RETÁBULO DE FERREIRA DO ALENTEJO INSTITUTO PORTUGUÊS DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO
Ficha Técnica Direcção Textos Estudos para o Texto de Conservação e Restauro
Conservação e restauro
Estudos Laboratoriais
Edição Digitalização Design Gráfico Impressão Agradecimentos
Créditos Fotográficos
Esquemas
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Ana Isabel Seruya Mário Pereira António Nogueira - Um pintor do tempo de Trento - Joaquim Oliveira Caetano Intervenção de Conservação e Restauro – José Mendes - Coordenação Anabela Almeida Cândida Silveira José Mendes Lília Esteves Maria José Oliveira Miguel Garcia Pedro Sousa Raul Leite Coordenação – Gabriela Carvalho, Cândida Silveira José Mendes Miguel Garcia Pedro Correia Ana Mesquita e Carmo Isabel Ribeiro José Carlos Frade Lília Esteves Maria José Oliveira Divisão de Documentação e Divulgação / IPCR Luísa Casela, Élia Ródão, Daniel Cristo, (Luís Pavão, Lda.) Nuno Diogo In Two, Design António Coelho Dias, S.A. Ana Casals Isilda Maria Santos José Carlos Oliveira, Museu Regional Rainha D. Leonor, Beja Vitor Serrão Pedro Sousa © IPCR - foto. 15, 16a, b,17, 18, 23, 27, 33. Jorge Oliveira © IPCR - foto. 5, 6, 25, 26, 28, 32. Luis Piorro © IPCR - (História de Arte) foto. 7. IJF © - (História de Arte) foto. 9. José Pessoa © Divisão de Documentação Fotográfica / Instituto Português de Museus - (História de Arte) - foto. 1, 5, 6a, b, c, d. Anabela Almeida - foto. 40, 41, 42, 43. António Cunha © Museu Regional Rainha D. Leonor - (História de Arte) - foto. 2, 3, 4. José Mendes - foto. 3, 10, 11, 12a. b, c, 14, 19, 20a, b, 21, 22, 30, 31, 37a, b, 38, 39a, b. Maria José Oliveira - foto. 9, 13, 29. Miguel Garcia - foto. 1, 2a, b, 4, 8, 24, 34, 35, 36. Lília Esteves - esquema 7. Miguel Garcia - esquemas 1 (História de Arte), 1 (Conservação e Restauro), 2. Maria José Oliveira - esquemas 3, 5, 6. Pedro Sousa - esquema 4. 972-99476-5-1 220629/04
Apoio Instituto Português de
© Instituto Português de Conservação e Restauro Rua das Janelas Verdes, 1249-049 • Tel.: 213 934 200 · Fax: 213 970 067 · e-mail: ipcr@ipcr.pt * As metodologias de Conservação e Restauro descritas nesta publicação foram estudadas especificamente para o núcleo/peça intervencionado (a), não devendo ser entendidas como normativas para trabalhos em espécies, aparentemente, afins. * O IPCR não pretende com esta publicação estabelecer normas de actuação mas divulgar uma orientação ética de Conservação e Restauro, demonstrando, simultaneamente, as possibilidades de conhecimento alcançadas pela interdisciplinariedade dos diversos ramos do saber. * O relatório detalhado do Departamento de Estudos de Materiais encontra-se disponivel em www.ipcr.pt
Projecto “ Estudos e Investigação sobre o Património Cultural”
Ana Isabel Seruya – Directora do IPCR Mário Pereira – Subdirector do IPCR Subordinados ao projecto "ESTUDOS E INVESTIGAÇÃO SOBRE O PATRIMÓNIO CULTURAL", viabilizado pelo apoio do Programa Operacional da Cultura,desenvolveram-se trabalhos que incidiram sobre um diversificado leque de tipologias de bens culturais. Todas as intervenções, quer fossem em áreas em que é comum intervir, como é o caso da pintura, da escultura, dos têxteis, ou da ourivesaria, quer em outras em que o é menos frequente, como globos ou armaduras de laca, tiveram como preocupação um mesmo denominador - o seu elevado grau de complexidade e o facto de serem peças emblemáticas do nosso Património. O Instituto Português de Conservação e Restauro quis, com estes "Estudos", cumprir uma das suas mais importantes atribuições: efectuar trabalhos de Conservação e Restauro de bens culturais de reconhecido valor histórico, artístico, técnico ou científico que possam constituir-se como referência da actividade de salvaguarda e conservação do património cultural, nomeadamente no que diz respeito ao trabalho em equipa pluridisciplinar, ao campo do diagnóstico, do estudo dos materiais e das técnicas, às abordagens e metodologias de intervenção e, também, à formação de uma nova geração de conservadores-restauradores. Por outro lado, o processo de renovação e actualização dos equipamentos dos laboratórios e das oficinas herdados do Instituto de José de Figueiredo, ajustando-os às novas exigências técnico-científicas do estudo e conservação dos bens culturais, constituíram um contributo essencial para garantir o enquadramento adequado à prossecução deste projecto. A designação de estudos não foi abusiva porque quis o Instituto que estes trabalhos se inserissem num projecto de divulgação para dar a conhecer novas metodologias de intervenção e o que isso supõe do conhecimento das técnicas da produção artística e da ciência dos materiais. Cada intervenção implica uma abordagem interdisciplinar que nos permita conhecer e caracterizar a realidade intrínseca de cada peça e, só a partir desse momento, determinar a metodologia de intervenção mais adequada à sua natureza. Queremos deixar claro que o estudo conducente ao conhecimento dos materiais, o desenvolvimento científico para obtenção de análises e interpretações mais esclarecedoras e a definição de critérios de intervenção, passam, hoje, por vários saberes que convergem no estudo aprofundado de cada peça. Como intervenções modelares que pretendíamos que fossem, escolhemos criteriosamente as peças que foram objecto destes “Estudos”. Assim, tivemos a "sorte" de poder contar com um vasto leque de peças paradigmáticas do que se desejava para cada tipologia de bens. Na pintura, ao escolhermos as “Tábuas da Charola do Convento de Cristo” e o “Políptico da Misericórdia de Ferreira do Alentejo”, demos sequência e profundidade aos trabalhos que já vínhamos desenvolvendo sobre a Pintura Quinhentista Portuguesa. Na escultura, o “Presépio da Basílica da Estrela” apresentou-se-nos como aquela opção que simultaneamente nos propiciava o desenvolvimento do estudo iniciado com o projecto Policromia e nos permitia estudar as terracotas enquanto suporte artístico. Num momento em que se acompanha com interesse os estudos da arte luso-oriental, a nossa proposta para
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o mobiliário passou pelo estudo das lacas e a apropriação e domínio da sua tecnologia de conservação e restauro, pelo que, com recurso a especialistas mundialmente reputados, intervencionámos um “Biombo chinês”, do Museu Nacional de Arte Antiga (4 folhas) e do Museu dos Condes Castro Guimarães (5 folhas) e uma “Armadura japonesa”, do Museu Municipal da Figueira da Foz. Nesta vasta área de expressão artística foi ainda estudado e intervencionado um “Biombo de papel”, do Museu Nacional de Arte Antiga, de produção macaense, com representações de batalhas da Guerra da Restauração. Porque temos um património cartográfico notável e uma importantíssima colecção de globos, com muitos a necessitar de ser intervencionados, decidimos, com o apoio técnico da Bibliothèque Nationale de France, estudar e restaurar um par de “Globos Coronelli” (séc. XVII), pertencentes à Sociedade de Geografia, e que são dos mais espectaculares que se conhecem. Dada a importância, majestosidade e riqueza documental das “Vestes da Nossa Senhora da Oliveira”, algumas oferecidas por D. João V, não podíamos deixar de estudar, consolidar e conservar este importante conjunto de vestes do Museu Alberto Sampaio, de Guimarães. Dando continuidade a uma área com tradição no Instituto, decidimos aprofundar o estudo, já iniciado, de três fragmentos têxteis do relicário dito “de D. Luís Vasques da Cunha”,do Museu Alberto Sampaio.Este estudo,de carácter introdutório,será o ponto de partida para um projecto mais vasto sobre têxteis medievais, que irá abranger um conjunto muito significativo de testemunhos provenientes de diversas instituições, nomeadamente, do Museu Nacional Machado de Castro (Coimbra), do Museu Nacional de Soares dos Reis (Porto) e dos Tesouros das Catedrais de Lisboa e Braga. No tocante à ourivesaria, o IPCR optou por estudar e intervencionar a peça mais emblemática da ourivesaria medieval portuguesa – o “ Retábulo da Natividade”, do Museu de Alberto Sampaio. Esta peça, envolta em lendas, relacionada com a batalha de Aljubarrota e oferecida por D. João I à Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, há muito que carecia do estudo e da intervenção que agora foram efectuados. Procurámos que em todos estes "Estudos" se vivesse um ambiente de trabalho multidisciplinar. Partilhámos dúvidas e hipóteses, momentos menos bons e alegrias, que são afinal o fermento de qualquer trabalho que implica o envolvimento das diferentes personalidades, formações e sensibilidades próprias de historiadores de arte, conservadores-restauradores, físicos, químicos, biólogos, fotógrafos e bibliotecários. Mas julgamos que as obras que agora trazemos a público são bem o espelho de um empenhamento esforçado e esclarecido que pretendemos venha a ser o modus operandi no Instituto Português de Conservação e Restauro. Não poderíamos colocar um ponto final neste ambicioso programa de trabalho, sem manifestar o nosso mais vivo agradecimento a todos quantos nele colaboraram. O seu empenhamento, o seu entusiasmo e rigor científico são uma alavanca para que possamos continuar a trabalhar, colocando a obra de arte no lugar central, deixando que seja ela, em toda a sua integridade – material e imaterial –,a conduzir e a determinar as opções de qualquer projecto de intervenção. Estes "Estudos" são assim a demonstração de que há hoje novas abordagens passíveis de fazer avançar o conhecimento que temos não só das técnicas de produção artística como da História de Arte. Os historiadores, os conservadores-restauradores e os cientistas quiseram e souberam articular os seus saberes, quiseram e souberam interpretar os seus olhares e quiseram e souberam fazer uma leitura "total" da obra de arte.
Preservação e Apresentação do Políptico no Museu Municipal de Ferreira do Alentejo Maria João Pina Câmara Municipal de Ferreira do Alentejo A Câmara Municipal de Ferreira do Alentejo, através do Serviço Histórico Museológico, preparou a instalação do núcleo sede do Museu Municipal de Ferreira, projecto financiado em cerca de 50% pelo Programa Operacional da Cultura e que visou a recuperação de um edifício de finais do século XIX,ou seja a Casa Agrícola Jorge Ribeiro de Sousa que fica sedeada na Rua Conselheiro Júlio de Vilhena nº 6, em pleno coração da zona histórica de Ferreira do Alentejo. Este núcleo museológico, que inaugurou a 22 de Outubro 2004, contempla todas as valências e funções museológicas e o visitante pode aí encontrar, repartidos por três pisos, uma loja, uma sala de exposições temporárias, uma sala para os serviços educativos,um laboratório,sala de inventário e desenho,cinco salas de exposições temáticas (formação do planeta Terra; as primeiras comunidades humanas no território (Calcolítico e Neolítico); a Romanização e os invasores Bárbaros; a Ordem de Santiago de Espada; do Século XIV ao Século XX - estruturação do território e formação do concelho de Ferreira; Cozinha tradicional alentejana (os cheiros e sabores do Alentejo); Sala M. Giacometti (as sonoridades, o "Cante" do Alentejo); Sala Júlio de Vilhena - ilustre ferreirense), auditório, reserva, zona investigadores e zona de gestão. O museu detém ainda um jardim de cheiros que evoca os gostos da civilização Árabe e uma cafetaria /esplanada. Os traços arquitectónicos e artísticos do referido edifício foram totalmente recuperados e assim a sala de exposições temporárias mantém as características abóbadas e a sala de caracterização do concelho mantém os belos e imponentes frisos de estuques com grisailles. O acervo museológico exibido neste núcleo retrata e dignifica a memória dos ferreirenses, evocando o tempo dos primeiros homens que habitaram este território desde os tempos pré-históricos até hoje. Relata-se o passado remoto do território, hoje integrado no concelho de Ferreira, o seu presente e especula-se sobre o seu futuro. Numa das salas temáticas situadas no piso 2 encontra-se exposto o imponente retábulo pintado por António Nogueira por volta de 1565 para a Igreja do Espírito Santo que foi arrasada, saqueada e depois demolida em 1911. À guarda da Santa Casa da Misericórdia desde essa nefasta data, este Retábulo com três metros e oitenta e dois centímetros de comprimento por dois metros e sessenta e dois de largura foi muito provavelmente a ultima obra de António Nogueira e, certamente, o seu melhor trabalho onde se evocam oito episódios da vida de Cristo - Anunciação, Natividade, Adoração dos Reis Magos, Baptismo,Transfiguração, Ressurreição,Ascensão e Pentecostes. As deficientes condições de temperatura e humidade feriram a integridade da obra que se encontrava desde 1911 colocada na Igreja da Misericórdia e foram decisivas para que se solicitasse o apoio do Instituto Português de Conservação e Restauro. Assim e atendendo à relevância da obra o Instituto Português de Conservação e Restauro prestou-se a fazer a sua recuperação, tendo sido o mesmo retábulo transportado para Lisboa no dia 10 de Outubro de 2000. Uma equipa interdisciplinar - museólogos, conservadores restauradores,químicos, historiador de Arte – ocupou-se do seu estudo.Terminado o trabalho de recuperação da obra o retábulo é agora o ex libris do núcleo sede do Museu Municipal de Ferreira. Esta situação é apenas temporária uma vez que o mesmo retábulo enquadrará o discurso museológico do futuro pólo de Arte Sacra do Museu Municipal que ficará sedeado na Igreja da Misericórdia. Enquadrado numa das salas temáticas do núcleo sede do Museu Municipal de Ferreira, onde se tratam os aspectos da religiosidade,o retábulo está suportado por uma estrutura metálica que evita o seu contacto directo com a parede e encontra-se pontualmente iluminado. Com o intuito de preservar a mensagem cultural desta obra sublime do Século XVI, o Museu Municipal recorreu aos conselhos e indicações que os técnicos do Instituto Português de Conservação e Restauro lhe facultaram e coordenou a montagem do retábulo com a Sentido Designers LDA.,equipa que forneceu o equipamento e o design gráfico ao Museu de Ferreira.
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Projecto “Estudos e investigação sobre o Património cultural”
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Preservação e Apresentação do Políptico no Museu Municipal de Ferreira do Alentejo
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POLÍPTICO DE FERREIRA DO ALENTEJO
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António Nogueira Um pintor do tempo de Trento
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O retábulo de Ferreira do Alentejo A Anunciação A Natividade A Adoração dos Magos A Ressurreição A Ascenção A Transfiguração O Baptismo O Pentecostes A Obra de António Nogueira Nogueira e a Pintura do seu tempo
ÍNDICE
INTERVENÇÃO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO Estudo Técnico e Formal do Políptico
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Os painéis e a moldura A pintura Caracterização da técnica pictórica A distribuição cromática
48 53 54 Diagnóstico do estado de conservação
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Tratamento efectuado 58 59 60 Condições de Exposição do Políptico de António Ferreira na Igreja da Misericórdia de Ferreira do Alentejo Bibliografia. Conservação e Restauro
58 Fixação da camada pictórica O suporte Fase de limpeza A integração
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Os painéis e a moldura A pintura
Retรกbulo de Ferreira do Alentejo
ANUNCIAÇÃO
ANTES DO TRATAMENTO
DEPOIS DO TRATAMENTO
ADORAÇÃO DOS MAGOS
ANTES DO TRATAMENTO
DEPOIS DO TRATAMENTO
ASCENÇÃO
ANTES DO TRATAMENTO
DEPOIS DO TRATAMENTO
BAPTISMO
ANTES DO TRATAMENTO
DEPOIS DO TRATAMENTO
TRANSFIGURAÇÃO
ANTES DO TRATAMENTO
DEPOIS DO TRATAMENTO
RESSUREIÇÃO
ANTES DO TRATAMENTO
DEPOIS DO TRATAMENTO
NATIVIDADE
ANTES DO TRATAMENTO
DEPOIS DO TRATAMENTO
PENTECOSTES
ANTES DO TRATAMENTO
DEPOIS DO TRATAMENTO
O RETテ。ULO DE FERREIRA DO ALENTEJO
ANTES DO TRATAMENTO
O RETテ。ULO DE FERREIRA DO ALENTEJO
DEPOIS DO TRATAMENTO
ANTÓNIO NOGUEIRA – UM PINTOR DO TEMPO DE TRENTO
A entrada para tratamento e estudo no Instituto Português de Conservação e Restauro, constituiu uma nova oportunidade para nos acercarmos do conhecimento da obra de António Nogueira, um dos mais interessantes dos mestres menores da pintura portuguesa do terceiro quartel do século XVI e um dos primeiros maneiristas nacionais a mostrar-se perfeitamente enquadrado com o espírito e as determinações da reforma católica. Tirando um pequeno fragmento existente no Museu de Évora, e uma bela pintura representando Cristo deposto da Cruz, do Convento da Graça de Lisboa, a obra conhecida do pintor continua a resumir-se a três conjuntos que já tivemos oportunidade de revelar noutros trabalhos1 e que correspondem a outras tantas empreitadas. Todas se encontram dispersas e nenhuma no seu local original. Do retábulo da Igreja da Misericórdia de Beja, pintado em 1564, restam quatro pinturas, quadradas, de cerca de 115 cm de lado, guardadas hoje no Museu Regional Rainha Dona Leonor, em Beja. Na igreja da Misericórdia de Ferreira do Alentejo guardava-se o retábulo agora estudado, proveniente da demolida igreja do Espírito Santo da mesma vila, e no Museu Nacional de Arte Antiga guardam-se seis tábuas provenientes da igreja de Santa Margarida do Lavradio. Estas vinte obras são tudo quanto até agora se pode atribuir com alguma segurança ao pintor, baseando-nos nas quatro pinturas de Beja, documentalmente atribuídas através do conhecimento de um recibo parcial de pagamento. É portanto uma obra escassa, e que ainda nos parece mais limitativa do conhecimento do autor, quanto aparece relativamente concentrada no tempo – não mediará mais de uma década entre todas estas obras – dizendo respeito tão-somente à fase final da pintura de António Nogueira, que decorre algures entre o fim do segundo quartel do século XVI e Setembro de 1575, quando falece em Évora, sendo enterrado pela Misericórdia local de que era irmão. O documento mais antigo sobre o pintor continua a ser o contrato publicado por Virgílio Correia em 1928, entre António Nogueira e Dom Pedro de Sousa, conde do Prado e Senhor da Vila de Beringel, datado de 15 de Outubro de 1546, para a execução de duas pinturas para a igreja de Santo Estevão, que entretanto desapareceram2. É um documento muito curioso pois mostra que apesar de certamente ser muito jovem, Nogueira era um pintor já conceituado, pelo menos localmente, de forma a
receber uma encomenda de um importante nobre. Os termos do contrato são extremamente interessantes no que mostram do interesse do encomendador e na relação deste com o pintor. O documento é escrito nas próprias casas do conde do Prado, D. Pedro de Sousa está presente, assina pessoalmente o contrato e define cuidadosamente os temas, tintas e arrumação das pinturas: "Em hum dos paneis ade ser pyntado a Imagem de nosa senhora ao pee da cruz e da houtra parte san joam avangellysta e na paysagee ade ter a cydade de jerusallen e amtre a cydade e as figuras de nossa senhora e de são joam ade aver xpõ com a cruz as costas como quando o llevaram a crucyfiquar e o ceo do paynell se fará de modo que represente a escuridão que ao tal tempo foy feyto sobre a terra E no houtro paynell ande ser pymtados a Imagem de nosa sra com ho menino no collo e esta Imagem ade ser maior que as do houtro paynell. S. de maior estatura com dous hanjos que serão brymcando com o menyno e os guarda pos destes Retauollos ande ser dados dazull fyno e os cimos e florois dourados e asy as mollduras e pyllares e a Imagem de nossa senhora hade ter huum dosell de broquado e tudo isto das ditas pymturas ade ser de tymtas muyto fynas e ho dourado de houro fyno e tudo isto feyto e acabado em tall maneira que de pessoas que dyso entendam digam que esta feyto como deue e como pertemcee a tall pessoa como ho dyto senhor conde". Poucos documentos da pintura quinhentista portuguesa mostram tão claramente esta vontade de um nobre se rever na obra encomendada como esta última frase do trecho do contrato que citamos. D Pedro de Sousa foi uma personalidade muito curiosa dos reinados de D. Manuel e D. João III3 . Era filho de Rui de Sousa - poeta do Cancioneiro, embaixador em Castela e em Inglaterra, meirinho-mor e almotacé-mor de D. João II, Senhor das vilas de Sagres e de Beringel - e da sua segunda mulher, Dª Branca de Vilhena, filha de Martim Afonso de Melo, senhor de Olivença e de Ferreira. D. Pedro veio a casar-se por três vezes, primeiro com D. Mecia Henriques filha de Fernão da Silveira, regedor e Coudel-mor, também ele poeta do Cancioneiro e proprietário das célebres "casas pintadas" de Évora. Casou-se depois com D. Margarida de Brito, filha e herdeira de D. Estêvão de Brito, alcaide-mor de Beja, cargo que D. Pedro de Sousa veio a herdar. Um caso de adultério desta sua esposa com um servidor da sua casa veio a terminar no assassinato tanto de Dª Margarida, como do seu amante, apesar deste se ter refugiado em Castela, na casa do Conde de Benavente. D. Pedro tê-lo-à atraído para fora do Palácio, matando-o na rua e fugindo para Portugal antes da justiça castelhana o poder apanhar. Este episódio traça bem o perfil de D. Pedro, parecendo fazer juz à sua fama de guerreiro de Safim e Azamor, de que chegou a ser capitão, e sobretudo à empresa que usou nas célebres festas de casamento do
1 A identificação da obra de António Nogueira foi feita por nós a partir da associação documental de um recibo aos quatro painéis do Museu Regional de Dona Leonor de Beja, provenientes da Igreja da Misericórdia, em Joaquim Oliveira Caetano, "O antigo retábulo de pintura da capela-mor da Igreja da Misericórdia de Beja", in A Cidade de Évora, nºos 65-66, 1982-83, pp. 197-210. Os retábulos de Ferreira do Alentejo e Santa Margarida do Lavradio foram revelados e atribuídos a António Nogueira em Joaquim Oliveira Caetano, "Novas obras do pintor maneirista António Nogueira", in Anais da Real Sociedade Arqueológica Lusitana, 2ª Série – 1º volume, Santiago do Cacém, 1987, pp. 77-92. A pintura da Igreja da Graça de Lisboa foi ligada ao pintor em Joaquim Oliveira Caetano, O que Janus Via. Rumos e cenários da Pintura Portuguesa (1535-1570), dissertação de mestrado em História da Arte apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1996, vol. I, pp.230-236, e vol. II, fig. 155. 2 Livro de Notas de Diogo Luís, 1546, Arquivo Distrital de Évora, Notariais de Évora, Lº 12, fl. 79-80vº. Publicado por Vergílio Correia, Pintores Portugueses dos Séculos XV e XVI, Coimbra, Imprensa da Universidade, pp. 67-69. 3 Seguimos resumidamente a biografia deste nobre inscrita em Anselmo Bramcamp Freire, Brasões da Sala de Sintra, 2ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1973, vol. I, pp. 213-218
príncipe D. Afonso e que constava de um salteador assassino com a legenda "Vuetra vista desbarata / mas do que este roba y mata".A figura do patrono dos serviços do jovem António Nogueira aparece-nos assim como uma personagem eivada de velhos tiques cavalheirescos, mas muito preocupado com a fama e a presença para a posteridade que a arte lhe poderia conferir, sobretudo quando, pela idade, se vai aproximando dos últimos anos. Já em 1531, quando da morte da sua terceira e última esposa, Dona Joana de Melo, filha do provedor de Évora, o dr. João Afonso de Aguiar, se preocupou em fazer para ela um "jazigo de mármore muito bom"4 , e a partir da década de 1540 mostra um particular interesse na reedificação da igreja Matriz da sua vila Beringel, para a qual Nogueira fará os retábulos. A igreja mostra uma vontade de adopção do formulário decorativo clássico, sem estar livre de regionalismos arcaizantes. De três naves, cobertura de cruzaria abatida, com medalhões renascentistas na intersecção das nervuras, colunas um tanto atarracas, de capitéis dóricos com gola canelada, utilização recorrente do arco de volta perfeita, sublinhado na utilização do mármore cinzento de Trigaches em oposição às paredes brancas, com os motivos heráldicos bem presentes no portal clássico e na capelamor e na adjacente funerária de D. Pedro, espelha a vontade do Conde em perpetuar a sua memória através destas iniciativas que ocuparam a fase final da sua vida até 1555, data da sua morte, e também da finalização da capela funerária na Igreja de S.Lourenço de Beringel5 . Os dois retábulos de Nogueira faziam parte desta cuidada preparação da sua última morada, o que explica os cuidados postos na sua preparação e a vontade expressa contratualmente de que a obra estivesse à altura do seu encomendador. As condições exigidas ao pintor garantiam que as obras sairiam segundo a vontade de D. Pedro pois o contrato a que fizemos referência, estipulava, para além dos prazos (até Janeiro de 1547) e pagamento (19 mil reais), a obrigação do cumprimento, sob pena "que elle dito senhor possa tomar huum ofecyall dos mylhores que houver pera lhos fazer e acabar a custa do dyto amtonio nogueira com todallas custas e despesas que elle dyto senhor conde sobre ello fyzer". Outra indicação da qualidade que D. Pedro queria pôr nesta sua obra foi a escolha do entalhador que deveria fazer a parte de marcenaria do retábulo, e que era nem mais nem menos do que Pedro de Frias, talvez o mais importante retabulista de Lisboa, filho do escultor manuelino do mesmo nome, e que teve uma importância enorme na adopção dos modelos renascentistas aplicados às estruturas retabulares. A vontade de qualidade e modernidade do Conde do Prado estava de
novo presente nesta escolha. É provável que as duas pinturas se destinassem a altares de irmandades preexistentes na igreja às reformas arquitectónicas de D. Pedro de Sousa, tanto mais que a capela-mor e a sua capela funerária parece terem ficado prontas apenas nas proximidades da sua morte, em 1555. Sabemos com efeito pela fundação da Misericórdia de Beringel, por volta de 1543, que D. Pedro, homem central na sua criação, atribuiu à novel irmandade e ao hospital e albergaria então criados as rendas da confraria de Nossa Senhora da Piedade existente na Igreja de Sto. Estêvão, tema que coincide com uma das pinturas encomendadas a António Nogueira. Por outro lado a visitação de 1534, ordenada à Igreja pelo Cardeal Infante D. Afonso, e executada em 6 de Setembro desse ano pelo visitador Luís Álvares de Proemça, refere ter encontrado na igreja "huma capela e comfraria de Nosa Senhora que os mordomos da dita comfraria e moradores da dita vila ordenaram em a qual se diz missa cada sábado"6. Os temas impostos contratualmente ao pintor parecem corresponder às invocações destas confrarias, cujos altares, presumivelmente, teriam sido destruídos durante as obras de reconstrução da igreja levadas a cabo por D. Pedro de Sousa para preparar a velha matriz da vila ao seu panteão. Não sabemos que desenvolvimentos teve a ligação de António Nogueira aos Condes do Prado, mas não deixa de ser curioso que dois dos três conjuntos remanescentes da obra do pintor se situem em terras e instituições com os quais os Condes do Prado tinham fortes relações – a Misericórdia de Beja e a vila de Ferreira do Alentejo. O documento do contrato apenas nos informa sobre a morada em Évora do pintor, mas alguns novos dados permitem conhecer um pouco melhor a sua situação na cidade. Na década de 1550 António Nogueira vivia na Freguesia de S. Pedro. Era casado com Inês Fernandes. A 20 de Outubro de 1552 baptizou na igreja de S. Pedro uma filha de nome Vicência7 e, três anos depois, em 9 de Maio de 1555, no mesmo local, baptizou um outro filho a que chamou Paulo8 . Teve, pelo menos outros dois, que conhecemos por documentos posteriores à sua morte, respectivamente Maria Nogueira9 e Marco António Nogueira, que seguiu a carreira do seu pai. Conhecemos diferentemente estas personagens familiares do pintor. Da sua mulher, Inês Fernandes, pouco mais sabemos para além do nome,mas o seu apelido é,curiosamente,um dos mais comuns em pintores de Évora do século XVI: João Fernandes e Manuel Fernandes estão documentados na
4 O documento da instalação do túmulo no Convento de S. Domingos de Évora encontra-se truncado num pergaminho que serve de capa o Livro de Notas do Tabelião Diogo Luís, de 1548, Arquivo Distrital de Évora, Notariais de Évora, Lº 18. Parte deste "jazigo", constante da pedra tumular e de um brazão dos Sousas do Prado, encontram-se no Museu de Évora. 5 Sobre a Igreja Matriz de Santo Estêvão de Beringel e estas obras de D. Pedro de Sousa veja-se Túlio Espanca, Inventário Artístico de Portugal, tomo XII, Distrito de Beja, concelhos de Alvito, Beja, Cuba, Ferreira do Alentejo e Vidigueira, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes, 1992, vol. I, pp. 227-233.Veja-se também Abel Viana, "Beringel (Notas Monográficas)", in Arquivo de Beja, vol.VI, fasc. I e II, 1949, pp. 153-185 e o Padre António Marvão, "Sepultura de D. Pedro de Sousa, 1º Conde do Prado", in Boletim da Junta Distrital de Évora, nº 8, 1967, pp. 177-179. 6 Biblioteca Pública de Évora, Códice CXXIII / I-I, fl. 258. 7 Arquivo Distrital de Évora, Paroquiais da freguesia de S. Pedro, Évora, Lº 1 (1546-1568), fl. 9: "Aos xx dias do mês de outubro de 1552 baptyzey Vycencya filha de Antº Nogueira e de Ynês Fernandez, foram padrinhos Joam Rodrygues e madrinhas a saber Maria e Catarina Rodrygues, a parteyra Isabell Nunez". 8 Idem, Ibidem, fl. 12: "Aos nove dyas do mês de mayo do ano de mjll e quinhentos e cyncoenta e cymquo anos baptizey paolo filho de antónio nogueira e de ines Fernandes, forão compadres Braz nunez e comadres Isabell sequeira e Catarina Rodrygues e a parteyra Cristina Gomez, e por verdade assiney aqui oje no dyto dya / Pedro Guomez". 9 Num documento de 1581, referente à reemprazamento das suas casas pelo Cabido de Évora (ADE, Notariais de Évora, Livro de Notas 145,Tabelião Álvaro Ramalho, fl. 101-101vº) Maria Nogueira afirma ser maior de idade de 25 anos, o que colocaria o seu nascimento em 1556, mas o livro paroquial de S. Pedro existente para esta data não dá conta do seu baptismo nesta data, embora não seja pouco frequente em Évora, nesta altura, o baptismo fora da paróquia de residência. Mais estranho é o facto de ter sido ela a ficar com a casa de família, mesmo antes de casar, como à frente veremos.
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primeira metade do século XVI e Diogo Fernandes e António Fernandes na segunda parte da centúria, isto para além do pintor Garcia Fernandes, um dos principais mestres do reino que pintou para Évora por várias vezes. Talvez Helena se aparentasse com algum. Era analfabeta, o que não aconteceria com nenhum dos seus filhos, homens ou mulheres. Em Maio de 1576, menos de um ano após enviuvar, aparece-nos a comprar ao bacharel Domingos Mendes a morada de casas em que vivia, já desde os anos finais da vida de António Nogueira, pelo preço bastante alto de sessenta e dois mil e quinhentos reais.O processo que conhecemos sobre esta transacção não é o instrumento da venda, mas a reformulação do prazo feita pelo Cabido da Sé de Évora, de quem as casas eram foreiras, que comporta ainda uma certidão do pagamento da meia sisa tirada do livro das sisas do Juiz de Fora10. É ainda assim um documento de grande interesse pelo que nos conta da habitação e dos seus ocupantes. O documento de consentimento e carta de venda data de 2 de Junho de 1576 e tem por fim autorizar a transacção das casas, aforadas com prazo de três vidas, mantendo para a compradora a situação que tinha o vendedor, isto é, de segunda vida no termo do foro, o que foi aceite pelo cabido, ficando assim Inês Fernandes com possibilidade de nomear até à data da sua morte a terceira pessoa a usufruir do foro, e manteve também o valor e as condições do referido foro: duzentos e cinquenta reais em dinheiro e três boas galinhas, que podiam ser substituídas por cinquenta reais cada uma, a serem pagos ambos, aves e dinheiro, em cada dia de S. João Baptista. Foram testemunhas no contrato, que só se assinou a 4 desse mês, "paullo nogueira que per ella Foreira comprador a seu Roguo per dizer que não sabia assinar asjinou e marco Amtonjo ambos seus filhos pintores". Esta situação é nova, pois se para Marco António, embora não fosse dado como filho de António Nogueira, se sabia que era pintor, já Paulo Nogueira é um nome novo no panorama artístico do tempo. Os dois irmãos assinam também o traslado do assento do livro das sisas, em que se apontava o pagamento em 29 de Maio de 1576, dos três mil cento e vinte e cinco reais, correspondentes à meia-sisa, pagos por Marco António, em nome de sua mãe, a Nicolau Rodrigues escrivão da Almoteçaria da Cidade de Évora. Mas o mais interessante do documento é talvez a descrição que faz da morada, pois permite-nos aceder à esfera privada do pintor, o que poucas vezes acontece. Era uma casa na zona nobre da Cidade, nas traseiras da Sé, paralela, por dentro das velhas muralhas, à carreira do Colégio jesuítico, desembocando no pátio de S. Miguel, às portas do Paço dos Condes de Basto. E era morada de casas de alguma dignidade: "que estão na Rua da Freiria da ditta cidade as quães são oito casas da porta a dentro
quatro per baixo e outras tamtas per çima e partem de huuã parte com casas de manuell Fereira arcediaguo e da outra com casas de guomez pirez d'olliueira coneguos na ditta See e entestão per de traaz com quimtall das // dittas casas de guomez pirez e per diamte com a ditta Rua da Freiria per omde tem a porta e servemthia (…) e que a casa diamteira tem de comprjdo quatro varas e duas terças / e de llarguo tres varas / e tem huuãs camtareiras / e huã escada de tijollo que vay pera as camaras / e a outra casa aallem desta tem de comprido quatro varas / e de llarguo outro tamto / aallem da quall casa estaua outra sobre o ditto qujmtall que tem de comprido quatro varas / e de llarguo tres varas e meja / e tem huuã janella com huuãs grades de ferro sobre o qujmtall/ e tem esta casa de baixo de sy huum alllçapão que foy seruemtia pera o qujmtall e que a camara que estaa sobre a casa djamteira trem de comprido quatro varas e duas terças / e de llarguo tres varas e meja / e tem huuã chamine e huuã janella sobre a Rua / e a outra camara aallem desta tem de comprido quatro varas bem medidas / e de llarguo quatro varas escassas e tem huuã janellinha com huuã cruz de ferro sobre huum traçado / e a outra camara que estaa aallem desta que vay sobre o qujmtall tem de comprido quatro varas bem medidas / e de llarguo tres varas // e duas terças/ e tem huuã janella gramde sobre o qujmtall/ e outra casjnha terrea que estaa peguada com a casa diamteira tem de comprido tres varas escassas e de llarguo huuã vara e duas terças sobre a quall estaua huuã camarinha das mesmas medidas della" Se considerarmos que a morada se situava na zona mais nobre da cidade e recordarmos que uma vara tinha 1,10m, podemos ver que no contexto do que eram as casas na cidade se tratava efectivamente de um óptima morada, reveladora de um certo reconhecimento social, que permitia ao pintor habitar nestas casas e certamente deixar à sua viúva alguns proventos que lhe possibilitaram efectuar a compra pouco depois da sua morte. Inez Fernandes não sobreviveu muito ao seu marido, pois em 1584 o foro das casas da rua da Freiria pertencia, em terceira vida, à sua filha Maria Nogueira. Nos livros notariais de Álvaro Ramalho guardam-se três documentos sequenciais do destino que então esta casa teve. Em 11 de Setembro de 1584 Maria Nogueira pediu e conseguiu do cabido uma renovação do foro, deixando de ser considerada a última vida deste, para passar a ser a primeira da renovação, vendo no entanto com isso alterado o seu valor que passou de 250 reais e três galinhas anuais para trezentos reais e as ditas três galinhas.Tudo foi tratado e assinado por Marco António como representante da irmã, que no entanto confirmou a decisão num outro documento notarial, feito logo em seguida, nas suas próprias casas, onde tinha ficado por
10 Arquivo do Cabido da Sé de Évora, CEC-7 XIV, Livro das Escrituras S, fol. 47 a 54. A leitura deste documento foi feita pela Drª Ana Rita Costa dentro do projecto de investigação do Centro de História da Arte da Universidade de Évora, "Fontes para a História da Arte em Évora – Séculos XVI-XVIII", por nós coordenado e dirigido pelo Prof. Dr. José Alberto Gomes Machado.
doença ("constrangimento"). Aí, na mesma altura, é redigido pelo tabelião Álvaro Ramalho e assinado pelos dois irmãos um outro documento em que se esclarece a intenção da alteração de foro e a pronta e prestável decisão capitular, uma carta de venda da morada de casas a Gomes Pires de Oliveira, cónego da Sé de Évora, pelo preço de cinquenta mil reais, "logo ali pagos em dinheiro de contado e moeda de prata". Entre outros pormenores que menos nos interessam agora, ficamos a saber que Maria tinha a idade de 25 anos e Marco António habitava também nas ditas casas11. Talvez que a venda da casa tivesse simplesmente a ver com a repartição dos bens entre os irmãos depois da morte da mãe, ou talvez se prendesse com a necessidade de dotar a Maria Nogueira que em documentos seguintes nos aparece casada com Francisco Ayres e com ele moradora em Sines12 . Já não seria o pagamento do dote religioso de Vicência, que logo um ano depois da morte do seu pai, em 1576, entrou no Convento do Paraíso, da Ordem de S. Domingos, um dos mais ricos e artisticamente dotados da cidade, tomando o nome de Vicência da Assunção.Tinha então 21 anos e era música e sabia tanger, conforme se refere na sua profissão13. Uma sua tia, provavelmente materna, de nome Maria Rodrigues, deixou-lhe de herança umas casas à Porta Nova de Évora, no início da Rua de Avis, dando ainda para as casas do conde de Sortelha, com duas câmaras por baixo e três por cima, casas essas que arrendou, por quatro anos, ao preço de três mil e quinhentos reais por ano, ao sapateiro de obra grossa António Pires, que aliás já nelas morava. Foi seu representante, no instrumento de arrendamento feito em 1 de Outubro de 1584, o seu irmão Marco António Nogueira14. Quatro anos mais tarde, no fim deste arrendamento, Soror Vicência da Assunção decide tornar herdeira da casa que possuía a sua irmã Maria Nogueira. O documento, feito na casa da Portaria do Convento do Paraíso, ao "ralo", sendo a freira "ouvida e não vista", é acompanhado e assinado pelos seus irmãos Marco António e Maria Nogueira em 25 de Janeiro de 1588 e dá-nos mais informações sobre a casa e pistas sobre as relações familiares. A situação da casa é descrita como "à Porta nova na entrada da Rua davis que partem com a rua que vai para a praça do peixe e com o quintal do conde de Çortelha". Tinha-lhe sido deixada por Maria Rodrigues, sua tia, em testamento, com a obrigação de duas missas rezadas e sobre elas recaia um foro pago de vinte reais, pagos anualmente a Dona Maria de Azevedo. Por morte da freira deveriam passar as casas para Marco António, "o herdeiro mais chegado", mas ambos, "de suas próprias e
livres vontades" faziam nomeação irrevogável da herança das ditas casas a sua irmã Maria Nogueira, casada com Francisco Aires e moradora em Sines, sem outra obrigação senão cumprir o foro e mandar rezar duas missas por alma de Inês Fernandes, sua mãe15 . De Paulo, para além do nascimento e da circunstância de ser pintor, como o seu pai e o seu irmão, nada mais sabemos. É mesmo provável que tenha falecido entretanto, pois que já não aparece referido em nenhum dos documentos de 1584 e 1588 em que figuram os vários irmãos. Recorde-se que no final da década de 1570 até 1580 Évora sofreu vários surtos de Peste em que pereceram muitos eborenses, e entre eles alguns pintores. Já de Marco António, nome que por si só parece documentar um gosto antiquizante do seu pai, sabemos um pouco mais. Foi, depois da morte do pai a figura central da família, o que leva a supor ser o irmão mais velho, nascido por isso talvez antes de 1552. Repetidamente cabe-lhe ser procurador e cuidar dos negócios da mãe ou das irmãs. Foi pintor, tendo provavelmente aprendido com António Nogueira, e de mérito reconhecido, pois foi a ele que em 1583 a Câmara de Évora encarregou de pintar um arco efémero erguido para a entrada na cidade de Filipe II, pelo preço, bastante elevado, de 80 000 reais16 na Porta de Alconchel. Até à data porém não tem obra atribuída, se bem que talvez não seja impossível que lhe pertença um retábulo da Paixão, proveniente do Convento de Santa Clara de Évora e hoje nas reservas do Museu de Évora, obra com fortes afinidades ao estilo de seu pai, mas certamente já posterior à sua morte. De qualquer forma não é este o local para estudar a sua obra, pois interessa-nos sobretudo o perfil de António Nogueira. Tanto as casas da rua da Freiria, como os documentos seguintes referentes à sua viúva e filhas mostram que António Nogueira possuía no fim da sua vida uma situação de certo desafogo económico e, quando da sua morte, deixou rendimentos suficientes para permitir dotar Vicência no convento do Paraíso e a compra da morada de casas que habitavam. Temos aliás outros elementos que permitem documentar este sucesso económico e certamente também artístico de António Nogueira nesta fase derradeira. Um deles é a posse de escravos. Nogueira possuía pelo menos uma escrava, a que deu o nome de Maria Nogueira, curiosamente o mesmo da sua filha mais velha. A 13 de Outubro de 1574 foi baptizada na Sé de Évora uma filha desta escrava, a que foi dado o nome de Margarida17 .
11 Arquivo Distrital de Évora, Notas do Tabelião Álvaro Ramalho, Lº 145, fls. 96-104. Agradecemos a Vítor Serrão o conhecimento deste documento. 12 Arquivo Distrital de Évora, Notariais de Évora, Livro 261, tabelião Baltasar de Andrade, fl. 28-29vº. tivemos conhecimento deste documento pelo Prof.Vítor Serrão, a quem agradecemos. 13 Biblioteca Pública de Évora, Convento do Paraíso, Livro I do Tombo, fl. 36: "tomou Soror Viçençia dassumpção em esta entrou na era de setenta e seis no primeiro dia do mês de Dezembro trouxe de dote duzentos mil reais e dez para a profissam. Sabia tanger era da idade de vinte e hum annos. Estes duzentos mil reais estam postos nas obras das portariais novas que fez a madre donna Anna de Távora sendo prioresa e a madre dona Francisca de almeida os pagou – s. – cento a molher de Marcos Neto que era o official das obras e cento a seus filhos" 14 Arquivo Distrital de Évora, Notas do Tabelião Álvaro Ramalho, Lº 145, fls. 138vº a 140. Agradecemos a Vítor Serrão o conhecimento deste documento. 15 Arquivo Distrital de Évora, Notariais de Évora, Livro 261, Notas de Baltazar de Andrade, fls. 28-29. A referência deste documento foi-nos feita por Vítor Serrão. 16 Arquivo Distrital de Évora, Livro III de Actas da Câmara de Évora, fl. 68vº-69. Publicado por Túlio Espanca, "Notas sobre Pintores em Évora nos Séculos XVI e XVII", in A Cidade de Évora, nºs 13-14, Junho-Setembro de 1947, p. 182. 17 Arquivo Distrital de Évora, Registos Paroquiais, Freguesia da Sé, Lº 7, fl. 207: "Aos xiij dias doutubro de 1574 baptizei a margarida filha de Maria nogueira escrava de antonio nogueira pintor ora morador na Rua da freiria foi padrinho andré fernandez e madrinha Maria dias cavacho/ André Fernandes". Referido por Jorge Fonseca, Escravos em Évora no Século XVI, Câmara Municipal de Évora, 1992.
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A melhor indicação da fortuna artística de António Nogueira está porém nas próprias obras que se tornam, a partir da década de 1560, relativamente regulares e até abundantes, reflectindo certamente um crescendo de procura e de fama do pintor. Pertence talvez a esta década o retábulo da Igreja de Santa Margarida do Lavradio, que hoje se encontra no Museu Nacional de Arte Antiga. De 1564 data o retábulo da Misericórdia de Beja, de que conhecemos um recibo de parte do pagamento e o retábulo de Ferreira do Alentejo é anterior a 1565. É também por estes anos que o pintor nos aparece em Lisboa, onde na Igreja da Graça se encontra um Cristo Deposto da Cruz, porventura a sua melhor obra. No Livro do Lançamento do empréstimo que a Cidade de Lisboa faz a D. Sebastião, de 1565, é referenciado como morador na capital, nas casas de Manuel Fernandes, na rua dos Escudeiros da freguesia de São Nicolau18. Os seus rendimentos (que deveriam contar apenas interesses em Lisboa e não em Évora, dado tratar-se de uma taxa municipal) são avaliados em 10 mil reais, pelos quais foi taxado em 70, o que o colocava, em termos de riqueza colectada, entre o 14º e o 18º lugar, de entre os 35 pintores referenciados em no mesmo documento. A mesma taxa pagavam os seus colegas, Brás Gonçalves e António Carneiro, o flamengo Jacques de Lerbo e Diogo Teixeira, o operoso pintor maneirista, então ainda na fase inicial da sua carreira19. Esta ligação de Nogueira com outros mestres lisboetas tinha já antecedentes conhecidos. Recordemos que, para a marcenaria dos retábulos de Beringel, o pintor tinha já contado com a colaboração do entalhador lisboeta Pêro de Frias e um documento de 8 de Setembro de 1556 mostra-nos o pintor a assinar um instrumento de procuração feito pelo mercador lisboeta Luís Mendez, "morador ao arco do Rossio" a favor do Licenciado Manuel Pires, procurador em Évora, para este poder "receber e arrendar todas e quaisquer suas dívidas e cousas de qualquer outra sorte". Para além de António Nogueira é também testemunha no documento o ourives do ouro eborense Fernão Martins20. Se estes dois documentos nos informam sobretudo da ligação pessoal de Nogueira a alguns meios lisboetas, já por outro podemos ficar certos de que essa ligação tinha consequências artísticas. Trata-se de uma transferência de verba do almoxarifado do pão referente a uma obra de decoração efémera nas cerimónias de trasladação definitiva de D. Manuel e Dona Maria na capela-mor do mosteiro dos Jerónimos, que ficara por pagar nas contas
de Jerónimo Rodrigues, antigo almoxarife das obras da capela-mor de Santa Maria de Belém. O documento é de Fevereiro de 1584, oito anos e meio depois da morte de António Nogueira, mas os trabalhos a que se reporta datavam de 1572, antes portanto da sua morte em 1575, o que nos leva a crer ser o mesmo pintor21. Apesar da forma pouco explícita como a natureza dos serviços prestados é referida no documento, tratou-se quase de certeza de decorações efémeras ("papéis") para as cerimónias de transladação definitiva de D. Manuel, Dona Maria e D. João III para a nova capela-mor dos Jerónimos, realizadas em Outubro de 1572.A descrição que conhecemos destas celebrações, sendo informativa quanto à grandeza e importância das cerimónias, não nos diz quase nada sobre a natureza das decorações pintadas,para além obviamente da inauguração do altar-mor com o recém-pintado retábulo da autoria de Lourenço de Salzedo22. O retábulo de Ferreira do Alentejo Num estudo anterior, quando pela primeira vez publicamos este retábulo, apontamos para ele uma data posterior entre 1565 e 1570, cronologicamente posterior ao retábulo da Misericórdia de Beja,com o qual mantém grandes afinidades, replicando mesmo algumas composições. Os estudos efectuados no IPCR de análise dendrocronológica (cf. Esquema 3, p.47) dos painéis possibilitavam esta data. Como se pode ver noutro texto desta obra, os marcos cronológicos para o corte das madeiras dos diferentes painéis do retábulo foram, quanto às datas mais avançadas, respectivamente de 1548 para o Baptismo de Cristo, 1545 para o Pentecostes, 1532 para a Ressurreição, 1538 para a "Anunciação", 1535 para o Presépio,1544 para a Adoração dos Magos,1542,para a Transfiguração, não tendo sido possível datar as tábuas do painel da Ascensão. Considerando, como é feito no texto sobre este assunto, que a estas datas se devem somar uma média de 15 anos correspondendo aos anéis de borne das tábuas e dois anos de secagem, obter-se-iam datas plausíveis para a execução das obras, entre as datas limite apontadas por estas análises de 1549 (para a pintura da Ressurreição) e 1565 (para a pintura do Baptismo de Cristo). Temos no entanto outro importante elemento de datação que nos permite acercarmo-nos com maior certeza da data de execução das pinturas, a partir de uma visitação da Ordem de Santiago à vila de Ferreira do Alentejo, datada de 14 de Dezembro de 1565, onde é
18 Esta referência foi publicada por Vergílio Correia, Pintores Portugueses dos Séculos XV e XVI, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1928, p. 70. O documento completo foi publicado autonomamente em Livro do Lançamento e S erviço que a cidade de Lisboa fez a El Rei Nosso Senhor no ano de 1565, 4 vols., Câmara Municipal de Lisboa, Publicações Comemorativas do VIII Centenário da Tomada de Lisboa aos Mouros, Lisboa, 1947-1948. A referência a Nogueira vem no fl. 208 vº do documento original. 19 Uma análise comparativa dos rendimentos dos pintores referidos no "Livro de Lançamento" de 565, pode ser vista em Joaquim Oliveira Caetano, O que Janus Via. Rumos e Cenários da Pintura Portuguesa (1535-1570), dissertação de Mestrado em História da Arte, policopiada, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1996, vol. I, pp. 56-59. 20 Arquivo Distrital de Évora, Livro de Notas do Tabelião Fernão de Arcos (28-2 a 21-5), Livro 33, fl. 1-1vº. 21 Arquivos Nacionais / Torre do Tombo, Núcleo Antigo, Lº 125, fl. 16vº: "Vinte mil rs. No sobredito almoxarifado a Gaspar Diaz e António Nogueira pintores – ss – dez mil rs. A cada hum por outros tantos que por uma certidão em forma junta do desembargo se mostra lhe serem devidos que lhe ficaram por pagar na conta de Jerónimo Roiz almoxarife que foi das obras da capela de belém, pelo trabalho que levarão nos papeis que lhe el Rey dom Sebastião que deos tem mandou fazer pêra a sepultura da capela mor a Lixboa a xb de Fevereiro de 5lxxxiiij". Publicado por Joaquim Oliveira Caetano, O que Janus Via. Rumos e Cenários da Pintura Portuguesa (1535-1570), dissertação de Mestrado em História da Arte, policopiada, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1996, vol. I, p. 233. 22 A única descrição conhecida destas cerimónias encontra-se num manuscrito anónimo existente no Archivo General de Simancas (Legajo Estado 390), intititulado Relación del modo que se tuvo en la translación de los huesos del Rey Don Juan y del Rey Don Manuel y de la Reina Doña Maria a la capilla mayor de Belen. Este documento foi publicado por A. Marques de Carvalho, Do Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa, 1990, pp. 181-184 e livremente descrito por José da Felicidade Alves, O Mosteiro dos Jerónimos. II – das Origens à actualidade, Lisboa, livros Horizonte, 1991, pp. 191-195. Sobre o mesmo assunto e suas implicações para a História da Arte vejam-se especialmente Annemarie Jordan Gschwend, "A Capela-mor: Um Panteão Real Para a Dinastia de Avis", in Anísio Franco (coord.), Jerónimos – 4 Séculos de Pintura, vol. II, Lisboa, IPPAAR, 1993, pp. 74-90, sobretudo as páginas 85 e 86; e Vítor Serrão, "O retábulo-mor do Mosteiro dos Jerónimos (1570-1572) pelo pintor Lourenço de Salzedo", in Cármen Olazabal de Almada, Luís Tovar Figueira e Vítor Serrão, História e Restauro da Pintura do Retábulo-Mor do Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa, IPPAR, 2000, pp. 17-77, sobretudo as páginas 37 a 39.
vistoriada a ermida do Espírito Santo e descrito minuciosamente o seu retábulo: "Dom Rodrigo de Meneses fidalguo da casa del Rey noso senhor comemdador das comemdas da villa de caçella e da igreia do salvador da villa de santarem e treze/ e joao fernandez prior da igreia de nosa senhora do castello da villa dalcasere do sal ambos visitadores do mestrado de santiaguo eleytos em capitolo geral que se celebrou na çidade de lisboa etc. fazemos saber que per vertude do regimento de Sua Alteza e difinsores do dito capitolo visitamos a igreia de nosa senhora dasuncão matriz da villa de ferreira na maneyra seguinteaos quatro dias do mês de dezembro de mil e quinhentos e sesemta e cinquo annos começamos visitar a dita igreia (...) hermida do spirito santo-visitamos a hermida do espirito santo situada nesta villa junto ao adro da igreia matriz da banda do norte a qual he toda dabobada a capela moor he feita dabobada o arco cruzeiro e os peguões e arcos sobre que esta fumdada que fechão em sima são todos de pedraria muyto bem lavrada e as paredes bem guarneçidas esta fechada com humas grades de bordo de maçanaria novas muyto boas e em cima no meo delas hum cruxifixo do mesmo bordo com a imagem de nosa senhora e a de são joão de huma parte e a outra da outra. O altar he dalvenaria de pedra e cal e sobre elle hum retabolo novo que tem dous paineis grandes hum em que esta pintada a vinda do spirito santo com a ymagem de nosa senhora e dos apostolos e o outro que esta em cima esta pintado o baptismo de christo de redor destes dous paineis de huma parte e da outra estão outros seis paineis pequenos em que estão pintadas as istorias da emcarnação, da resurreição e dacensão de christo da transfiguração do nacimento da adoração dos Reis todos com suas molduras e banco (..) de cerafins e obra romana dourados douro e dazul com seu encoroamento dourado cobrese com humas quarediças de linho muyto boas. (..)23" Como podemos ver o retábulo estava feito e montado já no final de 1565, certamente não há muito tempo, mas de qualquer forma tudo leva a crer que a pintura se situe cronologicamente nas mesmas datas, talvez imediatamente após o retábulo da Misericórdia de Beja. A descrição informa-nos sobre a composição do conjunto, mostrando que está completa a série original de pinturas, mas também nos coloca interrogações face à estrutura do retábulo. Colocaram-se-nos inicialmente duas questões: saber se a marcenaria encontrada era a original, ou se de alguma forma a replicaria. Trata-se de uma moldura unitária, que une os oito painéis, num procedimento que não é usual na nossa pintura quinhentista. Conhecem-se porém alguns casos em Espanha de utilização deste tipo de molduras. A utilização de madei-
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ra de casquinha, em vez do carvalho utilizado nas pinturas não permitia a datação das madeiras pelo mesmo método utilizado para aferir a cronologia das pranchas da pintura e sugeria um trabalho posterior. Por outro lado encontrou-se uma similitude entre os processos de encaixe das molduras e outra obra de Nogueira, o retirado retábulo da Igreja Matriz do Lavradio, e a organização das pinturas parecia adaptar-se bem à moldura existente, acentuando algumas linhas de força e simbólicas que levavam a pensar numa construção unitária, reforçando a ideia de poder tratar-se da marcenaria original,ou de uma nova construção que mantivesse as suas características.Após a desmontagem dos painéis verificou-se que a rebarbas, ou seja, a estreita zona das pranchas que fica por pintar quando a execução da pintura se faz depois das tábuas aparelhadas apresentava significativas diferenças de painel para painel24. O Baptismo de Cristo não apresenta qualquer rebordo por pintar. O Pentecostes, a tábua maior, mostra rebordos mais largos no topo e na base, e mais estreitos nos lados. A Ascensão de Cristo apresenta um rebordo maior no lado direito, um mais estreito na base e no topo curvo, situação simétrica à da Transfiguração que se encontra no lado oposto. Dentro de uma moldura do tipo da actual, esta observação permite-nos tirar algumas conclusões. Em primeiro lugar parece evidente que na ordem encontrada a tábua da Ressurreição de Cristo deveria trocar de lugar com a da Adoração dos Magos, e encontraríamos assim uma ordem em que todas as pinturas teriam sido pintadas dentro da moldura, sem a colocação das tábuas laterais extremas, sendo o Baptismo pintado aparte e só posteriormente incluído no conjunto. A troca da Ressurreição com a Adoração dos Magos é aliás mais condizente com a ordem iconográfica dos painéis. No entanto é-nos difícil pensar numa estrutura deste tipo quando confrontados com o texto da visitação de 1565, a que fizemos referência, em que se descreve a marcenaria "com suas molduras e banco (..) de cerafins e obra romana dourados douro e dazul com seu encoroamento dourado". Esta descrição parece referir-se a um dos modelos mais em voga na época, que unia um tanto ou quanto livremente querubins nos frisos dos entablamentos clássicos. Francisco de Holanda critica violentamente esta opção como contrária às ordens vitruvianas: "E pois vemos até a alguns modernos pedreiros tão desapaixonadamente entalharem quanto lhes vem à vontade nas suas colunnas, e encher de serafins os frisos, sem nenhuma advertência de como corromperem seu ofício"25. O modelo tinha contudo uma base teórica sólida no muito divulgado tratado de arquitectura do espanhol Diego de Segredo, Medidas del Romano26. Este tratado, editado pela
Agradecemos à Drª Maria João Pina, da Câmara Municipal de Ferreira do Alentejo, o conhecimento e a transcrição deste importante documento colhida na monografia de D. Júlio de Vilhena sobre aquela vila. Informação fornecida pelo técnico de conservação e restauro José Mendes. Francisco de Holanda, Da Pintura Antigua, cap. XXXXIII, "Da Pintura Architecta", ed. de Angél González Garcia, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1983, p. 185. Vejam-se as ilustrações dos fólios 31v e 34 (ed. cit. Infra de 1564), que parecem corresponder exactamente ao tipo de obra descrito na Visitação da Vila de Ferreira.
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primeira vez em 1526, em Toledo, por Remon de Petras, teve uma enorme fortuna não só na Península, como por toda a Europa. Foi editado seis vezes em castelhano, antes de 1564 (ed. de Toledo, de Juan de Ayala), duas das quais em Lisboa, pelo impressor régio Luís Rodrigues (1541 e 1542), tendo sido o único tratado de arquitectura publicado entre nós no século XVI27.Teve ainda cinco edições francesas entre 1539 e 1564 e, como faz notar John Bury, "as Medidas del Romano constituem o primeiro tratado independente sobre as ordens escrito numa língua vulgar, e só a edição de Vitrúvio realizada por Fra Giocondo, em 1511, e a tradução da mesma realizada em Como, em 1521, o suplantavam em número e qualidade das ilustrações"28. Estas duas características foram sem dúvida decisivas para a enorme difusão deste tratado e ambas, juntamente com a clareza de linguagem fizeram com que a sua penetração nos meios oficinais e mecânicos fosse profunda e duradoura,o que parecia incomodar Holanda. Não era no entanto verdade que a sua utilização se limitasse a mestres menos informados.A utilização de querubins nos entablamentos teve larga fortuna, mesmo em obras claramente eruditas, como o retábulo da Pena, de Nicolau de Chanterene, em Portugal, ou os túmulos dos reis católicos, em Espanha, para citarmos apenas dois exemplos maiores. Mas a datação certa que a visitação nos traz levanta-nos outra questão interessante quando comparada com os dados estabelecidos pela dendrocronologia, que referimos atrás e são objecto de mais detalhado estudo noutro texto desta obra. A data de 1565 tem grande proximidade com a cronologia apurada pela leitura dos anéis das pranchas no que toca às pinturas centrais e maiores – o Baptismo, para o qual se propõe uma data de 1565, ou o Pentecostes, para o qual se sugeria uma data posterior a 1562 – mas afasta-se consideravelmente de algumas tábuas menores, como a Ressurreição, para a qual a data proposta era de 1549, o Presépio, com uma datação proposta de 1552, ou mesmo a Anunciação em que se propunha a data de 1555. Como não é crível que um retábulo destas dimensões levasse tanto tempo a executar, como o que medeia entre as datas extremas propostas para a execução pela datação dos suportes – 1549-1565 – e menos ainda que o pintor não dispusesse de todas as madeiras preparadas na altura da sua execução, parecem-nos ser de realçar dois aspectos essênciais. Em primeiro lugar nunca é demais salientar o cuidado com que devem ser observados os dados científicos e a sua utilização como meio de prova na História da Arte. Se estivéssemos na presença de painéis dispersos, mesmo numa só colecção, mas que não tivessem mantido a sua unidade funcional, os dados estabelecidos para a cronologia das diferentes tábuas não facilitariam a sua reunião, antes pareciam
justificar tratar-se de diferentes empreitadas. Em segundo lugar, a reunião de vários dados permite-nos avançar como hipótese mais provável ter o carpinteiro que executou as pranchas tido o cuidado de utilizar madeiras mais recentes, verosimilmente adquiridas para o efeito, para os painéis maiores, servindo-se para os mais pequenos de materiais que provavelmente tinha na oficina, sobejantes de outras empreitadas. É particularmente claro a este propósito o facto de não se encontrarem duas tábuas com a mesma datação precisa. António Nogueira deveria ser um pintor bastante cuidadoso nos aspectos materiais da preparação das suas pinturas. Como já vimos ainda no início da sua carreira, para os retábulos de Beringel de 1546, recorreu ao marceneiro Pedro de Frias, um dos mais importantes e reconhecidos mestres do seu tempo, e tanto no retábulo da Misericórdia de Beja,como nos oito quadros do conjunto de Ferreira do Alentejo inscreveu no verso o tema das pinturas (cf. Esquema 4, p.48), para a preparação prévia do retábulo, ou para facilitar a sua montagem na máquina retabular. Analisando o retábulo em conjunto, podemos aliás perceber nas dimensões e na organização dos painéis a procura de um sistema de proporções claramente regular e de base claramente renascentista. As dimensões dos painéis pequenos servem de módulo que multiplicado nos fornece uma dimensão próxima do conjunto e algumas das linhas de força da composição são claramente construídas tendo em conta a totalidade do retábulo e não apenas os painéis isoladamente, como teremos oportunidade de ver um pouco mais adiante. Olhemos agora, mais de perto, cada um dos seus painéis.
A Anunciação
O modelo utilizado por Nogueira nesta Anunciação não difere muito do painel central do retábulo de Santa Margarida do Lavradio. (foto 1) Num fundo extremamente despojado, o anjo ajoelha-se à esquerda perante uma Virgem ajoelhada em frente a uma estante de leitura. A pomba do Espírito Santo completa a composição, no alto, no centro de uma mandorla amarela. É difícil imaginarmos uma composição mais despojada. Nem nos panejamentos, nem na arquitectura de um classicismo depurado, nem na marcenaria (a estante resume-se a um estrado com um cubo de madeira) encontramos a mínima decoração ou adorno. Mesmo pequenos adereços significativos, como o vaso de açucenas presente na pintura do Lavradio, desapareceram, para dar lugar a uma composição caracteristicamente tridentina, descontextualizada de
27 Cf. António Joaquim Anselmo, Bibliografia das Obras Impressas em Portugal no Século XVI, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1926, nºs 1022 e 1023. Na Biblioteca Pública de Évora existe o exemplar da tiragem de 1542. 28 John B. Bury, in Dora Wiebenson, Los Tratados de Arquitectura. De Alberti a Ledoux, Barcelona, Hermann Blume, 1988, pp. 163-164.
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Anunciação, painel central do retábulo de Santa Margarida do Lavradio, MNAA. (DDF)
qualquer tempo e lugar de acordo com o que Frederico Zeri chamou "pittura senza tempo", isto é, a limitação ao mínimo de elementos de temporalidade e de profanidade que contribuíssem para um anacronismo da imagem, criando um distanciamento efectivo entre a imagem representada e a realidade vivida. Apenas dois objectos se encontram na cena – o ceptro que o anjo transporta e o Livro, de que Maria interrompe a leitura. O ceptro é ainda a memória transformada desse outro ceptro, atributo de Mercúrio, mensageiro de Júpiter, e continuava a ser elemento simbólico do arauto na etiqueta cortesã, reforçando aqui o papel de Gabriel como transportador da mensagem divina consubstanciada pelo Espírito Santo.Também a escolha da colocação da Virgem em meditação sobre o Livro, corresponde a um modelo quinhentista divulgado sobretudo após Trento. Não se trata do anacrónico Livro de Horas, como era usual na pintura do século XV e primeira metade do século XVI, mas de uma indicação do Velho Testamento, sobre cuja profecia de Isaías (Ecce Virgo conciepiet) Maria meditava no momento, a crer na interpretação dos Padres da Igreja29.A alteração, em relação com a imagem mais tradicional da Virgem ocupada com trabalhos de costura, reforça a importância da meditação e do estudo sagrado. O anjo veste totalmente de branco (in vestibus albis) com asas brancas, faz o gesto oratório clássico, com o braço levantado e o dedo erguido, num sublinhar das palavras 29 30 31 32
que, no caso, nos remete também visualmente para a presença do Espírito Santo, e flecte o joelho num gesto reverente. Esta posição do anjo face à Virgem, que vemos por vezes até mais exagerada, como no caso do retábulo de Fernão Gomes feito para o transepto de Santa Maria de Belém, radica segundo Réau quer na influência das Meditações do Pseudo-Boaventura, quer no mimetismo do gesto cortesão de reverência em face das damas. A propósito da Anunciação Fernão Gomes, que referimos, Dagoberto Markl chamou no entanto a atenção para a subtil diferença entre o momento de Anunciação ou Saudação e o momento seguinte em que se dá a Encarnação, isto é, em que, por acção do Espírito Santo, Cristo se faz carne no seio de Maria. Visualmente esta alteração pode ser traduzida pela posição do anjo que assume uma posição de reverência face à presença embrionária da Terceira Pessoa da Trindade30. Esta distinção assume alguma importância na pintura de António Nogueira, pois o próprio pintor escreveu no verso o tema do quadro referindo-se-lhe como "Encarnação". O modelo geral da composição usada por Nogueira teve alguma fortuna na arte da segunda metade do século XVI. Em Portugal, para além do painel central do retábulo do Lavradio, vemos uma composição muito próxima no painel de Gaspar Dias na capela colateral do lado do Evangelho da Igreja de S. Roque (Museu de S. Roque, inv. 6531), um pintor com quem Nogueira trabalhou, e na pintura castelhana, nomeadamente da escola de Toledo, com a qual o pintor tem também grandes afinidades. Cremos que a sua fortuna, nomeadamente em Espanha, se ficou bastante a dever ao eco de uma célebre pintura do mesmo tema de autoria de Tiziano, pintada originalmente para o convento de Santa Maria degli Angeli de Murano, Veneza. A pintura, de 1537, foi recusada pelas freiras devido ao alto preço pedido pelo artista, que se recusou a baixar o valor, preferindo enviar a obra como presente à Imperatriz Isabel de Portugal, mulher de Carlos V. Em Espanha, o quadro esteve colocado na capela do Palácio de Aranjuez até 1794, sendo perdido durante as Invasões Napoleónicas, e a sua fama foi enorme, não só pela própria qualidade da obra e pelo gesto magnânimo e liberal do pintor gabado aliás numa célebre carta de Aretino, como por uma gravura de Jacopo Caraglio que reproduziu a obra e foi imensamente divulgada32.As duas "Anunciações" conhecidas de António Nogueira combinam elementos desta gravura, sendo a Virgem do retábulo do Lavradio praticamente igual na pose, enquanto que o anjo é retomado com maior fidelidade na pintura de Ferreira do Alentejo.
Veja-se Louis Réau, Iconographie de L’Art Chrétien, tomo II, 2º vol., Paris, P.U.F., 1957, p. 180. Dagoberto L. Markl, "Fernão Gomes no Mosteiro dos Jerónimos", in Anísio Franco (coord.), Jerónimos 4 Séculos de Pintura, vol. II, Lisboa, IPPAAR, 1993, pp. 114-129. Veja-se Joaquim Oliveira Caetano, Pintura. Século XVI ao século XX. Colecção de Pintura da Misericórdia de Lisboa,vol. I, Lisboa, Museu de S. Roque, 1998, p. 31. Veja-se sobre esta pintura Fernando Checa, Tiziano y la Monarquia Hispânica. Usos y funciones de la pintura veneciana en España (siglos XVI y XVII), Madrid, Nerea, 1994, pp. 65 e 66 e o catálogo da exposição Le Siécle de Titien, Grand Palais, Paris, Reunion dés Musées Nacionaux, 1993, p. 612. Sobre a difusão da imagem em Espanha vejam-se Benito Navarrete Prieto, La Pintura Andaluza del Siglo XVII y sus fuentes grabadas, Madrid, Fundación de Apoyo a la Historia del Arte Hispánico, 1998, pp. 119-121; Maria Cristina Rodicio, Pintura del Siglo XVI en la Diocesis de Leon, Leon, 1985, p. 159; e Isabel Matéo Gómez e Amélia López-Yarto Elizalde, Pintura Toledana de la Segunda Metade del Siglo XVI, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2003, sobretudo as págs. 70 e 182-5, a propósito do retábulo da Igreja Paroquial de Maqueda, de Hernando de Ávila, e dos conjuntos do Convento das Oblatas de Oropesa e de Mondéjar (Guadalajara) de Juan Correa de Vivar, este último mestre com francas identidades com António Nogueira.
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A Natividade
Nogueira escolhe um modelo de Adoração do Menino,muito simplificado e reduzido aos seus elementos essenciais. A criança repousa sobre palhas colocadas sobre um fragmento de um capitel jónico, invertido e sustentado por dois blocos de pedra aparelhada. S. José, de um lado, e a Virgem, do outro, debruçam-se em oração sobre a criança, enquanto que atrás os dois animais tomam diferentes atitudes, que parecem corresponder directamente a uma profecia de Isaías relatada no Evangelho Apócrifo do Pseudo-Mateus: "A Virgem colocou o Menino na manjedoura e o boi e o burro adoraram-no. Então foi cumprido o que tinha sido dito pelo profeta Isaías: o boi conheceu o seu mestre e o burro a manjedoura do seu amo"33. A presença dos animais no Presépio e esta composição de adoração tiveram, como Émile Male notou, uma preponderante influência das Meditações do Pseudo-Boaventura e das revelações de Santa Brígida da Suécia34, mas talvez a associação simbólica que mais contribuiu para a difusão da presença dos dois animais tenha vindo da Patrística,com a ligação directa que S. Gregório de Niceia estabelece com os judeus e os pagãos: o boi, subjugado pela canga é como o Judeu preso à antiga Lei, enquanto que o burro, animal de carga, traz consigo o peso da idolatria. Esta leitura pretendia essencialmente marcar o início de uma nova era com o nascimento de Cristo, suplantando as antigas leis judaicas e romana, ideia que Nogueira reforça com a colocação do Menino sobre as ruínas do mundo clássico simbolizadas no deteriorado capitel jónico que lhe serve de berço. Outro aspecto interessante da composição desta pintura é a escolha do lugar, que não é nem a tradicional gruta, nem exactamente o estábulo construído entre ruínas clássicas que se difunde a partir das já citadas Revelações de Santa Brígida da Suécia. Nogueira coloca a cena por debaixo de um arco de aparelho rústico. Esta escolha, para a qual não identificamos fonte literária ou visual,serve-lhe evidentemente para manter o despojamento de fundos e acessórios que parece interessar-lhe especialmente nesta fase da sua pintura.É evidente que se compraz e tira bons resultados plásticos do tratamento das diferentes tonalidades da pedra no arco, no muro de fundo e no chão, trabalhando delicadamente as imperfeições das várias texturas criadas sobre os materiais pelo homem ou pelo tempo, criando um fundo homogéneo e monocromo que permite a concentração do olhar nos aspectos e personagens essenciais da cena.A grande auréola amarela sobre os personagens fornece um interessante contraponto visual com outras similares noutros painéis do retábulo, reforçando simbolicamente a presença do Espírito Santo, tema essencial do conjunto.
Adoração dos Magos
A Adoração dos Magos representa a primeira Epifania, isto é a primeira manifestação da divindade de Cristo. A sua festa litúrgica comemora-se a 6 de Janeiro, o mesmo dia da comemoração do Baptismo de Jesus, a segunda das manifestações, o que reforça o sentido da utilização do tema na economia do retábulo, e também o mesmo dia das Bodas de Canãa, a terceira das manifestações da divindade, aqui ausente, pois trata-se normalmente de um tema ligado aos ciclos eucarísticos. Na Adoração dos Magos Cristo recebe o reconhecimento dos povos da Terra simbolizados nos três reis, que a literatura religiosa se encarrega de tornar representantes dos três continentes e de todos os povos, no Baptismo, através do Espírito Santo Cristo é reconhecido como Filho de Deus e nas Bodas de Canãa o próprio Cristo se manifesta como divindade. Na pintura Nogueira segue à risca e na sua forma mais restrita a descrição de Mateus (II,1-12) que, referindo-se aos Magos diz "entrando em casa encontraram o Menino com Maria, Sua mãe e, prostrando-se, adoraram-no e abertos os seus tesouros, ofereceram-lhe presentes de ouro, incenso e mirra". José observa a cena em segundo plano, a Virgem sentada com o Menino no colo oferece-O em adoração aos Magos, que se curvam e ajoelham em sinal de submissão. Esta reverente humildade é reforçada pela ausência de adereços de riqueza e vai ao ponto de apresentar o mais velho dos reis, que representa a Europa e o Velho mundo, descalço e sem coroa. Um aspecto interessante da representação é o facto de Nogueira ter escolhido para a pintura exactamente o mesmo fundo utilizado na Natividade. A cronologia da Adoração dos Magos foi largamente debatida, pois a sua relação com o Édito de Herodes, que manda matar as crianças com menos de dois anos fez com que muitos autores afastassem a cena do período do nascimento. Não considerava assim a Legenda Áurea que taxativamente afirma que os Magos adoraram o Menino treze dias depois do Nascimento, visão que era certamente partilhada por Nogueira que, através da continuidade espacial, nos fornece uma ideia directa da continuidade temporal das duas cenas num artifício que, não sendo muito comum, foi usado na pintura quinhentista portuguesa pelo menos por mais duas vezes – no Retábulo do Paraíso, do Museu Nacional de Arte Antiga, de 1527 e no retábulo da Igreja de Nossa Senhora do Castelo de Torres Vedras, de cerca de 1540.
33 Cf. Louis Réau, Op. Cit., p. 227-9. Para uma ligação à pintura portuguesa veja-se Joaquim Oliveira Caetano, "Ao redor do Presépio. Fontes e imagens do ciclo da natividade", in Natividade em S. Roque (Cat. de exposição), Lisboa, Museu de S. Roque-Livros Horizonte, 1994, pp. 10-25. 34 Émile Mâle, L’Art Religieux de la Fin du Moyen Age en France, Paris, Librarie Armand Colin, 1949, sobretudo capítulo II, "L’art et le théatre religieux", p. 35 e segs.
A Ressurreição
A presença desta tábua no retábulo levanta algumas questões quanto à sua colocação. Mesmo considerando apenas os painéis laterais a sua situação cronológica é posterior à Transfiguração, que é colocada acima, certamente para estabelecer um paralelismo visual com a Ascensão, criando uma forte analogia entre os dois painéis que ladeiam a tábua do Baptismo na fiada superior do conjunto. Foi talvez para contrariar esta incorrecção cronológica que, numa anterior recolocação dos painéis esta pintura foi, como atrás fizemos referência, colocada do lado esquerdo do retábulo, trocando de lugar com a Adoração dos Magos, o que permitia ligar verticalmente dois pares de temas mais próximos na sua ordem narrativa – a Adoração dos Magos sobre o Presépio e a Ascensão sobre a Ressurreição. Era aliás nesta ordem que se encontrava o retábulo quando pela primeira vez o publicamos, em 198735. Na estrutura do conjunto o papel da Ressurreição é fundamental, não só pela importância central do tema no dogma cristão, mas por fornecer a passagem necessária para a vida gloriosa de Cristo, que vemos continuar na Ascensão e que se projectará no papel decisivo dos apóstolos guiados pelo Espírito Santo no Pentecostes, tema central do retábulo. Nogueira segue aqui, de forma mais pobre, certamente condicionado pela pequenez do painel, a mesma estrutura de composição que efectuara no quadro do mesmo tema do retábulo da Misericórdia de Beja (foto 2), hoje no Museu Regional Rainha Dona Leonor. Mantém o modelo do túmulo, cuja porta se fecha na rocha, influenciado provavelmente pelo painel da Ressurreição que então estava no retábulo central do convento do Espinheiro perto de Évora, pintado quatro décadas antes por Frei Carlos, continua a encerrar a figura do Ressuscitado numa forte mandorla amarela, permanecendo o seu gesto triunfante, e mantém ainda o tipo de posição dos guarda entre o adormecimento e o espanto. Mas o extremo dinamismo da composição de Beja, de uma força imensa na "terribilitá" quase miguelangesca da figura de Cristo irrompendo do túmulo, desaparece aqui de todo, dando lugar a uma presença mais estática, motivada quer pela maior rigidez da figura de Cristo,quer pela maior contenção formal e cromática dos seus panejamentos, que em Beja são vermelhos e criam uma larga e sinuosa linha em S . Apesar das similitudes entre as duas pinturas a Ressurreição de Ferreira do Alentejo parece ainda algo devedora do modelo da Grande Paixão de Durer, sobretudo na sua versão copiada por Willem de Haen36,
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Ressurreição, retábulo da Misericórdia de Beja, Museu Regional Rainha D. Leonor. Cortesia do Museu Regional de Beja.
embora se notem influências de outras fontes. Uma delas é a gravura de Jacob Cornelisz van Oostanen, datada de 151437, uma das poucas fontes gravadas onde o túmulo aparece inscrito e fechado no rochedo à esquerda da composição, e que manifesta também proximidade na posição do Cristo e dos soldados. A outra é uma fonte cronologicamente mais próxima e menos divulgada. Trata-se de uma gravura italiana, anónima, de meados do século XVI, relacionada com um desenho da Colecção Woodner, depositado na National Gallery of Art de Washington, já atribuído a Primaticcio e Nicolo d’Abate, mas que foi recentemente atribuída a Francesco Salviati por Silvie Béguin. A gravura hoje é rara mas deve ter tido grande divulgação no século XVI, pois influenciou directamente várias produções de esmaltes de Limoges, vidros gravados e ourivesaria, o que certamente também contribuiu para a circulação do modelo38. Esta gravura parece ter influenciado Nogueira em ambas as Ressurreições na posição do Cristo e dos soldados, e em pormenores como os cabelos esvoaçantes ou a larga posição do panejamento que é muito semelhante à da pintura de Beja. A Ascensão
É outro painel em que Nogueira reproduz globalmente a composição do retábulo de Beja (foto 3), adequando-a à diferente proporção do
Joaquim Oliveira Caetano, "Novas Obras do pintor maneirista António Nogueira", in Anais da Real Sociedade Arqueológica Lusitana, 2ª Série – 1º vol., Santiago do Cacém, 1987, pp. 77-92.Vd. Estampas III e V. Veja-se,W. L. Strauss, The Illustred Bartsch, tomo 10 – (Commentary – Albrecht Durer), New York, Abaris boooks, 1981, p. 57. W. L. Strauss, The Illustred Bartsch, . vol. 13 (Pilgrim, Graf, Deutsch, Erlinger, Resch, Schoen, Meldemann, Huber,Woensam, Duvet, Krug, Monogrammists), New York, Abaris books, 1982, p. 20 Veja-se o catálogo da Exposição Francesco Salviati (1510-1563) ou la Bella Maniera, Roma,Villa Médicis, e Paris, Museu do Louvre, 1998, pp. 260-267. A gravura a buril, no exemplar do British Museum, Departament of Prints and Drawings, Invº 1870-7-9-718, é publicada com o nº 102 do catálogo na pág. 263.
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painel, quadrado em Beja e alongado aqui, o que aliás facilita a natureza do tema, levando o pintor a retirar os dois anjos que utilizara no quadro de Beja, certamente
recebido em cima, depois de ter dado os mandamentos, pelo Espírito Santo, aos apóstolos que escolhera; aos quais também, depois de ter padecido e apresentou vivo, com muitas e infalíveis provas, sendo visto por eles por espaço de quarenta dias, e falando do que respeita ao reino de Deus. E estando com eles, determinou-lhes que não se ausentassem de Jerusalém, mas que esperassem a promessa do Pai (disse ele) que de mim ouvistes. Porque na verdade, João baptizou com água, mas vós sereis baptizados com o Espírito Santo,não muito depois destes dias" (Actos, I, 2-5). A Transfiguração
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Ascenção, retábulo da Misericórdia de Beja, Museu Regional Rainha D. Leonor. Cortesia do Museu Regional de Beja.
apenas por uma questão de equilíbrio da composição. O mesmo motivo levou-o a introduzir aqui uma mandorla envolvendo o corpo de Cristo, o que cria uma simetria com o painel da Transfiguração do outro lado do retábulo. Tirando este pormenor, uma ligeira alteração na posição dos pés de Cristo, a retirada da imagem da cidade do fundo, uma necessária maior concentração das figuras dos assistentes, com uma menor preponderância da figura da Virgem, as alterações em relação ao painel de Beja são quase exclusivamente de ordem cromática. A veste de Cristo torna-se clara, como já tínhamos visto acontecer no painel da Ressurreição e a roupagem de S. Pedro é um vestido azul com capa branca. Em ambos os casos a escolha é motivada pela procura de coerência dentro do retábulo.São Pedro aparece noutros painéis (Transfiguração e Pentecostes) vestido de idêntica maneira, e a inclusão do tema da Transfiguração, obrigando a uma roupagem branca para criar a ideia de desmaterialização do corpo condicionou o cromatismo utilizado para as vestimentas de Jesus nos outros painéis. A presença deste tema é essencial na coerência da narração retabular, pois anuncia a mensagem fundamental que estará reservada para os dois painéis maiores e centrais do retábulo. Segundo os Actos dos Apóstolos, é precisamente na Ascensão que Cristo anuncia aos Apóstolos que eles serão baptizados no Espírito Santo, como ele o fora na água por João: "Até ao dia em que foi
39 Louis Réau, Op. Cit., vol. II, tomo 2, pp. 574-581
A importância dada a este tema dentro do retábulo está no facto da Transfiguração ser, como o Baptismo, uma Teofania. Cristo retira-se para rezar para uma montanha com os discípulos preferidos, Pedro, João e Tiago e, enquanto estes adormecem o corpo de Cristo transfigura-se, eleva-se, o seu rosto torna-se brilhante como o sol e a as suas vestes brancas como a luz, acordando os estremunhados companheiros. Deus revela a Cristo como seu filho e o Espírito Santo envolve-o numa nuvem resplandecente, tratando-se portanto de uma verdadeira manifestação da Trindade. A relação com João Baptista é claramente enunciada no final da descrição de Mateus (XVIII, 1-13) e nas três descrições evangélicas Jesus pede aos discípulos silêncio antes "que o Filho do homem ressuscite dos mortos", o que é evocado claramente pela posição da pintura no retábulo de Ferreira, acima da Ressurreição, e ao lado do Baptismo. Por sua vez, embora a Transfiguração se situe de facto cronologicamente, pelos Evangelhos, dentro da vida pública de Jesus, é óbvio que, como notou Réau39, do ponto de vista iconográfico, o tema exige ser colocado no ciclo da Glorificação, com uma ligação visual óbvia com a Ascensão, do qual é uma espécie de antecipação. É evidente a intenção de Nogueira de criar um paralelismo visual entre estas duas representações, abdicando dos anjos na Ascensão e de Moisés e Elias na Transfiguração para, adequando-se melhor às dimensões das tábuas, fornecer um elemento de forte conteúdo visual e simbólico ao mostrar no topo do retábulo três Teofanias em que em diferentes situações Jesus se mostra como filho de Deus.
O Baptismo O Pentecostes Trata-se evidentemente de um dos dois painéis essenciais do retábulo pela presença do Espírito Santo que desce sobre Cristo no momento do Baptismo. A figura de Jesus, rigorosamente central no painel é extremamente bem desenhada na modelação suave das sombras. Nogueira optou por situar a cena numa parte particularmente baixa do rio, apoiando-se Cristo sobre umas pedras de forma a ficar o corpo totalmente fora da água. S. João Baptista, coberto com a característica vestimenta de peles e sobre ela um largo manto vermelho, ajoelha-se sobre uma rocha e despeja por uma vieira a água do baptismo sobre a cabeça de Cristo que, de mãos postas, se inclina humildemente numa reverência que caracterizou o tema na arte póstridentina. No outro lado da composição, dois pequenos anjos, quase putti, seguram as vestes de Jesus. Apesar da colocação de um grande e desnecessário arco de rochas, que serve talvez para realçar contra ele a figura de Cristo, a paisagem abre-se no percurso do rio, desenhada com uma desenvoltura notável, tanto mais que o pintor, na sua obra conhecida, sempre pareceu evitar este recurso, optando quase sempre por fundos quase neutros de suaves montes monocromáticos. As fontes utilizadas por António Nogueira na construção desta imagem não são para nós muito claras.A figura poderosa de S. João Baptista lembra bastante uma famosa gravura de Cornelius Cort, feita sobre um modelo de Francesco Salviati40 que, contudo, só foi gravada em 1575, dez anos depois das pinturas de Ferreira do Alentejo, não sendo provável que o pintor conhecesse a fonte original da imagem.Mais sustentável parece-nos ser a utilização mais livre de outra fonte gravada: uma estampa aberta a buril por Martino Rota, muito semelhante na posição de Cristo e do Baptista41. Esta gravura era por certo conhecida no meio artístico eborense, pois é utilizada de uma forma muito mais próxima no painel do Baptismo do retábulo da Ermida de S. Sebastião de Évora42 Nogueira utiliza porém dois anjos mais jovens,mesmo crianças, um deles de costas,que parece ter sido directamente retirado de outra fonte – uma gravura bucólica aberta por Benedeto Montagna43. É provável que esta última fonte não só tivesse inspirado o pintor no pequeno anjo como também na utilização do maciço rochoso que serve de fundo à figura de Cristo. Apesar da utilização destas fontes Nogueira constrói uma composição original, bem enquadrada no todo retabular, fazendo convergir na vieira algumas linhas de força essenciais da composição total, criando assim um ponto de referência de enorme importância tanto ao nível compositivo como simbólico.
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O maior painel do retábulo de Ferreira do Alentejo é também uma das melhores pinturas de António Nogueira. O pintor cria um fundo arquitectónico de espaço abobadado, ligeiramente obliqua-do em relação ao primeiro plano do painel, que, embora progressivamente obscurecido não deixa de ter influência no prolongamento do espaço pictórico. Este obscureci-mento do fundo acentua a diferença com a iluminação intensa que a presença do Espírito Santo causa sobre as personagens da cena.Aqui Nogueira cria um espaço circu-lar, com os doze Apóstolos rodeando Maria e as três Santas Mulheres, também elas, nesta versão, participantes da graça da Descida do Espírito Santo.As figuras agitam-se repu-xando as vestes multicolores que se dobram em largas pregas, criando uma composição de grande dinamismo e rica vivacidade cromática. Para simbolizar o Espírito Santo, Nogueira utiliza uma irregular bola de fogo,que coloca no centro exacto de toda a composição retabular, parecendo dar expressão directa aos versículos dos Actos dos Apóstolos: "E de repente veio do Céu um som,como de um vento veemente e impetuoso e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas,como que de fogo,as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo" (Actos, II, 2-4). É também a influência dos Actos dos Apóstolos que podemos explicar as dezasseis figuras do conjunto, incluindo não só os Apóstolos, como também Maria e as Santas Mulheres. A junção de todos parece prender-se não exactamente com a descrição do Pentecostes, mas com a referência anterior à reunião no Cenáculo, depois da Ascensão, tal como aqui é contada: "Então voltaram para Jerusalém, do monte chamado das Oliveiras, o qual está perto de Jerusalém,à distância de um caminho de um sábado. E, entrando, subiram ao cenáculo, onde habitavam Pedro e Tiago, João e André, Filipe e Tomé, Bartolomeu e Mateus,Tiago, filho de Alfeu, Simão o zelador, e Judas, de Tiago. Todos estes perseveravam unanimemente em oração e súplicas, com as mulheres e Maria mãe de Jesus" (Actos, I, 12-14). Nogueira parece seguir o texto à risca não só nas personagens, como também na sua colocação, situando juntos alguns dos que podiam ser facilmente reconhecíveis para o espectador, como Pedro, João e Tiago, identificáveis pelas roupagens e pela fisionomia com os três assistentes do painel da Transfiguração. Se após a observação individual dos painéis do retábulo ficamos com a ideia da profundidade com que Nogueira
W. L. Strauss,T. Shimura, The Ilustrated Bartsh, vol. 52 (Cornelis Cort), New York, Abaris Books, 1986, p. 69.Veja-se também o catálogo da Exposição Cornelis Cort, Roterdão, Museu Boymans-van Beuningen, 1994. H. Zerner, The Ilustrated Bartsch, vol. 33 (Italian artists of the sixteen century) , New York, Abaris Books, 1979, p. 11. Veja-se Túlio Espanca, Inventário Artístico de Portugal VIII. Concelho de Évora, Lisboa, Academia Nacional de Belas Artes, 1966, vol. II, est. DLIII, fig. 3. Mark Zucner, The Illustrated Bartsch, vol. 25 (Commentary), Formerly Volume 13 (part 2): Early Italian Masters: Pollaiolo, Fogolino, Mocetto, Mantegna, Modena, Andrea, G.M. da Brescia, G.A. da Brescia, Montagna, G. Campagnola, Robetta, Monogramists, New York, Abaris Books, 1984, pp. 424.
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conseguia tratar a problemática religiosa, independentemente de ter ou não contado para a definição da iconografia com o auxílio de algum religioso, o que era comum, observando o retábulo da desaparecida ermida do Espírito Santo de Ferreira do Alentejo, ficamos com a certeza de que o pintor tentou articular o conjunto de forma a reforçar em cada painel os elementos simbólicos mais significativos, e sobretudo de forma a fazer sobressair do conjunto os motivos em que se tornava mais evidente a presença do Espírito Santo nos temas representados. A forma que mais sobressai é exactamente a definição dos dois painéis maiores com os temas do Baptismo e do Pentecostes como exemplos maiores do poder da Descida do Espírito Santo, e a forma como joga com as auréolas, criando ritmos e articulações entre cenas como a Ressurreição, a Transfiguração e a Ascensão, são igualmente reveladoras dessa vontade de unir e relacionar os temas mais além da sua ordem sequencial no retábulo. Algumas destas relações formais e simbólicas encontram-se menos evidentes, mas não são menos eficazes. Se fizermos o exercício de retirar mentalmente a parte curva dos três painéis superiores ficamos com um quadrado perfeito no restante conjunto de pinturas. O topo desse quadrado passa exactamente pelo peito das figuras de Cristo na Ascensão e na Transfiguração, na linha de movimento dos braços, e no topo da cabeça de Cristo no Baptismo. Uma cruz traçada a partir dos ângulos desse quadrado vai encontrar na intercessão a bola de fogo do Espírito Santo e parece organizar as composições dos quatro painéis de canto do retábulo. Se, ao invés, inscrevermos nesse quadrado maior um outro traçado a partir do meio dos lados do quadrado, podemos ver como as linhas deste quadrado menor acompanham a posição das figuras de Cristo e do Baptista no Baptismo, a linha média das figuras dos Magos na Adoração e dos soldados na Ressurreição, para além de coincidirem exactamente com a posição dos dois discípulos em primeiro plano no Pentecostes. Parece assim que António Nogueira, para além da composição quadro a quadro jogou frequentemente com elementos composicionais que deviam funcionar na associação das obras no todo retabular (Esquema 1) O mesmo se poderia dizer para a utilização da cor. Sem utilizar uma paleta diversificada, Nogueira joga essencialmente com a criação de manchas de brancos, azuis, verdes amarelos e vermelhos, que dispõe contra os fundos ocres ou cinzas criando ritmos cromáticos que movimentam ou equilibram a composição de cada painel e sobretudo do conjunto. É sobretudo destes valores que vive o retábulo de Ferreira do Alentejo e, de uma forma geral, a pintura de Nogueira que propositadamente se afasta do descritivismo da pintura primitiva, mas também não se deixa seduzir pelos pelos adereços romanizantes que carac-
Esquema 1
Linhas unificadoras dos elementos composicionais do retábulo de Ferreira do Alentejo.
terizaram a nossa pintura renascentista. Os seus exagerados panos em longas pregas rodopiantes escondem os corpos afirmando as figuras apenas como distantes memórias de um tempo santificado, tornado visível, mas não próximo, pela imagem religiosa. Neste sentido, Nogueira é aqui um pintor do seu tempo, e o seu tempo é o do arranque da Reforma Católica. A Obra de António Nogueira A base segura para a atribuição do corpo de obras até agora dado a António Nogueira continua a ser o retábulo da Misericórdia de Beja, do qual subsistem, como atrás referimos quatro tábuas representando a Visitação, a Descida da Cruz, a Ressurreição e a Ascensão. Duas delas, a Descida da Cruz e a Ressurreição, são claramente das suas melhores obras (foto 4). Tendendo sempre para a construção de espaços vazios, Nogueira é capaz de criar aqui um intenso dinamismo na tensão de forças das figuras, mostrando-se um bom apreendedor dos modelos do maneirismo romanista que combina com uma forte vontade de criar uma pintura sem referências históricas dentro da "arte senza tempo" própria da geração inicial da Contra-Reforma. Daí que os seus principais recursos expressivos se situam sempre ao nível das composições, da articulação entre as figuras, por vezes de grande dinamismo,e sobretudo de um trabalho de linhas sinuosas dos panejamentos,projectando revoltos e repuxados jogos de
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Descida da Cruz, retábulo da Misericórdia de Beja, Museu Regional Rainha D. Leonor. Cortesia do Museu Regional de Beja.
curvas onde a cor e a luz e sombra se movimentam. O retábulo de Ferreira do Alentejo é quase contemporâneo deste conjunto de Beja, utiliza frequentemente as mesmas composições, ou próximas variantes destas, não mantendo contudo a mesma qualidade excepto nos dois painéis maiores.Torna-se aliás evidente que o estilo largo e solto de Nogueira se manifesta melhor nos painéis onde dispõe de espaço para poder espraiar-se, quer nas soluções compositivas, quer na expressividade dos movimentos dos corpos e tecidos. A pintura da Igreja da Graça de Lisboa também não andará longe da data destes dois conjuntos44. Sabemos aliás que o pintor esteve em Lisboa em 1564 e voltou a trabalhar na capital com Gaspar Dias nas decoração efémera para as trasladações dos corpos reais para a nova capela-mor dos Jerónimos,alturas em que poderia ter executado esta obra. Não é no entanto impossível que a pintura da Graça seja mesmo anterior.Há no chão e no céu uma pormenorização de que Nogueira se afasta nas obras alentejanas e a presença da lança e da esponja de vinagre apoiadas na escada parece denotar um acento retórico que quase não existe naqueles dois conjuntos. Mesmo na construção muscular do corpo de Cristo há uma profundidade no delineamento dos músculos, mais intensamente desenhados num sombreado mais escuro do que acontece nas pinturas de Beja e Ferreira do Alentejo, características que podem denotar uma maior anterioridade da pintura, pela menor liberdade de execução que revelam. Estamos mais certos porém da necessidade de rever a datação que em tempos propusemos para o conjunto de seis pinturas provenientes a igreja de Santa Margarida do
Lavradio e que hoje se guardam no Museu Nacional de Arte Antiga.Apontamos nessa altura uma data posterior às tábuas de Beja, mas estamos hoje convictos que poderão ser anteriores. O maior detalhismo, o recurso a adereços e objectos, a forma mais marcada no desenho dos músculos parecem-me características de uma certa anterioridade destas obras, já que o caminho de Nogueira tende a ser, de acordo com o espírito Tridentino, de uma cada vez maior depuração e abandono de todas as referência temporais. As seis pinturas entraram no Museu em 22 de Maio de 1916, sendo referidas numa "Relação dos objectos da egreja de Santa Margarida do Lavradio que foram recolhidos no Museu Nacional de Arte Antiga", onde são sumariamente descritas como Retábulo do altar do santíssimo (seis painéis de Madeira) representando os quatro evangelistas, a Anunciação e a Ressurreição (sic!)". À parte do autor do rol ter confundido o tema da Descida de Cristo ao Limbo com a Ressurreição, o que em face da iconografia do painel se compreende, não restam dúvidas de que se tratam das pinturas de Nogueira. Num estudo recente, Rosalina Carmona referiu-se a esta confraria divulgando um documento do Arquivo Distrital de Setúbal em que dá conta da existência em 1578 de uma confraria do Santíssimo Sacramento no Lavradio, irmandade que a autora considera ser na época de formação recente45, facto muito provável não só pela sua invocação, claramente moderna46, como por até 1569 não aparecer na Visitações da igreja publicadas por esta investigadora qualquer notícia de tal confraria. Apesar de não haver dúvidas, pela relação do Museu Nacional de Arte Antiga, de que na altura da extinção da igreja a capela donde o retábulo saiu funcionava como capela do Santíssimo Sacramento, não deixa de ser estranha a iconografia apresentada para uma capela daquela invocação, tanto mais que, como vimos no caso do retábulo de Ferreira do Alentejo, Nogueira se revelou, nas suas composições, capaz de criar relações simbólicas e iconográficas de grande complexidade para a construção da temática que lhe foi proposta. Numa capela do Santíssimo Sacramento por certo que o painel central seria dedicado à Última Ceia e toda a iconografia giraria à volta da temática eucarística. Curiosamente a marcação que a Congregação dos Ritos concedeu para a festa da instituição do Santíssimo Sacramento caiu em 24 de Março, exactamente a véspera da festa da Anunciação que se comemora a 25, nove meses exactos antes do Natal, mas não conhecemos nenhum exemplo em que o tema tenha sido utilizado no contexto da invocação do Santíssimo Sacramento. Por outro lado, a obrigatoriedade que o decreto de 27 de Fevereiro de 1781 estabelecia para que houvesse em todas as igrejas uma capela expressamente dedicada à exposição do
44 Revelamos pela primeira vez esta pintura em O que Janus via, citado atrás, vol. I, pp. 234-5 e vol. II, fig. 155. 45 Arquivo Distrital de Setúbal, Notarial de Alhos Vedros, Cx. I/1, 1577-1579, fls. 100 e segs., publicado em excertos por Rosalina Carmona, Lavradio. A Igreja de Santa Margarida 1492-1569, Lavradio, Junta de Freguesia do Lavradio, 2004, p. 257. 46 A primeira confraria do Santíssimo Sacramento foi instituída em Roma, na Igreja de Santa Maria de Minerva, e foi canonicamente aprovada pelo Papa Paulo III em 1539, desenvolvendo-se rapidamente em Portugal, sendo a primeira confraria conhecida a de Penafiel, desse mesmo ano.Veja-se P. Miguel de Oliveira, História Eclesiástica de Portugal, Lisboa, União Gráfica, 1940, pp. 233.
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Santíssimo Sacramento, levou a que muitas antigas capelas, de outras invocações, tivessem sido na altura adaptadas às novas necessidades. O conjunto de Visitações recentemente publicadas por Rosalina Carmona, que medeiam entre 1492 e 1569, não nos dá respostas directas para este problema. Sabemos contudo que em 1553 se estava executando para uma capela do cruzeiro um retábulo de seis painéis, de invocação mariana, descrito da seguinte forma: "sobre o [altar] da parte do avamgelho hum Retauollo nouo de madeira de bordo laurado de Romano em bramco de seis painéis sobre hum bamco No painel do meio hum emcasamento sem magem domde had’estar nosa senhora do Rozairo cujo orago he o dito altar com a sua confraria"47. Esta descrição coincide no número de painéis e a referência ao encasamento no painel central poder-se-ia associar à marca que a pintura da Anunciação (Cf. foto 1) mostra na parte inferior, certamente por na marcenaria retabular se encontrar aí encostada uma edícula para imagem ou um sacrário. A referência ao retábulo estar "branco" indica que está por pintar e dourar, estando no entanto terminada a parte da marcenaria. Teríamos assim uma data quase exacta da execução das pinturas48, nesses anos de 1553 ou, quando muito, no seguinte, em todo o caso mais ou menos uma década antes das pinturas de Beja e Ferreira do Alentejo. Não podemos dizer que esta datação fosse improvável, até porque temos, para estes anos, um grande desconhecimento da obra de António Nogueira e da forma como ela evoluiu, mas também aqui a iconografia do retábulo não nos parece à primeira vista muito condizente com a devoção de uma confraria do Rosário, embora saibamos, pelo próprio texto da Visitação, que a imagem da padroeira havia de ser esculpida e não em painel. Apesar disso havia alguns pontos de contacto. Por um lado a devoção do Rosário estendeu-se baseada na força da oração a Maria como advogada dos pecadores e salvadora das almas do purgatório, por outro lado na sua difusão a ideia do "bendito fruto do Vosso Ventre", isto é, Cristo, como antítese libertadora, do outro fruto da perdição – a maçã do paraíso, leva a uma ligação mais ou menos clara desta devoção com os dois temas centrais do retábulo49. O facto de não serem conhecidas visitações da capela posteriores a 1569 e das últimas visitações publicadas, referentes aos anos de 1565 e 1569, serem extremamente lacónicas nas suas descrições não ajuda a esclarecer a possível origem do retábulo de António Nogueira. No entanto na citada Visitação de 1553, refere-se a existência no corpo da Igreja de uma capela instituída por
um Francisco Fernandes cuja invocação era de Nossa Senhora da Salvação. Em 1553 esta capela tinha apenas um pobre retábulo: "Tem hum alltar de aluenaria sobre hum tauoleiro de tigollo e a fromtaria de pedraria sobre o altar a imagem de nossa senhora da salluação de vulto de madeira cujo orago he a dita capella"50. E não deveria ser uma instituição pobre, pois contava com 85 confrades. As visitações posteriores, de 1565 e 1569 são muito lacónicas na descrição de obras de arte. A primeira apenas refere "estar a dita Igreja muyto bem concertada de retauollos"51, e a última só tem a parte do "provimento", isto é, as coisas que o Visitador julgava necessárias, entre as quais não está a execução de nenhum retábulo, confirmando o sentido da Visitação de 1565. Atendendo à iconografia do retábulo, a hipótese do conjunto ter pertencido originalmente a esta capela deve ser colocada, pois seria aqui que a junção dos dois temas centrais do retábulo mais sentido faria.
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Descida de Cristo ao Limbo, painel superior do retábulo de Santa Margarida do Lavradio, MNAA. Cortesia DDF.
O desenvolvimento da figura da Virgem como intercessora dos pecadores, que se desenvolve sobretudo pela acção das ordens mendicantes, leva à associação da figura de Maria como instigadora da Salvação dos Justos na Descida de Cristo ao Limbo (foto 5). Inúmeros painéis associam o tema da Descida ao Limbo ao da Aparição de Cristo à Virgem, como as pinturas de Jorge Afonso no Retábulo da Madre de Deus, ou de Frei Carlos no retábulo do Espinheiro de Évora, ambas no Museu Nacional de Arte Antiga.A união do tema do Limbo à Anunciação,
47 Arquivos Nacionais / Torre do Tombo, Ordem de Santiago/Convento de Palmela.Visitação da Jrmida de Santa Margarida do Lavradio, Livro 195, fl. 256, publicado por Rosalina Carmona, Op. Cit., p. 140. 48 Embora esta fosse a situação mais normal por vezes factores económicos, ou eventualmente administrativos, de demora nas obras ou de gosto, podiam fazer protelar a execução de pintura. A documentação da Ordem de Santiago, no que toca às Visitações, mostra-nos pelo menos duas situações destas. Uma delas diz respeito ao retábulo da Igreja de Santa Maria do Castelo, que já aparece referido na Visitação de 1535 como estando em "branco" e assim continuou até 1565, sendo então recomendada pelo Visitador a sua substituição, certamente por já não corresponder ao gosto de então (A.N./T.T., Ordem de Santiago, B-50-213, referido por Joaquim Oliveira Caetano, "A Ordem de Santiago e a Arte", in cat. Exp. A Ordem de Santiago. História e Arte. O Castelo e a Ordem de Santiago na História de Palmela, Palmela, 1990, pp. 81-83. A outra situação refere-se à Igreja Matriz de Mértola, onde a Visitação de 1535 dá conta da existência na Igreja de "bordos pêra Retauolos pera a Jgreja matriz depois de acabada". Quase vinte anos depois, em 1554, os visitadores podem observar as pinturas em execução, mas não ainda concluídas, pelo que referem que "todos os painéis são de boa mão não estão acabados porque nom tem suas tintas em seus llugares". Finalmente, a Visitação de 1565, nomeia os retábulos como acabados e "muito bons".Veja-se Maria de Fátima Rombouts de Barros, Joaquim Ferreira Boiça e Celeste Gabriel, As Comendas de Mértola e Alcaria Ruiva.As Visitações e os Tombos da Ordem de Santiago 1482-1607, Mértola, Campo Arqueológico de Mértola, 1996. Cf. com Joaquim Oliveira Caetano, "Pintura do Concelho de Mértola. Séculos XVI/XVII: uma Aproximação", in cat. Museu de Mértola. Porta da Ribeira. Arte Sacra, Mértola, Campo Arqueológico de Mértola, 2001, pp. 121-130, e Idem, "Pentecostes", in Ibidem, pp. 132-134. A importância destes documentos está em nos demonstrarem a existência de situações atípicas, mas não invulgares, por certo, em que os normais elementos de datação devem ser tomados com reservas. 49 Um desenvolvimento claro desta ideia está numa obra portuguesa quase contemporânea, o Livro do Rosário de Nossa Senhora, de Frei Nicolau Dias, editado em Lisboa, em 1573, nos prelos de Francisco Correa. 50 Publicado por Rosalina Carmona, , Op. Cit., p. 142. 51 Idem, Ibidem, p. 158.
ou como Nogueira diria, à Encarnação, marca o início e o fim do percurso de Salvação de Cristo na Terra e, em ambos os temas, com a intermediação de Maria52. Por outro lado o facto de na Descida de Cristo ao Limbo ser salva Eva, reforça a leitura de Maria como uma anti-Eva, novamente concebida sem pecado, instrumento da Redenção como a primitiva Eva o fora da perdição. Muito provavelmente a figura ao centro do painel, que hoje se encontra francamente degradada, seria Eva, o que reforça a associação entre os dois painéis. Para essa figura aliás aponta directamente o Anjo anunciador. O modelo utilizado por Nogueira na Anunciação não difere muito, como atrás vimos, do que utilizou no retábulo de Ferreira do Alentejo. É apenas menos expressa a atenção da Virgem ao livro e o anjo aparece totalmente com o joelho em terra e não apenas flectido como na pintura de Ferreira. Por outro lado o fundo torna-se completamente neutro pelo escurecimento e junto à Virgem um belo jarro de porcelana ostenta três lírios,flor mariana, anunciada nas canções davídicas e tomada como litania, aqui também símbolo da pureza virginal de Maria. Menos comum foi o partido composicional porque optou no painel superior. Talvez por uma preocupação de manter as várias figuras em escalas aproximadas, Nogueira colocou a figura de Cristo oblíqua na diagonal do painel, planando deitado sobre o limbo, de braços abertos, quase parecendo corresponder ao gesto de Adão. É interessante e incomum o facto de Cristo descer de mãos nuas sem transportar qualquer pendão.A situação cronológica desta cena sempre foi bastante discutida pelos teólogos, nomeadamente se deveria situa-se antes ou depois da Ressurreição, isto é, durante o período da
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morte corporal, ou no ciclo da Glorificação.A opinião do evangelho apócrifo de Nicodemos, uma das bases essenciais para a caracterização do tema é a da anterioridade da Descida ao Limbo em relação à Ressurreição, o que foi seguido por muitos teólogos e que Nogueira parece ter querido sublinhar ao não incluir na cena o estandarte crucifero da Ressurreição, que normalmente Cristo transporta. Tanto quanto nos podemos recordar na pintura portuguesa da época o modelo de Cristo planando sobre o limbo acontece apenas no pequeno painel pintado nas duas faces, atribuído a Francisco de Holanda, e proveniente do Mosteiro dos Jerónimos53. As figuras de Adão e de Eva, posto que invertidas, têm também algumas semelhanças nos dois painéis, para além das idênticas soluções cromáticas. Com a fama do quadro de Holanda nos Jerónimos, onde, como vimos, Nogueira viria a trabalhar e tendo em conta a sua ligação a Gaspar Dias, um dos pintores mais utilizados no Mosteiro de Belém, é muito provável que António Nogueira conhecesse esta pintura e dela se servisse, com liberdade, diga-se, no modelo da peculiar Descida de Cristo ao Limbo da ermida de Santa Margarida do Lavradio. Nos quatro painéis laterais os evangelistas (foto 6 a, b, c, d) exibem algumas das características essenciais da arte de Nogueira:rostos pouco caracterizados,largos panos repuxados que escondem o corpo, um cromatismo básico opondo verdes e rosas, salmão e amarelo, utilizando por vezes os efeitos furta-côr dos acetinados, e uma evidente dificuldade em compor em espaços limitados, preferindo manter uma certa dimensão das figuras, o que tem como consequência um difícil enquadramento nos painéis de menores dimensões.
Os quatro Evangelistas, painéis laterais do retábulo de Santa Margarida do Lavradio, MNAA. Cortesia DDF.
52 Louis Réau, Iconographie…., , vol. II, tomo 2, p. 554-5, refere a importância do teatro de Mistérios na cristalização deste tema no final da Idade Média, popularizando uma espécie de nova Anunciação em que Cristo envia de novo o arcanjo Gabriel dar conta a sua mãe da sua Ressurreição. O Anjo aparece e saúda Maria com as palavras "Regina coeli, laetare". 53 Museu Nacional de Arte Antiga, invº 1181. Cf. Sylvie Deswarte-Rosa, "Francisco de Holanda e o Mosteiro de Santa Maria de Belém", in Jerónimos 4 séculos de Pintura…, vol. II, pp. 40-67.
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Duas outras pinturas podem talvez ser atribuídas de novo a António Nogueira, depois de revisitada a sua obra: um pequeno fragmento de uma pintura representando o Pentecostes, pertencente à colecção do Museu de Évora, e uma Anunciação, de colecção particular de Lisboa. Temos diferentes graus de certeza na atribuição destas obras. No caso da pintura do Museu de Évora (invº ME 799) (foto 7) parece-nos evidente a ligação. Trata-se de um pequeno fragmento, que apenas contem a parte esquerda do que seria a composição provável de um Pentecostes, reunindo a Virgem e seis apóstolos. Quer a paleta, quer os panejamentos das figuras, quer ainda o fundo de uma arquitectura fria e linear são típicos de Nogueira e algumas figuras tem paralelos noutras obras do pintor, sobretudo com os quadros de Beja. Não se sabe de onde provém este fragmento, talvez do espólio remanescente de algum dos conventos de Évora, mas já se encontrava reunido às colecções da Biblioteca Pública de Évora antes da criação do Museu. No inventário manuscrito desta colecção, feito em 1890 pelo bibliotecário António Francisco Barata, o quadro tem o nº 157 e é apenas descrito como "quadro Pentecostes, Museu de Évora. 7 bíblico", sem outra indicação. Em 1915, com a criação do Museu de Évora (então Museu Regional de Évora), a pintura, como a generalidade das colecções artísticas, passou a incorporar o espólio deste museu. Trata-se,evidentemente,de uma obra que não acrescenta muito ao conhecimento da obra do pintor, o que não acontece com a outra pintura, cujo grau de certeza na atribuição é contudo, como dissemos, menor. Trata-se de uma Anunciação, de formato quadrado, como os quadros de Beja, de cerca de 1 metro de lado. A pintura tem alguma coisa de comum e também outras tantas divergentes em relação à obra conhecida de António Nogueira. Não segue o modelo das outras duas Anunciações conhecidas, o anjo está de pé e a Virgem aparece em posição mais baixa que o mensageiro, mas o tipo de rostos é próximo dos de Nogueira e o tratamento esvoaçante e ondulado dos panejamentos é semelhante.A paleta, o desenho da paisagem, a arquitec-
tura do lado esquerdo são muito próximas das de Nogueira,mas a concepção espacial do interior da habitação, com a sua perspectiva ilógica, a sucessão de planos quebrada por sucessivos acidentes arquitectónicos, a utilização de colunas e pilastras de diferentes ordens e materiais, nada disto tem a ver com o universo do pintor tal como o conhecemos a partir da década de 1560. Apenas um pormenor: no Pentecostes do Retábulo de Ferreira pode observar-se na reflectografia da parte inferior central o desenho de três ovais que não tem significação nenhuma na pintura (foto 8). Pode ver-se, nesta Anunciação as mesmas ovais marcando a sombra de um vaso em forma de urna, com duas largas asas, que suporta sete flores brancas aos pés da Virgem. Mais uma vez, se há uma coincidência no desenho, como assinalámos, este vaso é estranho a qualquer outra pintura conhecida de Nogueira. Sem que haja total certeza, esta pintura tem fortíssimos pontos de contacto com a obra de António Nogueira e,
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Reflectografia, pormenor das ovais no Pentecostes, Ferreira do Alentejo.
embora necessite de um estudo (e para nós, observação) mais demorado pode talvez fornecer uma pista sobre as características da fase inicial da obra do pintor, caminhando naturalmente deste universo mais confuso para uma pintura cada vez mais linear e despojada como observamos na análise das suas outras obras.
Nogueira e a pintura do seu tempo O que nessas obras encontramos é um mestre com uma linguagem maneirista claramente assumida e manifestando grande parte das preocupações que a contrareforma trouxe para a arte – a recusa de elementos de uma temporalidade evidente,patenteada num classicismo depurado das arquitecturas, numa quase inexistência de adereços, enorme simplificação das paisagens e uma idealização quase estereotipada dos modelos anatómicos
e de rostos. Por outro lado acentua os valores expressivos dos enrolamentos dos largos panos com que veste ou, literalmente, cobre as suas figuras. Observando os quadros de Beja ou de Ferreira, lembramo-nos por vezes do trecho em que Holanda sobre a "severidade da invenção" da pintura antiga, e os conselhos que dá: "aprenda a fazer muito pouco e muito bem, e quando comprir fazer muito e muito compartimentadamente, o fogir do feo e sem graça, o buscar nos mores descuidos por que os outros passam levemente, escolhendo sempre o mais pouco, e melhor, entre o melhor, e o despejado e os espaços, fora dos entricamentos da confusão e do mão eleger"54. Nogueira parece de facto muito sensibilizado por esse ideal de depuração e contenção que cativa Holanda, mas enquanto para este esses princípios são essencialmente opostos à pintura flamenga e aos seus sequazes portugueses e podem ser expressos no louvor e na aplicação dos princípios da antiguidade, para Nogueira a simplificação surge sem afirmação renascentista, como expressão de uma sobriedade contida que, tal como na arquitectura coeva, se parece bastar nos seus próprios valores minimizando todas as referências temporais, mesmo as provenientes de um classicismo de feição mais arqueológica. Neste sentido a pintura de Nogueira, pelo menos a que executa nessa década de 1560, e que melhor conhecemos, não tem paralelos evidentes na realidade portuguesa. É certo que podemos estabelecer, no segundo e terceiro quartéis do século XVI, uma linhagem de pintores que buscaram, com mais ou menos profundidade,uma linguagem classicista contida na sua expressão, pouco presa aos elementos exteriores de afirmação da gramática clássica, composicionalmente claros e depurados: o Garcia Fernandes do retábulo da Trindade
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(MNAA), Diogo de Contreiras em certas obras tardias, como o díptico de Porto da Luz (Alenquer), anónimos mestres como o pintor das capelas laterais da Sé de Évora, autor das tábuas da Igreja do Salvador, em Santa Cruz, na Madeira,os mestres de Arruda dos Vinhos,de Terena ou de Alpedrinha, e até a obra mais recuada de Francisco João, para além de noutro nível, algumas pinturas de Gaspar Dias. Mas, apesar da influência da pintura do Alto Renascimento moldar nestes mestres uma certa contenção que nunca lhes permitirão os laivos maneiristas de outros seus contemporâneos, o que é certo é que nenhum outro pintor português leva nessa década tão longe a utilização do espaço vazio, da anulação completa do adereço, da limitação absoluta da referência temporal como Nogueira. Nem tão pouco Luís de Morales, que em 1565 pinta com fama em Évora os retábulos de S. Domingos, e a quem Nogueira vai buscar composições que mostram o conhecimento da sua obra espanhola (pelo menos das tábuas da capela do Sacrário da Catedral de Badajoz, pintadas entre 1553-4), levara essa solidão das figuras ao ponto de isolamento que Nogueira lhes dá.Além disso, a contenção de Nogueira faz-se também ao nível da expressão dos sentimentos extremos, o que não acontece com o mestre espanhol que daí tira boa parte da potencialidade expressiva da sua obra. A obra de Nogueira tem no entanto fortes semelhanças com o maneirismo inicial toledano, em pintores como Juan Correa de Vivar, ou Francisco Comontes, mestres que aparecem por vezes utilizando modelos e soluções expressivas afins às de Nogueira, sem que se possa dizer no entanto se houve contactos directos ou apenas caminhos paralelos na adequação da linguagem italiana a uma igreja já fortemente preocupada com a clarificação do papel da imagem religiosa. Talvez por este lado a pintura de António Nogueira seja mais facilmente compreensível. A presença recuada dos Jesuítas em Évora, com a construção da Universidade, o gosto austero que se nota na arquitectura da cidade a partir da viragem para a segunda metade do século com obras como Santo Antão, S. Tiago, ou a própria Universidade, mostram-nos uma precoce tendência para a criação de uma linguagem depurada,fria,onde a dignidade surge na clareza das formas, alheias a toda a reivindicação profana, ainda que fundada na Antiguidade Clássica. Mais do que os vagos ditames conciliares, à pressa e sem novidade redigidos na última sessão do Concílio de Trento, e logo publicados em português, no ano de 1564, pelo impressor do Cardeal D. Henrique55, a difusão das suas prorrogativas, logo sublinhadas por um conjunto de literatura espiritual e normativa, como, no caso de Évora, as Constituições do Bispado, saídas no ano seguinte56, estes textos criavam em muitos artistas, como certamente António Nogueira, um processo de autocrítica e
Cristo deposto da cruz, Igreja da Graça. Lisboa.
54 Francisco de Holanda (ed. de Angel González Garcia), Da Pintura Antigua, Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1983, cap. IX, p. 76-77. 55 Decretos e Determinações do Sagrado Concílio Tridentino, que devem ser notificados ao povo, por serem de sua Obrigaçam, E se hão-de publicar nas Parochias…, Impresso em Lisboa, por Francisco Correa, impressor do Cardeal Iffante nosso Senhor. Aos quinze de Octubro de 1564 56 Constituições do arcebispado Deuora novamente feitas por mandado do illustríssimo e reverendíssimo Senhor Dom Joam de Mello, arcebispo do dito arcebispado…, Évora, em casa de André de Burgos, 1565
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auto-indagação, para utilizarmos duas expressões de Frederico Zeri57 que os levava a buscarem mecanismos de cristalização normativa da imagem que dessem expressão às vagas mas perceptíveis determinações conciliares. E neste aspecto a simplificação e a clareza da pintura de Nogueira é sem dúvida uma das respostas mais ao pé da letra que se podia dar. Para além dos aspectos óbvios das determinações tridentinas, no que toca ao decoro, ao combate à história apócrifa, e à defesa da imagem e ao seu carácter didáctico,sobressai do texto conciliar um apelo à restrição da beleza profana "em maneira que nam seja as Imagens pintadas nem ornadas com excessiua fermosura, ou galanteria" (fl. 23). Mesmo antes da publicação dos grandes teóricos da imagem pós-tridentina, como Molanus e Palleoti, a discussão sobre Imagem no início da segunda metade do século XVI, coloca invariavelmente o acento tónico na necessidade de não levar a beleza a níveis de exibicionismo que possam tornar demasiado lasciva ou sensorial a pintura58, e mesmo antes do fim do concílio, como Burgos Garcia documentou para Espanha, não há sínodo provincial da década de 1560 que não inclua uma referência ao combate necessário à "beleza provocativa"59. A contenção fria de Nogueira, mostrada numa pintura onde figuras mudas atravessam espaços vazios de adereços, envoltas em largos panos soprados que por completo as cobrem, sob céus sempre iguais, à frente de paisagens apenas esboçadas na indicação das distâncias, corresponde precocemente e, até certo ponto eruditamente, às grandes preocupações sobre a função da Imagem religiosa trazidas de novo para o debate do século pela disputa que nesses anos centrais de Quinhentos por toda a Europa varreu países e consciências individuais e a cujos ventos também não ficou indiferente este pintor eborense.
Joaquim Oliveira Caetano
57 Frederico Zeri, Pittura e Controriforma. L’"arte senza tempo" di Scipione da Geta, 4ª ed.,Vicenza, Neri Pozza ed.,1997, p. 19 58 O caso mais claro é talvez o Due Dialoghi, editado em 1564 por Giovanni Andrea Gilio da Fabriano.Veja-se sobre este assunto Giuseppe Scavizzi, Arte e Architettura Sacra. Cronache e documenti sulla controvérsia tra riformati e cattolici (1500-1550), Reggio Callabria / Roma, Casa del Libro Editrice, 1981, p. 94 e seg. e Anthony Blunt (trad. Espanhola), la Teoria de las Artes en Italia (del 1450 a 1600), Madrid, Cátedra, 1987, pp. 120-122. 59 Palma Mártinez Burgos Garcia, Ídolos Y Imágenes.La ontroversia del arte religioso en el siglo XVI español, Valladolid, 1990, p. 248
Intervenção de Conservação e Restauro
Estudo Técnico e Formal do Políptico
A moldura, de cor preta, é decorada com frisos corridos, dourados a folha de ouro, e constituída por treze peças unidas entre si (Foto 1), tanto pelo sistema de assem-
Os painéis e a moldura O políptico da Igreja da Misericórdia de Ferreira do Alentejo é uma estrutura de grande porte e corpo unitário, constituída por oito painéis pintados, com técnica mista sobre madeira de carvalho, inseridos numa grande armação Os painéis centrais, de grandes dimensões, representam o Baptismo e o Pentecostes e os periféricos,bastante menores, representam a Anunciação,Ressurreição,Natividade, Adoração dos Reis Magos,Ascensão e Transfiguração. A parte superior da moldura que compõe o retábulo termina em arco e as três pinturas que a constituem (Ascensão, Baptismo e Transfiguração) acompanham esse movimento no seu formato. A Anunciação, Ressurreição, Natividade e Adoração dos Reis Magos são idênticas em dimensões e formato e a Ascensão e Transfiguração também, mas com a particularidade de serem simétricas entre si, uma vez que são arredondadas na parte superior e têm medidas diferentes nas margens esquerda e direita. (Esquema 1)
1
Aspecto geral da moldura desmontada.
blagem em furo e respiga de fora a fora1 (Foto 2a,b), como por furo e respiga escondida. Cada assemblagem tem um travamento que varia entre uma ou um par de cavilhas cilíndricas, em madeira de pinho, cujo diâmetro se situa entre os nove e os dez milímetros. A guarnição, elaborada num moldado compósito, é cons-
2
Pormenor da moldura no seu canto superior esquerdo: a) aspecto da assemblagem desmontada; b) aspecto da assemblagem unida e encavilhada
tituída por seis peças independentes que compõem toda a periferia da moldura que se fixam à estrutura por intermédio de pregos de ferro forjado, dispostos aleatoriamente. Na observação pormenorizada dos extremos das pinturas verificou-se que algumas estão pintadas até ao limite do suporte enquanto outras possuem uma margem com madeira à vista. Neste último caso, a camada pictórica termina com uma rebarba (Foto. 3), cujo relevo denuncia que a moldura se encontrava sobreposta ao suporte, durante a execução da pintura.
3 Esquema 1
Pormenor da Transfiguração.A margem com madeira à vista prova que esta estava tapada (com moldura?) durante a pintura da prancha
1 Os dois sistemas de assemblagem descritos são abertos com um tipo de formão chamado bedame. No sistema de furo e respiga de fora a fora, a cavilha (respiga) atravessa toda a largura da madeira, sendo visível em ambas as faces. No sistema de furo e respiga escondida o orifício não atravessa toda a largura da peça, deixando a cavilha oculta. A utilização de um ou outro sistema depende da localização do encaixe na obra e a sua relevância em termos visuais.
A diferença de acabamento nas margens das pinturas que compõem este retábulo não é aleatória, bem pelo contrário, revela um padrão que permite formular a hipótese de que a execução pictórica tenha sido realizada em simultâneo com a montagem da moldura. Assim, o Pentecostes tem madeira à vista em todas as suas margens, o que permite concluir que estaria totalmente rodeado por uma estrutura, quando foi pintado. O Baptismo de Cristo, por sua vez, tem as margens todas pintadas até ao extremo, o que significa que foi executado fora da estrutura. As restantes pinturas têm apenas uma margem pintada até ao extremo,coincidindo essa com as extremidades do retábulo, à excepção da Ressurreição de Cristo e da Adoração dos Magos, que a tinham para o lado de dentro. Esta evidência permite-nos concluir que elas teriam as posições trocadas entre si, pelo que voltaram à sua disposição original, quando o retábulo foi novamente montado. Estes dados, confrontados com a forma de encaixe dos elementos que constituem a moldura, permitiram reconstituir uma possível sequência de montagem e pintura do retábulo:
• O segundo andar desta estrutura terá sido iniciado com a colocação do suporte do Baptismo de Cristo, o qual já teria sido previamente pintado. Depois de ladear esta pintura, com as réguas interiores da moldura, foram postos junto a estas, respectivamente, o suporte da Ascensão de Cristo e o da Transfiguração. (Esquema 2, Fase 4)
• Após assentar a madeira que serve de base à moldura, colocou-se sobre esta o suporte do Pentecostes; (Esquema 2, Fase 1)
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• Após a instalação destes dois últimos suportes, colocou-se o remate superior da moldura e pintaram-se os respectivos temas. (Esquema 2, Fase 5) • À volta deste, foi montado o primeiro andar da estrutura que constitui a moldura; (Esquema 2, Fase 2)
• Neste andar, percorrendo as calhas entalhadas dessa estrutura, encaixaram, pelos lados, os suportes da Ressurreição de Cristo, da Adoração dos Magos, da Anunciação e do Presépio. As cinco pinturas deste andar terão sido pintadas sem aplicar as traves laterais de remate da moldura. (Esquema 2, Fase 3)
• Por fim, e após a conclusão do trabalho de pintura, fezse a aplicação dos remates laterais da moldura. (Esquema 2, Fase 6)
A hipótese da construção do retábulo de forma unitária - moldura e pinturas – levanta-nos questões que se relacionam com os espaços de trabalho de António Nogueira e as dimensões que estes necessitariam de ter para abarcar obras tão grandes como esta. Teria o pintor escolhido executar a obra in loco ou possuiria uma oficina que lhe comportasse este tipo de trabalho? O facto de Nogueira ter deixado inscrito no verso das suas pinturas - nomeadamente nas que têm dimensões e formatos idênticos - inscrições com os temas correspondentes, revela-nos a sua preocupação em assinalar a disposição das obras no retábulo. Esta atitude pode encontrar justificação numa preparação prévia do conjunto ou então,após a execução deste,facilitar a terceiros sua montagem noutro local. Os oito painéis que compõem este políptico são construídos segundo as técnicas tradicionais desenvolvidas pelas oficinas flamengas desde o final do século XIV e, posteriormente, difundidas por toda a Europa2 em simultâneo com as rotas comerciais da madeira de carvalho importada da Flandres3. Estes encontram-se desbastados pelo verso, à meia espessura, apresentando na sua periferia um rebaixo de dezoito milímetros, que permite o seu encaixilhamento na calha da moldura. As vinte e duas pranchas que formam estes painéis são em carvalho do Báltico, com um corte entre o radial e o tangencial, sendo a sua distribuição: duas nas pinturas pequenas (Anunciação, Natividade,Adoração dos Reis Magos e Ressurreição), três nas pinturas médias (Transfiguração, Ascensão), quatro no Baptismo de Cristo e cinco no Pentecostes, mantendo-se rigorosamente a mesma quantidade em painéis idênticos quer em forma quer em dimensões (cf. Esquema. 1). Dispostas verticalmente, as pranchas estão unidas à junta viva com cola de origem animal e reforçadas com cavilhas cilíndricas, perpendiculares ao veio da madeira. A distri2 3 4 5 6
buição destas ao longo das juntas é de três no Baptismo de Cristo e no Pentecostes e de duas nas restantes pinturas. Não sendo em nenhum dos casos as originais, pois nos primeiros não existiam inicialmente cavilhas e nos segundos estas não se adaptam perfeitamente aos orifícios a que se destinam A sua constituição não é a mesma em todos os painéis, sendo em ferro forjado nos quatro mais pequenos e em pinho nos restantes.As originais teriam a forma cilíndrica e talvez fossem em carvalho, pois era costume usar, por questões de compatibilidade, madeira igual em todos os elementos constituintes de um suporte. A média calculada a partir das larguras das pranchas usadas nos suportes, é de duzentos e quarenta e um milímetros, valor que se afasta um pouco, por excesso, ao da estatística das larguras observadas em pranchas de outros painéis da mesma época, tanto flamengos como do norte da França4. No entanto, essa média já não é tão distante quando comparada com as medidas habituais de pranchas encontradas em obras atribuídas a escolas portuguesas5. Um valor excepcionalmente baixo, em relação à largura média observada, é o que se verifica na prancha que constitui a extremidade direita do Pentecostes - cinquenta milímetros – o qual é assimétrico em relação à prancha da extremidade oposta. Este desequilíbrio não é usual, sendo provável que se deva a um erro de cálculo na construção do suporte, já que não existem sinais quer materiais quer a nível de composição pictórica, que indiquem redimensionamento posterior. Neste conjunto de pinturas a espessura das pranchas varia entre treze a trinta milímetros e, de um modo geral, tende a diminuir do centro do painel para a periferia, até encontrar o rebaixo. O estudo dendrocronológico revela-nos que as datas mais prováveis para execução das pinturas que constituem o retábulo se situam entre 1549 e 1565 (Esquema 3)6. Em função destes valores, verificou-se que, por este processo, as datas mais prováveis para o início da execução das pinturas, são ligeiramente anteriores às datas atribuídas, pela investigação histórica, ao políptico (1565 - 1570). Para além da datação,o estudo dendrocronológico indicounos um dado interessante no que respeita à construção dos painéis, já anteriormente observado por Wadum7 noutras obras do norte da Europa: as pranchas periféricas – esquerda e direita – são sempre colocadas com a junta mais antiga para o lado de fora do painel, correspondendo aos anéis de crescimento mais antigos e, como tal, à secção de madeira mais estável. A repetição deste procedimento em todas as pinturas faz-nos crer que já existiriam, por essa altura, regras construtivas que tinham em conta a estabilidade e a preservação dos painéis.
VEROUGSTRAETE-MARCQ, e VAN SHOUTE (Ed) - «Art History and Laboratory: Scientific examination of easel paintings». p. 37. WADUM, Jørgen «Historical overview of panel-making techniques in the Northern Countries»; p. 151. VEROUGSTRAETE-MARCQ, Hélène;VAN SHOUTE, Roger (Ed.) - «Art History and Laboratory: sscientific examination of easel paintings»; p. 20. SILVEIRA, Cândida ; LEITE, Raul - «A Pintura de Gregório Lopes – alguns dados técnicos e de estado de conservação»., p. 230-231. Apesar de se ter procedido à medição dos anéis de todas as pranchas, não foi possível datar algumas delas, dado que não foram encontradas curvas de referência que coincidissem com as dos anéis de crescimento das mesmas. 7 WADUM, Jørgen - «Historical overview of panel-making techniques in the Northern Countries»; p. 154
PINTURA
ÀEsquema 3
Linhas unificadoras dos elementos composicionais do retábulo de Ferreira do Alentejo.
excepção da substituição das cavilhas (Foto 4), os suportes destas pinturas não sofreram grandes alterações com restauros antigos mantendo, por isso, grande
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Pormenor da junta de um dos painéis maiores, onde se pode observar uma cavilha de madeira de pinho e o respectivo furo
quantidade de informação, no que diz respeito à sua técnica de execução.Assim, apesar das perdas resultantes do ataque conjugado de fungos com insectos xilófagos (Foto 5), é possível observar ainda: as marcas de corte com serra; os relevos provocados pelo desbaste com enxó; as marcas em forma de "K8 (Foto 6), delineadas a goiva 9; as inscrições, a tinta preta (Esquema 4), que
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Pormenor do verso da Transfiguração, onde são visíveis as galerias dos insectos xilófagos e uma lacuna resultante de podridão cúbica
identificam os temas representados pela frente. Ainda dentro do estudo técnico da execução estrutural dos painéis é de referir, no verso da Anunciação10, uma marca particular, comum a ambas a pranchas que o constituem e que resulta do corte, com serra (Foto 7), de uma tábua principal à meia espessura. Com efeito, uma das pranchas é, morfologicamente, o negativo da outra, indicando que as duas metades são coincidentes e que resultaram desse mesmo corte (Foto 8). 6
Pormenor da marca de goiva em forma de K, existente no verso da maioria dos painéis.
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Gravura com dois madeireiros que cortam um tronco com um serrote de duas mãos (Roubo 1769: pl. 278).A inclinação da serra característica deste tipo de corte permitemnos relaciona-lo com as marcas que ficaram gravadas no verso das pranchas da
8 Em diferentes tamanhos e localizadas aleatoriamente, estas marcas são visíveis no verso de todos os painéis, existindo apenas uma em cada um deles. Dadas as características enunciadas calcula-se que estas possam ser marcas de identificação de marceneiro ou de um eventual controlo de qualidade efectuado aos painéis, anterior à actividade pictórica. De facto, incisões do mesmo género, a par de outras marcas mais elaboradas, cunhadas na madeira com ferros a quente ou a frio, são intencionalmente gravadas em inúmeros painéis flamengos, em carvalho, do século XVII, revelando a intenção da certificação de qualidade da madeira utilizada ou da autenticidade de alguns marceneiros (WADUM, Jørgen - «The Antwerp brand on paintings on panel»; p. 179) 9 Algumas semelhanças de traçado destes vincos cruzados são encontradas num tríptico incompleto, igualmente atribuído António Nogueira, também pintado sobre madeira de carvalho e guardado nas reservas do MNAA. Este é constituído por cinco painéis pintados e encaixilhados numa moldura de carvalho. Os números de inventário são: 1859, 1860, 1861, 1862, 1863 e 1864. 10 Esta pintura, ao contrário das restantes, não apresenta pelo verso marcas de marceneiro o que, segundo WADUM, Jørgen - «Historical overview of panel-making techniques in the Northern Countries». p. 162, é comum, uma vez que estas eram geralmente feitas após um desbaste com enxó, tarefa que nunca foi executada nesta obra.
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PINTURA Adoração
Anunciação
Presépio
Ressureição
Pentecostes
Reflectograma I.V. da inscrição
Reflectograma de I.V.
Reflectograma de I.V.
Reflectograma de I.V.
Reflectograma de I.V.
Reflectograma de I.V.
Inscrição
Reys
Encarnacao
nascym
to
Resorey
Esquema 4
delas o pintor aplicou uma camada relativamente espessa de preparação de cor acastanhada, à qual se seguiu outra, mais fina, de impressão (imprimitura) branca. A camada cromática encontra-se sobreposta a esta última, sendo constituída apenas por um ou dois estratos.As amostras com mais estratos correspondem a áreas de sobreposição de motivos, de desenho subjacente ou de intervenção11 (Foto 9). Desempenhando a sua habitual função niveladora do suporte, a camada de preparação tem, na globalidade destas pinturas, uma espessura que varia entre os 8
Aspecto do verso da Anunciação onde se salientam as marcas com inclinação característica do serrote de duas mãos
A pintura Os meios auxiliares de exame e análise (estratigráficos e reflectografia) e a observação detalhada ao longo do tratamento (à vista desarmada e com o auxilio de lupa binocular) foram as ferramentas que possibilitaram o conhecimento do modo como o pintor desenvolveu o seu trabalho criativo. No que diz respeito ao estudo das camadas, verificou-se que todas as pinturas apresentam, em geral, uma estratigrafia semelhante. Sobre o suporte de cada uma
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Corte estratigráfico do verde da colina na pintura Ressurreição de Cristo, em que as duas camadas superficiais correspondem a uma intervenção. 5 – castanha, 22mm, 4- - azul, 4mm, 3 – azul, 25mm, 2 – branca, 10mm, 1 – preparação.
11 Considere-se, como exemplo, a estratigrafia das pinturas Ressurreição de Cristo, Anunciação e Adoração dos Magos, nas quais se detectaram entre uma a duas camadas sobrejacentes à pintura original, resultantes de intervenções posteriores.
cinquenta e cinco e os duzentos e sessenta mm e é constituída à base de gesso aglutinado com uma mistura de cola de pele e óleo de linho12. O gesso pode surgir acompanhado por carvão vegetal (Pentecostes, Transfiguração e Presépio), por ocre (Anunciação), ou por ambos (Ressurreição de Cristo e Adoração dos Magos).A camada de impressão (imprimitura), aplicada em todas as pinturas, serviu como cor de base para a modelação formal e cromática.A sua composição consiste apenas em branco de chumbo ou numa mistura deste com outros pigmentos, como o carvão vegetal, o ocre, a azurite e a siena, em combinações de dois a quatro pigmentos, sendo as misturas aleatórias de pintura para pintura. Esta imprimitura tornou-se parte integrante da pintura, uma vez que a sua cor foi aproveitada tanto directa como indirectamente. O seu aproveitamento directo ocorreu quando a partir desta cor branca se construiu logo a forma, como aconteceu com a figura de Cristo que, através de um sombreado suave e esfumado (Foto 10), desenhou a sua anatomia. O mesmo aconteceu com os cenários - as grutas ou o chão - pintados com aguadas de
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Pormenor do Presépio. O facto de não ter sido guardado um espaço em branco para pintar o quadril do boi deu um tom bastante mais escuro à cor.As orelhas e o focinho do burro extravasam um pouco o espaço em branco a ele destinado, resultando um efeito semelhante ao que observamos nos arrependimentos.
figuras partiu, por sua vez, de um modelado transparente e monocromático, em cor castanho acinzentada, realizado sobre a imprimitura (Foto 12a,b,c). Sobre esse modelado eram aplicadas pinceladas de cor que efectivavam as formas, como acontece com as vestes das figuras14, ficando o mesmo, em alguns casos, a servir como área de sombra na pintura definitiva. Com efeito, em estratigrafias analisadas nas áreas dos mantos foi
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Pormenor da Ressurreição de Cristo.A anatomia de Cristo foi aqui conseguida com sfumattos escuros sobre a imprimitura branca.
cor castanha13 ou mesmo com os céus e as mandorlas, em que a cor branca serve como tom final das respectivas gradações azul esverdeada ou amarela, que os compõem. O aproveitamento indirecto da imprimitura ocorreu quando esta marca a sua presença mesmo totalmente coberta com cores, conferindo-lhes uma intensidade muito maior que a obtida se estas tivessem sido aplicadas imediatamente sobre a preparação. Por este motivo, na construção dos fundos escuros, foram reservadas áreas em branco destinadas às figuras que animam as representações (Foto 11). A execução destas
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Pormenores do Pentecostes e da Anunciação.As áreas de sombra dos tecidos exibem o modelado monocromático sobre o qual foram acrescentadas as camadas de cor que representam as áreas de luz.
12 A natureza dos aglutinantes empregues na elaboração das várias pinturas do políptico foi estudada recorrendo à espectroscopia de infravermelho com transformada de Fourier (FTIR), no modo de transmissão e em corte fino. Os resultados apresentados provêm da comparação dos espectros das amostras estudadas com espectros de referência. Cfr. DERRICK, Michele R.; STULIK, Dusan; LANDRY, James M.; Infrared spectroscopy in conservation science; Getty Conservation Institute; 1999. 13 As estratigrafias correspondentes à gruta, aos animais, ao céu e aos cabelos das figuras apresentam, nos pontos analisados, apenas um estrato pictórico acima da imprimitura, com excepção da amostra analisada na pintura Adoração dos Magos em que, no azul do céu, surgem dois, correspondendo o segundo a uma intervenção. 14 Na Anunciação, Adoração dos Magos e Presépio observou-se, tanto nos mantos verdes como nos vermelhos das figuras principais, a existência de dois ou três estratos pictóricos aplicados sobre a camada de impressão (cf. Foto 13).
detectada essa camada castanho acinzentada, subjacente aos restantes estratos cromáticos (Foto 13), não se verificando porém a sua existência nas carnações, o que indica que estas foram construídas directamente, com
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Corte estratigráfico do vermelho do manto de S.José na pintura Presépio. 6 – verniz, 11mm, 5 – amarela, 4 – vermelha, 19mm, 3 – castanha, 20mm, 2 – branca, 18mm, 1 – preparação.
cores espessas e claras, sobre a imprimitura branca. Sob os mantos azuis foi utilizada uma camada (ou modelado) de cor avermelhada, situada entre a imprimitura de cor branca e a cor final (Foto 14). O desenho preparatório foi aplicado sobre essa imprimitura, como se pode comprovar pela amostra
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Pormenor do Pentecostes. É aqui visível a camada de cor vermelha (bem diferente do castanho da preparação) nas áreas de gasto no azul.
recolhida no degrau da pintura da Anunciação (Foto 15), onde se detectaram, sobre a camada de impressão, vestígios de uma fina camada de carvão animal. Este, agora subjacente, foi observado com auxílio de reflectografia de I.V.15 sendo apenas visível em algumas partes da pintura - essencialmente nos elementos de arquitectura e nas figuras que mais se destacam em cada tema já que antecede a camada de modelado escuro, por sua vez coberta com tintas espessas. A forma esquemática e linear com que o desenho subjacente foi realizado, bem como o número reduzido de
alterações deste, relativamente à pintura final, parecem indicar que o mesmo teria sido utilizado de forma expedita para delinear o desenvolvimento da composição,a partir da definição dos elementos centrais de cada painel. Tal como mostra o mosaico reflectográfico relativo ao anjo do painel Anunciação, o desenho subjacente define claramente o contorno das figuras, sem nunca utilizar linhas paralelas para proceder à marcação das zonas de sombra. A aparência suave e contínua das linhas presentes no desenho, associadas à variação da sua espessura e ao carácter fluído que apresentam, quando observadas com a lupa binocular, em pontos onde a camada cromática se tornou transparente, apontam para a Mosaico em reflectografia de Infra-Vermelho 15 utilização de um meio do Anjo do painel Anunciação. líquido, aplicado essencialmente com pincel.Todavia, nos cenários de interior, as linhas rectas que definem os pavimentos e as arquitecturas foram previamente marcadas por incisão e só depois pintadas. As alterações formais encontradas com este método de exame no conjunto dos painéis são, na sua maioria, pequenos ajustes de posicionamento, que surgem tanto ao nível do desenho subjacente (caso de um dos pés de S. José no painel do Presépio e da pomba do Espírito Santo no painel da Anunciação (Foto 16a, b), como ao nível da camada cromática (pés das figuras situadas nos limites esquerdo e direito da pintura Pentecostes (Foto 17). Uma excepção à regra são as ovais desenhadas a grafite na parte inferior do Pentecostes e que não surgem pintadas na composição final da pintura, estando apenas cobertas
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a) Espírito Santo presente na mandorla do painel Anunciação, à vista desarmada; b) Reflectografia de Infra-Vermelho do Espírito Santo do mesmo painel
15 A reflectografia de I.V. foi realizada com uma câmara Hamamatsu C2400-03C, equipada com um tubo vidicon munido de um alvo de PbO-PbS (Hamamatsu N2606-11).A sensibilidade espectral limite deste equipamento é de 2200nm, tendo sido utilizado um filtro passa-alto de 1000 nm.
pelas duas camadas de verniz escurecido que cobrem as pinturas. Apesar do seu significado ser ainda desconhecido, as mesmas aparecem numa Anunciação,
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Mosaico reflectográfico da área inferior do painel Pentecostes.
pertencente a uma colecção particular, marcando a sombra de um vaso em forma de urna. Os estratos pictóricos analisados foram obtidos com uma mistura de pigmentos mais ou menos complexa, sendo pouco frequente a utilização de cores puras (Esquema 5). Os pigmentos detectados na camada cromática original16 são basicamente os mesmos e a sua aplicação nas diferentes pinturas que compõem o políptico encontra-se assinalada no Esquema 6. No que diz respeito aos aglutinantes, verificou-se que estes não são os mesmos em todos os estratos. Nos azuis
PINTURA
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16 A identificação dos pigmentos presentes nas pinturas estudadas foi realizada, quer por microscopia óptica, a partir das suas propriedades físicas, quer por análise microquímica, tendo em conta os resultados obtidos por espectrometria de fluorescência de raios X.
PINTURA
detectou-se branco de ovo, enquanto nos brancos e castanhos, para além deste, encontrou-se óleo de linho. Por sua vez, nos estratos rosas e vermelhos, empregouse uma mistura de óleo de linho e cola de pele ou apenas branco de ovo. Os painéis que compõem este políptico têm uma pintura que é, de certo modo, compartimentada, uma vez que a sobreposição de planos é rara, estando as mandorlas apenas encostadas aos céus ou às arquitecturas, tal como as figuras umas em relação às outras ou aos fundos que as rodeiam. No Presépio (no capitel onde assentam as palhinhas em que o Menino se encontra deitado) e no Pentecostes (no fundo escuro do qual surge o fogo sagrado) foram detectadas impressões digitais do pintor (Foto 18), revelando que este, além dos pincéis, também recorria aos dedos para a modelação. A aplicação de folha de ouro sobre mordente foi restringida à representação dos resplendores e da Estrela
do Oriente, tendo as ofertas e coroas dos reis magos, bem como o ornato do ceptro do Anjo Anunciador, sido representadas em castanho e amarelo para dar a ilusão metálica do ouro (Foto 19).
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Pormenor do Presépio. Marcas de impressões digitais situadas na voluta do capitel.
Caracterização da técnica pictórica
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Pormenor da Adoração dos Magos.As coroas, bem como as oferendas, foram pintados com pinceladas de amarelo sobre castanho para dar a ilusão de ouro.
A presença de glacis, de cor vermelha, foi detectada somente na pintura da Anunciação – na indumentária do anjo (vestígio) (Foto 20a) e na manga da Virgem (intacto) (Foto 20b), constituindo uma solução esteticamente agradável de sombra vermelha,nestas vestes de cor branca.
20
Pormenores da Anunciação, onde é bem visível o glacis de cor vermelha .
17 As grutas são representadas na forma de abóbadas, constituídas por blocos de pedra.
Nesta obra, o pintor recorreu a camadas cromáticas muito finas e lisas,sendo quase imperceptível o relevo das pinceladas. As figuras foram pintadas de forma muito solta e espontânea, sendo reservada maior atenção e cuidado para as mais importantes. A preocupação principal é a representação em si mesma e, por isso, não são visíveis grandes sinais de caracterização individual, tanto no que respeita aos rostos como às vestes. Esta falta de individualização estende-se das figuras aos espaços que as envolvem, estando estes despidos de pormenores que lhes atribuam qualquer tipo de temporalidade, assemelhando-se mais a cenários de uma peça de teatro. Esta impessoalidade das figuras e ausência de pormenores na representação despe-a de todas as distracções que, de uma forma ou de outra, pudessem distanciar o espectador da mensagem bíblica que o episódio encerra. Por outro lado, a articulação das várias figuras no cenário reforça essa mesma representação, num jogo inteligente de linhas de força, simetria e equilíbrio das formas e cores, dando-lhe consistência e unidade. Para além da característica cor azulada das paisagens de fundo, usada na pintura flamenga para acentuar a sensação de profundidade, o pintor recorreu também à solução curiosa de representar as figuras mais afastadas num monocromatismo que varia entre o vermelho e o castanho (Foto 21). As oito representações que compõem o políptico tanto ocorrem em espaços interiores (grutas17 ou arquitecturas) como exteriores, existindo, exactamente, quatro de cada tipo. Nos exteriores, o cenário que envolve as figuras foi, de modo geral, pintado numa pincelada solta e espontânea. Os interiores, já mais geométricos, obedecem a linhas rigorosas e precisas, tanto na construção em perspectiva do pavimento de mosaico, como no
21
Pormenor da Ascensão de Cristo.A perspectiva é acentuada pelo tratamento cromático dado às figuras.
52 53
tratamento das arquitecturas. O tratamento plástico dos céus é sóbrio e a ausência de nuvens dá lugar a uma gradação cromática (Foto 22), que também se verifica na construção das mandorlas que envolvem Cristo ou o Espírito Santo18, imprimindo um interessante ritmo cromático. Em alguns casos, a construção dos espaços foi feita com uma aguada escura e transparente (Foto 23), sobre uma superfície clara, conseguida com o desembaraço que as aproxima do trabalho de um aguarelista.
A distribuição cromática Nos espaços interiores, as arquitecturas são representadas em cor cinzenta que conforme as áreas de luz ou sombra se torna clara ou escura, sendo os pavimentos pintados em branco, com riscos negros a definir os mosaicos. Já nas grutas predominam o castanho escuro, nas áreas de luz, e o negro na penumbra. Nas representações em exteriores,o céu desce de um azul esverdeado para um branco, num degradê suave e perfeito, e os cenários que envolvem as figuras são de um castanho transparente, pintado sobre uma superfície branca. As vestes das personagens que integram as representações funcionam quase como fronteiras das manchas cromáticas que, dispostas de forma equilibrada, conferem ritmo e riqueza às composições. A variedade de cores vai desde os azuis, passando por vermelhos e amarelos, até verdes e vários matizes de branco. O vermelho é sempre presente no manto de José e o azul no da Virgem, nas restantes figuras as cores servem apenas o equilíbrio da composição. Nas figuras masculinas as carnações são avermelhadas, adquirindo, nas femininas e nas representações de Cristo em aparição, um tom pálido. Nesta ultima figuração Jesus surge envolvido por uma mandorla que evolui, do interior para o exterior, numa gradação de amarelo limão para branco quente. A carnação, quase branca, associada às cores da mandorla, produz a sensação de que a luz parte do seu corpo e se propaga, iluminando toda a composição. Diagnóstico do estado de conservação
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23
Pormenor da Ressurreição de Cristo, onde são visíveis as gradações cromáticas do céu e da mandorla.
Pormenor do Presépio. O muro foi pintado com uma "aguada" de cor castanha sobre a imprimitura branca
Os painéis e a moldura Os painéis que compõem o Políptico de Ferreira do Alentejo apresentavam, tanto a nível estrutural como pictórico, patologias muito semelhantes, o que é coerente, já que estiveram sujeitos às mesmas condições ambiente e ao mesmo tipo de intervenção humana. Os painéis de maior área (Pentecostes, Baptismo, Ascensão e Transfiguração) apresentavam empenos em forma de aduela19 e em meia cana (cf. Foto 8) Apesar de hoje ser apenas residual, a cola de origem animal utilizada nas juntas das pranchas, tanto na sua construção como em restauros posteriores, acentuou a deterioração nesta área do suporte (Foto 24), já que se tornou pólo de atracção de ataques fúngicos que, por sua vez, favoreceram a acção dos insectos xilófagos. Com efeito, o políptico apresentava no seu verso evidências de degradação biológica, provocada por várias colónias de fungos. A sua identificação revelou a presença de várias espécies, de acordo com os resultados apresentados no Esquema 7, sendo, no entanto, todos fungos Deutero-
18 Aqui, as mandorlas envolvem a pomba do Espírito Santo ou então surgem em seu lugar. 19 Este tipo de empeno é característico em painéis de madeira pintados de um só lado, pois somente esse está impermeabilizado pela camada cromática, conferindo à prancha um comportamento higrométrico diferente entre a face frontal e a oposta «The care of paintings: the care of wood panels = Le traitement des peintures: le traitement des supports en bois» Museum. Paris.Vol. 8, n.º 3(1955); p. 148.
terem sido sujeitos à aplicação de reforços adicionais20 pelo verso, em intervenções posteriores, explica-se pela considerável espessura das pranchas o que permitiu sempre uma colagem suficientemente eficaz das juntas.
A pintura
24
Pormenor de uma face de junta onde se observa o acentuado ataque de insecto xilófago.
micetes do subgrupo hifomicetes que vivem sobre a madeira. Este ataque biológico, registado nos suportes das pinturas, estendeu-se também à moldura, incidindo sobretudo nos montantes da base e do flanco curvo superior esquerdo.
Nº Amostra
Descrição
1
Fungo amarelo
2
Fungo branco
5
Fungo branco
3
Material de aspecto terroso
4
Fungo verde
9
Fungo preto e verde escuro
A leitura cromática e formal destas pinturas estava comprometida, uma vez que foram executados repintes totais ou pontuais sobre a pintura original e existiam duas camadas de verniz protector, ambas escurecidas devido à sua oxidação. Sobre estas intervenções encontravam-se depositados salpicos de cera (Foto 25),escorrências de tinta vermelha (Foto 26) e manchas de cor esbranquiçada (Foto 27), o que dificultava ainda mais a visualização das obras. Apesar da identificação química ter apontado para um verniz de natureza oleo-resinosa21 verificou-se, durante a sua remoção, que se tratavam de dois produtos Fungos / Outros
Provavelmente do género Biospora sp.
Restos de coleópteros, provavelmente caruncho da espécie Anobium punctatum DeGeer
São fungos semelhantes mas não foi possível identificar o género
6
Fungo com ramificações
7
Fungo cor de laranja
8
Fungo esverdeado escuro
Fungos da espécie
10
Fungo castanho
Cladosporium sp.
Obs. Esquema 7
Todos os fungos são Deuteromicetes do subgrupo hifomicetes que vivem sobre madeira
Fungos responsáveis pela degradação biológica.
Tal como já foi referido no capítulo Os painéis e a moldura, p. 44, as pranchas estão unidas por cavilhas que não são originais. As cavilhas em ferro, das pinturas pequenas, têm secção quadrada e as de pinho, que se encontram nas restantes, são cilíndricas, com dez milímetros de diâmetro e afunilando do centro para as extremidades (cf. Foto 4). O facto destes painéis nunca
diferentes, em que o primeiro se dissolvia em misturas específicas para resinas naturais, enquanto o segundo, reagia somente a misturas que tivessem acção sobre óleos. O facto de ambos os vernizes cobrirem, além do original, áreas de camada pictórica em falta22 , confirmou a suposição de que nenhuma destas protecções era contemporânea à execução da pintura. Igualmente de
20 Adaptações em dupla cauda de andorinha eram frequentemente usadas em intervenções de restauro antigas, como elementos de reforço estrutural das juntas.Vejam, como exemplo, alguns painéis de Gregório Lopes. Cfr. SILVEIRA, Cândida ; LEITE, Raul - «A Pintura de Gregório Lopes – alguns dados técnicos e de estado de conservação»; p. 229. 21 Os resultados apontavam para um verniz oleoresinoso, provavelmente copal. 22 Neste texto é empregue o termo "falta" para todas as perdas de camada pictórica e/ou camada de preparação, reservando-se a designação "lacuna" para os desaparecimentos de material de suporte.
54 55
natureza oleosa eram os repintes, que cobriam áreas em que a pintura original estava gasta ou com algumas faltas, variando a sua extensão em função dos danos existentes, podendo ser totais ou pontuais. Desta forma, as áreas de céu e as mandorlas, bem como algumas peças de indumentária (nomeadamente os mantos), estavam totalmente cobertas com nova pintura, tendo sido aplicados repintes pontuais (Foto 28) nas figuras, ou nos cenários que as envolvem, normalmente em cores escuras, para marcação de sombras. As carnações, Cera de vela depositada na superfície 25 apresentando-se em bom da pintura, pormenor do Pentecostes. estado de conservação, não foram sujeitas a estas intervenções de repinte, estando cobertas somente pelas duas camadas de verniz final. Embora as cores utilizadas nestes repintes estivessem de acordo com o original o mesmo não ocorria com a técnica, já que sobre uma pintura lisa, de boa qualidade e rica em gradações suaves, foi aplicada outra, de Escorrência de tinta vermelha sobre o 26 Anjo da Anunciação, pormenor. pinceladas espessas, que, além de grosseira no modelado, escureceu bastante ao envelhecer23. Os materiais utilizados nestas intervenções são de qualidade inferior ao original, já que os pigmentos têm uma granulometria maior e contêm muitas impurezas, imprimindo aos repintes uma textura, visível mesmo à Manchas esbranquiçadas resultantes de vista desarmada. Estes da27 excrementos de pássaros ou morcegos, dos, referentes à forma de pormenor do Presépio. pintar e aos materiais utilizados pelo pintor que inter-vencionou posteriormente na obra, revelam alguma ignorância em relação a um conhecimento adquirido por gerações anteriores. O recurso à radiação U.V. não foi conclusivo na detecção dos repintes, provavelmente devido à sua idade ou natureza, tendo sido mais objectivos os dados obtidos à vista desarmada ou com lupa binocular. Assim, após a remoção das duas camadas de verniz, foi possível
28
O rosto e o abdómen do soldado que guarda o túmulo de Cristo encontravam-se repintados, pormenor da Ressurreição.
identificar, por estes dois últimos processos, os repintes quer pontuais, devido ao seu escurecimento acentuado em relação ao original, quer totais, como as mandorlas e céus, por exibirem as cores originais nas margens das pinturas, indicando que as intervenções ocorreram com estas já colocadas na moldura. A análise às áreas de repinte revelou que nas camadas azuis foi utilizado o pigmento azul da Prússia (Foto 29) e que nas brancas se recorreu aos pigmentos branco de chumbo e azurite, aglutinados com branco de ovo.Apesar de não terem sido encontrados registos destas intervenções, concluiu-se que estas não devem ser anteriores ao séc. XVIII24, pois o azul da Prússia25 começou a ser usado apenas a partir dessa altura. O pigmento esmalte detectado unicamente na pintura
6 5 4 3 2 1
29
Corte estratigráfico do manto de S.José na pintura Presépio.A camada nº 6 contém Azul da Prússia na sua constituição. 6 – azul, ::::::::::::: interv. 5 – azul, 4 – orgânica , 3 – rosada, 2 – branca, 1 – preparação.
23 O facto dos repintes serem normalmente mais escuros que as cores originais, deve-se a que a tinta de óleo escurece ao envelhecer, condicionante que, de modo geral, não era tida em conta por quem intervencionava posteriormente nas obras, tendendo a aproximar as cores o mais possível ao que observava.
Anunciação, corresponde também a uma área de intervenção, ainda que o início de aplicação deste pigmento (séc. XVI)26 coincida com a data de execução do políptico. Nesta pintura é de seguir um aspecto particular, a cortina verde que se situa acima da Virgem estava totalmente tapada por uma espessa camada de verniz castanhoescuro, identificada como goma laca (Foto 30). Esta situação encontrava-se também sobre a túnica de uma das figuras do Pentecostes, pintada com as mesmas cores da cortina. A descoberta de repintes localizados entre esta camada de verniz e a cor verde afasta a hipótese de se tratar de uma velatura original.
O ataque de insecto xilófago ao suporte, bem como o apodrecimento de partes deste, tiveram repercussões na camada pictórica, pois alguns dos orifícios de saída situavam-se na frente da pintura e verificou-se que a
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30
Janela de limpeza onde é visível a cortina subjacente à camada de cor castanha, pormenor da Anunciação.
São ainda de destacar duas observações feitas durante o tratamento efectuado a estas pinturas, mais propriamente após a remoção dos repintes, por se considerarem parte integrante do diagnóstico do estado de conservação: verificou-se que algumas das intervenções cobriam faltas antigas, resultantes de destacamentos de tinta ou mesmo de orifícios de insectos xilófagos, preenchidas com uma massa de cor branca acastanhada que, apesar de se encontrar em bom estado de conservação, excedia os limites das mesmas, sobrepondo a pintura original; as áreas de cor azul original, quando postas a descoberto, exibiam salpicos de um verniz acastanhado (Foto 31), que se identificou como sendo goma-arábica, não se encontrando, de momento, explicação para este tipo de dano, nem porque se restringe a essa cor.
Janela de limpeza onde são visíveis os salpicos de goma-arábica sobre o azul original do manto da Virgem, pormenor da Anunciação.
acção da água e dos fungos provocou perda de coesão em certas áreas do estrato pictórico original, nomeadamente na parte superior do Baptismo de Cristo, conferindo-lhe um aspecto gasto. Nas juntas das pranchas do Pentecostes e da Transfiguração a destruição do suporte foi suficientemente considerável para privar, quase na totalidade, a camada pictórica do seu substrato, comportando assim um elevado risco de perda da mesma (Foto 32). À excepção do Pentecostes, que tem levantamentos pontuais em forma de ampola, a aderência da camada pictórica ao suporte nestas pinturas é, de modo geral, bastante boa, sendo mais frequentes as faltas provocadas
32
Perda considerável de camada pictórica ao longo da junta, resultante da destruição do suporte, pormenor da Transfiguração.
24 ARTISTS’ PIGMENTS - A Handbook of their history and characteristics; Ed. lit. Barbara H Berrie; Elisabeth West Fitzhugh); National Gallery of Art; Oxford University Press, 1997;Vol. 3. 25 Pigmento inventado por volta de 1700 em Berlim, começando a ser conhecido um pouco por toda a Europa a partir de 1750. Obtido sinteticamente, trata-se de um complexo de hexacianoferrato de ferro hidratado, Fe4[ Fe(Cn)6] 3. GETTENS, R. J., e STOUT, G. L. - Painting Materials: A Short Encyclopaedia, New York: Dover Publications, 1996; ARTISTS’PIGMENTS: A handbook of their history and characteristics, vol. 3, p. 149; ARTISTS’PIGMENTS: A handbook of their history and characteristics, vol. 2, p.191. 26 ARTISTS’PIGMENTS: A handbook of their history and characteristics 1993.Vol. 2.
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pelo ataque de insectos xilófagos ou pela acção humana, do que as resultantes de destacamentos espontâneos. A falta mais significativa, resultante de destacamento, traduziu-se na perda de cerca de trinta por cento da área da cabeça de umas das figuras secundárias que compõem a Transfiguração. Para além dos riscos e sulcos de impacto, distribuídos um pouco por todas as pinturas, provavelmente associados ao manuseamento negligente da obra, são ainda de salientar, no que se refere aos danos provocados por acção humana, as incisões de vandalismo nos guardas27 que vigiam o túmulo de Cristo, na Ressurreição, e as faltas, em forma de escorrência, que se verificavam na Anunciação. Estas escorrências, que tinham inicio na junta de união de duas das pranchas e evoluíam pela superfície da pintura, poderão ter provindo de uma colagem a grude (Foto 33), ocorrida numa intervenção de restauro, que, ao retrair durante a secagem, terá arrastado consigo a camada pictórica.
33
O suporte Para a colagem satisfatória das pranchas foi necessário separá-las, para remover os elementos metálicos em corrosão e os vestígios de adesivo ainda existentes, para que as juntas unissem perfeitamente. De modo geral, a separação das pranchas que constituem os painéis, não foi complicada, já que o adesivo utilizado para as unir tinha perdido a sua eficácia e as áreas correspondentes às juntas apresentavam acentuado ataque biológico. No entanto, alguns dos elementos metálicos inseridos nas furações das juntas dos quatro painéis mais pequenos estavam em avançado estado de corrosão (Foto 34), o que dificultou a sua separação. Alguns fragmentos incrustados tiveram que ser removidos com auxílio de uma broca metálica e outras pontas abrasivas, adaptadas a um berbequim de precisão. Como tratamento preventivo e curativo da madeira procedeu-se à desinfestação dos painéis e da moldura por via líquida28, tanto pela frente, por injecção com seringa nos orifícios de Pormenor da junta de um dos 34 painéis pequenos, onde se observa saída dos insectos xilófagos, uma cavilha de ferro em estado como pelo verso, através de avançado de corrosão uma trincha (Foto 35). A nova colagem das juntas foi realizada com adesivo de PVAC (M30®) que garante durabilidade, resistência à humidade e aos fungos. Nas áreas irremediavelmente
Faltas lineares de camada cromática resultantes de uma colagem descuidada de duas pranchas, pormenor da Anunciação.
Tratamento efectuado Fixação da camada pictórica A fixação da camada pictórica foi tida como prioritária, pois permitiu que se realizassem de forma mais segura os passos subsequentes do tratamento. A fixação foi executada pontualmente, com cola de origem animal, conjugando, sob a protecção de uma folha de papel japonês, os parâmetros humidade-calor-pressão. A escolha deste adesivo, como fixante da camada pictórica ao suporte, deveu-se ao facto de se aproximar bastante do utilizado originalmente na encolagem da pintura, o que assegura boa compatibilidade entre os dois materiais. Para reduzir consideravelmente o risco de um ataque fúngico posterior foi-lhe adicionado, antes da utilização, um desinfestante (Panacid Sodium Solucion®).
35
Aspecto da desinfestação dos suportes pelo verso dos painéis, por pincelagem com insecticida liquido
danificadas foi embutida madeira de castanho29 (Foto 36) (Cf. Esquema 1), para possibilitar uma colagem homogénea ao longo das juntas e boa estabilidade material dos suportes.A colagem destes preenchimentos foi realizada, igualmente, com M30®, pelos motivos atrás enunciados.
27 Este tipo de agressão a figuras consideradas odiosas no contexto religioso, como demónios e algozes, é comum em representações de temas sagrados. 28 A desinfestação das madeiras teve finalidade preventiva e curativa, sendo realizada, por via líquida, com insecticida Cuprinol ® Anti-Caruncho com aditivo anti-fúngico Panacide® a 0,1 %. A aplicação consistiu em várias demãos – intervaladas entre 2 dias – e, com mais insistência, sobre as áreas mais deterioradas pelos insectos xilófagos e pelos fungos. 29 Foi utilizado o castanho nacional por possuir um comportamento mecânico semelhante ao do carvalho do Báltico, tendo, no entanto, uma dureza ligeiramente inferior, o que o torna adequado porque não interfere com as movimentações sazonais daquele.
Nas restantes áreas do suporte em que a utilização de um consolidante era suficiente para assegurar a estabilidade física, foi impregnado um copolímero de metacrilato de metilo e acrilato de etilo (Paraloid® B72) diluída a 6 % em xileno. Foram feitas duas aplicações, estabelecendo uma coerência em relação à natureza do Pormenor da reconstituição de uma 36 produto aplicado como acajunta, onde se colaram peças alinhadas em madeira de castanho.As bamento pela frente das pingalerias abertas pelo insecto foram previamente preenchidas com uma turas, o qual sendo o mesmo massa à base de madeira triturada. satisfaz assim o princípio da utilização mínima de materiais numa intervenção.
limpeza, pois, sendo menor a penetração, a actuação do solvente centra-se na superfície. Assim, é possível
Fase de limpeza A remoção dos vernizes alterados e dos repintes (Foto 37a,b) foi uma fase crucial e delicada, talvez a mais relevante nestas pinturas, uma vez que estes, apesar de 38
A 37
B
Neste pormenor da Transfiguração é visível uma janela de remoção de verniz a) e outra com o levantamento dos repintes totais que cobriam a mandorla e o céu b).
não contribuírem, neste momento, para o agravamento do estado de conservação da obra, retiravam-lhe uma grande parte da leitura original, comprometendo assim o seu estudo, como documento histórico da obra de António Nogueira. A análise científica dos materiais e o conhecimento de História da Arte foram indispensáveis para a identificação e remoção dos elementos acrescentados à obra original. O primeiro, pelas informações fornecidas a partir da recolha e identificação dos pigmentos, estratos pictóricos e vernizes, assim como na escolha e preparação dos produtos utilizados. O segundo pela definição de aspectos constantes nas várias obras deste pintor. Na remoção generalizada das duas camadas de verniz alterado (Foto 38),bem como,em particular,da goma laca que cobre a cortina da Anunciação, foram utilizadas substâncias gelificadas, para controlar melhor esta fase de
Janela de limpeza, pormenor do Pentecostes.
incorporar solventes mais fortes, se necessário, mas em concentrações pequenas, aumentando o tempo de aplicação e utilizando detergentes e soluções tampão 58 para melhor optimização. A toxicidade, neste caso, é menor, pois mesmo os solventes mais voláteis ficam retidos mais tempo no gel. A primeira camada de verniz era sensível a um resin soap30, solução aquosa em cuja composição se destaca o acido abiético (ácido de resina natural) como princípio activo na dissolução de vernizes à base resinas naturais. A segunda camada, provavelmente de natureza oleosa, só reagiu a uma solução de amoníaco em água desionizada, gelificada em hidroximetilcelulose. Na parte inferior do Pentecostes manteve-se a segunda camada de verniz, na área que corresponde às ovais referidas no capítulo A pintura, p.50, pois após várias tentativas31, verificou-se que a sua remoção era perigosa para a permanência deste registo. Apesar dos repintes que cobriam as pinturas deste retábulo serem também de natureza oleosa, não eram sensíveis a qualquer dos produtos de limpeza referidos, pelo que foi investigada outra solução para este caso particular. Assim, após efectuarem-se vários testes concluiu-se que a combinação de um processo químico com um mecânico constituía o meio mais eficaz e seguro, para a remoção destes repintes. Deste modo, foi utilizado um gel, à base de tensoativos aniónicos e não aniónicos,
30 Com a seguinte composição: para 100ml de água, 3 gr de ácido abiético, 5 ml de trietanolamina, 1,5 gr de Klucel, 1% Lissapol N e 3% de álcool benzílico. 31 Além de tentativas de remoção química e de remoção mecânica, foi também testada a remoção a laser que, tal como as anteriores, se revelou inadequada, para este caso em particular.
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em emulsão aquosa, contendo produtos químicos inorgânicos e agentes estabilizadores, com a função de aligeirar a camada de repinte para remover, em seguida, o restante que estava em contacto com a camada pictórica original, com auxílio de bisturi. Neste processo de limpeza e procurando salvaguardar-se sempre a integridade do original, foram sujeitos a remoção os repintes claramente identificados como tal e que impediam a leitura da obra do autor. As massas de preenchimento antigas foram mantidas, na sua maioria, pois encontram-se em bom estado de conservação, tendo sido eliminados, no entanto, os excessos que cobriam a pintura original. Dado que estas não eram facilmente solubilizadas, foi necessário nivelalas mecanicamente, com auxílio de bisturi. Idêntica dificuldade de solubilização ocorreu nos salpicos de goma-arábica que manchavam os azuis, pelo que se recorreu, naqueles que não tinham penetrado na camada pictórica, ao mesmo processo de remoção. A integração A integração cromática teve início com o preenchimento das faltas com uma massa acrílica e vinílica (Modostuc), de cor branca e de estabilidade reconhecida, removível com água, etanol ou acetona, entre outros. Esta constituiu o substrato para a integração cromática, sendo aplicada ao nível da camada pictórica circundante. A integração cromática foi dividida em duas fases (Foto 39a,b), a primeira antes da aplicação do verniz de protecção e segunda depois: - A primeira, chamada de base (ou bases), consistiu na aplicação, por intermédio de têmperas aquosas, de uma cor de base, normalmente idêntica à que pretendia integrar, mas de tom mais claro, sobre a qual se realizaria então o retoque de finalização. - A segunda, chamada de finalização, foi realizada com pigmentos em pó, aglutinados em copolímero de metacrilato de metilo e acrilato de etilo (Paraloid B72®). Esta última fase processou-se sob a forma de tratteggio curto, por se adequar melhor à tipologia das pinturas,não interferindo com a sua leitura global e permitindo, a uma
distância próxima, a sua fácil distinção em relação ao original. Na protecção destas pinturas foi empregue a mesma resina utilizada como aglutinante na fase de finalização, uma vez que esta se adequa bem a ambos os fins, satisfazendo assim o princípio da utilização mínima de materiais numa intervenção. Apesar da utilização da Paraloid B72®, como verniz de protecção, ser uma operação que comporta um certo grau de toxicidade, a sua escolha deveu-se ao facto de ter sido já bastante estudada, considerando-se aquela que preenche, de forma mais equilibrada, os requisitos de estabilidade-reversibilidade. A aplicação da camada de protecção ocorreu antes da fase de finalização, por um lado para a facilitar, pois permitiu uma maior saturação das cores a integrar, e, por outro lado, para evitar que o tratteggio "escorresse", pois a resina (e solvente) utilizada nas duas tarefas é a mesma. CONDIÇÕES DE EXPOSIÇÃO DO POLÍPTICO DE ANTÓNIO NOGUEIRA NA IGREJA DA MISERICÓRDIA DE FERREIRA DO ALENTEJO O Políptico de Ferreira do Alentejo deu entrada no Instituto Português de Conservação e Restauro, a 10 de Outubro de 2000. As patologias que então apresentava, designadamente a presença de fungos e de podridão cúbica (que tornou a madeira do tardoz pulverulenta e facilmente desagregável) eram indícios que permitiam antever as condições a que esteve exposto. O desenvolvimento de fungos é um tipo de deterioração normalmente associado a elevados teores de humidade. A acrescer a esta alteração, o apodrecimento da madeira pressupõe que o suporte da obra tenha estado em contacto directo com a água, muito provavelmente devido a condensações ou infiltrações no edifício. O políptico esteve suspenso na parede lateral esquerda da nave da igreja, na parte superior, inicialmente a partir de uma cavilha metálica cravada na alvenaria e, posteriormente, embutido nesta, fixo por oito cavilhas metálicas. O facto de se encontrar encaixado na parede contribuiu para agravar o seu estado de conservação, uma vez que criou aí um microclima propício à proliferação de microorganismos, promovendo a sua deterioração. Visitas efectuadas à Igreja da Misericórdia de Ferreira do Alentejo, vieram confirmar estas hipóteses (Foto 40). O imóvel apresenta uma série de patologias detectáveis à vista desarmada que se poderão associar à existência de problemas estruturais, nomeadamente de estanquidade (Foto 41), que deram origem a infiltrações (sendo
39
Integração cromática num dos discípulos no Pentecostes, pormenor.
da presença de água tanto na superfície exterior da parede, como no seu interior (Foto 42). A determinação do teor de água das paredes com a auxílio de um Protimeter, nos paramentos interior e exterior da igreja correspondentes ao nicho onde se encontrava exposto o retábulo, confirmou o observado, tendo sido detectados teores de água muito elevados em qualquer das medições efectuadas (cerca de oito medições ao longo do paramento interior, cobrindo a área sem reboco correspondente ao interior do nicho, e cerca de três no exterior).
40
Igreja da Misericórdia de Ferreira do Alentejo, vista frontal.
de assinalar, por exemplo, o estado degradado da cobertura). Apesar dos paramentos interiores não se apresentarem húmidos ao toque,o aparecimento de manchas de humidade, fungos (bolores) e eflorescências generalizadas na parede onde assentava o políptico, localizadas nalguns pontos da abóbada e tecto,e mesmo de manchas certamente associadas a algas e líquenes (muito extensas no exterior), são sintomas
41
Igreja da Misericórdia de Ferreira do Alentejo, vista lateral esquerda, pormenor correspondendo à área onde, no interior, se encontrava exposto o retábulo
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Pormenores da parede lateral esquerda da nave da igreja, onde se encontrava exposto o políptico (no nicho sem reboco).
Na determinação das condições termohigrométricas do ar, por intermédio de um psicrómetro, verificou-se que a humidade relativa no exterior era cerca de 82% (temperatura de 16ºC) e, no interior da igreja, cerca de 90% (temperatura de 12ºC). Tanto quanto nos foi dado observar a cobertura da igreja foi revestida com tela na zona correspondente à entrada. No entanto, na nave central (que abrange o nicho do políptico) e no altar-mor, a cobertura em telha encontra-se bastante danificada (Foto 43). Seria importante, numa primeira fase, determinar com rigor as causas das infiltrações no edifício.
43
Pormenor da cobertura em telha da igreja, onde se pode observar o seu estado degradado.
De acordo com o estudo prévio que nos foi facultado pretende-se transformar a igreja num espaço museológico - o Núcleo de Arte Sacra, parte integrante do Museu Municipal - sendo
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referida a instalação de um sistema de tratamento de ar, concebido para que se consiga "(...) um ambiente onde seja garantida uma temperatura e humidade constantes". Julgamos importante esclarecer que consideramos esta opção desnecessária e até perigosa para a conservação do políptico. Com efeito, desde que a recuperação do edifício seja adequada, nada justifica tal instalação. Em termos de intervenção estrutural, nesse estudo prévio é proposta "(...) a remodelação da estrutura de sustentações da cobertura de modo a não permitir a continuação das infiltrações que se verificam actualmente" e a "(...) reconstrução das fachadas do edifício, degradadas por constantes infiltrações. Para tal todos os paramentos serão picados, rebocados e pintados a cal.", o que vem ao encontro dos problemas detectados32. Logo que os trabalhos de construção civil estejam concluídos é importante que se proceda ao estudo do comportamento termo-higrométrico do edifício, durante um período de tempo não inferior a três meses. Isto, a fim de avaliar se o políptico poderá voltar ao seu local de exposição ou se a sua recolocação irá requerer precauções especiais, como sejam uma vitrine moldura estanque, no caso das flutuações de humidade relativa serem muito acentuadas e rápidas, o que não se afigura provável.Se o edifício for bem recuperado não ocorrerão oscilações bruscas. As oscilações, mesmo que apresentem grande amplitude, serão nesse caso necessariamente lentas. Os vãos de contacto da igreja com o edifício contíguo irão ser fechados, deixando a luz natural de incidir directamente na parede do retábulo, ficando assim solucionados alguns dos problemas inerentes ao controle do nível de iluminação que, para a luz natural, se revelariam de alguma complexidade. Mesmo resolvidos os problemas que o imóvel apresenta a nível estrutural, relativamente à exposição do políptico, terão de ser pensadas soluções que evitem o contacto do suporte em madeira com a parede, para minimizar quaisquer interferências. O políptico deverá ser colocado com um afastamento não inferior a 5 cm do pano murário, mantendo assim uma "caixa de ar" que garanta o arejamento necessário. Apesar de ser importante que o políptico seja novamente exposto na Igreja da Misericórdia de Ferreira do Alentejo, uma vez que esta obra é um bem secular da mesma, este não poderá voltar enquanto não se proceder à reabilitação do imóvel. Depois de terminado o tratamento, o retábulo foi exposto no Museu Municipal de Ferreira do Alentejo (aquando da sua inauguração em 22 de Outubro de 2004) e aí permanecerá até que a igreja tenha condições para o receber novamente. É importante ter-se em atenção que o políptico sofreu uma intervenção
profunda no suporte, nomeadamente na união das diferentes pranchas que o constituem. Esta intervenção poderá facilmente ser posta em perigo se não existir controle das condições ambiente. Devem, por isso, ser evitadas variações bruscas de grande amplitude da humidade e temperatura ou situações extremas33, o que por seu turno invalida a instalação de ar condicionado, conforme refere por exemplo J.Ashley-Smith no seu livro "Risk Assessment for Object Conservation" (1999), uma vez que em caso de avaria do sistema de controlo se correm precisamente estes riscos. Os esforços conjuntos da equipa do IPCR e o importante contributo dos responsáveis do Museu Municipal de Ferreira do Alentejo, no interesse e empenho demonstrado, permitiram que em estreita colaboração se pudesse aliar a fruição desta obra no novo espaço museológico, aos requisitos para a sua conservação, nomeadamente no que diz respeito às condições adequadas para a sua exposição.
32 Seria importante rever a cobertura e todo o sistema de drenagem das águas pluviais. As paredes que agora se encontram "encharcadas" deverão ser picadas, para entretanto secarem convenientemente. Poderá ser necessário efectuar um tratamento biocida nos paramentos exteriores como medida preventiva, para evitar o crescimento de organismos, sobretudo ao longo da zona inferior da fachada lateral esquerda da igreja. 33 Que estão na origem de variações dimensionais consideráveis do suporte em madeira, com repercussões muito graves e por vezes irreversíveis.
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