INFORME C3 - Edição 16

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Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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Falta Capa

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edição 16 Ago/dez - 2014 ISSN: 2177-6954


CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA Foto: Lu Trevisan Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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N達o se trata de qualquer coisa... Se trata de possibilidades!


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EXPEDIENTE Direção Geral e Coordenação Editorial/Editor: Wagner Ferraz Editores convidados Anderson Luiz de Souza e Luísa Beatriz Trevisan Teixeira (Lu Trevisan) Pesquisa e Organização: Processo C3 - Grupo de Pesquisa Projeto Gráfico e Direção de Arte: Wagner Ferraz Edição de Arte e diagramação: Wagner Ferraz Foto da Capa: Anderson Luiz de Souza Arte da Capa: Anderson Luiz de Souza

Conselho Editorial: Prof. Dr. Alexandre Rocha da Silva (UFRGS/RS); Prof. Dr. Samuel Edmundo Lopez Bello (UFRGS/RS); Prof. Dr. Luis Henrique Sacchi dos Santos (UFRGS/RS); Profª Drª Kathia Castilho (UAM/SP); Prof. Dr. Luciano Bedin da Costa (UFRGS/RS); Profª Drª Marta Simões Peres (UFRJ/RJ); Profª Drª Fabiana de Amorim Marcello (ULBRA/RS); Prof Dr Airton Tomazzoni (UERGS/RS); Profª Drª Marilice Corona (IPA/UNISINOS/RS); Profª Drª Sayonara Pereira (USP/ SP); Profª Drª Magda Bellini (UCS/RS); Prof Dr Celso Vitelli (ULBRA/RS); Profª Drª Daniela Ripoll (ULBRA/RS); Prof. Ms. Leandro Valiati (UFRGS/RS); Profª Ms Luciane Coccaro (UFRJ/ RJ); Profª Ms Flavia Pilla do Valle (UFRGS/RS); Prof Ms Camilo Darsie de Souza (INDEPIN/ UFRGS/RS); Profª Ms Eleonora Motta Santos (UFPEL/RS); Profª Ms Giana Targanski Steffen (UFSC/SC); Ms Zenilda Cardoso (UFRGS/RS); Profª Ms Miriam Piber Campos (INDEPIN/RS); Ms Luciane Glaeser (RS); Ms Jeane Félix (UFRGS/RS); Ms Alana Martins Gonçalves (UFRGS/RS); Profª Ms Sabrine Faller (INDEPIN/RS); Ms Luiz Felipe Zago (UFRGS/RS); Ms Carla Vendramin (RS); Prof Esp Anderson de Souza (FATEC/SENAC/RS); Prof Esp Wagner Ferraz (INDEPIN/Processo C3/RS); Profª Drª Luciana Éboli (Unilasalle/RS);

Informe C3 / v. 05, n. 16, (ago/dez. 2014). – Porto Alegre, RS : Processo C3, 2014. On line. Disponível em: http://www.processoc3.com Bimestral ISSN: 2177-6954 1. Cultura. 2. Artes. 3. Corpo. 4. Moda. 5. Pesquisa CDD: 301.2 370.157 793.3 646

Classificação: 18 anos O conteúdo apresentado pelos colaboradores (textos, imagens...) não são de responsabilidade do Processo C3 e da Revista Eletrônica Informe C3. Nem todo opinião expressa neste meio eletrônico ou em possível verão impressa, expressam a opinião e posicionamento dos organizadores e responsáveis por este veículo.

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Ano 05 - Edição 16 Ago/dez - 2014

Capa: Liquidificador Foto: Anderson de Souza Concepção Wagner Ferraz Local: Porto Alegre/RS/Brasil Edição e tratamento de imagem: Anderson de Souza Direção de Arte: Wagner Ferraz

Contatos: Wagner Ferraz 55-51-9306-0982 wagnerferrazc3@yahoo.com.br www.processoc3.com Porto Alegre/RS

Informe C3 - Periódico Eletrônico Processo C3 Porto Alegre

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Isto não é um propaganda! Foto: Anderson de Souza


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APRESENTAÇÃO

su

- Não tem apresentação ...... p. 15 Wagner Ferraz

VÉRTEBRAS - + Arte para uma vida se movimentar ...... p. 18 Wagner Ferraz - Corpo Paisagem ...... p. 22 Carina Sehn - Sobre cento e vinte e poucas repetições diferentes ...... p. 30 Anderson Luiz de Souza - Da viagem à pesquisa: (des)aproximações ...... p. 44 Gilberto Silva dos Santos

ESPAÇO LIVRE - A garagem emética: um ensaio para o desbloqueio criativo ...... p. 52 Alexandre Carvalho - Para qué pensar, sé tengo celular ...... p. 58 Nelci Rosa Moreira - Entre o zero e o 01 ...... p. 62 Alessandro Rivellino - Transgressão 00207566 ...... p. 70 Lu Trevisan

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ENTREVISTA

- Uma conversa com Emilio Gonzales sobre modificações corporais extremas ..... p. 84 T. Angel

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mário ARTIGOS - Estado de espera: interações intimistas na rodoviária de Porto Alegre ...... p. 90 Marina Jerusalinsky - A composição coreográfica nos processos de ensino e aprendizagem em dança ...... p. 102 Josiane Franken Corrêa e Carnen Anita Hoffmann - Interdisciplinaridade: Algumas reflexões sobre a importância nos processos educativos ...... p. 114 Lucas Pacheco Brum e Cristina Rolim Wolffenbüttel - Pedagogia dos Pormenores: Escoamentos da Arte e Loucura ...... p. 128 Elisandro Rodrigues e José Damico - Roma antiga: sua civilização e indumentária civil ...... p. 140 Pedro Stefanello - Processo de criação em Educação Física como um processo artístico ...... p. 152 Luísa Beatriz Trevisan Teixeira - Rastros Genealógicos de dança: para pensar um corpo dançante ...... p. 162 Wagner Ferraz e Samuel Edmundo Lopez Bello

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Foto: Wagner Ferraz


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AGRADECIMENTOS

Agradecemos também a todos que de forma direta ou indireta colaboraram com o Processo C3 e com o Informe C3.

Agradecimentos desta edição

Anderson de Souza Porto Alegre/RS

Luísa Beatriz Travisan Teixeira (Lu Trevisan) Porto Alegre/RS

T. Angel (Thiago Soares) - Frrrk Guys São Paulo/Brasil www.frrrkguys.com

Carina Sehn e Itiana Pasetti Porto Alegre/RS

Gilberto Silva Santos Porto Alegre/RS

Alexandre Carvalho Porto Alegre/RS

Nelci Rosa Moreira Buenos Aires/AR

Alessandro Rivellino Porto Alegre/RS

Marina Jerusalinsky, Filipe Conde e Carin Mandelli Porto Alegre/RS

Joseane Franken Corrêa e Carmen Anita Hoffmann Pelotas/RS

Lucas Pacheco Brum e Cristina Rolim Wolffenbüttel Montenegro/gravataí/RS

Elisandro Rodrigues e José Damico Novo Hamburgo/Porto Alegre/RS

Pedro Stefanello Novo Hamburgo/RS

Samuel Edmundo Lopez Bello Porto Alegre/RS

INDEPIn

Porto Alegre/RS

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APRESENTAÇÃO

Não tem apresentação! Wagner Ferraz

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vĂŠrtebras Foto Lu Trevisan


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VERTEBRA 01

+ Arte para uma vida se movimentar Wagner Ferraz*

Se uma vida é feita do que se vive, então... Basta viver de forma singular para criar sua própria vida. Mas por que singular? Talvez para buscar tornar cada vida única como uma obra de arte. Mas seria toda obra de arte única? Seria única se fosse pensada como, viver uma vida a cada criação. E ao entregar, deixar, se despedir de uma obra, se abandona algumas circunstâncias e condições para se passar a viver outras. Mas se uma obra de arte é feita de acordo com todas as regras que possibilitam que tantas coisas sejam iguais, como se singularizar? Seja o que for a obra é singular para aquele que a vive, e se trata aqui de pensar os processos pelos quais se mergulha durante uma criação. E daquilo que se dá ao viver um processo de criação artística que, busco destacar aqui, como aquilo que tantas e tantas vezes não se sabe dizer, muito menos eu. E não farei isso aqui, não terei como dizer/escrever. Não sei como se faz, só sei que quero viver esse processo de escrita como processo artístico. É claro que quando se pensa esses processos com base nas possibilidades de classificação, se deixa de fora tudo o que não cabe nas gavetas separatórias onde se distingue o

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que “É” cada coisa. Mas não pretendo me ater a isto. O que quero dividir aqui, lançar, apresentar, mostrar, colocar em dúvida... é a possibilidade de se viver uma vida com mais arte. Não com mais números de arte, mas pensando intensidade, fluxo, aquilo que coloca em movimento a vida. Pensando esse mais como um modo de encher a vida de algo que não sei dizer o que é, que não posso calcular, que não posso mensurar, que não posso nomear por enquanto, mas que sei que cabe na gaveta das artes. Porém essa gaveta transborda, racha, se abre sozinha e tudo escorre... Pois mesmo dizendo que algo é arte, tantas vezes essa arte, para todos esses artifícios classificatórios deixa de ser arte, por isso a gaveta vaza. Vaza com essas coisas que não sabemos dizer o que é. Fluxo intenso, movimento... com isso uma vida se torna vida, sem isso uma vida se torna sufoco. E como movimentar uma vida? Nesse caso, digo: com arte. Mas com qual arte? Qualquer arte que me permita respirar, que me possibilite pular para fora da gaveta e fazer um bolo de qualquer coisa

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com o que me atravessa. E fazer o que com esse bolo? Sei lá! Jogar na parede, comer, dividir... Mas manter em movimento. Seja dança, circo, teatro, fotografia, desenho, escultura, música, gravura, vídeo, .............., ......................., ......................, ...................., ..................., ..................., ................., .................., .................., ...................., qualquer possível arte pode nos esmagar para tirar suco de algo que pode estar seco. Então a arte salva? Respondo perguntando: Salva do que? Só se for para salvar de nós mesmos. Pode ser por aí, a arte ou as artes pode nos deixar zonzo e nos livrar daquilo que poderíamos fazer de nós mesmos, sem viver uma vida com movimento artístico. Um movimento artístico de uma arte que se torna vida e uma vida que se torna arte. Uma vida que se faz igual à vida de tantas outras pessoas e ao mesmo tempo se faz movimentos e instantes de singularidades, de diferenças, de agonias que desestabilizam e nos colocam a produzir/pensar/viver tudo de outros modos. Variando uma vida, desfazendo certezas e assumindo outras, fazendo de tudo o que se vive uma composição. vida!!!

Mais arte para movimentar uma

*Wagner Ferraz: Mestre em Educação pela UFRGS. Pós-Graduado em Educação Especial (Lato sensu). Pós-Graduado em Gestão Cultural (Lato sensu). Graduado em Dança. Atuou como Coordenador do Dança do IEACEN/SEDAC. Foi Professor e Coordenador de Cursos Livres do INDEPin nas áreas de Cultura, Artes e Moda . Coordenador do Processo C3 e editor do Periódico Eletrônico Informe C3. Já dirigiu, coreografou e atuou como bailarino em vários espetáculos, performances, festivais e mostras de dança sendo premiado várias vezes. Integrou o elenco da Cia Terpsí Teatro de Dança (2006/2007). Coordenador dos Estudos do Corpo. Organizador do livro Parafernálias I: Diferença, Artes e Educação (2013). Autor do livro: Ditos e Malditos desejos da clausura Processo de Criação da Terpsí Teatro de Dança (2011); Organizador do livro Estudos do Corpo: Encontros com Artes e Educação (2013). Autor do livro O Trabalho do Figurinista Projeto, Pesquisa e Criação (2013). Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq. br/7662816443281769

Foto: Anderson Luiz de Souza

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Foto: Anderson Luiz de Souza


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VERTEBRA 02

corpo paisagem Carina Sehn*

venho falar do que é vibração, universo vibrante que nos cerca e conecta tudo o que tem vida. deste emaranhado espécie de “sistema nervoso invisível”, rizoma, deste infinito de ligações imateriais, vibratórias, que liga o meu corpo ao corpo das árvores, das pedras, das flores e dos insetos. uma onda gigante que faz com que tudo se movimente, gire, se espiralize e se relacione. quando deito sobre uma rocha, a luz do sol faz com que meu corpo reflita a cor da pedra, eu quase viro ela, me ligo as suas ranhuras, aos seus sussurros, ela me penetra, eu a penetro, respiro diferente, sou outra ou sou meu corpo expandido, solto no ritmo das esferas quânticas, fractais que me cercam sem que eu as possa ver, só sentir, me arrepiar com elas. meu corpo está além do que nele é civilizado, do que nele tem nome, é órgão. conhecemos parte da sua composição a partir dos estudos científicos, de pedagogias especializadas encarcerantes, canonizadas pela representação idealista. desconhecemos o corpo a partir da sua capacidade energética, natural animal instintiva. nomeamos o corpo para que ele

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exista como função científica e deslocamos toda a nossa energia em direção ao conhecimento catedrático estruturalizante. desperdiçamos o que não é material, o que o que é pura energia viva e mágica para comprar o bem acabado investindo na semiótica passível de reprodução. pois o que era ótico aqui se transforma em ético e o corpo perto e na natureza é artigo de luxo na nossa vida colonizada pelo arsenal europeu capitalístico de eletrodomésticos e máquinas tecnológicas digitais que nos mantém boa parte do tempo em frente a uma tela caverna. somos frágeis perante a natureza isto é certo, mas nestes tempos de casas com grades e janelas lacradas temos medo do simples fato de andar descalços ou de tomar água de nascente. perdemos a ligação com os outros seres vivos, ou nos distanciamos deles a ponto de chamar cachorros e gatos de filhos! admiradores de animais em zoológicos prendemos baleias orcas para entreter crianças alienadas que comem algodão doce enquanto veem um mamífero gigante em uma piscina artificial_ infeliz e prestes a devorar um de seus

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ao corpo sutil não importa o capital mundial que o sidera, que o divide em partes para poder especializar mais médicos e remédios. ao corpo sutil que vaga a direção é o vento, o sol, feixe de convergências e divergências, a orgia das águas livres das correntezas, os barulhos das ondas entre as rochas, os sussurros da subida da maré e a força de dissipação que lhe é típica. o instante, o caos imanente ao vivo, que movimenta os instantes, o caos criativo. o corpo é uma máquina autopoiética que vaga se embrenhando no natural, no orgânico,

em tudo o que tem vida vibra movimento e luz. camada grossa de sutilezas afloradas, murmúrios das pedras, insetos que quando percebem o corpo saem correndo ou pousam nele, curiosos e atentos. corpo paisagem que se preenche do orgânico natural pulsante. corpo que mergulha no corpo da terra, das pedras, das árvores, busca ali a revolução, se alimenta ali do que não tem patente, royalites e nenhum contrato. é pele, toque, magia, enfrentamento e imbricamento com o caos, mundo natural espiralizante e expandido que faz com o que o corpo aconteça, se presentifique, nasça outro e

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treinadores por puro desespero de viver assim_dependente.

não deixe nunca mais de nascer.

Corpo Sutil que Vaga (2014) de Carina Sehn. Fotos de Itiana Pasetti. Praia do Matadeiro - SC

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Corpo Sutil que Vaga (2014) de Carina Sehn. Fotos de Itiana Pasetti. Praia do Matadeiro - SC Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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Corpo Sutil que Vaga (2014) de Carina Sehn. Fotos de Itiana Pasetti. Praia do Matadeiro - SC

Corpo Sutil que Vaga (2014) de Carina Sehn. Fotos de Itiana Pasetti. Praia do Matadeiro - SC

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Corpo Sutil que Vaga (2014) de Carina Sehn. Fotos de Itiana Pasetti. Praia do Matadeiro - SC

*Carina Sehn: Carina Sehn é uma criatura humana em processo de reinvenção e de transgressão que vive a vida em conexão com a arte, com a saúde mental e com a educação. O seu maior desejo é poder despertar a crítica das pessoas em relação ao seu próprio corpo e ao seu modo de existir a partir da experiência de uma prática de si e do seu corpo como território existencial. Possui graduação em Teatro pela UFRGS, Especialização em Saúde Mental Coletiva pelo EducaSaúde/UFRGS e Mestrado em Educação pela FACED/UFRGS na linha Filosofias da Diferença, com a pesquisa: Um corpo performático para romper com a representação. Atualmente Carina ministra aulas de corpo, de performance e de exercícios de sutilizar o corpo para pequenos grupos abertos a toda a comunidade. Mais informações: http://carinasehn.tumblr.com/

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Foto: Anderson Luiz de Souza Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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VERTEBRA 03

Sobre cento e vinte e poucas repetições diferentes Ou

(percursos entre a ponta 0,8 e os vãos do poliéster.) Ou

notas sobre processos repetidos que se diferem Anderson Luiz de Souza*

Imprimir uma imagem sobre papel. Pode parecer algo banal para quem olha apenas o resultado final da impressão e desconhece todo o processo envolvido. Ainda mais quando tal papel impresso mede apenas 7cm x 10 cm.

e estilete) em tiras com 4 partes iguais. Cada tira recebeu pinceladas com o café passado que era bebido naquele momento. Café bebido, pincel embebido, papel cafesado. Papel aquarelado com café compartilhado.

Trata-se da produção de um múltiplo, de um trabalho que envolveu muitos processos e experimentações até ficar totalmente pronto, resultado de uma ação performática que beirou o esgotamento, em meio insalubre, repetitivo, exaustivo, e mesmo assim contagiante.

Após a evaporação da água, restou apenas o pigmento, manchas únicas. E se fez os últimos cortes, tiras cortadas em partes iguais.

Começou no formato A3 224 g/m² creme, dobrado e vincado em 16 partes iguais e multiplicado por 8, cortado (com régua de metal

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Dias se passaram, por dias se pensou, e os desenhos foram sendo criados em meio ao processo. Em trânsito, sem certezas, apenas experimentações, fluxo. Apenas o que se sabia eram dos prazos, sempre os prazos a estrangular o tempo e forçar os processos à acontecer.

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Serigrafia sobre papel: Anderson L. de Souza. Fotos: Anderson L. de Souza

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Tsunami que vai varrendo, arrastando tudo o que tem pela frente. Corre ou morre na praia. Disparado com Giacometti, se experimentou inventar corpos, se desenhou corpos, pequeno trio, Graças, Parcas, tríade. Corpos sui generis,

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sem gêneros, trino, que por não ser específico, poderia ser vários, múltiplos de três. Traçados à nanquim, acúmulo de riscos e pontos, camadas traçadas no movimento do deslocamento do veículo de transportes. Desenho que foi se

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dando a cada traço e solavanco. Sem modelo, sem exemplo, sem cópia. Composição. Foi indo. Desenho que foi sendo feito em um pensamento sem imagem, se compôs com o que se tinha, se experimentou com o que ia acontecendo. Nada

era esperado, nem previsto, só se sabia que desenhava. Desenho com sensações, desenho pensante, transe. Emtrânsito. Do nanquim, foi convertido em digital, bits, bytes, pixels, pontos, 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0

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Enquanto isso, em um quarto escuro, aquele que seria marcado com suas formas era preparado, com banhos para livrá-lo de impurezas, seco para livrá-lo de toda umidade, e em seguida besuntado com uma camada fina e uniforme de seu impermeabilizante High Definition. E só então, os corpos translúcidos se uniram à tela opaca, deitados juntos e unidos sobre uma “cama” de luz.

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1 0 0 1 0 1 0 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 ... editado, cortado, cropado, ajustado, impresso em sulfite com toner Black. Processado e ainda o mesmo, e ainda outro, mesmo outro. E banhado em vaselina descansou translucido.

Queimada, marcado, o que era apenas opaca, passa a ser vasada após um banho. Se torna matriz, molde para reprodução de corpos, corpo para repetição de corpos, objeto cênico para uma performance de esgotamento, tela. Escolhem-se cores, fazem-se misturas, alquimia. Pigmentos escuros somados a partículas reflexivas diluídas em base incolor viscosa, criando noites de céu limpo, escuros que cintilam em meio a vapores inebriantes. Cosmos tóxicos. Se começa o aquecimento, prende tela, escolhe rodo, levanta tela, posiciona papel, abaixa-se tela, espalha tinta, passa o rodo, levanta tela, tira papel, avalia-se qual a pressão necessária exercida sobre o rodo, a viscosidade da noite líquida, a posição da imagem impressa sobre a mancha de café, a intensidade do escuro, a luminosidade dos micropontos reflexivos, a evaporação, a umidade relativa do ar, o cheiro, o peso, a composição. O papel agora gravura serigráfica é posto de lado, para curar e seguir seu processo de modificações químicas. Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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Mais uma vez, levanta tela, posiciona papel, abaixa-se tela, passa o rodo, levanta tela, tira papel, avalia-se a pressão exercida sobre o rodo, a viscosidade da noite líquida, a posição da imagem impressa sobre a mancha de café,

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a intensidade do escuro, a luminosidade dos micropontos reflexivos, a evaporação, a umidade relativa do ar, o cheiro, o peso, a composição. O papel agora gravura serigráfica é posto de lado, para curar e seguir seu processo de modificações

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químicas. Mais uma vez, levanta tela, posiciona papel, abaixa-se tela, passa o rodo, passa-se o rodo novamente, levanta tela, tira papel, avaliase a pressão exercida sobre o rodo, observa-

se a espessura dos contornos da imagem impressa, a viscosidade da noite líquida, a posição da imagem impressa sobre a mancha de café, a intensidade micropontos reflexivos, a luminosidade do escuro, o cheiro, a evaporação,

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a umidade relativa do ar, o ruído do exaustor, o peso, a composição, o calor nas mãos devido às luvas. O papel agora com impressão serigráfica é posto de lado, para curar e seguir seu processo de modificações químicas. Uma vez mais, mais uma vez, mais vinte, trinta, cento e tantas vezes procedimento que se repetiu sem ser igual, com semelhanças, mas sempre diferente, atravessado por sensações variadas, acasos, acidentes, imprevistos, interrompido por perguntas, por entupimentos, por intromissões que foram englobadas, fagocitadas, compondo o processo da transubstanciação de objetos artísticos. Corpos compostos de fluxos variados. Separadas, datadas, assinadas, numeradas, embaladas, sem título, sem definição, são muitas por não serem uma coisa só.

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*Anderson Luiz de Souza: Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação UFRGS na linha de pesquisa Filosofias de Diferença e Educação. Especialista em Arte Contemporânea e Ensino da Arte. Graduado em Moda (Bacharelado). Professor auxiliar de ensino da Universidade Feevale, lecionando no curso de bacharelado em Moda e também no curso de Artes Visuais (bacharelado e licenciatura) em disciplinas de Desenho e Computação Gráfica. Ministra aulas em cursos de Pós-Graduação (Especialização) nas áreas de Arte e Moda. Integrante do Processo C3. Membro do conselho editorial e colaborador do Informe C3 Periódico Eletrônico ISSN 2177-6954 (www.processoc3.com). Participa dos encontros de estudos e pesquisa ESTUDOS-CORPO. Artista Visual integrante do Coletivo/Projeto Arquivo Temporário e do Coletivo M.A.L.H.A (Movimento Apaixonado pela Liberação de Humores Artísticos). Desenvolve trabalhos como figurinista, designer gráfico, ilustrador de Moda, estilista e fotógrafo experimental.

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Foto: Anderson Luiz de Souza


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VERTEBRA 04

DA VIAGEM À PESQUISA: (DES)APROXIMAÇÕES Gilberto Silva dos Santos*

Talvez uma escrita, uma pesquisa seja uma viagem! Como toda viagem, ela exige uma organização e uma pequena/média/grande bagagem/ metodologia. Essa bagagem/metodologia, por sua vez, pode ser pensada como a organização de coisas que são necessárias para (sobre)viver durante o tempo em que não estaremos em solo seguro, ou seja, em que estaremos no caos. Inicia-se a organização da bagagem com interpretações e valorações do que seja útil para estar na estrada – algumas/ poucas verdades acerca do tema -: uma empiria se pensarmos cientificamente e um lugar se pensarmos geograficamente. Para ambos, é necessário um mapa. Mapa que localize, que apresente algumas/recentes produções acerca do tema problematizado, bem como o que pode ser abordado, que caminhos (na pesquisa e na viagem) podem ser traçados, pensados. Mas não um mapa que remete a algo pronto e fechado, antes disso, como um entre. Entre os caminhos a escolher, entre o que fazer e o que deixar de

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fazer, entre o lugar que se ocupou, o que se ocupa e o que se ocupará. É importante alguma coisa que registre. Não os fatos para memorizálos1, mas para (re)lembrarmos/fabularmos com aquilo que fomos, mas sem recorrer ao passado como algo que funda ou prédetermina o presente, mas apenas como algo acerca do que deixou-se de ser para se tornar isso que se diz ser. Aí existe a necessidade de (re)inventar ou r(e)desenhar o mapa como aquilo que se desocupou, que se ocupa e que está a se ocupar. Chegar a um lugar diferente ou incomum produz não apenas estranheza e falta, mas como o/a desejo/sensação de fazer novas amizades. A medida que se caminha ou se segue/aventura-se pelo lugar desconhecido, faz se necessário (quase como uma generalização) fazer laços, novas amizades, outros companheiros, (in)variados encontros, potentes, latentes, 1 Memória denunciada por Nietzsche, que não seja essa que produz lembranças e despotencializa a criação que deixa de se viver em prol de uma memória e do que já foi vivido e sabe-se como agir.

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afetivos, desenhados, esboçados que entrelaçam e produzem outras invenções, outras formas, outros usos de vida, outros desejos, outras sensações.

São aqueles2 que não apenas guiam,

mas te provocam a ir ali, acolá, em outro lá. Dão pistas, atalhos, outras formas, éticas, olhares e desejos para seguir por ali, por aqui ou por outra invenção que por hora não estava no mapa e se esconde, que pertence ao local e encontra-se a partir daqueles que convidam/instigam a transitar por essa caminhadas que só é conhecida (foi fabricada) por quem vivencia o local. É consoante à viagem/pesquisa a mistura entre vozes e silêncio. Vozes que já estiveram por lá e que ensinam o que viveram, o que sabem, o que fabularam. Silêncio para que se possa recortar disso tudo aquilo que vale e é interessante para seguir e aproveitar ao máximo da viagem. Nem menos e nem mais, apenas o que se (a)credita ser importante para defender/ continuar com a pesquisa/viagem. No meio dessa pesquisa/viagem, existem coisas que vieram junto, mas são desnecessárias. São escritos, dizeres, rumores, citações, vídeos e todos os materiais necessários que pareciam ser importantes e já não os são. Coisas que não duram e que estavam ali atravancando caminho por ocuparem a ordem do discurso e serem, por alguns instantes, naturalizadas. 2 Conforme Deleuze (2013), o filósofo não é reflexivo, mas criador. Esse cria, produz outra coisa com seus intercessores, com aquilo que foi produzidos por eles. Deleuze é um exemplo de um pesquisador que usa intercessores, pois ao ler Nietzsche (Cf. Deleuze, 1976) e Foucault (Cf. Deleuze, 1988) – por exemplo – Deleuze acaba produzindo outros movimentos, outras interrogações acerca do que os autores pensaram ou problematizaram

Foto: Anderson Luiz de Souza

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Chegar ao destino esperado envolve um misto de desespero e alegria. Desespero por ser mais estranho e desestruturador do que se imaginava e alegre por estar experimentado outros ares, outros ventos. São essas impossibilidades ou sensações que violentam não apenas o pensamento, mas todo o percurso pelo caminho que se espera seguir e o que está por vir. Não se deve esquecer das coisas necessárias para o descanso, para respirar. Momentos de aflição, de medo, de estar sem rumo, de estar perdido poderão surgir e para isso precisa-se de doses de descanso, alivio para que as aflições não perturbem as novas descobertas acerca da pesquisa/viagem. Quase como um ruminar (nietzschiano)3 que nos leva a mastigar, digerir, mastigar, digerir quase infinitamente, porém finitamente os pontos, os lugares a percorrer e as descobertas dos lugares já percorridos. Como se estivesse no limbo, entre esquecer a segurança do retorno, mas não temer o que se aproxima. Já se inventa alguma familiaridade como o lugar/ pesquisa. Já é seguro de si e dos problemas/ caminhos a serem percorridos. Se algo der errado, sempre temos as coisas necessárias para os primeiros curativos ou primeiras precauções. Por mais que se esteja seguro, pode surgir algo da ordem do acaso que abale ou interfira; algum fator desconhecido; alguma causa já estudada; algum caminho já percorrido que 3 Ruminar como um processo necessário à interpretação criativa; essa que não busca a verdade do que foi dito, mas que permite produz outra coisa, que se coloca em movimento com o já pensado para (re) pensar de outra forma, de outro jeito, em outro tempo, com outro olhar interpretativo. (Cf. Nietzsche,

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era suposto pela pesquisa/viagem como novo. Resta, portanto, (re)pensar –ruminar – o que se tem ou o lugar que se está para trilhar outros caminhos, outros trajetos que seriam acusados de desviantes no início, mas que são produtos de viver pela pesquisa/viagem. Há necessidade de um espaço para mudanças. No meio do percurso, talvez, seja interessante sanar as dúvidas com pessoas locais. Locais da viagem/pesquisa. Que estudam, vivem, trabalham, pensam isso que talvez pesquisamos/visitamos. Eles, talvez, sejam a banca - de qualificação – disposta a olhar com outros focos para pontos e trechos desconhecidos e apontar novos trajetos na pesquisa/viagem. Como uma segunda consulta a novos atalhos e possíveis (re)descobertas. Eles que vão impulsionar a pesquisa/ viagem para lugares novos, mas vão desenhar/esboçar/traçar o que pode ou ainda deve ser feito. O que já foi feito e está no percurso potente e o que já não se precisa saber/ser/ocupar. Os lugares comuns que não potencializariam os registros e as possíveis fabulações do percurso traçado. Lugares pares que apenas (re)visitariam o já visto,em troca apontam outras arestas, potências não exploradas, não desejadas. Como se ali pudessem ser aparadas algumas arestas em detrimento de outras. Talvez deixar algumas trilhar para que outras sejam visitadas e criem outras condições, outras fronteiras, fabulem outras histórias, outros contos, outras cantigas à viagem/ pesquisa.

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Por onde se anda, talvez, seja a hora de firmar uma espécie de parceria com a banca ou de aproximação com o que está lá e é diferente por si mesmo. Algo que é de lá e não está aqui, alguma coisa, uma pequena memória que fabule os costumes, os desejos, as características do lugar visitado. Algo que (re)invente o que se viveu lá, o que se foi para se pensar o que se é, o que se está tornando e o que está por vir. Que outros lugares serão ocupados pelos próximos passos? O que os passos antigos ajudam a retomar, iniciar e (re)produzir o começo já com aspecto de fim. Chega o momento de voltar. Voltarse para si. Para o que se esperava ser. Chega o instante de (re)tornar e trazer, junto, todas as vozes, todas as ordem – do discurso – que circulavam e formavam redes singulares do local onde se visitava/ pesquisava. Microrrelações que ficaram lá e que produzem/inventam outras relações aqui. Que questões podem ser movimentadas e ensaiadas a partir desse (re)tornar-se? E a bagagem? Como ela está? A bagagem volta desorganizada, desestruturada, sem começo, sem fim, enorme, maior, cansada. Suja, desejada, cheia de dizeres, de sensações e já contando/inventando fabulações possíveis a partir do que se trilhou e o que se deixou de trilhar. A bagagem que já não é a mesma, que tem outros elementos e que traz discursos, saberes, cheiros, silêncios, gritos, secos e molhados. A bagagem que (trans)formou-se em outra bagagem e que assim – num eterno retorno – não cansa de Foto: Anderson Luiz de Souza Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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se afirmar e esperar que outras bagagens sejam (dis)postas nessa mala que conduz/ produz roteiros, trabalhos, histórias, lugares. Ela volta – enquanto viagem - ou se encerra – enquanto pesquisa – com o desejo de respirar ares aliviados, caseiros, aconchegantes, mas com pretensões de (re)partir. De (re)iniciar o trajeto entre vidaviagem/pesquisa...

*Gilberto Silva dos Santos: Mestrando no PPG Educação em Ciência: Química da Vida e Saúde/ UFRGS. É licenciado em Matemática/UFRGS. Sua pesquisa está nos (des)encontros da filosofia da educação com a educação matemática. Contato: gilberto.santos@ufrgs.br

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o รง a e p r s v e li Foto Lu Trevisan


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A GARAGEM EMÉTICA Um ensaio para o desbloqueio criativo

Alexandre Carvalho1

Fazendo alusão óbvia, e não por acaso, a um dos trabalhos mais famosos do artista gráfico e autor de histórias em quadrinhos francês, Jean Giraud, também conhecido como Moebius, intitulado A Garagem Hermética, apresento aqui fragmentos básicos do que chamei de A Garagem Emética: um ensaio para o desbloqueio criativo. Publicadas originalmente no final da década de 1970, inicialmente na revista Métal Hurlant, da editora Les Humanoïdes Associés, as histórias do mundo da Garagem Hermética eram criadas de forma improvisada, conforme conta o próprio Moebius em entrevistas posteriores. Ele desenhava uma página sem roteiro nem planejamento do que viria na próxima, e sem ter noção do que seria escrito nos balões de fala, ou até se teria algum tipo de texto, partindo apenas de uma premissa, de um universo ficcional vagamente imaginado. A partir dos desenhos de cada página, desenvolvia as histórias sem nem mesmo voltar para ver o que já tinha feito. Criava o que queria respeitando algumas regras básicas que esboçava e, por vezes, reutilizando alguns personagens. E assim Moebius criou um mundo de ficção científica que virou um marco dos quadrinhos e referência tanto para o cinema, como para a literatura, para a música e para mais quadrinhos. O mundo criado espontaneamente ainda rendeu uma série de álbuns com seu personagem principal, Major Fatal, escrita e desenhada pelo próprio Moebius. Como leitor das histórias da Garagem Hermética, é possível dizer que o conteúdo final é aquilo que cada um encontra nelas. Ou seja, Moebius dá aos seus apreciadores espaço para que coexistam em seus contos desenhados. Princípio Quando nascemos e somos apresentados às primeiras noções de vida, somos levados, ainda que sem a devida consciência, a um desespero misturado a um imenso fascínio. Temos tudo pela frente, tudo a aprender, tudo a despertar, tudo por fazer; e a total liberdade para tomarmos os caminhos que preferirmos. Não há regras a serem seguidas; e nem, por óbvio, quebradas. Somos livres e é só. À medida que o tempo passa: códigos, normas, leis, preceitos, princípios, regulamentos, tradições, compromissos e formatos vão aparecendo e nos sendo impostos; para o nosso bem, para o nosso mal e para a manutenção das relações entre as gentes. É assim que conseguimos nos entender; e entender o que se passa a nossa volta. Mas o que nos dá segurança é também o que nos leva ao seu oposto. Depois de embrulhados, carimbados e etiquetados para a distribuição e para o consumo, fica bastante difícil de fazermos um pequeno rasgo na embalagem a fim de observarmos o que está a acontecer do lado de fora. Até mesmo porque, por força dos hábitos, não possuímos ferramentas para tal; nossas unhas já estão 1 Alexandre Carvalho é jornalista, artista gráfico músico e escritor. É ilustrador freelancer. É professor de Desinibição Textual e Escrita Criativa e de Histórias em Quadrinhos, Charges, Cartuns e Tiras Humorísticas na Universidade Feevale, em Novo Hamburgo, RS, e no Museu de Arte do Rio Grande do Sul - Margs. Ministra oficinas sobre os mesmos temas em escolas, feiras e festivais ligados à arte e à literatura, como a Feira do Livro de Porto Alegre e o Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana - Fórum das Artes. Nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

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Umbigo A criança não tem preocupações. Está onde está e nunca no passado ou no futuro. Vive o presente; o aqui e o agora. E está sempre submissa ao que ocorre ao seu redor, assimilando a tudo sem conceitos preestabelecidos. É importante também que sejamos mais submissos ao mundo, às coisas, às cores, aos sons, aos cheiros, aos sabores, ao toque, aos sentimentos e às ideias dos outros. É aí que se encontra a nossa matéria prima. É daí que vamos tirar novas ideias e confrontá-las com as nossas velhas e desgastadas. Quando ficamos o tempo todo atolados dentro de nossos próprios umbigos não aprendemos nada. Vivemos colados à ignorância com a ilusão de que sabemos muito, mesmo porque esse tipo de pensamento é típico de quem ignora. Aprender é fundamental; não é para outra coisa que estamos aqui. E aprendizado é troca de informações.

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gastas de tanto aranhar o invólucro por dentro e nossas mandíbulas já não têm mais forças para arrebentar o barbante. Ou simplesmente porque nem nos damos conta de nossa condição. Todos nós já desenhamos um dia, não há como negar. Toda a criança nasce sabendo desenhar. E saber desenhar é algo bastante relativo. Mas aí começamos desde muito cedo a escutar críticas relativas aos nossos desenhos, muitas vezes por absoluta ignorância das pessoas que nos cercam, presas aos seus modelos em geral já desgastados. “Não é assim que se desenha o olho”, “a cabeça está muito grande”, “a casa está muito pequena em relação ao menino”, “onde está rabo do cachorro?!”. E vamos criando e reforçando um senso crítico distorcido a respeito de nós mesmos e das nossas habilidades.

Expectativas Evitar expectativas desmedidas quanto ao resultado do trabalho também é fundamental para o desbloqueio. Quanto maiores as expectativas, maior a pressão interna para que saia a melhor de todas as obras já executadas na face da terra, quiçá no Universo. O que já é noventa e nove por cento das possibilidades de bloqueio criativo. A qualidade será atingida mais tarde, com empenho, pesquisa, leituras, releituras e o fazer e refazer partes do trabalho se preciso for; não no momento da criação. Ainda que, por vezes, ao liberarmos a mão, a mente e a alma em direção à página em branco, possamos nos surpreender muito positivamente com os resultados imediatos e muito próximos da finalização. A técnica da Garagem Emética é sempre um bom exercício para obtermos um termômetro de nossa rigidez interna. Criação Para criar é preciso, acima de tudo, sensibilidade, imaginação e coragem. Qualidades e possibilidades que a criança tem de sobra e ao natural. Sensibilidade para absorvermos o que se passa conosco e o que passa através de nós; imaginação para transformarmos e reciclarmos a nossa absorção nos formatos que desejamos; e coragem para nos expormos perante o(s) outro(s), porque parte do nosso eu mais interno, intenso e subliminar está sempre, de alguma forma, contido em nossas obras. Crianças são sentimento puro ao executarem seus “trabalhos”. Crianças não pensam antes de fazer: saem fazendo. E sequer cogitam se estão executando certo ou errado, ou bonito ou feio, ou isso ou aquilo. Não até que comecem as comparações. Defendo que o nosso verdadeiro tesouro vem dos primeiros pensamentos que nos surgem, porque estão livres da nossa própria interferência. Livres do nosso eu carrasco que pensa sempre que aquilo podia ser melhor, mesmo antes de ser registrado no papel, ou no suporte por nós escolhido. E é aí que tudo se perde. E é bem aqui que entra a questão do êmese, ou a técnica da Garagem Emética, para iniciar uma obra, seja lá de que tipo queiramos que ela seja. A técnica é simples, ou ao menos deveria ser: sem jamais olhar para a página/papel/tela/ suporte qualquer em branco, sair riscando sem parar, tudo que vier à mente. Sem rasurar, nem usar borracha para apagar, nem voltar atrás para refazer ou rever o que está posto ou mesmo para relacionar ideias. É só viver a obra. Deixar fluir. Deixar-se fluir. Não pensar, não tentar ser lógico, racional. Ir fundo, direto na jugular. É importante que comecemos a rascunhar como um animal que urra de dor, de maneira rude e desajeitada. Só então encontraremos nossa inteligência, nossas formas, nosso olhar, nossa voz. Liberdade E se o espaço em branco é o nosso maior entrave prático para criar, é porque ele representa todas as possibilidades existentes e inúmeras outras mais. Diante do espaço em branco temos Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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total liberdade para inventar e escrever o que bem entendermos. E isso deveria ser a solução; mas não parece ser. Ao menos não à primeira vista. O fato é que não estamos mais acostumados com a liberdade; aquela que perdemos quando deixamos de ser crianças. Por mais que possamos apregoar aos sete ventos e quatro cantos que amamos a liberdade, nós, de fato, a tememos do fundo de nossas almas apavoradas e sedentas de segurança. Sentir-se livre dá trabalho. Sentir-se livre é encararmos nossas inseguranças de frente e arrancar delas o sumo de nossos desejos, que são a antítese de tudo isso. A insegurança é prima irmã da inércia; ao passo que a liberdade só sobrevive colada à ação. Sentir-se livre é abandonar, de corpo e alma, as nossas tão acolhedoras zonas de conforto. Êmese Êmese é o mesmo que vômito. Nada mais do que um sinônimo para a palavra mais conhecida relacionada ao ato de expulsar ativamente o conteúdo gástrico pela boca. Todos já fizemos isso ao menos uma vez na vida. Só que neste caso, o conteúdo não vem do estômago, mas do inconsciente. Ou da alma. E o receptáculo desse conteúdo é a página em branco. Quando falo em êmese, quero dizer isso mesmo: ao criar devemos vomitar o inconsciente no espaço em branco. E quando se vomita não se pensa. Não se mede consequências. Não dá para segurar. É fazer, deixar fluir, e ver os resultados em seguida. E é esse dispensar sem pensar que chamo de A Garagem (porque está guardado) Emética (porque o que está guardado é colocado para fora de um só golpe). Por vezes pode parecer confuso, degradante, ácido e até doloroso, dependendo do que temos por dentro e deixamos sair no momento. Mas, inegável: sempre será unicamente nós mesmos; original na essência.

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Para qué pensar, Sé tengo celular *Nelci Rosa Moreira

El siglo XXI está sin duda marcado por las diversas tecnologías. Podría enumerar varias, pero, volveré la atención para el compañero inseparable, pequeño o grande él comanda nuestra vida. En matemática, ofrece la calculadora, el despertador por la mañana para ir al trabajo o a la escuela; el GPS diciéndonos la dirección; la agenda de los compromisos profesionales y sociales. ¡Cómo vivimos tanto tiempo sin él! ¿Quizás no fuera tan necesario en nuestras vidas antes como hoy? En otras épocas tendríamos que pensar. También, no se leía los irónicos avisos, (“Se ruega que apaguen el celular”), en espacios como, por ejemplo, el cine, hospitales, teatros, vuelos y tantos otros. ¡Así es este aparato increíblemente “pensante” para uno mismo! “Pienso luego existo” según (René Descartes). ¿Qué diría Él hoy? ¿Tengo celular: luego existo? ¡Qué sé yo! No es preciso ser, por lo tanto, un especialista para hablar o escribir sobre tal asunto; basta mirar mientras caminás por las calles, al tomar un colectivo por ejemplo. Las personas no se miran unas a las otras, ni tan poco pierden tiempo para un breve saludo. Una charla con la familia en un café o restaurante, ya es cosa del siglo pasado: ahora es tiempo de “textear”, sobre todo, mientras estamos en grupo. Cada uno, con su aparato para hablar-textear con el otro que, sin embargo, está lejos. ¡Buen día¡ ¿Para qué? De esto modo, estoy de acuerdo con Jaime Barylko al decir que: “Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos” Por medio del móbil cualquier persona sigue accionando sus mensajes, mirando y poniendo imágenes en el Facebook; enviando emails, buscando informaciones rápidas por internet. ¡Oh tiempos modernos! Bien venido sea el celular. Con él, no necesito pensar. No obstante, seguimos ciegos, pero guiados por esta maravilla. “Temo que el día en que la tecnología supere las interacciones humanas, el mundo tendrá una generación de idiotas” (Albert Einstein). ¿Qué opinás, vos, sobre esto? Yo, no puedo contestar… tengo celular…

*Nelci Rosa Moreira: Pedagoga , especialista em Educação Especial, pela UNISINOS-RG. Atualmente vive em Buenos Aires-Capital Federal, onde está licenciado em Psicologia pela Universidade de Palermo-UP.

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TEXTO Título: Entre o Zero e 01 Assunto: Arte Contemporânea Pano de Fundo Subjetivo Subliminar: Memes Respaldo: Empirismo Blefatório además Autores Reconhecidos Coordenação de Autoria: *Alessandro Rivellino mediante Esquizofrenia Controlada

*Alessandro Rivellino

*Alessandro Rivellino integra o Tótum Teatro, cujo trabalho deriva da Dança Pessoal do Ator (LUME) e junto ao qual pesquisa corporalidades cênicas e estados do corpo. Fundou o ColetivoJoker, cuja pesquisa vai ao encontro da hibridização de linguagens; Dança e Teatro Contemporâneos, Artes Visuais em Performance e Vídeo-Arte. Resultando em trabalhos como A Cidade da Goma (2013), que recebe 07 indicações ao Prêmio Açorianos (Melhor Direção; Melhor Bailarina; Melhor Bailarino; Melhor Figurino; Melhor Produção; Melhor ‘Novas Mídias’; ganhador do Prêmio Destaque pela Excelência Artística e de Pesquisa) e JokerPsique (2011), ganhador do Prêmio na categoria Melhor Bailarino e indicado ao Prêmio de Melhor Espetáculo. É graduado pela UFRGS; ministra aulas ao Grupo Experimental de Dança de Porto Alegre e à Cia. Municipal de Porto Alegre. Ministra cursos e atua como preparador corpo/mente para artistas. Enfoca sua pesquisa em Butoh, Contato Improvisação e Performance. Enfoca seu trabalho criativo em hibridismos.

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Daí o Wagner Ferraz me perguntou se eu queria escrever sobre Arte Contemporânea. ... Já sabemos que o paradigma está em eterna construção acoplada a dilaceramento. Já passamos sobre o conceito de teatralização do mundo. Nós já entendemos o mecanismo necessário de não reduzir a obra de arte a ponto de colocá-la como decifração de signos. Mas eu achei bom o exercício e disse que eu ficaria feliz em fazê-lo.

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...

Compartilhando também as questões-corpo, no embate ilusório entre representatividade e fluxo de energia, e sim, vomitando tendência sudorética. Sabemos igualmente que caixas organizadoras não podem mais definir aquilo que pulsa contemporâneo, também já questionamos realidades a partir da ótica software livre. Pero si, cá estamos, mesmo sem esquecer que o cachimbo não é um cachimbo. ... Daí A.C. D.C (Arte Contemporânea Depois de Cristo ou Corrente Alternada – Corrente Contínua ou Banda de Hard Rock) + o distanciamento do pensamento Platônico resultou em Hibridismo, aí eu procurei Híbrido na internet, e achei isso aqui: Branco x Índio = Caboclo ... Gosto da tendência híbrida como órbita das interações possíveis. Mas, justamente por isso, me contradigo e me pauto pensando no conceito de separatividade, para melhor adequação ao meio, na premissa da normalidade traçada pela maioria, que por sua vez é a maioria que não irá ler esse texto aqui. Enfraquecendo os Antropofagismos nucleares e a tendência Anarco-Tupi-Neo-Hispânica que me movem normalmente. Mas, creio que muito provavelmente não vou conseguir ser fiel a essa tentativa de habitar o dualismo e me agarrar na fenomenologia. Bom, foda-se. Rhea Volij lo sabe. ... Em verdade, e isso me explicou o Wikipédia, há uma liberdade de escolha entre gêneros artísticos e um descompromisso com o que é institucional-limitador que é possível na Arte Contemporânea, e que por sua vez a caracteriza, independente inclusive da necessidade de inovação ou vanguardismo.

Em verdade, dizer “em verdade” é patético, e quem explicou foi o InfoEscola.

Em patético, reconstruí o que lá estava para uma melhor forma de expressão que aqui cabe, assim: Há uma pseudo-liberdade de escolha (suposta autonomia fiel naquilo que o sujeito entende como sendo seu desejo, vontade e razão) entre gêneros e transgêneros, entre usar uma agulha ou um revólver, o próprio corpo ou sua projeção, uma tela de algodão ou matéria inerte pintada de rosa; além do descompromisso acerca de aonde se irá meter o dedo na goela; na sala de trabalho, na galeria, na sala de apresentações ou na sala de conferências, ou no banheiro; e o descomprisso em Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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não meter o dedo na goela de forma alguma, nem mesmo no porre-brabo nem mesmo ressuscitando Caio Abreu que DiosYvesKlein o tenha. Assim, a Arte Contemporânea, no caso, é inédita toda vez que escapa da ingenuidade e se caracteriza pela expressão do Corpo-Gueto-Indivíduo-Continente nos dias de hoje. Aí se isso se desdobra e vai parar no museu é outros quinhentos.

Assim, poder-se-ia dizer das possibilidades: Arte Pop-UP Minimalismo- I like Dadaísmo, Surrealismo, Transvanguarda, Neo-Expressionismo, Pós-Minimalismo, Land art - no meu perfil Arte Conceitual e Pós-Modernismo na fenda da decomposição e da visão contemporânea sobre o passado (by Teixeira Rabbit) Happening Performance Body Art poke poke poke repoke Instalações permitindo conexão e nem aí pras cotias da hidrelétrica Arte Urbana Banksy X Robbo – send me an email ... Diante da industrialização em massa e das Camera-shots, questiono a Arte Presente e o Corpo Contemporâneo, dentro de casa e do mundo-pátio-quintal, invadido por hackers da customização periódica numa contracontracultura de Vigiados e Punidos; Assim, celebro a moda (entendida aqui em perspectiva romântica) como a pungente possibilidade do encontro arte-vida, numa perspectiva antropológica de um paradigma devirar n’outro e modificar a teia social através do posicionamento individual perante o sistema-coletivo e o complexo-geral, dando suma importância ao ato-fato de “vestir-se e sair na rua”, o que envolve não mais aquela de modernismo identitário. Porém, continua sendo dificílimo usar os patins Queer no gelo cotidiano. Graças à impossibilidade de sairmos nus desenvolvemos os ônibus que superlotam, e com isso também programamos o tamanho do interior de nossa libido, e claro, nossos limites comportamentais envolvidos na existência de tecidos de diferentes valores (valores estipulados anteriormente a nosso pensar-criar contemporâneo e que na época em que surgiram pareceriam contemporâneos, e bueno, mais meio quilo de palavras francesas) ... Não haveria de ser outra coisa senão “o que tá pegando por agora”, e tá, os budistas disseram algo por aí também, só existe o agora et al, o passado é referência pra escolha de hoje e o futuro é desconhecido. Então tá, A Pedra e o Tempo (06 de junho de 2014 = dia da escrita deste texto). E assim, arte contemporânea parece estar podendo tudo et al, mas tem um tróço, que na minha opinião não pode et al, que é ser ingênuo et al, em relação à criação e encontro da Arte Contemporânea com o fruidor, que já sabemos, é a figura-chave ativa que permite o entre estabelecer-se e ser habitat da coisa essa. ... Acho que é mais ou menos isso que tenho pra escrever na esperança que tu sejas criativo no desempenho da tua parte em ler (leitura performativa vide Zumthor). Ah, e também digo que além das consultas Dicionário Informal, Yahoo, Facebook, Google, Teixeira Coelho, Wikipédia e InfoEscola eu usei o resumo de um artigo da Rita Gusmão sobre A Interação como Campo de Significância na

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... Concluindo, a manifestação contemporânea da arte corre vários perigos, no sentido de enfraquecimento da potencia possível de sua existência. Dos exemplos mais intensos destes perigos, podemos conferir, ou referir, ou proferir, ou ferir: 0,1) A falta de profundidade e permanência na linha rasa de pensamento 0,2) As verdades multifacetadas quando excludentes 0,3) A expressão vencer o conhecimento 0,4) O conhecimento vencer a expressão 0,5) Ser processado judicialmente - Valeu Eduardo Srur pelas dicas ;) ...

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Arte Contemporânea como base para disfarçar minha completa falta de proficiência em produções com respaldo acadêmico e também para poder meter todos apuds nela.

Comportamentos perigosos estes e possíveis conseqüências perigosas estas, oriundos da liquidificação multiface de informações, da ausência de valorização das raízes históricas ou mesmo do excesso asfixiante da valorização das raízes históricas (e mesmo da presença da palavra raiz), flambados na sombra da era de aquário e na tentativa do bebê em fazer a imagem de uma revista mudar ao passar o dedo sobre ela (touch screen) e dinamizadas pelo pós-consumismo de vanguarda. Assim, o verbo descontemporanizar pode fazer sentido para o equilíbrio dinâmico dos fatores em alguns momentos. Desde que, repito, não passemos pela ingenuidade. Em cunho Antropológico, a conferência dos poderes ainda nos empresta os óculos, e a inconformidade com ou sem partido não deveria mais, em minha opinião, manifestar-se sem ser revista (touch screen). Logo, não há mais arte no ser solo, não mais no ser coletivo, não há produtos sem rótulo, não há processos sem rótulo, não há arte senão como decomposição da própria arte e dos valores nela imbuídos. Não mais prêmio pela persistência. Prazer e estética não mais como identidade. Kaprow arremessa Não-arte para que possamos emergir dos escombros somente com aquilo que é estritamente necessário para a vida. Diante do grande aparato de dinamismos e fluxos que o devem atravessar me parece que o artista, quer seja arquiteta, bailarino, advogada ou dono de casa, ou artista mesmo com ou sem uma equipe de cientistas e produtores, deve estar consolidado em sua prática como uma rocha que dança maleável no gerir do tempo e por outro lado estar poroso para assim engendrar transbordamento. A manifestação artística na contemporaneidade passaria então de objeto visível a poéticas ambientais e polissensoriais, ordenadas pelos papéis atribuídos ao criador, ao tempo e ao participante, geridos pela interação criativa entre todos. De autor o criador passa a coordenador da autoria, de obra a ação e de objeto artístico a experiência sensorial compartilhada. (GUSMÃO) De qualquer forma, o alimentar da retórica, o esfacelamento do silêncio, a culpa de copiar Eagleton de Rita Gusmão sem a louvação indevida e todo servilismo acadêmico e anti-acadêmico, faz com que eu me cale da forma mais singela possível, antes tarde do que nunca, para que possamos vislumbrar de uma vez por todas a aceitação e o compromisso que se assume ao romper o silêncio. E com essa noção, decidir ou ser decidido sobre o que fazer e o que não fazer para fruir arte contemporânea iningênua, sabendo que há uma infinita paleta de cores entre o Zero e o 01. ---

Volij Rhea El Lugar Del Pensamiento Año Desconocido Link: http://www.butohrheavolij.com.ar/escritos.htm Magritte Ceci n’est pas une pipe 1928-9 Link de Barbada:

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http%3A%2F%2F3.bp.blogspot.com%2F-n6k9mrr3QVA%2FUeML 0AN8AWI%2FAAAAAAAACm8%2FCgM-vp38Y6c%2Fs1600%2FP5020141.JPG&imgrefurl=http%3A%2F% Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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2Fjosealvescerqueiracesar.blogspot.com%2F2013%2F07%2Frene-magrite-no-cerqueira-aula-pratica.html& h=960&w=1280&tbnid=fbHObgS55IRS4M%3A&zoom=1&docid=DV4gAGpoidvP7M&ei=jKKTU4WgLoWaqA brmoDoAg&tbm=isch&ved=0CAkQMygBMAE4ZA&iact=rc&uact=3&dur=3057&page=6&start=89&ndsp=20

Oswald Andrade Revista de Antropofagia Ano 01 Número 01 1928 Foucault História da Loucura Perspectiva 1978, Vigiar e Punir Nascimento da Prisão Vozes 2000, Isso Não é um Cachimbo Paz e Terra 2002 e História da Sexualidade I – A Vontade de Saber Relógio D’água 1994 Salih Judith Butler e a Teoria Queer Autêntica 2012 Banksy x Robbo Link: http://deli.art.br/2013/10/31/graffiti-wars-banksy-vs-robbo/ Srur Manual de Intervenção Urbana Bei Comunicação 2012 Link de Barbada: http://vimeo.com/62072574 Zumthor Performance, Recepção, Leitura Cosac Naify 2007 Link de barbada: http://www.faroldoconhecimento.com.br/livros/Educa%C3%A7%C3%A3o/Paul_ Zumthor_-_Performance,_recep%C3%A7%C3%A3o,_leitura.pdf Gusmão Rita A Interação como Campo de Significância na Arte Contemporânea Revista do programa de Pós-Graduação em Arte da UnB 2010 Eagleton A Idéia de Cultura UNESP 2005 Abreu Caio Fernando Carta ao Zézim 1979 Link: http://www.releituras.com/caioabreu_menu.asp Carsalade Flavio Lemos A pedra e o tempo – Arquitetura e patrimônio cultural Editora UFMG 2014 – Peguei um livro qualquer, sendo lançado no mesmo dia em que escrevi esse texto, só pra vincular o contemporâneo com o dia de hoje, principalmente por diversão; aconteceu o lançamento de um livro com abordagem fenomenológica, tensionando assim o ponto de contato entre esta abordagem e a diferença, que mais me faz sentido. Bueno, entre zero e 01 tem um monte de coisas e a questão da manutenção da obra de arte versus a pátina gera ainda mais desdobramentos, quem sabe no texto entre o 01 e o dois?.

Me desculpe ABNT

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Desenho e Foto: Anderson Luiz de Souza


imagem


Desenho e Foto: Anderson Luiz de Souza


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espaço livre 04

Transgressão 00207566

*Lu Trevisan

Transgressão 00207566 ao

abafamento

da vida

Transgredir V.t.d. ultrapassar o limite de algo; atravessar: transgredir a divisa de um estado. Desrespeitar uma ordem, uma lei, um procedimento etc.; infringir: transgredir uma norma social. (etm. Do latim: transgedere)

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entrevista

Uma conversa com Emilio Gonzalez sobre modificações corporais extremas* By T. Angel

Falamos por aqui alguns dias atrás sobre o garoto que removeu o nariz. Muitas perguntas surgiram… Fomos ao encontro do body modifier venezuelano Emilio Gonzalez, que realizou o procedimento. Ao mesmo tempo ele vinha até nós, querendo falar sobre. O restante você confere abaixo. Fica nosso sincero agradecimento ao Emilio Gonzalez por toda atenção e carinho em compartilhar conosco um pouco de seu trabalho e história. T. Angel: Recentemente você divulgou nas redes sociais os trabalhos de modificação corporal com o Red Skull e, especificamente, a remoção de parte do nariz chocou a opinião pública e, pelo que tenho visto, a própria comunidade da modificação corporal se mostrou chocada. Qual a sua impressão sobre isso? Emilio Gonzalez: A minha impressão é que as pessoas têm algo a dizer, meu trabalho tem sido indicado através da história pelo extremo que é. A palavra modificador corporal te diz tudo, MODIFICAR CORPOS. Hoje em dia qualquer jovem que faz modificação

*Entrevista originalmente publicada em: http://www.frrrkguys.com.br/uma-conversa-com-emilio-gonzalez-sobre-modificacoes-corporais-extremas/. Em 21/12/2014.

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corporal se crê modificador corporal, fazem um implante 3D ou bifurcam uma língua… Aaaah, eles já são modificadores. risos Então veem um trabalho meu de remoção de nariz e parece catastrófico para eles. risos Como se faz chamar MODIFICADOR CORPORAL quando te apavora uma modificação extrema? A verdade é que por isso tenho deixado de colocar meus trabalhos nas redes, inclusive BME. Eu acho que sou um dos poucos modificadores, para não dizer o único, que realmente tem trabalhado a maior parte do corpo humano, desde um simples implante até uma amputação de pernas.

T. Angel: Falando ainda sobre a remoção do nariz, quais os estudos que foram feitos para que não houvessem danos para saúde em um curto e longo prazo? Pergunto, pois algumas pessoas nos escreveram questionando isto, embasadas no discurso médico que diz que a região removida serve como uma espécie de filtro protetor contra várias doenças, a exemplo da sinusite. Emilio Gonzalez: Primeiro tenho que me garantir que seja uma pessoa 100 por cento saudável, sem nenhuma enfermidade respiratória. Solicito tomografia do nariz e seios paranasais para me assegurar que estava ótimo para a cirurgia. Além disso, amostra de cultivo de muco nasal foi feita para se certificar de que não tinha infecção.

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T. Angel: Muitas questões de ordem da sanidade física surgiram, mas, talvez em maior quantidade, inúmeros questionamentos (e julgamentos) apareceram sobre a saúde mental do Red Skull. Como você tem lidado com isso? Emilio Gonzalez: Henry aliás Red Skull é uma pessoa física e intelectualmente saudável. É um excelente filho, esposo e pai, o qual tem gostos extremos para a modificação corporal, como você e como eu. Ele é um tatuador profissional, vive muito bem com seu trabalho e o seu sonho é se converter em Red Skull. A maioria dos meus

clientes sabem que a modificação corporal é o último passo da body art, todos sabem muito bem o que querem e como Henry, muitos deles esperam por mim por muitos anos para fazer seus sonhos, realidades. É cômico como as pessoas sofrem pela vida dos demais, enquanto nas redes sociais essa gente se mata pelos comentários, Henry Red Skull está relaxado em sua casa, desfrutando de sua bela família. É curioso que nós e, a maioria das pessoas que estão mais modificadas no mundo, temos um grau muito alto de lucidez e somos seres

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humanos melhores que qualquer outro que nos critica. T. Angel: Alguns discursos tentam aproximar o transtorno dismórfico corporal das modificações corporais mais radicais. Como você vê isso? Emilio Gonzalez: No meu caso, eu estou muito modificado, tenho 22 anos modificado e desde que comecei sabia bem o que queria e hoje em dia dou graças à Deus e a Virgem, já que creio em Deus, que hoje por hoje estou

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mais certo do que quero e estou em toda minha capacidade mental, que eu tenha gostos diferentes dos demais não significa que tenha problemas psicológicos. Eu sou um empresário da modificação corporal e o melhor de tudo é que vivo bem com isso. As pessoas creem que porque você se modifica o rosto, te corte o nariz já está louco, mas as atrocidades que vemos no mundo no dia a dia, como matanças no Oriente Médio, na América do Sul presidentes sem escrúpulos que não estão tatuados nem modificados, andam de terno e gravata e

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T. Angel: Normalmente modificações corporais mais extremas permanecem em sigilo, por dentre tantos motivos, o receio da perseguição do discurso que tenta tornar doença mental tudo aquilo que foge de uma possível norma e ordem. Você, escapando dessa regra do silêncio, assumiu que fez e tornou público o caso. Em algum momento você teve receio de perseguições da ordem legal? Conte para gente um pouco sobre como tem sido sua vida depois disso tudo? Emilio Gonzalez: Como te dizia antes, em meu país não temos nenhuma regulação e é o que me permite fazer esses trabalhos. Sim, há clientes que me permitem publicar suas imagens, mas a grande maioria não me deixa. Neste caso, Henry Red Skull quer que seu trabalho seja publicado, uma vez que ele quer ser o mais extremo modificado do mundo. T. Angel: Você já sofreu algum de ameaça por conta do trabalho que vem realizando? Emilio Gonzalez: A única ameaça recebi no Brasil, foi de um body piercer popular. Mas em meus 18 anos de carreira de body mod nunca fui ameaçado, em meu país não é legal, mas tão pouco é ilegal.

T. Angel: Você já se recusou a fazer algum procedimento. Se sim, o que poderia nos contar? Emilio Gonzalez: Ao longo de minha carreira e tendo feito milhares de procedimentos, só disse que não para um cliente que era de Ohio, Estados Unidos. Ele queria remover seu pênis, eu nunca pergunto o por que as pessoas querem as coisas, pois não sou ninguém para julgar e a maioria das pessoas que se realizam com este tipo de procedimento não vão para um médico, já que eles diriam que não e os chamariam de loucas. Assim que esse cliente de Ohio me disse que queria remover porque ele se masturbava muito e eu o disse que não precisava saber. Depois de 3 meses falando com ele por chat, um dia me disse que que necessitava que eu fizesse o trabalho o quanto antes possível, por que ele tinha medo que se masturbava muito e tinha uma filha de quatro anos. Tive muita raiva, coragem e dei seus dados para a polícia para que o prendessem.

T. Angel: A remoção do nariz foi, em sua opinião, a modificação corporal mais extrema da sua carreira? Emilio Gonzalez:Nãooooooo! risos Tenho trabalhos mais extremos, os quais meus clientes não me dão permissão de publicar em nenhum lugar. T . Angel: Quais seriam as novas e próximas etapas do projeto do Red Skull? Emilio Gonzalez: As seguintes serão implantes de silicone nas maçãs do rosto, queixos e bochechas. Logo irá se tatuar como o personagem.

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abusam do povo, isso não criticam.

T . Angel: Você poderia deixar uma mensagem para as pessoas que nos leem e para a comunidade da modificação do corpo? Emilio Gonzalez: Primeiro, modificador corporal é aquele que já fez intervenção no corpo humano em várias facetas. Não creiam que modificador corporal é aquele que somente fez eyeball tattoo ou implante 3D. Segundo, vivam e deixem viver. Vivemos em uma sociedade que marginaliza a todos nós que desejamos nos ver diferentes e somos uma comunidade e sim, nós mesmos nos criticamos e nos maltratamos entre nós. Nunca seremos uma cultura mais avançada do que os que nos criticam dia a dia nas ruas. Terceiro e último, mude sua mente e eu mudarei seu corpo. Muito amor ao Brasil.

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artigos

Foto Lu Trevisan


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artigo 01

ESTADO DE ESPERA

INTERAÇÕES INTIMISTAS NA RODOVIÁRIA DE PORTO ALEGRE Marina Jerusalinsky* Texto recebido em: 30 de setembro de 2013.

Resumo: Esse texto é fruto de uma pesquisa em Poéticas Visuais, ainda em andamento, desenvolvida a partir de uma série de ações realizadas na rodoviária de Porto Alegre. Estas propunham minha interação com diferentes pessoas, compartilhando de seu tempo de espera e criando uma medida desse tempo através do bordado. Essas experiências trouxeram uma reflexão sobre os tipos de relação que atualmente poderiam existir em um espaço público da cidade como a rodoviária, levando em conta suas particularidades enquanto espaço de passagem, bem como sobre os significados simbólicos do fazer manual nos dias de hoje, sua relação com o tempo da espera e com a transmissão da experiência através da narrativa. Palavras-chave: arte contemporânea; ação no espaço público; tempo de espera; narrativa. Abstract: This text is the result of a research in Visual Poetics, which is still in process, developed from a series of actions performed at the bus station in Porto Alegre. This actions proposed my interaction with different people, sharing their waiting time and creating a mesure of this time through an embroidery line. This experiences brought a reflexion about what kinds of relationships would be possible to have in a public place such as the bus station, taking into account its particular caracteristics such as a passage place, as well as the symbolic significance of handmade deeds in today’s life, its relation with the waiting time and the transmission of experiences though narratives. Key-words: contemporary art; action in public space; waiting time; narrative.

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PONTO DE ENCONTRO Encontrar-se é estar em meio a uma situação, mas é também encontrar a si mesmo; todo trabalho artístico provoca muito dos dois. Nesse ponto, encontrei-me desejando trabalhar no espaço público; e não apenas no espaço, mas com as pessoas desse espaço. Esse foi meu ponto de partida para conceber um Trabalho de Conclusão de Curso em Artes Visuais1. Criei um projeto intitulado Estado de espera: interações intimistas na rodoviária de Porto Alegre. Elenquei um roteiro de ação, para ser repetido algumas vezes: frequentaria a rodoviária, no intuito de me aproximar de uma pessoa; fazendo as perguntas “estás esperando alguém?” e “posso esperar contigo?”, aguardaria que as respostas fossem positivas, para então iniciar um bordado – uma linha contínua feita em ponto cheio, ao longo de um pedaço de tecido (fig. 1). O bordado seguiria até que o participante do trabalho fosse embora, momento em que o tecido seria oferecido a ele. Durante a ação, um amigo faria um registro fotográfico, à distância. O tempo verbal empregado nessa descrição deve-se a uma compreensão: de que o saber da arte – e o da experiência, de forma geral – nunca está dito a priori, mas sempre a posteriori, ou seja, depois e a partir de sua própria experiência. Em outras palavras, toda espera é incerta. O artista Marcel Duchamp, em 1957, falava da experiência de criação, afirmando que no ato criador sempre há algo do que se intenciona criar que acaba por não ser expressado, e algo que não 1 Sou graduanda do curso de Artes Visuais no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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Figura 1. Bordado da ação Estado de espera, 2013. Musselina e bordado, 50 x 15 cm. Foto: Filipe Conde

se intenciona criar que acaba se expressando na obra de arte2. Mas, enfim, é preciso começar com uma intenção. Para conceber o projeto Estado de espera, busquei em trabalhos anteriores elementos que pudesse seguir desenvolvendo, transpostos para o espaço público. Resgatei uma linha de minha trajetória: a linha de costura. Diversos dos meus trabalhos envolveram materiais e procedimentos ligados a ela; o texto passou a fazer parte dessa tessitura em determinado momento e, a partir dele, a temática da intimidade, que trouxe consigo a oposição entre o oculto (ou interno) e o exposto e a dimensão do outro para a constituição do trabalho, nos elementos do diálogo, da troca, da participação do público. Um dos trabalhos é intitulado De mim toda mentira aceito (2011-2013): uma série de textos impressos em papel e parcialmente cobertos por bordado (fig.2), que foram 2 DUCHAMP, Marcel. O ato criador. Em: BATTCOCK, Gregory. A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1975.

selecionados de e-mails trocados entre eu e uma pessoa com quem estava me relacionando à distância. Deixei à mostra apenas os indicadores da passagem do tempo e as frases referentes a intenções futuras, ocasionando, assim, uma exposição da intimidade dessa relação. Já aparecem aqui, também, outros dois elementos com os quais segui operando no Trabalho de Conclusão de Curso: a passagem do tempo e a espera. O tempo do bordado está relacionado à passagem do tempo da própria relação, vivida como a espera pelo outro; e a linha branca que, ao mesmo tempo, cobre e envolve, guarda as palavras no tempo da memória, como se pudessem ser resgatadas por um corte repentino. Todo o processo de trabalho, desde a releitura dos e-mails até o encobrimento das palavras, foi uma espécie de elaboração do término da relação e da espera vividas por mim anteriormente. Em Estado de espera, contudo, é a espera de outro, com quem a princípio não tenho nenhuma relação, que busco vivenciar. Justamente, a intenção de mudança da obra para um espaço público foi motivada, por um

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lado, por um desejo de viver experiências alheias de ordem similar, criando outra espécie de encontro: aquele que abre a possibilidade de uma troca – e que não deixa de ser ainda um “encontrar a mim mesma”, pois aqui eu também busco o que há de mim no outro, e do outro em mim. Por outro lado, essa mudança de lugar foi motivada pela vontade de interferir na vida real e cotidiana, de criar a partir dela e dentro dela uma situação inusitada, um pequeno corte capaz de possibilitar novas significações; e de fazê-lo sem que o conhecimento, pelo público, sobre seu estatuto de arte tivesse qualquer importância. O LUGAR DA ESPERA Questão de método Diversos lugares na cidade configuram situações de espera. Na busca por um lugar que proporcionasse a minha própria maneira de concebê-la, em uma dimensão afetiva, busquei um local onde as pessoas iriam não apenas para esperar, mas para esperar por alguém. O aeroporto e a rodoviária, portanto, pareciam-me os espaços mais propícios para encontrar essa situação. Alguém há de me perguntar, agora, se escolhi a rodoviária porque fazia parte de meus percursos cotidianos, ou porque foi significativa para minha vida em algum momento. Não. Não tenho nenhuma relação afetiva com esse lugar, nem mesmo pragmática: raramente viajo de ônibus. A rodoviária, além de ser para mim pouco familiar, sempre foi considerada em Porto Alegre um local perigoso, onde as pessoas estariam, em tese, sob a ameaça constante de serem roubadas ou enganadas. Localizada no centro e, portanto, sendo de fácil acesso, ao contrário do aeroporto, na rodoviária não há controle do “tipo” de pessoa que pode ou não frequentá-la – o que deveria ser algo positivo, mas parece ser motivo de medo. Além disso, o acesso fácil também existe no sentido financeiro, pois as pessoas, obviamente, ainda têm menos condições de pagar por uma passagem de avião do que de ônibus. A rodoviária é e aparenta ser, portanto, um lugar mais diversificado, menos asséptico e controlado do que o aeroporto, características que para mim a tornam mais interessante. O trabalho Estado de espera consistiu, desde o início, em uma proposta de risco: trabalhar fora dos espaços convencionais da arte e expor meu próprio corpo a essa situação. Diversos artistas já o fizeram, desde

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o movimento Dadaísta, no início do século XX, com realizações como procissões de artistas, experimentações da expressão corporal, etc., passando por outros importantes movimentos, como o Situacionismo (criado na Itália em 1957), e artistas como Esther Ferrer (1937, Espanha), Valie Export (1940, Áustria), ou Flávio de Carvalho (1889-1973, Brasil), entre muitos outros. Para mim, contudo, realizar uma ação como essa significava arriscar fazer algo que nunca havia feito, e o lugar escolhido para fazêlo tomava parte no risco. Em uma quinta-feira de abril, fui à rodoviária e falei com uma moça, que estava sentada há um bom tempo perto da grade da plataforma de desembarque. Ela disse que estava esperando pela prima, mas isso foi tudo o que pude saber. Dois minutos depois de ter respondido que eu podia esperar com ela, levantou-se e ficou de costas para mim. Ainda tentei puxar alguma conversa, mas sem muito sucesso. Quando o ônibus da prima chegou, apenas me disse “tchau” e saiu tão rápido que não tive chance de dizer nada. Fiquei com o tecido na mão. Outra ação foi com uma mulher um pouco mais velha. Estava esperando uma amiga voltar do banheiro. Perguntei se podia esperar com ela; escutei que sim, mas senti que ela não me queria por perto: agarrou com firmeza a bolsa e parecia bastante incomodada. Senti-me tão desconfortável que comecei a explicar o que estava fazendo antes mesmo que ela perguntasse. De qualquer forma segui bordando. Ela disse que já havia me visto, fez algumas perguntas para sondar minhas intenções e recebeu as respostas com cara de desaprovação. Quando a amiga voltou, ofereci-lhe o tecido bordado, mas ela recusou secamente com um “não, obrigada”. Fui embora um pouco desconcertada. Se “esperar significa ter uma relação de amor com as coisas que estão por chegar”3, com esse trabalho também eu me vejo buscando afeto: a cada dia, espero encontrar alguém na rodoviária de quem possa partilhar o tempo; o risco é também o de não ser aceita. E essa possível rejeição não será incorporada por nenhum tipo de personagem: nas ações, estabeleço as conversas enquanto eu mesma; não forneço informações fictícias a meu respeito, nem a respeito do trabalho, ainda que omita sua “qualidade artística”. Como mencionei anteriormente, em todas as 3 Evgen Bavcar, citado em: TESSLER, Elida. Luz escura: imagem e imaginação: considerações sobre a fotografia de Evgen Bavcar. 2010, p.3. Disponível em: http://www.elidatessler.com/ pag_nova_tartistas.htm.

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Relações de não-lugar Nada facilitada, na rodoviária, a estadia das pessoas que a frequentam: os bancos são pouco confortáveis e têm divisórias fixas entre os assentos, impedindo qualquer um de ali deitar. A rodoviária parece ser, em geral, um espaço ao qual se vai apenas por necessidade e do qual espera-se ir embora o mais rápido possível. Ela configura, em certo sentido, o que o antropólogo Marc Augé define como não-lugar, um espaço não-identitário, não-relacional e ahistórico, caracterizado principalmente pelos locais de passagem, como rodoviárias, aeroportos, meios de transporte, etc. O passageiro dos não-lugares só reencontra sua identidade no controle da alfândega, no pedágio ou na caixa registradora. Esperando, obedece ao mesmo código que os outros, registra as mesmas mensagens, responde às mesmas solicitações. O espaço do não-lugar não cria nem identidade singular nem relação, mas sim solidão e similitude. (…) Ele também não concede espaço à história, eventualmente transformada em elemento do espetáculo, isto é, na maior parte das vezes, em textos alusivos. A atualidade e a urgência do momento presente reinam neles. (AUGÉ, 1994, p.95)

Na rodoviária, a espera seria justamente o momento do “estar” em meio aos fluxos de passagem; contudo, o fato de que as pessoas estejam esperando para ir embora muda completamente a relação (ou não-relação) que estabelecem com ela, como apontado pelo autor: esta é uma espera que não implica um estar na cidade, ao contrário da espera para

permanecer, que pode acontecer em lugares dos quais se intenciona desfrutar. Para Augé, contudo, está claro que o não-lugar “nunca existe sob uma forma pura; lugares se recompõem nele; relações se reconstituem nele...” (AUGÉ, 1994, p.74), e são essas possíveis relações que busco inventar com as ações de Estado de espera. Ainda que alguns tenham se sentido desconfortáveis com minha abordagem, para outros pareceu muito natural aquele pedido – posso esperar contigo? Havia uma senhora, esperando pela filha. Ela também me perguntou se eu estava esperando por alguém; disse que sim: estava na rodoviária para esperar junto com ela. Ela rapidamente conferiu um significado àquilo: “é um trabalho comunitário?”, perguntou. “É um trabalho pessoal”, respondi. E em seguida passou a me contar sobre sua vida e a de sua filha: “É difícil encontrar um rapaz bom, tem muito safado por aí… e esses é que sabem apaixonar as meninas. Na minha época não era assim. Com a minha filha acoteceu isso, ela estava para casar, mas ele não era bom. Era psicopata.” “Psicopata?!”, perguntei. “Sim, era psicopata”, ela repetiu. Explicou: “Ela não podia falar em terminar, ele dizia que ia matar ela, que ia matar os pais… Mas de resto era bom em tudo, fazia o que ela queria; só não podia falar em terminar...” Quando a filha chegou, me perguntou, eufórica, se eu a havia visto. Parecia querer sair correndo, mas voltou para apanhar o tecido que eu lhe oferecia e se despediu agradecendo, num tom que só mães e avós conseguem expressar quando querem ser simpáticas com alguém mais jovem.

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ações foi importante que os participantes não soubessem que eu estava fazendo um trabalho artístico. Não que negue esta característica, mas dizê-lo parece-me uma “saída fácil”, como se a definição de arte fosse uma carapaça de defesa na situação de exposição em que me encontrava, apresentando para os participantes uma resposta possivelmente mais aceitável a respeito de meu comportamento, o que iria de encontro à intenção de provocar algo estranho em uma situação totalmente habitual. Assim sendo, se perguntada sobre o que estava fazendo na rodoviária, omitia essa informação, mas respondia, ainda assim, o que havia me proposto: “estou aqui para esperar junto com alguém”, “bordo essa linha como uma forma de medir o tempo”, etc.

TEMPOS DE ESPERA Podemos esperar no sentido de ter esperança, de confiar, de supor... Em todos os casos, aguardamos alguma coisa; na espera há um tempo até que algo aconteça (mesmo que seja a verificação de que nada vai acontecer): uma duração. O tempo de supor ou ter esperança pode durar toda uma vida; porém, quando a espera está vinculada a um lugar, seu tempo está também circunscrito a este vínculo, pois ir embora significa não mais esperar (e talvez nem mesmo ter esperanças). Vivenciando uma espera física, as pessoas não necessariamente a experienciam subjetivamente, de forma imersa; elas podem ocupar seu tempo (e frequentemente o fazem) com inúmeras atividades, como assistir televisão,

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Figura 2. De mim toda mentira aceito, 2011-2013. Costura e impressão jato de tinta sobre papel. 15 peças de 21 x 29,7cm cada. Foto: Carin Mandelli

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O tempo da experiência é um tempo vivido e percebido subjetivamente, sem relação nenhuma com as marcações abstratas do relógio. Nesse sentido, o tempo envolvido nas ações do trabalho Estado de espera se assemelha de duas maneiras ao Kairos, palavra do grego antigo que significa “o momento oportuno”, entendido como um tempo existencial ou da experiência, que difere de Chronos, o tempo cronológico. Primeiro, há uma espera pelo próprio acontecer do trabalho: não sei exatamente o que ou a quem procuro quando me proponho a realizar as ações. Estas são, elas mesmas, procura do “tempo oportuno”: espreito, encontro, capturo – uma fala, um gesto. Segundo, a ação busca também propor àquele que dela participa esse tempo Kairos, da experiência, criando uma medida através do bordado que igualmente não poderia ser concebida como uma medida de tempo em minutos e horas do relógio. Na rodoviária, uma mulher sentada em

um dos bancos me olhava com ansiedade, sorrindo. Sentei ao seu lado e ela me pediu ajuda: precisava terminar o tema de casa de geografia. Tinha certa idade, provavelmente estava retomando os estudos. Depois de ajudála um pouco, perguntei se estava esperando por alguém. Disse que sim, esperava uma mulher para quem trabalhava, mas em seguida voltou a falar sobre o exercício; não parecia estar muito preocupada com a mulher... Insisti e perguntei há quanto tempo estava esperando, mas ela não sabia ao certo: “Devo estar aqui há horas”, disse. Fiquei um pouco surpresa com a calma da resposta, e indaguei se o ônibus havia atrasado. Com muita naturalidade outra vez ela respondeu: “Não sei… Acho que ela já foi, passou por mim e eu não vi...”; “acho que vou embora.” Ela não estava preocupada com o tempo. Sua espera, na verdade, dependia, mais do que de dois ponteiros de relógio, da disponibilidade de algum desconhecido. Sorte a nossa.

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mexer no celular, ler um livro, ou mesmo dormir. Parti do princípio de que tudo o que se pode ocupar é, de alguma forma, um vazio. E justamente o que busquei com a realização de Estado de espera foi esse tempo vazio de acontecimentos, um tempo em suspensão – de interrupção e incerteza –, dedicado apenas ao próprio esperar; para, talvez, então preenchêlo com a experiência da ação proposta. Há maneiras, contudo, bem distintas de preencher o tempo. A psicanalista Maria Rita Kehl aponta que, sob o capitalismo liberal, o indivíduo disporia, em tese, de inúmeras escolhas em relação a seu tempo livre; contudo, ele vive na verdade sob o imperativo de “aproveitar bem o tempo”, mesmo nas horas ditas de lazer, que são “marcadas pela compulsão incansável de produzir resultados, comprovações, efeitos de diversão” (KEHL, 2009, p.125), tornando sua experiência tão cansativa e vazia quanto a do tempo da produção. Isso corresponde, de acordo com a autora, ao que o filósofo Walter Benjamin designa por vivência (Erlebnis): aquilo que, “do vivido, produz sensações e reações imediatas mas não modifica necessariamente o psiquismo”, ao contrário do que denomina experiência (Erfahrung), que “tem o sentido daquilo que, ao ser vivido, produz um saber passível de transmissão” (KEHL, 2009, p.160161). Acredito que todo trabalho de artes propõe uma retomada da experiência, alguns fazendo-o apenas dentro de museus e galerias, outros em diferentes espaços da cidade. Eu considero, hoje em dia, que mais vale propor uma experiência da cidade e das relações que nela se estabelecem.

O MANUAL DA COSTURA Os elementos relacionados à costura presentes em meus trabalhos foram, por assim dizer, “herdados” de minha família materna. O manual do tricô, da costura, ou do bordado sempre esteve presente em minha infância, como uma linha que tecia relações entre minha avó, minha mãe e eu. Essa experiência que passa de geração em geração pode ser diferenciada da tradição, cuja principal função, em oposição àquela, é indicar o lugar que cada um deve ocupar na ordem social. A psicanalista Maria Rita Kehl aborda esses elementos, tratando do conceito de experiência em Walter Benjamin: A tradição participa dos mecanismos de estabilização e perpetuação do poder; a experiência, por sua vez, não tem relação com a autoridade e sim com o sentido que uma coletividade é capaz de extrair a partir do que os seus antepassados viveram, ou das narrativas que seus contemporâneos trouxeram de regiões e de países distantes. (KEHL, 2009, p.155)

A costura é algo que foi socialmente estabelecido como pertencente à vida feminina, já que esta correspondia obrigatoriamente ao âmbito da vida privada. Nesse sentido, a costura apresenta-se, para uma mulher, como parte da tradição de uma sociedade

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patriarcal. De qualquer forma, em minha vida particular a costura coloca-se também como uma experiência transmitida por minhas antepassadas, da qual busco extrair algum sentido. Por isso chamo-a de “manual”, no sentido de sua manualidade, mas também de uma instrução transmitida, que consiste ao mesmo tempo em um ensinamento e em uma série de regras a serem seguidas. E reconheço em mim igualmente uma transformação dessas “regras”, pois com meus trabalhos provoco a transposição do fazer da costura do âmbito privado para o campo da arte, com o qual passo a significá-lo também em uma esfera pública. A princípio, foi mais difícil realizar a ação com pessoas do sexo masculino; a maioria aconteceu com mulheres. De alguns homens não me aproximava por desgostar da forma como me olhavam antes mesmo de estabelecer um contato. Tive de pensar cuidadosamente em como me vestia, ainda que pretendesse não alterar propositalmente nada de minha maneira de agir para realizar o trabalho. A questão de gênero que surgiu aqui não teve nenhuma relação com o bordado: este foi aceito e não aceito igualmente por homens e mulheres, e não determinou de forma alguma uma aproximação maior com pessoas de um ou outro sexo. Enfim, consegui me sentir à vontade o suficiente para falar com um homem, de mais ou menos cinquenta anos. Era outra quinta-feira. Perguntei se podia esperar com ele – havia um assento desocupado a seu lado. Pela resposta, que foi gentil, pareceu-me que ele havia entendido a pergunta mais no sentido de se o assento estava livre, do que se eu poderia esperar com ele. Então pedilhe que escolhesse a cor do meu bordado. Ele escolheu a cor vermelha, e a linha estabeleceu o vínculo. Contou-me tanto de sua vida que não lembro de tudo. De mim, porém, perguntou apenas o nome. Sobre o bordado, perguntoume se ele fazia passar mais rápido o tempo; eu disse que sim. Quando chegou o ônibus que estava esperando, levantou-se e apertou minha mão, para se despedir. Eu lhe ofereci o tecido. “Uma lembrancinha?”, perguntou, e o guardou enquanto ia em direção ao terminal. O FIO DA NARRATIVA A criação de uma linha em bordado, como ocorre em Estado de espera, possui características que permitem que se estabeleça efetivamente a relação entre o ato de bordar, a percepção do tempo e a sua medida, pois o bordado demanda que a linha seja construída

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tridimensionalmente, o que requer um tempo muito particular. Essa construção só acontece através de uma série de gestos repetitivos, que podem ser percebidos como uma espécie de compasso (furar, puxar, furar, puxar...), mas cujo ritmo pode ser alterado na conjunção entre o meu ânimo e o do participante da ação, um interferindo no outro simultaneamente, de forma que o comprimento da linha simboliza, justamente, o tempo que passamos juntos: uma espera compartilhada. O fazer artesanal está historicamente relacionado, de acordo com o filósofo Walter Benjamin, à transmissão da experiência através da narrativa. Benjamin aponta que nas oficinas dos artífices, constituídas no modelo corporativo medieval, “[...] associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário.” (BENJAMIN, 1994, p.198). É na entrega ao trabalho manual que se imprime a experiência do vivido: Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo. (BENJAMIN, 1994, p.205)

Além das histórias compartilhadas com os participantes de Estado de espera, enquanto bordava, outro tipo de narrativa se fez presente no trabalho: a narrativa escrita, que transmite a experiência de cada ação realizada. As fotografias feitas como registro acabaram por ser apenas documentais, apresentando imagens que se referem àquilo que de alguma forma já estava exposto à vista de todos ao redor. As narrativas, pelo contrário, apresentam os relatos daquilo que foi experienciado apenas pelos participantes do trabalho e por mim; ou seja, a intimidade (seja qual for seu grau) momentaneamente compartilhada entre nós. Desse modo, os escritos funcionam como um registro “interno” das ações – levando em conta, também, que a própria prática da escrita compreende um momento íntimo. Sendo escritas em um momento posterior, as narrativas residem na dimensão da memória, e, em certo sentido, da ficção. Como afirma Benjamin, A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão (…), é ela própria, num certo sentido, uma

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NARRATIVA N.2 Estou com um nó na garganta. Desejei-lhe boa sorte. Depois de muito tempo – muito mais do que indicou o relógio – ela decidiu: “Não coloca mais linha. Ele não vem.” Ele disse que chegaria às 17h30. Diz que ela não tem horário, mas sempre chega atrasado. Ela veio de Viamão, combinou de encontrá-lo na rodoviária para comprar passagens para a viagem do final de semana. Antes de vir depilou as sombrancelhas e ficou preocupada se estaria meio inchada. Eu a tranquilizei. Perguntou-me se tenho namorado. Disse que não, mas contei uma pequena história, de uma pessoa por quem também fiquei esperando. Ela me contou a história de uma amiga, que tinha o mesmo desfecho: “parece que quando os dois se encontram, nunca dá certo.” Ela namora há mais de dois anos. “Aprendi a ser mais comunicativa com o trabalho; antes, nem teria conversado contigo”, me avisa. De fato, ela logo aceitou meu pedido – “Posso esperar contigo?”. Perguntou se eu também esperava por alguém, mas não pareceu surpresa quando informei que apenas queria bordar enquanto ela esperava. Ela estava de pé, olhando pela janela da sala, quando fui falar com ela. Ficamos o tempo todo ali. Minhas mãos tremiam quando comecei a bordar: não sabia como ela iria reagir. O tecido escorria entre meus dedos, desajeitado, e a linha ficava completamente irregular; depois comecei a dominar melhor meus movimentos. Perguntei de que cor era sua espera: “meio nublada”. Depois de alguns centímetros de bordado, ela recebeu uma mensagem: ele estava sem passagem de ônibus para ir até a rodoviária. Ela ligou: “Como assim está sem passagem? Não, sério? Não acredito (sempre rindo). Não, onde tu está? Tu está aqui, né? Mas tu está rindo, tu está aqui! Sério, onde tu está? Tá, então pega o ônibus que eu pago quando tu chegar. Claro

que dá… Mas eu quero falar contigo… Porque sim. Não, não dá para ser por telefone (ainda sorrindo). Não aconteceu nada, só quero falar contigo… Então me espera na avenida que eu vou até aí. Sério, me espera. O que custa me esperar lá? Então eu vou para a tua casa mais tarde. Tá. Mas tu vai estar lá, né? Não vai mandar outr… Como tu vai sair se tu está sem passagem?” Acabou minha linha. Peguei outra. “Espera aí”, ela disse ao telefone; e para mim: “Espera... não coloca mais linha. Ele não vem.” Entreguei-lhe o tecido. Ela me abraçou. Desejei-lhe boa sorte.

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forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1994, p.205)

OUTRO PONTO DE ENCONTRO Como Estado de espera é um trabalho todavia em processo, peço licença ao leitor para “escrever tateando”, como o artista Wally Salomão, “como se experimentasse saber das coisas que não se sabia ainda que se sabia.” (SALOMÃO, 2003, p.17). Encontro-me, agora, em um novo ponto: o da apresentação. Uma obra constituída pela ação é sempre efêmera, e para apresentá-la a um público mais amplo pode-se operar na dimensão do registro documental, ou criar algo novo a partir de seus vestígios. Em Estado de espera, as narrativas surgiram como vestígio, produzindo uma nova forma de transmitir o vivido, que sempre foi a essência de constituição do trabalho. Contudo, apresentando suas histórias em um espaço expositivo, eu deslocaria o sentido de minha produção para uma série de objetos, e seu público seriam as pessoas que costumam frequentar tal espaço de arte. A intenção de atuar na cidade, com um trabalho participativo, não foi meramente casual, mas sim política; e dessa decisão fez parte a de conceber uma pesquisa em poéticas visuais como uma experiência a ser vivida, e não como um objeto a ser produzido. Estado de espera foi uma poética da troca: de reações, histórias, confidências... e do tempo – o participante permitia que eu compartilhasse de seu tempo de espera e, em troca, eu lhe oferecia uma marca desse tempo. Não restariam indícios físicos. Contudo, algo não intencionado se expressou a partir do ato criador, como já avisava Duchamp: eu escrevi. E agora, encontrei-me desejando voltar para a rodoviária: para devolver-lhe as histórias que me concedeu. Estado de espera é um Trabalho de

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Conclusão de Curso, ou seja, ele está vinculado à academia. Nessa situação, os resultados de uma pesquisa devem, de algum modo, retornar para o meio acadêmico, e, geralmente, os trabalhos práticos que dela resultam também o fazem. Quando falo em intenção política, portanto, me refiro a modificar meu lugar nesse espaço predeterminado, para atuar, retomando a etimologia da palavra política, no lugar das “ocupações comuns”, a polis (originalmente a cidade-estado grega na Antiguidade), mantendo, ainda, a ideia de troca presente no trabalho. As narrativas irão, portanto, de alguma forma retornar para a rodoviária de Porto Alegre, diponíveis àqueles que desde o princípio escolhi como público. Talvez o próprio leitor, se frequentador do lugar, se depare, então, com uma história na sala de espera. Ou talvez, se eu tiver a sorte de que goste de meu trabalho, vá até lá especialmente para encontrá-la. Contudo, se for, deixo avisado: tampouco transformarei a sala de espera em sala de exposição. Referências bibliográficas: AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. 111 p. BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Em: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p.197-221. KEHL, Maria Rita. Segunda Parte – O tempo e o cão. Em: O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009, p.109190. SALOMÃO, Wally. Hélio Oiticica: Qual é o parangolé? e outros escritos. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. 141 p.

*Marina Jerusalinsky (Porto Alegre, 1990): Graduada em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013), foi pesquisadora em Iniciação Científica nos projetos Parte Escrita: a presença da palavra em produções de arte contemporânea pela via da literatura, com orientação de Elida Tessler (2011-2013), e Arte Pública Participativa: articulação entre poética e cidadania, com orientação de Cláudia Zanatta (2013). Realizou sua primeira exposição individual

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na Casa de Cultura Mário Quintana pelo edital 3º Prêmio IEAVI (2014) e participou de exposições coletivas em Porto Alegre, como 15/15 (Pinacoteca do Instituto de Artes da UFRGS, 2014), Delírio 3º: sensualidade (Entreato, 2014) e Palavra Habitada (Palavraria, 2013), além de realizar ao longo dos dois últimos anos diversas ações no espaço urbano, tema ao qual dedica-se atualmente. Contato: marijeu@gmail.com

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Figura 3. Rodoviária de Porto Alegre, 2013. Foto: Filipe Conde

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artigo 02

A COMPOSIÇÃO COREOGRÁFICA NOS PROCESSOS DE ENSINO E APRENDIZAGEM EM DANÇA Josiane Franken Corrêa* Carmen Anita Hoffmann** Recebido em: 09/01/2014

Resumo: O artigo discute a composição coreográfica nos processos de ensino e aprendizagem em dança, considerando o movimento artístico pós-moderno como um propulsor para as ações coletivas relacionadas ao tema da coreografia. A reflexão é pautada na revisão bibliográfica de autores como Gil (2004), Lobo e Navas (2007), Becker (2008) e outros. Considera a composição coreográfica como essencial para o aprendizado, pois transforma a educação e a arte em um campo híbrido de conhecimento, envolvendo o corpo preparado para a cena, a assimilação de conhecimentos, a organização e memorização de movimentos e principalmente, o esforço coletivo para a produção em dança. Palavras-chave: Arte. Ensino. Coreografia.

Abstract: This article discusses the choreographic composition in the processes of dance teaching and learning, considering the postmodern art movement as a propellant for collective actions related to the theme of the choreography. This reflection is guided by the literature review by authors such as Gil (2004), Lobo and Navas (2007), Becker (2008) and others. It considers the choreography as essential for learning, transforming education and art into a hybrid field of knowledge, involving the prepared body for the scene, the assimilation of knowledge, organization and memorization of movements and especially the collective effort for the production of dance. Key-words: Art. Teaching. Choreography.

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Introdução Os ideais de respeito à diversidade e democracia, imbricados às modificações práticas suscitadas pelos artistas pós-modernos, trazem aos processos de ensino e aprendizagem da dança a perspectiva de uma educação inclusiva. Desta forma, pode-se crer que independente do gênero abordado pelo docente na aula de dança, este tem a possibilidade de fomentar em aula um momento democrático de expressão e criação artística. Verifica-se que, nesse sentido, um dos fatores que mais determina o processo de construção de conhecimento coletivo em dança é a postura pedagógica do docente em relação aos educandos e aos saberes da Área. Esta reflexão relaciona-se mais com o “como” trabalhar a dança nos espaços de ensino e aprendizagem do que “o que” trabalhar: quais os conteúdos a serem desenvolvidos na sala de aula. Entretanto, ao selecionar a composição coreográfica como tema deste artigo, traçamos duas linhas convergentes entre Arte e Educação: um saber específico das artes da cena mediado pela competência pedagógica do professor de dança. A partir deste entendimento, propõese a discussão sobre o “como” trabalhar a composição coreográfica nos processos de ensino e aprendizagem em dança, considerando que os métodos coreográficos sofreram grandes reformulações a partir da década de 1950, influenciando até hoje a formação dos profissionais de dança. Esta discussão é pautada na revisão bibliográfica e no diálogo de autores como Gil (2004), Marques e Brazil (2012), Lobo

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e Navas (2007), Dantas (2004, 2009), Greiner (2008), Becker (2008) e Falkembach (2012).

A composição coreográfica nos processos de ensino e aprendizagem em dança Acredita-se que a composição coreográfica é elemento essencial ao ensino da dança e à construção de conhecimentos estéticos e técnicos relacionados às artes da cena. Sendo assim, a composição coreográfica carrega consigo concepções pedagógicas diferenciadas, estas que tem relação com ideologias e movimentos históricos nas artes. O termo coreografia, etimologicamente oriundo dos gregos e que significava, numa primeira conceituação, “descrever a dança”, envolve hoje múltiplos sentidos. No decorrer da história da dança, diferentes movimentos artísticos transformaram o fazer em dança em uma produção multifacetada, o que pode mobilizar na contemporaneidade, consequentemente, a valorização da diversidade humana neste meio profissional. Porém, ainda existem espaços de formação em dança que são pautadas na pedagogia diretiva, que tem no mestre a única figura capaz de criar, capaz de compor coreograficamente. Assim, muitas crianças e jovens são ensinados a copiar o gesto do professor – aquele que detém conhecimento. Nesse processo, excluem-se as possibilidades de jogos coreográficos, improvisações, composições coreográficas coletivas. É preciso lembrar que a imitação e a reprodução de passos pré-determinados é também momento importante de aprendizagem na dança. Mas, a exclusividade desse modo de ensinar restringe o aprendizado à passividade de aceitar e executar a ideia do outro. No momento em que é oferecida a possibilidade de diálogo ao educando, a aula torna-se ambiente para a análise crítica das ações individuais e coletivas, para o compartilhamento de ideias e para a expansão do potencial criativo de cada indivíduo envolvido no processo de composição coreográfica. Verifica-se que na maioria das aulas de dança, seja no ensino formal ou não formal, o professor é quem executa a função do coreógrafo. O coreógrafo é a pessoa responsável por criar uma linha de raciocínio que conduz a composição coreográfica. Esta, por sua vez, Desenho e Foto: Anderson Luiz de Souza Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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é configurada como um processo contínuo de mudanças que, até chegar à apresentação pública estará convivendo com diferentes obras possíveis e que sofre transformação mesmo depois de ter ido à cena. Por esse motivo, o professor pode aproveitar as características e criações pessoais dos seus alunos para, além de evidenciar a diversidade e a riqueza criativa que envolve a sala de aula, aproximar o trabalho de dança ao contexto do educando. Na cena contemporânea da dança, a composição coreográfica se assemelha a um esforço coletivo de criação, no qual uma ou mais pessoas ficam responsáveis por tecer arremates, compostos de ideias coreográficas e elementos cênicos, assim como enredo, pesquisa de movimentos, efeitos sonoros, saídas e entradas de bailarinos, cenário, figurino, iluminação, texto, entre outros aspectos que podem integrar a composição de uma cena coreografada. De modo geral, podemos afirmar que a coreografia na dança é a síntese e a organização de movimentos dançados em uma teia arrematada por uma linha criativa – individual ou coletiva. Longe de ser um conceito fechado, a composição coreográfica remete ao “linear” coreográfico, aquilo que na dança, teoricamente, seria passível de reprodução. Para o alcance deste linear coreográfico em espaços de ensino e aprendizagem, existem diferentes modos criativos e pedagógicos, como já comentado inicialmente. Para Lobo e Navas (2008), a coreografia interliga três eixos fundamentais: o imaginário criativo, o corpo cênico e o movimento estruturado. Grosso modo, as ideias e conteúdos fazem parte do imaginário criativo, o corpo que é preparado para a cena e que manifesta o imaginário criativo é o corpo cênico e a elaboração de movimentos para compor a coreografia é o movimento estruturado. Desse modo, supõe-se que, para o bom andamento de uma composição coreográfica, precisa-se muito mais do que “passar a coreografia” para os alunos. Seriam necessários, sob essa perspectiva: pesquisa sobre a estética abordada ou o tema a ser tratado, suas possíveis combinações e consequências estruturais no trabalho em andamento; trabalho com técnicas corporais adequadas à proposta criativa; preparação de uma atenção corporal para a cena e; pesquisa de movimentos que podem partir de jogos criativos ou estudos referentes a ideia coreográfica.

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A composição coreográfica coletiva Na história da Dança, a noção de compor trabalhos em colaboração (ou coletivamente) passa a ser enfatizada por volta da década de 1950, em uma época na qual os artistas procuravam uma maior liberdade para a realização de suas obras e também a democracia dos corpos, ou seja, todos os envolvidos no trabalho artístico deveriam ter seu valor acentuado. A composição coletiva ou colaborativa configura-se como uma negociação contínua, algo que mobiliza a turma e que necessita diálogo e respeito por parte de todos os envolvidos. Para o professor é desafiador, já que tens que dar voz aos participantes sem apagar a sua própria presença dentro da aula. Ás vezes, as propostas dos alunos não são apropriadas para o que o professor havia planejado ou nem sempre é possível acatar tudo o que a turma quer. É desejável que esse processo demande um planejamento de aula bem estruturado, experiência docente e a consciência da ideologia que atividades com o intuito coletivo implicam. Conforme Falkembach (2012, p. 118): Num processo colaborativo, há um diretor(a) ou coreógrafo(a) que exerce o papel do ‘olho de fora’ e que coordena e orienta as improvisações, as investigações e as marcações. Mas a criação dos movimentos e dos materiais corporais (individuais ou em grupo) é função de todo o grupo.

Neste modo de produção da dança, a composição coreográfica coletiva pode ser relacionada com o perfil docente de professores que tem na sua prática influências da pedagogia relacional. Acredita-se que a ação pedagógica não é gratuita, pois é legitimada por uma epistemologia. Becker (2008) alerta que todos os atos docentes, mesmo que o professor não tenha consciência disso, são oriundos de práticas de outros tempos e seria no mínimo interessante refletir a respeito para que a prática possa estar sempre atualizada e adequada ao contexto de ensino. Becker (2008) afirma que o professor que age sob a influência da pedagogia relacional afasta-se do ensino tradicional, pois não acredita que o conhecimento possa ser transmitido do mestre para o aprendiz. O professor relacional entende que as experiências vivenciadas pelo aluno organizam-se para gerar conhecimento. Ou seja, o aluno aproveita suas vivências para a compreensão e a transformação do

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conhecimento e do mundo. Nesse sentido, o professor planeja as suas ações pedagógicas de modo a promover condições para a interação entre o aluno, suas experiências e o conhecimento, na tentativa de uma relação crítica, instigando-o a refletir sobre o que faz. O autor coloca como exemplo: O professor e os alunos entram na sala de aula. O professor traz algum material – algo que, presume, tem significado para os alunos. Propõe que eles explorem este material – cuja natureza depende do destinatário: crianças de pré-escola, de primeiro grau, de segundo grau, universitários, etc. Esgotada a exploração do material, o professor dirige um determinado número de perguntas, explorando, sistematicamente, diferentes aspectos problemáticos a que o material dá lugar. Pode solicitar, em seguida, que os alunos representem – desenhando, pintando, escrevendo, fazendo cartunismo, teatralizando, etc. – o que elaboraram. A partir daí, discute-se a direção, a problemática, o material da(s) próxima(s) aula(s) (BECKER, 2008, p. 49-50).

Este trecho exemplificado por Becker (2008) sobre a pedagogia relacional remete à escola de ensino formal de modo geral. Porém, podemos fazer justa relação com os processos de ensino e criação em dança fora do ambiente escolar. Muitas vezes, a construção do texto coreográfico parte da investigação que é proposta pelo coreógrafo e que é explorada pelos bailarinos – intérpretes criadores. Com o desenvolvimento do trabalho, são colocadas questões que podem ter respostas coletivas ou individuais e que vai, na maioria das vezes em direção a uma concepção coreográfica comum a todos os envolvidos. Com este exemplo, observamos que os conhecimentos pedagógicos, metodológicos e artísticos não são somente preocupação para o professor de dança que atua na Educação Básica, mas é, ou deveria ser, preocupação para todo o profissional da dança que está envolvido com o ensino. Pois, se considerarmos [...] dança e educação como um campo híbrido de conhecimento, estaremos também diante de todos os profissionais da dança envolvidos no cenário social de produção dessa arte (artistas, críticos, produtores, dramaturgos, iluminadores, curadores, etc) atuando como educadores, não necessariamente como professores (MARQUES e BRAZIL, 2012, p. 1). Desenho e Foto: Anderson Luiz de Souza Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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Nesse caminho, o termo coletivo é usado para sintetizar a ideia de que a construção de conhecimento em dança acontece na coletividade. Esta coletividade está tanto em sala de aula, como nos corredores das escolas e academias ou na comunidade local. Quando uma criança sugere algum tema ou algum movimento, o professor tem o poder de decidir adotar ou não a sua sugestão, o que se processa de diferentes formas a cada nova situação. Ás vezes o estímulo não é o mais importante, mas sim o que se faz com ele e isso tem relação com a postura docente. Um processo coletivo de criação não significa usar a ideia dos outros participantes para impor a vontade do “mestre” na composição, mas sim, dar continuidade ao processo criativo com o restante da turma, vislumbrando algo maior, mais diverso e democrático.

A dança na escola de ensino formal e a necessidade da continuidade de trabalho A prática de dança que é aprimorada ao longo do tempo leva o aluno a acreditar no seu próprio potencial, aumentando a capacidade de troca com seus colegas e professor, o que faz com que reconheça o saber como sua propriedade, e faz com que ele possa brincar e jogar com os seus conhecimentos. No processo de aprendizagem em dança surgem possibilidades novas e inusitadas de criação, que somente acontecem na apropriação dos conhecimentos específicos e no diálogo com o contexto daquele aluno. A composição coreográfica coletiva em uma turma de nível iniciante pode acontecer com pequenas sugestões que são dadas pelos participantes, e que, com o passar do tempo, passam a colaborar com a criação de movimentos, com a pesquisa, até chegar ao ponto de criarem coreografias inteiras – solos para si próprios, coreografias para os colegas. Mas para esse processo ser significativo e envolver todos de modo mais justo possível, é necessário continuidade de trabalho. A continuidade de trabalho em dança em um ambiente possibilita, a nosso ver, o desenvolvimento dos três eixos fundamentais da composição coreográfica propostos por Lobo e Navas (2008), tratado anteriormente. A reflexão sobre o fator da continuidade no ensino da dança é algo especialmente ligado às propostas de dança nas escolas de Educação Básica. Pois, muitas vezes, não há professores

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licenciados para realizar um trabalho contínuo e consistente no ambiente escolar. Com frequência vemos o ensino da dança delegado a oficineiros, projetos de curta duração, professores de outras áreas que fazem uma “dancinha” para apresentar em eventos escolares. O trabalho com dança nesses formatos torna-se bastante distante daquilo que havíamos abordado até então – a composição coreográfica coletiva que tem relação com um perfil docente relacional e com uma proposta contínua em dança. Para alcançar a construção coletiva de conhecimento – envolvendo diferentes personagens no processo de ensino e aprendizagem; desenvolvendo conteúdos específicos da área, apropriando-se desses conteúdos com abordagens pedagógicas e artísticas contemporâneas – é preciso um esforço contínuo. Não basta uma oficina de uma semana de técnica de jazz, por exemplo, para que os alunos sintam-se capazes para criar a partir dessa experiência. É urgente a transformação dessas realidades, pois, um ensino de dança de qualidade passa por diferentes etapas, como qualquer aprendizado. Sob esse prisma, a composição coreográfica coletiva implica, além do tempo de experimentação e do aprendizado de elementos técnicos, afinidade e confiança entre os envolvidos. Assim como numa coreografia, na aula de dança, ajustes acontecem, espaços são preenchidos e movimentos são encarnados de sentido. Gil (2004) considera que o que dá nexo à coreografia, e podemos acrescentar, o que dá nexo também ao ensino da dança (com suas diferentes metodologias), não é uma coerência de movimentos segundo um código, mas sim, a construção de um plano que permite aos movimentos dançados atingirem esse ponto de fusão. O ponto de fusão seria os encontros, que acontecem no ato de dançar, seja entre dois bailarinos ou entre pontos em comum da música com a dança, por exemplo, e que tecem um pano de fundo ao corpo que dança. Esse pano de fundo faz o bailarino expandir o espaço do seu corpo, como se surgissem várias camadas de pele para além da que já existe. Trata-se de uma energia que circunda o corpo e direciona um fio condutor que liga todos os seus movimentos. Gil (2004) delineia um plano de imanência da dança, que passa a ser traçado no instante em que se formam pontos de intensificação da energia no ambiente ocupado pelos corpos dançantes. A imanência é, sob essa ótica, todo o fluxo de energia que permeia a arte da dança, é algo inefável. E é algo com

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uma continuidade própria. A intensificação da energia não tem fronteiras precisas, ou seja, os momentos em que a imanência da dança ocorre não podem ser calculados ou delimitados, e sempre haverá a tendência à indefinição. Assim, no ambiente escolar, essa indefinição tende a multiplicar-se, por se tratar de um contexto em que a prática da dança não tem o compromisso de ser profissão, e depende de uma rede de interferentes para que a criação aconteça. O bailarino profissional também é influenciado pela disponibilidade da rede de interferentes do seu contexto, porém, ele já tem, a priori, o compromisso com a criação, o que parece acionar a atenção para realizar as tarefas que lhes são cobradas. Mas a imanência da dança parece mesmo estar na sala de aula, com sua “continuidade de fundo1”, mesmo que os momentos de maior concentração possam “pipocar” na sala, em tempos de duração mais ou menos curtos e fortuitos. Na dança, “[...] séries diferentes ou divergentes de gestos efetuados pelo mesmo corpo num tempo único acabam por ‘se integrar’; [...] depois de um certo tempo, obtém-se sempre uma continuidade de séries heterogêneas” (GIL, 2004, p. 69-70). Por mais segmentado que seja o ensino de uma determinada escola, organizada por conteúdos e disciplinas bem definidos e delimitados, o corpo dançante no contexto escolar sempre tenderá a escapar de uma análise quantitativa. Nesse aspecto reside a dificuldade das avaliações em Arte na escola, pois “as costuras” entre os conteúdos específicos da dança não podem ser vistas e medidas, sujeitas a enquadramentos do tipo “certo” e “errado”. O conhecimento em dança dilui-se na singularidade de cada um, pois o corpo que dança se apropria do movimento poético de maneira única. Gil (2004) considera que o bailarino cria condições para dançar o seu corpo. E que ele não dança no espaço objetivo, mas sim, “[...] cria espaço com o seu movimento” (GIL, 2004, p. 47). Na sua concepção, para criar é necessário sair da postura cotidiana do corpo, e tal mudança de postura carece uma preparação corporal, pois é algo a ser aprendido e refinado. 1

Continuidade de fundo: é aquilo que faz uma série dançada “agarrar” a outra. As séries não convergem para o mesmo fim, pelo contrário, acentuam suas divergências. “Do contato nasce a conexão, o agenciamento” (GIL, 2004, p. 70). Ver mais em Gil (2004, p. 70-71).

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A prática capaz de construir um estado corporal para a cena, que desperte o bailarino e neste caso, o corpo dançante na escola, a analisar e associar suas próprias experiências na ampliação do seu repertório, tem relação com o que Miller (2012) ressalta sobre a preparação corporal, considerando que o reconhecimento do próprio corpo proporciona ao bailarino disponibilidade para sentir e lidar com o instante do tempo presente; de modo a propor uma transformação gradual, que se dá pelo despertar dos cinco sentidos especiais, com os quais nos relacionamos com o mundo e, ao mesmo tempo, desenvolvemos e aguçamos o sentido cinestésico, que compreende a percepção do corpo no espaço e no tempo. Miller (2012) coloca que durante as suas aulas, o estudo do movimento se apoia na estratégia de improvisar e perceber o que acontece enquanto se faz. A percepção do movimento e de sua articulação com o outro e com o espaço ancora e integra a prática diária de construção de um corpo presente e de construção de um corpo cênico que dança. A proposta da autora é o de desenvolver o sentido de cooperação e integração com o outro, com o meio e consigo mesmo a partir de jogos corporais de dança, trabalhando em sinergia os aspectos motores, cognitivos, afetivos e sociais.

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um poder, caso esta seja a única possibilidade de sobrevivência no momento” (GREINER, 2008, p. 89-90). Existe uma espécie de violência velada exercida por muitos professores de dança quando classificam os alunos como “mais criativos”, “menos criativos”, mais ou menos “talentosos”, aqueles que “dançam bem”, ou que “dançam mal”, que são “tímidos demais” e assim por diante. O exercício da cidadania e o respeito à diversidade não só podem como devem estar presentes na aula de dança, seja no espaço formal ou no espaço não formal de ensino. O movimento dançado consiste em desarticular o que é convencional ao corpo; e o caminho do não convencional é a investigação. A leveza sobre a qual Gil (2004) disserta é a qualidade do corpo que, mesmo com limitações, tem a capacidade se surpreender. O corpo que, ao descobrir o que lhe é confortável, investe em novas formas corporais e torna-se sua própria testemunha do conhecimento dançado, torna leve porque lhe é íntimo.

Se o corpo que dança necessita aprofundar-se nas suas próprias possibilidades de movimento, como pode um corpo ser criador de dança se não houver experimentado o seu próprio espaço?

Dantas (2004) entende que o corpo dançante está o tempo todo formando e reformando a si próprio, pois o corpo que dança é o mesmo que dorme, come e realiza todas as ações do dia a dia. O corpo cotidiano está se estruturando continuamente, porém, na dança, os corpos buscam vivências diferenciadas de acordo com seus anseios, pesquisas e propostas profissionais.

Pois, de certo modo, o bailarino dança no interior do seu corpo e expande a sua energia para muito além dele, o indivíduo que dança agencia o seu corpo para possibilitarlhe o movimento poético. “A dança opera uma espécie de experimentação pura desta capacidade do corpo de se agenciar, criando um laboratório onde todos os agenciamentos possíveis são testados” (GIL, 2004, p. 58).

Então, não há sentido na separação entre o corpo que está em cena e o corpo no seu cotidiano e sim há um estado de corpo que se modifica, de acordo com o contexto e a situação em que se encontra. Independentemente das técnicas incorporadas, o bailarino irá manifestar dançando, algumas das suas peculiaridades, e este é um fator significante de diferenciação entre os corpos dançantes.

Para que o corpo jovem possa dançar na escola é importante que os adultos que o rodeiam acreditem na capacidade investigativa desse corpo. Uma ação pedagógica que subestime a capacidade criativa da criança e do jovem pode significar a interrupção dos experimentos do indivíduo, tirando-lhe o direito a um “corpo próprio”. Tal interrupção pode significar, em muitos casos, um abuso de autoridade por parte do adulto diante da criança. “A submissão é a condição de sujeição mas também o modo como um sujeito é formado quando está submisso a

As pesquisas em dança nos mostram que o corpo organiza o aprendizado de acordo com suas referências, com sua história. Ao discorrer sobre uma pesquisa realizada com duas obras coreográficas contemporâneas2, Dantas (2009, p. 4) conclui que, no processo de criação destas obras, os bailarinos “[...] integram a sua prática artística às experiências 2

As obras citadas são Aquilo de que somos feitos (Lia Rodrigues Companhia de Danças) e Marché aux puces, nous sommes uságes e pas chers (dona orpheline danse). Ver DANTAS (2009).

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mais ordinárias e mais íntimas, convergindo-as ao projeto coreográfico do qual fazem parte”. As crianças e jovens que praticam dança nos espaços de ensino e aprendizagem também integram vivências pessoais às criações, contextualizando o exercício criativo.

Considerações A discussão acerca da composição coreográfica nos processos de ensino e aprendizagem em dança envolvem diversos fatores, como a contextualização das articulações criativas após 1950 que enfatizaram modos de produção da dança determinantes na contemporaneidade e a conscientização por parte do docente das suas raízes pedagógicas e epistemológicas. A educação contemporânea necessita de professores de dança com novas visões e experiências, pois devem se preparar com base em suas memórias e nas relações com o próprio corpo e com o ambiente na busca do saber sensível. Devem, também, possibilitar ao educando a descoberta de cores, formas, sabores, texturas, odores, etc., na diversidade de sentidos que a vida proporciona. Educar o olhar, a audição, o tato, paladar e o olfato e, com isso apontar os caminhos para a percepção do corpo no espaço e no tempo. Nesse caminho, lembramos que o ensino de dança significativo e democrático não enfatiza somente o produto ou o processo artístico, mas sim a intermediação e a relação entre esses dois pontos, o que vai ao encontro da pedagogia relacional, conforme Becker (2008). Desse modo, atenta-se que a imitação e a reprodução de passos pré-determinados é também momento importante de aprendizagem na dança, mas que, a exclusividade desse modo de ensinar restringe o aprendizado à passividade de aceitar e executar a ideia do outro. No momento em que é oferecida a possibilidade de diálogo ao educando, a aula pode vir a ser um ambiente para a análise crítica das ações individuais e coletivas, para o compartilhamento de ideias e para a expansão do potencial criativo de cada indivíduo envolvido no processo de composição coreográfica. Além disso, a prática contínua da dança, seja no ensino formal, como não formal, faz o educando acreditar na sua própria potência criativa, aumentando a capacidade de troca com seus colegas e professor, o que faz com Desenho e Foto: Anderson Luiz de Souza Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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que reconheça o saber como sua propriedade. E então, acredita-se que nesse processo, o corpo organiza o aprendizado de acordo com as suas referências, com as relações estabelecidas no campo de trabalho e com os conteúdos abordados. É nesse momento que a composição coreográfica torna-se tão essencial para o aprendizado da dança, pois envolve o corpo preparado para a cena, a assimilação de conhecimentos, a organização e memorização de movimentos e principalmente, o esforço coletivo para a produção em dança.

MARQUES, Isabel A; BRAZIL, Fábio. Arte em questões. São Paulo: Digitexto, 2012. MILLER, Jussara. Qual é o corpo que dança? Dança e educação somática para adultos e crianças. São Paulo: Summus Editorial, 2012.

REFERÊNCIAS BECKER, Fernando. Modelos pedagógicos e modelos epistemológicos. In: KARKOTLI, G (Org.). Metodologia: construção de uma proposta científica. Curitiba: Camões, 2008. p. 45-56. DANTAS, Mônica Fagundes. Concepções de corpos dançantes na coreografia contemporânea na perspectiva de bailarinos-criadores. In: REUNIÃO CIENTÍFICA DA ABRACE, 5,. 2009, São Paulo: Anais da V Reunião Científica da ABRACE. Disponível em: <http://portalabrace. org/memoria1/?p=1010> Acesso em: 20 nov. 2011. _________. Perspectivas sobre a construção de corpos dançantes. In : SEMINARIO NACIONAL DE ARTE E EDUCAÇÃO, 18,. 2004, Montenegro: Anais do 18⁰ Seminário Nacional de Arte e Educação. Montenegro: Ed. FUNDARTE: 2004. p. 65-71. FALKEMBACH, Maria Fonseca. Quem disse que não tem espaço para a dança na escola? In: FERREIRA, Taís; FALKEMBACH, Maria Fonseca. Teatro e dança nos anos iniciais. Porto Alegre: Mediação, 2012. p. 59-130. GIL, José. Movimento total: o corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004. GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. 3. ed. São Paulo: Annablume, 2008. LOBO, Lenora; NAVAS, Cássia. Teatro do movimento: um método para o intérprete criador. Brasília: LGE, 2007.

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*Josiane Gisela Franken Corrêa: Professora Substituta do Curso de Licenciatura em Dança da Universidade de Pelotas/RS. Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2012) - Bolsista CAPES - Linha de Pesquisa: Linguagem, Recepção e Conhecimento em Artes Cênicas. Especialista em Corpo e Cultura: ensino e criação pela Universidade de Caxias do Sul (2010). Graduada em Dança - Licenciatura Plena pela Universidade de Cruz Alta (2008). Desenvolve pesquisa em Artes Cênicas com foco em: Formação Docente, Dança na Escola, Pedagogia do Teatro, Dança Contemporânea e Improvisação. Link Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4277552Z4

**Carmen Anita Hoffmann: Professora Assistente do Curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal de Pelotas/RS. Doutoranda em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Mestre em História Íbero-Americana pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002). Especialista em Ciência do Movimento Humano com ênfase em Dança pela Universidade de Cruz Alta (1996). Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1980). Foi coordenadora e mentora do primeiro Curso Superior de Dança do Rio Grande do Sul, na Universidade de Cruz Alta. Link Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4709317J6

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artigo 03

Interdisciplinaridade:

algumas reflexões sobre a importância nos processos educativos

Recebido em: 01/02/2014

Lucas Pacheco Brum* Cristina Rolim Wolffenbüttel**

Resumo: Este artigo discute sobre a interdisciplinaridade. Apresenta um breve panorama dos estudos sobre o assunto, discutindo sobre o crescimento dos estudos da interdisciplinaridade, o que causou, ao longo dos anos, desconfianças ante as pesquisas que se propunham a tal foco de estudo. A seguir, o artigo aborda sobre a importância de uma revisão dos processos educativos nos ambientes escolares, considerando-se três formas de conhecimento que envolve a interdisciplinaridade, quais sejam, o “saber”, o “saber-fazer” e o “saberser”. Seguindo estas perspectivas, o texto objetiva contribuir com a construção de uma postura interdisciplinar, sendo fundamental que os envolvidos neste processo se coloquem em uma situação de repensar as próprias práticas pedagógicas. Palavras-chave: Interdisciplinaridade, educação, saberes interdisciplinares. Abstract: This article discusses about interdisciplinarity. It presents a brief overview of studies about the subject, discussing the growth of interdisciplinary studies, which caused over the years, suspicions against the research that the proposed focus of this study. Next, the article discusses the importance of a review of the educational process in school environments, considering three forms of knowledge that involves interdisciplinarity, namely the “knowledge”, the “know-how” and the “know-being”. Following these perspectives, the text aims to contribute to the construction of an interdisciplinary approach, it is essential that those involved in this process are put in a

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situation to rethink their own teaching practices. Keywords: Interdisciplinarity, education, interdisciplinary knowledge.

Introdução Estudos sobre a interdisciplinaridade têm crescido ao longo dos anos. Este crescimento não se evidencia, apenas, em uma ou em outra área, mas em diversas. Estudos relacionados às mais diversas áreas do conhecimento têm se utilizado da interdisciplinaridade com vistas à ampliação de suas perspectivas teóricometodológicas. Fundamentos epistemológicos têm ressignificado estes estudos, despontando avanços e peculiaridades. Todavia, mesmo com este avanço, observam-se pesquisas que, ainda, carecem de amadurecimento epistemológico, metodologias interdisciplinares adequadas e referenciais consistentes. Martino e Boaventura (2013), ao discutirem sobre o tema, buscando uma compreensão epistemológica a respeito, apontam aspectos de fragilidade da proposta. Para os autores, a própria dificuldade em avaliar estes trabalhos, muitas vezes externadas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), expõe um dos limites da produção interdisciplinar, ou seja, o “acompanhamento e a crítica ao trabalho de pesquisa, como uma necessidade para seu desenvolvimento” (MARTINO; BOAVENTURA, 2013, p.12). Os mesmos autores complementam este posicionamento explicando a respeito de uma espécie de mito criado em torno da

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interdisciplinaridade: Ao contrário de um mito muito difundido, o trabalho interdisciplinar cria isolamento, pois os participantes não compartem nem a experiência da formação, nem de bibliografias comuns. Ele exige um esforço muito maior que o trabalho especializado (já bastante difícil) e corre o risco de apropriações e usos indevidos de conceitos de diferentes ciências, assimilando a produção de conhecimento ao trabalho de lidar com informação (como fica a questão da competência neste trânsito pelos diversos conhecimentos? Estaríamos autorizados a falar de física porque lemos alguns livros sobre o assunto? Até que ponto podemos discutir economia porque lemos algumas matérias nos jornais?). Também não podemos desprezar o risco de gerar idioletos ou de não se poder superar um nível muito superficial de contato entre pesquisadores, incapazes de acompanhar criticamente o trabalho de pesquisa ou de avaliar seus resultados. (MARTINO; BOAVENTURA, 2013, p.12).

Nesta análise surge a preocupação, também, de refletir sobre a interdisciplinaridade no âmbito da educação. Não porque não tenha sido tratada ao longo dos anos em pesquisas e artigos dedicados a esta finalidade. Entendese que há uma ampla análise a respeito. Mas, porque se considera, ainda, que existam carências neste sentido. Autores como Fazenda (2008, 2003, 1998, 1989), Musacchio (2012) e tantos outros, têm se dedicado às pesquisas na área. Todavia, procura-se focar, neste texto, na perspectiva da educação utilizando eixos, no nosso entendimento, essenciais, com vistas a possibilitar uma prática educativa adequada e consistente, e partindo de uma perspectiva de atitude interdisciplinar. Neste sentido passa-se, a seguir, a examinar o tema, inicialmente focando a questão de um certo modismo em torno do assunto para, posteriormente, tecer uma argumentação sobre três pontos, necessários em relação às práticas interdisciplinares, quais sejam, o saber interdisciplinar, o saber-fazer interdisciplinar e, por fim, o saber-ser interdisciplinar. Interdisciplinaridade: um modismo? Autores apontam a existência de um certo grau de modismo quanto ao surgimento de pesquisas sobre a interdisciplinaridade. Eventos sobre o assunto, inclusive, têm florescido ao Foto: Anderson Luiz de Souza Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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A própria expressão “pesquisa interdisciplinar” começa a torna-se popular, a ganhar direitos de cidadania se é que não está convertendo-se em moda. Donde sua ambiguidade. Isso advém, sobretudo, do fato de a interdisciplinaridade ser cada vez mais chamada a postular um novo tipo de questionamento sobre saber, sobre o homem e sobre a sociedade. Evidentemente, semelhante ambição exagerada e prematura. Daí a importância de sabermos o que ela não é nem pretende ser. Em primeiro lugar, a interdisciplinaridade não é moda, pois corresponde a uma nova etapa de desenvolvimento do conhecimento e de sua repartição epistemológica. Em segundo lugar, não pode ser considerado uma panacéia, porque a ciência pode adotar outros caminhos, utilizar outros métodos e empregar outros procedimentos. (JAPIASSU, 1976, p. 51).

Do ponto de vista do autor, a interdisciplinaridade não seria um modismo, pois, ela corresponde a uma necessidade que as pessoas têm de suprir, comparar, integrar seus conhecimentos. No campo da educação, em nosso entender, compreender a interdisciplinaridade e agir com estes preceitos epistemológicos, corresponde a uma necessidade de superar a visão fragmentada de ensino e aprendizagem. Equivaleria ao ato de ir de encontro à visão bancária de ensino (FREIRE, 2002), em prol de uma postura mais ampla, colhedora e potencializadora da aprendizagem.

As pessoas não constroem os conhecimentos de forma isolada, mas em partilha, de diversos modos e com diferentes pontos de vista. Sob esta análise entendese que, na educação, existam barreiras epistemológicas entre os professores, dificultando a associação das áreas e, por consequência, das disciplinas nos ambientes escolares. No entanto, este posicionamento só prejudica a educação sendo, inclusive, um contrassenso, pois, conforme Lück (2010), a “interdisciplinaridade representa a possibilidade de promover a superação das dissociações das experiências escolares entre si, também delas com a realidade social” (p.43-44). De acordo com os estudos que os presentes autores têm realizado (WOLFFENBÜTTEL, BRUM, HOPPE, 2013), é relevante que a atitude interdisciplinar na educação esteja alicerçada no envolvimento, comprometimento e engajamento dos professores. Com certeza os estudantes também devem estar imbuídos deste compromisso, mas entende-se fundamental que professores tomem para si esta luta e, por fim, assumam esta atitude. Uma atitude interdisciplinar pode partir de um diálogo que considere reciprocidade e compromisso com a educação, envolvendo as demais disciplinas, tendo respeito e humildade para escutar, aprender e saber outros saberes, contribuindo com seu saber específico. De acordo com Fazenda (2003), “hoje, mais do que nunca, reafirmamos a importância do diálogo, única condição possível de eliminação das barreiras entre as disciplinas. Disciplinas dialogam quando as pessoas se dispõem a isto (p. 50)”. Assim, o processo educativo precisa fundamentar-se no diálogo tanto entre as pessoas, quanto com as disciplinas, possibilitando uma cooperação entre todos porque, neste trabalho interdisciplinar, todos são autores, quer sejam professores ou estudantes. Todos aprendem juntos. A interdisciplinaridade quebra, portanto, com paradigmas de disputa de saberes. Todos engajados em um projeto interdisciplinar ou em uma ação estão juntos e, assim, aprendem juntos. Para Fazenda (2008), “o desenvolvimento básico da interdisciplinaridade é a comunicação, e a comunicação envolve, sobretudo, participação” (p. 94). A autora aponta, também, que:

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longo dos anos. Diante das discussões sobre a terminologia interdisciplinar, Lück (2010) explica que o problema é que “a moda ocorre quando uma concepção pedagógica é verbalmente redigida, sem que, no entanto, impregne a ação das pessoas; fica no plano do discurso e, por isso, não é utilizado para transformar a realidade” (p. 23-24). É inegável que o conceito de interdisciplinaridade, realmente, encontra-se em voga. Mas, este fenômeno não é de agora. A perspectiva interdisciplinar tem crescido desde anos 1970, em instituições universitárias brasileiras, prolongando-se à atualidade, com momentos mais ou menos efusivos. Entende-se que este dito modismo tem assolado a educação, principalmente os ambientes escolares. Parece que o ensino, ainda muitas vezes tradicional, sem muitas renovações de ideias e ideais, pode permitir estes tipos de atitude. A este respeito, Japiassu (1976) explica:

Além do desenvolvimento de novos saberes, a interdisciplinaridade na educação favorece novas formas de aproximação da realidade social e novas leituras das dimensões sócio

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culturais das comunidades humanas. [...] O processo interdisciplinar desempenha papel decisivo para dar corpo ao sonho ao fundar uma obra de educação à luz as sabedoria, da coragem e da humanidade. [...] A lógica que a interdisciplinaridade imprime é a da invenção, da descoberta, da pesquisa, da produção cientifica, porém gestada num ato de vontade, num desejo planejado e construído em liberdade. (FAZENDA, 2008, p.166).

Um dos papeis fundamentais da interdisciplinaridade é despertar a curiosidade e a criatividade. Estes dois componentes são muito importantes no processo de ensino e aprendizagem. A este respeito, Freire (1999) explica que a pesquisa tem o potencial de instigar nos integrantes a curiosidade e a própria autonomia do seu próprio conhecimento. Corroborando, Musacchio (2012) amplia a compreensão explicando que a pessoa “se percebe um mundo de possibilidades e alternativas, provocando uma revolução na sala de aula, tornando o ensino e aprendizagem mais dinâmico, criativa, reflexiva, colaborativa e interativa” (p. 195). Desse modo, e para o autor, a promoção da interdisciplinaridade implica fazê-la e não somente discuti-la (MUSACCHIO, 2012). Organizar o ensino de forma interdisciplinar não é tarefa fácil, requer inúmeras mudanças, dentre as quais a metodologia poderia se salientar. O desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem calcado no desenvolvimento de, apenas, aulas expositivas e o domínio dos tempos e espaços por parte dos professores, tem se mostrado há muito tempo contraproducente e ineficaz. Por este motivo, pensar no desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar requer, também, planejar como desenvolvê-lo metodologicamente. Trabalhar interdisciplinarmente pressupõe, também, reconstruir todos os paradigmas existentes, diminuir ou, até, romper com as barreiras entre as disciplinas, rompendo com o ensino como transmissão de conhecimentos (GIMENO SACRISTÁN; PÉREZ GÓMEZ, 2007). Nesse contexto, muitos docentes da Educação Básica têm optado por uma metodologia interdisciplinar por acreditarem no potencial dos professores em trabalharem em conjunto, entendendo a necessidade de uma educação contemporânea, calcada na realidade das pessoas participantes do processo e na condição ativa de todos(as). Como respaldos legais é importante não esquecer que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394, de 20 de dezembro

de 1996 (LDEN 9.394/96), juntamente com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), sinalizaram para uma maior flexibilização dos conteúdos a serem desenvolvidos, possibilitando mudanças no currículo das escolas, no sentido de reduzir a fragmentação característica de um currículo totalmente disciplinar (BRASIL, 1998, 1996). Os temas transversais, incluindo Meio Ambiente, Ética, Saúde e Orientação Sexual, por exemplo, podem, do mesmo modo, facilitar esta articulação entre as disciplinas. Os mesmos podem, e assim é desejável, ser trabalhados de forma interdisciplinar. A utilização da interdisciplinaridade como forma de desenvolver um trabalho de integração e interatividade com as outras ciências, rompendo como metodologias tradicionais no processo educativo apresenta-se como um potente instrumento educativo. Segundo Lück (2010), interdisciplinaridade no contexto da educação, é o processo que envolve a integração e o engajamento de educadores, num trabalho conjunto, de interação das disciplinas do currículo entre si e com a realidade, de modo a superar a fragmentação de ensino, objetivando a formação integral dos alunos, a fim de que possam exercer criticamente a cidadania, mediante uma visão global de mundo, e serem capazes de enfrentar os problemas amplos e globais da realidade. (LÜCK, 2010, p.47).

E, além disso, o diferencial na educação da contemporaneidade, conforme Musacchio (2012), é a aplicação da interdisciplinaridade e da metodologia contemplando experimentações no cotidiano escolar. Para o autor (MUSACCHIO, 2012), a “mera associação de duas ou mais disciplinas discutindo temas comuns já é um avanço paradigmático substancial levando-se em considerações que até bem pouco isso seria impraticável” (p.185). Considerando-se estes pressupostos aliados à compreensão de que a interdisciplinaridade não seja, nem deva ser examinada sob o ponto de vista de um mero modismo na educação, passa-se a analisála a partir de três formas de conhecer a interdisciplinaridade, quais sejam, o saber interdisicplinar, o saber-fazer interdisicplinar e o saber-ser interdisicplinar, fundamentais para a obtenção do sucesso do processo pedagógico. Um diálogo entre três formas de conhecer a interdisciplinaridade

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Fazenda (2008, 2003, 1998, 1989) convida-nos à outra visão do processo educativo escolar, partindo do diálogo entre três formas de conhecer que envolvem a interdisciplinaridade. São estas formas o “saber” interdisicplinar, o “saber-fazer” interdisicplinar e o “saber-ser” interdisicplinar. Seguindo nessa perspectiva procura-se trazer pressupostos para a construção desta postura interdisciplinar colocando-nos em uma situação de repensar nossas próprias práticas pedagógicas. Observa-se, com o passar dos anos, um desgaste conceitual e processual na educação. Um destes desgastes pode ser traduzido no conhecimento, que não é mais tradicional, tampouco enciclopédico, ou ordenado de forma fragmentada. Esses resultados estão, decididamente, refletidos na sala de aula. As práticas pedagógicas que, muitas vezes, revelamse inadequadas para a atualidade, dificultam o tão esperado aprendizado. Formam-se, assim, espécies de “redutos” epistemológicos, com pouca ou nenhuma possibilidade de arejamento ou de transformação. Isto faz com que seja praticamente impossível transpassar esta fortaleza. Parece que, assim, anda-se em círculos, não se conseguindo chegar ao efetivo resultado pedagógico esperado. Musacchio (2012) reflete sobre este processo, explicando: Já não basta mais ao professor ao conhecimento necessário às suas práticas pedagógicas é necessário a partir de uma postura interdisciplinar, o saber mais abrangente, exigindo das estruturas educacionais, quais os pensamentos transversais, e as colaborações de outras ciências para melhorar o quadro das compressões dos fenômenos, das atribuições do processo de ensino e os efeitos que essas novas abordagens podem contribuir para melhorar substancial na aprendizagem. (MUSACCHIO, 2012, p.45).

Nessa compreensão de Musacchio (2012) e da necessidade de romper paradigmas e sair de uma zona de conforto préestabelecida para outra área do conhecimento tornado o conhecimento holístico que a interdisciplinaridade nasce e se faz presente nas práticas pedagógicas da sala de aula. Desse ponto de vista usar a interdisciplinaridade como uma metodologia nas práticas educativas tem sido um dos grandes desafios para os educadores, o que tem resultado em um vasto número de pesquisas, dissertações e teses a esse respeito. Existe uma complexidade demasiadamente em volta

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de uma postura interdisciplinar. Entender uma terminologia ou um conceito, neste sentido, não necessita tanta complexidade quando se quer “ser” interdisciplinar. É sobre isso que os conceitos “saber” interdisciplinar, “saber-fazer” interdisciplinar e “saber-ser” interdisciplinar se encontram e complementam-se. Interdisciplinaridade na perspectiva do “saber” é o conhecimento construído na área do conhecimento. Mas, o “saber” que a interdisciplinaridade busca é aquele que vai para além de suas estruturas já construídas; ele altera, mexe, recompõe, acrescenta, soma as estruturas epistemológicas. O “saber” interdisciplinar, muitas vezes, requer uma desconstrução para a posterior construção, com vistas à aquisição de novos ou outros mecanismos de aprendizagem (FAZENDA, 2008, 2003, 1998, 1989). É importante que o “saber” interdisciplinar esteja aberto a todo o conhecimento das diferentes áreas, contribuindo e buscando colaborações novas para o objeto pesquisado. Esse processo de conhecimento requer deslocamentos das pessoas envolvidas no processo, principalmente dos professores, na busca de informações, inserindo-se constantemente nas atualidades, quer sejam tecnológicas ou de outra ordem, buscando novas mídias e informações. Um “saber” interdisciplinar, sob ponto de vista Musacchio (2012), possibilita inúmeras construções. De acordo com o autor: O docente, ao oportunizar tais ambientes de experimentações, também se vê em situações novas, onde precisará da integração de distintos campos disciplinares, para responder às necessidades da pesquisa. Desta forma, os docentes, devem se colocar à disposição, na forma interdisciplinar, de oferecer seus conhecimentos e campos epistemológicos a serviço das explicações exigidas pelas ciências envolvidas. (MUSACCHIO, 2012, p. 31).

Além de buscar conhecimentos em uma perspectiva ampla, o “saber” interdisciplinar possibilita aprendizados de maneira integrada, tendo um envolvimento do “eu” com o “outro”, fazendo com que ocorra um afastamento da sua zona de conforto fixa, realizando o desapego e a cooperação. Nesse movimento reforçase o comprometimento e o compromisso com outros envolvidos no processo em busca de uma educação que se almeja. De acordo com Fazenda (1998), a “característica profissional que define o ser como professor alicerça-se

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preponderantemente em sua competência, interdisciplinarmente expressa na forma como exerce a profissão” (p. 14). O segundo conceito que se objetiva tratar é o “saber-fazer” interdisciplinar que, nada mais é, do que é a própria prática docente. Neste aspecto, para o alcance deste objetivo, é importante que se busque a libertação do apego ao disciplinar, com vistas ao desprendimento do eixo estabilizador, que tanto se objetiva na educação. Paralelo a esta busca, torna-se relevante tratar da questão da linguagem que se expressa neste “saber-fazer” interdisciplinar (FAZENDA, 2008, 2003, 1998, 1989). Em relação à linguagem e pensamento, importantes para o “saber-fazer” interdisciplinar, Postmann (1994) explica, a partir de Wittgenstein, que a linguagem não é, tão somente, o veículo do pensamento, mas seu condutor. Desse modo, linguagem e pensamento passam por um processo de retroalimentação (GODOY, 1979). De acordo com Brügger (2006):

É indiscutível, portanto, que ao procurarmos construir novas concepções de mundo, deveremos buscar novas formas de expressão também. Só assim será possível uma genuína transformação tanto na natureza externa quanto na nossa natureza interna, o que, em última instância, se constitui no que chamamos de “meio ambiente”, o resultado das relações sociedade-natureza. É preciso que compreendamos, finalmente, que esse esforço vai muito além de estabelecer um novo conjunto de ferramentas para lidar com as nossas reflexões acadêmicas sobre o meio ambiente ou outro “tema” qualquer. Trata-se de construir uma nova percepção sobre o próprio mundo e sobre a própria vida. (BRÜGGER, 2006, p.90).

O “saber-fazer” interdisciplinar parece ser um dos grandes impeditivos para o alcance da interdisciplinaridade. Não é fácil o desapego aos conceitos já adquiridos há anos. Mas, o “saberfazer” interdisciplinar coloca as pessoas em uma região de desconforto, torna-as instáveis, pois requer deslocamentos em diversas das práticas pedagógicas internalizadas. Entendese não mais se estar sozinho, fechado nos saberes específicos, mas em comunhão com outros saberes e pessoas que, por sua vez, detêm outros saberes. Na compreensão de Japiassu (1976), é “preciso que estejam todos abertos ao diálogo, que sejam capazes de reconhecer aquilo que lhe falta que podem ou devem receber dos outros. Só se adquire essa atitude no decorrer do trabalho em equipe interdisciplinar” (p. 82).

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É como se pensar na existência de uma ponte e, de um lado desta ponte, está o espaço interdisciplinar, onde se quer chegar. Mas, no momento em que se aceita a posição interdisciplinar, não mais se consegue retornar, pois as convicções epistemológicas modificamse. Sabe-se que nem toda a travessia é tranquila, sem tropeços. Quando se transpassa limites levamos nossa bagagem, que tem diversos tamanhos e pesos. Alguns destes objetos muitas pessoas entendem ter de levar por muito tempo e, assim, não se desvencilham dos mesmos. Outra reflexão pode ser feita neste sentido. Para alguns saberes tem-se sua utilização para sempre; outros, contudo, serão trocados, retirados em prol de outros mais adequados ao momento, tendo em vista a construção na coletividade, em comunhão com as outras áreas ou disciplinas. Não significa, porém e, assim, concordando com Musacchio (2012), “que a resposta esteja fora dos seus ‘cercadinhos’ filosóficos e epistemológicos, mas a consulta colaborativa e construtos precisam ser vistos, entrelaçados, comparados, compartilhados”. (p. 18). Como em qualquer deslocamento haverá paradas e desafios, os quais estão enraizados em alguns pressupostos para a construção de uma metodologia interdisciplinar. Dentre os pressupostos pode-se elencar compromisso, humildade, comprometimento, cooperação, desapego, compreensão, respeito, diálogo e atitude. Na há ponte sem obstáculos. É importante, porém, que as mesmas sejam enfrentadas, em conjunto, pelas pessoas envolvidas no processo, pois a “interatividade é o instrumento mais importante utilizado para permitir a interdisciplinaridade” (MUSACCHIO, 2012, p. 47). Entende-se que a prática destes desafios gerados pelo “saber-fazer” interdisciplinar produzido com desapego e na potência do experimentar é que pode promover um trabalho consistente e produtivo, desenclausurado dos cerceamentos epistemológicos. A travessia não é fácil, pois, sair do eixo disciplinar e para ser o eixo interdisciplinar, é sem duvida complexo. A complexidade se dá no descolamento dos dois eixos, no qual são encontrados os desafios. Um educador interdisciplinar requer habilidades complexas na sua ação. A primeira ação para fazer a travessia interdisciplinar é uma atitude, que parte de si próprio. Ela constituise vontade de transformação, podendo ser alimentada em três pontos, como o entendimento que todos aprendem juntos, que não devam existir paradigmas e, por fim, mas não menos Foto: Anderson Luiz de Souza Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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importante, que todos devem participar do processo, com diálogo e cooperação. Como Musacchio (2012) explica, para o alcance do “saber-fazer” interdisciplinar, necessita-se de “reciprocidade para potencializar as trocas, o diálogo, atitude de humanidade em reconhecer que seu conhecimento é limitado e que sua área de saber não responde todas as provocações” (p. 80). Na passagem de um lado para outro das concepções epistemológicas, no entanto, nem sempre o sucesso será obtido; às vezes, é preciso retomar e refazer o processo. A atitude de querer mudar o já estabelecido é composto por raízes bastante grande e estruturadas, arraigadas e, nem sempre, a volta ao ponto inicial significa uma perda, pois pode-se acolher esta experiência na bagagem. Nesse contexto, sobre o “saber-fazer” interdisciplinar, Japiassu (1976) analisa: Em suma o que importa não é mais o saber por saber, nem tampouco o conhecimento por si mesmo, desinteressado, desengajado. O que realmente conta é um saber para fazer. Trata-se de encontrar procedimentos e “receitas” tendo em vista a utilização prática do saber. Este pode, inclusive, tornar-se bastante simplificado. Procura-se, como fim agir num quadro determinado. (JAPIASSU, 1976, p. 107).

Assim, o “saber-fazer” interdisciplinar não surge por acaso, mas da necessidade dos olhares das pessoas e, no caso da educação, dos professores, em conjunto, que vislumbram diferentes ângulos, considerando os estudantes envolvidos no processo. Do mesmo modo, como Lück (2010) explica: Emerge, nesse processo, o desenvolvimento de atitude e consciência de que trabalhando dentro de um sistema de interdisciplinaridade o professor produz conhecimento útil, portanto, interligando teoria e prática, estabelecendo relações entre conhecimento de ensino e a realidade social escolar. (LÜCK, 2010, p. 25).

Por fim, o terceiro conceito que nos parece fundamental neste processo de busca pela interdisciplinaridade, é o “saber-ser” interdisciplinar (FAZENDA, 2008, 2003, 1998, 1989). Origina-se de uma vontade própria de mudanças que vai exigir novamente uma atitude. O “saber-ser” vai conduzir o saber, e o fazer interdisciplinar. É a antecedência de tudo; essa posição vai de maneira potente refletir no saber, e no fazer interdisciplinar. Compreende-

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se que sua posição exigirá mudanças complexas em toda a prática pedagógica. Leva-se em consideração desde a proposta didática até a interação com a comunidade escolar, pais e gestão de escola, dentre outros envolvidos no processo. Como previsível, as mudanças ocasionam transtornos, requerendo cooperação e diálogo entre todos. Mudanças não acontecem sozinhas, pois, trata-se de conhecimentos de diferentes pessoas, unificadas em prol de um mesmo objetivo. O “saber-ser” interdisciplinar solicita a escuta do outro e a percepção de que “sua verdade é parte de uma verdade maior, precisa ser complementada para buscar o sentido que falta a ambos” (MUSACCHIO, 2012, p. 48). “Saber-ser” interdisciplinar é procurar conhecer o todo e não apenas suas partes. É poder, na prática educativa, contribuir, pesquisar, interagir, comparar, dialogar, pergunta-se, cooperar, fornecer, escutar. Emerge nesse processo dos professores e pessoas envolvidas estarem sempre em comunhão, e não em seus cercados epistemológicos. Para Musacchio, (2012), o “saber-ser” interdisciplinar é “a participação que aponta o profissional para a percepção mais ampliada” (p.48). Ou, além disso: É na colaboração da interatividade que os docentes buscam, na essência de suas complementações, a interdisciplinaridade. É observar como as outras ciências vêem o fenômeno estudado, como lhe atribuem parceiros e buscam respostas. (MUSACCHIO, 2012, p. 48).

Algumas considerações Portanto, acredita-se que, partindo dos três eixos propostos por Fazenda (2008, 2003, 1998, 1989), que envolvem o “saber” interdisciplinar, o “saber-fazer” interdisciplinar e o “saber-ser” interdisciplinar, acrescidos de atitudes baseadas na perspectiva de ressignificação do trabalho pedagógico, seja possível a construção de uma educação adequada e, por fim, produtiva. Educação esta orientada por pressupostos democráticos, baseadas no envolvimento de todos no processo, no diálogo e na constante atitude de revisitar seus posicionamentos epistemológicos. É, portanto, um desafio constante, que exige um permanente exercício da interdisciplinaridade como atitude, simultaneamente, reflexiva e crítica, frente aos saberes disciplinares, nas diferentes áreas do

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conhecimento e das culturas, articulando-os e ampliando as possibilidades de docência, pesquisa e atuação profissional (BRANDÃO, 2009). Apesar da dificuldade e complexidade, muitas vezes presentes no trabalho interdisciplinar, inúmeras são suas contribuições. “Entende-se, portanto, que o espírito da interdisciplinaridade é mais importante que a letra que a representa. Seu caráter não é normativo e sim explicativo e inspirador” (LÜCK, 2010, p. 24).

FAZENDA, Ivani Catarina Antares (org.). O que é interdisciplinaridade? São Paulo: Cortez, 2008. ____. Interdisciplinaridade: qual o sentido? São Paulo: Paulus, 2003. ____. Didática e interdisciplinaridade. 17 ed. São Paulo: Papirus, 1998. ____. Metodologia da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 1989. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 32.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. ____. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Coleção Leitura, 1999.

Referências BRANDÃO, Vera Maria A. Tordino. “A Construção do Saber Gerontológico. Reflexões Interdisciplinares”. In: Ribeiro do Valle, L.H.L.(org.) Neurociências na melhor idade: aspectos atuais em uma visão interdisciplinar. Ribeirão Preto, SP: Novo Conceito, 2009, p. 202-214. BRASIL. Secretaria de Ensino Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: arte. Brasília: MEC/SEF, 1998. ____. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília. Ministério da Educação e do Desporto, 1996. BRÜGGER. Paula. O vôo da águia: reflexões sobre método, interdisciplinaridade e meio ambiente. Educar, Curitiba, Editora UFPR. n. 27, p. 75-91, 2006.

GIMENO SACRISTÁN, J.; PÉREZ GÓMEZ, A. I. Compreender e transformar o ensino. Tradução de Ernani F. da Fonseca Rosa. 4. ed. Porto Alegre: ArtMed, 2007. GOODY, J. La raison graphique: la domestication de la pensée sauvage. Paris: Minuit, 1979. LÜCK, Heloísa. edagogia interdisciplinar: fundamentos teóricos metodológicos. Rio de Janeiro: Vozes, 2010, ed 17. JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976. POSTMAN, N. Tecnopólio: a rendição da cultura à tecnologia. São Paulo: Nobel, 1994. WOLFFENBÜTTEL, Cristina Rolim; BRUM, Lucas Pacheco; HOPPE, Martha Wankler. Interdisciplinaridade: ambiguidades e desafios para a formação inicial de professores. Revista da Fundarte, Ano 12, nº 25, jan./jun. 2013, p.119.

MARTIN, Luiz C.; BOAVENTURA, Katrine Tokarski. O mito da interdisciplinaridade: história e institucionalização de uma ideologia. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação | E-compós, Brasília, v.16, n.1, jan./abr. 2013, p.2-16. MUSACCHIO, Claudio. Ensaios: interdisciplinaridade e pesquisas científicas em sala de aula. Porto Alegre: Alcance, 2012.

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*Professora Substituta do Curso de Licenciatura em Dança da Universidade de Pelotas/RS. Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2012) - Bolsista CAPES - Linha de Pesquisa: Linguagem, Recepção e Conhecimento em Artes Cênicas. Especialista em Corpo e Cultura: ensino e criação pela Universidade de Caxias do Sul (2010). Graduada em Dança - Licenciatura Plena pela Universidade de Cruz Alta (2008). Desenvolve pesquisa em Artes Cênicas com foco em: Formação Docente, Dança na Escola, Pedagogia do Teatro, Dança Contemporânea e Improvisação. Link Lattes: http://lattes.cnpq. br/5064940263310191.

**Professora Assistente do Curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal de Pelotas/RS. Doutoranda em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Mestre em História Íbero-Americana pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002). Especialista em Ciência do Movimento Humano com ênfase em Dança pela Universidade de Cruz Alta (1996). Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1980). Foi coordenadora e mentora do primeiro Curso Superior de Dança do Rio Grande do Sul, na Universidade de Cruz Alta. Link Lattes: http://buscatextual.cnpq. br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4709317J6.

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artigo 04

Pedagogia dos Pormenores: Escoamentos de Arte e Loucura Elisandro Rodrigues* José Damico** Recebido em: 19/01/2014

Resumo: Pretende-se no espaço desse texto, de modo sintético, aproximar dois temas complexos: arte e loucura. Faz-se isso numa tessitura que caminha por entre a vida como obra de arte e uma pedagogia dos pormenores. Por escoamentos de vida, de sentidos, de percepções. Por imagens que se criam, por desejos que se grudam numa desrazão. Escoamentos que vão além de uma vida medicalizada, diagnosticada, vidas que buscam narrar-se a si mesmas numa linha fronteiriça que se rompe. Palavras-chave: Pedagogia dos Pormenores, arte, loucura, desrazão, escoamentos

[DE UM TETO SOSSEGADO] Cresci sob um teto sossegado, meu sonho era um pequenino sonho meu. Na ciência dos cuidados fui treinado. Agora, entre meu ser e o ser alheio a linha de fronteira se rompeu. (SALOMÃO, 2007, pg.21)

Pensar sobre arte e loucura é pensar numa linha que se rompe, em uma fronteira que se atravessa, [n]uma terceira margem. Poderíamos dissertar aqui alguns exemplos, algumas vivências que rompem, que traçam, desenham outras linhas partindo da loucura:

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A Companhia Della Follia da Italia1; A Cia. Teatral Ueinzz de São Paulo2; a TV Pinel do Rio de Janeiro3; Artistas como Artaud, Bispo do Rosário4 ou Hélio Oiticica5. Mas, nossa intenção nesse texto é outra, é pensar na criação da vida, nos espaços e nos andares das vidas na desrazão da criação. Iremos realizar alguns movimentos para trabalhar essas questões. O primeiro movimento será o de apresentarmos de qual arte estamos falando aqui, o segundo movimento de entendermos a desrazão, um terceiro movimento o de discutirmos os pormenores dessa desrazão e por fim trazer dois exemplos de captura de pormenores onde caminham na tênue linha da loucura e da arte.

* [DA ARTE] Lima [2006] nos oferece uma reflexão sobre a aproximação da arte e da loucura através do trabalho cotidiano com usuários de saúde mental. Diz ela, em seus escritos, que nos espaços de trabalho cotidiano utiliza “experimentações estéticas” que agenciam 1 Para saber mais sobre a Companhia Della Follia - http://www.accademiadellafollia.it/ 2 Informações sobre a Cia. Teatral Ueinzzz http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/ueinzz.htm 3 Informações sobre a TV Pinel - http:// tvpinel2011.blogspot.com.br/ 4 Sobre Bispo do Rosário - http://www. museubispodorosario.com/ 5 Projeto Hélio Oiticica - http://www. heliooiticica.org.br/home/home.php

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com “tintas, argila, máquina fotográfica, sons e movimentos”, mas que suas produções não são vistas como obras pelos cânones da arte e cultura tradicionais. Mas são experiências de criação que atravessam uma “linha fronteiriça”. Os processos de criação artística são frutos de um trabalho e uma técnica, de tempo de preparação e execução. Existem muitas outras concepções do que seria arte, desde aquelas que definem a arte como resultada do ato humano de expressar emoções através de sua cultura e história, a partir de valores estéticos: como beleza, harmonia, equilíbrio. As diferentes formas de expressões ou de representações são tomadas como sinônimo de arte: plásticas, visuais, cinema, audiovisual, fotografia, literatura etc. No entanto, na contemporaneidade qualquer tentativa de estabelecer uma noção fechada sobre o que seria arte é problemática. Afinal de contas o que seria arte? O objeto ou o acontecimento? O esboço ou a obra-prima? A intencionalidade ou a desrazão? Utilizando essa reflexão sobre os processos de arte e cultura nos interessa pensar em processos que ensejam fluxos e intensidades para além dos circuitos de arte tradicional. Uma articulação entre arte e cultura que procura outros lugares de expansão, de locução, de experimentação, de criação, que agencia outros olhares. Como já dissemos logo de início, temos no Brasil e internacionalmente ícones da arte, que eram considerados loucos ou ao menos habitavam vez por outra territórios existenciais tidos como insanos. Essa associação tem provocado desde pelo menos o início do século passado a ideia de que é possível tratar o sofrimento psíquico através da arte. Entretanto, é preciso ressaltar, que existe uma linha tênue entre a produção artística e a loucura, o que não significa que ambas são consequência uma da outra, pois nas palavras da autora: Desta forma, corre-se o risco de, por um lado, pensar que aquilo que o louco faz não pode ser arte porque ele é louco, não é senhor de sua própria razão; por outro, de se estabelecer uma relação imediata entre arte e loucura, como se, para fazer arte, fosse preciso ser, ao menos, um pouco louco, ou se todo louco fosse artista. [LIMA, 2006, pg. 319]

Para efeito desse texto adotaremos muito provisoriamente a ideia de como determinados

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processos criativos rompem com uma forma e buscam outras linhas. A arte pode estar na criação do pensamento, de um conceito, numa fotografia, num produto audiovisual, numa peça de teatro, num texto, numa poesia. Onde existe o ser humano existe arte, ou pelo menos, acontecimentos criativos e artísticos. Dorneles [2011] nos fala que a “arte e a criatividade” são “capazes de fomentar novos intercâmbios e territórios de criticidade, participação social e construção de novas redes sociais de ação cultural para a mudança” [pg. 177]. Diz ela ainda que esses movimentos são capazes de fomentar, de aumentar e de proporcionar territórios de produção de outras possibilidades de cultura e arte. São as zonas de fronteiras que criamos, de intercessão, de agenciamentos, pois “para muitos, a arte é uma forma de conhecimento, e o fazer arte significa ´criar problemas e buscar respostas´” [idid., pg. 192]. O processo de criação, de fazer arte, de fazer cultura é realizado na experiência do viver, por isso cria problemas, busca respostas, se territorializa e se desterritorializa a todo o momento. “Hoje, muitas são as formas de arte que não se materializam numa coisa ou objeto e, em alguns casos, nem sequer podem ser vistas, existem apenas na cabeça de quem as pensa, como no caso da arte conceitual. Outras existem apenas no momento em que as experimentamos e, depois, se desfazem com a efemeridade daquilo que é mais da ordem da duração que da extensão”. [LIMA, 2006, pg 325]

A arte é uma abertura do possível, de caminhar nas fronteiras, de experimentações que promove o encontro da vida com outras potencialidades, que potencializa a vida, é um acontecimento que brota nos meios. A arte é uma invenção, uma criação. São os múltiplos e variados processos de desrazão.

* [DA LOUCURA/DESRAZÃO]

Os loucos se diferenciariam dos “outros”, normais ou neuróticos, apenas em aspectos quantitativos.

A loucura é tratada por desrazão por Pelbart (1993) para dizer desse fora, desse exterior de nós mesmos que podemos potencializar para criar, para inventar. Ao mesmo tempo, o autor sinaliza para um rompimento com as amarras que nos enclausuram no dentro, na burocratização do amanhã [SOUZA, 2007]. Fazer uma aproximação da loucura, como desrazão, com a arte é pensar nas desterritorizalizações possíveis. Naquilo que nos invade, nos molha. O direito a desrazão significa poder pensar loucamente, significa poder levar o delírio à praça pública, significa fazer do acaso um campo de invenção afetiva, significa liberar a subjetividade das amarras da verdade, chame-se ela identidade ou estrutura, significa desenvolver um direito de cidadania pública ao invisível, ao indizível e até mesmo, por que não, ao impensável. [PELBART, 1993, pg. 108]

Waly Salomão numa de suas frases/ poemas indica que “criar é não adequar a vida como ela é”. Criar é resistir, também diria Deleuze. A vida tem que ser inventada e para isso tem de ser experimentada. Inventar uma vida que rompa as fronteiras, que desestabilize, provoque desequilíbrios, que se abra ao novo é o que propomos aqui. A loucura é com efeito uma viagem para Fora, um vagar no Aberto. Ou, para engatar na ficção foucaultiana reportada por Deleuze, é o destampe do gargalo subjetivo, pelo qual o vórtice que plana sobre sua abertura aspira ao sujeito como um todo. Podemos dizer agora, em contrapartida, que a loucura é sua dis-tensão. A dobradura se des-dobra, abrindo-se, e forças anteriormente retorcidas na zona de subjetivação se distorcem. [PELBART, 1993, pgs 138-139]

Queremos pensar que essas [des] dobras, [dis]torções, esse [des]territorializar, romper com as linhas fronteiriças, são momentos de escoamentos [LAPOUJADE, 2013 pg.13] que provocam fissuras, produzidas, pelas sensações, pelos sentidos, pela desrazão, por uma Pedagogia dos Pormenores [RODRIGUES, 2012].

* [DO PORMENOR: Ou de uma Pedagogia dos Pormenores]

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Pormenor é aquilo pequeno, aquele detalhe que escapa ou aparece. Aquela particularidade de algo. Barthes [2009] ao falar dos puctuns [que para ele são pontos, feridas, marcas, picada], antes de dizer os pormenores de uma fotografia. Para Redin [2007]: “Barthes refere-se ao punctum como um acaso que salta de uma imagem - no caso de seu estudo, da imagem fotográfica - algo que fere que punge um detalhe não-organizado por uma lógica”. É nesse detalhe que se vê o pormenor, é a partir dele que o olhar atravessa para ver, dando existência ao punctum. É o que atravessa, que escoa uma linha fronteiriça. Esse pormenor [fragmento, pedaço do que vemos, do que nos escapa] é o que pontua, fere, atrai, marca, que atravessa os processos cotidianos de nossas vidas. Esses processos, essas imagens em fragmentos, essa experimentação cotidiana que nos cansa, que nos afeta, que se faz marca em nossos corpos e em nosso existir é um #pormenor6. É o que faz escoar liberando-nos para sentir e viver. “Nesse espaço habitualmente unário, por vezes (mas, infelizmente, raras vezes) um <<pormenor>> chama-me a atenção. Sinto que a sua presença por si só modifica a minha leitura, que é uma nova foto que contemplo, marcada, aos meus olhos, por um valor superior. Este <<pormenor>> é o punctum (aquilo que me fere)....Do ponto de vista da realidade (…) toda uma causalidade explica a presença do <<pormenor>> (…) o pormenor é dado por acaso e mais nada...” [Barthes, 2009, p. 51]

Esses #pormenor[es] dados por acaso, que ferem nossa atenção, machucam nossos olhos, nossos corpos é o que nos impulsiona a viver, nos potencializa para a tessitura de linhas que rompam com as fronteiras que criam outras imagens. Ficamos com essas imagens em nossas mentes [in]visível, nos mo[v]im[enta] para o cotidiano de nossas vidas. Nos da força para caminh[danç]ar. As imagens se comunicam com nossos corpos “tudo o que podemos dizer é que o objecto fala, induz, vagamente, a pensar” [ibid., p.47] nos atinge com seu #pormenor, nos fere. Grita em silêncio dentro de nossos olhos [na invisibilidade 6 Usamos o símbolo #, o qual tem o nome de sustenido para pensar em outros tons. Na música o sustenido é um acidente que leva o sinal de notação # colocado a esquerda da nota indicando que a altura dessa nota deve ser elevada em um semitom. A presença do sustenido produz modificações nas notas, nos tons. Usamos aqui pensando em dar um outro tom, aquilo que possibilita a desrazão.

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das cores], provoca estreme[nas]cimentos, “o que eu vejo é o pormenor descentrado” [ibid., p.60]. Nas correrias do cotidiano olhamos sem ver. Não deixamos as imagens entrar, não deixamos as imagens pensadas saírem. Não nos abrimos as desterritrializações da [des] razão, da arte, do pensamento. Barthes fala que devemos “nada fazer, fechar os olhos, deixar que o pormenor suba sozinho à consciência afectiva” [Ibid,. p. 64], dar tempo a essa #pormenor é deixar o “olhar tátil” de Bavcar [2003] nos guiar, ser também uma câmara escura, fazer as imagens pensadas palavras, “olhar com nossos próprios olhos, por mais frágeis que sejam” [BAVCAR, 2003, p. 140]. Abrindo os olhos para experimentações [tentando enxergar com o corpo, fechando os olhos] um #pormenor “entrepalavras” [Bavcar, pg 120] emerge de um poeta [Manoel de Barros, 2010] e fo[car]tografa que “Imagens são palavras que nos faltaram./Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem./Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser./Acho que o nome empobreceu a imagem” [do poema Uma didática da invenção, e, O guardador de águas]. Nesses mo[v]im[ento]s de pensar o que [não] olhamos, e de que forma [não] olhamos, esse poeta brincou com a palavra e a imagem, rompeu com a razão, um escoamento da “desrazão”. Bavcar fala que as vozes fazem ressuscitar as imagens, e que as vezes “as palavras se vão como os instantes que elas enfeitaram.” [BAVCAR, 2003, p. 130], pensamos que as imagens enfeitadas, suadas, sofridas, alegres, aquelas que disparam nossos dias para outros possíveis, outras janelas, que permanecem guardadas e saltam ao nosso corpo [num olhar tátil] são os #pormenores nos encontros, nos andares da vida cotidianos. Abrir. Fechar. Palavra. Imagem.

Capturar.

Disparar.

Estar aberto ao #pormenor, dar atenção a ele, olhá-lo com mais delicadeza, é o que convoca a essas experimentações, ao escoamento da vida, a criação. Vivenciar esses #pormenores no nosso cotidiano dando existência é significar os pequenos processos que vivenciamos e experienciamos. É um processo de arte, de ver com olhos marejados de outros sentidos. E esse processo, essa costura de pormenores chamamos aqui de Pedagogia

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dos Pormenores7. Pensamos que essa aproximação da Arte e da Loucura passa por esses pormenores. Pelos Devires-Minoritários. Devir é um deixar de ser alguma coisa para se tornar outra. É vazar nossos corpos para potencializar outro processo, “o corpo se esforça, ou espera escapar. Não sou eu que tento escapar do meu corpo, é o corpo que tenta escapar por...” (DELEUZE 2007. p.23) alguma linha. O Devir é onde o corpo, o pensamento, a criação tenta escoar. É onde escoa, onde rompe com as linhas fronteiriças. Tadeu [2004, pg. 151] nos explica que para deixar de ser é necessário “passar por um estágio que eles consideravam inadmissível: não ser”. O não ser é a loucura, é a desrazão. É quando se atravessa os limites, as fronteiras, onde o devir brota pelo meio, como lembra Deleuze [1997, p.11] “O devir está sempre entre ou no meio”, é onde o pormenor acontece. O devir é uma abertura para o múltiplo, mas sempre é um Devir-Minoritário. O devir-minoritário é desejável simplesmente porque é o minoritário que, correndo por fora, ainda é multiplicidade intensiva, ainda é molecular, ainda é fluidez e flexibilidade. É o devir-minoritário que é uma multiplicidade intensiva. É dali que pode surgir o novo e o imprevisível. [Ibid., pgs.152-153]

* [DA VIDA COMO OBRA DE ARTE]

Entendemos assim que nossa vida, nesses devires-pormenores, deviresminoritários, é uma obra de arte. É uma vida que inventa novas possibilidades de vida, onde “a potência de si e de produção de entornos criativos e audazes é o viver intensamente a invenção do vivo, daquilo que afirma a criação ou que põe a vida como obra de arte da existência” 7 A primeira vez que tivemos contato com essa ideia, esse conceito foi na dissertação de mestrado de Patricia Dalarosa – Pedagogia da Tradução: entre bio-oficinas de filosofia [2011]. Ela apontou esse argumento, fomos atrás, mas nada encontramos de sistematizado, de dito, de escrito. Quem sabe seja por que esses pormenores sempre estão inacabados, sempre estão caminhando pelo meio. E assim nos propomos a pensar em uma Pedagogia dos Pormenores, escrita pelo meio.

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[CECCIM; MERHY, 2009, p.535]. Foucault [1994] já nos lembra isso nos perguntado e dizendo que O que me surpreende, em nossa sociedade, é que a arte se relacione apenas com objetos e não com indivíduos ou a vida; e que também seja um domínio especializado, um domínio de peritos, que são os artistas. Mas a vida de todo indivíduo não poderia ser uma obra de arte? Por que uma mesa ou uma casa são objetos de arte, mas nossas vidas não? (FOUCAULT, 1994, p. 617)

A vida e a arte estão ligadas com os processos de ruptura, de atravessamentos das linhas de fronteira, nos processos que escoam outros modos de viver. Para exemplificarmos, e para encaminharmos essa nossa reflexão, iremos comentar rapidamente duas produções de vida que envolve a arte e a loucura, onde a vida se mostra como obra de arte. São de vidas fronteiriças que falamos. A vida da Dona Terezinha de Novo Hamburgo e as vidas dos Andarilhos de Rolante. Vidas essas registradas em imagem e som. * [Da obra de arte da vida: Quatro Reais]

Teresinha, moradora do bairro Santo Afonso, periferia Novo Hamburgo, era usuária do serviço de saúde mental da região - Centro de Atenção Psicossocial [CAPS] Santo Afonso. Em 2010 um grupo de Residentes Multiprofissionais em Saúde Mental Coletiva da UFRGS passou um período de vivência naquele espaço e conheceram Teresinha. Desde o primeiro momento, desse pormenor inicial, Teresinha manifestava um desejo: Fazer um filme. A vida de Teresinha escoa muitos pormenores. Filha de migrantes, ela já passou por internação em Hospital Psiquiátrico e hoje, moradora do bairro Santo Afonso, vive na pele as mazelas a que passa essa população -desemprego, falta de acesso aos bens culturais, saúde e condições de moradia precária, etc. Dona Terezinha participa de grupos no CAPS, não usa mais medicamentos. Sua trajetória até aquele momento dentro do serviço de Saúde Mental representa algo de muito significativo dentro da filosofia da Luta Antimanicomial, uma Foto: Anderson Luiz de Souza Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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vez que, ela longe das paredes do manicômio se transforma num sujeito desejante. Procurando mais detalhes sobre esse desejo descobriram que no ano de 2006 os usuários do grupo de convivência do CAPS Santo Afonso fizeram uma visita ao campus da Universidade FEEVALE, no município de Novo Hamburgo. Terezinha, participante desse grupo, ao acessar o ambiente em que se realizava o telejornal da faculdade e experienciando a inserção nesse espaço, despertou o interesse em fazer um filme da sua historia de vida e de sua mãe. Laerte Silva [psicólogo do Caps] se interessou pela ideia de Terezinha e a partir da escuta desse desejo, desse pormenor, buscou parcerias para fazer o projeto que depois de quatro anos virou realidade para Terezinha e para o CAPS. O Filme tomou consistência com o grupo de Residentes que ao se inserirem no território de Santo Afonso e acreditando que através das imagens, do audiovisual poderia se agenciar outra produção, a produção do respeito, da valorização, de encarar a diferença como algo possível dentro da sociedade, dando conta assim da demanda particular de Terezinha. Eles compreenderam a vida dessa usuária como uma obra de arte. Utilizando-se assim desta mídia, o vídeo, audiovisual como ferramenta de lançamento, de escoamento e de potencialização de vida que pode conectar os diferentes setores da sociedade, procuraram provocar diálogos e reflexões quanto a questões emergentes da Reforma Psiquiátrica através dessa vida que queria ser registrada. Os residentes escutaram esse desejo e produziram juntamente com ela o Documentário intitulado “Quatro Reais”8. Após a apresentação do documentário no Centro de Cultura da cidade, no dia do seu aniversário em 2011, ela deixou de frequentar o Caps. Sua vida se efetivou numa obra, teve outros sentidos, se potencializou, vazou para outros possíveis rompeu com as linhas e costurou outros modos de vida.

* [Do andarilhar] 8 O Documentário está dividido em 3 partes e pode ser assistido nos seguintes links - http://www.youtube. com/watch?v=7Regs0jXFug [1° Parte]; http://www.youtube.com/ watch?v=VSdXSv6fSms [2° Parte]; http://www.youtube.com/ watch?v=gNh4UNedqY0 [3° Parte].

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A Oficina Andarilha é outro exemplo de ruptura e de aproximação da arte e da loucura através dessa linguagem do audiovisual. Esta oficina acontece no CAPS do município de Rolante, na região metropolitana de Porto Alegre/ RS, e sua proposta é andarilhar pela cidade, ocupar seus espaços. Em 2011 os Andarilhos realizaram um Audiovisual onde falam sobre seus processos e seus modos de vida, de suas vidas como obras de arte. O Audiovisual chamase “Anda[t]rilhos”9 é fala desse nosso tempo, das velocidades, do andarilhar pela cidade, do buscar romper com linhas, com escoamentos. Imagens essas que podemos dizer que são pormenores. A oficina é a aposta num momento de suspensão, do possível que pode ser compartilhado de múltiplas formas de existência e de histórias, de modos de viver a vida. A vida desses personagens reais não se faz simplesmente por recortes e diagnósticos estabelecidos por manuais nosográficos e sim na dimensão desejante de cada sujeito, de cada usuário, de cada vida pulsante que compartilha do espaço da comunidade num [re]descobrir-se a cada encontro, a cada trilha percorrida. Para cada um e todos que participaram, os significados da oficina são diferentes, outros modos de estar consigo e com outros. Nas palavras de Andréa Zanella “seriam (...) às vicissitudes dos percursos, à riqueza dos caminhos e à vida que os singulariza” (2013, p.37). As duas práticas são tomadas por nós como experiências-limite, no sentido de permitirem movimentos terapêuticos e artísticos, expressivos e comunicacionais, realistas e ficcionais e principalmente políticos, políticos na direção da existência.

* [FINALIZANDO PROVISÓRIAMENTE]

Nossa intenção ao nos movimentarmos na complexa e movediça seara da desrazão (loucura) e da arte é a de estranharmos o conhecido e projetarmos outros cenários de existência, que ao mesmo tempo se con-fundem ao borrarem fronteiras disciplinares e de pensamentos. 9 O Documentário Anda[t]rilhos está disponível em http://vimeo.com/53540237

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Discorremos sobre a possibilidade de uma pedagogia dos pormenores: pedagogia dos encontros entre imaginação e criação, entre arte e vida, entre emoções e afecções. Na proposição desta pedagogia através do exercício de uma artistagem o que importa é aquilo que modifica a realidade, que a transcende e a transporta por meio de outras imagens, sons, odores e sensações, pois “a arte pode ser muitas coisas, mas é, sobretudo, uma experiência da delicadeza” [LIMA, 2006, pg. 325]. São dois exemplos singelos, carregados de pormenores e de um devir minoritário que mostram em ato essa linha de fuga que se utiliza dos espaços, dos desejos, das vidas e potencializa elas dando vazão, escoando outros sentidos, mostrando que as fronteiras se rompem, se aproximam, caminham lado a lado, dialogam e produzem outras formas de vida. E que buscam abrir as feridas, provocar as fissuras nos encontros e com isso a re-invenção tão necessária a uma vida como obra de arte e a desrazão como alternativa dispositivo para potencializar vidas silenciadas. Finalizamos provisoriamente estas linhas e alguns escoamentos retomando parte da epígrafe de Wali Salomão: “Agora, entre meu ser e o ser alheio a linha de fronteira se rompeu”. É o que desejamos...

Referências BARROS, Manoel de. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010. BAVCAR, Evgen; TESSLER, Elida,; BANDEIRA, João. Memória do Brasil, São Paulo: Cosac & Naify, 2003. CECCIM, Ricardo. Burg; MERHY, Emerson Elias. Intense Um agir micropolítico e pedagógico intenso: a humanização entre laços e perspectivas. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.531-42, 2009. DELEUZE, G. Conversações: 1972-1990. São Paulo: Ed. 34, 1992. . Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997. . Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. DORNELES, Patrícia. Identidades Inventivas: Foto: Anderson Luiz de Souza Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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territorialidades na Rede Cultura Viva na Região Sul. Porto Alegre: UFRGS/POSGea, 2011. [Tese de Doutorado] FOUCAULT, Michel. “À propos de la généalogie de l’éthique: un aperçu du travail em cours” (entrevista com H. Dreyfus e P. Rabinow, segunda versão) in Dits et écrits (1980-1988), IV, Paris: Gallimard, 1994, 609-631. LAPOUJADE, David. Potências do Tempo. São Paulo: N-1 Editora, 2013.

*Elisandro Rodrigues: Pedagogo; Mestrando em Saúde Coletiva [UFRGS]; com Residência em Saúde Mental Coletiva pela UFRGS/EducaSaúde; Especialista em Saúde Mental Coletiva; Especializando em Tecnologias da Informação Aplicadas a Educação pela UFSM; atualmente trabalha como Técnico em Educação no GHC [Grupo Hospitalar Conceição]. Faz parte do Grupo de Extensão da UFRGS Parafernálias: Nexos, Arte e Educação.

LIMA, E. M. F. A. A smaller art: significance between art, clinics and madness nowadays. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Saúde, Educ., v.10, n.20, p.317-29, jul/dez 2006. PELBART, Peter Pal. Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura. São Paulo/SP.Editora Brasiliense, 1993, 215p. RODRIGUES, Elisandro. Pedagogia dos Pormenores: Rendi[o]lhando foto[car]tografias de formação. Trabalho de Conclusão de Residência. Porto Alegre: UFRGS, 2012. SALOMÃO, Waly. Algaravias: câmara de ecos. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. TADEU, Tomaz; CORAZZA, Sandra; ZORDAN, Paola. Linhas de escrita. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

**José Geraldo Soares Damico: Doutorado em cotutela entre UFRGS/PPGEDU e Université Paris 8. Atualmente é professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Programa de Pós-Graduação, em Educação em Ciências: química da vida e saúde (UFRGS/FURG/ UFSM) e Professor do Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva (UFRGS). Tem experiência na área de Educação Física e Saúde Coletiva, Políticas de Juventude, Lazer e violência, atuando principalmente nos seguintes temas: saúde, corpo, gênero, lazer, juventude e corpo. É membro do Observatório Internacional das Cidades Periféricas (Université Paris 8).

ZANELLA, Andréa Vieira. Inquietações metodológicas: Perguntar, registrar, escrever. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2013.

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artigo 05

ROMA ANTIGA: sua civilização e endumentária civil Pedro Stefanello*

Resumo: O presente artigo tem como objetivo um estudo acerca da civilização romana e seu vestuário civil. Para que se compreenda a evolução da indumentária dessa civilização, se fez necessária uma pesquisa bibliográfica que contemplasse seu surgimento, seus períodos e principalmente sua indumentária. Ao longo do artigo, são apresentados os principais conceitos históricos sobre a Roma Antiga bem como as principais peças de seu vestuário civil, além das mudanças estéticas ocorridas sobre sua indumentária ao longo da expansão do Império.

Palavras-chave: Roma antiga. Civilização. Vestuário. História da Moda.

Abstract: The present article aims a study around the roman civilization and your civilian vesture. To understanding the evolution of the roman vesture, were needed a bibliography search that contemplated your origin, your periods and mainly your vesture. Throughout the article, are presented the main historical concepts about Ancient Rome as well as the main parts of your civilian vesture, besides the aesthetic changes occurred about your vesture along the empire expansion.

Keywords: Ancient Rome. Civilization. Vesture. Fashion History.

No decorrer da história universal, diversas civilizações construíram grandes impérios e criaram suas próprias formas de poder e modos de viver. Dentre as consideradas mais relevantes, historicamente, pela herança social, cultural e artística, a Civilização Romana deixa, ainda na contemporaneidade, fortes reflexos de sua cultura e forma de governabilidade na construção da estrutura ocidental, como exemplo disso o direito que ainda rege a nossas leis. Um dos fatores que diferenciou a civilização romana das demais foi o seu vestuário. Esse apresentava influências de diversos povos, porém, mesmo com todas essas, possuía características estéticas distintas. Para que haja um melhor entendimento dessa civilização, se faz necessária primeiramente a apresentação de seu surgimento e sua estrutura social para que depois o vestuário utilizado por esses seja apresentado. Deve-se levar em consideração que Roma antiga nada mais é do que a atual Roma, capital da Itália, porém tratando-se de uma origem nos tempo mais remotos, tendo seu surgimento acontecido há mais de três mil anos, em 753 a.C.(FUNARI, 2013). O surgimento de Roma deve ser estudado sob dois aspectos: o lendário, contando a história de Rômulo e Remo e o histórico, através do processo migratório de alguns povos e a união de outros, vindo a formar um só grupo, com características distintas (MERCADANTE, 1990). Sob o aspecto lendário, a origem de

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Cerca de duzentos anos após a chegada de Enéias a essa região, dois de seus filhos, Numitor e Amúlio, possuíam o trono, porém, o poder disputado entre pares não era exatamente atrativo. Sendo assim Amúlio expulsou seu irmão e matou seus filhos homens, deixando viva apenas a menina cujo nome era Réia Sílvia, obrigando-a a tornar-se sacerdotisa para que não pudesse ter filhos que no futuro poderiam vingar a expulsão de seu avô e tomar-lhe o poder. Certo dia, Réia adormeceu as margens do rio, e, por acaso, passava por essas o deus Marte4, que costumava descer a terra para guerrear bem como conquistar mulheres. Marte, ao ver Réia adormecida, encantou-se e sem despertá-la, engravidou-a, gerando em Amúlio certo temor, porém esse não a matou (IBIDEM). Após Réia dar a luz a dois meninos, Amúlio, temendo que no futuro esses tomassem o seu trono, depositou-os dentro de um cesto e ordenou que fossem lançados as margens do rio Tibre para que morressem. Devido ao movimento da correnteza do rio, os gêmeos foram depositados à costa, onde, aos gritos, foram encontrados por uma loba que os amamentou e criou (MICHULIN, 1960). Os irmãos então receberam os nomes de Rômulo e Remo e crescendo acabaram por conhecer sua história. Ao saber de seu passado, esses decidiram voltar a Alba-a-Longa5 e, em um movimento revolucionário, mataram Amúlio e repuseram seu avô, Numitor, ao trono. Por serem jovens, Rômulo e Remo encontravam1 Troia: cidade localizada na costa da Ásia menor, atual Turquia (FUNARI, 2013). 2 Filho da Deusa Vênus e do mortal Anquises. Destacouse por sua atuação nas batalhas de Troia, transformando-se assim em um dos maiores e mais valorosos heróis troianos (ALGO SOBRE, 2014). 3 Considerada Deusa do amor, equivalente a Deusa grega Afrodite (RATHBONE, 2011). 4 Considerado Deus da agricultura e da guerra (RATHBONE, 2011). 5 Cidade latina antiga fundada pelo filho de Enéias (LEMPRIÈRE, 1818, tradução nossa).

se ansiosos e impacientes com a espera para herdar o trono de seu avô, logo decidiram construir seu próprio reino. Em comum acordo, escolheram como região para isso o ponto onde o cesto em que foram depositados encalhou. Com a fundação do reino, Rômulo e Remo entraram em conflito sobre o nome que dariam a esse lugar. Desse modo decidiu-se que quem conseguisse ver o maior número de pássaros ganharia a questão. Remo viu seis, já Rômulo viu doze, como resultado, a cidade viria a se chamar Roma, denominação tirada do nome do vencedor (MONTANELLI, 1966). Como forma de proteção do reino criado pelos irmãos, ao redor de Roma foi erguido um murro. Remo, não satisfeito com a perda na disputa pelo nome da cidade, zombou da robustez desse muro violando-o, o que gerou uma indignação por parte de Rômulo que veio a assassinar seu irmão, tornando-se assim o primeiro rei de Roma (LIMA, 1967).

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Roma possui uma narrativa longa, tendo seu início na conquista da cidade de Troia1 pelos gregos. Durante o ataque a Troia, poucos defensores da cidade conseguiram fugir, sendo um deles Eneias2, que sob recomendação de sua mãe, a deusa Vênus3, decidiu circular pelo mundo em busca de uma nova terra. Passandose anos, Eneias desembarcou na Itália indo em direção a região central conhecida como Lácio, vindo a desposar a filha do rei Latino, a princesa Lavínia, e a fundar uma cidade com o nome dela (MONTANELLI, 1966).

Essa lenda foi contada de pai para filho durante séculos tendo em vista que para os romanos era importante considerar que essa história fazia parte de seu surgimento e principalmente que seus destinos estavam ligados a deuses como Marte, deus da guerra, e Vênus, deusa da fertilidade, já que essas nobres origens divinas legitimavam seu poder em relação a outros povos e também servia como uma espécie de propaganda de suas qualidades durante os processos expansionistas (FUNARI, 2013). O segundo aspecto a ser considerado na origem de Roma é o histórico, o qual conta com o processo de união e migração de povos. Mesmo esses processos sendo importantes no contexto de sua fundação, alguns historiadores apresentam a teoria de que Roma ergue-se em um território ocupado por tribos pré-históricas e não só essas, mas também seus descendentes permaneceram ali durante vários anos sem que ninguém os perturbasse (HADAS, 1971). Pensa-se que essas tribos, durante o século VII a.C, uniram-se com os vizinhos mais próximos, conhecidos como sabinos, tornando-se assim a aldeia mais poderosa da região do Lácio. Devido a posição estratégica da região, a margem do Rio Tibre e distando apenas 25 quilômetros do mar, desembarcaram ali um povo conhecido como etruscos, os quais conquistaram Roma por volta de 616 a. C. (COSGRAVE, 2012). Estudiosos dividem suas opiniões sobre

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quem seriam os etruscos, sendo que alguns desses apresentam que eles teriam migrado da Ásia e outros que seriam um grupo étnico de origem mais remota. O que se sabe realmente é que esse povo mantinha relações tanto com a Grécia quanto com a Ásia menor, o que refletia em sua cultura (LAVER, 2011). O nível cultural dos etruscos era bastante alto e refletia em seus panteões6 ricamente decorados, muralhas, objetos de arte, joias e estátuas. Um dos fatores que apresenta a relação da cultura grega com a etrusca é a utilização do alfabeto grego em sua escrita, porém o idioma recorrente é desconhecido e o único povo que consegui ler suas inscrições eram os sabinos, mas o seu real significado não era compreendido por esses (MICHULIN, 1960). A composição da sociedade romana a partir desse ponto é digna de nota devido ao fato de ser estranhamente mesclada. Retornando ao ponto de que muito antes da chegada dos etruscos a Itália já era povoada por diferentes povos, o seu principal fundo era latino, da região do Lácio, e originário de Alba, porém esses próprios eram constituídos por duas populações associadas e não confundidas. A primeira dessas era formada pelos verdadeiros latinos e a outra era de origem estrangeira, vinda junto com Enéias após a derrota de Troia. Esses povos uniram-se com outros ao seu redor, constituindo assim a raça romana por latinos, troianos, sabinos, gregos e como já comentado, por etruscos, e por essa criação de laços entre os diferentes povos, Roma podia dizer aos latinos que era latina, bem como etrusca aos etruscos (COULANGES, 1998). Talvez estimulada pelo povo o qual a conquistou (os etruscos), Roma passou de uma comunidade tribal para uma cidade e, indo ao contraponto da tese de que Roma deriva do nome de um de seus fundadores, Rômulo, alguns historiadores apresentam que essa seria uma palavra de origem etrusca (HADAS, 1971). Vindo a complementar, segundo Funari (2013), com o passar do tempo Roma cresceu e deixou de ser uma pequena comunidade, transformando-se em uma cidade dotada de calçadas, fortificações e sistema de esgoto, tendo como língua corrente o latim. Acredita-se que a sociedade romana era 6 Templo consagrado aos deuses e/ou conjunto de deuses de uma nação (DICIO,2014).

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dividida, em seu princípio, entre o cidadão e o estrangeiro. Essa teoria sobre a divisão inicial de Roma reconhecia como cidadão todo homem que participava no culto da cidade e devido a essa participação lhe era derivado todos os seus direitos políticos e civis. Além disso, esse deveria honrar a religião da cidade bem como honrar aos deuses dessa, fazendo com que tivesse o direito de se aproximar dos altares e com isso podendo entrar nos recintos sagrados onde se realizavam as assembleias, podendo participar de todas as votações que lá aconteciam. Entretanto, o estrangeiro era aquele que não tinha acesso ao culto, não podia invocar e nem eram protegidos pelos deuses, tendo em vista que era proibida a participação do estrangeiro na religião local sendo punido com a morte se entrasse no recinto sagrado onde estava sendo realizada alguma assembleia. Desse modo, o principal fator que abria uma profunda distinção entre o cidadão e o estrangeiro era a religião (COULANGES, 1998). Com o passar do tempo, juntamente com as mudanças econômicas e sociais que circulavam Roma, sua sociedade acabou por se dividir de forma diferente. A partir do momento em que os bens que um indivíduo possuía se tornaram importantes dentro da estrutura social, essa foi dividida em três classes: Patrícios, Clientes e a Plebe (MERCADANTE, 1990). Derivando da palavra pater, ou seja, “o pai”, encontra-se a classe social mais poderosa de Roma, os patrícios. Esses possuíam a chefia das famílias, que para os romanos ia além do corpo familiar contemplando tanto seus servos quanto seus animais, podendo vender seus integrantes como escravos ou até mata-los, e exerciam um poder muito grande na sociedade (MICHULIN, 1960). Vindo a complementar, Mercadante (1990) apresenta que os patrícios formavam uma aristocracia de nascimento e que o seu poder econômico estava baseado na propriedade privada de terras. A família dos patrícios possuía servos que estavam ligados hereditariamente a elas, os quais não a abandonavam. Sobre esses servos, o pater exercia sua tríplice autoridade de senhor, magistrado e de sacerdote, e dependendo da localidade lhes eram dados nomes diferentes, porém o mais conhecido é clientes (COULANGES, 1998). A classe social denominada de clientes era constituída por estrangeiros que se tornavam dependentes de famílias patrícias, conseguindo assim proteção jurídica e

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assegurando suas posses, conseguidos através do comércio (MERCADANTE, 1990). De modo geral, os clientes eram uma subdivisão dos plebeus, porém possuiam mais direitos já que dependiam de indivíduos e os plebeus, por sua vez, dependiam do estado (MICHULIN, 1960). Como estavam obrigatoriamente ligados aos seus patronos, os clientes jamais poderiam ser proprietários, sendo que a terra que cultivavam só a tinham por depósito, voltando às mãos de seu patrono logo após sua morte. Nem o próprio dinheiro do cliente lhe pertencia, podendo seu patrono apropriar-se dele quando fosse necessário. Apenas existia uma classe abaixo a dos clientes e a essa se dava o título de plebe (COULANGES, 1998). A plebe era composta pelas tribos conquistadas pela comunidade romana, sendo considerados homens livres, porém não tinham os direitos dos cidadãos. Não podiam participar das assembleias populares bem como não lhes era permitida a participação nos rituais religiosos dos patrícios, sendo essa uma das principais diferenças entre os clientes e a plebe (MICHULIN, 1960). Além das limitações sociais, os plebeus não tinham o direito a propriedade de terra tendo em vista que essa era estabelecida e consagrada por um lar, um túmulo e por deuses, sendo reconhecidos após o rito religioso, e como esse não lhes era permitido, suas terras, caso as tivesse, era considerada profana e desse modo não possuía demarcação (COULANGES, 1998). Embora, historicamente, existam registros sobre quais eram as principais diferenças entre as classes sociais em Roma, no vestuário isso acontece de forma contrária. Devido ao fato dos romanos mais pobres não terem direitos sociais e logo não possuírem escrita, muito do que se conhece hoje sobre o vestuário dessa civilização, diz respeito às classes mais altas (COSGRAVE, 2012). Os registros sobre o vestuário romano, bem como os estudos feitos desse, iniciam no momento em que a Roma é dominada pelos etruscos, os quais, como já apresentado, possuíam forte influência da cultura Grega e da Ásia menor, o que era refletido tanto em sua cultura como em suas roupas, de modo que os trajes eram costurados e drapeados. Pode-se ainda relatar que houve uma evolução da vestimenta etrusca, indo da túnica para a toga (semicírculo de pano), a qual foi adotada Foto: Anderson Luiz de Souza Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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pelos romanos e logo se tornou uma de suas vestimentas clássicas (LAVER, 2011). Acredita-se que a indumentária romana era uma combinação do vestuário utilizado pelos seus antepassados, os etruscos, e logo pelos gregos, juntamente, em menor grau, por peças e elementos usados pelos estados conquistados. Embora o vestuário romano fosse constituído por influências, esse dividia-se em duas categorias: as indumenta, peças vestidas pela cabeça e retiradas na hora de dormir, e o amictus, que consistia em um tecido enrolado ou drapeado que se colocava ao redor do corpo (COSGRAVE, 2012). As peças que compõem o grupo das indumenta são: o subligaculum e a túnica. O subligaculum é uma tanga de linho a qual era amarrada na cintura e originalmente constituía a única roupa de baixo, a qual, durante o Império, era apenas usada publicamente pelos atletas, porém os operários também a usavam colocando por cima a chamada Tunica. Por tunica se compreendia um camisão de linho ou de lã de duas abas costuradas, a qual era vestida pela cabeça, franzida na cintura por um cinto, o que fazia com que a frente caísse um pouco mais que as costas. Essa túnica também era usava por crianças, e quando fosse equipada por mangas largas recebia o nome de dalmática (BOUCHER, 2010). Existia também outra variação da túnica, a qual recebia o nome tunica palmata, e só era assim chamada quando coberta por bordados (LAVER, 2011). Durante o período da República romana (509 a.C. a 27 a.C), a tunica teve seu comprimento até o joelho, porém, no Império (509 a.C. a 395 d.C.), se estendeu chegando até os tornozelos. Quando mais longa, era utilizada pelos nobres romanos durante o trabalho, em uma ocasião festiva ou em uma cerimônia religiosa, possuindo como matériaprima algodão, lã ou seda, além de uma trama de fios de ouro e prata, tais como bordados (COSGRAVE, 2012). Sobre o segundo grupo, o qual se chamava amictus, estava designada toda roupa em que o indivíduo se envolvia e, originalmente, era o único traje que servia de coberta a noite quando despido. Acredita-se que esse manto primitivo dos romanos consistia em uma ampla peça de pano, um círculo, que possuía em média 2,70 metros de diâmetro (BOUCHER, 2010). Após alcançar a hegemonia sobre toda

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a Itália, os romanos impuseram o seu modo de vida e seu vestuário, fazendo com que a influência etrusca desaparecesse, porém foi tomada por empréstimo uma das peças que, futuramente, seria a mais característica da civilização romana, a toga (LAVER, 2011). Essa indumentária era provavelmente formada por dois grandes segmentos de círculo de mesmo diâmetro e seu tamanho era surpreendente devido ao fato de possuir quase três vezes o comprimento e, mais ou menos, duas vezes a largura de quem a usava (KÖHLER, 2001). Com os romanos, a toga se tornou cada vez mais volumosa e exigia uma grande habilidade para vesti-la. Devido ao seu tamanho, o processo de drapejá-la envolta do corpo era realmente complicado e isso dependia de servos para que acontecesse (LAVER, 2011). Para que a toga pudesse ser vestida, era dobrada ao meio em sentido longitudinal sendo amarrada com pregas grossas e jogada por cima do ombro esquerdo, fazendo com que um terço do comprimento total ficasse suspenso na frente. O restante era lançado diagonalmente pelas costas passando por baixo do braço direito sendo novamente lançada por cima do ombro esquerdo. Em virtude desse volume de tecido lançado sobre ele, o braço esquerdo era quase todo coberto (KÖHLER, 2001). Como essa vestimenta impedia qualquer atividade mais rigorosa, a toga tornou-se essencialmente um traje das classes nobres, sendo o principal dos senadores, os quais sempre a usavam na cor branca (LAVER, 2011). A figura 2 mostra uma representação da vestimenta civil utilizada pelos homens romanos. Nela é possível observar o método de colocação da toga no corpo bem como o resultado final do drapejado

Figura 2 - Vestuário romano civil masculino

Figura 2 - Vestuário romano civil masculino Fonte: Cosgrave (2012)

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a tunica, porém para as mulheres era muito mais comprida, chegando até os pés, além de possuirem tecidos e cores distintas em relação à masculina. Como reflexo disso, a indumentária civil feminina era confeccionada a partir de materiais leves como algodão e, para as ricas, de seda indiana, possuindo uma grande variedade de cores como o azul-escuro, amarelo, vermelho, além de verde-água e rosa, apresentados na figura 2 (COSGRAVE, 2012). Vindo a complementar, Laver (2011, p.41) apresenta que “[...] o traje costumava ser ornamentado com uma franja dourada e fartamente bordado.”.

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A cor, a decoração e o formato da toga, assim como na túnica, indicavam a posição social de quem a usava, sendo a toga, somente usada por cidadãos romanos ilustres e devido a isso, escravos, mulheres e estrangeiros eram proibidos de traja-la (COSGRAVE, 2012). Ainda como forma de indicação da condição social e profissão dos indivíduos, esses dois trajes eram usados com diversas insígnias, dentre essas estavam duas faixas de cor púrpura e largura variável, denominadas clavi, as quais eram presas na parte da frente e de trás do traje, passando por cima dos ombros e caindo perpendicularmente até atingir os pés. Quando essas faixas fossem largas, quem as usava eram os membros do Senado, já quando estreitas, eram utilizadas pelos equites7 (KÖHLER, 2001). Com a expansão do Império Romano para o norte, surgiu a necessidade da utilização de roupas mais quentes devido as condições climáticas mais severas. Como resultado, a peça de vestuário mais usada consistia em uma capa feita de um retângulo de lã com bordas arredondadas, podendo também ser feita de couro e feltro nas regiões mais setentrionais, o qual era drapeado sobre os ombros, preso por um broche nessa região ou no pescoço, contendo ou não um capuz. Essa peça possuía o nome de lacerna e originalmente não possuía cor, porém, com o passar do tempo, passou a ser tingida por uma variação de cores (COSGRAVE, 2012). O guarda-roupa romano, até quase o final da República, não possuía nada similar a meias ou calções, porém esses vieram a ser adotados após a vitória sobre as tribos bárbaras (KÖHLER, 2001). A princípio, os romanos não aprovavam as calças, mas essas foram gradativamente aceitas e inseridas nas vestimentas dos soldados (LAVER, 2011). Nas épocas primitivas de Roma, a vestimenta feminina era exatamente igual a masculina, porém, com a influência dos etruscos e dos gregos, uma certa distinção não demorou a acontecer. Devido ao avanço da civilização, os romanos começaram a trazer produtos de todo o mundo conhecido tais com tecidos e adornos, que passaram a incrementar a indumentária feminina, fazendo com que essa viesse a passar por grandes transformações ditadas por caprichos da moda (KÖHLER, 2001). Originalmente, ambos os sexo usavam 7 Soldado que possuíam meios para manter seus cavalos (HADAS, 1971).

Figura 3 - Vestuário romano civil feminino. Fonte: Cosgrave (2012).

O vestuário feminino, no geral, era constituído por quatro peças: uma camisa usada como roupa de baixo, um vestido como sobreveste, uma espécie de capa e, por fim, um véu. A primeira dessas era chamada de tunica interior ou intima, como também interala ou indusium, e era a roupa que as mulheres normalmente usavam em casa. Inicialmente era feita de lã, porém, com o passar do tempo, passou a ser confeccionada em algodão, seda e, nos últimos tempos do Império, em um tecido transparente. A tunica interior ajustava-se bem ao corpo e era totalmente fechada, com exceção das cavas para os braços, possuindo a mesma largura em toda a sua extensão, a qual chegava aos pés, porém, quando feita de tecido transparente, era solta e longa,

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possuindo uma cauda comprida. Na maioria das vezes, essa tunica era ornada por fivelas ou botões nos ombros, e antes que a segunda peça da indumentária feminina fosse trajada, as mulheres romanas usavam um cinto largo de couro macio, o qual elevava os seios (KÖHLER, 2001). Como segunda peça usada pelas mulheres, encontra-se a stola (ou estola), a qual era mais ampla que a tunica, chegava a altura dos tornozelos e possuía mangas compridas, tendo como matéria-prima inicial a lã e com o passar do tempo o algodão e o linho, sendo que mulheres mais ricas usavam stolas de seda. Acredita-se que nem sempre a stola era costurada no pescoço e, de modo geral, era presa por broches, possuindo ajustes abaixo do busto por um cinturão chamado cingulum, e nos quadris por um cinto largo chamado succinta (COSGRAVE, 2012). As principais variações dessa peça da indumentária feminina estavam na variedade de tecidos utilizados na confecção bem como nas diversas formas de adorno. Para ornamentar esse traje amplo que se arrastava pelo chão e possuía franzidos, costumava-se utilizar um barrado de cor púrpura guarnecido por pérolas ou pingentes de ouro, além de luxuosos debruns ao redor do decote bem como nas extremidades das mangas. Caso a stola não fosse suficientemente longa para o franzido recair sobre o cinto, esse próprio já se tornava uma oportunidade de luxo e ostentação, recebendo um tratamento requintado bem como um valioso debrum salpicado por pérolas e pedras preciosas (KÖHLER, 2001). Por cima da stola, como terceira peça, em público as romanas costumavam usar uma capa bastante ampla, similar a toga. Essa era retangular e, para incrementar o vestuário feminino, era drapeada e recebia o nome de pella (LAVER, 2011). Para completar o traje, as mulheres casadas tinham como costume a utilização de um véu, o qual, no inicio, possuía o nome de flammeum, porém mais tarde mudou para ricinium. A colocação do véu possuía diversas formas e se localizava na parte de trás da cabeça, pendendo pelos ombros e costas (KÖHLER, 2001). A figura 4 mostra um busto de mármore de 193–211 d.C., nele é possível observar uma mulher romana utilizando um véu, reforçando as característica apresentadas por Köhler (2001).

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Figura 4 - Busto de mármore de mulher romana Fonte: MET MUSEUM (2014)8

Era comum, em público, as romanas cobrirem a cabeça com o véu, porém com o crescimento do império romano, os penteados se tornaram cada vez mais elaborados e era praticamente impossível uma senhora elegante não passar pelos serviços de uma ornatrix, responsável por seu penteado que passava horas arrumando as mechas de sua senhora em um coque denominado tutulus ou emoldurando seu rosto com pequenos cachos. Além dos penteados, os cabelos louros também estavam na moda e, embora se fizesse largo uso de cabelos postiços e de perucas inteiras, as mulheres de cabelos escuros utilizavam descolorantes para tal. Para ornamentar ainda mais os cabelos, a fita simples utilizada pelas mulheres foi substituída por tiaras de ouro e prata cravejadas de pedras preciosas e camafeus (LAVER, 2011). Embora as romanas fizessem maior uso de joias na construção de seu vestuário, eram comuns também aos homens acessórios como colares, pingentes, pulseiras, anéis e argolas de braço e de perna (BOUCHER, 2010). Durante o período republicado, todas as joias eram confeccionadas por artesões gregos e recebiam ornamentação por pedras semipreciosas e vidro. Conforme o crescimento do império romano, o estilo dos acessórios se tornou cada vez mais elaborado, sendo feita a utilização de pérolas, 8 Disponível em: < http://images.metmuseum.org/CRDImages/gr/web-large/DP145790.jpg>. Acesso em 13/10/2014.

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diamantes, safiras e esmeraldas provenientes do Egito, não demorando muito para que esses ornamentos chegassem aos calçados (COSGRAVE, 2012; LAVER, 2011). Segundo Köhler (2001, p. 142), “O calçado era uma parte importante – e, na verdade, indispensável - da indumentária dos romanos”. O modelo mais primitivo era conhecido como carbatina e consistia em uma peça de couro não tingido que cobria o contorno do pé sendo presa por tiras de couro, normalmente utilizado pelos camponeses. Quando fosse ligeiramente mais sofisticado, recebia o nome de calceus, sendo assim considerado o calçado habitual para sair de casa por homens e mulheres. Esse tipo de sandália (calceus) tornou-se característica do cidadão romano sendo proibida a sua utilização por escravos (LAVER, 2011; BOUCHER, 2010). Havia em Roma outra variação do calceus o qual era chamado calceus senatorum. Originalmente, o senatorum possuía a cor preta e com o passar do tempo começou a ser confeccionado em couro branco. Sua amarração era feita com tiras entrecruzadas e fitas pendentes, apresentando como principal diferença do original e o comprimento do cano, tendo em vista que o primeiro ia até a altura do tornozelo e o segundo sendo bem alto (BOUCHER, 2010). Embora os calçados romanos fossem, em sua maioria, de uso comum entre ambos os sexos, o utilizado pelas mulheres dentro de casa era conhecido como soccus. Essa espécie de chinelo podia ser de várias cores, possuir figuras pintadas e quando guarnecido por pedras preciosas era chamado de calceus patricius, cujo uso era exclusivo pelo imperador Nero (LAVER, 2011). Cosgrave (2012, p. 75) complementa apresentando que “As mulheres ricas usavam sapatos com adornos extravagantes, como acabamentos de ouro, bordados de pérolas e outros enfeites”. Por fim, devido aos fatos apresentados ao longo do artigo, acredita-se que as influências externas capturadas pelos romanos foi fundamental para que essa civilização viesse a construir sua identidade, tendo em vista que originalmente sua estética era considerada de certa forma básica, porém com a expansão do império romano bem como a adoção de característica de povos conquistados, seu vestuário foi se tornando cada vez mais rico no que diz respeito a ornamentação. Como resultado, pensa-se que a estética criada pelos romanos em sua indumentária seja digna de Foto: Anderson Luiz de Souza Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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nota, pois essa se tornou um símbolo específico do legado que a civilização romana deixa para os dias atuais.

ed. Rio de Janeiro: Editorial Vitória Limitada, 1960.

REFERÊNCIAS: ALGO SOBRE. ENÉIAS. Disponível em: <http://www.algosobre.com.br/mitologia/eneias. html>. Acesso em: 07/10/2014.

RATHBONE, Dominic. História ilustrada do mundo antigo: um estudo das civilizações da Antiguidade, do Egito dos faraós ao Império Romano, passando por povos das Américas, da África e da Ásia. São Paulo: Publifolha, 2011.

BOUCHER, François. História do Vestuário no Ocidente. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

MONTANELLI, Indro. História de Roma. 2ª ed. São Paulo: IBRASA, 1966.

COSGRAVE, Bronwyn. História da Indumentária e da Moda: Da antiguidade aos dias atuais. São Paulo: GG Brasil, 2012. COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. DICIO. Panteão. Disponível em: <http://www. dicio.com.br/panteao/>. Acesso em 13/10/2014.

*Pedro Stefanello: Estudante do 8º semestre do curso de Moda na Universidade Feevale. Possui experiências como auxiliar de modelagem e como figurinista da cantora jovem Laura Pinzon. E-mail: pedro.stefanello@hotmail.com

FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. 5ª ed. São Paulo: Contexto, 2013. HADAS, Moses. Roma Imperial. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora S.A: 1971. KÖHLER, Carl. História do Vestuário. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. LAVER, James. A roupa e a Moda: Uma história Concisa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. LEMPRIÈRE, John. A classical dictionary: containing a copious account of all the proper names mentioned in ancient authors: with the value of coins, weights, and measures used among the Greeks and Romans: and a chronological table. London: printed for T. Cadell and W. Davies, 1818. P. 38. LIMA, M. Oliveira. História da Civilização. 16ª ed. São Paulo: Editora Melhoramentos, 1967. MERCADANTE, Antônio Alfredo. História é vida: As sociedades antes da escrita, antigas e medievais. Porto Alegre, RS: Mercado Aberto, 1990. MET MUSEUM. . Marble portrait bust of a woman. Disponível em: <http://images. metmuseum.org/CRDImages/gr/web-large/ DP145790.jpg>. Acesso em 13/10/2014. MICHULIN, A. v.. História da Antiguidade. 2ª

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artigo 06

PROCESSO DE CRIAÇÃO EM EDUCAÇÃO FÍSICA COMO UM PROCESSO ARTÍSTICO Luísa Beatriz Trevisan Teixeira*

Resumo: Este texto trata do processo de criação em educação física como um processo artístico. Tem como objetivo propor que é possível criar em educação física e não apenas buscar representar modelos tomados como verdades absolutas. Para isso, apresentamos questões específicas da Educação Físicas voltadas para os modos de fazer, normas, métodos e técnicas; em segundo momento buscamos tratar do conceito de criação com Gilles Deleuze, pensando o ato de criar como arte; para em seguida propomos a criação em Educação Física como movimento e modo de constituição de si, como modo de constituição de um corpo com suas singularidades, de uma vida de movimento como obra de arte.

Palavras-chave: Educação Fisica. Educação. Dança. Corpo. Treinamento. Criação. Pedagogia. Composição. Arte.

Abstract: This paper deals with the process of creation in physical education as an artistic process. Aims to propose that you can create in physical education and not just seek to represent models taken as absolute truths. For this, we present specific issues of Physical Education focused on the ways of doing, standards, methods and techniques; second time we seek to treat the concept of creation with Gilles Deleuze, thinking the act of creating art as; for then we propose in Physical Education as a movement and constitution mode itself, as constituting an order of a body with its uniqueness, a movement of life as a work of art.

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Keywords: Physical Education. Education. Dance. Body. Training. Creation. Pedagogy. Composition. Art.

A educação física se dá, tanto no ensino como na realização de atividades dessa área, como praticas corporais diversas em ambientes específicos como academias e clubes, como também atravessam práticas discursivas e não discursivas (algumas vezes de forma muito sutil) nas prescrições de saúde, bem-estar, de ideais de beleza, entre outras, através de métodos, técnicas e modelos. Sendo de grande relevância sempre representar os modelos para se atingir determinados objetivos que tem como pano de fundo padrões, normas e medicalizações. Pensar a criação se faz importante para problematizar algumas coisas que são dadas como verdadeiras através de regras seguidas, pois a aprendizagem se dá em um processo de cognição, dentro de um conceito de cognição amplificado1. A cognição não se reduz a imputs, absorção de dados, absorção de conhecimento e tampouco a um objeto, um fim. A cognição se dá no “entre”, num processo que é atravessado pelas artes, pela tecnologia, pelos movimentos coletivos. Ocorre nos encontros que violentam o pensamento, como nos fala Deleuze. Numa singularização no modo de viver, de nadar, de jogar futebol, de dançar, de aprender, de

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KATRUP et al, 2008, p.10.

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ensinar. Num eterno devir2. Quando falamos de criação em educação física, rapidamente pensamos em criação de estratégias em esportes, coreografias em nado sincronizado, ginastica artística, dança ou outra pratica corporal considerada de caráter artístico. E o que normalmente ocorre é a reunião e recombinação de movimentos já conhecidos e aprendidos. Sua execução com perfeição técnica resulta em sucesso na dita criação. Sempre reforçando uma norma, um corpo docilizado, treinado. A educação, a saúde, a vida se dão em criação3 de novas possibilidades que vão além de padronizações. Os problemas de pesquisa na educação física, e desejos transbordam para fora de caixas e gavetas normatizadoras. A vida é volátil e expande para fora do gargalo das garrafas que trazem a palavra “NORMAL” e “RECONHECIDO” em seus rótulos. Pensar processos de criação em educação física como uma condição onde se dá uma prática, constituição de um corpo, constituição de um sujeito dessa prática, e também possibilidades para criar além das definições comuns é potente. Pensar essas condições de constituição de um corpo na educação física que vem a ser um corpo criador, que cria com as regras e para além delas, que compõe com o tudo o que aprende e com todas as condições que envolve as diferentes práticas, pode se dar através da busca de novas formas de treinar, educar um corpo, tendo este processo como um processo artístico que cria, que compõe, que cria blocos de sensações. Está na pedagogia, de modo geral, a capacidade de perverter currículos e as inúmeras “receitas de bolo”, de treinamentos e demais prescrições de verdades absolutas, nas salas de aula, academias, ginásios, nos espaços e situações de educação. Pensando um corpo múltiplo, que não reproduz códigos e signos pré-estabelecidos como uma “linguagem”, mas expressa-se recriando e criando infinitas possibilidades a partir de uma consciência não do corpo, mas com o corpo, consciência como um corpo.

2 Este termo é comumente relacionado ao filosofo Gilles Deleuze, mas também foi tratado por Nietzsche e antes disto por Heráclito. Devir trata-se de um eterno vir a ser sem nunca chegar a ser algo fixo, estável e eterno. 3 Utilizo aqui o conceito de criação enquanto pensamento de Deleuze.

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Métodos, técnicas e modelos na educação física Os métodos de ensino disciplinares na Educação Física são tomados como modos a serem seguidos sem espaço para a criação de outras possibilidades. Modos de ensinar tradicionais, que normalmente visam um padrão, um modelo tido como ideal. Apresentamos como referencias de estudo, algumas abordagens sobre o corpo com o filosofo contemporâneo, francês, Michel Foucault. Este autor trata dos efeitos do poder sobre o corpo: a disciplina e a regulamentação. O corpo que aparece ao longo da obra de Michel Foucault não se limita às concepções orgânicas. O corpo se apresenta como um campo sobre o qual operam diferentes dispositivos. O corpo não deve ser pensando a partir de uma existência a priori, e sim como um objeto que deve ser problematizado, investido por forças e, por fim, produzido4.

Medeiros e Peixoto Jr5 destacam que, na obra “Vigiar e Punir”, Michel Foucault se dedica as práticas disciplinares que se fortaleceram a partir do século XVIII, podendo-se pensar com isso a produção de um tipo específico de corpo, o que ele denominou de corpo dócil. “Foucault nos diz que um corpo é dócil quando pode ser submetido, utilizado, transformado, aperfeiçoado, exercitado6” Exercida em diversas instituições, a disciplina, tem o papel de controle do pensamento e das ações dos homens, moralizando as condutas, e indicando os modos de se relacionar, viver, comportar em diferentes práticas. As práticas disciplinares não são fixas, mudam de tempos em tempos, de perspectivas, de analises e interesses, podendo ser abandonadas de acordo com os valores e normas de uma sociedade e instituições7 que controlam os corpos em questão. Ao abordar a questão dos recursos para um bom adestramento, Foucault apresenta alguns instrumentos simples que garantiram o sucesso do poder disciplinar, a saber, “o olhar hierárquico, 4 5 6 7

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MEDEIROS E PEIXOTO Jr, 2010, 01. MEDEIROS E PEIXOTO Jr, 2010, 01. CARDIM, 2009, p. 135. SOUZA, p. 14, 2010.

a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame.” (FOUCAULT, M., 2008 p. 143). Contudo, antes de explicitar tais instrumentos, devemos entender que a função do poder disciplinar é o adestramento, ou melhor, adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor8.

Determinados modos de ensinar práticas9 específicas dão condições para a construção de corpos dóceis, úteis10 e submetidos às ações que realizam, modulando o corpo e o conhecimento do indivíduo. Isto se torna necessário para o ensino de uma técnica com suas regras e modos de fazer, é preciso treinar o movimento, um movimento enquanto condição constituidora de um corpo. Só aprende a jogar futebol, jogando futebol e treinando esse esporte; só se aprende a dançar balé, dançando balé e participando de aulas desse tipo de dança, e isso pode ser pensando em outras práticas corporais. Assim podemos pensar isso em outras atividades na educação física que são tomadas como disciplinares. Também podemos pensar pedagogias que possibilitam pensar de forma diferente a criação e a aprendizagem, em que se dociliza e se conduz um corpo a se constituir sempre de modo diferente, onde o educador pode dar condições para que o aluno crie sua interpretação, que crie seu modo e caminhos de executar uma determinada prática. E isso sem deixar de lado o que está sendo proposto e o que se pretende alcançar, mas potencializando suas singularidades, suas diferenças, tendo os modelos como condição para aprender o que se precisa para a criação de seu próprio modo de viver essas práticas. Na educação física, seja num treinamento de uma determinada prática com um objetivo específico de realização com sucesso, na educação escolar, ou na saúde coletiva, esta criação de possibilidades e condições de aprendizado se dará em brechas no pensar, nas fissuras pedagógicas.

8 MEDEIROS E PEIXOTO Jr, 2010, p. 04. 9 “... Foucault entende por práticas a racionalidade ou a regularidade que organiza o que os homens fazem (‘sistemas de ação na medida em que são habituados pelo pensamento’), que têm um caráter sistemático (saber, poder, ética) e geral (recorrente) e, por isso, constituem uma ‘experiência’ ou um ‘pensamento’.“. CASTRO, 2009, p. 338. 10 Michel Foucault traz este conceito em suas obras como Vigiar e Punir, Microfísica do Poder, e Historia da Sexualidade, que trata da construção e constituição dos corpos.

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Tendo as condições disciplinares na educação física como espaço para pensar possibilidades de criar, buscamos o conceito de criação do filósofo Gilles Deleuze na perspectiva da filosofia da diferença. Deleuze pensará a criação no pensamento11, como algo que desestabiliza as imagens prontas no pensamento, representativas, imagens que reconhecemos, essas são violentadas como diz o autor, e o pensamento é colocado a pensar, criando outras imagens. Diferentemente da ideia de que pensar se trata de uma atividade voluntária, reflexiva e universal, o ato de pensar encontra-se relacionado a um procedimento inventivo/criativo. Em suas obras e em parceria com Félix Guattari, Deleuze problematiza o pensamento e suas imagens. Para o filósofo, as imagens orientam o pensar e a produção do conhecimento nas artes, na ciência e na filosofia, pois fornecem uma concepção do pensamento. “Uma imagem seria então um conjunto de coordenadas que não somente orientariam um pensamento, mas que norteariam também as suas possibilidades de criação.12” Sendo o pensamento uma potência criadora Os modelos de representação ou do pensamento representacional tem relações com a moral (uma imagem que tem predominancia numa daterminada cultura) que parte do princípio de reconhecer as essências, e a busca de verdades universais e atemporais. Numa imagem moral, dogmática do pensamento ocorre um processo cognitivo, onde o pensamento é entendido como uma recognição, a partir de um modelo de representação de uma identidade do objeto a ser conhecido ou re-conhecido. Kastrup e colaboradores nos trazem em Políticas da Cognição, uma problematização do modelo de representação (com bases no pensamento de Descartes e Kant), onde a “cognição é uma relação intencional entre um sujeito e um objeto13”. Os conteúdos cognitivos – os símbolos – são correlatos mentais de uma realidade preexistente. Além de pressupor sujeito e objeto como pólos prévios ao processo de conhecer, a concepção 11 Para Deleuze o pensamento é criação, a criação se dá em ato, em um corpo que age e cria. O corpo para Deleuze não é pensando numa perspectiva dualista, onde corpo e mente são separados, mas sim um corpo que se dá em ato, que está pensando ao realizar algo. 12 MAURICIO; MARGUERA, 2011, p. 292. 13 KASTRUP etal, 2008, p. 9.

da cognição como representação traz consigo apreocupação com a busca de leis e princípios invariantes, condições de possibilidade do funcionamento cognitivo. O que prevalece é o entendimento da cognição como processamento de dados: o sistema cognitivo recebe inputs, realiza seu processamento por regras lógicas e os transforma em outputs. A cognição é identificada com a inteligência – agora encampando o domínio da inteligência artificial – e é, em última análise, um processo de solução de problemas. Nosso diagnóstico foi que tais idéias concorriam para uma concepção extremamente limitada e mesmo inadequada do que seja conhecer14.

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Conceito de criação para Gilles Deleuze

Os autores propõe uma ampliação do conceito de cognição ultrapassando um “conhecer” que apenas representa, um suposto sistema ou estrutura cujas regras invariantes seriam encapsuladas e refratárias ao tempo15. Pensar a aprendizagem a partir a uma ampliação de conceito de cognição, como sugerido por Katrup etal e do conceito deleziano de pensamento, nos traz a possibilidade de criação quando escapamos da representação, das imagens prontas. Pois ressaltando o pensamento de Deleuze é possível compreender que O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural, é, ao contrário, a única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensamento. Ora, essa gênese implica alguma coisa que violente o pensamento, que o tira de seu natural estupor, de suas possibilidades apenas abstratas (DELEUZE, 2006, p. 91).

Criamos a partir de uma desestabilização quando algo se dá no encontro dos corpos, algo violenta o pensamento, se dá em devir, no movimento infinito do devir, nos atritos entre potencias heterogêneas e em seus efeitos disruptivos que desmancham e borram as formas de existência e saberes, forçando a criar outras. O aprendizado se dá enquanto corpo pensante, um corpo de sensações, um corpo que se da em ato, na experiência de si16 que 14 KASTRUP etal, 2008, p. 9. 15 KASTRUP etal, 2008, p.10. 16 Michel Foucault trata da experiência de si, no Cuidado

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produz a si mesmo como corpo disciplinado, não para as verdades que atravessam séculos, mas para verdades produzidas por um corpo nas suas experiências para o seu próprio movimento.

Criação na Educação Fisica Podemos pensar uma situação cotidiana na educação física: uma adaptação/inserção do aluno pensando um espaço determinado para uma prática, seja esse espaço uma quadra de esportes, uma piscina ou uma pista de skate. Sendo esse espaço, não apenas uma localização geográfica e estrutural, não apenas uma superfície a ser ocupada, mas também, um espaço como condição onde se dá uma prática, constituição de um corpo, constituição de um sujeito dessa prática, um espaço que é ocupado por saberes, verdades, modos de agir, regras e também possibilidades para criar além das definições comuns. Com isso temos a intensão de pensar mais as condições de constituição de um corpo na educação física que vem a ser um corpo criador, que cria com o que aprende, que cria com as regras, que compõe com tudo o que aprende e com todas as condições que envolvem as diferentes práticas. Aprender a nadar, aprender uma língua estrangeira, significa compor os pontos singulares de seu próprio corpo ou da sua própria língua com os de uma outra figura, de um outro elemento que nos desmembra, que nos leva a penetrar num mundo de problemas até então desconhecidos, inauditos17.

Um corpo que se constitui em determinadas práticas apresenta marcas que evidenciam os aprendizados desse corpo ao longo de sua trajetória de vida. Sejam atores, Dançantes/bailarinos, músicos, artistas visuais, desenhistas, pintores, limpadores de rua, entregadores de pizza, motoristas, entre tantos outros, vivem a vida no corpo, pois é essa a possibilidade, e nas suas próprias práticas produzem seus corpos. (…) Por isso estudar o corpo vem a ser um modo de estudar as condições de vida e de constituição de si nos encontros com de si, no terceiro volume da obra Historia da Sexualidade.

17

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DELEUZE, 1998, p. 317.

outros corpos18.

Se faz necessário pensar a educação física como espaços de educação, explorando possibilidades didáticas-pedagógicas como processo artístico, no próprio criar. Nesse processo o professor tem um papel de grande importância, não reduzindo ao papel de ensinar regras como única possibilidade, mas como alguém que dá espaço para que outros modos de fazer possam ser criados. Loureiro (2009) em seu texto “Uma reflexão a partir do conceito de recognição de Deleuze sobre sistemas de raciocínio baseados em casos aplicados à educação”, diz que Deleuze “destaca que um professor muda de acordo com o que ensina, conforme o que estuda, perante os seus alunos19”. Assim um professor não repetirá suas aulas, mesmo que o conteúdo a ser trabalhado se mantenha o mesmo. Pois cada um tem seu modo de resolver os problemas que lhe ocorrem e cada professor tem uma maneira singular de desenvolver suas aulas. “As características de um professor influenciam na aprendizagem do aluno. Deleuze (2005) fala sobre a noção de matéria em movimento, de modo que em uma aula cada grupo, ou estudante, capta aquilo que lhe convém, transformando o que aprende a seu modo e usando de acordo com as suas necessidades.20”

O aprendizado é uma criação real, uma singularização na experiência vivida nos encontros com os signos. Aumenta a chance de se dar uma criação em ato em resposta a situações de estranhamento e limitações, se durante a preparação deste corpo forem trabalhadas formas de agenciamentos e adaptações a instabilidades, percebendo estes imprevistos como potentes. Quando falamos em criar em educação física, não estamos questionando o caráter fisiológico, mecânico e técnico do educar e treinar, mas do educador criador. Não estamos propondo que um educador físico nem deva seguir métodos, não estamos indo contra a disciplina, mas se trata de pensar educador capaz de compor com os possíveis elementos e variáveis, para criar possibilidades na produção de um corpo potente para diferentes práticas. 18 19 20

FERRAZ, p.270, 2013. LOUREIRO, 2009, p. 6. LOUREIRO, 2009, p. 6.

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Nas praticas corporais, o treinamento e a pesquisa de movimento estão associados aos outros elementos de composição, que podem se dar em ato, no tempo de realização, em condições reais de execução, de realização de uma competição, de uma apresentação, de um jogo. O processo de criação na produção deste corpo pode se dar na composição com a técnica dos movimentos, as táticas, o vocabulário de movimentos, com um figurino ou uniforme e o espaço. O processo de criação, a pesquisa e o ensino se dão de forma a compor com estes elementos no corpo do atleta/dançarino/aluno. Muitas vezes nos deparamos com condições para o ensino, com currículos “limitantes”, com prescrições fixas. Então o que fazer? Como é possível criar em educação física? Está na pedagogia a capacidade de perverter o currículo e as inúmeras “receitas de bolo” de treinamentos e demais prescrições de verdades absolutas, nas salas de aulas, nos ginásios, quadras de esportes, nas academias nos espaços urbanos. Traduzir toda a parafernália, que se carrega em uma mala de saberes e vivências, para pensar o corpo do aluno de forma diferente. Pensar a educação física não, somente, como um transmitir conhecimento ou modo de iluminar mentes, mas como possibilidade para criar condições para que este corpo crie sua interpretação, sua maneira de nadar, correr, dançar, realizar uma prática corporal. A educação física não é uma disciplina para auxiliar as demais, ditas importantes, ela é por si uma ferramenta educacional de multiplicidades, uma possibilidade de produzir arte como possibilidade de composição, num processo de criação borrando as formas estabelecidas e criado outras. A educação física não se reduz a taxas metabólicas, adestramento dos corpos, nem a possibilidades de “gastar energia” para cansar um corpo e produzir condutas e comportamentos calmos e cansados. Também não se limita a representação de modelos de treinamentos, esportes e ginasticas. A educação física pode, sim, fazer uso de saberes oriundos de outras “áreas”, pois estes saberes permeiam os corpos. Talvez seja importante problematizarmos as “normas” de realização de determinadas práticas, para pensar em potencia21, pensar 21 Vontade de potencia é uma teoria de Niezsche , em que o mundo não é mais uma pluralidade de forcas, nem de matéria e nem abstração. São unidades de ações que se relacionam para

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em potencializar a produção da diferença como modo de constituição de si na educação física, um modo singular, uma arte de si como diz Foucault22. As ações nas relações formam um complexo de movimentos. Estas relações se dão em um devir. Em vez de educar de forma prescritiva, seria interessante provocar, questionar, promover condições para que as pessoas criem suas formas de ser e viver...e nós educadores criemos novas formas de educar para além de um modelo reconhecido e legitimado como ideal. Pode-se produzir fissuras pedagógicas ultrapassando o “criar problemas de pesquisa” dentro de uma tradição consolidada e legitimada, de uma linha medicalizadora que fragmenta e isola o individuo examinado e analisado segundo perspectivas de causa e efeito. Ultrapassar a vida asséptica e artificial sem contexto sócio-cultural-geográfico, as problemáticas da educação-saúde reduzidas a analises fisiológicas e mecânicas, a aprendizagens motoras. Não nos colocamos contra nenhuma dessas vertentes de pesquisa, pois são necessárias, mas propomos pensar o que mais constrói e reverbera na vida destes indivíduos que são objeto de estudo. O que aumenta ou diminui a potencia de agir? De que forma o educador físico pode contribuir para isso? ..o pulsar que habita os encontros lança os corpos em um processo de transformação continua. Isto por serem atravessados por singularidades préindividuais, virtuais, não integradas nas formas23.

Suspendendo traços a-significantes, “marcas livres involuntárias riscando a tela...”, imagens-nuas, despojadas de significação verbal e escrita, imagens inexprimíveis, o dançarino apodera-se de seu corpo quando se “arrisca a cair no vazio24”, se arriscando em pensamentos-voadores e permitem a falta de sentido, pois estão associadas a forças que evocam simulacros e propõem brechas no pensar. formar centros de vontade de potencia. São forcas em devir. 22 (...) não poderia a vida de todos se transformar numa obra de arte? Por que deveria uma lâmpada ou uma casa? Por que deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida?”. FOUCAULT, 2010, p. 306. 23 ARAGON, p. 48, 2007. 24 GIL, 2005, p.13.

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Criando possibilidades para a diferença, singularidades nas maneiras e modos de vida. Criando possibilidades no “entre” das práticas de movimento para além do adestramento de um corpo. Pensando a ciência/arte do movimento humano como algo potente que pode gerar movimentos humanos sociais, educacionais, movimentos de vida. Criando vidas, práticas, modos de subjetivação como possibilidade de constituição de si, como possibilidade de viver sua vida em suas singularidades, fazendo de sua vida uma obra de arte.

REFERÊNCIAS ARAGON, Luís Eduardo P., O Impensável na Clinica: virtualidades nos encontros clínicos. Porto Alegre: Sulina, Editora da UFRGS. 2007. CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault - Um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Trad. Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. DELEUZE, G. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. FERNANDEZ, Josiane Regina Pejon; LOBO DA COSTA, Paula Hentschel. Pedagogia da natação: um mergulho para além dos quatro estilos. Rev. bras. Educ. Fís. Esp., São Paulo, v.20, n.1, p.5-14, jan./mar. 2006. FERRAZ, Wagner; BELLO, Samuel Edmundo Lopez . Estudar o Corpo: do que (não) se trata. In.: FERRAZ, Wagner; MOZZINI, Camila. Estudos do Corpo: Encontros com Artes e Educação. Porto Alegre: INDEPIn, 2013. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 9ª ed. Org. e Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1990. FOUCAULT, Michel, Historia da Sexualidade I: a vontade de saber. 13 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999. FOUCAULT, Michel, Vigiar e Punir. 38 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010. GIL, José Nuno, Abrir o Corpo. In: Corpo, Arte e Clinica. FONSECA, Tania Mara Galli; ENGELMAN, Seda (Org). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

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GIL, José Nuno, A Imagem Nua e as Pequenas Percepções. São Paulo: Editora Relógio D’Agua, 2005. GIL, José Nuno. Movimento Total - o corpo e a dança. São Paulo: Editora Iluminuras, 2005. MAURICIO, Eduardo; MANGUEIRA, Fractal: Revista de Psicologia, v. 23 – n. 2, p. 291-304, Maio/Ago. 2011. Disponivel em: http://www.uff.br/ periodicoshumanas/index.php/Fractal/article/ view/529/520. Acesso: 08/04/2014, 17h SILVA, Tomaz Tadeu. Teoria Cultural e Educação - um vocabulário crítico. Belo Horizonte: Autentica, 2000. SOUZA, Mauro Araujo de. Nietzsche: viver intensamente, tornar-se o que se é . 2 ed. São Paulo: Paulus, 2010.

*Luísa Beatriz Trevisan Teixeira (Lu Trevisan): Artista independente, performer, fotógrafa, acadêmica em Educação Fisica (UFRGS) e Artes Visuais (IERGS), participante pesquisadora dos Estudos do Corpo.

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artigo 07

Rastros genealógicos de dança: para pensar um corpo dançante

Wagner Ferraz* Samuel Edmundo Lopez Bello**

Resumo: Este texto busca levantar questões acerca da educação do corpo que dança e das possibilidades de criação e constituição de corpos nos diferentes movimentos de vida, para assim se pensar um corpo a dançar. Esses movimentos são tomados como processos educativos em que o corpo se constitui entre regras, modelos, representação e as possibilidades de invenção de uma vida artística. Tem-se a dança como disparador para pensar um corpo dançante, e não como campo a ser analisado. Para isso, traça-se um breve percurso do corpo constituído pela dança cênica, (não)disciplinado, que se torna dançante, para assim pensar outros modos de se tornar um corpo dançante na perspectiva do pensamento da diferença. Palavras-chave: corpo dançante, educação, criação, dança, movimento

Abstract: This text raises some questions about the body dancing and education opportunities for the creation and constitution of bodies in the different movements of life, so think a body to dance. These movements are taken as educational processes in which the body is between rules, models, representation and the possibilities for invention of an artistic life. One gets the dance as a trigger to think a dancing body, not as a field to be analyzed. For this,

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we draw a short body constituted by the scenic route dance, (not) disciplined, which becomes dance, to think so other ways to become a dancing body from the perspective of thinking of the difference. Keywords: dancing body, education, creation, dance, movement

Educar um corpo1 é colocá-lo em movimento2, em movimento de vida, num fluxo de ações experimentadas que produzem conhecimentos, mas que não fixam o corpo como algo definido, esgotado, pronto, mas como dançante. Esse corpo dançante se constitui como ato de pensar, um pensar que é 1 Este texto foi escrito para a dissertação de mestrado “Corpo a dançar: entre educação e criação de corpos” (defendida em 30/07/2014), desenvolvida por Wagner Ferraz e orientado pelo Prof. Dr. Samuel Edmundo Lopes Bello, no Programa de Pós-Graduação em Educação (na Linha de Pesquisa Filosofias da Diferença e Educação) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Esta versão aqui publicada foi revisada e sofreu ajustes para esta revista, pois uma versão reduzida foi publicada nos anais do Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul - Reunião Científica Regional da ANPED (X ANPED SUL), que ocorreu na Cidade de Florianópolis no ano de 2014, sob o título “Educação de corpo: dançar, movimentar, pensar”. 2 Por mais que tenha dito anteriormente que o movimento é constitutivo do corpo, e que mesmo em repouso este pode estar em movimento, também é possível dizer que, ao incidir sobre uma materialidade corporal com práticas educativas, pode-se colocálo em movimento como modo de executar ações e regras que modulam condutas.

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A dança pode ser entendida como uma potência do pensamento, um pensamento em ato, e pensar por si só nos permite potencializar a própria vida. Pensar por movimento é pensar o próprio pensamento, desenvolver suas próprias experiências de pensamento, pois somente o movimento efetua o pensamento. E pensar é exatamente esse movimento que se opõe à paralisia da criação, às opiniões generalizantes, ao corpo alinhado e obediente. Nesse contexto, pensar por movimento é engendrar esse movimento em dobras e desdobras abrindo caminhos para que o pensamento possa dançar, criar e poetizar4.

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corporal, uma materialidade que se diferencia constantemente produzindo variações quando experimenta a si3. E, nos processos educativos em dança, nos referimos a um corpo que não se compromete somente com o movimento cênico dançante, mas que faz, dos instantes de sua existência, experimentação.

Com isso, é importante destacar que, neste texto, não se tratará do corpo constituído numa visão dualista em que corpo e mente são separados e, muitas vezes, se atribui à mente um valor superior ao do corpo, tendo a materialidade corporal a marca do pecado imposta pelo cristianismo. Não se trata de firmar as possibilidades de representação do corpo, mas das possíveis constituições em diferentes condições, encontros e práticas/pensamentos. Um corpo como condição para vida e morte, um corpo que se afeta e que é afetado, um corpo que vive as experiências tanto pelas formalidades morais e regras culturais como pelas condições que se tem para possibilidades éticas de constituição de si produzindo diferença. É pelo e com o corpo que conduzimos a nós mesmos e encontramos possibilidades de conduzir as condutas dos outros, é no corpo que se dá a vida, é no corpo que o próprio corpo acontece. É com o corpo que se produz a si mesmo, é com o corpo e no corpo que se encontra ou se vive as possibilidades de liberdade e resistência. É com o corpo que se tem condições de exercer e/ou estabelecer relações de poder sobre outros corpos. É com o corpo que se vem a realizar atos políticos. É no corpo que tudo isso se dá, mas o corpo não “é”, o corpo “vem a ser”5.

3 Mas como um corpo experimenta a si mesmo? Ao realizar uma ação, o corpo não experimenta a ação, mas experimenta um si que se constitui na realização de tal ação. 4 MUNHOZ, 2011, p. 29. 5 FERRAZ e BELLO, 2013, p. 255-256. Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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A educação de um corpo pode ser pensada nas diferentes atividades constituidoras desse corpo, ou seja, em todas as práticas realizadas por este. Nesse texto, tomo a dança como atividade para pensar essa educação, tanto uma educação que incide sobre a materialidade e produz condutas no âmbito corporal como uma educação de si como possibilidade singular de existir. Tomo a construção deste texto como um conjunto de pistas que dão o que pensar6 sobre dança e corpo dançante. Mas de que dança se trata? Pensamos aqui com a dança cênica. Muitas das Danças7, ditas, reconhecidas ou até convencionadas como de estética contemporânea, muitas vezes, produzem estranhamento, colocam a pensar, por se distanciarem das fadas, príncipes, princesas e faunos dos repertórios clássicos de balé. Essas Danças podem ser pensadas como possibilidades de (des)organização, tanto artística quanto corporal, produzindo um corpo dançante que se afasta da ideia de corpo como espaço para uma moral da dança. Entendese por moral, na dança, as regras a serem seguidas por todos, com poucas possibilidades para a criação. (Des)organizar estruturas, no ato de dançar ou de criar em dança, conduz a pensar o corpo de diferentes modos, um corpo que desacomoda, que perturba, que é posto no movimento de constituição se diferenciando. A sensação de desacomodo dos formatos estáveis incomoda, produz uma dança violenta, que provoca estranhamento por não produzir a sensação “romântica” de conto de fadas. Mas, assim, cria condições de possibilidades para outras criações, para uma dança que pode ser tomada como dança das possibilidades. Dança essa que é convencionada como Dança Contemporânea, uma possibilidade ética de viver essa arte. A dança das possibilidades não é a dança em que se pode tudo, mas a dança com a qual se pode variar os modos de dançar, sem compromisso com os regramentos. É uma dança que dá condições para pensar os modos 6 Para pensar com esse texto aqui apresentado a criação de um “corpo a dançar”, destacando que esse “corpo a dançar” não é um corpo para a dança, mas uma criação conceitual pensada com a dança e com outros intercessores que foram coreografados na dissertação citada na nota 1. 7 Criações em dança classificadas como Dança Contemporânea que são criadas com suas especificidades, pois uma dança, mesmo sendo classificada como dança contemporânea, tem seu posicionamento nessa categoria por convenções, e não por questões técnicas específicas, como no caso de muitas outras danças. Por isso pode-se falar de muitas danças contemporâneas.

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de ensinar e aprender e a singularidade da criação artística de cada um, mais do que os modos pré-estabelecidos de dançar.

Um corpo de uma dança cênica A dança cênica é aquela produzida, pensada, pesquisada, criada e ensaiada para acontecer em uma cena artística, seja em um palco italiano8 (caixa preta), em um espaço público, em uma arena, na rua, em uma casa, em um espaço destinado para as artes. Independente de técnica, estilo, escolha estética, a dança cênica é essa que não está na ordem de uma dança social dançada em festas por diferentes motivos, sendo o mais comum a diversão. Seja o balé clássico, a dança moderna, a dança contemporânea, as danças folclóricas/dança de salão com o intuito de apresentação cênica, seja a dança jazz e tantas outras, podemos entender todas como dança cênica. Todas são produtoras de um corpo que poderíamos chamar de corpo cênico, mas o que interessa aqui é o processo de educação desse corpo, trata-se de uma disciplina corporal por meio da dança. O balé (dança clássica) se caracteriza, entre outras coisas, por regras e pela codificação de movimentos corporais que são reconhecidos em qualquer lugar do mundo. Da Itália do século XV, em Florença, em festas nos palácios, ao século XVIII, passou por modificações disciplinares nas quais, até hoje, pode-se perceber uma organização do poder sobre a materialidade corporal9. Pierre Beauchamp10 (1636-1705) criou cinco posições básicas dos pés para esta dança: todo e qualquer passo e movimentos iniciam ou terminam nas respectivas posições. São regras com suas verdades aplicadas à anatomia humana, uma disciplina dos gestos, das atitudes, do uso do espaço e de cálculos de tempos. Para os braços e cabeças também foram codificados movimentos específicos para acompanhar 8 Palco tradicional onde o público assiste ao espetáculo de frente. Normalmente possui três lados fechados, como se fosse uma caixa, e se mantém tudo no escuro para poder trabalhar com a iluminação. 9 O poder aqui é, pensando com Foucault, um poder não hierárquico, mas um poder que se dá nas relações, ou como podemos dizer: Relações de poder. Não um poder de alguém que decide e outros obedecem, mas relações de poder em que se busca fazer com que os outros desejem o que se quer que eles desejem. 10 Charles-Louis-Pierre de Beuchamps foi um dos principais nomes na elaboração de uma codificação da dança clássica.

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É uma dança idealizada para corpos específicos que realizem os movimentos dançantes13 regidos pela técnica, o que, de certa forma, com base nos ideais que se busca atingir, restringe alguns corpos, posicionandoos em um lugar de não adequados para essa dança. É uma dança tradicional, que se deve ensinar e aprender como ela foi criada, pois é essa sua proposta. Um corpo que realiza de formas diferenciadas a dança clássica, que não consegue alcançar o que foi idealizado na proposta desta, pode ser até considerado não adequado para essa atividade. Não possui condições para ser admirado ou não é capacitado para esta arte, mas pode buscar viver, intensamente, o treinamento com o intuito de normatizar, de construir um corpo pela padronização de movimentos dançantes.

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as posições e movimentos de pés. No todo, trata-se de um rigoroso adestramento11 de corpos – um treinamento, um modo de educar os corpos para essa arte –, mas, ao mesmo tempo, trata-se da construção de uma dança acadêmica com uma estética admirada até os dias de hoje e, automaticamente, da produção de um determinado tipo de corpo útil12 para essa dança.

É preciso tornar-se um corpo em que as “técnicas de adestramento” produzam efeitos nos comportamentos. Precisa-se aprender a representar essa técnica, chegar o mais próximo possível do modelo tomado como verdadeiro. Existem propostas que buscam outras possibilidades no próprio balé, pensando as materialidades corporais de formas diferenciadas, mas nem sempre reconhecidas e legitimadas: são criadas por professores que buscam produzir o balé clássico preocupandose com a potência de cada corpo, que pensam o corporal nas suas singularidades. Porém, para se reproduzir o balé14, precisa-se investir no controle do corpo, para que este se torne força útil e, ao mesmo tempo, produtivo e submisso, precisa-se educar o corpo para essa prática. A busca por realizar outras formas de dança que não sejam o balé, na tentativa de 11 FOUCAULT, 1987, p. 119 12 FOUCAULT, 1987, p. 119 13 Movimentos dançantes são diferentes de movimentos cotidianos. Uma pessoa caminhando na rua não está executando movimentos dançantes, mas a movimentação dessa caminhada pode servir de inspiração para a produção de uma cena artística, pode ser coreografada. O movimento da caminhada, quando é ensaiado para ser apresentado, quando se define ritmo, intensidades, dinâmicas, direções e intenções, pode se tornar um movimento dançante. 14 Mas não só o balé, isso passa por muitas danças. Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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possibilitar que outros corpos, ditos diferentes, pudessem dançar, abriu espaço para a criação de outras danças/técnicas com suas regras: A Dança Moderna15. A dança moderna (ou as danças modernas) surge, cronologicamente, depois da dança clássica. Apesar de ser efeito do pensamento de uma determinada época no sentido de dar possibilidades para criação, também tem como forte característica a codificação, a padronização e a normalização de alguns movimentos que se dão através de exercícios que constituem as técnicas dessas danças. Mas, ao mesmo tempo, dão condições para compor com seus códigos e com a criação de outros movimentos, apontando sempre para os chamados princípios, com exceção da precursora Isadora Duncan (1877–1927), que trabalhava com movimentos que ela chamava de livres, tendo como referência a natureza. Martha Graham (1894–1991) desenvolveu uma técnica que tem como princípios “contração e relaxamento”, Dóris Humphrey (1895-1958) aponta para “queda e recuperação”. E há muitos outros que foram precursores desse movimento (Dança Moderna), como Loie Fuller (1862–1928), Ruth St Dennis (1879– 1968); Emile Jacques Dalcroze (1865– 1950); Mary Wigman (1866–1973) e Rudolf Von Laban (1879–1958), criaram suas especificidades em suas danças, trabalhando com o corpo e sobre o corpo e suas forças, intensificando sua utilidade, sua docilidade, sempre precisando de sua submissão16 para a realização dessas danças. Na década de 60, destaca-se Merce Cunninghan (1919 – 2009), bailarino e coreógrafo que estudou dança com Martha Graham e teve muitos trabalhos em parceria com o músico John Cage (1912 – 1992). Aos 34, que funda a Merce Cunningham Dance Company. Criou uma linguagem considerada inovadora, onde coreografia, música e cenografia eram construídas independentemente uma da outra, e não havia mais uma narrativa na dança. “Fez algo inusitado: introduziu o método do acaso, que consistia em criar algumas 15 A Dança Moderna emergiu nos últimos anos do século XIX e se destacou nos primeiros anos do século XX. Existem várias danças modernas com intenções distintas. Os bailarinos, em algumas dessas danças, dançam descalços, trabalham movimentos de contração, torção, desencaixe etc. Os movimentos são entendidos como mais livres, embora sigam uma técnica organizada. 16 Submissão é pensada aqui, com Foucault, como a condição de se submeter a uma prática para se tornar útil a esta.

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sequências (trechos, partes) de dança e sorteálas para escolher qual seria usada na criação coreográfica”17. Cunningham é citado por alguns como quem mudou os rumos da dança moderna, sendo considerado um precursor da dança pós-moderna. Para alguns, é tido como um dos primeiros coreógrafos contemporâneos. Na mesma década, ligado ao estúdio de Merce Cunninghan, em Nova York, se constituía um grupo de coreógrafos, pós-modernos, irreverentes, que pensava a dança inserida nas grandes mudanças no campo social e político daquela época. Esse grupo se chamou Judson Dance Theatre18, “(...) utilizam movimentos cotidianos sob a alegação de que ‘todo movimento é dança’19”. Fizeram parte desse grupo: Yvonne Rainer (1934), Steve Paxton (1939), Trisha Brown (1936), Simone Forti (1935), Willian Forsythe (1949), entre outros. Esse movimentos na história da dança, possibilitam pensar que o corpo sempre foi a condição para se dar a dança, e sempre foi a própria materialidade a condição para se pensar e criar outros modos de dançar, rompendo com a dominância de uma determinada dança tomada como a verdade a ser buscada em diferentes momentos históricos. E assim se deu a necessidade de inventar a dança contemporânea, criada, historicamente, depois das danças clássica (balé clássico) e moderna, como outra forma de investimento no corpo, com mais espaço para a produção da diferença e para a produção de diferentes estéticas, buscando se diferenciar das danças tradicionais que regiam o “mundo” da dança, como a dança clássica.

Dança contemporânea: a dança das possibilidades Por mais que se trate de um período histórico, o que fica muito evidente nas danças citadas anteriormente são suas particularidades, sendo essas conhecidas e classificadas por suas características técnicas, seus modelos a serem representados. Tanto a dança clássica 17 RENGEL e LANGENDONCK, 2006, p. 62. 18 “Os artistas desse grupo trouxeram para a arte fundamentos diferentes e instigantes. Observavam os movimentos de animais, as ações cotidianas das pessoas, as relações de peso do corpo em contato com outro corpo, usavam a improvisação de movimentos e apresentavam suas danças não mais de forma linear, mas sim como um videoclipe. O objetivo era fazer com que o público juntasse os ‘pedaços’ e extraísse um significado para o trabalho apresentado”. RENGEL e LANGENDONCK, 2006, p. 67. 19 MARQUES, 2012, p. 182.

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como as danças modernas são técnicas de normatização dos corpos em que o controle se dá através de seu exercício - mas não só isso - que apontarão para determinados resultados estéticos propostos por cada uma, todas essas danças, sempre, apresentando suas identidades que podem ser percebidas em diferentes lugares e tempos, podendo haver pequenas alterações. Mas isso vai se embaralhar, desorganizar, deslocar com a invenção20 da já mencionada dança contemporânea. “A dança contemporânea não é uma escola, tipo de aula ou dança específica, mas sim um jeito de pensar a dança.21” Um jeito de pensar a dança diferente a cada dança criada, um jeito de pensar a dança criando diferença; não apenas um jeito, mas modos de criar danças, modos que criam a dança que trato aqui por dança das possibilidades. Pensar a dança contemporânea como dança das possibilidades dá condições para pensar processos de criação em dança que apresentarão singulares resultados cênicos e que muitas vezes estão em devir. Porém, essa dança ainda mantém o caráter disciplinar, com seus treinos e ensaios. Faz-se dança contemporânea no Japão, em Taiwan, na França, na Alemanha, na Holanda, na Bélgica, nos Estados Unidos e no Brasil. Em cada um desses países há coreógrafos de características distintas que realizam trabalhos corporais conhecidos como dança contemporânea, mas que poderiam ser classificados de forma diferente22.

Com criações de diferentes danças de estética contemporânea produzem-se modos do dançar, desorganizando o que já se fazia em dança, reorganizando constantemente o que se faz sem fixar em algo (em muitos casos), podendo-se pensar em algo transitório, em devir provocando estranhamentos. É através do estranhamento que é possível sair do lugar comum, do lugar de costume, de um lugar de possível fixação, do lugar onde se 20 Uso o termo invenção fazendo referência a Foucault, que tomou este termo de Nietzsche. “Em Verdade e as Formas Jurídicas, 2002, p. 16., Foucault dirá que o “O conhecimento, foi portanto, inventado”. A ideia de invenção se contrapõe à de origem: dizer que o conhecimento foi inventado é dizer que ele não teve origem e que, portanto, não há no conhecimento uma adequação ao objeto, uma relação de assimilação, mas sim uma relação de dominação”. Quando algo é inventado, tratase de dizer de um pequeno momento de emergência, e não de algo que já estava lá. E assim penso que em algum momento a dança contemporânea teve sua emergência e a estética que se diferenciava de tudo o que era produzido até então foi tomada como verdade, e isso foi entendido como Dança Contemporânea. 21 TOMAZZONI, 2006. 22 SIQUEIRA, 2006, p.107. Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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encontra os modos, desenhados pelo corpo, de fazer dança, já estruturados e traduzidos em receitas. Então, de acordo com o que foi apresentado sobre essa dança, os corpos que se dão dançantes por esta, podem ser corpos livres, não formatados por códigos dançantes, pois cada coreografia ou espetáculo de dança contemporânea dá condições para diferentes constituições de corpos? Por mais que se pense nas possibilidades de constituição de corpos com essa dança, assim mesmo é possível produzir corpos dóceis. “Foucault nos diz que um corpo é dócil quando pode ser submetido, utilizado, transformado, aperfeiçoado, exercitado23”. E isso é possível com o balé clássico, com a dança moderna, com a dança jazz, com danças folclóricas e também com a dança contemporânea. Porém, em algumas danças de estética contemporânea, o corpo passa a ser pensado nas suas possibilidades e potências, e não em possibilidades criadas para se encaixar nesse corpo. Há menos atenção para uma disciplina rigorosa sobre o corpo e mais, talvez, uma busca por um olhar para si mesmo, um cuidado consigo – “a finalidade é ocupar-se consigo24” –, um inventar o seu modo de criar danças e de dançar, dançar por si mesmo. Como no caso da coreógrafa alemã Pina Bausch (1940 – 2009). Pina teve um trabalho de dança-teatro (Tanztheater), movimento que iniciou na época da Rudolf Van Laban e Kurt Joos, mas o trabalho dessa coreógrafa atravessou décadas, sempre se destacando e sendo referência no cenário contemporâneo. “As obras de Pina Bausch mostram pessoas comuns andando nas ruas. Os dançarinos ensaiam esses movimentos à exaustão, até que pareçam bem naturais. Porém, situações inesperadas são introduzidas para provocar o público”25. Pina acreditava que pela repetição dos movimentos se chegava à sua transformação. Hoje muitas cias de dança, bailarinos, grupos, coletivos desenvolvem propostas de danças contemporâneas, cada um com seu modo de dançar, alguns apontando para algumas convenções e outros buscando sua singularidade.

Corpo (não)disciplinado na dança As danças mais disciplinares podem ser pensadas como a imagem de uma garrafa com 23 24 25

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CARDIM, 2009, p. 135. VALLE, 2012, p. 283. RENGEL e LANGENDONCK, 2006, p. 66.

uma forma bem específica, em que será um bom sujeito da dança aquele cujo corpo, com seus gestos, condutas e comportamentos, se encaixar perfeitamente dentro da garrafa. Se o corpo não se encaixar na garrafa, este corpo não serve para certa dança proposta em determinada situação. Já em muitas danças contemporâneas é como se se pensasse o corpo como criador de sua própria garrafa, que serve especificamente para esse corpo que a produziu, e a produzirá muitas vezes de diferentes formas. Cada corpo, nas possibilidades de movimentação, criará, construirá, inventará sua própria garrafa, e isso muitas vezes bagunça, desorganiza, produz estranhamento, pois não se trata de regras e formatos a serem repetidos, mas de regras e formatos que, ao se repetirem, são refeitos, são criados de forma diferenciada, criados o tempo todo para cada dança e que, em muitos casos, deixam de valer a cada nova proposta ou a cada dia. A dança contemporânea é produzida pelo corpo que se constitui nas experiências dessa própria dança, nas experimentações de seus modos de dançar, modos esses que se dão em cada proposta e em cada coreografia26. Pois a dança, quando compreendida como possibilidade de composição de movimentos dançantes, de composição de um corpo que se dá dançante, se produz no entre o que se compreende por dançar (vir a ser/ato) e dança (efeito do dançar), um entre de infinitas possibilidades, onde o dançar e a dança são desfeitos para se refazer. Isso como tentativa de não correr o risco de viver o dançar como algo fixo, como um caminho certo e acomodável, que facilmente pode se tornar o lugar do estrangulamento, o lugar do fim, um lugar sem possibilidades de desdobramentos. Essas danças, como possibilidades do dançar, indicam modos de movimentar/pensar/ criar danças, um ato de pensar que se dá como ato de criação, um pensar da não representação, um pensar que produz um pensamento que dança, que produz um corpo que dança, que produz um corpo que varia em si mesmo, que se diferencia de si na experiência, que acontece, que é efeito de toda sua construção e ações. Um dançar no ato de pensar que se dá como constituição de corpo, podendo, assim, ser 26 Mesmo assim essas danças mantêm um caráter disciplinar ao criar outros modos de dançar. Ao mesmo tempo em que criam possibilidades de produzir outros modos de dançar, criam também os modos de operar esteticamente com essa dança. Ou seja, criam os modos de realizá-la, de fazê-la, de transmiti-la a outros para produzir determinados movimentos dançantes e cenas artísticas.

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A dança pode ser entendida como uma potência do pensamento, um pensamento em ato, e pensar por si só nos permite potencializar a própria vida. Pensar por movimento é pensar o próprio pensamento, desenvolver suas próprias experiências de pensamento, pois somente o movimento efetua o pensamento. E pensar é exatamente esse movimento que se opõe à paralisia da criação, às opiniões generalizantes, ao corpo alinhado e obediente. Nesse contexto, pensar por movimento é engendrar esse movimento em dobras e desdobras abrindo caminhos para que o pensamento possa dançar, criar e poetizar28.

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pensado e vivido fora da cena artística da dança, que pode ser pensado na vida e nas diferentes práticas, uma cambalhota do pensamento27, uma constituição de uma materialidade corporal e intensidade corpórea que se faz dançante. Essas danças dão condições para ver que o dançar pode se dar, também, fora da cena artística, como uma dança do movimento do ato de pensar (e isso também na cena artística), mantendo um caráter disciplinar, docilizando um corpo e, ao mesmo tempo, “livre” para a criação.

Com Foucault, podemos falar que pensar o próprio pensamento, cuidar de si, é tomarse objeto de ação e do conhecimento, com regras de conduta e princípios que precisam ser conhecidos, para, dessa forma, buscar se singularizar através da valorização de si próprio e do conhecimento de si. Se conhecer, através do cuidado de si, é se constituir como sujeito de suas verdades, sejam essas verdades efeitos de uma ou outra dança. ... é preciso ir em direção ao eu como quem vai em direção a uma meta. E esse não é mais um movimento apenas dos olhos, mas do ser inteiro que deve dirigir-se ao eu como único objetivo. Ir em direção ao eu é ao mesmo tempo retornar a si: como quem volve ao porto ou como um exército que recobra a cidade e a fortaleza que a protege29.

E essas verdades se reinventam ao repetir a experiência de si num corpo que se constitui no dançar, no movimento dançante, que se repete e se refaz constantemente, que repete diferentes modos de viver, diferentes técnicas, que repete o que vive, para se reconhecer como um corpo de alguns instantes. Talvez um corpo que dança a vida, muitas vezes, de variados 27 28 29

GIL, 2004, p. 133. MUNHOZ, 2011, p. 29. FOUCAULT, 2010a, p.192. Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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modos. O vir a ser de um corpo no movimento do dançar – do pensar, do agir, que se produz como arte, arte de si, arte da experiência de si, do impensado, dos modos de se fazer corpo nas relações consigo mesmo e com as verdades – é se inventar.

corpo que varia de si mesmo no ato de dançar. O corpo dançante vem a ser efeito dos modos de dançar, efeito das possibilidades do dançar. E esse corpo dançante, em muitas pesquisas sobre dança cênica, é compreendido como o corpo treinado pela e para a dança.

Ao perder a consciência o corpo pensa em sua mais potente intensidade. O pensamento surge no movimento e se desloca em uma infinidade de gestos que cortam o tempo, as fronteiras, os limites, aceleram a intensidade. O pensamento convocado às categorias de uma vida dançante torna-se ação e criação. Desse modo, o pensamento não é separado do corpo, mas se engendra por meio do movimento, em uma multiplicidade de sensações que levam o pensamento a dançar. O pensamento, então, é o movimento de sua própria intensidade, efetuando-se em si mesmo, tornando-se corporal30.

Nas produções em dança, tanto artísticas quanto de pesquisa acadêmica, essa noção de corpo treinado pela e para a dança apresenta indícios da constituição de um corpo que se dá no ato de dançar constituído para sua própria arte. Com o pensamento da diferença talvez seja possível pensar um corpo dançante para as vivências cênicas e para a vida de modo amplo. Assim, é possível pensar um corpo dançante que se dá em materialidade e intensidade, que tem o movimento constitutivo de si, uma potência que pode dar condições para vir a ser um corpo dançante e/ou vir a ser um corpo de outras experiências, produzindo diferença, diferenciação em si, produzindo possibilidades no corpo para experimentar a si mesmo.

O corpo não é apenas o local da disciplina dos movimentos, gestos e das condutas, o corpo é a condição para se disciplinar a si mesmo na necessidade de cada ação vivida, e assim produzir rupturas e produzir um si que varia em si mesmo.

Um corpo dançante Um corpo dançante, pensado a partir das artes cênicas, pode ser entendido como um corpo que se constitui através de práticas31 no âmbito da dança, um modo de vida que nem sempre está na execução de uma técnica específica dessa arte, mas no viver a dança em diferentes possibilidades e potencialidades. A dança se dá no corpo, por meio e através deste, é ela “(...) que mostra que o corpo é capaz de arte32”, torna o corpo arte e o corpo faz de sua arte, dança. O corpo que dança, que executa o que se compreende por dança academicamente, tecnicamente ou historicamente, é potente para questionamentos sobre o que pode um corpo, sobre a potência de agir, sobre a experiência e a (des)organização na constituição de uma materialidade. Um 30 MUNHOZ, 2011, p. 26. 31 “... Foucault entende por práticas a racionalidade ou a regularidade que organiza o que os homens fazem (‘sistemas de ação na medida em que são habituados pelo pensamento’), que têm um caráter sistemático (saber, poder, ética) e geral (recorrente) e, por isso, constituem uma ‘experiência’ ou um ‘pensamento’”. CASTRO, 2009, p. 338.

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BADIOU, 2002, p. 94.

Para, inicialmente, pensar um corpo dançante, treinado pela e para a dança, tradicionalmente pensando nas produções em dança, se faz importante olhar para a proposta de Dantas (2011), a qual, numa perspectiva fenomenológica, busca “ancorar reflexões teóricas” sobre o corpo dançante na prática coreográfica contemporânea. A autora, no artigo “O corpo dançante entre a teoria e a experiência: estudo dos processos de realização coreográfica em duas companhias de dança contemporânea”, descreve “concepções de corpo” elaboradas nas obras “Aquilo de que somos feitos” (Lia Rodrigues Companhia de Danças) e “Marché aux puces, nous sommes usagés et pas chers” (Dona Orpheline Danse), que se deram através de um estudo dos processos de realização das duas coreografias. Para esse estudo a autora tomou como referência quatro modelos de corpo: corpo objeto (Lesage e Foster), corpo dionisíaco (Nietzsche), corpo fenomenológico (Merleau-Ponty) e corpo social (Bourdieu), destacando o corpo dançante como corpo treinado, heterogêneo, autônomo, íntimo, energético, engajado, vulnerável e amante. Com a fenomenologia de Merleau-Ponty, Dantas esclarece que esta filosofia possibilita abordar o corpo dançante a partir da experiência dos bailarinos e dos coreógrafos, fazendo pensar sobre as relações que os bailarinos estabelecem com seu corpo e os modos como eles os vivem. Os possíveis tensionamentos entre o corpo concebido como objeto e o corpo concebido como experiência

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Ao analisar o espetáculo “Aquilo de que somos feitos”, a autora constatou “a presença de diferentes concepções de corpos dançantes, que foram elaboradas pelos bailarinos e pela coreógrafa e que são convocadas para dar vida à coreografia”34. O corpo dançante é treinado e também autônomo, atento, cultiva suas características pessoais, é um corpo em estado de alerta. “As concepções do corpo dançante como corpo treinado, heterogêneo e autônomo se referem à formação e ao treinamento de cada intérprete em cada companhia” 35. Isso se dá em uma construção de corpo a partir de diferentes experiências, podendo envolver balé, dança moderna, butô, danças africanas e afro-brasileiras, educação somática, práticas esportivas, teatro físico e performance. A partir da noção de corpo dançante apresentada por Dantas, compomos outras noções de corpo dançante, utilizando a noção de sujeito, subjetivação e experiência de si proposta por Foucault.

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(ou corpo vivido) “mantêm-se quando se aborda a construção de corpos dançantes, ou seja, o tornar-se bailarino”33.

Corpo dançante/sujeito O corpo dançante referido anteriormente aponta para um modo de constituição de corpo que treina com sua própria dança para se tornar um bailarino/dançarino, mas alargando essa visão de corpo dançante, pensando que se tornar um bailarino/dançarino por meio dessas práticas dá condições para pensar um sujeito da dança ou um sujeito dançante. O que vem a ser um sujeito dançante? Talvez seja mais adequado localizar de que noção de sujeito (não) se trata. Não se trata do sujeito transcendental, fonte inesgotável que justifica tudo o que fazemos e o que somos, senhor de toda a verdade, em essência, sujeito conhecedor. Mas, sim, dentro de uma perspectiva foucaultiana, trata-se de um sujeito que vem a ser uma composição, produto de um jogo de forças, dos jogos de verdade36. O sujeito: Não é uma substância. É uma forma, e essa forma nem sempre é, sobretudo, idêntica a si mesma. Você não tem consigo próprio o mesmo tipo de relações quando você se constitui como sujeito político que vai votar ou tomar a palavra em uma 33 34 35 36

DANTAS, 2011, p. 07. DANTAS, 2011, p. 09. DANTAS, 2011, p. 13. PEREIRA e BELLO, 2011, p. 101-102. Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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assembleia, ou quando você busca realizar o seu desejo em uma relação sexual. Há, indubitavelmente, relações e interferências entre essas diferentes formas do sujeito; porém, não estamos na presença do mesmo tipo de sujeito37.

Assim, é possível pensar o corpo dançante treinando para sua dança como modo de construir a si mesmo no encontro e nas vivências com outras atividades de sua vida. Um corpo dançante que se dá por meio de práticas dançantes, nos saberes e modos de viver a dança, um sujeito que se constitui nas diferentes experiências dançantes em diferentes momentos de sua vida. Não se constitui de uma forma fixa, estável ou como resultado de uma essência fundadora, não como construção identitária, mas como efeito do dançar, tendo o ato de dançar como modo de subjetivação, como possibilidade de vir a ser sujeito dessa arte. O sujeito dançante produz o seu próprio corpo treinado pela e para a dança e o corpo dançante é condição para a constituição do sujeito dançante. São esses corpos que são autorizados a dançar em determinados meios artísticos, são esses corpos que carregam consigo a dita excelência artística, são esses corpos detentores de códigos específicos de técnicas dançantes tradicionais ou de modos de dançar produzidos especificamente para uma determinada criação. São esses corpos que evidenciam uma verdade que se dá pela execução da dança tão treinada. Um corpo que dá conta de todo o aprendizado e adestramento resultante dos treinamentos, das repetições na busca de modos específicos de fazer dança, esse é considerado um corpo dançante, um bailarino, um dançarino... Trata-se de uma verdade sobre ser um corpo dançante de uma dança cênica, de uma dança que está na ordem da execução técnica, na ordem da criação de outros passos ou cenas, um corpo que é produzido e preparado para determinadas situações, um corpo que carrega, porta, possui marcas de danças, um corpo que dança o que aprende como dança, que é educado para a dança e que muitas vezes não envolve o dançar como: escrever dança, falar dança, pintar dança, mas se foca no ato de dançar como verdade para a constituição de si, como verdade para se constituir um sujeito dançante. O corpo dançante é o corpo submetido a um modo de vida produzido no encontro com as 37

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FOUCAULT, 2010c, p. 275.

práticas dançantes, seja no treinamento de uma técnica, nos ensaios de uma coreografia, no processo de criação de um espetáculo, nos anos de preparação em aulas de dança. Um corpo que vai se tornando um corpo para a dança e pela própria dança, que vai se configurando como um sujeito dessa prática, não de forma fixa, mas encontra nos modos de subjetivação, com a dança, possibilidades para produzir sua vida de movimentos.

Corpo dançante de outras formas Outra possibilidade de corpo dançante, ainda na dança cênica, é o corpo que vive a dança de outras formas que não são apenas o treinamento para a realização coreográfica, mas vive a dança, também, para além dos treinos técnicos e coreográficos. Um corpo que se faz dança e que faz diferentes danças, de outras maneiras, ou que escreve dança, ou que pinta dança, ou que fala sobre dança, que pesquisa dança, que vive a dança fora ou inserido nos treinamentos e ensaios, mas para além desses também, é um pensar a dança, é um pensamento dança. Um corpo que vive a dança de forma diferente do que se diz como prática de dança. Dantas destaca que uma das dificuldades de se escrever sobre dança é a intensa teorização sobre o corpo. “... como teorizar sobre a dança e sobre o corpo dançante sem se distanciar abusivamente da sua experiência?”38. Partindo dessa possibilidade de pensar uma teorização da dança, propõe-se pensar a teorização de corpo como parte de diferentes práticas, um corpo dançante de uma práticateórica ou de uma teoria-prática – experiência. É um corpo que não vai ao encontro das ideias de corpo em que este é pensado como separado da mente/alma: não se trata de dualidades, como a divisão teoria e prática, não se trata de uma experiência como sinônimo de experimentação prática, não se trata de um corpo que é representação de um modelo “verdadeiro” a ser alcançado, de um corpo que é suporte para sua essência. Mas um corpo que se dá matéria pensante, um corpo que se dá no ato de pensar, um corpo que pensa a si mesmo no próprio ato de dançar, um corpo que teoriza suas ações, suas experiências enquanto vivências, e que pratica e experimenta a si ao dançar.

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DANTAS, 2011, p. 03.

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Nesse caso, se vem a ser dançante no momento em que se estiver dançando uma coreografia, quando se estiver pensando no que coreografar, quando se estiver estudando dança, ensaiando, pesquisando dança, falando sobre dança, ensinando dança, produzindo um espetáculo de dança, construindo um figurino para a dança, pensando dança com a dança ou não, realizando algo ligado aos modos de vida que envolvem alguma dança, suas verdades legitimadas e os modos de dançar, modos de pensar o dançar. Sem definir se se é bailarino, dançarino, performer, professor, escritor, pesquisador ou qualquer outra classificação ou nomeação. O dançante faz dança, modos de pensar a dança, em diferentes condições, com e sem as especificidades previamente estabelecidas, mas está envolvido nas práticas/ pensamentos de dança ou ligado às danças e aos modos de dançar.

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Um corpo dançante, além de treinado para determinada dança, pode vir a ser um corpo que busca pensar de outros modos os atos de dançar, escrever, desenhar, pintar, falar sobre dança, um corpo que vive a dança em condições que nem sempre são as preparações para um processo coreográfico. Corpo, ato de pensar e experiência não são separados no ato de dançar.

Corpo dançante e o pensamento da diferença Tradicionalmente regrados, muitos modos específicos de fazer danças estão na busca de se aproximar ao máximo de modelos e identidades, operando na ordem da representação. Pensar o corpo que dança na diferença – onde a diferença é pensada em si e não por meio da identidade, não por relações de comparação, mas a diferença pela diferença em si, a diferença enquanto potência – pode ser uma possibilidade de não se fixar nas representações dessa arte. Deixa-se, assim, de pensar a dança apenas como algo produzido por um corpo anatômico39 em movimento, por sujeitos detentores de saberes específicos e guardiões de experiências cumulativas. Assim, o corpo que dança é potência para a criação, e não uma estrutura que é tida como produtora de erros ou acertos, é o corpo em que “novas imagens são produzidas e articuladas através 39 Corpo anatômico em movimento para expressar as tantas vezes em que o corpo é descrito apenas como anatomias e disciplinas correlatas, como fisiologia, cinesiologia e outras. Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com

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da escrita, que é convidada a dançar40”, da fala que é convidada a dançar, do pensar que é convidado a dançar, do viver a dança e se tornar dançante, criando outros modos de dançar, de se tornar dançante, de pensar a dança violentando as imagens prontas do pensamento. Pensar um corpo dançante como criador da diferença nas possibilidades em dança, e não um corpo disponível apenas para a representação na dança, indica que o corpo que dança está em constante movimento entre os modos de dançar e as criações em dança. E é nesse entre que o ato de criar acontece e que os dançantes se constituem de forma diferenciada dos corpos treinados somente para e pela dança. Mas os corpos treinados também podem se diferenciar se afastando, tantas vezes, dos resultados cênicos que buscam sempre representar técnicas, repertórios, personagens e/ou formatos de danças nomeados como linguagens e identidades de profissionais e grupos. Não se trata de uma crítica aos modos de dançar que elegem técnicas como verdades, mas sim de indicar que se pense, também, em outras formas dançantes, em outras possibilidades do corpo se mover. ... dizer que o corpo é capaz de arte não quer dizer fazer uma ‘arte do corpo’. A dança aponta para essa capacidade artística do corpo, sem por isso definir uma arte singular. Dizer que o corpo, como corpo, é capaz de arte, é mostrálo como corpo-pensamento. Não como pensamento preso em um corpo, mas como corpo que é pensamento41.

Alguns grupos, cias, coreógrafos, diretores e professores de dança buscam criar suas danças não colocando como modo verdadeiro e único seus aprendizados técnicos em dança, seus modos de pensar e fazer suas danças; criam condições para experimentar movimentos e produções nas cenas artísticas e fora delas, que se dão de diferentes formas. Não fixando no corpo códigos dançantes, mas colocando-o a criar danças, com as possibilidades potentes artísticas dançantes, na relação com as verdades que constituem suas danças, no que se aprende e no que não se aprende, no que se vive e se experimenta, no que acontece. A potência artística de cada um vem a ser possibilidade de produzir em si novos modos de dançar, ou modos de desfazer as danças 40 41

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RODRIGUES, 2011, p. 08. BADIOU, 2002, 94.

para voltar a criá-las de outras maneiras, abre espaço para o exercício ético, “... como em relação à constituição do indivíduo como sujeito de suas ações supõe aceitar a variabilidade e a diversidade, pensar a ética como criação de e a partir da liberdade e pensar o sujeito como obra, obra de si mesmo, obra de arte.”42 É pelo exercício ético, como modo de cada um fazer sua própria dança em negociação com os modos ditos verdadeiros de dançar, que o corpo “disponível” para essa arte busca condições de fuga dos movimentos codificados “resultantes” de anos de práticas/ técnicas de treinos e ensaios, de adestramentos que o constituíram como um sujeito dançante fixo, dado e estável. Para, assim, vir a ser um dançante que acione o ato de dançar e crie uma dança que se atualiza no corpo constantemente, uma dança que não se dá somente como movimentação anatômica, mas com todas as possibilidades de vir a ser um dançante. O corpo no processo de criação em dança, no que vem sendo chamado de dança contemporânea, pode ser um local de atualização de uma dança. Pois, no processo de criação em dança (contemporânea), esse corpo pode vir a apresentar novas formas de dançar, que não sejam nenhuma forma previsível ou já conhecida, para assim criar o não pensado, compor de diferentes formas. Na produção do não pensado/criado em dança, os corpos dos dançantes se tornam arte. Um corpo produtor da arte, um corpo que é a própria arte a ser admirada e não um objeto artístico, mas um corpo dançante. Um corpo dançante da dança contemporânea se dá em uma configuração ética e estética. O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos, e não a indivíduos ou à vida; essa arte é algo especializado ou feito por especialistas que são artistas. Entretanto, não poderia a vida de todos se transformar numa obra de arte? Por que deveria uma lâmpada ou uma casa? Por que deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida?43.

Um corpo dançante nem sempre está voltado a realizar uma coreografia ou dançar em um salão de festa, mas a colocar o pensamento em movimento. Um dançante pensa a dança no 42 43

NASCIMENTO, p. 02. FOUCAULT, 2010b, p. 306.

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Referências:

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corpo, no ato de dançar enquanto possibilidades de movimento que mobilizam sua vida e que se dá num corpo que se constitui no dançar. Com esse corpo dançante que me refiro é que vejo possibilidades de pensar outros modos de dançar que possam ser úteis para a constituição dos dançantes, mas que também podem ser pensados fora da cena da dança. Pela dança, com dança, pelos modos de educação dos corpos produzindo vazamentos para pensar o corpo dançante.

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*Wagner Ferraz: Mestre em Educação pela UFRGS. Pós-Graduado em Educação Especial. Pós-Graduado em Gestão Cultural. Graduado em Dança. Atuou como Coordenador do Dança do Estado do RS no IEACEN/SEDAC - 2011/2012. Foi Professor e Coordenador de Cursos Livres do INDEPin nas áreas de Cultura, Artes e Moda . Coordenador do Processo C3 e editor do Periódico Eletrônico Informe C3. Já dirigiu, coreografou e atuou como bailarino em vários espetáculos, performances, festivais e mostras de dança sendo premiado várias vezes. Integrou o elenco da Cia Terpsí Teatro de Dança (2006/2007). Ministrou aulas e oficinas de dança no ensino comum e no ensino especial para pessoas com e sem deficiência. Coordenador dos Estudos do Corpo. Organizador do livro Parafernálias I: Diferença, Artes e Educação (2013). Autor do livro: Ditos e Malditos desejos da clausura Processo de Criação da Terpsí Teatro de Dança (2011); Organizador do livro Estudos do Corpo: Encontros com Artes e Educação (2013). Autor do livro O Trabalho do Figurinista Projeto, Pesquisa e Criação (2013). Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq. br/7662816443281769 **Samuel Edmundo Lopez Bello: Possui licenciatura em Matemática. Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Paraná (1995) e Doutorado em Educação: Educação Matemática pela Universidade Estadual de Campinas (2000). Atualmente é professor Associado II da Universidade Federal do Rio Grande do Sul do Departamento de Ensino e Currículo e do PPGEDU - UFRGS. Foi Coordenador institucional do PIBID UFRGS (2011-2013). Lider do Grupo de pesquisa: Educação Matemática e formação de professores do CNPq. Linha de pesquisa: Currículo, linguagens e subjetivações. Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq. br/4997543978760163

VALLE, Flávia Pilla do. O cuidado de si para pensar a criação em dança. In.: Gilberto Icle. Pedagogia da Arte: entre-lugares da escola – vol. 2. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012a.

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