Mia Couto Escritor e Biólogo, Maputo
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embro-me que há cerca de 9 anos falei numa conferência que era sobre o medo, e chamei à apresentação “Morar no Medo” e agora que voltei a pensar nisto, voltei a chamar “Morar no Medo” a estas pequenas notas. Não é um texto pensado de uma só vez, mas são notas que fui tirando. Viajei há cerca de um mês de Moçambique e um funcionário disse que não podia entrar. -”O senhor não sabe que Portugal não está aberto ao turismo? - E eu respondi que não, não sabia, até pensava que fosse o contrário, o que eu ouvia nas televisões de Portugal era que o Governo Português celebrava realmente a chegada de turistas, nomeadamente de turistas ingleses e de turistas europeus onde a taxa de infeção era realmente muito mais alta do que a de Moçambique. E esta minha observação fez com que o funcionário, apesar de ter falado com toda a gentileza, com toda a educação, parecesse um pouco confuso, e ficou claro para os dois que o problema não era eu, o problema era o meu passaporte. E este documento dizia que eu vinha de um país africano, de um país pobre, onde moram geralmente as doenças e os medos que essas doenças inspiram. Na verdade, esta pandemia fez desencontrar certezas: uma primeira certeza que assenta nessa geografia clássica
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Conferência de Lisboa – 4 _ 2020 Lisbon Conference – 4
Writer and Biologist, Maputo
das desgraças - as pestes chegam sempre do hemisfério Sul, as epidemias nascem nas nações mais pobres, nos países tidos como “menos limpos”. Mas a geografia desta pandemia não coincide com esta afirmação, desta vez não são os africanos aqueles que têm que ser mais temidos, os mais infetados não são os de África, os mais infetados estão até do lado da “civilização”. E, de repente, naquele balcão do aeroporto surgiu um curioso desencontro de certezas e de identidades, o polícia de emigração, que já não sabia ser polícia, e eu que não sabia ser aquilo que o meu passaporte anunciava. Esta pequena introdução quer mostrar que há aqui uma dificuldade que deve ser enunciada. É muito difícil pensar o medo, porque eu acho que o medo é sobretudo da ordem da paixão. O medo nasce antes de nós nascermos. Existe até um certo prazer que vem daquilo que o Adrian disse, como é que o medo foi, digamos, uma espécie de tábua de salvação para a nossa própria sobrevivência enquanto espécie frágil, e por isso há um certo prazer em termos medo, um medo doseado, ou um medo domesticável, como acontece nos filmes e nos livros de terror. De alguma maneira, esse medo consentido salva-nos de um medo maior, que é um medo da ausência total, que é o medo do fim, o medo do vazio. Portanto, acontece um pouco como as vacinas e como os venenos: uma pequena dose de medo torna-nos imunes contra o medo fatal. E outra coisa que eu acho, é que devemos falar dos medos no plural porque existem dife-
A ACELERAÇÃO DAS MUDANÇAS GLOBAIS THE ACCELERATION OF GLOBAL CHANGE