realizadas algumas pequenas encenações, nomeadamente, pelos técnicos do serviço educativo e pelos ex-operários que actualmente colaboram com o museu.
A terceira grande área expositiva (“Do feltro ao chapéu”) nasce já no segundo piso do edifício. Sendo este o piso intermédio do edifício, apresenta desde logo a sua primeira particularidade, as máquinas estão assentes em cima de um gradil que permite visualizar todo o andar de baixo (e consequentemente ver as máquinas que ficaram para trás de uma perspectiva inteiramente nova, isto é, ver o seu topo, o que no caso destas máquinas em especial faz todo sentido, uma vez que são de grandes dimensões). Para a concepção deste nível de exposição recorreu-se ao exemplo que diversas pequenas indústrias forneceram ao nível da organização da cadeia operatória e da organização do espaço. A saída desta zona de exposição faz-se agora através de uma rampa8 estrategicamente pensada de forma a permitir visibilidade para o andar que lentamente vamos deixando. E ao longo de todo o percurso (tal como acontecera com a opção arquitectónica do gradil) o visitante vai vendo a secção do “feltro ao chapéu” num nível superior, podendo-se aperceber com mais rigor da organização espacial e produtiva desta secção. Chegado ao terceiro piso de exposição, o visitante é recebido por um painel em forma de caixa de luz, onde uma grande imagem apresenta a mão de um ex-operário segurando um ferro de aferrear. Inicia-se aqui um outro mundo, o dos dedos mágicos, e duas novas secções de trabalho, todo ele manual, a apropriagem, realizada apenas por homens, e o acabamento do chapéu, realizado exclusivamente pelas mulheres. Esta zona de exposição tem como particularidade o facto de ter uma bancada de trabalho onde a Sra. D. Deolinda Silva, ex-operária da Empresa Industrial de Chapelaria, todos os dias acaba os chapéus que são vendidos na loja do museu, podendo o visitante acompanhar as tarefas inerentes ao processo de acabamento e ouvi-la contar as histórias que fizeram história dentro da fábrica, a sua experiência de vida enquanto chapeleira e um sem número de outras informações. Acabado o chapéu, havia que o vender. Uma nova área expositiva é então apresentada. Aqui, pela primeira vez, o barulho ensurdecer das máquinas dá lugar aos sons típicos de um escritório e vêem-se as secretárias, as máquinas de escrever, os papéis, os carimbos e as pastas de arquivo, exactamente as mesmas que outrora fizeram parte do escritório da fábrica.
7 A este propósito refira-se que foram escolhidos diferentes níveis de legendagem em função da informação que se pretendia passar, a saber, legenda de identidade, onde foram apresentadas as grandes áreas temáticas da exposição e que pretendiam despertar o interesse para a exploração do espaço expositivo; legendas de grupo (apresentadas nas denominadas ‘torres de interpretação’) que contextualizam o visitante na secção que aí
se inicia; legendagem hands-on, incorporada nos armários de experimentação; e finalmente legendas de peça. 8
Será de referir que a rampa foi concebida tendo em atenção as questões que se prendem com a mobilidade de públicos com necessidades motoras especiais. De qualquer modo, o acesso ao piso superior também poderá ser realizado por intermédio do elevador.
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Finalmente, a última sala da exposição de longa duração é dedicada ao chapéu. Como é afirmado na torre de interpretação que abre a sala, “o chapéu é símbolo social, (…). Da cartola de cerimónia ao chapéu do mendigo, os usos sociais são um vasto campo de estudo possível”9. Pensada fundamentalmente para receber exposições temporárias, esta é uma das áreas mais voláteis, que constantemente introduz novidades na exposição permanente. E, por fim, o museu lança um último desafio ao seu visitante: o de experimentar ele próprio um chapéu na sua cabeça. Para tanto foi concebida uma zona de experimentação onde diversos modelos de chapéus, em diversas cores e materiais estão ao dispor dos visitantes. À saída do museu espera-se que os visitantes levem na pele a sensação estranha que as fibras do pêlo de coelho causam; nas mãos, as sensações únicas que o cone por feltrar, o cone feltrado, o chapéu formado e o chapéu afinado tentaram passar; nas narinas, que carreguem o cheiro do pêlo, dos tintos, do feltro; que nos ouvidos ecoem por muito tempo todos os barulhos a que foram sujeitos. Na memória espera-se que levem os rostos dos chapeleiros que ao longo do percurso lhes foram gentilmente sorrindo como quem agradece a visita e as histórias que ouviram o Sr. Méssio Trindade e a Sra. D. Deolinda contar, e que levem ainda consigo a ideia clara de que se o chapéu é um dos mais bonitos acessórios de moda, por detrás dele estão, não raras vezes, histórias de sofrimento e muita dor. Mas espera-se ainda que todos os objectos, porque assim dispostos, porque assim pensados e sentidos, tenham conseguido falar com o visitante e tenham conseguido despertar nele “a common emotional ground of memory and belonging”, como diria Heaney10. E, ����������� mais do que isso, tenham conseguido transmitir “the climate of a lost world and keep alive in us a domestic intimacy with realities that otherwise might have vanished.”11 De certa forma, não se espera menos do que ter transformado todas estas máquinas e ferramentas e histórias de vida, em verdadeiros intermediários entre um mundo que alguns viveram e o mundo daqueles que agora entram no museu, quebrando assim as barreiras do espaço e do tempo e levando os visitantes ao tal tempo e espaço novos, em que o visível da materialidade das coisas dá lugar ao invisível da imaterialidade da memória. Espera-se por isso que à saída do museu, múltiplas narrativas tenham sido construídas como consequência das relações que (eventualmente!) tenham sido criadas entre o olhar, o olfacto, o tacto, a audição e, sobretudo, entre a imaginação museal do visitante e aquilo que efectivamente o museu apresenta. Espera-se que à saída do museu, todo este mundo tenha despertado a capacidade de sonhar e tenha provocado no visitante um conjunto de experiências afectivas que estão, seguramente, muito para além da sua própria materialidade. S. João da Madeira, 30 de Novembro de 2006
9 Texto
da torre de interpretação da Sala dos Usos Sociais.
10 HEANEY, S., 1993, apud BELL, J., “Making Rural Histories”, in KAVANAGH, G., 1996, Making Histories
in Museums, Londres, Leicester University Press, 40. 11 HEANEY, S., 1993, apud BELL, J., “Making Rural Histories”, in KAVANAGH, G., 1996, Making Histories
in Museums, Londres, Leicester University Press, 40.
Referências bibliográficas LIRA, S., 2002, O Museu da Indústria de Chapelaria de S. João da Madeira (original, com autorização do autor, s.d.,s.p.). HEANEY, S., 1993, apud BELL, J., “Making Rural Histories”, in KAVANAGH, G., 1996, Making Histories in Museums, Londres, Leicester University Press, 40. Proposta de Regulamento Interno do Museu da Chapelaria.
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Fig. 8 Vista nascente do alçado principal © Suzana Duarte Fernandes Fig. 9 Entrada principal interior para o 1º piso © Suzana Duarte Fernandes
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Suzana Fernandes Do projecto de arquitectura
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ara manter o público mais próximo do Museu cuja palavra ainda indica um edifício estático onde tudo o que permanece no seu interior não se move e não se toca, criámos espaços onde podemos permitir uma interactividade do público com os materiais expostos. O edifício desenvolvia-se de uma forma quadrangular formando pátios descobertos no seu interior em forma de claustro e onde por força das necessidades iam sendo construídos aumentos para colmatar as faltas de espaço que se iam fazendo sentir. O que resta do edifício é o corpo principal onde funcionavam o acabamento dos chapéus, a exposição dos mesmos para venda e toda a área administrativa. Neste espaço existente vamos recrear a linha de montagem, o acabamento e a preparação dos feltros. Temos também toda a área administrativa de apoio ao funcionamento do museu, uma área educativa, onde pretendemos que de uma forma mais educativa possamos ter um Museu vivo, e onde podemos tocar e experimentar os materiais e o produto acabado. Foi criada uma área de trabalho para desenvolvimento das exposições e manutenção das mesmas, áreas de arquivo e de reservas. Um espaço de auditório e outro de exposições temporárias, uma zona educativa e de arquivo, áreas administrativas, restaurante/bar e loja. Em área descoberta desenvolve-se o logradouro com uma área e 1400m2. Como apoio ao edifício foi criada uma área de estacionamento subterrâneo com capacidade para 70 lugares. Uma das características mais marcantes do edifício foi a utilização de uma estrutura metálica, constituída por pilares e vigas, as lajes de pavimento são placas metálicas perfuradas assentes em vigas metálicas. Sobre as placas metálicas foi colocado estrategicamente pavimento em soalho de tábua corrida. Assim permitiu-nos criar uma situação de transparência e uma visibilidade da maquinaria exposta que nem sempre encontramos em Museus. Todos os vãos exteriores foram executados em caixilharia metálica, mantendo o ritmo da fachada bastante marcada pelas aberturas ao exterior, e as caixilharias são um elemento de identificação de edifício industrial e que ainda se encontra patente no nosso concelho.
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Fig. 10 Vista exterior do alçado posterior © Suzana Duarte Fernandes Fig. 11 Vista norte da sala de exposição permanente - piso 1 (acesso ao piso 2) © Suzana Duarte Fernandes
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Fig. 1 Museu Municipal de Vila Franca de Xira Aspecto da fachada do Núcleo-Sede © CMVFX, fotografia de Marco Aurélio, Outubro 2003
Graça Soares Nunes Reinstalação do Núcleo-Sede Directora do Museu Municipal de Vila Franca de Xira | museumunicipal@cmvfxira.pt
Arquitecto | arq.chuva@oniduo.pt
O Museu Municipal de Vila Franca de Xira insere-se no território concelhio da autarquia que o tutela. Os seus objectivos programáticos são: investigação, recolha e documentação, conservação, educação e comunicação dos seus diferentes patrimónios. A renovação do Núcleo-Sede, um dos espaços da rede de pólos museológicos existentes e resultantes da investigação em curso, inclui-se na perspectiva de qualificar e materializar novos núcleos. Estes propósitos reforçam a divulgação do Museu junto dos diferentes públicos, e respondem a princípios orientadores de conservação de património local e de criação de espaços museológicos de dinamização cultural. O projecto do Museu visava a transformação física e funcional da antiga residência nobre, de que apenas se identificavam dois corpos correspondentes à utilização residencial e à nave da capela anexa. Desta pré-existência preservou-se a sua nobre postura sobre o espaço público e principais elementos estruturais. The Museu Municipal de Vila Franca de Xira’s programmatic goals are: research, collection, documentation, conservation, education and communication of its different heritages. The renovation of the Headquarters resulted from the need to renew and create new centres. These intentions reinforce the promotion of the museum towards different publics, and are defined by guiding principles of the conservation of local heritage and the creation of culturally dynamic museological spaces. The Museum project intended to transform, in shape and function, the old noble residence, of which only two parts were recognizable, the house itself and the nave of the adjacent chapel. Of the former building only the noble façade and the main structural elements were preserved.
PALAVRAS-CHAVE: Programação museológica, requalificação de espaços museológicos, núcleos museológicos, programação para os públicos, salvaguarda de património, projecto arquitectónico, residência nobre, capela.
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Cândido Chuva Gomes O projecto
Graça Soares Nunes Reinstalação do Núcleo-Sede
Objectivos e programação museológica
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ascido de um impulso e gosto pelo coleccionismo, revelador da personalidade do seu fundador – Dr. Vidal – o Museu Municipal de Vila Franca de Xira apresenta uma vivência de cinquenta e seis anos, plena e enriquecedora do contexto cultural
local. O museu abriu pela primeira vez as suas portas ao público durante as festas da cidade, do «Colete Encarnado», em 7 de Julho de 1951. Repartia o espaço com a antiga Biblioteca Municipal e designava-se Museu-Biblioteca Dr. Vidal Baptista. Os acervos foram sendo constituídos com temas etnográficos, fotografia e arqueologia, e alguns objectos dispersos de valor histórico-patrimonial locais, aos quais se acrescentavam as inúmeras recolhas pessoais do Dr. Vidal Baptista, subordinadas ao seu gosto estético pessoal, influenciadas pelo regime político do Estado Novo, propagandista de uma cultura regional. Nos anos que antecederam a Revolução de 25 de Abril de 1974, após a morte do seu fundador (1972), as exposições e as diferentes actividades estagnaram, tornando-se o museu pouco activo e atractivo. A Câmara Municipal tutelar do museu, acompanhando os novos tempos, criou em 1981 o Departamento de Cultura, encerrando ao público as suas instalações. Nessa data, repensou-se e reprogramou-se o museu, perfilhando correntes museológicas ligadas à nova museologia, já implementada em vários museus europeus, e surgida em Portugal após Abril de 1974, principalmente em museus locais. Consequentemente, das actividades desenvolvidas resultou a reabertura do museu no final do ano de 1985, no edifício da Rua Serpa Pinto nº 65, 1º, em Vila Franca de Xira, coabitando com o Departamento de Cultura da autarquia e a colectividade «União Desportiva Vila-franquense». Em duas salas apresentava uma exposição permanente, que delineava a trajectória histórica das gentes do concelho, desde a Pré-história até ao século XVIII. Revelava-se desde logo a ausência de espaço para o desempenho de todas as novas funções museológicas, nomeadamente espaços adequados para o serviço educativo, reservas museológicas, arrumos, conservação e restauro e montagem de exposições. Modificavam-se definitivamente os objectivos que norteavam inicialmente o museu, perspectivando-se uma renovação programática estruturante da sua intervenção. O novo museu tem em conta o território onde se insere, a população para quem trabalha, os recursos patrimoniais de que dispõe e a transmissão da memória colectiva. É um museu para a comunidade em desenvolvimento. Os princípios gerais orientadores assentam nas tarefas básicas de Investigar, Recolher, Conservar, Documentar e Divulgar os diferentes patrimónios que detem. Definindo como palco de actuação o concelho de Vila Franca de Xira e destinando o seu programa às populações locais.
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Fig. 2 Pormenor da fachada © CCG - arquitectos lda.
Fig. 3 Salas de exposições temporárias © CCG - arquitectos lda.
Este programa consubstanciou-se e surgiram em diferentes momentos os novos núcleos:
programático para a reinstalação deste núcleo, a revisão das instalações daqueles que estavam em funcionamento e o reajuste das propostas dos novos. Em 2000 surgiu a possibilidade de efectuar uma candidatura ao Programa Operacional da Cultura (POC), no âmbito do III Quadro Comunitário de Apoio. Esta foi executada e aceite. Este factor atenuou o investimento financeiro do município para o projecto e obra, sendo o financiamento da componente FEDER de 62%. A programação museal obrigou a uma reflexão, apostando-se na criação de um museu que possa corresponder às necessidades dos seus públicos e do seu pessoal, e que no futuro seja reutilizável, cuidando, guardando e divulgando o património museal à sua responsabilidade.
- 1988, recuperação e adaptação da embarcação tradicional do Rio Tejo – Barco Varino Liberdade; - 1990, adaptação e recuperação da antiga Casa da Câmara de Alverca a museu. - 1993, aquisição da Quinta e Palácio do Sobralinho para a instalação do Núcleo-Sede; - 1995 a 2003, os serviços do museu funcionaram no Palácio do Sobralinho (sem área específica para exposições). Em 1998, a tutela do museu decidiu delinear o regresso do Núcleo-Sede à sede do concelho, retornando ao edifício setecentista, da Rua Serpa Pinto. Encetou-se um processo de reprogramação com a preparação do documento
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Reinstalação do Núcleo-Sede do Museu Municipal de Vila Franca de Xira O programa museológico preconizava a preservação e dignificação do edifício setecentista apalaçado de dois andares. Mandado erigir, na antiga Rua da Ribeira, pelo Desembargador Baracho, antes de 1755, o imóvel nunca foi acabado, sendo no entanto um excelente exemplar da arquitectura barroca, amenizado com alguns traços classizantes. Apenas foram construídos o corpo sul e central do edifício, que incluía uma capela dedicada a N. Sr.ª do Monte do Carmo. Localiza-se na principal via de acesso, da cidade de Vila Franca de Xira, apresentando boas acessibilidades. Este edifício foi utilizado para diversas finalidades. As diferentes utilizações a que esteve sujeito (tribunal, cadeia, escola, colectividade e museu) levaram a que algumas marcas desses usos prevalecessem. Foi efectuado um programa base de previsão de ocupação de espaços e de necessidades funcionais, com vista ao trabalho a desenvolver pelo projectista. Ao nível das funções a desempenhar, havia que contemplar: Investigação, Recolha e Documentação, Conservação e Comunicação/Exposição e Educação. Todavia, este novo projecto do Núcleo-Sede, não englobava desde origem, por falta de espaço físico, uma área para reservas museológicas e oficinas de restauro e montagem de exposições. Esses espaços localizam-se no Núcleo de Reservas do Palácio do Sobralinho. A instalação da sede do Museu Municipal em Vila Franca de Xira teve como primeiro propósito o reforço da função museológica da comunicação, através da criação de um sítio permanente que estabelecesse um contacto directo e partilhado com os diferentes tipos de públicos. Nesta ordem de ideias perspectivámos esta sequência de objectivos: a comunicação continuada das colecções museológicas do museu aos diferentes públicos; proporcionar uma maior visibilidade aos programas de investigação; recolher e conservar as colecções; ampliar a utilização dos recursos educacionais e documentais do museu. O objectivo é a constituição na sede do município de um núcleo museológico qualificado, funcional e interactivo que consiga atrair os seus utentes, sendo o elo de comunicação e interface com os diferentes públicos e apresentando nas áreas expositivas as diversas colecções museológicas que possui. Solicitou-se ao arquitecto projectista, Cândido Chuva Gomes, que tivesse em conta os seguintes espaços: - Espaços públicos – Recepção; bengaleiro; loja de venda de produtos promocionais; zona de estar; duas zonas expositivas para exposições permanentes e temporárias; Centro de Documentação; Oficina do Serviço Educativo, auditório polivalente, Cafetaria; sanitários para o público e elevador (para deficientes); - Espaços internos: cinco gabinetes de serviços, uma sala de reuniões e arrumos. O projecto apresentado contempla todas as áreas referidas e ainda dispõe de dois pátios propostos pelo arquitecto e que permitem o desenvolvimento de algumas actividades de ar livre. A intervenção arquitectónica respeitou o edifício antigo, nomeadamente ao nível da fachada que ao ser intervencionada transformou o imóvel, restituindo-lhe a sua dignidade original no contexto urbano. No interior no piso 0, devolveu-se o original pé direito do templo ao transpor para a área de recepção a memória da antiga capela de N.ª Sr.ª do Monte do Carmo com a imposição do arco triunfal, apresentando uma leitura estética moderna, através do seu recobrimento com uma estrutura apainelada (porta ou biombo), composta por 42 telas da autoria do pintor João Ribeiro, que permite a entrada do visitante no museu. A temática representada apresenta o tema místico da criação do Mundo numa das faces, e na outra aspectos da história e património da região. No decurso da obra foram integrados vestígios arqueológicos do antigo palacete, nomeadamente o chão de pedra.
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Fig. 4 Átrio / espaço polivalente © CCG - arquitectos lda.
Fig. 5 “Biombo” © CCG - arquitectos lda.
A exposição de longa duração deste novo núcleo museológico «Vila Franca de Xira, Tempos do Rio, Ecos da terra», transmite o percurso histórico e patrimonial do concelho, através de uma viagem no tempo e no espaço, dando a conhecer de uma forma lúdica e atractiva a evolução diacrónica e sincrónica da paisagem, pontuada pelos vestígios e objectos detectados. Para além desta exposição desenvolve-se a programação de exposições temporárias no âmbito temático do museu. O Núcleo-Sede articula-se no seu funcionamento com os restantes núcleos museológicos municipais, que estruturam
fisicamente o museu no espaço concelhio, permitindo a visibilidade das suas colecções e a sua divulgação e comunicação junto dos diferentes públicos. No decurso do tempo, a programação museológica evoluirá e será aferida através de autoavaliação e de estudos de opinião. Os utentes poderão colaborar no seu enriquecimento, sendo uma voz activa, nessa tarefa de salvaguarda e divulgação dos diferentes patrimónios museológicos afectos ao Museu Municipal de Vila Franca de Xira, numa estreita relação de parceria, contribuindo para o conhecimento da memória local reveladora de uma identidade cultural comum.
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Cândido Chuva Gomes O projecto
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escrever o projecto do Museu Municipal de Vila Franca de Xira é condensar em breves linhas todo um extenso e laborioso percurso, que tem origem no primeiro contacto com o tema e termina, na melhor das hipóteses, quando o edifício, ao adquirir vida própria, nos dispensa. No caso vertente, foi interessante visitar o edifício ainda em pleno funcionamento, já acolhendo funções do Departamento Sócio-Cultural, sabendo que estávamos a dar início a um processo que visava a sua transformação física e funcional. Seguiram-se o levantamento arquitectónico, a investigação histórica e o estudo tipológico. Paralelamente, os técnicos municipais conferiam rigor ao programa de espaços e ensaiavam um guião de uma história de múltiplos quotidianos que a futura exposição deveria revelar. Da antiga residência nobre (inacabada) apenas se identificavam dois corpos correspondentes à utilização residêncial e à nave da capela anexa. As sucessivas ocupações consolidaram um universo espacial labiríntico e a ausência de manutenção tornou evidentes os sinais de uma degradação acentuada. Desta pré-existência preservou-se a sua nobre postura sobre o espaço público e os principais elementos estruturais. Uma vez que a cubicagem existente não satisfazia as necessidades programáticas, propôs-se a adição de um novo volume que, por oposição, oferecia-se em estrutura modular metálica, leve e transparente. A articulação entre os dois volumes é feita por um espaço de transição, correspondente ao vazio por eles configurado e tratado como se fosse um espaço público. No pavimento foram reutilizadas lages de pedra oriundas de um caminho público medieval que existia neste preciso lugar e que o acaso das escavações arqueológicas tornou visível. O acesso ao Museu faz-se pelo espaço da antiga Capela, onde a supressão de uma lage de betão armado permitiu retomar a forma original. As duas salas laterais, que se relacionam directamente com o espaço público, foram reservadas para exposições temporárias. A transição para os restantes espaços do museu é feita através de um “biombo”, que teve a colaboração do artista plástico João Ribeiro. Este elemento permite a configuração dos espaços, filtra a luz, controla os percursos e propiciou uma resignificação do antigo espaço de culto. No piso térreo do volume metálico, existe um conjunto de espaços directamente relacionados com os visitantes tais como o centro de documentação, o sector educativo, um apoio de cafetaria, zona de estadia e apoios sanitários. O piso superior está reservado a espaços privados e à sala de exposição “permanente”. Lisboa, 5 de Dezembro de 2006
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Fig. 6 Detalhes dos vãos dos gabinetes © CCG - arquitectos lda.
Fig. 7 Pátio do corpo novo edificado © CCG - arquitectos lda.
Fig. 8 Planta do piso 0 © CCG - arquitectos lda.
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Fig. 1 Museu Municipal de Penafiel Fachada principal fotografia de Eduardo Cunha, Setembro 2003
Teresa Soeiro Novas instalações para um velho museu Directora do Museu Municipal de Penafiel Professora Associada do Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade de Letras da Universidade do Porto nop34657@mail.telepac.pt | mmpnf48@gmail.com
Fernando Távora e José Bernardo Távora Presença e identidade de novos lugares
O programa museológico para o Museu Municipal de Penafiel realça tanto as valências de comunicação e divulgação, como as de preservação das colecções e de investigação, permitindo a qualificação e diversificação das actividades, até agora, e há mais de cinquenta anos, desenvolvidas em condições precárias. O projecto de arquitectura integra diversos equipamentos camarários, para além do Museu, que se encontra em fase de conclusão. O princípio geral de composição urbanística proposto para o complexo programa assenta na leitura e no reforço de articulação do existente centro histórico com os espaços a reabilitar, exprimindo a presença e identidade de novos lugares, quer no sentido físico e estético, quer social, assente em soluções arquitectónicas de grande continuidade e simplicidade. The museological programme of the Museu Municipal de Penafiel underlines both principles of communication and dissemination, as well as principles of research and preservation of collections, thus providing qualified and diversified activities, which for more than fifty years have been developed in precarious conditions. The architectural project includes a series of other municipal buildings, in addition to the Museum, which is still in its final stages of completion. The main principle of the urban composition is based on the understanding of the relation between the existing historical centre and renewed spaces, suggesting the presence and identity of new places, either in the physical and aesthetic sense, or in the social sense, based on architectural solutions of great continuity and simplicity.
PALAVRAS-CHAVE: Museu Municipal de Penafiel, programa museológico, qualificação, equipamentos municipais, pré-existente, composição urbanística, centro histórico, Colégio do Carmo.
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Arquitectos | jbtavora@mail.telepac.pt
Teresa Soeiro Novas instalações para um velho museu
O percurso
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Museu Municipal de Penafiel é uma instituição museológica de tutela autárquica, com antecedentes no final de oitocentos, formalmente criada em 1948 junto da Biblioteca Municipal, sendo ambos dirigidos por Abílio Miranda, um erudito local (SOEIRO 1994). Desde esta matriz, o Museu reúne colecções enquadradas nas clássicas divisões arqueologia, história local e etnografia, de âmbito municipal, raramente extravasando este limite espacial, e apenas para aceitar doações ou realizar aquisições especialmente relevantes e pertinentes. Ocupando instalações provisórias desde 1990, para que na antiga localização fosse reformulada a Biblioteca no quadro da Rede de Leitura Pública, só em 1992 foi definida uma nova sede para o Museu, o palacete Pereira do Lago, na rua do Paço. Bem no centro da cidade, este edifício e quintais contíguos são uma referência na malha urbana, pela dimensão e qualidade do edificado, mas tornaram-se sobretudo um marco indelével na memória de sucessivas gerações de penafidelenses, porque aqui funcionou o Colégio do Carmo, desde finais do século XIX o maior estabelecimento de ensino da cidade e por muitas décadas o único com nível secundário. Foi depois liceu oficial. Escolhido o sítio, teve início uma longa saga, que conta já quinze anos, os dez primeiros quase exclusivamente dedicados a delinear o programa e o projecto, enquanto decorriam os procedimentos burocráticos de aquisição da propriedade e os concursos públicos para adjudicação do projecto (em 1996 e 1997) e da obra (em 2004). Estes longos e desgastantes compassos de espera, nunca calendarizados, terão sido ultrapassados pelo apoio à construção das instalações e o ritmo imposto no âmbito do III Quadro Comunitário de Apoio (Programa Operacional da Cultura: Eixo 1, Medida 1.2). Mesmo que em situação precária e com um quadro de pessoal diminuto, o Museu manteve-se sempre aberto ao público, tentando responder às mais diversas solicitações. O programa para as novas instalações As instalações do Museu a construir fazem parte de um conjunto com diferentes valências relacionadas com a actividade cultural, como o Arquivo Municipal e um Auditório complementado por um outro ao ar livre. Para servir o público, bem como os habitantes do centro histórico e clientes da área envolvente dedicada ao comércio tradicional, foi projectado um parque de estacionamento enterrado, que fica sob as áreas de exposição. Pela sua localização central na cidade, o público terá um fácil acesso ao Museu, reconhecendo a sua fachada nobre, voltada para a pedonal rua do Paço, onde será colocada a devida sinalética de exterior. Entrará pela porta principal do edifício, deparando-se com um hall de distribuição para o qual também abre a loja do Museu. Assim, qualquer pessoa poderá realizar as suas compras sem ter de passar para a área de visita controlada. Esta loja tem ainda a característica de poder abrir directamente para a rua, o que permite o funcionamento em horário alargado, ou mesmo ser concessionada, abrindo a par do demais comércio.
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Fig. 2 Planta geral © Arquivo Távora, 2006 Fig. 3 Alçado © Arménio Teixeira, 2005, Arquivo Távora
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Do mesmo hall de entrada, onde estarão os serviços de recepção, o utilizador poderá aceder aos serviços de secretaria, documentação, património e outros postos de atendimento que estão no primeiro piso. Caso queira visitar a exposição, então entrará no circuito principal de visita, passando por uma área informativa com material de divulgação sobre actividades culturais, particularmente museológicas e patrimoniais, a ter lugar não só no município como em outras instituições. A partir daqui está na primeira área da exposição permanente, na qual se procurará apresentar uma caracterização física e uma síntese do actual município, e da região, com suporte de alguns materiais em exposição e, sobretudo, com recurso a multimédia. Depois deste espaço de apresentação o visitante elege o seu percurso, usando os dois longos corredores paralelos para entrar em todas as unidades ou evitar alguma. Será recomendada, apenas como indicação, a sequência cronológico-temática que o fará percorrer os módulos dedicados às ocupações mais antigas do território, à história da construção da identidade penafidelense, às condições de vida quotidiana, urbana e rural, aos tempos de festa, com uma cronologia de referência balizada entre meados de setecentos e a actualidade. As águas serão o último grande tema a abordar, para o qual foi construído um espaço propositadamente sobreelevado, que permita a montagem dos moinhos de cereal, engenhos de maçar e artes de pesca recolhidos do rio Tâmega antes da subida das águas da albufeira do Torrão. A seguir à apresentação há ainda um pequeno nicho onde queremos reunir informação constantemente actualizada sobre os mais significativos projectos a decorrer no município, sobretudo aqueles que têm maior impacto sobre o território, o património e a qualidade de vida dos cidadãos. O último módulo, que pode ser isolado se não estiver em utilização, é especialmente destinado a exposições temporárias e tem uma área de postos multimédia para uso do público. Como se prevê um funcionamento ocasional em horário diferenciado ou a possibilidade de cedência deste espaço, ele é isolável do circuito de exposição, utilizando como acesso exterior a entrada voltada para a avenida Soares de Moura. Todas os espaços de exposição estão dotados de uma malha técnica geométrica de energia, luz, som e imagem, bem como de condições ambientais que podem ser modificadas, como garantia da sua flexibilidade e adaptação a futuras alterações da exposição, ou mesmo, em caso limite, à recolha em reserva de todo este material para acolhimento de um grande evento de produção externa. Os serviços educativos terão sala própria, aberta para o corredor da área de exposições permanentes, com possibilidade de utilizar um pátio exterior. Estão junto de um bloco de sanitários e próximo da sala de exposições temporárias e da de multimédia. Como opção, os grupos destinados a estes serviços poderão entrar no Museu pela porta voltada à avenida Soares de Moura, não tendo assim que passar pela portaria e atravessar toda a exposição. Sem sair deste circuito, o utilizador tem à sua disposição dois blocos de sanitários e um posto de telefone público. Já fora da área de exposição, o público poderá contar com outras comodidades e serviços como o estacionamento subterrâneo, o bar, o auditório e uma pequena área verde com um auditório exterior. Gostaríamos que todos os espaços do Museu fossem acessíveis a deficientes, especialmente motores e invisuais, quer pertençam ao público quer ao pessoal ou aos colaboradores externos. O espólio que entra no Museu para integrar as colecções, bem como todo o material destinado a exposições temporárias, tem um circuito próprio. Assim, os materiais arqueológicos, cuja reserva se encontra no piso superior do palacete Pereira do Lago, darão entrada por uma porta larga voltada à rua do Paço, onde existe uma antecâmara de descarga e o monta-cargas, à cota do exterior. Este é o início do circuito de sujos, que os leva à sala de acolhimento e tratamento situada no primeiro andar, face à qual fica a sala de inventário e investigação laboratorial em arqueologia. O espólio fotográfico mereceu-nos um tratamento diferenciado, concentrando-se as áreas de trabalho e o arquivo no último piso do edifício anexo ao palacete. Todo o demais espólio, muitas vezes peças com grandes dimensões e peso, utilizará um cais coberto, voltado para a avenida Soares de Moura. Uma vez descarregado, o material passará
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Fig. 4 Obras de construção do museu © Arquivo Távora, 2007
à área de acolhimento de sujos, onde poderá receber todos os cuidados necessários, incluindo os de expurgo. Só depois dará entrada numa das três reservas contíguas. Neste mesmo piso existem espaços de oficina e de arrecadação para embalagens. Porque estes trabalhos, bem como a limpeza sumária do espólio recebido, põem em causa a higiene e conforto dos funcionários, as instalações sanitárias desta área estão equipadas para vestiários e banho. Para materiais de menores dimensões e grande sensibilidade haverá pequenas reservas no piso superior, com acesso por elevador e monta-cargas. Para intervenções mais cuidadas e preparação de exposições reservamos uma sala de trabalho à cota das de exposição, para que a ligação seja a mais simples possível. O piso superior deste corpo do edifício ficará integralmente dedicado à instalação de técnicos de museologia, conservação, serviços educativos e desenho, em
Fig. 5 Vista interior do museu © Arquivo Távora, 2007
estreita relação com o espólio das reservas e o desempenho das tarefas específicas. Os funcionários circularão, evidentemente, por toda a área do Museu, prevendo-se apenas a necessidade de condicionar a entrada em alguns locais como as reservas, os arquivos e os laboratórios, por exemplo. A distribuição dos diferentes serviços e locais de trabalho não é, porém aleatória. Procurámos concentrar no palacete muito dos serviços a que o público tem acesso, como a direcção, a secretaria, o centro de documentação e o serviço de património. Tivemos em vista não só uma relação de eficácia e proximidade como alguma garantia de segurança, já que a portaria instalada no hall de entrada tanto controlará o acesso à área de exposição como à escadaria nobre e ao elevador que permitem a subida ao primeiro piso onde estão estas valências.
Referências bibliográficas SOEIRO, Teresa, 1994, “Um museu municipal para Penafiel. 1884-1974”, Portugália, nova série, 15, 83-134.
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Fernando Távora e José Bernardo Távora Presença e identidade de novos lugares
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– Tratava-se neste projecto da formalização e consolidação de um complexo Programa fornecido pela Câmara Municipal de Penafiel, programa que foi sendo alvo de sucessivas propostas e revisões, e da proposta das linhas gerais de aproveitamento de um espaço contendo dois edifícios, espaço propriedade do Município, situado no Centro Histórico da Cidade, com área aproximada de 6.000m2, nomeadamente o Palácio Pereira do Lago – antigo Colégio do Carmo – construído no século XVIII. 2 - O Programa pretendia instalar na referida propriedade os equipamentos municipais de Arquivo e Museu Municipais, bem como prever a criação de parque de estacionamento subterrâneo com capacidade para 300 veículos, articulado pela sua dimensão e acessos, com o Centro Histórico, onde está inserido, e o Comércio tradicional instalado, reutilizando-o e modernizando-o. 3 - O programa do Museu, composto essencialmente por três núcleos (Arqueologia, Etnografia e História da Cidade e do Concelho) definia as áreas seguintes: recepção, loja do museu, serviços, direcção e administração, reservas e restauro, montagem de exposições, exposição permanente, exposição temporária, multimédia, serviço educativo, áreas técnicas, e uma sala polivalente com capacidade para cerca de 150 pessoas, que poderá receber conferências, cinema, ou ainda pequenas exposições. Será ainda complementada com uma pequena loja e zona de bar/restaurante abrindo sobre o jardim com um anfiteatro ao ar livre. Eram assim quatro grandes áreas a desenvolver em diferentes Projectos, - o arquivo, o museu, o parque de estacionamento subterrâneo e os arranjos exteriores. O arquivo e o parque estão concluídos, encontrando-se o museu em fase de conclusão.
Fig. 6 Vista geral © Arménio Teixeira, 2005 Arquivo Távora Fig. 7 Museu © Arménio Teixeira, 2005 Arquivo Távora
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4 - O funcionamento proposto para todo este complexo programa assenta na leitura e no reforço da manutenção de todos os caminhos pedonais existentes no Centro Histórico, caminhos esses que associados a belos muros de granito fazem o enquadramento dos edifícios e espaços a construir e reabilitar. O museu terá no edifício do antigo Colégio do Carmo a recepção, loja, acesso às exposições, e elevador para funcionários e acesso às reservas no piso de entrada; no piso nobre, direcção, serviços administrativos e gabinetes de trabalho; o sótão será destinado a reservas. No edifício contíguo, com a planta baixa aberta fazendo a ligação entre o Centro Histórico e o jardim interior com acessos ao parque de estacionamento e ao Auditório, diversos serviços de apoio. No edifício com acesso pela Avenida Soares de Moura, teremos em cave, reservas e nos diferentes pisos o Serviço Educativo e Serviços de apoio a restauro e montagem de exposições. A partir do átrio principal do antigo Colégio do Carmo, temos então, como já referido o acesso ao percurso de exposição com as salas temáticas dedicadas a Arqueologia/História, História da Cidade, Arquitectura/Habitat, Lagar/Cozinha, Arquitectura/Pastorícia, Mentalidades/Ofícios, Rios, e finalmente a área destinada a exposições temporárias e a sala multimédia, desenvolvendo-se todo este conjunto de salas, em torno de pátios para os quais é possível o prolongamento de exposições e de percursos. Percursos interiores a realizar ao longo de dois longos corredores que ligam todo o conjunto de salas de exposição, para os quais é igualmente possível fazer o seu prolongamento. 5 – Por fim, e no que respeita aos arranjos exteriores teremos os pátios entre as salas de exposições onde se prevê pavimentos em gravilha, dado encontrarem-se sobre a laje das garagens, e toda a restante área que será tratada como um grande jardim, onde serão mantidas parte das árvores existentes e que incluirá a bancada e palco para auditório ao ar livre com lugar sentado para cerca de 200 pessoas. Ainda a reconstrução e recuperação de todos os tanques e muros de granito envolvendo todos estes espaços. 6 – Isto é, tratando-se de analisar a pré-existência em termos de edifícios e espaços, propor um arranjo que, valorizando ou tentando corrigir situações já criadas, pudesse exprimir a presença e identidade de novos lugares, quer no sentido físico e estético, quer no sentido social, que a iniciativa da implantação do Museu municipal podiam e deviam provocar. Referido sumariamente o princípio geral adoptado em termos de composição urbanística, diremos agora, que as soluções arquitectónicas encontradas para os edifícios, bem como para os espaços exteriores foram de grande continuidade e simplicidade, perante a determinação técnica, funcional e económica das imposições da instalação Museu municipal. Também uma clara escolha de materiais de acabamento e uma rigorosa e sistemática sistematização da construção, introduzindo assim um critério de sóbria unidade. Trata-se, em verdade, de afectar com uma intervenção de grandes dimensões um largo espaço cuja alteração era desejada na procura das suas reconhecidas qualidades funcionais e ambientais. E acreditar que com esta intervenção de recuperação e de novas construções e de requalificação urbana, se conseguirá uma nova imagem de Cidade, de continuidades, com carácter e identidades próprias.
Fig. 8 Axonometria © Arquivo Távora, 2006
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Piso 2
Piso 1
Piso 0
Piso -1/0
Piso -1
Circulações Piso -2
Exposições permanentes / temporárias Salas conferências / multimédia Serviços / reservas Cafetaria Zona Verde
Piso -3
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Fig. 1 Tesouro-Museu da Sé de Braga Regresso do Egipto marfim (séc. XVIII) © TMSB - fotógrafo Manuel Correia
Pio Gonçalo Alves de Sousa Um Tesouro, um Museu Director do Tesouro-Museu da Sé de Braga | pio.sousa@braga.ucp.pt
Paulo Providência Museografia
O Tesouro-Museu da Sé de Braga, fundado em 1930, integra a Rede Portuguesa de Museus desde 2003. Instalado desde a origem na Casa do Cabido, cumpriu, ao longo das últimas sete décadas, a função de salvaguarda de um valioso património. Graças a um contrato celebrado, em 2002, entre o Cabido Bracarense e o Ministério da Cultura, foi possível a reabilitação e musealização de cinco casas anexas, bem como da Casa do Cabido. Tendo por base a clarificação das estratégias expositivas e a formação de públicos, o plano de expansão passou pela definição programática e funcional das áreas consignadas, a que não foi indiferente a necessidade de preservação das fachadas, das paredes divisórias de lote e das dimensões dos compartimentos dessas habitações. Por outro lado, tratava-se de inserir os programas e percursos numa lógica de continuidade espacial com o Edifício e Salas do Cabido pré-existentes. Concluída a intervenção, o museu reabriu ao público em Março de 2007. A Coordenação de Projectos foi da responsabilidade do Arquitecto Rui Correia e do Engenheiro Francisco Machado dos Santos. The Tesouro-Museu da Sé de Braga, founded in 1930, has been part of the Portuguese Network of Museums since 2003. Housed in the Chapter House, the museum has safeguarded a valuable heritage, during the past seven decades. The renewal and museology of five adjacent houses and the Chapter House were made possible, due to a contract celebrated in 2002 between the Braga Chapter and the Ministery of Culture, Based on a clear exhibition strategy and on the education of publics, the enlargement plan kept in mind the programmatic and functional definition of these areas. It also involved preserving façades, partitioning walls and the size of the rooms. On the other hand, there was also the need to connect programmes and paths with the existing building and Chapter Houses. The museum reopened to the public in March 2007. Architect Rui Correia and Engineer Francisco Machado dos Santos were responsible for the coordination of the projects.
PALAVRAS-CHAVE: Tesouro-Museu, Igreja, Braga, arte sacra, património, lLiturgia, plano de expansão, projecto arquitectónico.
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Arquitecto | correio@providencia-arquitectos.pt
Pio Gonçalo Alves de Sousa Um Tesouro, um Museu
O
Tesouro-Museu da Sé de Braga foi fundado em 1930. A sua aprovação foi publicada no Diário do Governo, Decreto n. 18: 127, 1ª série, n. 69, de 25 de Março de 1930. Foi seu primeiro director o Cónego Manuel de Aguiar Barreiros (1874-1961), sendo Arcebispo de Braga D. Manuel Vieira de Matos. Integra a Rede Portuguesa de Museus desde Maio de 2003. Está instalado, desde a sua fundação, na antiga Casa do Cabido, mandada construir, no século XVIII, pelo Arcebispo D. Rodrigo de Moura Teles, junto ao claustro da Catedral. Concebido, desde então, primordialmente como tesouro, cumpriu ao longo das últimas sete décadas, a função de salvaguarda de um valioso património. Ainda que expostas com alguma lógica, as numerosas peças eram mostradas na sua totalidade. O visitante impressionava-se, principalmente, com a quantidade de objectos valiosos que podia contemplar, mas sem grandes possibilidades de se aperceber da sua verdadeira riqueza artística, cultural e religiosa. Em 2002, o Cabido Metropolitano e Primacial Bracarense, proprietário do Tesouro-Museu, assinou com o Ministério da Cultura (POC) um contrato para a reabilitação e musealização de quatro casas anexas, doadas pela Câmara Municipal de Braga, mais uma que já era propriedade do Cabido. Estas obras, que terminaram em 2005, tornaram possível ampliar ligeiramente o espaço de exposição, mas, principalmente, possibilitaram a criação de acessibilidades para todo o tipo de públicos, serviços administrativos, serviços educativos, loja e reservas. Graças à disponibilidade de verbas não gastas nesta fase das obras, foi possível estender o contrato à contígua Casa do Cabido em ordem a criar um espaço uniforme de visita e exposição, bem como responder a todas as exigências técnicas da museografia moderna. A Coordenação de Projectos foi da responsabilidade do Arquitecto Rui Correia e do Engenheiro Francisco Machado dos Santos. Terminadas estas obras em 2007, todo o complexo reabre ao público como um espaço único e mostra uma exposição permanente subordinada ao tema Raízes de Eternidade. Jesus Cristo / Uma Igreja. Com base numa criteriosa selecção de peças, o visitante encontra-se, na primeira parte, com conteúdos que falam da vida de Jesus Cristo: Anunciação, Natividade, Infância, Paixão, Morte, Mistérios Gloriosos. Destacamos, deste núcleo, a imagem da Virgem do Leite (séc. XVI), e ainda Virgem com o Menino (séc. XV, séc. XVI, séc. XVII, séc. XVIII), Santa Ana ensinando a Virgem a ler (séc. XVIII), Fuga para o Egipto (séc. XVIII), Regresso do Egipto (séc. XVII-XVIII), Menino Jesus Bom Pastor (séc. XVIII), Cristo Crucificado (séc. XV-XVI), Virgem da Piedade (séc. XVI), Calvário (séc. XVIII-XIX), Santíssima Trindade (séc. XIV). No primeiro núcleo da segunda parte contamos a história da Igreja de Braga. Por essa via, evocamos, em numerosas ocasiões, a história de Braga e de Portugal. Começamos no século V-VI, com um túmulo paleo-cristão, e chegamos ao século XX. Servem-nos de guia alguns dos principais arcebispos com real, ou suposta, ligação de governo a esta Igreja: S. Pedro de Rates, S. Martinho de Dume, S. Frutuoso, D. Pedro, S. Geraldo, D. Gonçalo Pereira, D. Fernando da Guerra, D. Diogo de Sousa, Beato D. Frei Bartolomeu dos Mártires, D. Luís de Sousa, D. Frei Aleixo de Meneses, D. Rodrigo da Cunha, D. Rodrigo de Moura Teles, D. José de Bragança, D. Gaspar de Bragança, D. Manuel Baptista da Cunha, D. António Bento Martins Júnior, D. Francisco Maria da Silva, D. Eurico Dias Nogueira.
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Fig. 2 Sala 2 - Natividade © TMSB - fotógrafo Manuel Correia Fig. 3 Acesso à sala 5 © TMSB - fotógrafo Manuel Correia
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Algumas das peças que ilustram esta viagem pela história, além do já mencionado túmulo paleo-cristão, são: cálice e patena de S. Geraldo (séc. X-XI), luvas pontificais, alfinete de pálio, mitra e pendentes de D. Gonçalo Pereira (séc. XIV), cálice e predela de D. Diogo de Sousa (séc. XVI), cruz do Brasil (séc. XVI ?), órgão portátil (séc. XVII), sapatos litúrgicos (séc. XVIII). O segundo núcleo da segunda parte está centrado na ourivesaria e paramentaria: objectos ligados ao culto que, ao mesmo tempo que rememoram conteúdos ligados à liturgia da Igreja Católica, proporcionam a oportunidade para uma visita a diferentes estádios da evolução artística. O visitante encontra-se aqui com peças como cálices (séc XV-XVI, séc XVII, séc. XVIII), custódias (séc. XVII, séc. XVIII), píxide (séc. XVIII), cruzes processionais (séc. XI, séc. XII, séc. XIV, séc. XV), crossa de báculo (séc. XII-XIII), casulas (séc. XVII, séc. XVIII), frontal de altar (séc. XVII-XVIII). As peças expostas incluem uma amostra, qualitativamente significativa, das colecções de arqueologia, cerâmica, escultura, mobiliário, ourivesaria, pintura, têxtil. Graças à aprovação de uma candidatura à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte, cuja execução decorreu entre 2004 e 2005, foi possível avançar significativamente na informatização das colecções, aprofundar a concepção museográfica do complexo monumental da Catedral e seu entorno, e estudar parcialmente as colecções de pintura, escultura, mobiliário e ourivesaria. Nos últimos anos pudemos ainda contar com a valiosa colaboração da Fundação Abegg para o restauro e estudo da mitra, pendentes e luvas de D. Gonçalo Pereira (1326-1348): peças que estão patentes na exposição permanente. Igualmente significativa tem sido a colaboração do Instituto Português de Conservação e Restauro. Além do excepcional trabalho de conservação, restauro e estudo do túmulo do Infante D. Afonso (séc. XV-XVI), ainda a decorrer, foi obra graciosa do Instituto a conservação e restauro da caixa do órgão portátil de D. Luís de Sousa (séc. XVII), patente na exposição. Na exposição permanente, além da legendagem de todas as peças (em português e inglês), o visitante tem à sua disposição uma informação progressivamente mais ampla nas folhas de sala (português, castelhano, francês, inglês), nos audioguias (MP3) e, posteriormente, nos terminais de computador. A exposição permanente Raízes de Eternidade. Jesus Cristo / Uma Igreja é apenas um dos quatro roteiros disponíveis. Em alternativa, ou complementarmente, poderá escolher-se a visita às capelas (Senhora da Glória, S. Geraldo, Reis) e Coro Alto; ou a visita às torres, com óbvias condicionantes de número e idades; ou ainda a visita guiada à Catedral, com acesso a zonas habitualmente vedadas ao público, como seja a sacristia. Os espaços das capelas e das salas anexas ao Coro Alto serão, segundo as circunstâncias, pelo menos nos tempos mais próximos, os previstos para eventuais exposições temporárias. As reservas do Tesouro-Museu, praticamente inexistentes até às obras agora levadas a efeito, situam-se, como já foi assinalado, na zona de expansão e também em espaços complementares da Catedral. A ampla nova reserva albergará parte do têxtil e ainda talha e pintura; outra parte do têxtil está já devidamente acondicionado nos arcazes restaurados da sacristia. A Sé de Braga é um monumento com intensa vida cultual e cultural. Além de sede da Paróquia da Sé, é na Catedral que se celebram os grandes momentos litúrgicos da vida da Arquidiocese, além de ser muito procurada para a celebração de casamentos e baptizados. São frequentes também os concertos de órgão e corais, de música sacra ou de inspiração religiosa. Mas a visita à Sé de Braga é também ponto obrigatório para o turismo que tem o Norte como destino ou de passagem de, ou para, Santiago de Compostela. Temos a percepção de que apenas cerca de um terço destes visitantes entra no Tesouro-Museu. Estamos certos de que a sua requalificação fará aumentar exponencialmente as cerca de trinta mil visitas anuais que temos actualmente.
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Fig. 4 Sala 5 - Paixão e Morte de Jesus Cristo © TMSB - fotógrafo Manuel Correia Fig. 5 Sala 10 - Arcebispos de Braga © TMSB - fotógrafo Manuel Correia
Fig. 6 Sala 14 - Ourivesaria © TMSB - fotógrafo Manuel Correia
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reestruturação do Tesouro-Museu da Sé Catedral de Braga tem por objectivo a integração das áreas de expansão adquiridas (o núcleo de casario sobre a rua D. Diogo de Sousa), na antiga estrutura do Museu constituída maioritariamente pelo edifício do Cabido1. Esta reestruturação permite a ampliação significativa das áreas de exposição criando núcleos consignados a temáticas específicas de natureza religiosa e artística, assim como a consideração de novos espaços de suporte técnico, administrativo e de actividades; encontram-se neste caso as novas reservas, os serviços educativos, os gabinetes para técnicos e investigadores. A estratégia de expansão passa em primeiro lugar pela definição programática e funcional das áreas consignadas, a que não foi indiferente a necessidade de preservação das fachadas, das paredes divisórias de lote e das dimensões dos compartimentos dessas habitações; por outro lado, trata-se de inserir os programas e percursos numa lógica de continuidade espacial com o Edifício e Salas do Cabido pré-existentes. Considerando que a nova missão do Tesouro-Museu é de estudo e conservação do seu património, de clarificação das estratégias expositivas e formação de públicos, define-se como funções prioritárias para a expansão o conjunto de actividades que pelas suas exigências técnicas (de conservação) ou visibilidade pública fossem exponenciadas pela caracterização morfológica do edificado; quer isto dizer que todas as funções que exigissem forte infra-estruturação de aclimatação (como é o caso das reservas de têxtil, serviços técnicos do Museu, etc.), ou tirassem partido da rua D. Diogo de Sousa como presença, contacto e visibilidade urbana (como por exemplo a sala de actividades dos serviços educativos) fossem aí localizadas; assim, o programa considera como funções principais a localizar na expansão: • os serviços técnicos, em relação de proximidade e acessibilidade quer às reservas, aos serviços educativos, ou ainda às salas de exposição que necessitem de maior rotatividade de peças (caso do têxtil); • as reservas, com acessos mecânicos, dedicadas às colecções de maior exigência de conservação (têxtil, pintura); • os serviços educativos, com acessibilidade e visibilidade pública, não perturbando o funcionamento religioso e turístico do conjunto; • as salas de exposição de ourivesaria e têxtil, que funcionarão numa estratégia de visita ao Tesouro Museu como salas temáticas específicas, libertando as salas maiores do edifício do cabido para exposições mais abrangentes e de natureza propriamente religiosa. A definição programática da área de expansão não descaracteriza o pequeno núcleo de casario, adequa-se à pequena dimensão do edificado (fig. 9), e valoriza uma presença urbana alternativa à do funcionamento mais turístico e religioso do restante Conjunto Monumental.
1
Sobre ������������������������������������������������������������������������������������������ a relação entre o Museu e o Conjunto Monumental, actual ou previsível, ver os nosso relatórios para a Comissão de Coordenação da Região Norte: Tesouro Museu da Sé Catedral de Braga, Estudo de Condicionantes e Apoio à Elaboração do Programa Preliminar de Intervenção - Relatório Preliminar, Março de 2005; Tesouro Museu da Sé Catedral de Braga, Estudo de Condicionantes e Apoio à Elaboração do Programa Preliminar de Intervenção - Relatório Final, Dezembro de 2005.
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A nova estrutura espacial do conjunto mantém o acesso pelo Claustro da Sé Catedral, seguindo a estrutura de salas de temática religiosa ou associada ao Bispado no edifício do Cabido, e remetendo para a área de ampliação as salas de Ourivesaria e Têxtil. O primeiro conjunto de Salas do Edifício do Cabido expõe representações da vida de Cristo centradas em quatro momentos: anunciação à Virgem, a Virgem e o nascimento, morte de Cristo e ressurreição de Cristo/ascenção da Virgem. A museografia parte da caracterização das salas, decorrente da sua autonomia temática. As cornijas das salas foram inteiramente refeitas permitindo reproporcionar os panos de parede considerando os objectos a expor e a integração dos elementos de iluminação. Nas duas salas maiores deste núcleo foi executada uma decoração em arabescos nos fundos, integrando as peças expostas. Esta estratégia, assim como a altura de colocação dos suportes, equilibra as diferenças de escala das peças expostas. As peças são expostas em prateleiras, plintos ou suspensas, evitando a colocação de vidros ou elementos de interposição que perturbem a leitura das peças. A legendagem evita a perturbação de leitura das peças, pela sua inscrição secundarizada na barra de protecção. O segundo núcleo, constituído pelo conjunto de salas dedicado aos objectos que memorizam os Bispos da Sé Catedral de Braga, é caracterizado pelo baixo pé-direito disponível; a estratégia de exibição passou pelo desenho de uma vitrina suspensa que permite iludir esse baixo pé-direito. Este conjunto de vitrinas formam um pequeno labirinto que permite uma leitura sucessiva e autónoma dos objectos, evitando sobreposições ou confrontos indesejáveis. A iluminação ambiente das salas é decorrente da luz proveniente das vitrinas e da luz reflectida nas peças sem vitrina. A articulação entre as áreas de expansão e as áreas existentes é feita através das novas salas para as colecções de têxtil e ourivesaria (fig. 8 e 10); estas salas funcionarão em continuidade com as salas já descritas. As Salas de Exposição da ampliação tiram partido da forte condicionante de dimensionamento imposto pelos lotes urbanos. Não sendo possível, nem desejável, estruturar estas salas com a amplidão das Salas do Edifício do Cabido, optou-se por uma estratégia inversa: caracterizá-las como salas de pequena dimensão onde se dispõe núcleos do Tesouro Museu, reforçando no contraste de escalas o carácter precioso e intimista; esta caracterização é feita socorrendo-se das variações de pé-direito e materiais de acabamento.
Fig. 7 Sala 13 - Paramentaria © TMSB - fotógrafo Manuel Correia
A Sala de Exposição de Ourivesaria (fig. 6) é um espaço que comporta duas vitrines para a exposição permanente de núcleos da colecção de ourivesaria: estas vitrinas ocupam uma parede completa e dispõem de ambiente de iluminação difusa e constante; o espaço onde o público circula é de pé-direito mais elevado, induzindo uma leitura
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Fig. 8 Plantas dos pisos 3 e 2 © Paulo Providência Fig. 9 Corte 1 © Paulo Providência
das vitrinas como espaços côncavos; a continuidade do material de revestimento em nogueira americana, propicia vitrinas em perfeita continuidade com tecto e pavimento. Essa continuidade é acentuada pela invisibilidade do vidro de protecção. A cor castanha escura e veio acetinado da madeira provoca contraste com o dourado das peças em ouro e prata dourada, fortalecendo a sua presença. Esta sala tem ainda uma terceira vitrina, precisamente no ponto de pé-direito baixo que separa os dois núcleos de ourivesaria; este espaço “passagem” permite a instalação de painéis de vidro que poderão ser utilizados de diferentes formas: ora como corredor de informação sobre conteúdos específicos de uma montagem criando um labirinto dentro da sala de exposição de ourivesaria, ora como vitrinas complementares para montagem de peças em destaque da colecção. Este dispositivo mantém activa a montagem da exposição permanente de ourivesaria, através da produção
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de conteúdos específicos decorrentes do período litúrgico (destaque de uma peça de conteúdo simbólico especial na Páscoa, Natal) ou através da colocação de uma peça que mereça destaque por ter sido recentemente restaurada. Trata-se de um dispositivo que permite alguma flexibilidade de organização da sala, mantendo estabilidade dos seus elementos fundamentais de caracterização. A Sala de Exposição de Têxtil (fig. 7) organiza-se através de um pé-direito elevado e dois espaços anexos sobrepostos com vitrinas para a colocação de peças de menores dimensões. O espaço de pé-direito elevado permite a colocação de peças de têxtil de grandes dimensões, tais como umbrela, pálio, etc. As superfícies de fundo quer das paredes quer das vitrinas são estucadas em estuque veneziano cinzento, reforçando a coloração dos paramentos, assim como as técnicas e materiais de execução do têxtil (fio de ouro e outros materiais). Neste caso, a selecção da cor de fundo
Fig. 10 Plantas dos pisos 1, 0 e -1 © Paulo Providência Fig. 11 Corte 2 © Paulo Providência
permite montagens onde a variação cromática das peças em exposição, poderá sair reforçada. O núcleo dos Serviços Técnicos funciona em dois lotes e alberga as funções de direcção do Museu, área de apoio aos serviços educativos, área de estudo de colecções (para os técnicos do museu e investigadores externos) e área de programação do Museu. Este núcleo de serviços tem acesso autónomo, independente do acesso de público à loja e Sala de Actividades dos Serviços Educativos. As Reservas do Museu localizam-se em cave e têm acesso pela escada de serviço dos Serviços Técnicos. As reservas organizam-se a partir de um espaço de recepção com acesso directo ao monta-cargas; esse espaço está equipado com banca, pia e armário. O espaço propriamente de reservas organiza-se em dois núcleos: um dedicado à talha, pintura e azulejaria, e outro dedicado exclusivamente ao têxtil. Esses dois núcleos estão instalados em sistema de armários
compactos permitindo armazenar completamente as suas colecções. A reestruturação e Museografia do Tesouro Museu da Sé Catedral de Braga incide sobre a anexação de novas áreas que permitem alargar as funções do Museu, assim como a reestruturação dos espaços de exibição, adoptando as estratégias exibitivas mais adequadas à temática e espaços consignados. Para além dos programas, o desenho das relações espaciais de um Museu (estrutura e carácter dos espaços) permite flexibilidade de montagens e utilizações; por outro lado, a museografia permite a contemplação e integração das obras em novos contextos e prevê formas de funcionamento que correspondem àquilo que hoje em dia um Museu pode ser: artefacto de interface cultural, espaço de integração da realidade, e instrumento operativo de cultura.
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Mário de Souza Chagas e José do Nascimento Júnior Veredas e construções de uma política nacional de museus
Este artigo traça o percurso da construção de uma política nacional de museus no Brasil, recuando ao que os autores consideram ser o momento fundador de uma “imaginação museal” e avançando até ao presente, entre o não formalismo das origens e o actual enquadramento institucional, no Ministério da Cultura, do Sistema Brasileiro de Museus. This article traces the path towards the creation of a national museum policy in Brazil, dating back to what the authors believe to be the founding moment of a “museum imagination” up until the present day, between the non-formalism of origins and the current institutional context of the Brazilian System of Museums, inside the Ministry of Culture.
PALAVRAS-CHAVE: Panorama museológico, imaginação museal, Política Nacional de Museus, Sistema Brasileiro de Museus, Cadastro Nacional de Museus, museólogo, práticas e processos sócioculturais, Movimento Internacional da Nova Museologia.
Mário de Souza Chagas: Museólogo, Doutor em Ciências Sociais (UERJ), Professor da Pós-graduação em Museologia e Património (UNIRIO), Coordenador técnico do Departamento de Museus e Centros Culturais/IPHAN | mariosc@iphan.gov.br José do Nascimento Júnior: Mestre em Antropologia Social (UFRGS), Director do Departamento de Museus e Centros Culturais/IPHAN | jnascijr@uol.com.br
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I | Raízes da imaginação museal no Brasil
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mais antiga experiência museológica de que se tem notícia no Brasil remonta ao século XVII e foi desenvolvida durante o período de dominação holandesa, em Pernambuco. Consistiu na implantação de um museu (incluindo jardim botânico, jardim zoológico e observatório astronômico), no grande parque do Palácio de Vrijburg. Mais adiante, já na segunda metade do século XVIII, no Rio de Janeiro, surgiria a famosa Casa de Xavier dos Pássaros - na verdade, um museu de história natural - cuja existência prolongou-se até o início do século XIX. Ainda que essas duas experiências museológicas não tenham se perpetuado, elas são ainda hoje notáveis evidências de que, pela via dos museus, ações de caráter preservacionista foram levadas a efeito durante o período colonial. De qualquer modo, acontecimentos museais capazes de se enraizar na vida social e cultural brasileira só seriam perpetrados após a chegada da família real portuguesa, em 1808, um marco sem precedentes. É nesse quadro que, em 1818, foi criado o Museu Real, hoje Museu Nacional da Quinta da Boa Vista e, em 1816, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios. Em 1826, quatro anos depois da Independência, foi inaugurado o primeiro salão da Academia Imperial de Belas Artes que, a rigor, pode ser considerado um dos antecedentes do atual Museu Nacional de Belas Artes. De modo gradativo, a imaginação museal no Brasil foi se construindo com as experiências desenvolvidas no século XIX, sobretudo a partir de sua segunda metade. Nesse sentido, merecem destaque a criação do Museu do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838), do Museu do Exército (1864), da Sociedade Filomática (1866) – que daria origem ao Museu Paraense Emílio Goeldi – do Museu da Marinha (1868), do Museu Paranaense (1876) e do Museu Paulista (1895). Este breve esboço da constituição da imaginação museal no Brasil permite compreender que, mesmo antes do surgimento das universidades e dos institutos públicos de preservação do patrimônio cultural, os museus já exerciam as funções de pesquisa, preservação, comunicação patrimonial, formação e capacitação profissional. II | Institucionalização do campo museal no Brasil Durante as comemorações do Centenário da Independência foi criado, no Rio de Janeiro, o Museu Histórico Nacional. Esse gesto emblemático de criação de um museu de história foi uma novidade, embora não fosse, como alguns autores pretendem, um “divisor de águas”: a rigor, ele vinha preencher uma lacuna identificada no século anterior. Se existem gestos divisores de águas no campo museal, eles encontram-se na criação do Curso de Museus (1932) e na criação da Inspetoria de Monumentos Nacionais (1934), dois acontecimentos produzidos no âmbito do Museu Histórico Nacional. O primeiro foi responsável pela institucionalização da museologia e dos estudos de museus no Brasil e o segundo foi um dos principais antecedentes do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), criado em 1936. Importa reconhecer que a Inspetoria de Monumentos Nacionais, criada em 1934, realizou um trabalho pioneiro de inventário, identificação, conservação e restauração de bens tangíveis na cidade de Ouro Preto, elevada, por decreto, em 1933 , à categoria de Monumento Nacional. A intenção explícita desse reconhecimento é destacar que o primeiro organismo federal institucionalizado de proteção do patrimônio monumental brasileiro foi criado, coordenado e colocado em movimento a partir de um museu. Esse reconhecimento, no entanto, não deve servir para obliterar a compreensão da importância que os museus tinham no anteprojeto que Mário de Andrade elaborou, em 1936, para o Serviço do Patrimônio Artístico Nacional (Span). Nesse e em outros documentos Mário de Andrade valoriza os pequenos museus, os museus populares, os museus como espaços privilegiados da res publica e também a dimensão educacional dos museus.
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professor Mário Barata, possivelmente o único participante ainda vivo do memorável encontro que deu origem ao ICOM, nasceu em 1920 e continua em plena atividade intelectual.
2 Os três primeiros presidentes da representação nacional do Icom foram Oswaldo Teixeira (diretor do Museu Nacional de Belas Artes), Rodrigo Melo Franco de Andrade (presidente do Iphan) e Heloísa Alberto Torres (diretora do Museu Nacional). 3 Alguns exemplos: Anais do Museu Histórico Nacional, publicação iniciada em 1940; Introdução à Técnica de Museus, de Gustavo Barroso, publicado em 1946, 1947 e 1951; Museus do Brasil, de Heloísa Alberto Torres, publicado em 1953; Museu e Educação, de F. dos Santos Trigueiros, publicado em 1955 e 1958; Recursos Educativos dos Museus Brasileiros, de Guy de Holanda, publicado em 1958. 4 Seminário coordenado por George Henri Rivière, que, na ocasião, era presidente do Icom. 5O
documento em questão foi construído com base nas orientações e nos debates dos dirigentes de museus, sobretudo dos grandes museus públicos, presentes ao Encontro e, por isso mesmo, ele não reflete o estado de ebulição da museologia da época.
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Novos e diversificados museus privados, públicos e mistos foram criados a partir dos anos trinta, na esteira da modernização e do fortalecimento do Estado, que passou, então, a interferir diretamente na vida social, nas relações de trabalho e nos campos da educação, da saúde e da cultura. A notável proliferação de museus iniciada naquela década prolongou-se e ampliou-se nos anos quarenta e cinqüenta, atravessou a Segunda Guerra Mundial e a denominada Era Vargas, atingindo, com vigor, os chamados anos dourados. É importante registrar que essa proliferação não se traduziu apenas em termos de quantidade; ela trouxe uma nova forma de compreensão dos museus e um maior esforço para a profissionalização do campo. No intervalo entre as duas grandes guerras mundiais, com os laços de dependência internacional mais flexibilizados, foi possível criar instituições e desenvolver práticas preservacionistas de caráter nacional. Assim, é compreensível que, logo após o final da Segunda Grande Guerra, em 1946, fosse criado o Conselho Internacional de Museus (Icom), uma organização não-governamental ligada à Unesco. Nessa ocasião, o jovem museólogo Mário Barata1, egresso do Curso de Museus e beneficiado com uma bolsa de estudos internacionais, encontrava-se em Paris e participou diretamente da criação do Icom2. A presença de Barata nesse acontecimento e o seu contato imediato com instituições brasileiras, por intermédio de jovens museólogas de sua geração, foi decisiva para que no mesmo ano fosse criada no Brasil a representação nacional do Icom. Essa criação condensava e explicitava o desejo de diversos profissionais de museus espalhados pelo país na atualização do campo museal e na intensificação do intercâmbio cultural, técnico e científico com outros países, especialmente com a França e os Estados Unidos da América. Entre os anos 40 e 50 a museologia se consolidou no Brasil com a publicação de livros que se tornaram clássicos3, com a afirmação da diversidade museal e com a criação de museus como os de Arte Moderna, de Imagens do Inconsciente, do Índio e de tantos outros. Em 1956, foi realizado em Ouro Preto o 1º. Congresso Nacional de Museus e, em 1958, no Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, aconteceu o Seminário Regional da Unesco sobre a Função Educativa dos Museus4. Estes dois grandes encontros desempenharam papéis seminais na profissionalização da museologia e na consagração da perspectiva pedagógica nos museus brasileiros. Na década seguinte, em 1963, foi criada a Associação Brasileira de Museologistas, atual Associação Brasileira de Museologia, responsável pela realização de inúmeros fóruns, congressos, seminários, encontros e debates, e principal agente de mobilização na luta pela regulamentação da profissão de museólogo, o que viria a acontecer em 1984. Em 1976, foi realizado na cidade do Recife, o 1º Encontro Nacional de Dirigentes de Museus. Desse Encontro resultou um documento denominado Subsídios para Implantação de uma Política Museológica Brasileira5, publicado pelo Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais e durante longo tempo utilizado para orientação de projetos. Três anos depois desse famoso Encontro realizado em Pernambuco seria criada por Aloísio Magalhães, a Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM), que abrigou, durante aproximadamente uma década, um conjunto expressivo de museus não atendidos pela política cultural da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan). Foi no âmbito da FNPM que, em 1983, instalou-se o Programa Nacional de Museus que desenvolveu projetos especiais visando a revitalização dos museus brasileiros. O panorama museológico entre os anos 70 e 80 estava em ebulição e compunhase de novas idéias, encontros e debates, novas propostas de uma museologia ativa, participativa e democrática. Na esteira das discussões de política museológica surgiria, em 1986, o Sistema Nacional de Museus com o objetivo de articular e apoiar financeiramente projetos museológicos.
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Os documentos produzidos em 1972, durante a Mesa Redonda de Santiago do Chile, e em 1984, durante a reunião internacional de Quebec, produziram impactos teóricos e práticos no Brasil. Os desafios de pensar e desenvolver práticas de uma museologia popular e comunitária e os desafios de refletir e agir sobre o patrimônio, considerando-o como agente de mediação, foram assumidos por alguns praticantes da museologia. Mesmo depois de alguns avanços, no início dos anos 90 a Fundação Nacional Pró-Memória e a Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional foram extintas e, em substituição, foi criado o Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC). Nessa ocasião, os museus dessas instituições foram esquecidos e deixados de fora da nova estrutura. Após algum tempo, percebido o dramático equívoco, foram incorporados, por meio de artifício administrativo, ao IBPC, posteriormente denominado Iphan. De modo notável, a trajetória dos museus no Brasil indica que as ações de comunicação, pesquisa e preservação do patrimônio cultural madrugaram nessas instituições que, concretamente, existem no tempo presente. As relações entre os museus e o patrimônio não nasceram e não se esgotaram no século XX. Esse entendimento favorece a compreensão de que as categorias museu e patrimônio podem ser consideradas como campos complementares e, por isso mesmo, uma não se reduz obrigatoriamente à outra. Em outras palavras: os museus não são apêndices do campo patrimonial; eles constituem práticas sociais específicas, com trajetórias próprias, com mitos fundadores peculiares. Sem dúvida, é possível pensar que estão inseridos no campo patrimonial, mas, ainda assim, é forçoso reconhecer que têm contribuído freqüentemente, de dentro para fora e de fora para dentro, para forçar as portas e dilatar o domínio patrimonial. Ao contribuir para a constituição e a dilatação do domínio patrimonial, o campo museal se vê igualmente forçado a dilatar e reorganizar os seus próprios limites, especialmente a partir das suas práticas de mediação. Esse fenômeno, passível de ser observado após a Segunda Grande Guerra e, sobretudo, após as guerras coloniais, ganha ainda maior nitidez nos anos 80, com os desdobramentos da chamada Nova Museologia. O Movimento Internacional da Nova Museologia (Minom), que se organizou nos anos 80, a partir dos flancos abertos no corpo da museologia clássica nos anos 70 - tanto pela Mesa Redonda de Santiago do Chile, quanto pelas experiências museais desenvolvidas no México, na França, na Suíça, em Portugal, no Canadá e um pouco por todo o mundo – viria também configurar um novo conjunto de forças capazes de dilatar, ao mesmo tempo, o campo museal e a paisagem patrimonial. Por essa época, no Brasil, destacou-se, em termos teóricos e práticos, o trabalho de Waldisa Russio, inovador, ousado e inspirador de uma museologia popular, politicamente engajada e comprometida com os processos de transformação social. A musealização, como prática social específica, derramou-se
para fora dos museus institucionalizados. Tudo passou a ser museável (ou passível de musealização), ainda que nem tudo pudesse, em termos práticos, ser musealizado. A imaginação museal e seus desdobramentos (museológicos e museográficos) passaram a poder ser lidos em qualquer parte onde estivesse em questão um jogo de representações de memórias corporificadas. Casas, fazendas, escolas, fábricas, estradas de ferro, músicas, minas de carvão, cemitérios, gestos, campos de concentração, sítios arqueológicos, notícias, planetários, jardins botânicos, festas populares, reservas biológicas - tudo isso poderia receber o impacto de um olhar museológico. Os museus conquistaram notável centralidade no panorama político e cultural do mundo contemporâneo. Deixaram de ser compreendidos por setores da política e da intelectualidade brasileira apenas como casas onde se guardam relíquias de um certo passado ou, na melhor das hipóteses, como lugares de interesse secundário do ponto de vista sociocultural, e passaram a ser percebidos como práticas sociais complexas, que se desenvolvem no presente, para o presente e para o futuro, como centros (ou pontos) envolvidos com criação, comunicação, produção de conhecimentos e preservação de bens e manifestações culturais. Por tudo isso, o interesse político nesse território simbólico está em franca expansão. O esforço para tentar imaginar um museu de um “tipo novo” e, ao mesmo tempo, sistematizar as novas práticas, sublinhando as diferenças em relação a outros modelos teóricos, levou Hugues de Varine, ainda nos anos 70, a desenhar uma concepção de museu que substituísse as noções de público, coleção e edifício pelas de população local, patrimônio comunitário e território ou meio ambiente. III | O exercício de uma nova imaginação museal Os museus brasileiros estão em movimento. Por isso, interessa compreendê-los em sua dinâmica social e interessa compreender o que se pode fazer com eles, apesar deles, contra eles e a partir deles no âmbito de uma política pública de cultura. Em comemoração aos trinta anos da Mesa Redonda de Santiago do Chile, em maio de 2002, foi realizado na cidade do Rio Grande (RS) o 8º Fórum Estadual de Museus sob o tema “Museus e Globalização”, ocasião em que foi elaborada e divulgada a “Carta do Rio Grande”. Ainda em 2002, o Conselho Federal de Museologia (Cofem) elaborou e divulgou o documento denominado “Imaginação Museal a Serviço da Cultura”. Estes dois documentos informariam a Política Nacional de Museus. O governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva empossado em janeiro de 2003 estabeleceu novos marcos conceituais e práticos para o Ministério da Cultura (MinC), sob a gestão do Ministro Gilberto Gil, além de desenvolver um plano de implementação de políticas públicas sem precedentes na história do Brasil contemporâneo. Não há exagero quando se
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diz que, na atual gestão, o MinC foi recriado e refundado e passou a ter efetivamente estatura e envergadura de Ministério. Compreendendo a importância dos museus na vida cultural e social brasileira, o Ministério da Cultura criou a Coordenação de Museus e Artes Plásticas vinculada à Secretaria de Patrimônio, Museus e Artes Plásticas e por seu intermédio convidou a comunidade museológica para participar democraticamente da construção de uma política pública voltada para o setor. Um dos frutos dessa ação inédita foi o lançamento da Política Nacional de Museus, no dia 16 de maio de 2003, em meio às comemorações do Dia Internacional de Museus, no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. Ainda que a Política Nacional de Museus tenha sido lançada como um documento, avaliado e amparado pelo Estado republicano, o segredo do seu funcionamento está no seu caráter de movimento social, de ação que extrapola as molduras políticas convencionais. Em termos metodológicos o processo de construção da Política Nacional de Museus foi dividido em quatro etapas: 1. Elaboração de um documento básico para discussão geral com a participação de representantes de entidades e organizações museológicas e universidades, além de profissionais de destacada atuação na área. Esse documento levou em conta a “Carta de Rio Grande” e o texto “Imaginação Museal a Serviço da Cultura”, anteriormente citados. 2. Apresentação e debate público do documento básico, em reuniões ampliadas, no Rio de Janeiro e em Brasília, entre 23 e 27 de março de 2003, com a participação de diretores de museus, representantes das secretarias estaduais e municipais de cultura, professores de universidades, representantes de entidades e organizações museológicas de âmbito nacional e internacional. Mais de uma centena de pessoas. 3. Ampla disseminação e discussão do documento básico por meio eletrônico e reuniões presenciais. Profissionais de museus de diferentes áreas do conhecimento, professores, estudantes, aposentados, pesquisadores, técnicos, gestores culturais, líderes comunitários, políticos, educadores, jornalistas e artistas, enfim, todos os interessados em participar do debate, puderam contribuir livre e democraticamente para o aprimoramento da proposta inicial. Além das múltiplas e expressivas contribuições nacionais, o documento contou também com a leitura crítica, atenta e sugestiva de profissionais que atuam na França, na Holanda e em Portugal; 4. Finalmente, uma equipe mista, formada por representantes do poder público e da sociedade civil, cuidou de consolidar as diferentes sugestões e de apresentar uma nova versão para o documento inicial. Essa versão foi mais uma vez submetida ao debate por meio eletrônico, corrigida, ajustada, aprovada, e depois publicada e lançada no outono de 2003. Um dos resultados dessa ampla consulta foi o entendimento dos museus como práticas e processos socioculturais colocados a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, politicamente comprometidos com a gestão democrática e participativa e museologicamente voltados para as ações de investigação e interpretação, registro e preservação cultural, comunicação e exposição dos testemunhos do homem e da natureza, com objetivo de ampliar o campo das possibilidades de construção identitária e a percepção crítica acerca da realidade cultural brasileira. Os princípios adotados para orientação da Política Nacional de Museus foram os seguintes: 1. Estabelecimento e consolidação de políticas públicas para os campos do patrimônio cultural, da memória social e dos museus, visando à democratização das instituições e do acesso aos bens culturais; 2. Valorização do patrimônio cultural sob a guarda dos museus, compreendendo-os
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como unidades de valor estratégico nos diferentes processos identitários, sejam eles de caráter nacional, regional ou local; 3. Desenvolvimento de práticas e políticas educacionais orientadas para o respeito à diferença e à diversidade cultural do povo brasileiro; 4. Reconhecimento e garantia dos direitos das comunidades organizadas de participar, com técnicos e gestores culturais, dos processos de registro e proteção legal e dos procedimentos técnicos e políticos de definição do patrimônio a ser musealizado; 5. Estímulo e apoio à participação de museus comunitários, ecomuseus, museus locais, museus escolares e outros na Política Nacional de Museus e nas ações de preservação e gerenciamento do patrimônio cultural; 6. Incentivo à programas e ações que viabilizem a conservação, a preservação e a sustentabilidade do patrimônio cultural submetido a processo de musealização;
um programa de formação e capacitação em museus e em museologia; da ampliação da oferta de cursos de graduação e pós-graduação, além de cursos técnicos e de oficinas de extensão; da inclusão de conteúdos e disciplinas referentes ao uso educacional dos museus e dos patrimônios culturais nos currículos dos ensinos fundamental e médio; da criação de pólos de capacitação e de equipes volantes capazes de atuar em âmbito nacional; do desenvolvimento de programas de estágio em museus brasileiros e estrangeiros, dentre outras ações. 4. Informatização de Museus, destacando-se a criação de políticas de apoio aos processos de desenvolvimento de sistemas informatizados de documentação e gestão de acervos, ao estímulo de projetos para disponibilização de informações sobre museus em mídias eletrônicas e ao apoio aos projetos institucionais de transferência de tecnologias para outras instituições de memória.
Uma vez apresentados os objetivos, a rede de parcerias e os princípios orientadores da Política Nacional de Museus, o documento, consolidado após muito debate, identificou sete Eixos Programáticos capazes de aglutinar, orientar e estimular a realização de projetos e ações museológicas:
5. Modernização de Infra-Estruturas Museológicas, abrangendo a realização de obras de manutenção, adaptação, climatização e segurança de imóveis que abrigam acervos musealizados, bem como, projetos de modernização das instalações de reservas técnicas e de laboratório de restauração e conservação. Também estavam previstas o estímulo à modernização e à produção de exposições, o incentivo a projetos de pesquisa e o desenvolvimento de novas tecnologias de conservação, documentação e comunicação.
1. Gestão e Configuração do Campo Museológico, com a implementação do Sistema Brasileiro de Museus, o incentivo à criação de sistemas estaduais e municipais de museus, a criação do Cadastro Nacional de Museus, o aperfeiçoamento de legislação concernente ao setor, a integração de diferentes instâncias governamentais envolvidas com a gestão de patrimônios culturais musealizados, a criação de pólos museais regionalizados, a participação de comunidades indígenas e afro-descendentes no gerenciamento e promoção de seus patrimônios culturais, o estabelecimento de planos de carreira, seguidos de concursos públicos específicos para atender às diferentes necessidades das profissões museais, entre outras ações.
6. Financiamento e Fomento para Museus, enfatizando a constituição de políticas de fomento e difusão da produção cultural e científica dos museus nacionais, estaduais e municipais; o estabelecimento de parcerias entre as diversas esferas do poder público e a iniciativa privada, de modo a promover a valorização e a sustentabilidade do patrimônio cultural musealizado; a criação de um Fundo de Amparo para o patrimônio cultural e os museus brasileiros; o desenvolvimento de programas de qualificação de museus junto ao CNPq, à Capes e às Fundações de Amparo à Pesquisa; e o aperfeiçoamento da legislação de incentivo fiscal, visando à democratização e à distribuição mais harmônica dos recursos aplicados ao patrimônio cultural musealizado.
2. Democratização e Acesso aos Bens Culturais, que comportava principalmente as ações de criação de redes de informação entre os museus brasileiros e seus profissionais, o estímulo e apoio ao desenvolvimento de processos e metodologias de gestão participativa nos museus, a criação de programas destinados a uma maior inserção do patrimônio cultural musealizado na vida social contemporânea, além do apoio à realização de eventos multi-institucionais, à circulação de exposições museológicas, à publicação da produção intelectual específica dos museus e da museologia e às ações de democratização do acesso aos museus.
7. Aquisição e Gerenciamento de Acervos Culturais, voltado para a criação de um programa de políticas integradas de permuta, aquisição, documentação, pesquisa, preservação, conservação, restauração e difusão de acervos de comunidades indígenas, afro-descendentes e das diversas etnias constitutivas da sociedade brasileira, além do estabelecimento de critérios de apoio e financiamento às ações de conservação e restauração de bens culturais, do apoio às instâncias nacionais e internacionais de fiscalização e controle do tráfico ilícito de bens culturais, assim como às ações e aos dispositivos legais de reconhecimento, salvaguarda e proteção dos bens culturais vinculados à história e à memória social de interesse local, regional ou nacional.
7. Respeito ao patrimônio cultural das comunidades indígenas e afro-descendentes, de acordo com as suas especificidades e diversidades.
3. Formação e Capacitação de Recursos Humanos, que tratava fundamentalmente: das ações de criação e implementação de
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6 O Programa de Pós-graduação em Museologia e Patrimônio (nível mestrado) foi criado em 2006 pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) em parceria com o Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast). 7 Ministério da Cultura Brasil/IPHAN, Cadastro Nacional de Museus, dados de abril de 2007. www.museus.gov.br
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Da mesma forma que a construção do texto que fundamenta a Política Nacional de Museus foi resultado de uma ação democrática e participativa, sua implementação também vem sendo conduzida pelos mesmos princípios. A Política Nacional de Museus está disseminada por todo o território nacional e vem, de forma sistemática, se enraizando na vida cultural brasileira. A sua capilaridade é notável: em todas as unidades federativas existem agentes sintonizados e comprometidos com o seu desenvolvimento. Além disso, ações de capacitação e formação profissional estão sendo realizadas por todo o país, o Programa de Formação e Capacitação ao longo de quatro anos atendeu mais de 10 mil profissionais e estudantes, sistemas estaduais de museus estão sendo criados ou revitalizados; fóruns, seminários, jornadas e encontros são levados a efeito por todo o canto. Os museus estão mesmo em movimento e, parafraseando Oswald de Andrade, o poeta antropofágico, podemos dizer: “só a museologia nos une”. Um dos primeiros desdobramentos da Política Nacional de Museus foi a criação do Departamento de Museus e Centros Culturais (Demu) no âmbito do Iphan, em 2003. A singularidade do conjunto de museus do Iphan e a inexistência formal de um setor na área federal voltado às ações no campo da museologia, eram motivos suficientes para a criação do Demu. Apesar de tudo isso, as gestões anteriores no MinC não tiveram sensibilidade para mudar esta realidade. O surgimento do Demu no cenário museal brasileiro acarretou, de imediato, o fortalecimento de todos os museus do Ministério da Cultura. Na seqüência deste processo, foi criado o Sistema Brasileiro de Museus, outra ação fundamental para a implantação da Política Nacional de Museus. Como conseqüência do exercício de uma nova imaginação museal e contando com o estímulo e a parceria direta do Demu, estão sendo criados por todo o país, numa escala surpreendente, novos cursos de graduação e pós-graduação em museologia. Durante aproximadamente quarenta anos, apenas a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) formava museólogos no país. Em 1970, surgiu um segundo curso, em Salvador, vinculado à Universidade Federal da Bahia (UFBA). Até 2003, estes eram os dois únicos cursos de graduação em museologia existentes no Brasil. Atualmente, estão em funcionamento um curso de pós-graduação ao nível de mestrado6 e cinco cursos de graduação vinculados às seguintes instituições: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Fundação Educacional Barriga Verde (Febave) e Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e estão em fase de implantação pelo menos mais quatro cursos: Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Nacional de Brasília (UNB), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Federal de Sergipe (UFS). Os investimentos em cursos de formação merecem uma especial atenção, por, pelo menos, três bons motivos: eles representam a possibilidade de acolhimento de vocações orientadas para os estudos sobre museus, memória, patrimônio, paisagens culturais e territórios musealizados; indicam a configuração de um cenário propício para o desenvolvimento de novas abordagens teóricas e práticas; e apontam para o amadurecimento da museologia brasileira. Desde a sua criação, em 2003, o Demu chamou para si a responsabilidade pela elaboração do mapeamento censitário dos museus no Brasil. Em 2005, o projeto do Cadastro Nacional dos Museus foi iniciado com recursos disponibilizados pelo Ministério da Cultura da Espanha por intermédio da Organização dos Estados Iberoamericanos. Os dados até agora levantados são surpreendentes. O Brasil iniciou o século XX com cerca de 12 museus e chegou ao século XXI, de acordo com os dados do Cadastro, com 24147 unidades museológicas. Registre-se, no entanto, que o processo de mapeamento e cadastro dessas instituições ainda não está concluído e que, por isso mesmo, o número dos museus existentes no
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país ainda poderá ser aumentado. Estes dados já nos permitem compreender que no Brasil, diferentemente da Europa, o século dos museus é o século XX e não o XIX. Os mais de dois mil museus que hoje existem no Brasil são instituições públicas e privadas, visitadas por 20 milhões de pessoas por ano, e que geram mais de dez mil empregos diretos. Isso demonstra a importância da área para o desenvolvimento do país. Um desafio e uma conquista fundamentais para a consolidação da Política Nacional de Museus foram a criação de instrumentos de fomento e financiamento diversificados com critérios públicos de seleção de projetos. Foi nesse sentido que o Ministério da Cultura e demais órgãos federais estabeleceram políticas de financiamento e fomento a museus, via Fundo Nacional de Cultura, Mecenato e Editais como os de Modernização de Museus (Iphan/MinC), Adoção de Entidades Culturais (CEF), Preservação de Acervos (BNDES) e Apoio à Cultura-Patrimônio (Petrobras). Uma das primeiras ações implementadas pelo DEMU foi a reformulação do programa de financiamento denominado Museu: Memória e Cidadania, cujo alcance – anteriormente restrito aos museus federais – passou a abranger, a partir de 2004, todos os museus brasileiros. Essas ações possibilitaram que instituições de todo o país tivessem mecanismos de financiamento de seus projetos, levando em conta critérios como impacto regional e institucional, a relevância dos acervos e das práticas museais. O processo democratizou e descentralizou o financiamento público da cultura. O crescimento extraordinário dos museus, aliado ao interesse dos movimentos sociais pelas práticas museológicas contemporâneas, justificam e exigem investimentos e políticas públicas específicas para o setor. Esse foi, e continua sendo, o desafio da Política Nacional de Museus: implementar ações de fomento que tenham por foco os médios e pequenos museus brasileiros, facilitar e democratizar o acesso destas instituições aos recursos orçamentários destinados à área. O enfrentamento desse desafio, de acordo com as orientações do Ministério da Cultura, permitiu que a Política de Museus alcançasse uma dimensão efetivamente nacional e pública.
No cenário citado, em termos de pontos fortes e oportunidades, destacam-se: • a diversidade e a capilaridade museal; • a forte inserção dos museus nas comunidades locais; • o expressivo leque de serviços disponibilizados ao público, com atenção para os programas educativos e as exposições temáticas de curta, média e longa duração; • a presença, em alguns museus, de equipes altamente qualificadas, equipamentos modernos e práticas museais exemplares; • relevantes exemplos de documentação e gestão de coleções, bem como de capacitação do corpo técnico dos museus; • ampla rede de apoio e colaboração nacional e internacional. Em termos de pontos críticos e ameaças, destacam-se: • a precariedade de nível jurídico e administrativo de muitos museus; • a falta de eficácia nos procedimentos técnicos de documentação e gestão de acervos; • a carência de políticas de segurança e conservação preventiva; • a fragilidade dos instrumentos de gestão dos museus e o desempenho pouco eficaz da sua função social; • a pouca valorização da função pesquisa; • coleções deficientemente inventariadas, conservadas, estudadas e divulgadas; • a baixa ocorrência de periódicos especializados para a divulgação da produção de conhecimento e práticas museais. O modelo de gestão delineado pelo Departamento de Museus e Centros Culturais do Iphan tratou de operar sobre o cenário acima referido e buscou superar dificuldades e ameaças e, ao mesmo tempo, corroborar os pontos fortes e as oportunidades. Nesse sentido, foi construído um modelo de gestão que, graficamente, pode ser representado por meio do seguinte quadro:
Instrumentos Institucionais
Sistema Brasileiro de Museus
IV | Modelo de gestão da Política Nacional de Museus Como foi indicado, a Política Nacional de Museus foi construída com base em uma metodologia que estimulou a participação de múltiplos atores sociais. Reuniões presenciais sistemáticas e entusiasmados debates por correio eletrônico permitiram que fosse desenhado um cenário nacional dos museus, trazendo à tona os pontos fortes e as oportunidades, os pontos críticos e as ameaças.
Instrumentos de Democratização
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Instrumentos de Fomento
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O modelo de gestão, como se vê, envolve três instrumentos de operação: Instrumentos institucionais: refere-se à organização institucional do setor museológico, o que envolve a criação do Sistema Brasileiro de Museus, do Cadastro Nacional de Museus, do Observatório de Museus e Centros Culturais, do Instituto Brasileiro de Museus e a definição de uma legislação específica para o campo museal, o Estatuto de Museus. Instrumentos de fomento: refere-se aos dispositivos políticos e administrativos que foram pensados e desenvolvidos visando a revitalização dos museus, tais como o Programa Museu Memória e Cidadania, os editais do Ministério da Cultura, do Banco Nacional do Desenvolvimento Social, da Caixa Econômica Federal e da Petrobrás, além das leis de incentivo à cultura e dos programas estaduais e municipais de apoio a museus. Instrumentos de democratização: refere-se à formação de uma rede de colaboradores nacionais e internacionais. O Sistema Brasileiro de Museus, por sua capacidade de aglutinação e articulação de entidades e atores sociais, é um dos pontos de destaque dessa rede. Outros instrumentos de democratização são as redes temáticas, o lançamento de editais, os programas de capacitação e formação profissional, o programa de cooperação internacional desenvolvido com a Espanha e com Portugal, a realização de fóruns estaduais e municipais de museus e a criação e a revitalização de sistemas estaduais e municipais de museus. V | Museus: abrigos do que fomos e somos, inspiração do que seremos Walter Benjamin acredita que os museus são casas e “espaços que suscitam sonhos”8 , André Malraux, por seu turno, considera que os museus são locais que “proporcionam a mais elevada idéia do homem”9. De um modo e de outro, fica patente a dimensão de humanidade dos museus, eles não são apenas casas que conservam e preservam vestígios e sobejos do passado, também são fontes de sonho e de criatividade e são pontes que nos conectam com o futuro, um futuro que muitas vezes desperta no passado. Essas palavras têm o objetivo de sublinhar a necessidade de uma atenção especial para os museus, uma atenção que se traduza num projeto concreto de valorização dos museus, sem perder a perspectiva crítica. No que se refere à Política Nacional de Museus, esse projeto (ou sonho coletivo) está associado ao plano de criação do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), incluído na agenda do governo federal.
8 Ver
BENJAMIN, Walter, 2005, “Espaços que suscitam sonhos, museu, pavilhões de fontes hidrominerais” in CHAGAS, Mário (org.) Revista do Patrimônio: Museus, antropofagia da memória e do patrimônio, Brasília, Iphan, 31, 132-147. 9 Ver
MALRAUX, André, 2000, O Museu Imaginário, Lisboa, Edições 70, 12.
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A criação do referido Instituto será o marco de uma política pública que vem sendo trabalhada desde o início da atual gestão do Ministério da Cultura. Além disso, será também o reconhecimento efetivo de que a especificidade do campo museal requer e justifica, sobretudo no mundo contemporâneo, um campo próprio de institucionalização. A vitalidade desse campo decorre de sua capacidade sui generis de mesclar preservação, investigação e comunicação; tradição, criação e modernização; identidade, alteridade e hibridismo; localidade, nacionalidade e universalidade. Hoje, o centro de gravidade da política cultural do Brasil passa pelo território dos museus. Ao longo dos últimos quatro anos a equipe do Demu aplicou-se com determinação na construção do anteprojeto de lei para a criação do Ibram. Esse anteprojeto foi discutido por equipes técnicas e administrativas, no âmbito dos museus federais; foi examinado por equipes especializadas em planejamento e gestão pública e hoje se encontra pronto para aprovação e implantação.
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Em termos operacionais, o Ibram será uma autarquia federal, dotada de personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério da Cultura, atuando em sintonia com o Sistema Brasileiro de Museus. De sua estrutura farão parte os museus atualmente ligados ao Iphan, além de outras unidades museológicas associadas por convênios, acordos e outros dispositivos legais. O Ibram é um desejo antigo que gradualmente vai se realizando. Assim como os museus, ele suscita sonhos, abriga a nossa humanidade e nos projeta no futuro, sem que com isso se perca o pé do presente. Os museus e a museologia no Brasil estão mesmo em movimento, estão na dança e em mudança e, por isso, estão enfrentando e superando desafios, alcançando e ressignificando objetivos. Embora o Ministério da Cultura, por intermédio do Demu tenha sido inegavelmente vetor de mudanças, não se deve desconsiderar a presença de outros vetores igualmente importantes. É preciso reconhecer que havia muita demanda represada, um anelo antigo de atores sociais e instituições museais interessados na elaboração e na implantação de uma política museológica para o Brasil - não de uma política qualquer, mas de uma política qualificada, democrática, participativa e cidadã, construída com o trabalho, a energia e a vitalidade de muitos. Esta conjugação de vetores resultou num clima bastante favorável. A coroação de quatro anos de trabalho intenso, mas também muito prazeroso e alegre, aconteceu com o projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo Presidente da República, declarando e consagrando o ano de 2006 como Ano Nacional dos Museus. O sucesso dos quatro primeiros anos de implantação da Política Nacional de Museus aumentou a responsabilidade do MinC. Um dos mais graves problemas das políticas públicas de cultura tem sido a descontinuidade das ações e a perda das conquistas alcançadas, o que tem produzido um ambiente de desconfiança e descrença. Por tudo isso, preservar o caráter participativo e democrático da atual Política de Museus é fundamental. Essa preservação, em certo sentido, depende mais da atuação direta e engajada dos diversos agentes sociais envolvidos com o seu processo de construção do que dos aparelhos públicos – estatais ou não – que se dedicam à sua sistematização. Essa parece ser também a sugestão de Nestor Garcia Canclini: “Talvez uma tarefa-chave das novas políticas culturais seja, tal como tentam certas performances artísticas, reunir de outras maneiras afetos, saberes e práticas. Reencontrar ou construir signos que representem, de modo crível, identidades de sujeitos que ao mesmo tempo querem, sabem e agem: sujeitos que respondam por ações e não personagens que representem marcas de entidade enigmática. Este é um núcleo dramático do presente debate cultural, ou seja, do sentido com que as opções de desenvolvimento social vêm se reelaborando”10. O enfrentamento dessa questão tem levado o MinC a dedicar-se com atenção à continuidade das ações da Política Nacional de Museus, através do Plano Nacional de Cultura (PNC) e das demais ações que possam garantir o seu futuro, levando em conta as três seguintes diretrizes: cultura como direito, cultura como bem simbólico e cultura como ativo econômico. Colocar em movimento e mesclar ideais, planos, desejos e sonhos guardados há tempos por diferentes atores sociais em seus “baús de prata”11 e buscar transformar a potência dessas energias em práticas concretas, em ações efetivas, sem perder a potência transformadora dessas energias, foi o grande desafio e o desejo dos gestores da Política Nacional dos Museus. Vida longa para os museus! Essa é a nossa vereda museal tropical.
10 Ver
GARCIA CANCLINI, Nestor, 2005, Diferentes, Desiguais e Desconectados, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 265.
11 Expressão
presente em uma das canções do Ministro Gilberto Gil. O “velho baú de prata dentro de mim” é uma espécie de museu que serve para preservar e comunicar saudades.
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Fig. 1 Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia (Madrid) Ampliação de Jean Nouvel © Subdirección General de Museos Estatales Ministerio de Cultura de España
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Marina Chinchilla Gómez Museus de Espanha. A configuração de uma Rede
Perspectiva sobre o complexo e dinâmico processo de configuração do panorama museológico de Espanha, em estreita articulação com o próprio sistema de organização política e administrativa do País. Apresenta igualmente um balanço da trajectória do Sistema Espanhol de Museus, propondo algumas conclusões que apontam para a necessidade de fomentar os instrumentos de colaboração e organizar os museus de um ponto de vista mais racional, que permita associações mais directas e reais entre museus com similares características formais e tipológicas, de forma a estabelecer tramas concretas e não meramente administrativas. Estas propostas estão já contidas no futuro Regulamento de Museus de Tutela Estatal. This article is an account of the complex and dynamic process of the configuration of the museological reality in Spain, in close connection to the country’s own administrative and political system. It also provides an appraisal of the trajectory of the Spanish System of Museums, providing conclusions that suggest the need to encourage instruments of collaboration and to organize museums in a more rational way. This will allow more direct and real associations between museums which are formally and typologically similar, so as to establish real networks, rather than merely administrative ones. These suggestions are already part of the future State Museums Regulation.
PALAVRAS-CHAVE: Sistema Espanhol de Museus, rede, cooperação, adesão, desvinculação, regulamento de Museus de Tutela Estatal.
Marina Chinchilla Gómez: Subdirectora de Administração do Museu Nacional do Prado marina.chinchilla@museodelprado.es
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Apresentação
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Também disponível no sítio web do Ministério de Cultura: www.mcu.es/museos/MC/EM/index.html 2O
conceito de museu responde ao designado pela Lei 16/1985, de 26 de Junho: “são museus as instituições de carácter permanente que adquirem, conservam, investigam, comunicam e exibem para fins de estudo, educação e contemplação conjuntos e colecções de valor histórico, artístico, científico e técnico ou de qualquer outra natureza cultural”. 3 Para efeitos da presente estatística entende-se por colecção um “conjunto de bens culturais que, sem reunir todos os requisitos necessários para desenvolver as funções próprias dos Museus, se encontra exposto ao público com critério museográfico e horário estabelecido, conta com uma relação básica do seus fundos e dispõe de medidas de conservação e salvaguarda”. 4 Constitui-se por 17 Comunidades Autónomas e 2 Cidades Autónomas 5A
Administração local engloba Câmaras e “Assembleias Municipais” (NT: no original “Diputación Provincial”, ou seja, uma corporação eleita para dirigir e administrar os interesses de uma província. As províncias correspondem às divisões administrativas de cada comunidade autónoma).
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Museu em Espanha é, actualmente, uma instituição cultural de máximo prestígio e de reconhecida trajectória como instrumento básico para a correcta salvaguarda e difusão do Património Histórico Espanhol. Contudo, também o museu em Espanha, à semelhança de muitos outros países à sua volta, se converteu num foco de atenção de numerosos olhares. ������������������ A opinião pública participa das novas iniciativas museológicas, os profissionais dos museus reflectem sobre o novo conceito de museu e as administrações tutelares e gestoras debatem sobre as melhores e mais ágeis fórmulas de gestão. Em suma, a sociedade reflecte sobre uma instituição em contínuo processo de mudança e à qual se atribuem mais responsabilidades do que as estritamente funcionais. Os museus foram convertidos nos protagonistas da arquitectura urbana, em modelos de gestão empresarial no âmbito da cultura, em espaços para a experimentação e em cenários das mais variadas representações culturais. Apesar deste permanente clima de reflexão e mudança, os museus espanhóis encontram-se num dos períodos mais brilhantes da sua longa história, e assim o demonstram alguns dos dados que, como introdução a este artigo, consideramos de interesse mencionar antes de dirigir o olhar para o panorama museológico espanhol. A estatística dos museus e colecções museográficas de 2004, elaborada pelo Ministério de Cultura e recentemente publicada (AAVV 2006)1, reconhece um total de 13672 museus e colecções3 espalhados por todo o país, o que corrobora o Censo de Museus utilizado pelo Ministério para o seu estudo estatístico. No entanto, a resposta foi de 90,6%, o que desenha um universo de 1238, número a partir do qual se extraem os dados estatísticos detalhados em seguida. 65,2% destes museus enquadram-se no sector público, 33% são privados e 1,8 % de modelo misto. No caso dos tipos de gestão as percentagens são muito semelhantes, sendo 63% de gestão pública, 34,8% de gestão privada e 2,2% de modalidade mista. Sem dúvida, estes primeiros números apresentam o museu público como a tipologia administrativa mais habitual em Espanha, apesar de ser necessário distinguir diversas categorias dentro desta tipologia e precisar que 12,5 % pertencem à Administração Geral do Estado, 8,1% às Administrações Autónomas, 43,5% à Administração local e 1,1% a outras. Sobre este assunto devemos esclarecer que Espanha configura-se como um Estado constituído por Comunidades Autónomas4, em virtude do estabelecido pelo art. 2 da Constituição Espanhola de 1978, o que provocou um processo de descentralização e de transferências de competências do Estado para as Comunidades Autónomas, tal como se mencionará neste artigo, o que afectou especialmente os museus de regime estatal. Em relação a tipologias, os museus mais numerosos em Espanha são os museus de Belas-Artes (208), seguidos pelos museus Etnográficos e de Antropologia (202) e pelos Arqueológicos (156). ������������������������������������������������������� As especialidades menos representadas são os museus de Artes Decorativas (28) e de Ciência e Tecnologia (37). É igualmente interessante saber que em Espanha na década de 90 foram criados um total de 334 museus, sendo o período na história dos museus no qual mais instituições museológicas foram criadas. A ��������������������������������������� década de 2000 está a seguir a mesma tendência, pois até 2004 surgiram 143 museus. As Administrações que promoveram esta efervescência museológica foram, em primeiro lugar, a Administração local5, seguida da iniciativa privada e da Administração Autónoma, face à quase nula presença do Estado neste trabalho de
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criação de novos museus, enquanto que este tinha sido o grande promotor e fundador de museus durante o século XIX e as primeiras décadas do século XX, momento em que começa a ceder o passo à Administração local. Como último dado descritivo do panorama espanhol há que dizer que existe uma clara dispersão de museus por todo o território espanhol, sendo a Comunidade Valenciana a que mais museus tem, seguida pela Comunidade de Castela e Leão, Castela La Mancha e Andaluzia, sendo, no entanto, preciso salientar que estas três ultimas são as geograficamente mais extensas. As ���������������������������������� com menor número de museus são as Cidades Autónomas de Ceuta e Melilla, que têm menor extensão geográfica. O conceito de Rede de museus em Espanha na actualidade Em Espanha os termos Rede e Museu estão na moda, tal como referiu recentemente Luis Grau (GRAU 2006) na sua conferência das jornadas Museos locales y Redes de Museos, organizadas pela Associação Profissional de Museólogos de Espanha, nas quais vários profissionais apresentaram as suas diferentes propostas, fazendo eco da preocupação com este tema. No entanto, este debate partilhado por todos os profissionais de museus em Espanha não tem reflexo numa rede comum de museus que aglutine todas as instituições museológicas reconhecidas no território nacional, pelo contrário, existe uma diversidade de redes administrativas de museus, nascidas sob tutela das Administrações respectivas, promovidas por diferentes iniciativas. O Ministério de Cultura, como organismo da Administração Geral do Estado, com o maior número de museus integrados e com a responsabilidade de traçar a política cultural do Estado, conta com a “Rede de Museus Estatais”, de carácter administrativo. Esta Rede aglutina um total de 84 museus de diferentes categorias, que por sua vez se organiza em diferentes subredes como resultado dos diferentes modelos de gestão existentes. Em primeiro lugar aglutina os 17 museus de gestão directa do Ministério de Cultura6, isto é, aqueles que não foram afectados pelo processo anteriormente citado de transferências para as Comunidades Autónomas no âmbito da cultura, pelo facto de alguns terem o carácter de Nacional ou por se considerar que a especificidade das suas colecções lhes proporciona uma projecção nacional. ������������������������� Estes 17 museus desenham uma primeira subrede dentro da mencionada Rede, pelo que todos eles são geridos a partir da Subdirecção Geral de Museus Estatais, Unidade Administrativa desse Ministério e responsável pela gestão7 dos museus. A estes devemos somar 3 museus, também pertencentes ao Ministério de Cultura, mas cujo regime administrativo é diferente ao disporem de uma maior autonomia de gestão: o Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, definido como Organismo Autónomo; o Museu Nacional do Prado, Organismo Público; e o Museu Nacional do Teatro, gerido pelo Instituto Nacional das Artes Cénicas e da Música, Organismo Autónomo do mesmo Ministério. Contudo, adquirem especial protagonismo na conformação desta Rede os museus de regime estatal integrados no Ministério de Cultura, mas cuja gestão foi transferida para as Comunidades Autónomas em cumprimento do estabelecido nos art. 148 e 149 da Constituição Espanhola. ��������������������������������������������������� Este processo de transferência afectou um total de 64 museus distribuídos por toda a geografia espanhola, à excepção do País Basco, Navarra, Canárias, Ceuta e Melilla por carecerem de museus estatais, e Madrid por reunir museus cujas características os converteu em museus não objecto de transferência para a Comunidade Autónoma. O processo de transferências durou dez anos, com início em 1982 e termo em 1992. Durante este longo período foram transferidos 64 museus, instituições que na maioria coincidiam na sua origem com o museu provincial, nascido em finais do século XIX
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Museu de Altamira, Museu Nacional de Escultura, Museu Casa Cervantes, Museu Nacional de Artes Decorativas, Museu Nacional de Antropologia, Museu Nacional de Reproduções Artísticas, Museu Sorolla, Museu Cerralbo, Museu Romântico, Museu do Traje e Centro de Investigação do Património Etnológico, Museu Arqueológico Nacional, Museu de América, Museu Sefardita, Museu de El Greco, Museu Nacional de Arte Romana, Museu Nacional de Cerâmica e Artes Sumptuárias “González Martí”, Museu Nacional de Arqueologia Marítima. No seu conjunto distribuem-se pelas seguintes cidades: Madrid, Toledo, Valhadolid, Santillana del Mar (Santander), Valência, Cartagena e Mérida (Badajoz).
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Para a gestão destes museus o Ministério conta com um programa orçamental exclusivo para museus, o qual financia todos os gastos relativos às melhoras arquitectónicas dos imóveis, ao tratamento das suas colecções, à manutenção e actividades do museu e à gestão dos recursos humanos.
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Fig. 2 Museu de Segóvia © Subdirección General de Museos Estatales Ministerio de Cultura de España
Fig. 3 Museu Sorolla (Madrid) © Subdirección General de Museos Estatales Ministerio de Cultura de España
e princípio do XX, cujos fundos de carácter etnográfico, artístico e arqueológico os convertiam no melhor depositário da história do seu espaço geográfico, tais como os museus de Burgos, Segóvia (fig. 2), Cádiz, La Rioja, Albacete, etc. Outros museus transferidos contavam com uma tipologia mais específica, no âmbito das BelasArtes, da Etnografia ou da Arqueologia, como o Museu Arqueológico de Granada, de Córdova e Sevilha, por exemplo, ou o Museu de Artes e Tradições Populares de Sevilha, entre outros. Este modelo de museu transferido estabelece um quadro de competências complicado e complexo, ao manter o Estado a tutela e os investimentos no âmbito das colecções e das infra-estruturas por ser o Ministério o responsável pelas mesmas, enquanto que a Comunidade Autónoma assume a gestão do centro, ou seja, os gastos com o pessoal, manutenção e actividade. Esta subrede de Museus Estatais de gestão transferida faz com que os museus que a integram se vejam afectados no seu funcionamento com um duplo critério: o estabelecido pela política estatal através dos seus planos de acção, na actualidade o denominado Plano Estratégico de Museus Estatais (2004-2008), e as políticas autónomas, que contam igualmente com os seus próprios instrumentos de planificação. A Subdirecção Geral de Museus Estatais do Ministério de Cultura e os Serviços de Museus das diferentes Comunidades Autónomas têm realizado um esforço para coordenar ambas políticas e trabalhar de forma conjunta para os objectivos comuns. ���������������������������������������������������������������������������� No entanto, esta gestão partilhada exige, sem dúvida, um nível de esforço e coordenação importante de ambas partes, com o fim último de facilitar ao museu o seu funcionamento e não confundir o cidadão. Contudo, esta denominada “Rede de Museus Estatais” não está unicamente configurada pelos museus adscritos ao Ministério de Cultura, mas também se lhe acrescentam os museus adscritos a outros Organismos da Administração Geral do Estado, como o Ministério de Defesa que conta com 32 museus, o Património Nacional com 22 e outros 20 museus pertencentes a outros departamentos ministeriais, como Educação e Ciência, Habitação, etc. A “Rede de Museus Estatais” soma, portanto, o total de 156 museus geridos sob diferentes modelos administrativos, mas unidos pela sua norma reguladora, o Regulamento de Museus de Tutela Estatal, aprovado pelo Real Decreto 620/1987 de 10 de Abril.
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A citada norma não define apenas a instituição, as suas áreas de funcionamento, o tratamento das colecções e o seu regime de visita e de serviço ao público, como também traça uma nova “rede” de museus, o Sistema Espanhol de Museus 8. Esta denominação integra: • Os museus de tutela estatal do Ministério de Cultura (84) • Os museus nacionais não incluídos no item anterior (2) • Os museus9 que tenham especial relevância pela importância das suas colecções e que se incorporem mediante convénio com o Ministério de Cultura, uma vez consultada a correspondente Comunidade Autónoma (45) Ainda formam parte do Sistema algumas Unidades Administrativas da Direcção Geral de Belas-Artes e Bens Culturais do Ministério de Cultura, como a Subdirecção Geral de Museus Estatais e o Instituto de Património Histórico Espanhol cujas responsabilidades afectam a gestão dos museus. A finalidade desta nova rede é promover a cooperação entre os Museus integrantes do Sistema, sob a assessoria da Junta Superior de Museus, órgão consultivo do Ministério de Cultura, com o fim de melhorar e fomentar os trabalhos de documentação, investigação, conservação e restauro dos fundos, assim como propiciar as actividades de divulgação cultural e a qualificação do seu pessoal. Um balanço da trajectória do Sistema Espanhol de Museus durante os últimos anos leva a uma primeira conclusão: a necessidade de fomentar os instrumentos de colaboração e organizar os museus de um ponto de vista mais racional, que permita associações mais directas e reais entre museus com similares características formais e tipológicas, de forma a que permitam traçar tramas reais, não meramente administrativas. Por esta razão, e juntamente com outros motivos de grande importância para os museus, o Ministério de Cultura desenvolveu um novo Regulamento de Museus de Tutela Estatal, cuja aprovação está prevista para 2007, e dada a experiência do anterior Regulamento vigente durante vinte anos, o Ministério, neste novo Regulamento, apostou num conceito renovado de Museu, no qual as exigências para o reconhecimento da instituição como museu são uma garantia de qualidade no serviço e do cumprimento das suas funções. O novo Regulamento aposta num novo Sistema Espanhol de Museus configurado, em primeiro lugar, por todos os museus de regime estatal (156) e, em segundo lugar, por todos os museus que, independentemente da tutela e modelo de gestão, solicitem a sua adesão do Sistema mediante a assinatura de um protocolo. A ������� nova regulamentação, não estabelece apenas novas normas de gestão para o Sistema, como traça objectivos mais ambiciosos e mais detalhados (CHINCHILLA GÓMEZ et. al. 2006), especifica um procedimento para a adesão e incorpora o conceito de “desvinculação” ao Sistema Espanhol de Museus para aqueles que não cumpram os compromissos ou percam os requisitos exigidos, o que, sem dúvida, reforça o conceito de qualidade a que anteriormente se aludia. Algo especialmente novo é a inclusão de um artigo dedicado exclusivamente a “redes de museus”10, no qual se reconhece a possibilidade de criar, no quadro do Sistema Espanhol de Museus, redes de museus com a finalidade de propiciar o cumprimento dos objectivos traçados, assim como se alude à possibilidade de colaborar com outras redes existentes em Espanha, e eventualmente no estrangeiro. Sem dúvida, estas questões dirigem o conceito de rede para um conceito de rede temática com uma aproximação mais racional e mais prática, que permitirá a associação directa entre museus com interesses e objectivos comuns, o que significa apostar no conceito de “rede temática”. No ��������������������������������������������� Ministério de Cultura está-se a trabalhar com a finalidade de fomentar este tipo de colaborações face à certeza de que o
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Art. 26 do Título 2 do Real Decreto 620/1987 de 10 de Abril.
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Podem ser museus de carácter privado ou público, mas devem cumprir uma série de requisitos estabelecidos pelo Ministério de Cultura.
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Queremos clarificar que no momento de escrever este texto, o novo Regulamento de Museus de Tutela Estatal está em fase de despacho administrativo pelo que pode sofrer modificações, em relação ao aqui exposto, durante o seu processo de aprovação definitiva.
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diálogo entre museus será mais fluído quando se fale a mesma linguagem e se partilhem os mesmos problemas e soluções. Como resultado desta intenção organizar-se-ão redes temáticas de museus arqueológicos, de belas-artes, etnográficos, casas-museu e outras disciplinas (fig. 3). A procura de complementaridade entre eles será também uma garantia para a sua sobrevivência. Os discursos expositivos enlaçados, uma programação conjunta de exposições temporárias, um aproveitamento comum dos recursos técnicos, humanos e económicos, uma política de aquisições consensual, uma reorganização de colecções e numerosas tarefas partilhadas permitirão começar a falar-se de racionalização de esforços e rentabilidade de recursos na gestão museológica. Este conceito de redes temáticas conta com um importante precedente em Espanha, como é o caso do desenvolvido pelo Sistema de Museus da Catalunha, criado a partir da Lei de Museus da Catalunha de 1990, na qual se estabelecem como bases para este novo quadro administrativo as redes temáticas, o registo de Museus e a Junta de Museus. As ����������������������������������������������������������������������� citadas redes articulam-se a partir de três museus nacionais que se encontram à cabeça do sistema e que são o Museu de Arqueologia da Catalunha, o Museu Nacional de Arte da Catalunha e o Museu da Ciência e da Técnica da Catalunha. Os outros museus do Sistema adquirem um carácter de secção em relação a estes. A finalidade é fazer chegar recursos técnicos e económicos a todos os museus da Catalunha e coordenar museus com colecções complementares, de modo a que se formem conjuntos museológicos unitários. Mas em Espanha, para além destes Sistemas existem múltiplas redes e Sistemas tutelados por diferentes Administrações Autónomas e Locais que propiciam, ao abrigo das suas próprias normativas e no quadro das suas competências, as suas próprias Redes e Sistemas, algumas delas de grande semelhança com as redes do Estado. As dezassete Comunidades Autónomas contam com os seus próprios sistemas ou redes de museus, criados ao abrigo das suas legislações autónomas. ������������������� Sobre esta matéria consideramos de interesse destacar a existência de oito leis exclusivas de Museus, o que mostra a importância que no quadro legislativo adquiriram estas instituições culturais em Espanha. Deste modo, as Comunidades Autónomas de Andaluzia, Aragão, Catalunha, já citada, Castela e Leão, Múrcia, Madrid, Cantábria e Baleares contam com este instrumento. As restantes desenvolvem as normas reguladoras dos museus a partir das suas correspondentes Leis do Património Histórico. Os museus que integram cada um dos sistemas descritos serão os estabelecidos por cada Comunidade, mas devemos destacar que nas Comunidades Autónomas em que existem museus de tutela estatal, estes formarão parte dos sistemas autónomos e do Sistema Espanhol de Museus, o que incide nessa dualidade de responsabilidades a que antes se aludia. À margem destes sistemas autónomos de museus, também em Espanha existem redes de carácter local, promovidas pelas Câmaras, Assembleias Municipais11 ou outros Organismos, cuja finalidade é promover o conhecimento de um património disperso por um território concreto mediante medidas que incentivem a visita conjunta. Um novo conceito de Rede em Espanha. A Rede Digital
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Ver nota 5.
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Em Espanha, à margem da existência de redes administrativas de museus, o Ministério de Cultura colocou em andamento as bases para um grande projecto, cujos primeiros frutos já estão a começar a ser vistos, como é a criação de uma rede digital de Museus que reúna as colecções dos museus e as torne acessíveis ao utilizador. Essa sociedade de informação em que hoje vivemos não pode estar alheia aos museus, ou melhor, os museus não podem estar alheios à sua incorporação como
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instrumento de difusão e conhecimento disponível ao cidadão. Os ������������������� museus albergam uma infinidade de conhecimentos e estão obrigados, na sua vertente de serviço público, a colocar à disposição do curioso, do estudioso ou do especialista as suas ricas e variadas colecções. O projecto promovido pelo Ministério pretende incorporar na Rede todos os museus utilizadores do DOMUS, Sistema Integrado de Documentação e Gestão Museográfica, independentemente da sua tutela, modelo de gestão ou tipologia científica. Este projecto, concebido pelo Ministério de Cultura, não se trata já de um projecto exclusivamente seu, mas é partilhado por todas as Administrações que assinaram o acordo com o Ministério para implantar o sistema DOMUS nos seus museus12. ����� Esta ferramenta informática serve de suporte para a catalogação e gestão de colecções nos museus e permite, mediante uma interface de consulta web, o acesso aos fundos museográfícos, através de pesquisas simples ou avançadas, incluindo a possibilidade de utilizar thesaurus multilingues para uma recuperação de informação precisa. As pesquisas podem incidir sobre um ou vários museus agrupados por tipos, localização geográfica, etc. Este catálogo colectivo das colecções dos museus espanhóis, acessível através da Internet, oferecerá informação descritiva e de catalogação, para além de imagens digitais dos bens culturais à guarda dos museus. Hoje em dia já são acessíveis, através dos seus correspondentes sítios web, as colecções do Museu do Traje e do Museu Casa de Cervantes13, assim como dos museus andaluzes14. Na actualidade já está implicado um total de 249 museus espanhóis, tanto de tutela estatal (gestão directa do Ministério de Cultura e gestão transferida), como de outras tutelas. Últimas notícias da Rede de Museus de Espanha Com o fim de completar este olhar sobre os museus de Espanha e utilizando neste caso o termo Rede com a única finalidade de aglutinar todas as instituições sob a mesma denominação, devemos destacar algumas novidades surgidas no panorama museológico espanhol que o convertem num foco de atenção para a museologia e museografia internacional. Tal como em outros países, os museus em Espanha estão a sofrer importantes processos de remodelação que não só afectam as suas infra-estruturas, mas também os seus modelos de gestão, as suas práticas profissionais e o perfil das suas colecções. Em Espanha, tal como já se referiu, está-se num processo de criação contínua de novos museus, fundamentalmente por parte das Administrações Locais, apesar de devermos salientar a recente criação por parte do Estado do Museu Nacional de Arquitectura, criado por Real Decreto 1636/2006 de 29 de Dezembro, cuja finalidade é “investigar e difundir a contribuição da arquitectura e do urbanismo na cultura espanhola, assim como conservar os seus testemunhos” (art. 1.2.). A tipologia de museus que maior presença tem vindo a adquirir neste processo são os museus etnográficos e os museus de arte contemporânea. Estes ����������������������� últimos estão em plena actualidade, pela sua forte presença numérica no panorama espanhol. Segundo os dados estatísticos citados existem 84 museus, o que os coloca em segundo lugar depois dos museus de Belas-Artes dentro da categoria de Museus de Arte. No âmbito da arte contemporânea devemos recordar que o processo de criação de museus desta tipologia teve início com a criação, em 1989, do Instituto Valenciano de Arte Moderno e do Centro Atlântico de Arte Moderna (Palmas da Grande Canária), ano em que também se criou, no âmbito estatal, o Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía, herdeiro do anterior Museu Espanhol de Arte Contemporânea, cuja origem era então o Museu de Arte Moderna.
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Até ao momento assinaram acordos com o Ministério de Cultura para a implantação do Sistema DOMUS as seguintes Comunidades Autónomas: Andaluzia (2003 e 2005), Galiza (2004), Valência (2004 e 2006), Cidade de Melilha (2004), Aragão (2004), Ilhas Baleares (2004), Castela La Mancha (2005), Múrcia (2005) e Cantábria (2006), e as seguintes entidades gestoras de museus: Fundação Museu Marítimo Ria de Bilbau (2004), Câmara de Madrid (2004), Fundação Centro Nacional do Vidro (2005), Universidade de Valhadolid (2005), Real Academia de Belas-Artes de São Fernando (2006), Câmara de San Lorenzo de El Escorial (2006) e Câmara de Colmenar de Oreja (2006).
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http://museodeltraje.mcu.es; http://museocasacervantes.mcu.es
14 www.juntadeandalucia.es/cultura/
museos/domus.jsp
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Fig. 4 Museu de Almeria © Subdirección General de Museos Estatales Ministerio de Cultura de España
Esta tendência conduziu a que, na actualidade, se possa falar do facto de os museus desta categoria já se encontrem numa fase de maturidade, sendo as Câmaras Municipais os seus principais promotores juntamente com as Comunidades Autónomas, o que permitiu a fundação destes centros por todo o território nacional, tendo recebido, durante 2004, um total de 4.460.438 visitantes. Estes novos museus também se converteram num dos expoentes da arquitectura contemporânea, com exemplos tão significativos como o Museu de Arte Contemporânea de Castela e Leão (MUSAC), dos arquitectos Tuñón e Mansilla. Uma das intervenções mais significativas foi a desenvolvida no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, cuja ampliação, obra de Jean Nouvel, incrementou o espaço do Museu para mais de 60% face à superfície do edifício anterior, e o dotou de dois magníficos auditórios, salas de exposições temporárias, depósitos de bens culturais, biblioteca, loja, cafetaria, restaurante, etc., para além de oferecer à cidade de Madrid um edifício de grande modernidade e significado num dos seus centros nevrálgicos como é o nó de Atocha (fig. 1). No âmbito dos Museus e Centros de Arte Contemporânea devemos destacar a elaboração de um documento de boas práticas para a sua gestão, proposta elaborada por profissionais do sector com a colaboração de associações de artistas e outros colectivos vinculados à arte contemporânea. ���������������������������������� Este documento foi subscrito pelo Ministério de Cultura no passado dia 31 de Janeiro. A implementação dos critérios propostos permitirão no futuro avaliar a efectividade das medidas propostas. Contudo, em Espanha, talvez neste momento se esteja à espera do projecto mais importante no panorama museológico espanhol, isto é, a ampliação do Museu Nacional do Prado, executada pelo arquitecto Rafael Moneo, que conseguiu dotar o Museu de novos espaços e recuperar os restos do claustro da Igreja dos Jerónimos, tornando-o num dos principais eixos da intervenção. Paralelamente, o Museu Nacional do Prado, no seu intenso processo de modernização, não traçou apenas um Plano de Actuação que se prolonga de 2005 a 2008, como também se configurou como Organismo Público, o que o dota de uma nova fórmula de gestão que abrirá um novo caminho, em Espanha, para os museus de tutela pública. Os restantes Museus Estatais do Ministério de Cultura, tanto de gestão directa como de gestão transferida, são alvo de um semelhante processo de modernização. As recentes inaugurações dos Museus de Almeria (Março 2006) (fig. 4), Museu de
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Fig. 5 Museu de Leão © Subdirección General de Museos Estatales Ministerio de Cultura de España
Segóvia (Julho 2006) e Museu de Leão (Janeiro 2007) (fig. 5) são apenas a ponta do iceberg das actuações desenvolvidas pelo Ministério no âmbito da melhoria das infra-estruturas. Simultaneamente trabalha-se na construção de novas sedes para museus tão importantes como o Museu Nacional de Arqueologia Marítima em Cartagena (fig. 6), cujo edifício, concebido pelo arquitecto Vázquez Consuegra, irá permitir a Espanha contar com um emblemático museu que, virado para o mar, fará do mesmo o centro das suas colecções e discurso através de uma moderna e renovada concepção museográfica. Também estão em curso projectos de remodelação de instalações de museus como o Museu Arqueológico Nacional (fig. 7), cujo edifício do século XIX no centro de Madrid, exige uma grande intervenção com o fim de adaptá-lo às novas necessidades. ������������������������������������������������������������ A estes exemplos podemos somar outros como a intervenção no Colégio de São Gregório em Valhadolid, sede do Museu Nacional de Escultura, no Museu Arqueológico de Córdova, no Museu de La Rioja, Museu de Málaga, etc. Também dentro da rede de Museus Estatais há que destacar a importância da transferência do Museu do Exército, da sua emblemática localização no Palácio do Bom Retiro em Madrid para Toledo, o que significou colocar em andamento uma grande intervenção no Alcácer de Toledo e a construção de um edifício de raiz. A �� sua inauguração, prevista para 2008, permitirá uma apresentação renovada e actual do Património Histórico Militar. Mas não são somente as infra-estruturas o único ponto de actuação para o qual o Ministério tem dirigido os seus esforços nos últimos anos, mas pretendeu-se trabalhar a teoria museológica e, desse modo, a partir deste Ministério elaborou-se uma metodologia de trabalho para a planificação museológica, face à convicção da necessidade de dotar os museus, independentemente da sua tipologia ou modelo de gestão, de uma ferramenta de trabalho que permita ordenar e planificar as tarefas do museu nas suas diferentes áreas de actuação. Este �������������������������������������� instrumento foi denominado Plano Museológico (AAVV, 2005)15 e a sua elaboração será um compromisso para todos os museus estatais, uma vez que entre em vigor o novo regulamento de Museus de Tutela Estatal. Neste rápido olhar sobre os museus de Espanha não se pode esquecer o Museu Guggenheim de Bilbau, museu já consolidado, que significou uma clara alteração no conceito de museu em Espanha ao ter demonstrado a capacidade de que um museu dispõe para transformar a sua área urbana. Bilbau ������������������������������� passou a ser uma cidade
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Disponível também em formato pdf no sítio web do Ministério de Cultura: www.mcu.es/museos/MC/PM/index.html
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Fig. 6 Museu Nacional de Arqueolocia Marítima (Cartagena, Murcia) Maquete da nova sede (projecto de G. Vázquez Consuegra) © Subdirección General de Museos Estatales Ministerio de Cultura de España
cosmopolita e de grande atracção turística graças ao processo inaugurado pelo museu que não serviu apenas para recuperar a Ria de Bilbau, como permitiu desenvolver aspirações socio-culturais e económicas da cidade e da região. Mas antes de desviar o olhar dos museus há que fixá-lo por uns momentos nos profissionais dos museus de Espanha e num dos principais temas de reflexão como é a necessidade de regulamentar os padrões comuns ao nível da formação museológica. Em Espanha convivem um grande número de mestrados, cursos e diplomas de pósgraduação, cursos de especialização, etc. ���������������������������������������� Alguns deles com questões coincidentes, mas com objectivos diferentes e alunos de variado perfil e vocação (CARRION SANTAFÉ 2006). A gestão cultural, a gestão de exposições e a gestão museológica entrecruzam-se para estabelecer estes programas, o que cria a necessidade de articular um modelo comum e de utilidade para todos os profissionais que, independentemente do seu futuro ingresso em museus públicos ou privados ou do processo de selecção que devam seguir, possam articular no futuro, o que significa a chave do êxito para qualquer Rede de Museus, como é a Rede dos seus profissionais. Para finalizar este rápido percurso pela Rede de museus de Espanha, e incidindo na importância do profissional de museus como garantia da sobrevivência da instituição, cabe destacar a importância que este adquiriu em Espanha nos últimos anos. ������������������������������������������������������������������������������ Hoje em dia já não se fala de profissional, mas de profissionais de museus, a variedade de perfis e qualificações e a necessidade de equipas multidisciplinares para a correcta gestão de um museu provocou uma alteração radical. A configuração dos organigramas e a estrutura departamental dos museus, tanto públicos como privados, desenham esquemas organizativos onde convivem, de forma equilibrada, as áreas de administração e gestão e as áreas de serviços e projecção externa, com os departamentos responsáveis pelas funções básicas e mais tradicionais do museu, como são todas as relativas ao tratamento das colecções, razão de ser da instituição museológica.
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Fig. 7 Museu Arqueológico Nacional (Madrid) © Subdirección General de Museos Estatales Ministerio de Cultura de España
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