ROR DE COISAS #7

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Publicação Bimensal Reservado a Sócios

Jan | Fev 2016


rordecoisas.blogspot.pt facebook.com/INDIEROR


Ficha Técnica Propriatário: Associação INDIEROR NIPC 513588019 Rua da Laranjinha, nº14 5400-792 Soutelo Diretor: Diogo Martins Martins Diretor Adjunto: Tiago Ribeiro Subdiretor: Rúben Sevivas Editor: Marta da Costa Redação: Diogo Martins Martins | Marta da Costa | Rúben Sevivas | Tiago Ribeiro Colaboradores (Residentes): Manuela Rainho | Paulo Coimbra | Tânia Santos | Wilson Pinto | David Sarmento Colaboradores (Convidados): Maria Cunha | Armando Ruivo Design: INDIEROR Grafismo: Tiago Ribeiro | Diogo Martins Martins Revisão: Marta da Costa Impressão: Gráfica Sinal | Rua Doutor António de Carvalho e Sousa 5400 - 570 Chaves Tiragem: 50 7ª Edição | 2016

A ROR DE COISAS é propriedade da INDIEROR. O conteúdo apresentado é da inteira responsabilidade dos seus autores. É proibida a reprodução total ou parcial de textos, fotografias ou ilustrações da revista ROR DE COISAS para quaisquer fins, incluido comerciais, sem autorização expressa da Direção. Revista isenta de registo na ERC ao abrigo do Decreto Regulamentar nº 8/99 de 9 de junho, artigo 12º, ponto 1, alínea a)


Índice

Parabéns! Está Oficialmente Morto

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Transmontanos pelo Mundo

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O Som Galante de Miranda

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Mitologia Transmontana

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Entrevista a Mario Lino

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A Arquitectura (Não) é uma Arte

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Os Árabes e a Astronomia

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O Misticismo de uma Terra Prometida

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Viagens na Minha Terra | De Chaves a Sijirei

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Miasmas

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Entre Aspas “ ”

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Palavras Moucas, Ouvidos Loucos

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Agenda Cultural

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guiço | s.m. substantivo masculino ponta de ramo seco; restos miúdos de lenha.


Parabéns! Está Oficialmente Morto

Se se encontra na altura da sua vida em que a comodidade do seu sofá é mais apelativa que as possibilidades existentes fora da sua janela, parabéns! Está oficialmente morto.

conhecimento sem fim. É encarar a vida como a grande lotaria e não como um fardo a ser vivido. Ser-se jovem é errar e aprender. É permitir-se errar. É, depois do erro, saber-se levantar e continuar.

Ser-se jovem é colocar os braços para lá dessa janela e abraçar as possibilidades. É acreditar, trabalhar e lutar. Não se abraçam utopias. Hoje, ser-se jovem é ser-se pragmático e realista. É pensar nos limites e nas consequências. É amar o alcançável e rentabilizar todos os recursos que estão ao seu dispor.

Jacques Lacan outrora escreveu que “há um determinado momento na vida em que deixamos de nos sentir incompreendidos e passamos a compreender. É nesse momento que nos tornamos adultos”. Mas esse adulto pode ser jovem. Deve-o ser. Ser-se jovem é mais que uma fase da nossa vida ou um estado de espírito. Serse jovem é viver!

Se acha que já aprendeu tudo o que poderia ter aprendido, parabéns! Está oficialmente morto. Ser-se jovem é percorrer uma estrada de

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Há uns anos, alguém com 25 anos era adulto e maduro, tinha filhos, um trabalho e uma casa. Tinha voz perante as comunidades e era encarado como

alguém participante nas mesmas. Hoje, com 25 anos somos miúdos. Vivemos em casa dos pais, temos trabalhos precários e passamos a vida em frente a um computador. Perdemos o respeito social, ainda que sejamos adultos e responsáveis a nível estatal e legal. Hoje, mais do que nunca, é urgente ser-se jovem. Ser jovem é sexy, é atraente, é excitante, é novo. Hoje, ser-se jovem é ser plural. As individualidades esbatem-se no mundo virtual onde ganham poder as formas plurais de se ser. Não é mau, nem é bom; é como é. Cabe a cada um de nós responder de forma positiva a essa possibilidade. Tudo é uma possibilidade. Tudo é uma janela cujos vidros deixam espreitar um mundo novo, excitante e jovem. Abracemno!



Transmontanos Por Maria Cunha pelo Mundo 24 anos Maceió | Brasil Fotografia | Maria Cunha

O meu nome é Maria Vaz Cunha e frequento o sexto ano do curso de Medicina no Instituto de Ciência Biomédicas Abel Salazar, que faz parte de Universidade do Porto. Os últimos seis meses da minha vida de estudante foram muito diferentes dos restantes anos que passei durante o curso de Medicina. Resolvi fazer o programa de Mobilidade no Brasil (semelhante ao programa Erasmus), mais precisamente na Faculdade de Medicina de Universidade Federal de Alagoas, em Maceió, conjuntamente com mais três colegas e amigos.

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Durante este período realizei os estágios de Medicina Interna, Ginecologia, Pediatria, Obstetrícia e Cirurgia no Hospital Universitário. Foi muito bom trabalhar com os meus colegas e professores deste hospital, pois para além de me terem recebido de braços abertos, ensinaramme muito e ajudaram-me sempre que eu precisei. Foi fácil perceber que o ensino da Medicina no Brasil é muito diferente do nosso. Nele deixei de ser uma pura espectadora e passei à acção. Fiquei responsável por vários pacientes na enfermaria, realizei múltiplos procedimentos (sempre com

auxilio e/ou vigilância de um interno da especialidade) e fiz consultas, entre muitas outras coisas, que me ajudaram a ganhar experiência e autonomia e sentirme útil para com os doentes. Outro ponto muito positivo foi o facto de ter tido a oportunidade de estar em contacto com um serviço nacional de saúde muito diferente do nosso, onde muitas vezes não existem recursos básicos (como soro fisiológico ou compressas), limitando muito a actividade dos profissionais de saúde e os cuidados que eles podem oferecer aos pacientes. Esta situação resulta, em grande parte, da crise


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económica que existe neste momento no Brasil, que está a afectar muito o sistema de saúde desse país. A experiência de viver no Nordeste, mais especificamente em Maceió, foi única. Esta cidade e as localidades mais próximas têm as praias mais paradisíacas que eu já visitei, a temperatura ronda 25-30 graus e as pessoas são muito simpáticas, acolhedoras e prestáveis. Tive a oportunidade de viver na orla costeira, no bairro da Jatiúca, que tem uma vista lindíssima sobre um oceano azul claro. Maceió é capital do estado de Alagoas,

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que é considerado um dos estados mais pobres e perigosos do Brasil. Infelizmente apercebi-me desta pobreza pela existência de várias “comunidades” (favelas) e pela inexistência de saneamento básico em muitos locais. São claras a diferenças sociais e o alto nível de analfabetismo. Relativamente à segurança, nunca senti que estivesse em causa, apesar de ter tido sempre os devidos cuidados. No final do estágio tive também a oportunidade de viajar para outras zonas do Brasil, como por exemplo o Rio de Janeiro e a Foz do Iguaçu. Foram experiências inesquecíveis principalmente

pela beleza natural destas regiões, e para perceber como o Brasil é um país muito grande com estados muito diferentes. Foi uma excelente oportunidade para entender que existe um Mundo para além de Portugal e da Europa e que apesar da cultura Brasileira ter muitas influências Portuguesas também tem muitas particularidades.


É inevitável falar de Galandum Galundaina e mencionar Miranda do Douro. Ao longo dos últimos 20 anos a banda tornou-se “embaixadora” da cultura e tradição mirandesa, fruto do seu trabalho de recolha e investigação do legado musical da região do nordeste transmontano. Quatrada é o seu álbum mais recente. A INDIEROR esteve à conversa com a banda sobre o seu trabalho, percurso e sobre a sua identidade transmontana.

Fotografia | Manuel Teles

O Som Galante Por Marta da Costa de Miranda

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Fotografia | Manuel Teles

O que caracteriza um “galante” (galandum) e “boémio” (galundaina) Um “Galandum” e um “Galundaina” é alguém que olha para todo o ambiente da cultura tradicional com muita atenção e vontade de aprender com o passado ao mesmo tempo que reinterpreta, recria e valoriza todo esse património dando-lhe um contexto atual. Tudo isto feito sempre num ambiente descontraído e divertido. Estão a caminho dos 20 anos de carreira. São muitos anos. Como é que tudo começou e como foi a evolução ao longo deste tempo?

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Cada um de nós fez o seu precurso musical em diferente grupos e diferentes estilos, estudou em diferentes escolas e trouxe de casa diferentes aprendizagens do ambiente tradicional. O grupo começou como começam normalmente todos os grupos: ensaios, animações em pequenos eventos. Todas as vivências musicais que cada um teve e a nossa visão de que a música tradicional faz sentido nos dias de hoje, contribuiu para o som que apresentamos e para que o público se identificasse com a nossa visão de música tradicional que não

tem que ser apenas uma repetição do que faziam as pessoas que nos transmitiram esta cultura. Como caracterizam o álbum “Quatrada” e o que traz de novo ao percurso de Galandum Galundaina? Cada álbum de Galandum trouxe sempre algo de novo perante a música que trabalhamos e também sobre a forma como a fazemos. Um dos objectivos de sempre foi retirar a música (Mirandesa) do seu contexto natural e mudar-lhe a forma, transformá-la e explorar nela novas sonoridades. Neste álbum isso


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Fotografia | Jorge Almeida


Fotografia | Jorge Almeida

acontece, mais do que em qualquer um dos anteriores. Sentem que este novo trabalho é o mais maduro de todos até aqui? “Novo” é, normalmente, o contrário de “maduro”. No entanto podemos dizer que sim. Há neste trabalho bastantes apontamentos que são precisamente sinais do amadurecimento do trabalho do grupo. O disco traz uma sonoridade mais densa. Há também um especial destaque da gaita-de-foles. A que se

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deveu esta opção? A gaita de foles Mirandesa é e será sempre uma constante na vida de Galandum Galundaina. É o instrumento que transporta, por si só, a identidade das terras de Miranda. Paralelamente a isto é um instrumento em constante estudo e evolução, permitindo-nos obter dele possibilidades infinitas. Trabalhamos para que assim continue a ser. Nota-se neste álbum um cuidado acrescido na produção e na gravação dos temas, especialmente nas vozes e nas percussões. Foi

uma preocupação vossa? Tinham como objectivo realçar a sonoridade que já caracteriza os Galandum Galundaina? Vinte anos são já anos suficientes para sermos cuidadosos com o que fazemos. Mau era se acontecesse o contrário! É muito bom perceber que as pessoas identificam a nossa identidade sonora. As vozes e as percussões são, sem dúvida, duas das principais características da nossa sonoridade. Vinte anos são também já anos suficientes para sabermos que temos de realçar aquilo que fazemos bem.


Fotografia | Manuel Teles

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Fotografia |Jorge Almeida

Têm convidados de peso neste trabalho, como o Zeca Medeiros ou a Manuela Azevedo. Como se proporcionaram estas colaborações? O Zeca Medeiros é já amigo de longa data. Não tivemos dúvidas quando pensámos quem poderia dar voz às palavras de Amadeu Ferreira, no tema “Siga a Malta”. A Manuela Azevedo e o Hélder Gonçalves também já eram nossos amigos. São dois músicos incríveis, que todos apreciamos muito, pois somos todos fãs dos Clã. Convidámos cada um deles. E eles disseram que sim.

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Foram percursores de uma espécie de movimento que mostrou preocupação em recuperar património de Trás-Os-Montes. A vosso ver, o que caracteriza a identidade transmontana e de que forma ela se manifesta no vosso trabalho?

Assumimos completamente a nossa cultura, orgulhamo-nos dela, mas nunca foi nossa intenção que ela ficasse cristalizada no tempo dos nossos avós.

Há uma identidade transmontana, sim. Desde a forma de falar, cantar, hábitos alimentares, etc. Antes de mais é importante conhecê-los muito bem, valorizá-los e enquadrá-los na cultura portuguesa, europeia e mundial.

Nós crescemos no ambiente transmontano Mirandês e mais tarde saímos para estudar. A nossa visão interna e externa das tradições transmontanas contribuíram para um resultado final consistente e de qualidade sem nos afastarmos da essência do que aprendemos em casa e na comunidade.

No que toca à música, é isso que fazemos.

A própria palavra “tradição “ traz com ela o significado de acrescentar algo ao que foi anteriormente aprendido.


Fotografia | Jorge Almeida

Com um interesse pela música fomentado de perto pela família, como projetam o futuro da música tradicional tendo em conta o interesse manifestado pelos jovens de agora? A música tradicional e o próprio conceito de tradição residem nisso mesmo, nessa perspectiva duvidosa sobre o que será o futuro. Diz a tradição que “o futuro a Deus pertence”. Nós achamos que cada geração

tem o seu futuro. As preocupações e os interesses são diferentes de geração para geração. A música tradicional vive de quem acredita nela. E enquanto houver quem acredite, ela existirá.

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Mitologia Por Armando Ruivo

Transmontana

Trás-os-Montes foi sempre um espaço, onde as figuras de superstição e crença foram povoando, ao longo dos tempos, o imaginário da sua gente. Esta riqueza, diversidade e dispersão, por inúmeros povoados transmontanos, constituem um verdadeiro desafio para quem se interesse pela literatura tradicional e oral e escolha, como alvo, principalmente os contos “maravilhosos” ou “de encantamento”, por privilegiarem a vertente do sobrenatural. A sua proliferação assenta sobretudo na ingenuidade e isolamento. O relevo da paisagem e povoamento concentrado, abrigando comunidades fechadas, foram factores decisivos na criação, consolidação

e aceitação, através dos contos, de mitos, superstições e crenças. As figuras do sobrenatural mais aceites são sem dúvida as fadas, o diabo, as almas penadas, as bruxas, a morte, o lobisomem, o olharapo e o trasgo, simbolizando ora o bem ora o mal, incutindo medo, mesmo com a condenação eterna ou pregando partidas. Vamos contudo abordar apenas algumas delas, de forma um pouco mais circunstanciada.

parte das vezes, uma figura simpática, protectora e capaz de premiar. A madrasta, simbolizando o mal, causava maus tratos à menina e incumbia-a de realizar tarefas superiores às suas forças. Este mau viver despertou a atenção da fada que a recolheu e, ao fadá-la, fez com que vivesse “feliz toda a vida”. A fada, com os seus poderes sobrenaturais, praticou uma boa acção e, ao mesmo tempo, castigou a madrasta ao retirar do seu domínio a menina, uma verdadeira escrava.

A fada, figura feminina, com o seu ar maternal, que integra o conto A menina e a madrasta, é, como acontece a maior

De sinal contrário, temos, por exemplo, o diabo, a figura que infunde mais medo, dada a forma estereotipada como ele e o

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seu inferno sempre foram apresentados aos crentes pelos propagadores da fé cristã. Por isso é descrito como uma figura medonha, com feições horrendas, peludo, com cornos de chibo, garras nos membros e rabo longo e retorcido ou então disfarçado de serpente, doutros bichos ou monstro de aspecto humano e animalesco. Representa normalmente o mal. No entanto, por estranho que pareça, no conto Nossa Senhora e o Diabo, o mafarrico surge como benfeitor, tendo livrado da forca um rapaz a quem acusaram injustamente de ter roubado uma quantia de dinheiro que era dele. Um mendigo havia pressagiado a sua morte aos quinze anos e antes que

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isso acontecesse, resolveu ir pelo mundo. Ao passar por uma capela e, vendo que o manto gasto de Nossa Senhora, deixou dinheiro para um novo. Mas no final, depois da trama que lhe urdiu uma estalajadeira, quem o salvou foi o diabo, enquanto ela foi engolida por um buraco que se abriu na terra. Nem todos os diabos são maus e muitas vezes somos enganados pelas aparências. Além do Inferno, o destino dos condenados, existe, no imaginário do povo, o Purgatório, onde as almas se limpam antes de entrarem no Céu. A tradição popular aceita que elas

regressam ao mundo a penar, para que alguém pague, por elas, dívidas ou cumpra promessas. Esta crença, muito enraizada em Trás-os-Montes, também aceita que as almas penadas se entranham no corpo de uma pessoa viva, até que um padre ou um médium as expulse com esconjuros. Outras vezes a sua presença é denunciada por luzes, como aconteceu certa noite numa aldeia de Vinhais, conforme o conto As luzes das almas. Ao verem as luzes de noite, houve quem não se atrevesse a sair de casa, mas um mais afoito dirigiu-se às luzes, perguntando-lhe no que podia ajudá-las. Depois de cumprida a promessa as luzes desapareceram. Essa função


coactiva e pedagógica talvez seja a causa de os transmontanos serem tidos como pessoas de palavra e de boas contas. Os contos tradicionais nascem de uma fonte ou memória colectiva. Tratandose de exercícios de memória são normalmente curtos, mas susceptíveis de transformações ou actualizações, de acordo com as versões ou perspectivas dos contadores. Um processo que garante a sua herança às novas gerações. Sem descermos à classificação mais aprofundada das funções, segundo Vladimir Propp, os contos reúnem os povos, facilitam a socialização, divertem

e têm um fundo moral e didáctico, principalmente junto dos mais novos. Os contos de fadas têm uma função mais relevante junto das crianças porque as levam a acreditar num nível superior da sua existência e encorajam-nas a enfrentar com outro denodo os obstáculos que lhe vão surgindo no seu percurso vital. São razões suficientes para que se continue a preservar estas crenças imemoriais. Com a minha idade tenho a consciência de que muito já se perdeu, não só a nível dos contadores, com o fim dos serões e outros locais de reunião, mas também com a chegada da luz eléctrica e dos media aos nossos lugares mais recônditos. É urgente

travar esse processo globalizante que põe em risco a identidade dos povos. Relativamente à universalidade dos contos tradicionais, atendendo à sua origem remota, aceita-se pacificamente que os mesmos contos possam sobreviver em várias regiões do mundo, embora em versões diferentes. Facto que se confirma após a leitura de Psicanálise dos Contos de Fadas, de Bruno Bettelheim. O contacto entre povos e o domínio de uns sobre outros ajudou na sua difusão, tornando-os universais.

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Entrevista a Por Manuela Rainho Mário Lino Fotografia | Marta da Costa

Mário Lino é natural de Chaves. Em 1970 emigrou para o Canadá onde teve a oportunidade de se tornar artista gráfico. Quando regressa a Portugal procura reavivar o gosto pela pintura. Foi aluno de Nadir Afonso, o seu mestre. Através das Artes Plásticas fez várias exposições não só em Portugal como no estrangeiro. A luta pela sobrevivência no meio artístico obriga-o a alargar as suas competências: é freelancer em artes gráficas para empresas de Chaves e é restaurador de arte sacra.

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Manuela Rainho: Como definiria Mário Lino, enquanto pessoa de cultura e das Artes Plásticas? Mário Lino: Como pessoa, considerome a melhor pessoa do mundo: pacífico, gostaria de ser Deus de vez em quando para poder interferir nos aspectos mais negativos da sociedade actual e assim castigar os que fazem intencionalmente mal e talvez beneficiar os que fazem bem… Quero acreditar que há uma entidade superior; há uma razão para existirmos; não estou vinculado a nenhuma religião, mas respeito-as porque a verdadeira

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essência do milagre está em acreditar. Acredito que a vida nos traz um mistério muito grande que nasce e morre connosco. Gostaria de ser Deus só para poder exercer mais justiça. Critico a comunicação social quando utiliza imagens de crueldade para poder desnudar o sentido da realidade da vida. Num sentido é bom mas noutro é péssimo. Mas penso que manipulam muito a sociedade o que é grave, na minha óptica. Condeno vivamente as redes sociais porque também utilizam imagens chocantes de crianças, por exemplo, com a finalidade de angariar fundos. Admiro a juventude actual pelo facto de

terem maior massa crítica relativamente à minha geração. Condeno também os políticos porque funcionam em função de interesses pessoais e não dos interesses do país. Ainda hoje me interrogo se há alguém que queira chegar ao poder por amor do seu povo… Como artista, estou em standby. O bichinho continua cá, dormente. Mas gostaria de deixar mais um impacto enquanto artista plástico, não para ser reconhecido mas para partilhar o que sinto e o que sou enquanto artista plástico. MR: Para si, o que representa pintar?


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MR: Para si, o que representa pintar? ML: Para mim, pintar é entrar num transe espiritual, numa inspiração total onde o tempo deixa de existir. Pintar é o extremo de estar no presente. Pintar tem várias etapas: desde idealizar uma obra até à sua criação, realização em termos técnicos e à sua conclusão. Todas essas etapas são uma provocação para mim. MR: E pinta para si ou pinta para os outros? ML: Gosto de ser honesto: infelizmente não pinto exclusivamente para mim. Parcialmente, pinto para mim porque gosto do que faço. Agora ter a ousadia – já a tive algumas vezes – de explorar as minhas

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vertentes mais secretas, nem sempre pode acontecer. Assim tenho temáticas mais regionais que me apaixonam e nasceram da necessidade de pintar para os outros. Depois algumas das obras que fiz, sobretudo as mais abstractas, são essencialmente a expressão duma visão secreta e misteriosa, só minha. Tenho três ou quatro edições sobre o povo transmontano, a cidade de Valpaços, a cidade milenar de Chaves, postais flavienses, que preservaram o nosso passado milenar e o apresentam aos mais jovens. Para mim, é importante conhecermos as nossas raízes para entendermos o nosso presente. MR: Considera-se um ser criativo? Como

se desenvolve esse processo criativo? ML: Sim considero-me um ser criativo. Se fizer uma auto-análise sobre a minha criatividade, posso referir que projecto mentalmente uma ideia que me surge como imagem visual; por vezes defronto-me com problemas na realização dessa mesma ideia, mas quando passo à execução, consigo ultrapassar todas essa dúvidas. Consigo criar a imagem na mente e isso é interessantíssimo. Com os jovens que frequentam as aulas de orientação faço frequentemente esse exercício de levar a imagem para a mente através de uma focagem interior. Portanto a criatividade é um bocadinho isso, jogar com a mente. Um dos grandes problemas para mim, enquanto artista plástico, é


que tenho uma família para sustentar e não tenho outro recurso para além da minha criatividade. Trabalho com as mãos e com a arte, ainda posso dizer isso; ou na restauração, ou na arte sacra; por isso considero-me um privilegiado pelo facto de não ter, por exemplo, horários a cumprir. Em termos de responsabilidade de horário, este é muito flexível. E em arte essa flexibilidade é essencial pois quando se começa um trabalho é necessário sair dele. Esse processo está intimamente ligado ao processo de inspiração; esta por vezes desaparece e quando isso acontece torna-se difícil. Se não estiver bem em termos psicológicos a inspiração desaparece. Depois há a necessidade de abandonar o trabalho e voltar a retomá-lo mais tarde… depois, quando o retomamos,

já vimos tudo doutra forma. Esse é o grande desafio para o artista. Há ainda o facto de lutarmos com a angústia que é saber quando a obra está terminada. Mas há algo que ultrapassa tudo isso, independentemente do estilo: a espontaneidade. A espontaneidade, a intuição é o aspecto mais natural que pode existir em termos artísticos. A maior luta de grandes artistas é simplificarem as suas ideias ao ponto de as poderem executar. Por norma faço projectos antes de executar uma obra. MR: Pensa que existe uma identidade transmontana? De que forma ela se expressa na sua obra?

ML: Poderei dizer que sim. Enquanto artista plástico, penso que há artistas plásticos regionais que se têm focado na temática transmontana. Eu mesmo passei por esse processo, também trouxe para a minha pintura imagens e representações do real que convocam para essa identidade, que trazem recordações da minha infância. Poderei dizer que de facto haveria muito mais trabalho no sentido de dar a conhecer as vivências do povo transmontano, as suas actividades e o seu passado. No entanto, somos privilegiados como povo transmontano, pois temos uma qualidade de vida excepcional; lamentavelmente muitas pessoas não valorizam essa qualidade de vida em Chaves. Mas há uma identidade que deveríamos preservar mantendo aquilo

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que somos e como somos e não alterar tanto essa identidade. Por exemplo, se trocamos o V pelo B trocamos; se dizemos asneiras, dizemos; somos mais rudes? Sim, mas somos nós. Se essa identidade se reflecte na minha pintura? Nunca me expressei em termos de revolta, isto é, na minha obra nunca pretendi atingir ou enaltecer determinadas facetas inerentes a Trásos-Montes. Mas em alguns trabalhos, valorizei actividades aqui feitas no passado integrando-as e trazendo-as para o presente. Nomeadamente, da vida rural do povo transmontano; por exemplo, os bois foi um aspecto que me fascinou. Durante séculos, os bois e as alfaias que acompanham as lides agrícolas com

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os bois foram a sobrevivência do povo transmontano. Hoje em dia, ninguém liga a isso, mas faz parte do imaginário transmontano. Através dos registos que fiz dessa vida rural ficou a memória desse modo vida do povo transmontano. MR: Enquanto pessoa de cultura, que vive na era da globalização, de que forma ser transmontano o condiciona ou integra? ML: Não me condiciona de nenhuma maneira. Penso que a vida é de tal maneira rápida que a informação passa de forma transversal. Ao expor em outras cidades do país, nunca senti qualquer tipo de segregação pelo facto de ser transmontano. O que tem de falar por si, não é o artista mas a obra. E nesse aspecto

não senti qualquer tipo de rejeição. Depois ainda há um certo interesse por obras de temática rural, quer paisagens quer o transmontano em si. Somos uma província de Portugal e através da pintura é possível levar lá fora, essa região que os outros desconhecem. Se não vou mais além relativamente à divulgação da identidade transmontana é porque não me apresentam desafios com apoios claros e porque os condicionalismos são enormes. Se mos apresentassem era capaz de me envolver.


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A Arquitetura Por Tânia Santos (Não) é uma Arte Fotografia | Tânia Santos Obra | Panificadora de Chaves Arquitetos | Nadir Afonso Projecto | 1962

Nadir, o arquiteto Os quadros das figuras geométricas envolvidas num jogo de cores conquistaram admiradores além fronteiras. Nadir Afonso, o pintor flaviense, nascido em 1920 e falecido em 2013, deixa saudades. Da autoria de Nadir resultaram obras autênticas que comovem qualquer observador e o seu sucesso, enquanto pintor, é reconhecido por todos nós. Contudo, muitos desconhecem que antes de se tornar pintor, Nadir foi arquiteto, após finalizar o curso de arquitetura, em 1948, na Escola de Belas Artes do Porto.

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No campo da arquitetura, Nadir possui um percurso não menos invejável. Ainda antes de concluir o curso, o artista decide partir para Paris, onde vai colaborar com um dos mais reconhecidos arquitetos de sempre, o franco-suíço Le Corbusier. No entanto, a relação de Nadir com a Arquitetura foi sempre controversa, ao ponto do artista defender que a “Arquitetura não é uma Arte”, mas em contrapartida, “é uma Ciência que impõe limitações”.


Em 1960, o arquiteto regressa a Chaves e é justamente neste período que vai projetar a maioria das suas obras arquitetónicas, designadamente a Panificador de Chaves, que será apresentada neste artigo. Já no final da década de sessenta, Nadir começa a afastar-se da arquitetura para finalmente se dedicar à pintura. Apesar da sua incompatibilidade com a arquitetura, pode dizer-se que conhecimento adquirido enquanto arquiteto vai claramente influenciar a sua pintura, o que se torna patente pela sensibilidade que demonstra ao dispor as figuras geométricas nos

quadros. Isto é, na sua pintura, Nadir toma as cidades como tema de representação, em que o espaço (a presença e a ausência) é o conceito fundamental, o que indiretamente denuncia a sua relação com a arquitetura.

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A Panificadora de Chaves Nadir Afonso foi contratado pelos dois principais padeiros de Chaves, João António César e José Teixeira de Sousa Chaves, para projetar um edifício onde estes pudessem fundir todos os seus estabelecimentos e empresas, dando assim origem à Panificadora de Chaves, Lda. O terreno de implantação foi estrategicamente escolhido, numa zona em desenvolvimento, junto à nova Avenida Nuno Álvares, então considerada a mais importante avenida da cidade. A construção da obra é finalizada em

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1962 e, nesse mesmo ano, entra em funcionamento a panificadora. A logística de funcionamento do edifício foi um aspeto determinante na resolução do projeto. Nesse sentido, Nadir posicionou o edifício numa das esquinas do terreno para facilitar o acesso e a distribuição dos vários serviços. A criativa distribuição do programa prova que todo o processo de fabrico do pão foi meticulosamente estudado pelo autor da obra. Na instalação dos equipamentos, nomeadamente dos fornos, Nadir apostou forte no avanço tecnológico, optando pelos mais eficientes

então existentes no mercado europeu. Todo o sentido inovador que utiliza para potenciar a vertente funcional do edificado, também se expressa no aspecto formal que o mesmo porta. Um complexo sistema de cobertura encerra um amplo espaço, suportado por um estrutura de betão armado e que se desenvolve num só piso. Parte da cobertura é desenhada por abóbadas inclinadas que, bem evidenciadas na fachada, contrastam com a ortogonalidade do resto do edifício. Da cobertura destacam-se também as altas torres que, além da razão funcional,


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conferem uma identidade ao objecto arquitetónico. A panificadora manifesta igualmente um carácter pitoresco com o jogo de cores que o arquiteto atribui a uma série de planos envidraçados. A panificadora de Chaves, atualmente a cargo dos herdeiros de um dos proprietários originais do empreendimento, ainda se encontra em funcionamento. Ou seja, trata-se de um caso feliz em que são os próprios proprietários a valorizar o património arquitetónico que lhes

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pertence, evitando que o mesmo caia em estado de degradação. No passado chegou a ser sugerido aproveitar a panificadora como espaço para albergar a futura Fundação de Nadir Afonso (edificado entretanto construído junto à margem do Rio Tâmega), proposta que porém acabou por ser rejeitada pela Câmara Municipal. Esperemos só que, no futuro, este símbolo arquitetónico do século XX não caia em esquecimento e que as entidades colaborem na luta pela preservação do património da cidade.

Este artigo contou com a preciosa colaboração da flaviense Joana Meireles, estudante de arquitetura, em processo de conclusão da Tese de Mestrado que abrange o estudo da Panificadora de Chaves.


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Os Árabes Por Paulo Coimbra e a Astronomia

Com o desaparecimento da Grécia Antiga (cerca do ano 100 aC), o conhecimento astronómico, então em fase de consolidação, entra em declínio. O Império Romano, tão profícuo na arte da guerra e da engenharia, pouco ou nada contribuiu para a ciência. Com a sua queda parecia que o mundo iria entrar num vazio organizacional, cultural e científico. Século VII. O que restava do pensamento científico grego estava ainda largamente difuso no Médio Oriente. Embora sem produção de obras originais, estava

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contudo subjacente nas tradições, noutras culturas e noutras ciências. Portanto, sob um manto geral de indigência cultural havia o substrato legado pela ciência grega. É nestas condições que chegam os Árabes. Ao mesmo tempo que no Ocidente a ciência atingia o seu ponto decrépito, os Árabes, povo sem ciência, entravam repentinamente no cenário geopolítico do Médio Oriente. Em poucas décadas, este povo desconhecido, destrói os grandes impérios que dominam a região

e difunde até às fronteiras da Índia uma nova religião. Entre 632, data da morte do profeta Maomé, e 646, o Islão conquista a península arábica, as regiões da SíriaPalestina, a Mesopotâmia e a Arménia, e chega às planícies do Iraque e do Irão. Logo a seguir, é a vez do Egipto ser também conquistado. O saber astronómico dos Gregos chega aos Árabes. Bagdad, nos séculos IX e X, e o Cairo, nos séculos X, XI e XII, constituem grandes centros astronómicos florescentes. Os trabalhos dos gregos


são traduzidos e estudados. O astrolábio é aperfeiçoado e multiplicam-se as observações. São criadas tabelas com os índices dos movimentos astrais, utilizados com fins astrológicos e, sobretudo, marítimos.

domínio das observações e do cálculo astronómico, os Muçulmanos não foram grandes inovadores científicos. Quase sempre os seus trabalhos se desenvolveram dentro da tradição cosmológica herdada da Grécia Antiga.

Durante os séculos X e XI dão-se grandes progressos na astronomia árabe. Mesmo em 1258, quando Bagdad cai nas mãos das invasões bárbaras dos Mongóis, a investigação astronómica continua e durante a ocupação Mongol são criados novos centros de observação. A partir do século X a ciência árabe começa a penetrar no Ocidente, nomeadamente Córdoba e Toledo tornam-se centros de estudos astronómicos importantes. Pouco a pouco as obras gregas vão ser traduzidas para latim. O emprego sistemático da trigonometria à astronomia, constitui também uma importante herança deixada pelos Árabes. Um imenso número de estrelas deve a eles o seu nome: Deneb (do árabe Al Dhanab al Dajajah), Aldebarã (Al-Dabarān), Rigel (contracção de Riǧl Ǧawza al-Yusra), etc.

A ciência astronómica islâmica também teve os seus inimigos políticos: os astrónomos/ astrólogos eram mal vistos à luz do Corão, porque a lei islâmica diz que ninguém, para além de Deus, pode prever o futuro. Por isso os edifícios onde se encontravam os aparelhos de medição da época - planetários, diríamos hoje - foram muitas vezes demolidos.

Apesar destes enormes sucessos no

Mas a cristandade soube recuperar o saber antigo a partir das traduções feitas pelos Árabes, com destaque para a obra de Ptolomeu, “O Almageste” (as traduções árabes chamam-lhe “Al-Magiste” cujo significado é “O Maior. Foi, portanto, já no fim da Idade Média, por volta do século X, que o Ocidente descobriu nos estudos árabes o saber da astronomia antiga, trabalho este que perdurará até cerca do século XII.

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O Misticismo de Uma Por Rúben Sevivas Terra Prometida

Festa, Trabalho e Pão em Grijó da Parada (1973) Manuel Costa e Silva 35 min Realizador: Manuel Costa e Silva Argumento: Manuel Costa e Silva Produção: Instituto de Tecnologia Educativa Diretor de Produção: Miguel Cardoso Fotografia: Manuel Costa e Silva Montagem: Fernando Lopes e Helena Baptista Diretor de Som: Francisco Rebelo

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Uma paisagem esconde-se por detrás de umas letras brancas e enormes, do tamanho da tela, que escrevem: Festa, Trabalho e Pão em Grijó da Parada. Assim que o título descortina a paisagem e deixa ao descoberto o caminho de terra batida que se perde no seio dos montes, ecoa a voz do narrador: “Os montes de Trás-osMontes, uma estrada, um sulco de pó e pedra, que nos leva a Grijó de Parada, aldeia protegida pelos montes de Trásos-Montes. Já irmãos da Espanha”. Está, portanto, introduzido geograficamente o local e a região que o filme retratará e o seu claro isolamento.


Manuel Costa e Silva teve a sua formação cinematográfica em Paris, estagiando com Jean Rouch. Tal experiência e formação terão sido importantes para o estilo de cinema que Costa e Silva produziu, principalmente no exemplo de Festa, Trabalho e Pão em Grijó da Parada. O cinema direto, defendido e explorado por Rouch, e as investigações no campo da antropologia visual, fortemente desenvolvidas nos anos sessenta em Portugal, influenciaram irrevogavelmente a obra do realizador. O filme fala sobre a festa, o trabalho e o pão

em Grijó da Parada. Tão simples quanto isto. Um dos primeiros olhares sobre Trásos-Montes através do cinema. Um cinema que explorará e retratará, tão fiel quanto possível, a vida das suas gentes. Ainda que se discuta a objetividade de qualquer criação humana, o filme tem intenções de filmar e mostrar objetivamente a vida em Grijó da Parada. A festa faz-se com as festividades do solstício de inverno, principalmente com a festa dos rapazes. Os caretos comandam a brincadeira e a população participa entusiasmada nas atividades. Não há

quem fique indiferente. O trabalho faz-se com música. Todos a sabem. Elevam-se vozes que se pedem nos altos dos montes e o trabalho faz-se. Duro, pesado e penoso, é feito com o suor de todos. O Pão é a razão de todo o trabalho e aquele que, depois, dará a vida e a festa. O filme tem, no geral, uma montagem ritmada que permite expor de melhor forma o passar do tempo e tudo o que se passa na aldeia. As cenas do trabalho são emparelhadas com as do quotidiano da população. Contudo, cenas como a da matança do porco e a do fazer do pão levam

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o seu tempo. A montagem não se mistura com planos de cenas alheias e as cenas são, geralmente, mais longas. Também nestas cenas, não há interferências sonoras. A sequência do pão, por exemplo, começa com a feitura da farinha ainda no moinho. Segue-se a peneira da farinha, o amassar da massa e o cozer do pão. Só depois de todos estes passos e de estar concluída a sequência é que o narrador se permite comentar. Vê-se um homem a comer pão e a beber vinho, ouve-se o narrador: “comer, um ritual grave, só na aparência vestido de simplicidade, de certo modo

uma profanação, mas também um ato de respeito, os homens fazem o pão e por ele se fazem.” De seguida, retorna-se à festa. Mais caretos, mais brincadeira, mais animação. Tanto pagã como cristã. Os caretos misturam-se com as festas religiosas. A gaita-de-foles ecoa, se está desafinada ou não pouco importa, e o som invade toda a aldeia por entre os montes. Há chegas de bois e chegas de homens. A montagem adquire um certo tom comparativo e reprovador nestas sequências. A montagem serve de

narrador que julga e pensa as imagens das lutas e das rivalidades entre os homens. No fim, há mais caretos e mais brincadeira e mais festa. “Em Grijó da Parada, três dias de festa, retirados a 362 de trabalho, recompensa merecida. Amanhã, retiradas as máscaras, há que ganhar o pão em Grijó da Parada e, aqui no filme, não há pão sem trabalho e o trabalho sem festa não é digno dos homens.”, finaliza o narrador.

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Viagens Na Minha Terra Por David Sarmento

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De Chaves a Sijirei


De todas as aldeias do distrito de Vila Real, Sejirei é a que fica mais a Nordeste de todas, com Espanha a Norte, o rio Mente a Este, a serra de Trave a Sul e a estrada que lhe dá acesso a Este. Para lá chegar foram precisos trinta e oito quilómetros de passeio com a primeira paragem no castelo de Monforte. A robustez desta construção espanta qualquer um mas o forte são mesmo as vistas privilegiadas para a veiga de Chaves, as serras nevadas da vizinha Espanha ou a imponente serra do Larouco. O castelo em si está ao abandono, mas o parque de merendas que o serve vai atraindo gente nos dias mais quentes evitando, de certa forma, o seu esquecimento. Acabado o mata-bicho, continuei num passo vagaroso dada a inclinação da

serra do Brunheiro até dar com a pedra da Bolideira a sensivelmente oitocentos metros de altitude. Depois de balançada a pedra, retomei a pedalada virando à esquerda em direcção a Travancas, Argemil, São Vicente da Raia, Aveleda e finalmente Sejirei. A altimetria do terreno não ajudou e as descidas e subidas pareciam autênticas paredes. Para descobrir Sejirei, naquele mar de montes, teria que pedalar mais uns vinte quilómetros Portugal adentro. O que me valeu foi uma paisagem montanhosa fantástica com direito a algumas cascatas. À sombra da serra de Trave, com o ribeiro da cidadelha a passar-lhe nos pés, encontrei a aldeia de Sejirei, quieta e em silêncio não fosse o barulho constante de

água a correr ali perto. O Inverno não será a melhor altura para a visitar mas sem dúvida que lhe confere uma atmosfera de lugar remoto e de refúgio. As casas, construídas com o xisto abundante na zona, transparecem a acção do tempo e do abandono, um êxodo gradual resultado, em parte, da sua localização geográfica mais isolada e do envelhecimento da população. A aldeia possui um forno público; mais acima na rua, encontra-se a capela de São Gonçalo de finais do século XVIII e ainda um moinho de água a um quilómetro do aglomerado de casas. Para além disso, como típica aldeia da raia, tem também uma rota do contrabando que já teve um ou dois passeios organizados pela eurocidade Chaves-Verín. Para o final da viagem, e como última

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paragem antes do regresso, escolhi o melhor pouso para descansar de todas aquelas subidas e descidas, o verdadeiro destino desta curta viagem. A uns passos da aldeia, a praia fluvial de Sejirei apresentava-se como um pequeno paraíso perdido no Portugal profundo. Como este, há muitos outros por descobrir como é o caso da ribeira de São Gonçalo situada ali tão perto, mais a jusante do rio Mente. Este lugar recôndito entre os montes, nasce do encontro do rio Mente com um dos seus afluentes, o ribeiro da Cidadelha ou ribeiro de Sejirei. Aqui nasce também uma água gaseificada e ferrosa semelhante às águas de Pedras Salgadas e Vidago mas, desconhecendo a razão para tal, a bica está permanentemente fechada. Como estamos no Inverno, os equipamentos como sanitários e bar de apoio estavam fechados e o rio exibia um caudal pujante galgando até parte das margens. É claro que nos meses de calor é calmo, de águas límpidas e baixas. Pelo menos é assim que me lembro dele da única vez que o visitei quando ainda era menino.

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Rua de Santo António, 37 5400-069 Chaves Tel. 276 318 460 | Fax. 276 318 461 email: opticaliachaves@gmail.com

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Miasmas Por Wilson Pinto

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Entre Aspas “ Por Manuela Rainho

Desde sempre a poesia anda aliada a estados de alma, à expressão de mundividências pessoais de quem a escreve. Maria Eugénia Branco Teixeira é, nessa vertente, uma poetisa como qualquer outro poeta. No entanto, o universo que partilha com quem lê a sua obra é único e intransmissível; reflecte uma visão do mundo muito especial que integra a sua personalidade enquanto pessoa e mulher. Da leitura que fiz da sua obra há um conjunto de temáticas que aborda e de que seleccionei apenas três por serem as que mais reiteradamente surgem nas suas colectâneas poéticas. Embora duas delas tenham a ver com a forma como o mundo exterior condiciona os seus estados de

alma – refiro-me mais concretamente ao Espaço de eleição da autora, a cidade de Chaves, e ao Tempo, nas vertentes várias, tais como a efemeridade da vida, a mudança, conceitos como passado, presente, futuro – a terceira prende-se com a Poesia. Poesia, enquanto inspiração, catalisador, expressão. No entanto, para além das abordagens de leitura que possa fazer a partir da minha leitura da obra de Maria Eugénia Branco Teixeira, nada como citar a autora para legitimar o que for referindo. Assim sendo, começarei pelo tema do espaço. A cidade de Chaves é esse espaço de eleição presente em toda a sua obra poética. A colectânea “Canto do Meu Canto” enquanto jogo de homonímia do vocábulo

“canto”, remete-nos para uma viagem emocional através de sonetos que Maria Eugénia dedica à cidade de Chaves, espaço de eleição e afeição privilegiado pela poetisa. Todavia essa mesma atracção pela cidade de Chaves é evidente em outros poemas que traduzem esse jogo de pertença e identidade, como por exemplo Chaves ( «(…) Tens tudo: termas, rio, veiga, serras, / Riqueza em barro, ponte de Trajano, / Monumentos que falam de outras eras.» (…) in pp 10 “Mágoas Feiticeiras”) Ser Flaviense ( «(…) É lutar por um sonho com nobreza / É quem mandar para cá do Marão. (…) É ter a alma de um tamanho tal/Que caiba nela inteiro Portugal.(…)» in pp 54 “Mágoas Feiticeiras”).

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Abordemos agora o conceito de Tempo que para a poetisa em análise, reveste uma importância inequívoca na sua poesia. Dado que o espaço de que disponho é restrito, seleccionei três poemas que passo a transcrever: Incompleto («Saí de mim, andei por aí fora / Entregue livremente à evasão / Num sonho consentido que demora / Só o tempo que dura uma ilusão.» in pp 7 “Nascentes de Silêncio”); Drama («Lentamente, / Passo a passo / Como alguém que anda sem andar / O tempo vai passando junto de nós // De repente /Embaraço / Como quem pára sem parar / Notam os netos que já são avós» in pp17 “Folhas Vazias”); («Depois da noite / O dia / Depois da

morte / A vida / depois do nada / Tudo // Depois de ti / Ninguém» in pp 44 “Migalhas Divinais”). Finalmente, debrucemo-nos sobre a temática mais dolorosa da poetisa: A Poesia. Do que se depreende da leitura da sua obra há uma dicotomia que se debate entre a dependência de escrever e o constatar o quanto essa dependência é viciante e escravizante. Eis alguns excertos da sua poesia que o comprovam, Musa («(…) É minha sina senti-la tão perto, / É um calvário não a possuir / Sofrer a mágoa de vê-la passar // Na rota certa dum lugar incerto. / (…)» in pp 40; (« (…) Busca incessante, sede de infinito, / Enlevo em que mergulho em que me

agito, / Febre escaldante, sonho de poeta! (…)» in pp 64 “Nascentes de Silêncio”). Calíope («Persigo esse verso que não vem, / Ou vem em fragmentos que não quero, / Palavras soltas com que desespero / Nesta inquietude que minha alma tem.» in pp 15 “Pedras Baloiçantes”). Provavelmente a escolha que fiz não seria a que o leitor faria… Mas esta minha opção pretende apenas incentivar o leitor, desafiá-lo a ler os autores que reflectem a identidade de ser transmontano, nada mais.


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Palavras Moucas, Por Diogo Martins Martins Ouvidos Loucos

O Progresso tem um número, vinte anos depois Existe em todos nós um desejo de segurança. Estabilidade. Um medo da desordem. Uma vontade tremenda de querer manter aquilo que achamos precioso ou demasiado importante para ser corrompido.

Quatrada

Galandum Galundaina (2015) Género: Folk tradicional 54

Asseguramos casas, telemóveis, carros. Asseguramos empregos, amores, planos e poupanças. Chegamos ao ponto de assegurar a única coisa que por definição é impossível de ser assegurada: a vida. A música, que também no seu conceito pressupõe evolução e mudança, foi um acréscimo à lista de coisas que

resolvemos assegurar por preconceito ou simplesmente por medo. Passamos na rádio o que é aceitável e na TV o que é bonito. Trocamos a ousadia pela conformidade. Esquecemo-nos que é com risco que se faz o progresso. É com coragem que se escreve a história. Quatrada é portanto um tiro no pé. É o barro na parede. A pedra no charco e a bola no poste. É tudo aquilo que esperávamos que fosse, mas completamente diferente. Não é fácil. Não é querente. Nem é previsível. Não é um disco de singles em jeito de fast food para a rádio. Quatrada é a representação sonora da coragem, da ousadia e sobretudo do progresso.


Fotografia | Manuel Teles

Cada faixa deste álbum é uma força singular. Há as de contexto (“Balsagaita cun pandeiros”), as de passado (“Mirandum”), as que têm estórias (“Canedo”) e as referências (“Bebe Bino”). Mas há também aquelas das quais é quase impossível não falar. É muito provável que, para cada um de vocês, este disco seja uma experiência diferente e por diferentes razões. O primeiro destaque vai sem dúvida para “Tanta Pomba”. Não só pela colaboração de peso dos Clã, onde a voz de Manuela

Azevedo é magistralmente incluída, mas também pelo facto de ser precedida por quatro faixas que resumem muitíssimo bem a densidade sonora da banda. Basicamente, são os Galandum a dizer “Isto é o que somos e aquilo que fazemos, agora tomem lá esta e esqueçam tudo o que sabem sobre nós”. Paragem obrigatória.

Oldfield roer-se de inveja. É na minha opinião a faixa que mostra o desapertar do cinto de segurança. A que lança água sobre azeite quente e deixa tudo em fogo. Crianças (ou seja, bandas em início de carreira), não tentem isto em casa. Pode mesmo correr mal se não souberem o que estão a fazer.

Depois, sem querer descuidar as faixas que ficam para trás, tem de haver uma referência óbvia à “Fonte do Salgueirinho”. É sem sombra de dúvidas a minha faixa preferida do álbum e a que faria o Mike

A partir daqui é uma viagem sem retorno e “Siga a Malta”. Zeca Medeiros, como só ele, enfia-nos de novo em terreno minado. Uma faixa para escutar com atenção e que nos estremece com vozes

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Fotografia | Viktor Kartaxo

impressionantemente registadas. As vozes e percussões neste disco estão a soar como nunca, e “Zé Pereira” é também uma prova disso. Também uma das minhas preferidas deste trabalho e que nos deixa a vontade de ouvi-lo todo de novo. No final, o novo disco dos Galandum Galundaina não é uma viagem segura. E ainda bem. Os Galandum são a prova de que é necessário ter um grande conhecimento e respeito pelo passado, para conseguirmos

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conseguir um futuro. Mostram-nos que a única maneira de nos tornarmos imunes à mudança do tempo, é mudando com ele. Quatrada é isso mesmo. Aquele passo atrás e aquele salto em frente. Que muitos lhe sigam o exemplo.


Agenda Cultural

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As Cores do JAZZ

Homenagem a David Bowie

Cineclube de Chaves

5 e 31 de Março Sala Multiusos do Centro Cultural Chaves

12 de Março | 21h30 Cine Teatro Bento Martins Chaves

15 de Março | 21h30 Cine Teatro Bento Martins Chaves

Exposição da pintora de Vigo, Iria Blanco, e o escultor de Verín, Xosé Rivada, sob o fio condutor da estética que revolicionou o séc. xx. O espetador da exposição poderá participar numa peculiar sessão de jazz, girando o pescoço 360º ou aproximarse do cenário, para ver com promenor as caraterísticas dos instrumentos empregados nas várias obras.

Apresentação e exposição do filme “Merry Christmas, Mr. Lawrence”. Festa de homenagem com música a cargo da Dj Márcia Barros

Apresentação e exposição de filmes, projeção, debate e convívio. Apareça e inscreva-se.

Org.: Município de Chaves

Org.: Cineclube de Chaves

Org.: Cineclube de Chaves


Dia Mundial da Poesia

Sabores de Chaves 2016 Folar

Concerto

17 de Março | 21h30 Cine Teatro Bento Martins Chaves

25 e 26 de Março Largo General Silveira Chaves

31 de Março | 21h30 Auditório do Centro Cultural Chaves

O Teatro Experimental Flaviense festeja mais um ano de poesia com o espetáculo de Comemoração do dia Mundia da Poesia. E como “um grão de poesia basta para perfumar todo um século”, assim fará neste dia, com muta poesia e música.

O uso do folar é tão antigo, que impossível se torna descobrir-lhe as origens, Vena descobrir os segredos da sua feitura! Deixe-se envolver e aprecie em boa companhia esta iguaria. Para os mais gulosos surgirão algumas surpresas, com o chocolate a marvar grande presença! Provas, demonstrações, música e dança tradicionais, exposição e animação para crianças.

Org.: Teatro Experimental Flaviense Apoio:USAF

Org.: EHATB e Município de Chaves Apoio: ACISAT

No final de um estágio intensivo de 3 dias, a Orquestra de Sopros da AAC apresentará um concerto com obras de José Suñer Oriola, Jorge Salgueiro e Pasqual Marquina, programa que irá ser apresentado em concurso no próximo mês de maio. Voltam ao auditório os grandes concertos da Orquestra de Sopros da AAC. A não perder este concerto da Orquestra de Sopros que tem elevado o nome de Chaves e a sua música.

“O Jardim das Hespérides”

Org.: Academia de Artes de Chaves

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