#5 ½ Edição especial para a FLIP 2010
instituto moreira salles Walther Moreira Salles (1912-2001) Fundador Diretoria Executiva João Moreira Salles Presidente Gabriel Jorge Ferreira Vice-Presidente Francisco Eduardo de Almeida Pinto Diretor Tesoureiro Mauro Agonilha, Raul Manuel Alves Diretores Executivos
serrote é uma publicação do Instituto Moreira Salles que sai três vezes por ano: março, julho e novembro. Esta serrote #5 ½ só circula, gratuitamente, na flip 2010. COMISSÃO EDITORIAL Daniel Trench (diretor de arte), Eucanaã Ferraz, Flávio Pinheiro, Francisco Bosco, Heloisa Espada, Mariana Lanari (editora de imagens) Matinas Suzuki Jr., Paulo Roberto Pires, Rodrigo Lacerda e Samuel Titan Jr. coordenaÇÃO EDITORIAL Flávio Cintra do Amaral e Rodrigo Lacerda ASSISTENTE DE ARTE Ana Paula Campos ASSISTENTE EDITORIAL Nathalie Lenci PRODUÇÃO EDITORIAL Acássia Correa PRODUÇÃO GRÁFICA Aldir Mendes pesquisa, digitalização e tratamento de imagens Joanna Americano Castilho, Daniel Arruda, Tatiana Novás de Souza Carvalho, Alexandre Piedade, Ailton Alexandre da Silva, Cristina Zappa, Cídio Martins Neto, Anne Greiber, Tatiana Ishihara, Virgínia Albertini, Gabriella Vieira Moyle e Ipsis Gráfica e Editora preparação e revisão de textos Denise Pessoa e Alyne Azuma checagem Luiz Arturo Obojes assessoria de comunicação Letícia Nascimento e Nathalia Pazini / imprensa@ims.com.br JORNALISTA RESPONSÁVEL Matinas Suzuki Jr. IMPRESSÃO Ipsis Gráfica e Editora © Instituto Moreira Salles Av. Paulista, 1294/14º andar São Paulo sp Brasil 01310-915 tel. 11.3371.4455 fax 11.3371.4497 www.ims.com.br n.° 5 ½ Agosto 2010 As opiniões expressas nos artigos desta revista são de responsabilidade exclusiva dos autores. Os originais enviados sem solicitação da serrote não serão devolvidos. assinaturas 11.3971.4372 ou assinatura@revistaserrote.com.br www.revistaserrote.com.br leitor@revistaserrote.com.br “Jorge Luis Borges e Vinicius de Moraes – un encuentro en Buenos Aires” foi publicado originalmente na Revista Proa, 1997; “Gilberto Freyre – nem magro, nem gordo: poeta” © 2010 Eucanaã Ferraz; Retratos das pp. 21 a 29 © Coleção Titus Riedl. agradecimentos Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, Fábio Frohwein e vm Cultural. Página de rosto Colheita de gelo com serrote, c. 1910 Library of Congress, Prints & Photographs Division, Detroit Publishing Company Collection [reproduction number, e.g., LC-D4-10865]
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DIÁLOGOS IMPERTINENTES Uma conversa quase improvável e esquecida, na calle Maipú, entre o mestre argentino do conto fantástico e nosso poeta
Jorge Luis Borges e Vinicius de Moraes: um encontro em Buenos Aires Guillermo Fuentes Rey
No dia 16 de setembro de 1975, a jornalista Odile Baron Supervielle organizou um encontro entre Jorge Luis Borges e Vinicius de Moraes. A reunião ocorreu no apartamento de Borges, na calle Maipú. Tive a sorte e a honra de ser convidado. Feitas as apresentações e instalado o gravador Uher, com dois microfones, o papo começou. Foi uma conversa sem tema fixo, franca, descontínua. Anos mais tarde, o processo de degravar as fitas foi apaixonante e nada simples. Eliminei ao máximo as repetições, organizei os fios de raciocínio e cuidei que a transcrição guardasse um tom informal, dando ao leitor a sensação de ter estado presente no encontro, o qual, depois de ter sido transmitido pelo rádio, foi publicado no anuário do La Vanguardia.
Na página ao lado, Vinicius de Moraes no Teatro Opinião, Rio de Janeiro, década de 1960; fotografia de Pedro Moraes VM © Pedro Moraes Na página 7, Jorge Luis Borges, Paris, 1977; foto de Guy Le Querrec © Guy Le Querrec/Magnum Photos/ Latinstock
Vinicius Se importa se eu fumar, Borges? Borges Não. Eu fumava quando tinha 13 anos, para me sentir um homem, depois parei. Odile Borges… Você já esteve no Brasil? Borges Sim, em São Paulo, quando me deram o Prêmio Municipal. No Rio de Janeiro fiquei muito pouco, apenas duas horas. O que conheci melhor foi a fronteira oriental brasileira, a terra dos “gaúchos”. Outro dia mesmo tiraram de cartaz um filme baseado num de meus contos, El muerto, que se passa na fronteira. Um lindo filme que não teve boa acolhida, ficando em cartaz apenas três semanas. Claro que tem alguns equívocos. A ação transcorre em [mil oitocentos e] noventa e tantos. Eles mostram uma estância muito pobre da fronteira e nela põem os contrabandistas jogando bilhar. Não sei por que não os puseram jogando golfe! Enfim… eu ambientei o
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conto ali porque ali vi matarem um homem e isso me impressionou muito. Vinicius Depois disso você viu matarem outros homens em sua vida? Borges Não. Vi muita gente morrer. Minha mãe, por exemplo, há dois meses. Vinicius Esse crime o impressionou muito. Você fala da morte em seus livros… Borges Sim. O curioso é que não me impressionou na hora em que aconteceu. Foi em uma confeitaria, onde eu estava com Enrique Amorim. Tínhamos decidido visitar a fronteira. Ele queria mostrá-la a mim, e também a estância de sua família. Bem… estávamos ali falando de literatura e houve aquele incidente. Mataram com dois tiros um indivíduo, um tropeiro. Quem o matou foi um negro que era capanga do governador. Matou-o a sangue-frio, mas não recebeu nenhum castigo. Então, quando aconteceu, me pareceu algo desagradável, mas depois, na memória, ganhou outra dimensão. Odile As correções que a memória faz, interessante. Borges Sim, é surpreendente. Agora lembro e falo disso. Naquele dia, quase esqueci o acontecido, pois eu e Enrique retomamos a conversa sobre literatura. Vinicius No Brasil há cidades conhecidas por coisas assim. Numa delas, entre o estado do Rio e o Espírito Santo, certa vez foram entrevistar um delegado, pois corria o boato de que um funcionário iria ser morto, como efetivamente veio a acontecer. Perguntaram ao delegado quem poderia ter assassinado o tal homem. Ele puxou uma lista de pistoleiros e indicou dois. Um deles se chamava Cem Mortes. Quando o procuraram para falar do assunto, ele disse: “Não, não… eu já estou aposentado”. E com certeza não foi ele! Deve ter sido o outro! E quando perguntaram ao delegado quantos habitantes tinha a cidade, ele respondeu: “Não tem habitantes, tem sobreviventes”. Borges Caramba! “Cem Mortes”! Agora fiquei humilhado. Os vilões que conheci tinham duas ou três mortes nas costas, não mais que isso. E sempre com faca; com revólver, não. Revólver era coisa de gente frouxa, covarde. borges e a eternidade Fuentes Rey Borges, a arte é uma maneira de alcançar a eternidade? Borges Como não espero alcançar a eternidade, isso não me interessa. Eu não acredito em outra vida. Quando estou triste, me consolo pensando que vou desaparecer em breve, que não vou durar. Então, que importa o que possa acontecer nos poucos dias que me restam! Quando outras pessoas tentaram me apaziguar falando de outra vida, eu lhes disse: “Não façam isso comigo, porque eu estou feliz assim”. Vocês ficam me apaziguando com a idéia de que terei de continuar pensando num senhor que se chama Borges e que vivia em Buenos Aires… ora… deixemos todas essas misérias de lado! A teologia é uma das melhores formas de literatura fantástica. Eu não acredito em nada disso. Agora, em casa, aconteceu algo raro. Minha mãe era católica, como todas as senhoras argentinas. Meu pai, agnóstico e livre-pensador (como se dizia na época), como todos os senhores argentinos. Minha avó era muito religiosa, protestante. Minha outra avó também, porém mais convencional, católica. Todos vivíamos juntos e nos gostávamos muito.
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borges e vinicius diante da vida Odile O que é que prende vocês dois à vida? O que sentiriam deixar se lhes dissessem que vão morrer amanhã? Borges Ninguém pode imaginar como irá reagir, mas eu já estive em aviões sob tempestades, e na vizinhança da morte não senti nada, sequer algo interessante. Tenho medo, como todos os homens, da dor física. Mas acredito que, se soubesse que vou morrer hoje à noite de maneira piedosa, acho que ficaria tranquilo, ainda que, é claro, ninguém se conheça tanto assim. Minha vida agora ficou limitada. Eu ia muito ao cinema, e agora já não posso fazê-lo, pois me entristece ver uma tela enorme e não saber se está ocupada por um descampado ou por um rosto humano. Eu gostava muito de ler, agora não posso ler… não posso escrever. Então, quando estou sozinho trato de inventar coisas: enredos de contos, preparar conferências… enfim, posso aguentar bem a solidão. Antes, ao contrário, quando enxergava, eu vivia em Adrogué, e aqueles 40 minutos de trem me pareciam muito demorados se eu não tinha algum livro. Enquanto agora posso ficar duas horas sentado aqui nesta sala, sem que venha ninguém, com o telefone desligado, e simplesmente me deixando viver e levando uma vida passiva. Odile E você, Vinicius… o que prende você à vida? Vinicius O que mais me prende à vida são as mulheres! as drogas e o álcool. a felicidade Vinicius Borges, você não gostaria de se drogar um pouco? Fumar maconha? Borges Experimentei, mas não fez efeito nenhum em mim. A maconha, eu creio, produz menos efeito que uma pastilha de menta… Vinicius Em mim, não… Em mim produz um efeito incrível! Borges Bem, você tem mais sorte do que eu. Fiz várias experiências, com cocaína, e não tiveram nenhum efeito sobre mim. Por outro lado, quando eu era jovem, havia uma bebida muito comum em Buenos Aires, que se conseguia nos armazéns, e ela produzia uma bebedeira muito suave. Às vezes eu tomava bebidas mais fortes, como a grapa ou o uísque. Vinicius O álcool nunca foi um dos seus prazeres… Borges Não, nem um pouco. Na verdade, a única bebida de que eu gostava era água. Também o leite frio, a sidra, e me desculpe dizer, mas gosto do café colombiano. Veja… acredito muito na frase do místico inglês William Blake: “A felicidade vale mais do que a alegria”. É muito mais importante a felicidade, que é serena, do que a alegria, que tem algo de efêmero, de incômodo para os outros, de barulhento. Uma pessoa bêbada sempre faz papel ridículo. Eu já me senti muitas vezes feliz, quando jovem. Cavalgando, por exemplo, ou lendo. Claro, essas felicidades são mais fáceis porque dependem da própria pessoa. Se a felicidade depende de outra pessoa, sempre há um elemento de dúvida, de angústia. Vinicius Nisso somos totalmente diferentes, porque para mim a felicidade sempre depende de outra pessoa. Não posso ser feliz sozinho. Para mim é impossível.
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Borges Ah! Essa é uma fraqueza sua! O importante é ser um Robinson Crusoé e ser feliz. as mulheres e a mulher Vinicius Diga-me, Borges, o que você pensa das mulheres? Borges Eu nunca penso “nas” mulheres, penso em “uma” mulher. Se a pessoa pensa que podem existir ao mesmo tempo duas mulheres, isso quer dizer que não se importa com elas. Sempre me interessei por uma mulher de cada vez. Claro que essa mulher não foi sempre a mesma, mas isso não importa, não. Vinicius O que o atrai nas mulheres agora que você não as vê? Borges Na verdade, você acaba de me lembrar que não as vejo. Eu sinto que uma mulher é linda. Mas não acredito que alguém se apaixone por uma mulher apenas por isso. Conheço mulheres muito lindas que não são especialmente adoráveis, e mulheres muito feias que despertam amores. Vinicius Mas muito, muito feias, não, Borges. Borges Claro que sim! A beleza é um elemento entre outros. Se uma mulher é inteligente, se é sensível, esses são valores. A beleza tem importância, mas não é o único elemento. Vinicius Sim, mas há feias que não têm remédio. a homossexualidade Vinicius O que você acha da homossexualidade? Borges É um assunto do qual não entendo. Vinicius Você não entende que duas pessoas do mesmo sexo possam se amar e viver juntas? Borges Sei que acontece, mas não sei raciocinar sobre isso. Não posso argumentar. Vinicius Se você tivesse um filho homossexual, o rejeitaria? Borges Bem, faria o possível para que desistisse desses gostos curiosos. Veja, há o livro de um autor inglês que diz que a homossexualidade é uma prova da imortalidade da alma, porque se o corpo de um homem tem uma alma de mulher, isso significa que a alma é independente do corpo. Enfim, é um texto que meu pai me mostrou, como uma curiosidade intelectual, nada mais. Agora, eu posso dizer uma coisa. Tenho um amigo homossexual que se diz assim, que assume. Lembro de uma vez que estive em Sevilha. Conheci um senhor com quem eu conversava sobre literatura latina, Sêneca, Virgílio, Tácito. Este senhor me disse: “Vão comentar com você que sou homossexual. Quero esclarecer que não se trata de uma calúnia. Sou homossexual.” Eu achei que, ao me dizer isso, ele era muito homem. E o era de forma geral, a não ser em sua conduta física, que não julgo, porque não julgo o comportamento alheio, salvo, é claro, quando se trata de um ladrão, um traidor ou um assassino. Tradução de Rodrigo Lacerda
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SEM TALVEZ O poeta que habitava o escritor teve seus poemas saudados por Bandeira e Drummond, entre outros
Gilberto Freyre – nem magro, nem gordo: poeta eucanaã ferraz
1. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, organização de Marcos Antonio de Moraes. São Pulo: Edusp/IEB, 2000, p. 337.
2. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1958, v. ii: Prosa, p. 1398.
Os poemas de Gilberto Freyre foram cedidos pela Fundação Gilberto Freyre e pela editora Global, que prepara uma nova edição de Talvez poesia. Na página ao lado, Gilberto Freyre, Pernambuco, s.d.; foto de Maureen Bisilliat © Maureen Bisilliat/Instituto Moreira Salles
Ter um poema admirado e, mais que isso, invejado por Manuel Bandeira era mais do que qualquer poeta poderia sonhar. Pois no dia 1 de fevereiro de 1927, o São João Batista do Modernismo escreveu para Mário de Andrade afirmando: “Gilberto tem um poema sobre a Bahia, estupendo.”1 Logo depois, em 4 de junho, escreveu ao próprio Gilberto Freyre uma longa carta em que declarava a certa altura: “Teu poema, Gilberto, será a minha eterna dor de corno. Não posso me conformar com aquela galinhagem tão gozada, tão sem--vergonhamente lírica, trescalando a baunilha de mulata asseada.”2 Bandeira referia-se a “Bahia de Todos os Santos e de quase todos os pecados”, poema publicado na pernambucana Revista do Norte – Aspectos de vida regional, em 1926. Freyre gostava de lembrar que “Evocação do Recife” – por ele definido como o poema “em certo sentido mais brasileiro de Manuel Bandeira” – tinha sido escrito a pedido seu: O poeta estranhou a princípio o pedido do provinciano. Estranhou que alguém lhe encomendasse um poema para edição especial de jornal como quem encomenda um pudim ou uma sobremesa para uma festa de bodas de ouro. Não estava acostumado – me escreveu de Santa Teresa – a encomendas dessas. Parece que
3. “Manuel Bandeira, recifense”, in Perfil de Euclydes e outros perfis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 175.
teve vontade de não escrever poema nenhum para tal edição – que se tornou depois o Livro do Nordeste, organizado em 1925 para comemorar o primeiro centenário do Diário de Pernambuco.3
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4. “Evocação do Recife” foi recolhido no primeiro livro modernista de Bandeira, Libertinagem, de 1930.
5. “Manuel Bandeira, recifense”, op. cit., p. 176.
6. Poesia e prosa, op. cit., p. 60.
7. É curioso observar que, antecedendo o poema, uma pequena nota registra que o mesmo, escrito em 1926, estava até então inédito. E ainda: “Numa gentileza especial para O Cruzeiro, Gilberto Freyre refez, de memória, ‘Bahia de Todos os Santos e de quase todos os pecados’ (…)”. O Cruzeiro, ano 14, n. 34, p. 56.
O autor de O ritmo dissoluto acabou, no entanto, atendendo à solicitação do conterrâneo e enviou-lhe o esplêndido “Evocação do Recife”.4 À época, não se conheciam pessoalmente e apenas conversavam por carta. A troca de correspondências começara graças a Bandeira – que Gilberto Freyre passaria a tratar, deliciosamente, por Baby Flag –, quando escreveu ao futuro amigo elogiando seus artigos, no Diário de Pernambuco, sobre coisas da terra: paisagens, nomes de ruas e quitutes tradicionais. Freyre, adiante, lembraria: “Eu respondi afoito: pedindo-lhe o poema sobre o Recife de sua meninice”.5 O inventário lírico consubstanciado nos textos do jovem Freyre – então com 25 anos – repercute, decerto, em “Evocação do Recife”. Estão lá os nomes de ruas, os quitutes, as festas populares, os personagens, os modos de falar e conviver, num grande arranjo cinematográfico impulsionado pela memória. Não por acaso, Bandeira, no seu Itinerário de Pasárgada, deixaria consignada uma certa ascendência do amigo, cuja “sensibilidade tão pernambucana” concorreu para lhe “reconduzir ao amor da província”.6 Mas também não é difícil ver na polifonia de “Bahia de Todos os Santos e de quase todos os pecados” uma convergência com “Evocação do Recife”. Muito embora, neste último, a recordação restaure uma infância distante e, no primeiro, o impulso seja apenas a memória de algo bem mais circunstancial – a primeira visita de Freyre a Salvador –, ambos são monumentos fragmentários às cidades que os versos consagram como metonímias de um “Brasil brasileiro”. Cores, formas, cheiros, sons, temporalidades vêm à cena e, cada um a seu modo, os dois poemas são peças de grande vibração afetiva e erótica, plástica e rítmica. Os versos de Gilberto Freyre reapareceram, com várias alterações, na revista O Cruzeiro, de 20 de junho de 1942, número especial, dedicado à Bahia, acompanhados de ilustrações do desenhista português Arcindo Madeiro.7 Ele era já o célebre sociólogo de Casa grande & senzala e de Sobrados e mucambos – o primeiro editado em 1933 e o segundo em 1936 –, obras que, de certo modo, têm seu espírito anunciado no poema, que, designado simplesmente “Bahia”, estampou-se em livro quando Manuel Bandeira o enfeixou na sua Antologia dos poetas brasileiros bissextos contemporâneos, de 1946.
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8. O texto de Bandeira foi republicado com o título “Gilberto Freyre poeta”, na coletânea Gilberto Freyre: sua ciência, sua filosofia, sua arte: ensaios sobre o autor de Casa-Grande & Senzala e sua influência na moderna cultura do Brasil, comemorativos do 25º aniversário da publicação deste seu livro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962, pp. 79-84. 9. Na Antologia dos poetas brasileiros bissextos contemporâneos, Bandeira reproduziu a primeira versão, de 1926.
10. Em 1980, veio à luz, pelas Edições Piratas, de Recife, o volume Poesia reunida.
Mais de uma década depois, no Jornal do Brasil de 1 de abril de 1959, Manuel Bandeira informava que a editora José Olympio dera a conhecer a lista das obras reunidas de Gilberto Freyre e que a programação incluía um volume particularmente interessante: Talvez poesia. O artigo trazia por título uma dúvida sobre a dúvida: “Talvez poesia?”. Além de celebrar o anúncio editorial, o poeta assinalava seu gosto por “Bahia de Todos os Santos e de quase todos os pecados” e era exato, como sempre, ao considerar que o poema era “gordo, como convinha ao tema”.8 Referindo-se às suas duas versões,9 observava que ambas se equivaliam: “há coisas que estão melhor ditas numa do que na outra, e vice-versa.” E, após alguns exemplos, ultimava com esta sugestão: “O poema merece que o seu autor faça um estudo das variantes, fixando a melhor, pois é um dos mais saborosos do ciclo das cidades brasileiras.” Freyre parece haver abraçado o conselho do amigo, já que a versão publicada em Talvez poesia seguiria mais de perto a primeira, com uma ou outra mudança. A obra, publicado pela José Olympio em 1962,10 traz orelhas assinadas pelo poeta Lêdo Ivo, sob o sugestivo título de “Suprimindo um talvez”, e dois prefácios: o “O poeta Gilberto Freyre”, de Mauro Mota, e um “Prefácio do autor”. Curiosamente, o volume abre com uma dedicatória que, além de dar a ver uma admiração, nos desperta a vontade de pesquisar, no volume, uma filiação, um parentesco qualquer entre as escritas de um poeta bissexto e, nesse sentido, o seu antípoda: “A Carlos Drummond de Andrade”. Não havendo, aqui, espaço para tanto, basta-nos, por ora, registrar a recepção do poeta mineiro ao livro que lhe fora dedicado. Escreveu ele em artigo de 31 de maio de 1962, no Correio da Manhã: (…) quero saudar o mais jovem poeta do Brasil, que estreia sob a égide de um coqueiro e uma jangada, postos na capa da edição José Olympio. Chama-se Gilberto Freyre, e duvido que algum dos senhores nunca tenha ouvido falar nesse nome glorioso. Pois se existir esse algum, dê um passo à frente, abra o livro Talvez poesia e trave relações com o poeta. Ficará espantado ao saber que esse poeta é um sociólogo, e terá de rever as noções, que acaso cultive, sobre distinção entre ciência e arte, prosa e poesia, estruturas rítmicas e sonoras consubstanciais à
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poesia. A verdade é que os versos se deixam desentranhar da prosa clara, corrente, colorida e plástica de Gilberto Freyre, e se organizam em poema, como se obedecessem ao comando e à técnica do poeta de ofício. Resta um mistério nessa “conversão” de unidade prosística a verso, ou dessa revelação de verso dormindo na prosa: o próprio mistério da criação literária, jamais desvendado pelos que aplicam métodos estilísticos à análise dos textos, pois estes, quando bons, contêm sempre alguma coisa mais do que parecem conter – e sobretudo uma coisa diversa, como que uma bonificação graciosa. Não é necessário fazer com os textos gilbertianos o que Pius Servien fez com a prosa de Chateaubriand para identificar neles a magia poética. Nessa “alguma coisa” está a poesia exata e irreprimível de Gil11. Crônica inédita em livro.
berto Freyre e o bom leitor que a sinta.11
Em trilha semelhante, Lêdo Ivo observou que o livro “liberta para sempre o poeta que estava acorrentado”: Embora “Bahia de Todos santos e de quase todos os pecados” o coloque entre os poetas clássicos do nosso modernismo, a quase totalidade dos poemas aqui aliciados foi desentranhada ou apenas despregada de sua prosa – muitas vezes como quem 12. Orelha de Talvez poesia.
13. Sobre o processo de desentranhamento na poesia bandeiriana, ver: Davi Arrigucci Jr., Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
colhe uma fruta já madura ou acomoda um fronteiriço.12
Nos poemas do livro, encontra-se, portanto, uma técnica de composição absolutamente singular. E não há dúvidas de que, na origem de tal processo, está, mais uma vez, Manuel Bandeira, ou melhor, um procedimento marcante de sua poética: o desentranhamento. O primeiro e mais eloquente exemplo em sua obra é o antológico “Poema tirado de uma notícia de jornal”, de Libertinagem.13 Mas o procedimento que terá servido de modelo para a construção dos poemas de Talvez poesia foi, certamente, aquele de “Poema desentranhado de uma prosa de Augusto Frederico Schimidt”, publicado em Lira dos cinquent’anos e, ainda, outro, cujo título tudo explica: “Poema encontrado por Tiago de Melo no Itinerário de Pasárgada”. O método é, aparentemente, simples: um texto em prosa tem sua estrutura mudada para versos. Antes, porém, é necessário que as linhas contínuas tenham uma certa qualidade poética, imagística, mas sobretudo um ritmo, que a quebra em versos deverá tornar aparentes ou, mais que, isso, trazer à vida. É fundamental
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14. Talvez poesia, p. 3.
15. Apenas quatro poemas, “Bahia de Todos os Santos e de quase todos os pecados”, “O outro Brasil que vem aí”, “Jangada triste” e “A menina e a casa” não surgiram do desentranhamento ou, como diz Freyre, da “redução de trechos de prosa à forma poemática”.
haver uma escrita em que se pressinta a existência daquele “mistério” de que fala Drummond, um texto que suporte e, mais que isso, que insinue, que deseje a conversão ao verso. Quanto ao trabalho de desentranhamento em Talvez poesia, é Gilberto Freyre quem esclarece ainda: “Os amigos que me auxiliaram na redução de trechos de prosa à forma poemática foram Mauro Mota e Lêdo Ivo”.14 O invulgar está também aí: quase a totalidade dos textos15 nasceu de uma operação em que, acuradíssimas, escrita e leitura completaram-se, fundiram-se, quando dois poetas extraíram trechos de obras estampadas como prosa teórica para lhes dar a forma do poema (sem acréscimos ou supressões, tão só a reestruturação em versos). Freyre tinha um apelido: Magro. Era, tão só, uma referência a seu aspecto físico. Bandeira disse que “Bahia de Todos os Santos e de quase todos os pecados” era um poema “gordo, como convinha ao tema”. Digamos que essa era também a qualidade do Gilberto Freyre escritor, ou melhor, de toda a sua escrita, exuberante, plena de sinestesias, flutuações rítmicas, imagens surpreendentes, efeitos dramáticos. A própria poesia seria um excesso da prosa, uma sobra. Mas se seus poemas desentranhados guardam, de certo modo, essas mesmas qualidades, exibem também contornos muito claros, nítidos, uma sintaxe que se espraia em linhas retas, um gosto pela geometria enxuta, o que lhes dá, enfim, uma qualidade que se poderia assim qualificar: magra. Como decidir? Não decidir. Concluir, apenas, que Gilberto Freyre não era magro nem gordo: era poeta.
O poeta EUCANAÃ FERRAZ é professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro, organizador das edições das obras de Vinicius de Moraes e consultor de literatura do Instituto Moreira Salles.
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bahia de todos os santos e de quase todos os pecados Bahia de Todos os Santos (e de quase todos os pecados) casas trepadas umas por cima das outras casas, sobrados, igrejas, como gente se espremendo pra sair [num retrato de revista ou jornal (vaidade das vaidades! Diz o Eclesiastes) igrejas gordas (as de Pernambuco são mais magras) toda a Bahia é um maternal cidade gorda como se dos ventres empinados dos seus montes dos quais saíram tantas cidades do Brasil inda outras estivessem pra sair ar mole oleoso cheiro de comida cheiro de incenso cheiro de mulata bafos quentes de sacristias e cozinhas panelas fervendo temperos ardendo o Santíssimo Sacramento se elevando mulheres parindo cheiro de alfazema remédios contra sífilis letreiros como este: Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo (Para sempre! Amém!) automóveis a 30$ a hora e um ford todo osso sobe qualquer ladeira saltando pulando tilintando pra depois escorrer sobre o asfalto novo que branquejada como dentadura postiça em terra encarnada (a terra encarnada de 1500) gente da Bahia! preta, parda, roxa, morena cor dos bons jacarandás de engenho do Brasil (madeira que cupim não rói) sem rostos cor de fiambre nem corpos cor de peru frio Bahia de cores quentes, carnes morenas, gostos picantes eu detesto teus oradores, Bahia de Todos os Santos teus ruisbarbosas, teus otaviosmangabeiras mas gosto das tuas iaiás, tuas mulatas, teus angus tabuleiros, flor de papel, candeeirinhos,
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tudo à sombra das tuas igrejas todas cheias de anjinhos bochechudos sãojões sãojosés meninozinhosdeus e com senhoras gordas se confessando a frades mais magros do que eu O padre reprimido que há em mim se exalta diante de ti Bahia e perdoa tuas superstições teu comércio de medidas de Nossa Senhora e de Nossossenhores do Bonfim e vê no ventre dos teus montes e das tuas mulheres conservadores da fé uma vez entregue aos santos multiplicadores de cidades cristãs e de criaturas de Deus Bahia de Todos os Santos Salvador São Salvador Bahia Negras velhas da Bahia vendendo mingau angu acarajé Negras velhas de xale encarnado peitos caídos mães das mulatas mais belas dos Brasis mulatas de gordo peito em bico como pra dar de mamar a todos os meninos [do Brasil Mulatas de mãos quase de anjos mãos agradando ioiôs criando grandes sinhôs quase iguais aos do Império penteado iaiás dando cafuné nas sinhás enfeitando tabuleiros cabelos santos anjos lavando o chão de Nosso Senhor do Bonfim pés dançando nus nas chinelas sem meia cabeções enfeitados de rendas estrelas marinhas de prata teteias de ouro balangandãs presentes de português óleo de coco azeite de dendê Bahia Salvador São Salvador Todos os Santos Tomé de Sousa
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Tomes de Sousa padres, negros, caboclos Mulatas quadrarunas octorunas a Primeira Missa os malês índias nuas vergonhas raspadas candomblés santidades heresias sodomias quase todos os pecados ranger de camas-de-vento corpos ardendo suando de gozo Todos os Santos missa das seis comunhão gênios de Sergipe bacharéis de pince-nez literatos que leem Menotti del Picchia e Mário Pinto Serva mulatos de fala fina muleques capoeiras feiticeiras chapéus-do-chile Rua Chile viva J. J. Seabra morra J.J. Seabra Bahia Salvador São Salvador Todos os Santos um dia voltarei com vagar ao teu seio moreno brasileiro às tuas igrejas onde pregou Vieira moreno hoje cheias de frades ruivos e bons em teus tabuleiros escancarados com x (esse x é o futuro do Brasil) a tuas casas a teus sobrados cheirando a incenso comida alfazema cacau.
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VELHAS JANELAS DO RECIFE E DE OLINDA velhas janelas do Recife e de Olinda últimos olhos para as cidades que se transformam. Da janela escancarada do nicho da igreja do Livramento, todas as noites desce sobre o bairro, sobre o Recife todo um longo olhar de queixa; e outro olho de queixa é o do nicho do convento do Carmo, que às vezes também se escancara e se ilumina. Nas ruas napolitanas do bairro de São José com as roupas a secar ainda se encontram antigas janelas quadriculadas os xadrezes dos postigos que outrora amouriscavam todo o Recife.
Em Olinda, na Rua do Amparo, existe o abalcoado levantino que romantiza toda a rua, à noite. Na varanda parece debruçar-se doce figura de mulher que chama o cauteloso amante em capa negra para um encontro como nas estampas do tempo de Romeu e Julieta.
Através do xadrez dessas velhas janelas as mulheres de outrora de um viver quase árabe gulosamente olhavam o que ia lá fora.
Essas velhas janelas tomavam ar de festa apenas durante os dias de procissão. Botavam-lhe as sanefas de damasco e de seda, ou de veludo, orgulho das arcas e baús
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dessas casas fidalgas as mulheres então olhavam nas varandas ou ficavam de joelhos sobre os abalcoados benzendo-se e rezando diante da procissão.
Imagens tristes de Nossos Senhores e de Nossas Senhoras cujos olhos eram de queixa e dor; santos, andores, padres gordos de murças e de rendas; frades com seus cordões, os irmãos de opas e escapulários de variadas cores.
Ficavam na varanda e no abalcoado, as mulheres entre o pelo-sinal e entre a rua e as sanefas. Essas velhas janelas…
LUZ DE OLINDA Luz que deixa ver o fundo da areia de Beberibe, que dá brilho aos azulejos velhos das sacristias, dos corredores de convento, das frentes dos sobrados, que não deixa que os vultos dos mosteiros e das igrejas dominem Olinda com abafados de sombras duras, negras e tiranicamente clericais, povoadas de corujas e morcegos. Luz do sol de Olinda que dá às lagartixas a coragem de passear pelos pés dos São Bentos mais sisudos; coragem aos passarinhos de pousar nos São Josés dos altares, nas próprias coroas de ouro das Nossas Senhoras.
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A MOCIDADE DE UM HOTEL É CURTA Na vida de um hotel quinze anos são como cinco na vida de um bailarino: [contam. Poucos são os hotéis que sabem envelhecer. E nada mais difícil. O hotel é o contrário da igreja, do castelo, do convento, da própria casa (cujo valor ou encanto aumenta com o tempo). A mocidade de um hotel é curta. Aos cinquenta anos já é um monstro evitado por quase toda gente (menos os antiquários, os sentimentais, os excêntricos). PÉS BAILARINOS Pés africanos desde o Senegal, mesmo quando sujos e de trabalhadores rurais, aristocráticos e superiormente belos. Pés que fazem de quase todo africano um eterno bailarino no regozijo, na dor, no sexo, no temor, na fé, bailando, servindo-se do corpo inteiro, mas principalmente dos pés. Os pés do europeu são, de ordinário, só para caminhar. Os do europeu rico quase não caminham apenas sustentam ou completam o corpo. Os do africano, e não apenas os da africana, até caminhando parecem dançar. Lembrança de Baudelaire: Même quand elle marche on dirait qu’elle danse. Pés bailarinos ao lado dos quais os de lordes ingleses, comendadores italianos, membros da Academia Francesa, generais alemães, milicianos americanos, talvez se achatassem todos em caricaturas, se fossem submetidos a um exame de antropologia estética.
O portfólio de fotopinturas aqui apresentado reúne imagens da coleção de Titus Riedl, sociólogo, historiador e fotógrafo nascido na Alemanha e residente no Crato, Ceará, onde é professor da Universidade Regional do Cariri (Urca) e pesquisador dos ofícios, oficinas e estúdios fotográficos populares e tradicionais do Nordeste brasileiro. ¶ As fotopinturas reúnem a verossimilhança da fotografia original com a possibilidade posterior de ampla idealização dos retratados. Na imagem final, são inseridos, por meio de desenhos e sobrepinturas, elementos de cor e de prestígio, como peças de vestuário, joias e outros elementos que não fazem necessariamente parte do universo do retratado. Elas permitem também a “construção” de retratos conjuntos de casais e famílias, a partir de fotografias tomadas em momentos diferentes. ¶ Desse processo, resultam imagens que possuem fortes componentes estéticos e culturais, que revelam valores pessoais e sociais de amplas camadas de nossa população. Talvez seja essa a principal contribuição que estudos como este, sobre a fotografia vernacular, possam trazer para a compreensão da cultura brasileira em suas múltiplas dimensões. ¶ A relevância dessas imagens é também evidenciada por integrarem o recente livro Retratos pintados (Portland, 2010), publicado pela Nazraeli Press, editado integralmente a partir da coleção de Titus Riedl e organizado pelo fotógrafo Martin Parr. sergio burgi
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A ilustração da capa deste número especial da serrote e as deste ensaio de Edith Warthon são de autoria do designer gráfico Peter Campbell, realizadas para a London Review of Books © London Review of Books
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advertência Considerada uma virtude, a leitura por obrigação é, na verdade, uma ameaça aos verdadeiros leitores e, o que é pior, aos melhores escritores
O vício da leitura Edith Wharton
A “difusão do conhecimento”, que costuma ser considerada um dos avanços da modernidade, junto com o aquecimento a vapor e o sufrágio universal, criou incidentalmente um novo vício – o da leitura. Nenhum vício é tão difícil de erradicar quanto os que são popularmente considerados virtudes. Entre esses, o vício da leitura é o principal. Geralmente se admite que ler besteiras é um vício, mas a leitura per se – o hábito de ler –, nova como é, já é colocada ao lado de virtudes tão amadurecidas quanto a frugalidade, a sobriedade, acordar cedo e exercitar-se regularmente. Há, na verdade, algo peculiarmente agressivo na virtuosidade de quem lê por dever. Por aqueles que mantêm os caminhos humildes do que é prescrito, ele é reverenciado como se seguisse um modelo de perfeição. “Eu gostaria de ter lido tanto quanto você”, declara o neófito inculto a esse mestre do supérfluo; e o leitor, acostumado ao incenso do aplauso acrítico, naturalmente considera sua ocupação uma conquista intelectual notável. A leitura deliberada – que pode ser chamada de leitura volitiva – não é mais leitura do que a erudição é cultura. A verdadeira leitura é uma ação de reflexo. O leitor nato lê de maneira tão inconsciente quanto respira, e, para levar a analogia um pouco mais longe, a leitura não é uma virtude maior do que a respiração. Na mesma proporção em que é considerada meritória, ela se torna inútil. O que é a leitura, em última análise, senão um intercâmbio de pensamento entre o escritor e o leitor? Se o livro entra na mente do leitor do mesmo modo que saiu da do escritor – sem quaisquer acréscimos e modificações gerados inevitavelmente pelo contato com um novo conjunto de pensamento –, ele foi lido sem propósito nenhum. Nesses casos, é claro, nem sempre se deve
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culpar o leitor. Há livros que são sempre a mesma coisa – incapazes de modificar ou serem modificados –, mas esses não são importantes na literatura. O valor dos livros é proporcional ao que se pode chamar de sua plasticidade – sua qualidade de ser todas as coisas para todos os homens, de ser moldados diversamente pelo impacto de novas formas de pensamento. Quando, por um motivo ou outro, essa adaptabilidade recíproca está faltando, não pode haver nenhum intercâmbio real entre o livro e o leitor. Nesse sentido, pode-se dizer que não há nenhum padrão abstrato de valores na literatura: os maiores livros já escritos valem para cada leitor apenas o que ele pode extrair deles. Os melhores livros são aqueles dos quais os melhores leitores são capazes de extrair a maior quantidade de pensamento da mais alta qualidade, mas, em geral, é desses livros que o leitor medíocre extrai menos. Ser um leitor medíocre pode ser considerado, portanto, uma infelicidade, mas certamente não é um defeito. Por que deveríamos todos ser leitores? Não se espera que todos sejamos músicos, mas ler nós devemos e, assim, os que não podem ler criativamente leem mecanicamente – como se um homem que não tivesse aptidão para o violino considerasse o ato de girar a manivela de um realejo um feito equivalente a tocar! Deve-se entender de início que, em matéria de leitura, os verdadeiros agressores não são os que se restringem ao que é reconhecido como lixo. Há pouco prejuízo no devorador confesso de ficção idiota. Quem se regala com o “romance da vez” não causa grave empecilho ao desenvolvimento da literatura. A inclinação da mente que percebe nas divisões naturais do melão uma indicação de que ele se destina a ser comido en famille poderia até considerar certas obras – os livros do tipo caça-níqueis ou pressione-o-botão, que não requerem nenhum esforço além de virar as páginas e usar os olhos – como planejados especialmente para o consumo do leitor mecânico. A providência produz um suprimento infalível de autores cuja missão óbvia é salvaguardar a literatura dos estragos dos não inteligentes. É só quando se afasta dos seus pastos predestinados que o leitor mecânico se torna um perigo para as letras. Essa ideia de que a leitura é uma qualidade moral, infelizmente levou muitas pessoas conscienciosas a renunciar a seu flerte inócuo com a literatura ligeira em favor de um intercurso mais vigoroso. Essas são as pessoas que “tornam a leitura uma regra”. A “plataforma” dos mais ambiciosos na verdade inclui a grande determinação de estar a par de tudo o que está sendo escrito! O desejo de se manter atualizado aparentemente é o incentivo mais forte dessa classe de leitores: eles parecem considerar a literatura um bonde em que só é possível “embarcar” correndo, enquanto é possível encontrar muitos leitores natos perdendo tempo descaradamente nos momentos de chá das carruagens e dos cabriolés sem sequer estar cientes dos novos meios de locomoção. O vício da leitura passa a ser uma ameaça à literatura quando o leitor mecânico, munido dessa alta concepção de dever, invade o domínio das letras –
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1. Ignacy Jan Paderewski (1860-1941), polonês, um dos mais célebres e admirados pianistas de sua época.
2. Em tradução livre, O fogo e a espada no Sudão, obra de sir R. Slatin Pasha. [n. do t.]
discute, critica, condena ou, pior ainda, elogia. Mesmo assim, poderia parecer de gosto duvidoso se melindrar com uma intrusão acarretada por motivos tão respeitáveis, não fosse o fato de que a autossuficiência incorrigível do leitor mecânico faça dele um objeto de ataque justo. O homem que faz a manivela do realejo girar não se compara com Paderewski,1 mas o leitor mecânico nunca duvida de sua competência intelectual. Assim como a graça traz a fé, é de se supor que esse zelo pelo autoaprimoramento traga massa cinzenta. Ler não é uma virtude, mas ler bem é uma arte, que só o leitor nato pode conquistar. O dom da leitura não é nenhuma exceção à regra de que todos os dons naturais precisam ser cultivados por meio da prática e da disciplina, porém, a menos que haja aptidão inata, o treino será desperdiçado. É ilusão do leitor mecânico pensar que as intenções possam ocupar o lugar da aptidão. Isso está tão longe de ser verdadeiro que há certos sinais genéricos pelos quais o leitor nato detecta sua cópia manufaturada sob qualquer disfarce que ela possa assumir. Uma dessas idiossincrasias é o hábito de considerar a leitura com objetividade. O leitor mecânico, como sempre lê conscientemente, sabe com exatidão o quanto lê, e lhe dirá isso com o orgulho de uma dona de casa zelosa que calcula milimetricamente o consumo diário de comida. Como a dona de casa está pronta para ir ao mercado todo dia em determinada hora, o leitor mecânico, com frequência, também tem hora certa para seus abastecimentos intelectuais, e é comum que leia apenas tantas horas por dia. Em um dos diários da juventude de Hamerton, a afirmação “vou começar agora um curso de leitura de poesia, começando com 50 horas de Chaucer, e, como já dispensei a ele uma hora e meia na última noite, restam-me exatamente 48 horas e meia” é um bom exemplo desse tipo de leitura. É por isso que os que leem por tempo muitas vezes “não tem nenhum tempo para ler”; uma praga ignorada pelo leitor nato, cuja leitura forma uma corrente contínua com todas as suas outras ocupações. O leitor mecânico é escravo de seu marcador de livro: se perder o ponto em que está, terá a necessidade maçante de voltar para o começo. Conta-se no Fire and Sword in the Soudan2 a história de um leitor como esse mantido por um ano por um parente irreverente, por meio do estratagema cruel de mudar o marcador a cada noite. O leitor nato é seu próprio
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3. Samuel Johnson (1709-1784) foi um poeta, ensaísta e crítico inglês, conhecido como dr. Johnson. Era conhecido como um leitor voraz, mas deslizava a vista sob os livros, encontrando neles ideias que lhe fossem úteis. Para ele, ler um livro do começo ao fim, detalhadamente, era inconcebível. [n. do e.]
4. Série de guias turísticos publicada na Alemanha. [n. do t.]
5. Em francês, no original: paisagem selecionada. [n. do e.]
marcador de livros. Ele instintivamente lembra em que cena no argumento ele depôs seu livro, e as páginas se abrem por si mesmas no ponto pelo qual ele procura. Cabe dizer que o leitor mecânico é regularmente meticuloso na realização de sua tarefa: uma de suas normas é nunca passar por cima de uma palavra, e ele sempre pode enfrentar o imortal “Você lê os livros até o fim?”, do triunfante e enfático doutor Johnson.3 Esse princípio inexorável sem dúvida se baseia no fato de que o leitor mecânico é incapaz de discernir intuitivamente se um livro vale ou não a pena ser lido. Com efeito, enquanto não tiver lido a última linha do livro, será incapaz de formar qualquer opinião sobre ele, tampouco poderá dar qualquer justificativa adequada para sua opinião quando formada. Por ver todos os livros de fora, e sem ter nenhum ponto de contato com a mente do autor, ele não leva em conta o temperamento nem o ambiente, nesse processo de transposição e seleção que faz do livro mais impessoal o produto de condições únicas. É óbvio que o leitor mecânico, tomando cada livro separadamente como uma entidade suspensa no vazio, deve perder todos os desvios e atalhos de seu tema. Ele é como um turista que dirige de uma “paisagem” a outra sem olhar para nada que não esteja assinalado no Baedeker.4 Os prazeres da vadiagem intelectual, da caça improvisada de uma alusão passageira, sugerida vez ou outra pelo torneio de uma frase ou pela simples natureza de uma palavra, ele ignora placidamente. Para ele, a questão é o livro: a ideia de usá-lo como uma tônica de harmonias não premeditadas, como o pórtico para alguma paysage choisi 5 do espírito, está além de seu alcance. O leitor mecânico considera seu dever ler todo livro sobre o qual se fala; um dever que fica menos opressivo pelo fato de que ele pode julgar de antemão, a partir das dimensões materiais de cada livro, quanto espaço ele ocupará em sua cabeça: não há necessidade de se permitir alguma expensão. Ao leitor mecânico, os livros, uma vez lidos, não são como coisas que crescem, deitam raízes e entrelaçam os ramos, mas como fósseis etiquetados e acondicionados nas gavetas do armário do geólogo, ou, de preferência, como prisioneiros condenados a prisão perpétua. Em uma mente como essa, os livros nunca dialogam entre si. O percurso do leitor mecânico é orientado pela vox populi. Ele vai direto ao livro sobre o qual está se falando, e a percepção que esse leitor tem da importância do livro é proporcional ao
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6. Referência ao poema A balada do velho marinheiro, de Samuel Taylor Coleridge. A senhora Barbauld diz que admirava muito o velho marinheiro, mas ele tinha dois defeitos: “era improvável e sem moral”. [n. do e.]
número de edições esgotadas antes da publicação, visto que ele não tem meios de distinguir as diversas classes de livros de que se fala, tampouco distinguir as vozes que falam. É uma parte do dever do leitor mecânico emitir uma opinião sobre todo livro que ele lê, e por vezes é levado a estranhas mudanças na realização conscienciosa de sua tarefa. É de sua natureza desconfiar e desgostar de todo livro que não entenda. “Não consigo ler, portanto, quero que se queimem todos os livros.” No íntimo, o leitor mecânico pode algumas vezes ecoar esse desejo de inveja do Doutor Fausto, porém, por ser também uma parte de seu dever “gostar de ler”, ele é obrigado a reprimir seu impulso bibliocida e buscar uma forma de adjudicar, quando o linchamento teria sido muito mais simples. É simplesmente natural que o leitor que considera a leitura uma obrigação moral confunda juízos morais e intelectuais. Eis aqui um livro sobre o qual todos estão falando; o número de edições é uma prova quase irrefutável de seu mérito; contudo, para o leitor mecânico, o livro é enigmático, e ele acha refúgio na desaprovação. Admite a engenhosidade, evidentemente, mas uma das personagens “não é boa”, logo, o livro não é bom. Ele se surpreende que você tenha se dado o trabalho de lê-lo. O leitor mecânico, depois de algumas experiências, toma conhecimento da força da desaprovação como uma arma crítica, e logo ela se torna sua principal defesa contra a exigência irritante de admirar o que ele não consegue entender. Vez ou outra, sua desaprovação é temperada por concessões filosóficas à complacência humana: como no caso da senhora que não poderia aprovar os romances de Balzac, mas estava disposta, é claro, a admitir que “eles tinham sido escritos no mais belo francês”. Um bom exemplo dessa desaprovação temperada é fornecido pelo veredito da senhora Barbeauld sobre o velho marinheiro: Ela o declarou “improvável”.6 A obrigação de se expressar uma opinião sobre todo livro que está sendo comentado leva ao hábito repreensível, mas natural, de se tomar opiniões emprestadas. Quem quer que tenha contato com um grupo de leitores mecânicos, logo se acostuma ao uso socialista de certas fórmulas e ao rápido processo de erosão e distorção por que passam opiniões muito emprestadas. Sabe-se de pessoas que se mostram insensíveis o bastante e têm prazer de pegar o leitor mecânico
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7. Verso do poema “For our Lady of the Rocks by Leonardo da Vinci”, de Dante Gabriel Rossetti. [n. do t.]
8. Referência à obra Manoeuvring, de Maria Edgeworth (1767-1849). [n. do e.]
desprevenido, pedindo-lhe uma opinião, e é preciso concordar que o resultado às vezes justifica a teoria de que nenhum esporte é tão divertido quanto os temperados com crueldade. Nesses extremos, os expedientes a que recorrem os leitores mecânicos não raro fazem justiça a sua inventividade; como quando uma senhora, subitamente indagada sobre o que pensava de Quo Vadis, respondeu que não tinha nenhum defeito a apontar no livro exceto que “nada acontecia nele”. Até aqui, tratamos apenas do que pode se chamar de leitor mecânico médio: uma designação que abarca a grande maioria dos consumidores de livros. Há, contudo, um tipo surpreendente de leitor mecânico – aquele que, farto da diversão filistina de “entender o óbvio”, arrojadamente abre caminho “em meio à amargura das coisas ocultas”.7 O transcendentalismo deve muito de sua popularidade perene a certa reverência pelo ininteligível, e seus discípulos são em grande parte recrutados da classe dos leitores que consideram ler um livro uma façanha intelectual tão grande quanto compreendê-lo. Mas esses devotos do esotérico existem em número reduzido demais para serem nocivos. É o leitor mecânico médio quem de fato põe em perigo a integridade das letras; isso pode parecer uma acusação curiosa a ser feita contra essa maioria voraz. Como podem os que criam a demanda pelas centenas de milhares de volumes impressos ser acusados de malevolência para com as letras? No agudo estudo de caráter Manoeuvring, a senhorita Edgeworth diz sobre uma de suas personagens: “A mente dela jamais fora assoberbada por uma torrente devassa de erudição. Que o regato da literatura passara por ela era visível apenas pela sua fertilidade.”8 Dificilmente poderia haver uma descrição mais feliz dos que leem intuitivamente; e sua antítese retrata com igual propriedade o leitor mecânico. A mente dele é devastada por essa torrente devassa de erudição que suas exigências ajudaram a aumentar. É provável que, se ninguém lesse, a não ser os que sabem como ler, ninguém produziria livros, exceto os que sabem como escrever, mas ter estimulado o autor mecânico é a menor das afrontas cometidas pelo leitor mecânico. Os dois foram feitos um para o outro, e podem se alimentar um do outro impunemente. A perniciosidade do leitor mecânico é quádrupla. Em primeiro lugar, ao criar a demanda por escritos medíocres, ele facilita a carreira do autor medíocre. O crime de encantar o
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9. Obras escritas por, respectivamente, Stendhal e Benvenuto Cellini. [n. do e.]
10. Fausto é o protagonista da obra-prima de Goethe; Faublas é o protagonista de Les amours de chevalier de Faublas, série de romances escritos por Jean-Baptiste Louvet. [n. do e.]
talento criativo com as tropas da produção mecânica é, de fato, a ofensa mais grave do leitor mecânico. Em segundo lugar, em virtude de sua paixão por versões “populares” de temas obscuros e complexos e por confundir as mais precipitadas banalidades científicas requentadas com as concepções lentamente amadurecidas de um pensador original, ele retarda a verdadeira cultura e diminui a quantidade possível de trabalhos realmente duradouros. O hábito de confundir juízos morais e intelectuais é a terceira causa de sua perniciosidade para a literatura. A inadequação do credo literário da “arte pela arte” tem sido reconhecida. Não é requerendo que o escritor imaginativo seja sensível a “questões sutis” que o leitor mecânico interfere na produção de obras-primas, mas pela sua inerente incapacidade de discernir as “questões sutis” de qualquer livro, por mais notável que seja, que apresente algum obstáculo incidental a sua visão. Para aqueles que consideram a literatura uma crítica da vida, nada é mais enigmático do que essa incapacidade de distinguir entre a tendência geral de um livro – seu valor técnico e imaginativo como um todo – e suas características meramente episódicas. Talvez seja natural que o leitor mecânico confunda o amoral com o imoral; ele pode ser perdoado por uma classificação errada de livros, como La Chartreuse de Parme ou Life de Benvenuto Cellini.9 Sua perniciosidade à literatura está em sua ignorância contumaz do fato de que qualquer representação séria da vida deve ser julgada não pelos incidentes que apresenta, mas pela percepção que o autor tem de seu significado. O livro nocivo é o livro banal: ele depende do escritor, e não do tema, quer a contemplação da vida resulte em Fausto ou em Faublas.10 Para se aferir a falta dessa percepção no leitor médio, deve--se voltar para o livro comum “impróprio” da atual ficção inglesa e norte-americana. Nessas obras, usufruídas sob protesto, com a desculpa de que são “desagradáveis, mas tão poderosas”, vê-se o reflexo da imagem que os grandes retratos da vida deixam na mente do leitor mecânico e de seu romancista. Há a colocação de incidentes “dolorosos”, mas o restante, não sendo percebido, é deixado de fora. Por fim, o leitor mecânico, por sua demanda de literatura peptizada e sua incapacidade de diferenciar entre os meios e o fim, orientou mal as tendências da crítica, ou melhor, produziu uma criatura a sua própria imagem – o crítico
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mecânico. O correspondente em Londres de um jornal de Nova York recentemente citou um “renomado crítico inglês”, afirmando que as pessoas não tinham mais tempo de ler análises críticas de livros – que o que queriam era um resumo do conteúdo. Evidentemente, é uma questão aberta (e dificilmente dentro do escopo dessa argumentação) o quanto a literatura é beneficiada pela crítica; todavia, falar como se a análise de um livro fosse um tipo de crítica e a catalogação de seu conteúdo, outro, é um absurdo evidente. O leitor nato pode ou não querer ouvir o que os críticos têm a dizer de um livro, porém, se ele se importa com qualquer crítica, quer o único tipo digno do nome – uma análise do tema e do estilo. Quem não tem tempo para esse tipo de crítica certamente não despenderá nenhum com o resumo do conteúdo de um livro: um inventário de seus incidentes, terminando com o convencional “mas não vamos estragar a satisfação do leitor ao revelar etc.”. É o leitor mecânico que exige esses inventários e os chama de críticas; e é porque o leitor mecânico forma a maioria que os extratores mecânicos de enredo estão desbancando rapidamente os críticos. Independentemente de a verdadeira crítica ser útil ou não à literatura, está claro que essa pseudocrítica é danosa, uma vez que coloca livros de qualidades diversas no mesmo tom uniforme da mediocridade, ignorando seus verdadeiros conteúdos e significados. É impossível dar uma ideia do valor de qualquer livro, exceto, talvez, de uma história de detetive, pela recapitulação de seu conteúdo; e até mesmo as qualidades que diferenciam a boa história de detetive da ruim podem ser definidas menos pela sequência de fatos que pela manipulação do tema e pela escolha dos meios usados para produzir um determinado resultado. Todas as formas de arte são baseadas no princípio da seleção, e quando esse princípio não é levado em conta na essência de qualquer produção intelectual, não pode haver nenhuma crítica genuína. É dessa forma que o leitor mecânico trabalha sistematicamente contra o melhor na literatura. Obviamente, é para os escritores que ele é mais pernicioso. O caminho largo para a aprovação é tão fácil de trilhar e tão apinhado de prósperos colegas de viagem, que muitos jovens peregrinos foram atraídos a ele pelo simples desejo de companhia. Talvez antes do fim da jornada, antes que cheguem ao Palácio das Platitudes e se sentem para um banquete de consagração, com os escrevinhadores que eles mais desprezam se servindo sem reprovação dos muitos pratos preparados em suas honras, os pensamentos deles se voltem ansiosos para aquele outro caminho – a senda estreita que leva aos “poucos felizardos”. Primeira mulher a ganhar o Prêmio Pulitzer de Literatura, em 1921, com A era da inocência, edith wharton (1862-1937) nasceu nos Estados Unidos e se consolidou como escritora na Europa. Viveu entre a França e a Inglaterra, onde conheceu Henry James, amigo e influência fundamental. “O vício da leitura” foi publicado na North American Review em 1903 e está entre textos menos conhecidos entre clássicos como The house of Mirth (1905) e Ethan Frome (1911). Tradução de Alípio Correia de Franca Neto
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