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OUTUBRO DE 2012. ANO III. NÚMERO 13
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA - VENDA PROIBIDA
Arrocha
JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL/JORNALISMO DA UFMA, CAMPUS DE IMPERATRIZ ROZANY DOURADO
Lições de vida no Lar São Francisco
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Arrocha TIRINHA
EDITORIAL - Memórias vívidas A grande missão dos acadêmicos de jornalismo ao adentrar o Lar São Francisco era a de resgatar memórias. Os personagens estavam ali, facilmente encontráveis, muito ansiosos para desvelar os seus sentimentos. Ouvi-los com paciência e atenção e captar em fotografias as suas expressões nem sempre alegres representou uma vivência inestimável para toda equipe interdisciplinar que preparou este Arrocha especial idosos. Ao entrevistar pessoas mais velhas, os futuros repórteres tiveram oportunidade não só de conhecer histórias de vida encorajadoras e surpreendentes, mas, com certeza, aprenderem muito sobre Imperatriz e o Maranhão do passado. São senhores e senhoras que o leitor vai conhecer nas próximas páginas e já se dedicaram às batalhas de suas
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vidas, muitas vezes inglórias. Agora buscam descansar em recanto que lhes oferece todo conforto dentro dos limites financeiros de uma instituição filantrópica. Amor, fé, medo da morte, família, voluntariado e busca da alegria são palavras-chave para desvendar esse universo e que estão presentes em todas as histórias contadas pelos personagens. Exercitar um olhar sensível foi o norte desta publicação. Que sua leitura sensibilize mais a sociedade para a realidade do idoso em Imperatriz. Arrocha: É uma expressão típica da região tocantina e também é um ritmo musical do Nordeste. Significa algo próximo ao popular desembucha. Mas lembra também “a rocha”, algo inabalável como o propósito ético desta publicação.
KELLY SARAIVA
Ensaio Fotográfico ROZANY DOURADO
GLEICY FERRAZ
GLEICY FERRAZ
RAYANE CARVALHO
EXPEDIENTE Jornal Arrocha. Ano III. Número 13. Outubro de 2012 Publicação laboratorial interdisciplinar do Curso de Comunicação Social/Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). As informações aqui contidas não representam a opinião da Universidade. Reitor - Prof. Dr. Natalino Salgado Filho | Diretor Prótempore do Campus de Imperatriz - Prof. Dr. Marcelo Soares | Coordenadora Pró-tempore do Curso de Jornalismo - Profa. M. Marcelli Alves.
Professores: M. Alexandre Maciel (Jornalismo Impresso), M. Marco Antônio Gehlen (Programação Visual), M. Li Chang Shuen Cristina (Fotojornalismo). Revisão: Dr. Marcos Fábio Belo Matos. Reportagem: Amanda Oliveira, Antônio Carlos Freitas, Caroline Mateus, Edigeny Soares, Guilherme Barros, Hêider Menezes, Heliud Santos, Janyana Franco, Jany Sousa, Keylla Nazaré, Layane Ribeiro, Mônica Brandão, Núbia Carvalho, Patrícia Araújo, Pedro Barjonas, Raynan Pinheiro, Suzaira Bruzi.
Diagramação: Adriana Dias da Silva, Andre Ricardo Guimaraes Cadete, Andreza Vital da Silva Pinto, Angela Maria Laurindo da Silva, Aurikelly Renata Saraiva, Breno Rafael Alves Franco, Camila de Sousa Silva, Cicero Fernando Pereira Alves, Diego da Silva Carreiro, Dionnatha da Conceicao Silva, Erica Fernanda Silva Ferreira, Flavia Brito Silva, Flavia Luciana Magalhaes Novais, Francisca Sheila Rodrigues da Costa, Giovana Cordeiro Cardoso, Israel Shamir Mendes Chaves, Jhonatha Pereira dos Santos, Jorzennilio Alves Junior, Lanna Luiza Silva Bezerra, Luanda Vieira de Oliveira, Maria Rhemylla Oliveira, Marina Pereira Cardoso, Railson de Andrade Carvalho, Railson Silva Lima,
Samia Said Mulky, Samoel Pereira de Freitas, Sueda Marilia Silva Borges, Yanny Dorea Moscovits.
Fotografia: Amanda Oliveira, Antônio Carlos Freitas, Caroline Mateus, Gleicy Ferraz, Guilherme Barros, Hêider Menezes, Janayna Franco, Jany Sousa, Keylla Nazaré, Layane Ribeiro, Mônica Brandão, Pamella Bandeira, Rayane Carvalho, Raynan Pinheiro, Rozany Dourado, Suzaira Bruzi e Karla Carvalho (Tratamento de imagens).
Acadêmicos: André Wallyson, Fernando Costa e Paula de Társsia. Charge: Kelly Saraiva
Contatos: Fan Page: www.facebook.com/JornalArrocha www.imperatriznoticias.com.br | Fone: (99) 3221-7625 Email: contato@imperatriznoticias.com.br
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VOLUNTARIADO Os 20 voluntários que trabalham no Lar São Francisco de Assis são bem humorados, dispostos e mudam os conceitos sobre a forma de fazer bem ao próximo
Pequenos atos que fazem toda a diferença HÊIDER MENEZES
HÊIDER MENEZES
Na construção do Lar São Francisco em 1976, seu Pedro Petruso foi um dos pedreiros e há 20 anos trabalha sem cobrar pelo serviço de pintura. “Eu ajudei a pôr as primeiras pedras aqui. Vim a trabalho, ainda não era voluntário”
HÊIDER MENEZES HÊIDER MENEZES
Eu digo oi. A voluntária do Lar São Francisco, dona Maria da Conceição de Araújo, devolve um olá sorridente. Pergunta se é minha primeira vez no asilo e eu respondo afirmativamente. “Pois você não sabe o que está perdendo”, diz ela, misturando a frase com uma gargalhada. Explico que quero fazer uma entrevista com ela. Logo, sou convidado a entrar no seu ‘cantinho’. Um cômodo de uns 3 m², com roupas empilhadas, a maioria doada. É ali onde ela costura e repara as roupas dos quase 50 idosos da casa. Dona Conceição tem 67 anos e trabalha como voluntária há 23. Ela é aposentada, antes vivia como vendedora ambulante. Hoje, dedica o máximo do seu tempo à caridade. Enquanto ela costura uma roupa nova, no outro lado do pátio a enfermeira Cíntia Fernanda, 30 anos, está enchendo os idosos de paparicos. Fernanda faz parte da segunda geração de voluntários do Lar. Seus pais foram pioneiros lá, desde o tempo da sua fundação, em 1976. Entre um cuidado e outro, ela brinca e diverte a plateia de senhores e senhoras encostados em suas cadeiras. Senta nas pernas já fracas do seu Manoel que ri e brada: “Eita! É disso que o Brasil precisa!”
A cena faz todo mundo gargalhar. Até mesmo Pedro Petruso, de 52 anos, voluntário há mais de duas décadas. Todos os anos ele tem um compromisso: pintar as paredes do Lar. Talvez para lembrar para todos ali que nem tudo envelhece, algumas coisas se renovam. Ele conheceu o lugar a trabalho, ajudando a levantar essas velhas paredes anciãs que hoje ele recobre de tinta verde clara. “Eu ajudei a pôr as primeiras pedras aqui. Vim a trabalho, ainda não era voluntário”. Pedro é um homem duro, pelo menos na fisionomia. Traços adquiridos de anos de serviço pesado como pedreiro e pintor. Mas depois de muitos anos de altruísmo, os traços e rugas no seu rosto tomam um ar mais grave, até mais nobre. Aquele ar de quem sabe que carrega muitas responsabilidades nos ombros. Não como fardos, mas como bênçãos. Expressão, aliás, de todos os dez voluntários que trabalham no Lar. Como seu Pedro Campos, que, pelos próprios pés, foi pedir abrigo no asilo e hoje é porteiro da casa. Como o professor Motta, que varre o pátio arborizado, e nas pausas lê um livro de Edgard Morin. E mesmo com toda essa ajuda, lá não falta trabalho. Em lugares assim, uma mãozinha é sempre bem vinda. Afinal, como disse a dona Conceição, quem não vai, não sabe o que está perdendo.
Dona Maria da Conceição em mais um dia de sua jornada no Lar São Francisco. Aposentada, antes ela trabalhava como vendedora ambulante
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MORTE Finitude da vida, tema que gera intensos debates, não é mistério para os que têm afinidade espiritual com aqueles que já partiram da experiência terrena CAROLINE MATEUS
Pessoas que não têm medo do fim CAROLINE MATEUS
“Há uns 20 anos, eu tinha muito medo de espírito. Hoje não tenho mais”. Dona Margarida Maria dos Santos, uma senhora parda, com muitos cabelos brancos, gentil e pensativa, conta que além dos fantasmas temia o seu padrasto, por brigar muito com ela. Porém, sempre eram os espíritos que lhe traziam mais medo. “Hoje não penso mais neles, porque tenho medo de ficar pesada. Só que não tenho medo deles”. Antônio Soares Rodrigues, 96 anos, um idoso com os cabelos totalmente brancos e dentes um tanto desgastados pelo tempo, conta que gosta muito da casa, mas vê almas, muitas almas. “As alminhas ficam vagando pela casa, umas aqui... outras ali, mas não fazem mal pra ninguém não”. Entre conversas a respeito do funcionamento do Lar e amizades, surge um assunto muito curioso e delicado para a idade deles: a
morte. O que você acha dela, dona Margarida? Conta-nos que quando era criança, tinha muito medo de alma, agora já adulta, não teme nem a morte. “Quando alguém morre, não é que eu tenha medo sabe? Eu só não vou olhar porque... aquela imagem fica gravada fortemente na minha cabeça”. Margarida acredita que quando a pessoa morre, o espírito sai do corpo, e logo depois, ele vai para o céu. Chegando lá, São Pedro decide se ele fica ou desce para o inferno. “Acredito que a maioria fica no céu, depende do que aquela alma tenha feito”. Ainda crê que cada espírito tem uma função dada pelo santo. Já seu Antônio relata que viu várias almas dentro e fora do seu quarto. “Eu vejo muitas, e faço é rezar pra elas. Sabe por quê? Porque eu não tenho do medo delas, e nem da morte. E rezo para que encontrem a luz. E elas rezam junto comigo de mãos juntinhas”.
Diante das velas a senhora reza seu terço para o bem de todas as almas. Moradores entrevistados no asilo creem em vida após a morte e espíritos
Aconchego do Lar São Francisco supera infraestrutura inadequada JANAYNA FRANCO
Cadeirantes estão entre os internos que mais enfrentam os problemas de carência de infraestrutura no Lar São Francisco. Eles precisam de ajuda, muitas vezes de mais de uma pessoa, para executar as suas principais tarefas JANYANA FRANCO
Por fora o Lar São Francisco é uma casa comum sem problemas mais graves. No decorrer da visita a realidade vai clareando nosso olhar. Por se tratar de uma entidade que abriga e cuida de idosos algumas questões precisam ser melhoradas, como explica Carina Elizane, enfermeira do município que
trabalha na casa há dois anos e seis meses. “As dificuldades existem pela própria idade. Além disso, você vê que a casa não tem uma estrutura adequada para receber idosos”. E logo pude confirmar ao notar que, apesar de disponibilizar barras de apoio, o Lar possui calçadas muito altas, o que dificulta a locomoção dos moradores. “Essas calçadas deveriam ser baixas
ou totalmente planas”, explica a enfermeira, que ainda conta das dificuldades que os cuidadores encontram na transferência de alguns idosos de um local para outro. Estes são carregados da cama para cadeira de rodas e da cadeira para os demais locais. É chegada a hora do banho e mais obstáculos são perceptíveis. É necessária a ajuda de dois cuidado-
res para a execução da tarefa. O espaço é grande, mas não adequado, começando pelo piso, que por não ser antiderrapante facilita a ocorrência de acidentes. Econômico – A casa conta hoje com quase 50 internos e não é fácil mantê-los. Seu Celestino – Francisco Celestino dos Santos – de 76 anos conta que em termos de finanças, os idosos que lá residem
oferecem 70% da sua aposentadoria –como rege o Estatuto do Idoso - para pagarem os funcionários. No entanto, para garantir a manutenção do abrigo, necessitam da solidariedade de voluntários. Apesar de todos os problemas enfrentados hoje, a casa tenta fazer o possível, com poucos recursos para dar a essas pessoas uma vida mais digna.
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ALIMENTAÇÃO Vivência no asilo mostra que as refeições são elaboradas por nutricionistas e como os funcionários fazem para que o desperdício de comida seja evitado
“Aqui cada morador monta seu cardápio” RAYNAN PINHEIRO RAYNAN PINHEIRO
Nove horas da manhã. Um som me chama a atenção: “chíí-chíí-chíí”. Guiado pela curiosidade, logo me deparo com uma orquestra de sensações e os grandes favorecidos são os meus sentidos. Fecho por um segundo meus olhos e tenho a sensação de ser transportado até a casa da vovó. Fogão a lenha, panela de barro, colher de pau, comida caseira feita com muito amor. O som que tanto chamou minha atenção é da famosa panela de pressão que logo no amanhecer já trabalhava a todo vapor. Com utensílios domésticos como qualquer outra, mas muitos em tamanho bem maior, a cozinha do Lar São Francisco de Assis estava pronta para mais um dia de preparo dos seus suculentos pratos. “Aqui cada morador monta seu cardápio. Tem quem só come frango, tem quem não gosta de peixe e assim vai”, revela Olivia Carvalho, cozinheira do abrigo. “Rosa, me dá café com leite”, diz dona Ana com voz trêmula e difícil de compreender. “Ela sempre vem esse horário e pede sempre a mesma coisa”, afirma Rosa com um sorriso no rosto.
Refeições são elaboradas e acompanhadas por uma nutricionista para atender às necessidades calóricas dos idosos. Comida não pode ter muito sal
Entre o “descasque” das cebolas as cozinheiras contratadas há cerca de um ano revelam que é extre-
mamente prazeroso trabalhar no abrigo. As refeições são elaboradas e
acompanhadas por uma nutricionista para atender às necessidades calóricas dos idosos. “Eles
sempre reclamam da comida ‘não tem óleo’ ‘isso tá insosso’ é o que a gente mais ouve”, conta Olívia. O cardápio da instituição é elaborado por uma nutricionista e atende a todas as necessidades dos moradores. Uma vez por semana o Lar São Francisco recebe doações de frutas, verduras e legumes suficientes para o abastecimento naquele período. “O desperdício de comida é muito difícil. Com o passar do tempo você consegue saber a quantidade que cada um come”, comenta Rosa Rodrigues, refogando alguma coisa a qual não consegui identificar, mas tinha um aroma muito bom. A todo o momento vinha algum morador pedindo café, leite, bolo. As cozinheiras que estão sempre a postos, são duas e mais uma ajudante em experiência com bom humor. “Novamente seu Antonio?” As risadas eram constantes no ambiente. Poucas são as caras tristes na hora da refeição. Apesar das reclamações sobre o sal, o óleo e se tem tempero demais na comida, o sorriso, por mais discreto e tímido que fosse, sempre aparecia e isso faz com que cada cozinheira, no final do dia afirme: “missão cumprida”.
Ao som de xote e brega, asilo realiza bailes para idosos GUILHERME BARROS GUILHERME BARROS
Antes mesmo de cruzar o portão, já era possível ouvir o som. Atravessei o hall e logo avistei balões: eu estava próximo. Não se tratava de uma festa comum. O que deveria ser um café da manhã havia se transformado em uma apresentação de forró pé de serra. Os dançarinos tinham três, quatro vezes minha idade e o triplo da minha disposição. Enquanto isso, o som do Trio Maranhense continuava a embalar os casais na “pista de dança”. Fanica no pandeiro, Preto no triângulo, Nelím na sanfona e Rodrigo (“é, sem apelido, mas a gente ainda vai arrumar um pra ele”) na zabumba e no vocal. Do brega ao xote, o grupo fez sua primeira apresentação na casa e pretende retornar. Tocando o pandeiro, dá uma voltinha, bate no cotovelo, no joelho e dá um sorriso. Nelím é pura irreverência. “A gente sempre vem aqui pra visitar. Tocar pra eles é bem melhor, o pessoal gostou, a gente fica agradecido”. Após o encerramento da apresentação da banda, um senhor de cadeira de rodas recita alguns versos ao microfone. Eu havia encontrado meu entrevistado. Nos aposentos do senhor Adão Alves de Souza, um quartinho pequeno, bem iluminado e com alguns enfeites que chamam a atenção (“presentes do pessoal que me visita”), iniciamos o bate-papo. Eu tinha de disputar sua atenção com duas jovens que eram constantemente cortejadas por ele. Mesmo sendo cadeirante, Adão adora a música e as festas. Ele havia sido escalado para abrir o evento
com uma música. “Mas a Lúcia (diretora do Lar), não veio me buscar. Vou esfregar isso na cabeça dela!”, brinca, entre risadas. Quando perguntei qual a música, ele disse que era uma ‘besteirinha’ mais ou menos assim: “Meus povos e minhas povas e minhas crianças barbadas que estão aqui me ‘aubservando’. Eu, sentado na minha perna de pau redonda, com quatro quinas, vendo meu jornal sem letras no reflexo da luz apagada. Enquanto os pássaros passavam, eu voava de galho em galho. E os profetas do mundo são quatro, eu e você e você e eu. E tenho dito!” Há toda uma programação de entretenimento. “Carnaval, festas juninas, Dia das Mães, Dia dos Pais, Semana do Idoso, Natal, são sempre comemorados”, informa uma das diretoras, Lúcia Rodrigues de Sousa. Acontecem também visitas de estudantes, empresários, a população tem uma participação ativa no local. “Nós temos pessoas que se apegam aos idosos e no dia do aniversário trazem bolo, comemoram, fazem uma surpresa”. Despeço-me do senhor Adão, mas antes mesmo de eu cruzar a porta, ele esquecera da minha presença. Enquanto ele anotava o número de duas moças que estavam indo embora, outra jovem adentrava o quarto, o que fazia os olhos do velhinho galanteador brilharem. Envelhecer nunca será um problema se você dispuser de momentos que lhe façam sentir jovem. A fórmula?! Perguntem ao senhor Adão. Quem sabe, depois de cantar duas músicas, recitar alguns versos e xavecar você, ele não dê a resposta?
Idosos do Lar São Francisco dançam ao som da sanfona e do pandeiro no encerramento da Semana do Idoso. Programação faz parte de calendário anual
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PERFIS As rugas que tatuam o corpo de dona Rosa Guilhermina são os únicos vestígios reais de uma vida que aos poucos foi desgastada com o tempo
Memórias de uma rosa à mercê do tempo PATRÍCIA ARAÚJO PATRÍCIA ARAÚJO
Como descrever um lar? Um um ambiente acolhedor e familiar onde os indivíduos que habitam dividem e compartilham vivências e experiências.Rosa Guilhermina faz parte de um lugar assim, onde todos têm em comum anos vividos tatuados em seus corpos e a memória desgastada pelo tempo. O lar em questão chama-se Lar São Francisco, um lugar que abriga idosos, que por vontade própria foram para lá, que não têm família ou foram rejeitados por parentes e familiares. Um refúgio para uma história de vida que desabrochou, deu frutos, foi esquecida e caiu em seu próprio esquecimento em meio a corredores e corrimões. As 88 primaveras de Rosa e o filho Manuel Moura de Sousa a levaram para o asilo encaminhada pelo Conselho do Idoso em parceria com a promotoria. Ela deu entrada no Lar em março de 2009 às 14h30 e trouxe em sua bagagem apenas lembranças, que, com o correr dos dias, vão se distanciando e dando lugar a fantasias que se misturam com fragmentos do que um dia foi sua vida. Rosa está à mercê do tempo, que brinca com sua memória e as poucas lembranças que tem. Pregando peça- A memória de Rosa aos poucos lhe dá adeus, deixando lacunas e uma enorme confusão em sua mente onde o que é real se mistura ao irreal. “A senhora conhece uma tal de Valentina?” pergunta Rosa. Digo que não. Ela me explica que Valentina é a mulher que está com o seu segundo ex-marido, Francisco. Detalhe: o primeiro esposo, já falecido, pai de Manoel, também se chamava
São poucas as lembranças que dona Rosa tem de sua vivência. A recordção mais viva em sua memoria é a do seu único filho, Manuel Moura de Sousa, com o seu primeiro marido, Francisco
Francisco. Ela conta que as duas dividem o quarto e quando o ex-marido vem visitar Valentina, ele também a corteja. Curiosa, pergunto se ele queria as duas. Rosa, com uma olhar de reprovação, segurando minhas mãos e usando a pouca força que tem para dar ênfase à
sua indignação, afirma: “Ele queria não, ele quer”. Ela diz não aceitar essa situação, é uma mulher de moral. Acompanho Rosa ao seu aposento e para minha surpresa eis que surge Valentina. Sim, ela existe, não é apenas um personagem. A história sobre ela é uma fantasia
de uma mente cansada. Valentina Alves dos Casais também não lembra muito do seu passado. Em sua pequena bagagem traz a lembrança de três filhos, um marido e seus pais, pessoas das quais ela não recorda o nome e que não existem em sua ficha de cadastro. As vidas de Rosa e Valentina
resumem-se às fichas que não dizem muito sobre quem foram, que história escreveram. Os únicos vestígios de suas vidas está em seus corpos enrugados pelo tempo. A memória não é mais um privilégio, é como uma rosa murcha, cujas pétalas são levadas pelo vento do esquecimento.
Aventuras e desventuras do cearense Francisco Ferreira da Silva PEDRO BARJONAS
Ferreira, aos 96 anos, é admirado por todos, principalmente por ser uma pessoa lúcida
PEDRO BARJONAS
Lar São Francisco. Logo na entrada, um quadro expõe as fotos dos habitantes desta comunidade de idosos. O Frawncys, funcionário desta entidade, me recebeu e sorridente, fez um ligeiro comentário do lugar me deixando à vontade para continuar a minha “visita”. Na frente, uma pracinha muito simples e alguns alojamentos. Parecia ser só isto. Alguém me mostrou um corredor que me conduziu a outra parte da casa. Ali a agitação era maior, vários idosos, talvez uns 20 ou mais, do total que ali reside. Alguns conversando, outros, possivelmente sentindo o peso dos anos, pareciam adormecidos. Parei ao lado de um senhor muito simpático, pele enrugada, cabelos grisalhos, olhos claros, ligeiramente azuis e logo percebi tratar-se de um deficiente visual. Usava uma camisa azul, short preto e sandálias havaianas. Coloquei a mão no seu ombro e me apresentei. Não muito amigável, ele respondeu: “Eu sou Francisco Ferreira da Silva”. Falei
da minha alegria por estar ali ao lado dele e dos demais e contei um pouco da minha vida para que ele tivesse a coragem de falar da sua. O Ferreira, como é conhecido na comunidade, é natural de Tianguá (CE) e nunca casou. “Eu sempre tive um negócio comigo: se um dia eu casar é com uma moça pra ficar em casa comigo. Nunca vou me amigar nem por dinheiro ne-
“Só sei que morei dois anos em Caxias e voltei pro Ceará, lá pra Camucim”. nhum. Aí nunca me casei”. Lembrando-se da grande seca de 1915 ele diz: “Num passamo mal não, tinha um barracão cheio de arroz e feijão”. Ele fala assim porque seus pais lhe disseram, já que nasceu em 1º de abril do mesmo ano. Perguntado quando veio para o Maranhão, pensou um pouco e disse: “Sabe que eu num tô lembrado? Eu sabia, mas num lembro. Só sei que morei dois anos em Caxias e voltei pro Ceará, lá pra Camu-
cim. Depois fui trabaiá no açude do Pirambeba, que fica no município de Sobral”. Seu Ferreira foi chamado para um banho e retornou vestindo uma camisa listrada e short azul. Com 96 anos é admirado por todos, principalmente por ser uma pessoa lúcida. Fisicamente demonstra saúde, não se lembra quando deixou o Ceará novamente. Sabe somente que veio para o Maranhão, trabalhou em Pedreiras e Poção de Pedras sempre como diarista e depois foi trabalhar em uma roça no Pará, onde hoje é a cidade de Goianésia. “Quando cheguei em Goianésa fui trabaiá numa roça, não tinha nem uma casa, vi quando chegou o primeiro morador. Hoje lá é uma cidade e só não é maior porque só entrou prefeito ladrão. Só começou a crescer quando entrou um mineiro como prefeito, todo mundo gosta dele, ainda hoje mora lá”. Seu Ferreira perdeu a visão há pouco tempo, mas não falou quando. Chegou na Casa do Idoso há quase um ano e não tem esposa nem filhos. “Minha família são os que estão aqui comigo e mais ninguém”.
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HISTÓRIAS “Quando eu era novo, beijava uma em um dia e no outro já não queria mais, queria outra”, confessa o bem humorado Antônio Soares Rodrigues
Antonio passeia por suas lembranças AMANDA OLIVEIRA
“A senhora tem quantos anos?” Viro de lado e respondo. “Tem namorado?” Balanço a cabeça positivamente. “Quantos?” Um. “Só um?” pergunta ele, para meu espanto, mas não maior que o dele. Logo em seguida, ouve-se um sonoro e debochado sorriso e Antônio Soares Rodrigues, 96, logo explica o motivo da surpresa. “Quando eu era novo, beijava uma em um dia e no outro já não queria mais, queria outra”. Na verdade, os papéis se inverteram e foi Antônio que me encontrou e começou a fazer perguntas no pátio do Lar São Francisco, ao som de Luiz Gonzaga, que tocava em um aparelho de som perto de onde conversávamos. Com semblante fechado e olhar inquieto, ele conta que durante uma passagem por Pedreiras (MA), em meados da década de 70, conheceu a única mulher com quem viveu. “Ela me largou depois de seis anos, porque não quis casar. Na época, eu tinha 45 anos e ela 15”. Foi desse relacionamento que nasceu seu único filho, Raimundo
Nonato, hoje com 35, e de quem fala com certo remorso. “(Ele) me conhece, mas nunca veio me ver, também não tenho vontade de falar com ele. É rico para danar, mas não ocupo ele com uma barra de sabão”. É natural de Luzilândia, interior do Piauí, de onde saiu em 1940 para tentar a sorte no Maranhão, que, orgulhoso, diz conhecer com a “palma da mão”. Ele garante amar Imperatriz, onde trabalhou como construtor de obras até sua aposentadoria precoce, causada por um acidente de trabalho. Antônio tem uma casa em Alto Alegre (MA), hoje alugada. Sua sobrinha ficou responsável por cobrar o aluguel, mas ele diz nunca ter recebido sequer um mês. “Ela não me manda o dinheiro e eu também não vou atrás”. Essas palavras soaram com tanto desprendimento que pareceu que ele não soubesse o que isso significava, ou, pelo menos, não importava mais. Afirma ter chegado ao Lar São Francisco cerca de oito anos atrás, pelas mãos de um policial, que o abordara enquanto embarcava no ônibus para fazer uma das únicas
No olhar de Margarida existe uma grande história KEYLLA NAZARÉ
No portão, um silêncio e uma leve brisa que passa de um lado para outro fazendo com que os cabelos brancos daqueles que um dia já trabalharam tanto tenham um repouso tranquilo. É isso mesmo que você imaginou. Estou falando do Lar São Francisco, um abrigo de pessoas idosas que não têm mais força para trabalhar nem enfrentar mais as dificuldades da vida. Apenas mantêm na mente várias lembranças do passado de suas alegrias, tristezas e experiências. Com um comportamento diferenciado dos outros idosos, começo a observar dona Margarida, sempre prestativa, com disposição. Ela ajuda a servir e a movimentar seus outros companheiros e isso me chama atenção, já que também é moradora de lá. Aproximo-me discretamente para que ela não se sinta constrangida e então começamos uma longa prosa. Por trás dos óculos, dona Margarida, com um jeitinho tímido, vai expressando, com suas palavras e seu olhar, um pouco da sua história. Nostalgia - Margarida Maria Dos Santos, 74 anos, nasceu em São Pedro da Água Branca no Maranhão. Sua família era composta por ela, mais duas irmãs e dois irmãos. ‘‘Meu pai morreu quando eu era ainda criança. Foi apagar um fogo que na roça se chama coivara e quando voltava suado passou dentro de um riacho. Aí, quan-
do chegou em casa, passou mal e morreu’’. Dona Margarida conta que sempre trabalhou na roça, fazendo carvão e quebrando coco babaçu para extrair o azeite. Assim era o jeito que encontrava para ajudar sua mãe. Depois que já estava crescida veio para Imperatriz, morar no Lar São Francisco. ‘‘Meus irmãos...não tenho mais notícias deles. Todos se espalharam, a única que ficou perto de mim foi minha mãe, que morava aqui comigo’’, desabafa. ‘Ela acordava 5h da manhã, fervia o leite e já deixava tudo encaminhado para quando as outras meninas chegassem estivesse tudo pronto. Margarida tem orgulho de estar a longo tempo no Lar São Francisco... ‘‘Fui casada por duas vezes. O primeiro marido bebia demais e só vivia na rua. O segundo uma mulher carregou, chegou na minha casa e ele disse vou com ela. E respondi: hum pode ir com ela’’. Com um olhar sereno, no fim da conversa Dona Margarida confessa: ‘‘Nunca estudei minha filha. Também naquela época era difícil, não tinha essas modernidade de hoje. Passei minha vida toda aqui, fui para Brasília porque gosto de passear. Fiquei três anos lá e voltei. Gosto é mesmo de ficar perto dos meus amigos aqui. Minha mãe morava comigo e morreu nos meus braços. Hoje tenho osteoporose e sempre falo: vou ficar por aqui até dar a hora da vontade de Deus’’.
AMANDA OLIVEIRA
Natural de Luzilândia, interior do Piauí, Antonio saiu de lá em 1940 para tentar a sorte no Maranhão. Ele diz amar Imperatriz coisas que ainda lhe davam prazer depois da aposentadoria: suas viagens. Antônio diz ser bem tratado
por todos. “Aqui tem tudo: almoço, janta, merenda”. E, por falar em almoço, as mesas já estavam sendo postas sob o olhar observador do
senhor que encerrou a conversa tão repentinamente quanto começou. “Não quero mais falar. Já vão botar o almoço. Bora almoçar?”
KEYLLA NAZARÉ
Lar São Francisco é um lugar que aconchega antigas emoções de Margarida Maria ao longo de uma vida construída entre felicidades e sofrimentos
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ENTREVISTA Presidente da Associação Lar São Francisco: Francisco Pereira Lima
“Sobrevivemos com ajuda da sociedade” Francisco Pereira Lima, presidente da Associação Lar São Francisco, expõe, em entrevista ao jornal Arrocha, as dificuldades que o
abrigo tem enfrentado. Entre as carências estão a rara contribuição financeira proveniente dos poderes públicos e a
dificuldade de manter a instituição, principalmente, com as contribuições da aposentadoria dos próprios idosos e donativos da
sociedade. O presidente também trata do momento mais polêmico da história do Lar São Francisco, quando, em 2006, houve denún-
cias de maus tratos com relação aos idosos, envolvendo a antiga administração, que acabou condenada pela justiça. LAYANE RIBEIRO
LAYANE RIBEIRO NÚBIA CARVALHO
Francisco Pereira Lima, presidente da Associação Lar são Francisco, expõe as dificuldades que o abrigo enfrenta e justifica a intervenção ocorrida em 2006. O senhor é um dos sócios fundadores do Lar São Francisco. Desde quando a casa funciona? Há 36 anos. Eu ajudei quase adolescente na construção da casa. Depois eu passei a trabalhar na profissão de pedreiro. Aquela parte lá de trás foi a gente que construiu. E depois reformamos para esta hoje como está. E na administração anterior fizeram apenas algumas alterações. Mas essa construção toda foi feita na gestão do senhor Aderço Baiano, que a gente também fazia parte.
Como a instituição se mantém? A instituição se mantém hoje com o benefício do próprio idoso. A colaboração da sociedade de Imperatriz e isso até de pessoas de
uma melhor qualidade de vida para os internos? Se fosse para o idoso viver só do dinheiro dele, não funcionaria. Porque o idoso recebe o quê? R$ 622. E ele gasta na casa mais de 600.
da casa como associado. Associado da Voz Espírita, que foi quem construiu isto aqui. E foi administrado pela junção de Aderço Baiano. Aí depois que ele faleceu, passamos
“Se fosse para o idoso viver só do dinheiro dele, não funcionaria. Contamos com as colaborações da sociedade de Imperatriz”
A gestão pública municipal tem contribuido de alguma forma? A casa tem um convênio desde 2009 com a prefeitura através da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (Sedes) e ela faz um repasse de R$ 2 mil. Isso ela cumpriu até dezembro de 2010, aí atrasaram até maio de 2011. Como estava já no mês de maio eles dividiram em oito pagamentos pra ficar em R$ 3 mil por mês.
“A casa ficou quatro anos sob intervenção. Até a Justiça reconhecer que a Voz Espírita tem uma sociedade e assim resolveu devolver”
fora. E tem mantido sim. Na cantina sempre tem arroz, feijão, óleo, sal, macarrão. Durante esse ano, não tem faltado de jeito nenhum. O dinheiro das aposentadorias não é suficiente para oferecer
O abrigo sofreu intervenção em setembro de 2006 após denúncias de maus tratos. Como o senhor enxerga essa situação? Na época a gente ficou muito contragido porque a gente já fazia parte LAYANE RIBEIRO
para a família dele tomar conta. A partir do momento que a família tomou conta, foi que houve esses acontecimentos e a Justiça interviu. E o senhor acha possível que isso aconteça novamente?
Tudo é possível acontecer, né? O que a gente espera é que não aconteça mais. Depois que ocorreu esse tipo de coisa, e a família foi tirada daqui de dentro, a casa ficou por quatro anos sob intervenção. Até a Justiça reconhecer que a Voz Espírita tem uma sociedade e assim resolveu devolver. Esta família até o terceiro grau, não pode fazer parte de nada por um período de oito anos. Essa mesma lei que foi aplicada para (o ex-presidente) Collor de Mello e outros políticos é a mesma que funciona aqui. Há algum projeto que visa a melhorar a situação do Lar São Francisco a médio prazo? Nós temos, sim, um projeto. Temos um projeto de otimização do próprio prédio, inclusive já conseguimos fazer um consultório médico, e já estão atendendo lá. Mas isso tudo graças à colaboração da sociedade. PAMELLA BANDEIRA
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ENTREVISTA Pedagogo e técnico em segurança do trabalho: Francys de Carvalho Lima
“É inadmissível não respeitar o idoso” Em entrevista concedida ao jornal Arrocha, o pedagogo e técnico em segurança do trabalho, Francys de Carvalho Lima, que há dois anos traba-
lha na assistência médica e segurança do idoso, no Lar São Francisco falou sobre o trabalho desenvolvido ná instituição.
Ele conta como conseguem, graças à dedicação voluntária das pessoas, garantir dignidade e qualidade de de vida para aqueles que chegaram à
terceira idade. Entre outras questões, destacou que cuidar de idosos exige responsabilidade e sensibilidade.
Para Francys, trabalhar no asilo é trocar experiências, em convivência com os idosos, que são riquissimas.
LAYANE RIBEIRO
A gente está propondo, já fizemos solicitaçoes por meio de ofício, buscando parceria com a prefeitura, com a Secretaria Municipl de Desenvolvimento Social (Sedes), para possibilitar a vinda de um terapeuta, um educador físico. Houve aqui um período que uma equipe veio dar uma contribuição, mas foi muito breve. Hoje nós não temos um profissional específico ou uma equipe para quebrar a rotina. O que ocorre é que nos eventos sociais da cidade, tentamos envolver eles. Nas festas da Casa do Idoso ou até mesmo eventos realizados aqui dentro. Foi o caso do ano passado, em comemoração ao Dia do Idoso houve aqui um café da manhã, um arrasta-pé com os internos do Lar em parceria com a Casa dos Idosos.
LAYANE RIBEIRO NÚBIA CARVALHO
A casa recebe pessoas de cidades próximas e até de outros estados. Há um limite de 50 idosos que podem ficar aqui. Se ultrapassar esse número, que medidas serão tomadas? Já houve alguma situação parecida? A responsabilidade para com o idoso não é só da Associação Lar são Francisco de Assis, mas de toda a sociedade. Então quando ultrapassa esse número, que é uma situação séria, nós temos que, imediatamente, comunicar ao Conselho do Idoso e eles vão averiguar a situação e tomar medidas até mesmo judiciais. Encaminham o caso à Promotoria Pública da cidade para cobrar também dos governantes apoio a esses idosos. Se na casa não há espaço e o idoso precisa de espaço e de alguém para cuidar dele, é obrigação do poder público dar apoio e, se for o caso, alugar um local para ele e providenciar uma pessoa para cuidar.
Há namoro entre eles? Não! A gente não permite devido à idade deles. Mas não que eles não queiram namorar. Já ocorreu de uns idosos estarem se beijando. Nós não permitimos porque a condição psicológica deles não é a mesma de antes, a adrenalina vai embora. (risos)
Hoje o Lar tem 47 idosos internados. Quais as situações que levaram essas pessoas a chegarem até aqui? Esses idosos que chegam até o lar é por abandono, quando não, é situação de risco. A partir daí ocorrem denúncias, a promotoria e o conselho do idoso vai lá e encaminha ele para cá. Tendo vagas a gente acolhe o idoso, e mesmo não tendo nós conseguimos para ele. Deixar na rua já estando em uma situação que está... Não pode abandonar mais uma vez. Sabemos que, na maioria das vezes, os internos não voltam para suas famílias. Passar os últimos dias em um asilo é sempre um fim temido pelas pessoas. Certamente vocês ouvem várias lamentações por parte dos idosos que aqui estão. Como o abrigo responde a isso? A gente conversa muito com eles, dá atenção, carinho. Eles veem a gente como se fossem familiares. Isso preenche o vazio que existe dentro deles. O Lar São Francisco é associado ao Centro Voz Espírita, porém há na casa internos de vários segmentos religiosos. Como vocês lidam com essas diferenças? Independente da história de vida de cada pessoa, temos que ver o mundo de forma globalizada, respeitando as diversidades culturais. Isso inclui a religião que cada um cultua, aqui tem liberdade. É aberto à sociedade e a outras religiões. Assim, atende a necessidade dos demais que não são espíritas. Porque a associação é um departamento social da Voz Espírita, que é a instituição fundadora. Mas não impede que as outras religiões participem também desse evento. Trabalhar com idosos exige muito cuidado, pois geralmente estão com o estado emocional abalado,
com doenças típicas dessa idade e dependendo de pessoas que não são seus familiares. Como é o tratamento dos servidores da casa para com esses idosos? Você que está aqui diariamente, percebe falhas nesse sentido? Aqui e acolá a gente não deixa de fazer uma observação com o trabalhador acerca desse cuidado que tem que ter com o idoso. Por mais que a gente realize reuniões informando como se deve tratá-los, de vez em quando temos que fazer uma advertência individual e até mesmo coletiva. Dizemos que se permanecer acontecendo pode até vir uma justa causa, porque é inadmissível não respeitar o idoso como pessoa, como gente. No geral, são algumas brincadeiras leves, mas a gente não permite devido à gravidade que isso pode se tornar. É como uma bola de neve. A assistência médica é essencial. Desde a alimentação até os cuidados psicológicos é importante o auxílio de um profissional. Há médicos que fazem assistência? Como é desenvolvido esse trabalho na casa? Aqui nós contamos com dois médicos, um cedido pela Secretaria de Assistência Social da nossa
cidade, que já é uma parceria que nós temos com o governo municipal. É um clínico geral que atende diretamente no Lar. Ele faz os encaminhamentos adequados aos demais profissionais da saúde, que vão analisar o caso de cada idoso
“Já ocorreu de uns idosos estarem se beijando. Nós não permitimos porque a condição psicológica deles não é a mesma de antes. A adrenalina vai embora...” e solicitar o tipo de exame necessário. E também tem uma médica que é voluntaria aqui, nós contamos com ela uma vez por mês. Qual a importância do voluntariado em uma entidade como esta? Há carência dessas ações? Aqui tem alguns voluntários, só que são poucos os que assumiram o compromisso mesmo, que vestem a camisa. É importante o voluntário até mesmo para a socie-
dade, o trabalhador que faz parte do quadro de servidores do Lar é um exemplo de amor, de carinho, de devotamento. Ele está tirando um tempinho que ele tem lá fora para vir prestar serviços. Há idosos que mantêm algum tipo de trabalho aqui? Tem idosos aqui dentro do Lar que são residentes e trabalham, ajudando a gente como voluntário. Na portaria tem um pela manhã que recebe as pessoas, é como se fosse um vigia do Lar. O da tarde tem experiência porque ele já trabalhou muitos anos como vigilante. É uma preferência deles estarem como porteiros, ajudando. Manter esses idosos ocupados melhora a autoestima? Melhora! Porque eles se sentem úteis e sabem que podem ajudar em alguma coisa. Ficar parado o dia todo só batendo papo, pra eles é muito monótono. É uma situação até de precariedade mesmo. Porque aí eles sentem que não estão felizes no lugar que estão. Quais ações a casa utiliza para evitar o ócio, sabendo-se que a rotina é um fator que pode afetar negativamente o psicológico deles?
Francys, você que trabalha na casa há dois anos, já presenciou alguma situação curiosa que tenha te chamado atenção? Tem um idoso, chamado de Atonio Soares, que chegou há pouco tempo aqui na casa. O caso dele foi de abandono da família, mas ele próprio escolheu viver na rua. Hoje mora no Lar e é o comediante da casa. Ele canta, rima e alegra o ambiente. Não deixa de falar pra gente que quer sair, mas sempre faz uma “festinha” lá embaixo. Gosta de ficar conversando com os outros idosos e sempre puxa umas brincadeiras com um ou com outro. E isso é interessante para o idoso, pois devido eles ficarem reunidos no mesmo espaço e a maioria ser cadeirante, não tendo facilidade para a locomoção, ter no meio uma pessoa mais alegre dá um pouco mais de harmonia ao Lar. Esse trabalho que você desenvolve certamente lhe proporciona uma experiência incalculável. Como agrega esses valores à sua vida pessoal? O que eu posso dizer é que trabalhar e lidar diretamente com gente e principalmente com pessoas que passam a ser dependentes de você, tendo que levar ao hospital, dar atenção, conversar, você acaba trocando experiências que são riquíssimas. Passamos a perceber melhor os valores da vida. Às vezes a gente pensa que é infeliz por causa de alguma coisa que deu errado, aí vemos o caso deles que foram muito mais graves, até cruéis, e nem por isso eles se prendem a esse passado. Anulam essas experiências negativas, conseguem lidar com as dificuldades. Com isso, aprendemos com eles também.
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DIFICULDADES Seu José de Oliveira passou a vida sem direção, fazendo bicos para comprar menos que o básico para sobreviver e dormindo em rodoviárias
José sobrevivia comendo banana e farinha SUZAIRA BRUZI
“Quando você vive assim como eu andando pra qui e pra acolá, nunca ninguém conhece. O bom é morar na sua casa, ter uma mulher, um filho ou dois, trabalhar e todo mês ter um dinheiro”. O Lar São Francisco de Assis, provavelmente, será o último pouso que seu José Messias de Oliveira terá. A casa possui áreas grandes pelas quais os moradores caminham sem pressa, assim mesmo, devagar, alguns como se vagassem dentro de sua solidão e falta de visão do amanhã. Seu José, que está no Lar há dois anos, não pensa no futuro como algo que vá mudar, mas lembra-se bem do passado que fez dele o senhor que é hoje. Nascido na cidade de Porto Calvo, a leste do estado de Alagoas, de aproximadamente 26 mil habitantes, o aposentado teve uma infância simples, da qual pouco se lembra. Para ele, a vida começou após seu casamento, que durou seis anos. Tiveram dois filhos, de três e cinco anos. O casal se separou e pouco depois a mulher e os filhos morreram. Ela, de problemas respiratórios e as crianças “rapaz, eu não sei não”. A partir deste momento, o portocalvense começou a trilhar uma história diferente. Viajou até São Paulo,
com o que pôde carregar. Lá, trabalhou como roçador nas praças e nas antigas margens do rio Tietê. Mas logo se cansou e seguiu viagem. “Chegou a ser um vício”. Ele não podia mais se abster de andar sem direção. Passou por estados como Piauí, Ceará e Amazonas. Mas foi em Belém que viveu quatro anos na rodoviária, comendo banana com farinha. Ao contar, um senhor bem mais idoso, que parecia dormir na cadeira de balanço ao lado, começou a dar altas risadas da banana com farinha. Olhei pra ele com espanto e me surpreendi ainda mais quando, vagarosamente, abriu o ladinho do short e sem cueca, começou a fazer xixi, bem ali na frente de todos. Apenas um acidente, pensei (ingenuamente), mas não, já havia um rastro molhado enorme no grosseiro chão de cimento. Seu José não se incomodou pelas risadas do colega, riu também e continuou a contar que catava latinha para vender e poder comprar a dúzia de bananas e o quilo de farinha . Continuou sua caminhada até chegar a Imperatriz, onde trabalhou numa horta. Lá conheceu alguém que lhe trouxe ao Lar, de onde acha que só sairá morto. Por enquanto vive, analfabeto, com 75 anos, poucos dentes, com cabelos brancos, e ainda querendo viajar.
SUZAIRA BRUZI
No Lar, faz parte da rotina de seu José assistir, tranquilamente, televisão todas as manhãs. Longe da antiga vida andarilha ele só pensa em retomá-la
RAYNAN PINHEIRO
Dinair entoa cantigas que lembram passado saudoso EDIGENY SOARES
Dinair Garcia reflete sobre a sua família: “Eles parece que se esquecem de mim, e eu também não faço muita questão deles, não”
Diante do olhar atento e observador, puxei uma cadeira, e aos poucos, fui me inclinando, para que conseguisse ouvir sua voz. “Bom dia! Posso sentar ao seu lado?”. Ela, com o olhar desconfiado, dizia algumas palavras, como se estivesse assustada. “Bom dia! Me ajuda aqui. Olha... (apontando para baixo)”. Seus pés estavam descalços, mas as havaianas estavam próximas, ao seu lado. Abaixei-me e a ajudei a calçar os pés, aproximando-me um pouco mais. Daí então, comecei a fazer-lhe perguntas pessoais. “Qual o seu nome, senhora?” “Dinair. Dinair Mendes Garcia”. Sua fala era calma e seu olhar parecia triste, mas vez ou outra, ela sorria pra mim, ao falar de seu filho. “Um homem bom, que não faz mal a ninguém. Trabalha muito! E tá sempre por aqui, me visitando e conversando...” Ao perguntar de sua família, dona Dinair se retraía, pensava um pouco, com a mão na boca, e um olhar distante. Mas nem isso a fez apática, no meio da nossa conversa. “Ah, eles parece que se esquecem de mim, e eu também não faço muita questão deles, não quero incomodar ninguém. Prefiro ficar só mesmo”. Um pouco inquieta com tamanha discrição, a nossa senhora Garcia, se “ajeitava” na cadeira, puxando o vestido, pondo as mãos uma sobre a outra, enquanto era observada. Com isso, pude constatar sua vaidade. Toquei em suas mãos, perguntei se ela costumava andar com as
unhas pintadas, enquanto ela olhava para si e para mim, esperando que eu concluísse a fala. “E esse vestido, que lindo!”. “Esse aqui? (passando a mão sobre ele, esticando sobre as pernas). Não, esse é feio! Mas é bom, gosto dele... Aqui, a gente não tem o que fazer mesmo. Então, eu fico aqui, sentada, esperando as coisas acontecerem”. No silêncio que ali estava, dona Dinair entoava cantigas, daquelas antigas, da época de nossos avós, daquelas que nos trazem boas lembranças. Com os cabelos branquinhos, ondulados e curtos, de pele branca e olhos baixos, já pela idade, ela, com seu lindo sorriso, cantarolava e dizia: “Meia pedra, meio tijolo, meio crioulo” e não seurava o riso. E então, logo ela voltava seu olhar e atenção, para falar de si e aos poucos, do Lar São Francisco. “Aqui não é tão agradável, mas costumo ficar naquela casa ali, disse apontando para uma casa de dois andares à nossa frente, que ficava dentro do Lar a alguns metros de distância de onde estávamos, de cor verde e pequena. Lá, tem uma mulher, que fica cuidando de mim. Não é minha amiga, mas fica comigo”. Dona Dinair não parecia tímida, simplesmente falava calmamente, o que nos permitiu um diálogo tranquilo, sem muitas interrupções. Não se intimidara nem mesmo com as lentes fotográficas, que eram direcionadas à sua frente. Ela não fazia poses, mas percebia que assim como ela nos observava, calmamente, ela era, também, observada.
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MEMÓRIA Conheça a trajetória de vida de Raimundo Santana, ex-soldado e ex-delegado de polícia, que sente orgulho da sua experiência profissional
Lembranças do soldado de São Francisco ANTÔNIO CARLOS FREITAS ANTÔNIO CARLOS FREITAS
No passado ele era temido e respeitado. Hoje é amigo. Aos 74 anos, Raimundo Santana Silva se orgulha muito por ter sido policial e chegado à função de delegado. “Tudo que eu fazia, o povo me dava nota 10. Meu comando me abraçava, porque eu era foda. Se o ladrão corresse, eu era foda, não errava mesmo”, diz Raimundo num tom de empolgação. Raimundo Santana é um dos idosos que atualmente residem no Lar São Francisco. É um senhor lúcido, ora com uma fisionomia observadora, ora alegre. Aos 19 anos, com pouco estudo, ingressou na Polícia Militar do Maranhão. “Naquela época um soldado quase não tinha leitura, então era fácil para entrar”. Depois foi promovido delegado de uma região chamada Primeiro Cocal, onde trabalhou por seis anos. Além de virar autoridade, teve também o seu momento de celebridade: não precisava citar a função, bastava falar do “Santana” que todos conheciam. Morar no asilo foi uma decisão sua. Está no Lar São Francisco desde janeiro de 2011. Família se fosse verbo, para ele estaria conjugado no passado. Não mantém nenhum contato. Casou sete vezes: “uma no civil, cinco no padre e uma na fogueira” – união não oficial. A Igreja Católica permite que uma pessoa case no religioso apenas uma única vez, mas “como morei em vários lugares, onde chegava falava que nunca fui casado”, confessa Raimundo. De toda sua vida conjugal, teve três filhos. Um morreu, ficaram duas mulheres. As filhas do segundo e terceiro relacionamentos não sabem que o pai mora em um abrigo. Devido à separação difícil e turbulenta com as ex-esposas, seu Raimundo não tem contato com as antigas famílias. A filha mais próxima dele mora em Imperatriz, mas
Depois de morar em vários lugares, Raimundo Santana decidiu sair da casa de conhecidos e mudar-se para o asilo, ambiente tranquilo e ordeiro, onde diz que está feliz. Ele se casou sete vezes
mesmo assim, não sabe de notícia alguma. Raimundo Santana gosta de morar no asilo. Sem perder o jargão policial, ele afirma estar bem amparado. “Quando vou cortar meu cabelo, o guarda daqui vai comigo, porque
se acontecer qualquer coisa eu não estou só”. O quarto onde dorme é apropriado para duas pessoas. Ele divide com outro senhor mais velho. Uma boa dormida só se for na rede. Seus pertences estão todos em uma bol-
sa de viagem, a maioria são roupas. Não tem nenhuma foto de quando era mais jovem. “Elas ficaram no mundo. Por onde passei, fui deixando minhas coisas, hoje não tenho nada”. Com um jeito sempre alegre de
falar, Raimundo Santana quer mais da vida, espera viver muito, ultrapassar a casa dos 110 anos é sua meta. Se daqui para lá ele pudesse arrumar uma namorada ela seria “uma coroa de 50 ou 60 anos. Namorar é bom”.
Encantos da vaidade permanecem vivos com o passar do tempo HELIUD SANTOS
A brancura dos cabelos revela a pressa do tempo em lhe roubar o viço. Mas a força que instiga a vida permanece, ostentada nos cabelos cuidadosamente penteados para cima, no rosto liso da barba feita, na camisa xadrez passada por dentro da calça social cinza e na fragrância amadeirada, ‘Charisma’ que exala no quarto onde ele vive no Lar São Francisco de Assis. No seu refúgio, uma cama e uma pequena cômoda de madeira de cor cobre avermelhada lhe fazem companhia. Acima do móvel, creme hidratante para os pés, óleo para o cabelo, pentes e vidros de perfumes. Tudo o que ele precisa pra se sentir “respeitado”. O dono do “Charisma”, Francisco Celestino dos Santos, nasceu há 76 anos, no estado do Ceará. Trabalha na portaria do abrigo no período da manhã e à tarde ajuda nas tarefas diárias do local. Ele diz que começou a se preo-
cupar com a aparência depois que foi morar no abrigo, gosta de se arrumar pra se sentir bem no meio das pessoas, mas enfatiza: “Não é porque eu quero tá com saliença, eu quero é o respeito de todo mundo”. Logo ali, depois do quarto de Francisco, no pátio do Lar, os velhinhos estão sentados à sombra de duas grandes árvores, em suas cadeiras de macarrão que balançam na calmaria da manhã. Juntos, eles formam um enorme quadrado no pátio, fugindo da solidão dos cômodos e do clima abafado. Na extremidade do quadrilátero, uma senhora de vestido xadrez rosa e sandálias da mesma cor, descansa em uma cadeira. Na pele negra, os sulcos vão de encontro aos olhos pequenos e atentos. Seu nome é Maria José Fernandes de Araújo. Quando perguntei a sua idade ela respondeu sabiamente: “Tem um monte de dia....já estou madura, a rama tá secando”. Maria é
mais velha do local, tem 96 anos, foi deixada pelos filhos há três anos, ainda pensa em ir para casa. “Tô é com vontade de ir embora”. Gosta de cremes e de arrumar o cabelo e pergunta se eu não tenho um “negocinho pra passar aqui”. Pede alisando as mãos nos cabelos rente à testa, rumo ao coque grisalho. É terça-feira, o lar que funciona desde 1976, é embalado pelo som de Luiz Gonzaga. Todos os moradores estão atentos à música vinda de um microsystem. Dentre eles, Francisca Rodrigues Lima, 66, é a mais animada. A senhora, de cabelos cortados à La Chanel, tem as unhas do pé pintadas de rosa cintilante. Anéis, pulseiras fazem parte dos acessórios utilizados por ela, que mora no lar há dois anos. Gosta de vestidos e lembra entusiasmada da última vez que usou um florido de cor azul. “Eu ouvia o pessoal falando: ‘Aquilo que é mulher’...”.
GUILHERME BARROS
Francisco penteando os cabelos, em mais um ritual de beleza diário: “Quero o respeito de todos”
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RELIGIOSIDADE No Lar há espaço para todos e independente do credo, idosos buscam se apoiar no poder da fé para superar a ausência de familiares e amigos
Para muitos idosos religião é viver em paz MÔNICA BRANDÃO MÔNICA BRANDÃO
“O homem que é clemente vai subir ao pé do altar para Deus abençoar”. Este refrão, embalado por uma melodia tranquila, mas, ao mesmo tempo, envolvente, é fácil de acompanhar. Ecoava do quarto de um senhor de cabelos brancos, sorriso sem dentes, mas com uma língua bem afiada. Estava vestindo um short jeans e uma camisa, com metade dos botões abertos, ficando a mostra o peitoral cheio de manchas marrons, deixadas pelo sol ao longo dos 80 anos de uma vida agitada. “Ele é o galanteador do Lar São Francisco”, garante gargalhando dona Francisca, que vive no quarto ao lado. De fato, seu Adão namorou muito na vida. Teve nove filhos, sendo apenas dois da mesma mãe. Uma prole grande que teve uma razão especial de ser. O “senhor da lábia” prometeu, quando criança, ao pai, que daria uma Bíblia para cada filho que tivesse. Assim o fez. “Um livro sagrado para cada filho sagrado”, orgulha-se seu Adão, que, apesar do zelo que teve com os herdeiros, está sozinho no local há 10 anos. “Dei a Bíblia e não me arrependo. Não quero saber se seguem padre, pastor, sei lá. Para mim, religião é viver em paz. Não quero que eles fiquem aqui no meu pé, mas todo dia eu leio um pouquinho da Bíblia pensando neles”. Diversidade - E o Lar São Francisco de Assis está lotado de jovens muito experientes que pensam assim. Lúcia Rodrigues faz parte da diretoria do abrigo e incentiva, entusiasmada, as manifestações de fé dos idosos. “Eles são melhores do que nós”. No asilo há espaço para todos. Os seis diretores são espíritas, assim como, pelo menos, 10 dos internos. Instituições, ligadas a esta religião, fazem visitas com fren-
Pracinha central do Lar São Francisco de Assis é o local preferido dos idosos para orações, reflexões e a leitura da Bíblia. Espíritas, evangélicos e católicos, às vezes dividem o mesmo espaço
quencia e ajudam a pagar o carro do lar e comprar a carne para as refeições. Os católicos celebram missas no primeiro sábado de cada mês e também fazem doações. Os evangélicos, do mesmo modo, sempre estão presentes com a realização de cultos e oferecendo ajuda. “As nossas crianças, de mais
de 60 anos, são tão boas... Qualquer crente de outra região pode vir que será bem recebido”, conclui Lúcia Rodrigues, com os olhos cheios de lágrimas, ao lembrar da alegria das senhoras e dos senhores toda vez que recebem uma visita. “Sorria. A vida é bela e Jesus te ama”. A frase acolhedora está no
corredor principal do lar, dando as boas vindas a quem vem trazer ajuda ou companhia e, às vezes, os dois. Na porta de cada quarto, dizeres do mesmo tipo recepcionam. São as entradas dos quartos de tantas Marias, Pedros, Joões e outros muitos idosos, com nome de santos ou não, mas que dão vida ao
Lar, que foi batizado com o nome do protetor dos animais. “Ah, quer saber? Por aqui é tudo lindo. Ninguém me visita, mas tenho fé em Deus e na minha nossa senhora de que estou buscando o meu lugar no céu.” Assim espera dona Francisca, uma senhora que nem lembra quantos anos tem, mas que sabe viver.
Emocionado, o interno Adão Sousa relembra a sua trajetória familiar JANY SOUSA
JANY SOUSA
“Patrícia é a única pessoa que me visita, cerca de uma vez por mês. Ela é a pessoa mais importante da minha vida”. Percebi que o semblante daquele arguto senhor, Adão Sousa, se transformara ao falar desta filha. Talvez ela seja a lembrança viva de seu vigor, enquanto homem. Quando o assunto família veio à tona, ele se mostrou resistente, pois, aquele tema, segundo revelou, não era de sua simpatia. No entanto, com o transcorrer da conversa, fluiu naturalmente. Nascido em Porções (BA), 80 anos de idade, se criou em Itabuna. Têm os movimentos limitados, por consequência de um Acidente Vascular Cerebral (AVC) que deixou marcas perenes em sua vida, ao paralisar todo o lado direito de seu corpo. Este triste episódio o tornou cadeirante, fato ocorrido por volta do ano de 1996. Autodidata, se profissionalizou em agrimensor e topografia, atividades as quais ocuparam boa parte de sua vida, embora tenha feito de tudo um pouco. Aristocléia foi a sua primeira
Baiano Adão Sousa, em momento de descontração, busca em sua “caixa” de memórias as recordações do passado vivido junto com a família
companheira. Baiana, do município de São Francisco do Conde, filha de médico, formou-se em enfermeira-chefe. Não oficializaram esta união, mas tiveram sete filhos. Quatro nasceram na Bahia: Luciana, Carlos, Adão Filho e Lu-
cineide. E os outros três filhos nasceram na cidade de Imperatriz: Lucicleide, Lucenir e Claúdio. Em 1968, ela veio com o senhor Adão para Imperatriz, mas por volta de 1976 mudou-se para São Paulo, capital, para trabalhar e
educar os filhos. Lá, trabalhou no Instituto do Coração de São Paulo, falecendo em 2003 de um AVC. A segunda mulher do senhor Adão foi Jucicleide, natural de João Lisboa, nascida em 1972. Ele a conheceu tempos depois de sua
chegada a Imperatriz, por volta do ano de 1993. Foi ela quem o trouxe para este abrigo. Tiveram uma filha que se chama Patrícia e está prestes a completar 18 anos de idade. Justamente a única que mantém as visitas regulares. Sozinho - Ao pedir que definisse a solidão, poeticamente disse: “Prefiro a solidão no meio da escuridão, nas selvas tristes sem amor. Amei... mas agora só existe tristeza, saudade e dor. A solidão é uma forte aliada da sabedoria, pois, nos faz refletir sobre as pequenas coisas da vida. A vida cresce e decresce enquanto as horas vibram sem fim. Enquanto a morte não chega, ouve as minhas preces e vem cuidar de mim”. As marcas do tempo podem ser percebidas em cada centímetro quadrado daquele recinto. As barras de sustentação ao longo do abrigo, a calmaria, o silêncio espaçado, os sussurros e gemidos dos internos, os gestos lentos, os bancos vazios da pracinha do abrigo, as rugas crispantes presentes nos cansados rostos daqueles indefesos e carentes idosos e idosas. Tudo reluz o tempo decorrido.