ARTIGO II: Do direito à vida à intervenção precoce

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Do direito à vida à intervenção precoce: desafios na detecção e prevenção de alterações do desenvolvimento Vanessa Madaschi

O desenvolvimento tecnológico na área da saúde aliado ao aumento da aplicação da medicina baseada em evidência na prática de assistência neonatal tem propiciado maior sobrevida de recém-nascidos (RN) com idade gestacional (IG) e peso ao nascimento progressivamente menores. De acordo com dados apresentados pelo Datasus, em 2010, no Brasil, entre os anos de 2000 a 2009, a incidência da prematuridade de recém-nascidos abaixo de 1000g aumentou de 0,4 para 0,6% e dos recém nascidos abaixo de 1500g variou de abaixo de 1% no ano 2000 chegando a 1,3% em 2009. Respectivamente, a sobrevida nesses neonatos também sofreu larga ampliação: em 2009, dos 6.560 recém nascidos vivos abaixo de 1000g, 38% sobreviveram e dos 22.368 recém nascidos abaixo de 1500g, sobreviveram 59,8%. A taxa de mortalidade infantil (referente às crianças menores de um ano) caiu muito nas últimas décadas no Brasil. Graças às ações de diminuição da pobreza, ampliação da cobertura da Estratégia Saúde da Família e a outros fatores, os óbitos infantis diminuíram de 47,1 a cada mil nascidos vivos, em 1990, para 15,6 em 2010 (IBGE, 2010). Entretanto, a meta de garantir a toda criança brasileira o direito à vida e à saúde ainda não foi alcançada, pois persistem desigualdades regionais e sociais inaceitáveis. Além disso, 68,6% das mortes de crianças com menos de um ano acontecem no período neonatal (até 27 dias de vida), sendo a maioria no primeiro dia de vida. Assim, um número expressivo de mortes por causas evitáveis por ações dos serviços de saúde – tais como a atenção pré-natal, ao parto e ao recém-nascido (RN) – faz parte da realidade social e sanitária de nosso País. De nada adiantará tal esforço para a sobrevivência de todos os RNs nas maternidades sem um processo adequado de seu encaminhamento para a continuidade dos cuidados, que são personalizados para as necessidades de cada uma dessas crianças, seja em ambulatórios especializados (no caso de RNs saídos de UTIs com necessidade deste tipo de atenção), seja na Atenção Primária à Saúde (APS). Bebês de alto risco geralmente provêm de uma gestação de risco. Estas

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gestações apresentam fatores que aumentam a probabilidade de complicações no período neonatal e perinatal como a prematuridade, o retardo do crescimento intrauterino, as malformações congênitas, o retardo mental e do desenvolvimento motor. Estudos de seguimento ou follow-up de bebês apontam que os nascidos pré-termo manifestam diferentes perfis de comportamentos quando comparados aos bebês nascidos a termo. Durante anos, atribuiu-se o desenvolvimento motor apenas à maturação do sistema nervoso central (SNC), porém, atualmente, sabe-se que esse processo está interligado ao desenvolvimento dos demais sistemas orgânicos (cardiorrespiratório, musculoesquelético entre outros). O ambiente também exerce papel importante no desenvolvimento motor. São as experiências iniciais da vida com o meio externo que estruturam o SNC, transformando atividades reflexas em habilidades motoras refinadas. Ainda durante esse período, se o bebê e a criança forem privados destes estímulos e ou sofrerem alterações no processo de maturação do SNC, o desenvolvimento neuropsicomotor poderá ficar comprometido. Considerando a pluralidade dos fatores que interferem no pleno desenvolvimento do bebê e da criança, o período sensível que está predisposta a fazer conexões cerebrais através das janelas de oportunidades e da plasticidade cortical, a realização do diagnóstico precoce de qualquer alteração do desenvolvimento permitirá a intervenção, a estimulação e a reabilitação precoce dessas alterações. Para Papalia e Olds, o estudo do desenvolvimento humano é extremamente complexo, pois está sujeito a muitas influências. As mudanças no indivíduo, na capacidade sensorial e nas suas habilidades motoras são partes do desenvolvimento físico e podem influenciar outros aspectos do desenvolvimento. A legislação nacional prevê iniciativas preventivas e na detecção precoce das alterações do desenvolvimento, sejam transitórias ou permanentes através do Sistema Único de Saúde ou do sistema privado de saúde. Contudo, seria importante discutir e esclarecer o que se entende por prevenção e detecção precoce. Quando o atraso decorre exclusivamente de condições biológicas (incapacidades ou alterações da funcionalidade do corpo), agir cedo é detectar cedo e iniciar prontamente a intervenção com respostas eficazes e individualizadas. Contudo, a maioria dos problemas de atraso não decorre, exclusivamente, de condições biológicas mas sim de condições ambientais (falta de estimulação e atenção privilegiada, cuidados de educação e saúde adequados, abuso, maus-

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-tratos, negligência, pobreza) ou da complexa interdependência neurobiológica com o meio ambiente. Esta intervenção é confiada a uma equipe multidisciplinar que deverá trabalhar de modo articulado e deverá reconhecer a família como um parceiro competente. Importará facilitar os processos de interdisciplinaridade, incentivar a cooperação institucional entre todos os serviços e profissionais que trabalham com a família, e instituir uma cultura de trabalho em equipe. Estudos internacionais indicam que em Portugal cerca de 3% das crianças recebem apoio educativo por problemas socioemocionais contrastando com 20% de prevalência noutros países (European Agency for Development in Special Needs Education, 2003). Evidências científicas indicam que as práticas mais eficazes são suportadas por dados empíricos (evidências obtidas de randomized controlled trial ou controlled trials without randomization provenientes de vários estudos ou de meta-análise). Com efeito, a própria abordagem de intervenção precoce atual decorre de resultados empíricos. Por esta razão, importa que os profissionais se mantenham cientificamente atualizados. Por outro lado, os pesquisadores devem comunicar e discutir os seus resultados com as equipas de intervenção precoce estreitando a relação. Deste modo, cria-se uma linguagem técnica comum e aumenta a abrangência de conhecimentos científicos. Estas iniciativas podem contribuir para a melhoria das práticas e beneficiar a própria pesquisa. A intuição, o conhecimento e os quadros de representação dos técnicos fornecem elementos chaves para a compreensão dos processos de desenvolvimento e dos contextos onde as interações se desenrolam. Por outro lado, a comunidade cientifica oportuniza os especialistas a operacionalizar os seus modelos de avaliação e de intervenção com metodologias validadas e padronizados. Num processo recíproco, é possível desenvolver trabalhos de investigação sobre a eficácia dos modelos de intervenção para apoiar a prática clínica e estabelecer uma colaboração duradoura entre todos. Espera-se que as práticas evoluam, progressivamente, para uma lógica preventiva suportada pela investigação e dando foco particular às questões do desenvolvimento de maneira holística, garantindo um olhar cuidadoso em todos os seus domínios, com especial importância ao sócio-emocional. Shonkoff, ao formular o Modelo Biodesenvolvimental, considera que as recentes descobertas das neurociências devem obrigar-nos a repensar as complexas relações entre os fatores biológicos e ambientais no desenvolvimento

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humano. Segundo este autor, há atualmente evidências mostrando que: (1) as experiências precoces são marcadas biologicamente no âmbito do desenvolvimento dos múltiplos sistemas orgânicos, com impactos a longo termo na regulação metabólica, na saúde, bem como nas competências cognitivas, linguísticas e sociais; (2) experiências precoces estimulantes, adequadas e previsíveis, promovem um desenvolvimento saudável do cérebro e a regulação dos sistemas orgânicos é facilitada e (3) experiências precoces vivenciadas como ameaças, incertezas, negligência ou abuso, podem ter como consequência distúrbios no desenvolvimento dos circuitos cerebrais e consequente aumento de vulnerabilidade. Estas formulações constituem-se como referencial de extrema importância para o desenvolvimento de políticas para o atendimento das crianças em idade pré-escolar e são integradas nas recomendações formuladas pela National Association for the Education of Young Children (NAEYC) quando refere que: (1) há interdependência entre os diversos domínios do desenvolvimento; (2) há uma sequência entre as aprendizagens e etapas de desenvolvimento; (3) há grande variabilidade individual; (4) o desenvolvimento e aprendizagem resultam da constante interação entre a maturação e a experiência; (5) as experiências precoces têm efeitos profundos no desenvolvimento e aprendizagens das crianças; (6) a sequência do desenvolvimento orienta-se no sentido de maior complexidade, maior capacidade de auto-regulação e de competências simbólicas mais evoluídas; (7) as relações positivas com adultos significativos e responsivos e com os pares promovem o desenvolvimento individual; (8) o desenvolvimento e a aprendizagem são influenciados pela multiplicidade social e cultural dos contextos; (9) as crianças procuram apreender o mundo à sua volta, aprendem de várias formas e há diferentes estratégias que promovem essa aprendizagem; (10) o jogo promove o desenvolvimento da auto-regulação, da linguagem, da cognição e das competências sociais; (11) o desenvolvimento e a aprendizagem pressupõem experiências que “desafiem” a aquisição e treino das novas capacidades e (12) há uma relação constante entre as experiências das crianças e a sua motivação e abordagem à aprendizagem (e.g., a sua persistência, iniciativa e flexibilidade). Em 1997, a NAEYC introduz um novo conceito – o de alta qualidade – implicando a existência de um meio ambiente seguro e estimulante promotor do desenvolvimento físico, social, emocional, estético, intelectual e linguístico de cada criança, respondendo igualmente às necessidades e preferências das famílias. A definição de alta qualidade implica ainda a existência de práticas desenvolvimentais adequadas, isto é, condições e práticas que contenham, simultaneamente, as dimensões de adequação à idade e individualidade de cada criança, respondendo igualmente às necessidades e preferências das famílias. Tais aspectos tornam-se de imensurável importância nos casos das crianças em situação de risco ou com distúrbios do desenvolvimento já detectados, onde a qualidade dos contextos e das interações são ainda mais importantes.

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De acordo com McWilliam, os serviços de IP devem ser prestados preferencialmente nos ambientes naturais da criança. As mesmas rotinas diárias devem ocorrer nos diferentes espaços que a criança participa, sejam eles creches, pré-escolas ou outros. Todos os ambientes devem oferecer suporte e apoio na aprendizagem. Os estímulos devem ser concretizados de formas diversificadas que incluam experiências de aprendizagem para as crianças com necessidades educacionais especiais.

Ainda as práticas atuais recomendadas na intervenção precoce (IP) pressupõem o envolvimento e participação da família bem como o respeito pelos seus valores e cultura. Shonkoff, em suas recentes investigações em neurobiologia, conclui que, quanto mais tempo se esperar para investir nas crianças que estão em risco, mais difícil será atingir resultados positivos, particularmente para aquelas que apresentam disfunções biológicas precoces. Nesse momento certamente entendemos o desafio dos profissionais para detectar e compreender precisamente qualquer alteração do desenvolvimento infantil, com ênfases nos diferentes domínios e habilidades, que possam acarretar prejuízos na realização de atividades que envolvem o cotidiano da criança e impactar sua funcionalidade e participação social em qualquer nível. A intervenção precoce junto de crianças até aos 6 anos de idade, com alterações ou em risco de apresentar alterações nas estruturas ou funções do corpo, em suas atividades e participação, constitui um instrumento político do maior alcance na concretização do direito à participação social dessas crianças e dos jovens e adultos em que se irão tornar. Assegurar a todos o direito à participação e à inclusão social não pode deixar de constituir prioridade política de um governo comprometido com a qualidade da democracia e dos seus valores. Quanto mais precocemente forem acionadas as intervenções e as políticas que afetam o crescimento e o desenvolvimento das capacidades humanas, mais capazes se tornam as pessoas de participar autonomamente na vida social. Assim, o sistema de intervenção precoce deve assentar na universalidade do acesso, na responsabilização dos profissionais e dos órgãos públicos. Torna-se crucial integrar a criança e suas famílias como parte essencial desse processo e não mais pensar e atuar na vida do outro sem sua participação e, principalmente, sem sua autorização. Concluímos corroborando a ideia de que o processo de reabilitação pediátrica deve ocorrer de maneira holística. A criança deve ser vista em sua totalidade

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por uma equipe multidisciplinar bastante interativa, que esteja integrada em seus objetivos e de acordo com as necessidades da criança e seus familiares. A participação dos pais, outros cuidadores e demais membros da família deve ser estimulado no sentido de incluí-los como agentes em todo esse processo que, muitas vezes, é longo e cheio de nuances. Para além disso, quanto maior a autonomia e independência da criança, maior sua participação social e cultural, caminhando para a somatória dos papeis ocupacionais desempenhados por um ser humano.

Referências Bibliográficas: Boavida, T.; Aguiar, C; McWilliam, RA; Pimentel, JS. Infants & Young Children. July/ September 2010 - Volume 23 - Issue 3 - p 233–243 Bredekamp, S. NAEYC Issues Revised Position Statement on Developmentally Appropriate Practice in Early Childhood Programs. Young Children, v52 n2 p3440 Jan 1997 Formiga C K M R, Pedrazzani E S, Tudella E. Desenvolvimento motor de lactentes pré-termo participantes de um programa de intervenção fisioterapêutica precoce. Revista Brasileira de Fisioterapia. 2004; 8(3):239-245. Jacinto, L. A influência do contexto educativo nas aprendizagens das crianças em educação pré-escolar [Dissertação de mestrado] Escola Superior de Educação de Lisboa/Instituto Politécnico de Lisboa, Lisboa, 2015. Lima, RAG; Oliveira, BRG et all. Revista Brasileira de Epidemiologia, v.13, n.2, p.268-277, 2010 McWilliam, Erica, Sweet, Charlie, & Blythe, Hal (2013) Re/membering Pedagogical Spaces. In Carpenter, Russel G. (Ed.) Cases on Higher Education Spaces: Innovation, Collaboration, and Technology. Information Science Reference (an imprint of IGA Global), Hershey, United States of America, pp. 1-13. Zigler, EF; Matia FS; Nancy WH. Family leave. 2002

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Este é um conteúdo retirado do livro “Realibitação além da clínica, inclusão além da escola - Reflexões da Inclusão Eficiente São Paulo”

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